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6 PAUL RICOEUR E A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO HISTÓRICO Cícero Manzan Corsi* Resumo: O texto discute e problematiza a relação entre o ato de ler e a multiplicidade de interpretações do texto histórico, buscando estabelecer a relação entre o ato da leitura e a verdade histórica. A partir desta problematização destacamos alguns conceitos fundamentais da obra de pensadores como Gadamer e Paul Ricoeur. Entre estes conceitos destacamos: ação, mundo do leitor, mundo do texto, intenção e ideologia. Essa discussão é de fundamental importância para situar o historiador em relação à história, para apresentar a relação entre o leitor e o texto histórico, para estabelecer uma relação entre o texto literário e o texto histórico, para mostrar onde está situada a intenção do autor dentro do processo interpretativo do texto histórico. Em resumo, pretendemos apresentar como Paul Ricoeur propõe a relação entre o ato da leitura e a verdade dos fatos narrados pela história, e quais os problemas que percebemos nesta relação, sustentando como hipótese que o leitor não consegue chegar no que o autor do texto pretende expressar, este não seria seu objetivo, mas ele deve vivenciar o texto perceber os vários sentidos que o texto possibilita devido aos fatores que influenciam a interpretação. Paul Ricoeur em uma importante entrevista concedida a Edmond Blattchen publicada sob o título “O Único e o Singular”. Ao analisar um quadro de Rembrandt chamado “Aristóteles contemplado um busto de Homero” afirma que “Aristóteles não contempla o busto de Homero, mas ele toca. Ou seja, está em contato com a Poesia” (Ricoeur, 2002. P52) Podemos relacionar este ato do observador, no caso de Aristóteles, de tocar o objeto com a divisão que Paul Ricoeur faz de três mundos: um chamado “mundo do leitor”, outro chamado “mundo do texto”, e um terceiro, o mundo do autor. É importante destacar que esta junção entre dois mundos não acontece somente na leitura do texto poético, mas na leitura de qualquer texto. Pretendemos discutir o ato da leitura em relação ao texto histórico. O ato da leitura modifica o sentido do texto histórico? Qual seriam as diferenças entre o ato de ler o texto histórico e o texto literário? Qual seria exatamente a atividade do historiador? Para entendermos como estes problemas se configuram no pensamento de Paul Ricoeur, e de outros autores da hermenêutica, devemos analisar primeiramente a distinção * Graduado em filosofia pela Universidade Católica de Goiás. Atualmente cursa uma pós-graduação em História Cultural e um segundo curso superior na área de letras.

Paul Ricoeur A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO HISTÓRICO

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    PAUL RICOEUR E A INTERPRETAO DO TEXTO HISTRICO

    Ccero Manzan Corsi*

    Resumo: O texto discute e problematiza a relao entre o ato de ler e a multiplicidade de interpretaes do texto histrico, buscando estabelecer a relao entre o ato da leitura e a verdade histrica. A partir desta problematizao destacamos alguns conceitos fundamentais da obra de pensadores como Gadamer e Paul Ricoeur. Entre estes conceitos destacamos: ao, mundo do leitor, mundo do texto, inteno e ideologia. Essa discusso de fundamental importncia para situar o historiador em relao histria, para apresentar a relao entre o leitor e o texto histrico, para estabelecer uma relao entre o texto literrio e o texto histrico, para mostrar onde est situada a inteno do autor dentro do processo interpretativo do texto histrico. Em resumo, pretendemos apresentar como Paul Ricoeur prope a relao entre o ato da leitura e a verdade dos fatos narrados pela histria, e quais os problemas que percebemos nesta relao, sustentando como hiptese que o leitor no consegue chegar no que o autor do texto pretende expressar, este no seria seu objetivo, mas ele deve vivenciar o texto perceber os vrios sentidos que o texto possibilita devido aos fatores que influenciam a interpretao.

