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Paula Campos Pimenta Velloso Liberalismo Ambivalente na Subcomissão do Itamaraty: Uma chance perdida para o controle da modernização conservadora Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de doutor pelo Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Orientador: Luiz Jorge Werneck Vianna Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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Paula Campos Pimenta Velloso

Liberalismo Ambivalente na Subcomissão do Itamaraty: Uma chance perdida para o controle da modernização conservadora

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Orientador: Luiz Jorge Werneck Vianna

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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Paula Campos Pimenta Velloso

Liberalismo Ambivalente na Subcomissão do Itamaraty: Uma chance perdida para o controle da modernização conservadora

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Luiz Jorge Werneck Vianna Orientador

Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio

Prof. Gisele Silva Araújo UNIRIO

Prof. José Almino Alencar e Silva Neto Casa de Rui Barbosa

Profa. Maria Alice Rezende de Carvalho Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio

Prof. Marcelo Tadeu Baumann Burgos Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio

Profa. Mônica Herz Coordenadora Setorial do Centro

de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 02 de fevereiro de 2017

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução

total ou parcial do trabalho sem autorização da

universidade, da autora e do orientador.

Paula Campos Pimenta Velloso

Bacharel em Direito pelo Ibmec-RJ (2007), mestre em

Ciência Política pelo IESP-UERJ (2010), mestre em

Direito Constitucional pela UFF (2014). Professora

Substituta no Instituto de Segurança Pública da UFF.

Professora Coordenadora no curso de Tecnólogo em

Segurança Pública do Consórcio CEDERJ. Áreas de

interesse: teoria política moderna, pensamentos político

brasileiro, teoria do direito e teoria constitucional.

Ficha Catalográfica

CDD: 300

Velloso, Paula Campos Pimenta Liberalismo ambivalente na subcomissão do Itamaraty : uma chance perdida para o controle da modernização conservadora / Paula Campos Pimenta Velloso ; orientador: Luiz Jorge Werneck Vianna. – 2017. 288 f. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, 2017. Inclui bibliografia 1. Ciências Sociais – Teses. 2. Liberalismo. 3. Representação profissional. 4. Subcomissão do Itamaraty. I. Vianna, Luiz Jorge Werneck. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Ciências Sociais. III. Título.

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Agradecimentos

Agradeço a Luiz Jorge Werneck Vianna, pela gentileza de aceitar me orientar em

mais este trabalho e pela generosidade com que conduziu nosso convívio.

Agradeço aos membros da banca examinadora, Maria Alice Rezende de Carvalho,

José Almino de Alencar, Gisele Araújo e Marcelo Burgos.

Agradeço muito especialmente aos professores: Delma Pessanha Neves, Jose

Almino de Alencar, Gisele Araújo, Renato Lessa e Marcelo Jasmin.

Finalmente, agradeço aqueles que influenciam e tornam possível a minha

formação: Ana Cardenas, Mr. Morrissey, Domar Campos, Maribel de Cardenas,

Pilar Velloso, Marcello Velloso, Rodolfo Velloso, Ana Roxo, Lúcia Del Picchia,

André Abi Ramia e Cesar Kiraly..

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Resumo

Velloso, Paula Campos Pimenta; Vianna, Luiz Jorge Werneck.

Liberalismo ambivalente na subcomissão do Itamaraty: uma chance

perdida para o controle da modernização conservadora. Rio de

Janeiro, 2017. 288p. Tese de Doutorado - Departamento de Ciências

Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

No presente trabalho, procurou-se problematizar as teses que remontam os

males da história política brasileira à incompletude ou ao falseamento da

experiência liberal do país. A elas, opôs-se a leitura de que o liberalismo, seja

enquanto pretensão teórica geral, seja enquanto prática, já nasce marcado por

ambivalências. Sugeriu-se que tais ambivalências o impedem de servir de metro

para o sucesso ou o fracasso das experiências particulares. Verificou-se que as

primeiras décadas do século XX vivenciaram um movimento de atualização das

pretensões liberais face às necessidades impostas pelas consequências negativas

do capitalismo e pelo surgimentos de novos atores. Viu-se que o liberalismo

político produziu uma forma nova de representação, vinculada às profissões e

orquestrada pelo Estado. À tal orientação de adequação às circunstâncias,

procurou-se comparar a tradição conservadora do percurso brasileiro à

modernidade. Hipotetizou-se que, na Subcomissão do Itamaraty, pensou-se a uma

alternativa à modernização conservadora, freando a vontade de corporativismo e,

ao mesmo tempo, inscrevendo o Brasil no movimento maior de atualização do

liberalismo através da representação profissional.

Palavras-chave

Liberalismo; Representação Profissional; Subcomissão do Itamaraty.

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Abstract

Velloso, Paula Campos Pimenta; Vianna, Luiz Jorge Werneck (Advisor).

Ambivalent Liberalism at the Itamaraty Subcomission: a lost chance

for the control over the conservative modernization. Rio de Janeiro,

2017. 288p. Tese de Doutorado - Departamento de Ciências Sociais,

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This paper investigates the constitutionalization, validity and factuality of

the rights of Quilombos in Brazil basis it on the ethical Habermas's speech. From

concrete cases it was tried to demonstrate the strength of the ethnicity in defining

the right of Quilombos, and how the legal and political institutions work in the

dynamics of conflict around these rights. It was sought to analyze the speech of

Parliamentary, Judicial, Prosecution, Market Agents, Bureaucracy Agents and the

Anthropological knowladge on the dynamics of the operation around the

application of ethnic and territorial rigths of the remaining rural black

communities of quilombos. From the sociological point of view the constitutional

control abstract and concrete and the legalization of ethnic relations in the specific

field of quilombos. It is also analyse specialized discourses in the field of Law,

Anthropology and Historiography around the article 68 of the Constitutional

Provisions - ADCT of the Constitutional Charter of 1988.

Keywords

Liberalism; Professional Representation; Itamaraty Subcomission.

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Résumé

Velloso, Paula Campos Pimenta; Vianna, Luiz Jorge Werneck (Advisor).

Libéralisme Ambivalent Dans La Souscomission De Itamaraty: une

chance manquer de contrôle de la modernisation conservateur. Rio de

Janeiro, 2017. 288p. Tese de Doutorado - Departamento de Ciências

Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Dans cette étude, nous avons essayé de discuter les thèses remontant aux

maux de l'histoire politique brésilienne à l'incomplétude de l'expérience de pays

libéral. Pour eux, opposé à la lecture que le libéralisme, soit comme une

revendication théorique générale, que ce soit en tant que pratique, est né marquée

par l'ambivalence. Il a été suggéré que ces ambivalences empêchent de terre pour

servir le succès ou l'échec des expériences particulières. Il a été constaté que les

premières décennies du XXe siècle ont connu une mise à jour du mouvement des

prétentions libérales aux besoins imposés par les conséquences négatives du

capitalisme et les apparitions de nouveaux acteurs. On a vu que le libéralisme

politique a produit une nouvelle forme de représentation, liée aux professions et

orchestrée par l'Etat. A cette orientation de l'adaptation aux circonstances, nous

avons essayé de comparer la tradition conservatrice de la route du Brésil à la

modernité. il a été émis l'hypothèse que le Sous-comité du ministère des Affaires

étrangères, a imaginé des formes qui contenaient la modernisation conservatrice,

la volonté de freinage des corporatismes et en même temps, entrer au Brésil dans

la plus grande mise à jour du mouvement du libéralisme par la représentation

professionnelle.

Mots-clés

Libéralisme; Représentation Professionnelle; Sous-comité du Itamaraty.