    Paul Ricoeur em uma importante entrevista concedida a Edmond Blattchen publicada sob o ttulo O nico e o Singular. Ao analisar um quadro de Rembrandt chamado Aristteles contemplado um busto de Homero afirma que Aristteles no contempla o busto de Homero, mas ele toca. Ou seja, est em contato com a Poesia (Ricoeur, 2002. P52)

    Podemos relacionar este ato do observador, no caso de Aristteles, de tocar o objeto com a diviso que Paul Ricoeur faz de trs mundos: um chamado mundo do leitor, outro chamado mundo do texto, e um terceiro, o mundo do autor. importante destacar que esta juno entre dois mundos no acontece somente na leitura do texto potico, mas na leitura de qualquer texto. Pretendemos discutir o ato da leitura em relao ao texto

    histrico. O ato da leitura modifica o sentido do texto histrico? Qual seriam as diferenas entre o ato de ler o texto histrico e o texto literrio? Qual seria exatamente a atividade do historiador?

    Para entendermos como estes problemas se configuram no pensamento de Paul Ricoeur, e de outros autores da hermenutica, devemos analisar primeiramente a distino

    * Graduado em filosofia pela Universidade Catlica de Gois. Atualmente cursa uma ps-graduao em

    Histria Cultural e um segundo curso superior na rea de letras.

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    entre mundo do texto e mundo do leitor. Quanto a esta distino e a relao dela com o texto histrico cabe ressaltar que existe uma completa dissimetria entre a realidade do passado e a realidade da fico. Porm, afirmar que determinado fato pode ser observado por testemunhas do passado no resolve nada. O problema da verdade dos fatos passados transferido do acontecimento relatado para a testemunha que o relata. fundamental tambm, perceber que entre o que Ricoeur chama de funo de representncia e presenciar o acontecimento existe uma relao de dvida, pois para o autor em questo, ele analisa os

    fatos de vrias formas. Portanto, essa representncia estaria em um lugar paralelo funo de fico.

    Aqui est situado exatamente o problema que pretendemos trabalhar. O filsofo francs afirma que:

    ...somente pela mediao da leitura que a obra literria obtm sua significncia completa, que estaria para a fico assim como a representncia est para a histria. (Ricoeur, 1997. P.275).

    Dessa maneira, essa juno entre dois mundos que acontece na leitura tambm implica uma experincia temporal fictcia. A obra literria se transcende na direo de um

    mundo. Portanto, o mundo do texto assinala a abertura para o que est fora dele, para o outro.

    Este um dos pontos fundamentais do pensamento hermenutico. A hermenutica necessita de um outro, um leitor do texto. somente com a leitura a significao do texto est completa. Devemos ressaltar que durante o ato da leitura descobrir e inventar so indiscenveis. A funo de referncia no funciona mais, muito menos a redescrio. Em relao suspenso da referncia, ela ainda mais evidente em relao ao texto literrio. O mundo ao texto se configura ento como uma transcendncia

    na imanncia. Pois enquanto seu estatuto ontolgico permanece em suspenso, o dinamismo da configurao do texto encerra seu percurso. Para compreendermos esta discusso sobre a

    relao entre o leitor e o texto devemos ainda perceber a definio de Ricoeur para a dualidade entre sentido e referncia. E em segundo lugar preciso entender como ocorre a suspenso da referncia no processo da leitura. E sua grande obra a metfora viva que a

    questo da referncia pode ser colocada em dois nveis: o da semntica e o da

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    hermenutica. Enquanto postulado da semntica o conceito de referncia sustenta adquirida a distino entre semitica e semntica. Essa distino destaca o carter sinttico da predicao opondo-a a outras operaes mais simples como os jogos de difereno e de oposio entre significantes e significados. O sentido o que diz a proposio, a referncia ou denotao sobre o que o sentido dito (Ricoeur, 2000. P.333).