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Sumário

Introdução 9 Parte I – Liberalismo Ambivalente e Representação 33 Capítulo 1. Uma leitura do liberalismo pela chave da ambivalência 33

1.1. Ambiguidade liberal e liberalismo como teoria social 33 1.2. Interpretações da ambivalência da experiência liberal brasileira à luz da controvérsia liberalismo vs. estatismo 44

Capítulo 2. Matriz liberal das concepções tradicionais da representação 85 Capítulo 3. Sobre a formulação liberal da representação profissional e sua distinção em face do corporativismo 108 Parte II – Imposições Contextuais ao Liberalismo e À Representação Política Tradicional nas Primeiras Décadas do Século XX no Brasil 142 Capítulo 4. Desafios impostos ao liberalismo no século XX 143 Capítulo 5. Novos atores e imposição de uma reformulação liberal para a representação 189 Capítulo 6. Neutralização dos novos atores através da representação política tradicional no Brasil das primeiras décadas do século XX 208 Parte III – Sobre o que não fez a Subcomissão do Itamaraty 223 Capítulo 7. Da recepção da formulação da representação profissional em solo brasileiro 224 Capítulo 8. Da natureza autoritária de Comissões de Anteprojeto e a inversão liberal da Subcomissão do Itamaraty 245 Capítulo 9. Sobre os atores que derrotaram a proposta de representação profissional na Subcomissão do Itamaraty 260 Conclusão 276 Referências Bibliográficas 279

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Introdução

A década de 1930 é de interesse em razão de uma ambivalência que

produziu e que não deixou mais a institucionalidade brasileira. Em 1934, foi

impressa na vida pública do país uma marca que persiste até hoje: o convívio de

instituições corporativas com uma ordem jurídico-política liberal. A Ordem dos

Advogados do Brasil é uma instituição corporativa cuja presença é cada vez mais

potente. O mesmo pode ser afirmado sobre o elemento corporativo na organização

contemporânea dos sindicatos, identificável no “Sistema S”. Assim, o

corporativismo é uma mudança institucional que, nascida juridicamente com a

Constituição de 1934, passou pela de 1937, que o reforçou, pela de 1946 e foi

aprofundado pelo regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1964.

Os anos que antecederam a fixação constitucional de tal ambivalência,

entre 1930 e 1934, foram marcados pelo debate acerca da representação. Durante

o período, falava-se da necessidade de atualizar sua forma liberal tradicional, que

era excludente e fragilizava o liberalismo político em face das ideologias que

podiam substituí-lo – notadamente, o corporativismo e o comunismo. Surge nesse

momento a proposta da representação profissional como possibilidade de criar

uma forma composta de representação política, preservando o liberalismo

político. No Brasil, a figura da representação profissional surge no debate público

pela primeira quando das reuniões da Subcomissão do Itamaraty. Não obstante, a

síntese da representação profissional é derrotada e, quando promulgada, a

Constituição de 1934 fixa institucionalmente o convívio ambivalente entre

instituições liberais (representação política) e a antiliberais (corporativismo).

Com o presente trabalho, pretende-se explorar a noção de que a

ambivalência pode ser uma característica do liberalismo, na política ou na

economia, como teoria ou enquanto prática. Tal noção poderia ser esboçada pela

ideia de que, para sobreviver ao tempo, o liberalismo sempre transigiu com

formas rivais da liberdade pura que seus ideólogos tantas vezes proclamaram

como seu princípio máximo. Por este motivo, a representação política, nascida de

uma concepção de indivíduo livre de matriz liberal, pôde se contemporizar

teoricamente com a representação profissional, que supunha unidades coletivas de

interesses. Da mesma forma, o fato mesmo de o liberalismo dar-se ao convívio

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com princípios que contrariam a pureza que reclama para si talvez possa explicar

o convívio ambivalente e longevo de instituições antagônicas, como o que ocorreu

no Brasil a partir de 1934.

Na década de 1930, tem-se um momento cuja expectativa era de que o

preceito liberal-democrático da soberania popular – e, portanto, da possibilidade

de chegada da sociedade a ocupar as instituições do Estado, atuando ela, e não ele,

no processo rumo à modernidade – se realizasse, finalmente, no Brasil. Tal

princípio foi fundamentalmente caracterizado no âmbito da teoria liberal, seja ela

de matriz inglesa ou francesa, através da solução da representação. Em face da

crise do Estado Liberal que caracteriza o período - cuja missão era garantir a

liberdade de empreender, mas não a de participar -, privilegia-se o período na

medida em que se esperaria da nova Carta, a ser promulgada em 1934, uma nova

concepção de Estado e de representação. Não obstante, o liberalismo consagrado

em 1934 não cumpriu a promessa da Aliança Liberal que conduziu os eventos

que, através da ruptura institucional, se convencionou reunir sob a rubrica da

Revolução de 1930.