    A partir desta distino Ricoeur destaca que:

    O texto uma unidade complexa de discurso cujos caracteres no se reduzem aos da unidade do discurso ou frase. Por texto no entendo somente nem principalmente a escritura, embora a escritura ponha por si mesma problemas originais que interessam diretamente ao destino da referncia; mas entendo prioritariamente a produo do discurso como obra. Com a obra, como a palavra o indica novas categorias entram no campo do discurso, essencialmente categorias prticas, categorias da produo e do trabalho. Antes de tudo, o discurso a sede de um trabalho de composio, ou de disposio para retomar a palavra da antiga retrica - o que faz de um poema ou de um romance uma totalidade irredutvel a uma simples soma de frases (Ricoeur, 2000, p.336).

    Aqui notamos claramente o problema que queremos tratar. Neste trecho, Paul

    Ricoeur deixa evidente um distanciamento entre sua hermenutica e o estruturalismo. Pois ele aponta o texto como uma unidade complexa de discurso, ou seja, ele deve ser compreendido em seu todo, no pode ser dividido em outras pequenas estruturas. A simples soma de outras estruturas menores como as frases no resulta no sentido de todo o texto. O mais importante que o leitor no se distancia do texto no processo da leitura. Para compreendermos esta relao entre o leitor e o texto, analisaremos primeiro um comentrio feito por Rudiger Safranski (SAFRANSKI2005,p153) sobre a vivncia de Heidegger. O jovem Heideger afirmava que na vivncia no existe nenhum contexto fundador, na vivncia de algo do mundo algo em torno se apresenta ao observador, e nesse mundo em torno no esto as coisas com um carter significativo determinado. O significativo

    primrio, sem nenhum desvio de pensamento sobre o apreender a coisa. Pensamos que existiria um perceptor que encontra o objeto e percebe aos poucos suas caractersticas. Heidegger chama a ateno para o fato de que as coisas no se apresentam assim a ns. O

    conceito de vivncia primordial designa a percepo como ela se realizaria, o observador

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    vivencia o significado das coisas, suas funes, localizaes no espao, sua iluminao, as pequenas histrias que entram nela. O objeto reuniria todo um mundo espacial e temporal.

    Gadamer amadurece o conceito de vivncia dentro de seu pensamento hermenutico partindo do pensamento de Dilthey. O conceito de Dilthey, segundo Gadamer (GADAMER1997, pag110.) contm dois momentos, o pantesta e o positivista. E se ocupa assim uma posio intermediria entre a especulao e o empirismo. O conceito de vivncia est ligado as configuraes de sentido que vem ao encontro das cincias do esprito e so

    reconduzidas a unidades ltimas do dado na conscincia. A vivncia est ligada uma recordao do contedo semntico de uma experincia que reveste-se de carter. Vivncia significaria assim algo inesquecvel e insubstituvel, inesgotvel no que tange a compreenso de seu significado. Sendo assim, cada vivncia trazida para fora da continuidade da vida. A experincia esttica, incluindo tambm a leitura, alm de uma espcie de vivncia tambm representa a forma de ser da prpria vivncia. Gadamer considera que a obra de arte mundo para si e ao vivenciarmos este mundo nos distanciamos de todas as ligaes com a realidade. Aqui a arte se faz presente de tal

    maneira que sua riqueza de significados representa todo sentido da vida. Podemos aqui propor uma aproximao entre Gadamer e Paul Ricoeur: a obra

    de arte um mundo para si, e durante a leitura o mundo fsico e o mundo fictcio se encontram, o leitor vivencia o mundo do texto. E aqui reside nosso problema. Como o ato da leitura modifica o sentido do texto histrico? Qual seriam as diferenas entre o ato de ler o texto histrico e o texto literrio? Qual seria exatamente a atividade do historiador? O leitor chegaria ao significado intencionado pelo autor?

    Analisar a relao entre o ato de ler e a histria de fundamental importncia. Poderamos at mesmo dizer que no existe histria sem processo interpretativo. O trabalho do historiador firma-se principalmente em ler documentos deixados pela humanidade, e a

    partir deles tentar narrar a um outro leitor os fatos acontecidos no passado. Paul Ricoeur em seu importante texto intitulado Histria, Memria e Esquecimento diferencia histria e

    memria afirmando que a histria a narrativa que se preocupa com aes importantes, enquanto que a memria trata somente de coisas cotidianas.

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    Para entendermos esta definio Ricoeuriana devemos primeiro nos atentar para a distino proposta por esse autor entre o conceitos de ao e de acontecimento, para isto analisemos o seguinte trecho:

    Consideramos, efetivamente, as trs proposies seguintes: Os msculos do brao contraem-se; ele levanta o brao; ao levantar o brao, fez sinal de que vai virar. S o primeiro enunciado se refere a um acontecimento que ocorre na realidade; os outros dois signam uma ao, um nomeando-a, o outro explicando sua inteno;... (Ricoeur, 2000. p.31).

    Portanto, poderamos diferenciar ao e acontecimento pelo fato de a ao encontrar-se sempre regida para uma inteno. Mas o que esta inteno? Paul Ricoeur destaca o pensamento de E. Anscombe que considera trs usos da palavra inteno: Tenho a inteno de fazer tal e tal coisa; fiz isto intencionalmente; esta coisa foi feita com tal e tal inteno. (Anscombe Apud . Ricoeur, 2000, p.41). O primeiro destes usos abandonado por razes no muito convincentes; ele convida a buscar o sentido da palavra inteno em

    frases que no remetem a ao. Dessa maneira nos remete imediatamente para um vivido psicolgico correspondente. J o segundo uso abandonado porque situa a inteno com

    um epteto da ao. Esta inteno se nomearia primeiro, depois se qualificaria como intencional. Ricoeur conclui ento que o terceiro uso da palavra inteno o mais significativo devido a sua diversidade de relaes com uma diversidade de disciplinas.

    Os conceitos de ao e inteno esto ligados histria de duas formas: uma primeira ligado ao processo de elaborao do texto histrico e uma segunda ligada a leitura do mesmo. Tentaremos estabelecer aqui estas duas relaes. Ivanho Albuquerque Leal em seu importante texto Historia e ao na Teoria da narrativa de Paul Ricoeur ressalta a narrao histrica e ficcional para narrar a temporalidade humana. O tempo humano abre a

    possibilidade de ser recontando, podemos assim consider-lo como produto do narrativo. Antes de seguirmos adiante fundamental ressaltar no que Ricoeur ao utilizar a palavra

    histria refere-se a histria cincia; em outras palavras, Ricoeur refere-se a elaborao da histria, ao contato do historiador com seu material de estudos.

    Devemos destacar ainda que a narrativa remete ao ato de recontar porm, como

    j apresentamos anteriormente que o filsofo francs tem uma viso ontolgica da histria.

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    A linguagem possui esse carter ontolgico e a histria se expressa atravs da linguagem. No incio de seu importante livro chamado Histria e Verdade, Ricoeur cita a afirmao de March Bloch que A histria histria dos homens. importante ressaltar que Ricoeur atribui um significado a esta afirmao que est para alm do proposto por March Bloch. O historiador da Escola dos Annales refere-se ao fato de que os homens escrevem a prpria

    histria sobre as aes de outros que a constituem; j o filsofo francs destacaria ainda que a histria tambm lida por homens e estes ltimos interpretam o texto histrico. Cabe

    ainda mostrar que o historiador escolhe de maneira subjetiva quais so as aes importantes para serem narrados e o leitor identifica-se com esta subjetividade do autor presente no texto. O leitor vivencia o texto histrico. Dessa maneira, praticamente impossvel para

    Ricoeur que ele chegue no mesmo significado que o autor tem inteno de expressar. Aqui est a primeira relao que podemos estabelecer entre conceitos de ao,

    inteno e o texto histrico. O autor escreve o texto com a inteno de expressar um sentido. Para compreendermos esta relao entre o conceito de inteno e o texto, nos voltaremos primeiro para a teoria literria e posteriormente para o texto histrico. Antoine

    Compangnon (Compagnon,2001) em seu demnio da teoria faz um longo estudo sobre a intencionalidade.

    Primeiramente, ele destaca que a inteno pode ser entendida como uma hiptese de coerncia do texto. Sem esta inteno o paralelismo se tornaria algo extremamente frgil, uma coincidncia aleatria. O paralelismo entre duas passagens s pode ser pertinente se elas remeterem a uma inteno coerente. Aqui estaria o que Compagnon considera um pressuposto fundamental dos estudos literrios. A inteno ou a coerncia a contradio caracterizam o texto produzido pelo homem. Deve-se ressaltar que nesta anlise que Compagnon faz do pensamento de Chlaudenius, a hiptese da inteno ou coerncia no excluem as excees e as singularidades.

    Partindo desta posio de Chlaudenius, Compagnon analisa dois argumentos no que diz respeito inteno. Estes argumentos fundamentam duas posies polmicas e

    extremas sobre a interpretao: a intencionalista e a antintencionalista. O primeiro destes argumentos diz que fundamental procurar no texto o que o autor quis dizer, este o nico critrio que faria a interpretao vlida. J o segundo argumento afirma que nunca

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    encontramos nada no texto alm do que ele nos diz, no importa a inteno do autor no existe nenhum critrio que torna a interpretao vlida.

    Poderamos dizer que os autores que estamos aqui analisando so de uma posio situada entre essas duas. Estas seriam teses complementares. Em resumo, estes autores argumentam contra a inteno do autor. Para eles, a inteno do autor no

    pertinente ou a obra sobrevive a inteno do autor. Pois indiscutvel que quando algum escreve alguma coisa ele o faz com a inteno de exprimir alguma coisa atravs das

    palavras mas a relao entre as palavras no exprime claramente o que o autor quis dizer. Para os filsofos aqui citados no somente difcil de reconstruir como ela no

    tem nenhuma pertinncia para a interpretao do texto, ela influencia a interpretao, mas indiferente para a compreenso do texto, ou o autor fracassa em realizar suas intenes ou o sentido de sua obra no coincide com elas. Porm no devemos negar a existncia do autor ela importante para a compreenso do texto. O que no podemos fazer substituir a interpretao do texto pela busca da inteno do autor.

    Um outro ponto importante no que tange inteno do autor que ela estaria

    ligada a projeto de reconstruo da filologia. Mas, como j foi afirmado a significao de uma obra no esgota e nem, equivalente a sua inteno. A obra tem sua prpria histria, e

    sua significao s se completa na leitura. Dessa maneira, podemos dizer que as obras de arte e os textos transcendem a inteno de seus autores querem dizer algo novo em cada poca, a significao de uma obra no pode ser determinada nem controlada pela inteno do autor.

    Para finalizarmos esta relao entre a inteno do autor e o texto devemos tambm apresentar como acontece. As aes e intenes dentre da narrativa. Um primeiro conceito que devemos entender para falarmos do conceito de ao dentre da narrativa o conceito de intriga e sua relao com a mmese.

    Ivanho Albuquerque Leal em seu texto Histria, Ao e Teoria da narratividade escreve:

    A sntese construda pela intriga responde a uma exigncia de inteligibilidade que organiza o episdico. A ao episdica aquela na qual os acontecimentos se seguem sem verossimilhana nem necessidade, um aps o outro, no um por causa do outro. A

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    seqncia episdica pode ser inverossmil. O encandeamento causal, ao contrrio, sempre verossmil. (Andrade, 2002, p.24).

    Nesta citao Ivanho nos mostra que a intriga no se limita em articular de modo concordante os elementos dispersos e heterogneos. O partidista Ricoeur destaca a intriga como um modelo concordante discordante. Portanto, aqui est um ponto fundamental que caracteriza a teoria ricoeuriana, ela une problemticas filosficas

    distantes. Se considerarmos que a temporalidade seja revivida num passado imediato ou distante ela repercutir sobre a estrutura do presente, permanecendo discordante. Em

    resumo, apesar dos elementos heterogneos da ao a tessitura da intriga dispem, ordena, organiza, arranja combinado fatores discordantes. Ela seria considerada uma funo de integrao e mediao sob trs aspectos. Primeiramente ela faz de uma sucesso de aes narradas uma configurao de uma multiplicidade de eventos ou incidentes a intriga extrai uma histria, e esta ltima organizada numa totalidade inteligvel.

    Devemos aqui tambm ressaltar que Paul Ricoeur fala dos conceitos de ao e inteno dentro da intriga. Pois toda narrao narrao de uma ao, sendo assim, a narrao narra aes dos protagonistas. No caso da histria, ela uma narrao de fatos que

    esto presentes na memria do passado. Quanto ao tempo, a intriga mediatiza os caracteres temporais ela articula a

    representao do tempo em uma seqncia cronolgica ou em um encandeamento figurativo. E a partir da concluso que o conjunto da histria se faz inteligvel. A intriga integrar mimeticamente as dimenses temporais, cronolgicas e configurantes da ao humana. O conhecimento histrico est profundamente ligado as operaes caractersticas da intriga. Quando o historiador relata um fato ele o faz atravs de textos narrativos. E ainda mais importante que para seguir e interpretar um texto histrico requer as atividades cognitivas relacionadas compreenso narrativa. Aqui est mais uma vez a importncia de nosso problema. Se histria narrativa e deve ser interpretada, poderamos falar de uma

    verdade histrica dos fatos? Paul Ricoeur diria que no, pois, devido aos vrios fatores que esto presentes e o ato da leitura no podemos falar de uma verdade histrica, mas de

    verdades histricas. Sendo assim, torna-se fundamental estudar e analisar todos os fatores que influenciam o ato da leitura.

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    Um destes fatores a ideologia. Para Paul Ricoeur o conceito de Marx de ideologia como distorso define a ideologia em um nvel superficial, o problema da ideologia para Paul Ricoeur no uma escolha entre falso e verdadeiro, mas uma deliberao sobre a relao entre representao e prxis. O conceito de ideologia determina-se basicamente por ser representao (RICOEUR1991). A distoro seria um dos nveis dentro da representao. Essa representao para Ricoeur seria to bsica que chegaria a ser uma dimenso constitutiva no domnio da prxis. Enquanto que o marxismo

    acredita que as idias dominantes so as da classe dominante, Ricoeur afirma que este domnio no pode ser entendido como uma relao causal das foras econmicas. Mas como uma relao de motivao. Desse modo, podemos dizer que para Ricoeur a ideologia atinge um segundo nvel, passando a funcionar como legitimao. A legitimidade seria inextricvel da vida social, pois no existe nenhum sistema forte o suficiente para funcionar somente atravs de sua prpria fora.

    Sendo assim, conclumos que toda ordem social procura justificar as aes daqueles que governam e esta justificativa que legitima o poder do governante. Temos ento dois importantes fatores ligados ideologia ricoeuriana: a pretenso de legitimidade da autoridade do governante, e a crena na legitimidade da ordem por parte dos sditos. A

    teoria de Ricoeur s est completa quando ele ainda fala de um terceiro nvel de ideologia, que aponta esta como integrao. A ideologia integradora, portanto, preserva a identidade social. Seria somente na base desta funo integradora que a ideologia torna-se importante no processo interpretativo. Sendo assim, podemos dizer que no pensamento de Paul Ricoeur a ideologia deixa de ser vista como negativo, no sentido de distoro social e passa a ser positiva como integrao e representao social. Nesse sentido, da ideologia como fator de integrao social, sendo a ideologia integrao e representao social, ela exerce um papel fundamental no processo interpretativo. Em primeiro lugar, se a ideologia

    representao social da qual todos os membros de uma sociedade comungam, o autor escreve o texto influenciado pela ideologia. Outro ponto importante de ser ressaltado

    quanto a este conceito que a ideologia est completamente ligada ao mundo do leitor. Para compreendermos esta ligao observemos a seguinte metfora: Seus olhos so meu sol.

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    Nesta metfora, primeiramente podemos destacar uma possvel inteno do autor de dizer que os olhos de uma determinada pessoa so bonitos. Porm, dente desta metfora a palavra sol tomada com um sentido que no seu prprio, aqui situamos a relao entre o processo interpretativo do texto e a ideologia. Devemos ainda destacar que esta metfora tambm um ato locutrio, pois o falante da frase tambm realiza o ato de

    elogiar. Retornando a ideologia, notamos uma ntima relao entre ela e o sentido do texto, por exemplo, se um determinado leitor possui a ideologia de que o sol algo ruim no

    estamos mais diante de um elogio, mas de uma ofensa. Em ltimo lugar temos ainda um outro fator que influencia a interpretao do

    texto: a subjetividade. Pois um autor de um determinado texto ele o escreve de maneira que tenta convencer o leitor do sentido que pretende expressar. Em segundo lugar o leitor l o texto a partir de sua subjetividade. O historiador julga o grau de importncia dos fatos a serem narrados.

    Deve-se destacar assim, que esperamos do autor de um texto uma certa subjetividade que seja apropriada a seu texto, e no caso do historiador uma subjetividade que convm a histria. Sendo assim, trata-se de uma subjetividade exigida pelo texto, falando-se em texto histrico ela precisa ser adequada a objetividade do texto histrico. Cabe ainda mencionar que Ricoeur espera uma subjetividade que esperamos da leitura e da meditao das obras do historiador o que diz respeito ao leitor que se completa no texto e que tambm completa o sentido do texto. A partir disto analisemos a seguinte citao de Abraho Andrade:

    A interpretao deve ser, na leitura do texto, o processo, sim, dialtico de ida e volta entre uma e outra dessas operaes; A dialtica implicada na leitura testemunha a originalidade da relao escrever e ler e sua irredutibilidade situao de dilogo baseada entre falar e escutar. (Andrade, 2000, p.16).

    Portanto, nesta citao notamos que o processo da leitura dialtico e conflituoso, pois ele est relacionado a vrias relaes complexas como escrever e ler, falar

    e escutar. Sendo assim, o problema sobre o ato de ler e a multiplicidade de sentidos do texto histrico completamente legtimo. Torna-se essencial estabelecer a relao entre a

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    leitura e o que o texto histrico pretende expressar. Em segundo lugar tambm necessrio identificar e discutir sobre os vrios fatores que influenciam a interpretao do texto.

    Em ltimo lugar tambm importante estabelecer a posio certa do trabalho objetivo do historiador dentro do texto histrico. Pois, Paul Ricoeur contundente ao falar deste fator. Ele afirma que ns sempre esperamos da histria alguma objetividade, maneira pela qual a histria nasce objetiva, precede da retificao e arrumao oficial e pragmtica feita pelas sociedades em relao a seu passado. Esta subjetividade do autor presente na composio do texto histrico fundamental. Pois atravs dela o leitor do texto histrico se identifica no texto e se posiciona em relao ao fato histrico relatado. Porm tambm fundamental destacar que no pela presena desta subjetividade que a histria deixa de ser cientfica. O historiador tenta reviver com os homens do passado com sua experincia humana prpria. Ele passa assim, a fazer parte da histria na somente no sentido de que o passado passado de seu presente, mas no sentido de que os homens do passado pertencem a mesma humanidade. A histria seria assim, a maneirra pela qual os homens do presente repetem a humanidade dos homens do passado. Portanto, a histria

    reflete a subjetividade do historiador. A histria faz o historiador tanto quanto o historiador faz a histria (RICOEUR,1968.P34).

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