Não se deu a devida passagem aos interesses emergentes nos principais

estados da Federação que se encontravam “abafados” pela política dos

Governadores que caracterizara a estabilização política da República Velha. E,

através do corporativismo, tampouco se deu passagem aos movimentos

progressivamente organizados dos trabalhadores. Atualizou-se, em alguma

medida, a centralização – qual seria agravada pelo Golpe do Estado Novo. E

neutralizou-se a espontaneidade que potencialmente produziria a radicalização dos

conflitos no mundo produtivo através da estatização de tais dissensos, operadas

por instituições criadas então, como o Ministério e a Justiça do Trabalho.

A razão da permanência institucional do corporativismo pode ser lida à luz

de um debate clássico, no qual se opõem concepções acerca do papel do Estado.

De um lado, ele é lido como uma barreira salutar à apropriação das instituições

públicas para fins privados e, por isso, seria a carranca da modernização

brasileira. De outro, é tido como promotor de múltiplos entraves ao liberalismo

desde a fundação do Estado Nacional e, portanto, o maior responsável pelo atraso

do país. Entendido o corporativismo como uma forma da representação de

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interesses controlada pelo Estado, sua permanência se deveria, de um lado, a uma

necessidade societal à qual o Estado continua precisando responder e, de outro,

seria um resultado negativo dos obstáculos à modernidade que o Estado jamais

deixou de impor ao desenvolvimento espontâneo da sociedade brasileira1.

Tal polarização se atualiza nas posições acerca da natureza da experiência

liberal brasileira. De um lado, o liberalismo é sentido como débil e se presta a ser

instrumento para a opacidade de uma cultura particularista de apropriação de

instituições públicas para fins privados. De outro, ele é persistente, mas apenas

dissimula uma cultura política autoritária. Caso se opte pela veracidade da

primeira tese, poder-se-ia supor que o corporativismo seria uma alternativa à

representação política tal como concebida em moldes liberais tradicionais, o que

se deveria à constatação de que a necessidade de condução da vida política pelo

Estado não teria cessado de existir. Caso se opte pela segunda, poder-se-ia ler a

persistência da presença de instituições corporativas no Brasil, mesmo após a

experiência da redemocratização, inaugurada nos anos 1980, como o que impediu

que a representação política tradicional se aperfeiçoasse, sendo o corporativismo,

portanto, um resultado do modelo sem ruptura de modernização conservadora que

marca a história política pátria, tendo resistido à Carta de 1988 e a 13 anos de

governos populares.

O tema da modernização conservadora se relaciona diretamente com o

argumento que se pretende cercar no presente trabalho. Ele será interpelado a

partir da discussão em chave “liberal” acerca do papel do Estado na chegada do

Brasil à modernidade, a qual encontra paradigmática representação na obra de

Raymundo Faoro e na permanente interlocução que estabelece com ele a

produção intelectual de Luiz Jorge Werneck Vianna. Ambos destacam a década

de 1930 como um momento chave para entender o tema da modernização no

Brasil. Em Os Donos do Poder2, de 1958, Faoro se dedica a um recorte muito

mais largo de tempo, mas seu diagnóstico de que os descaminhos da política e das

1

Importa aos objetivos da presente investigação operar a distinção entre corporativismo e

representação profissional, entendida aqui como aquela alternativa de liberalismo atualizado

pensada para sanear os problemas que o contexto das primeiras décadas do século XX impunham

à teoria liberal clássica. O que se fará oportunamente. 2 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo:

Editora Globo, 2001.

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instituições remontam a uma espécie de mau vezo estatista da prática brasileira

pertinentes tem ocorrência privilegiada em 1930. Sobre ela, Werneck Vianna se

debruçou detidamente, em Liberalismo e Sindicato, de 1977.

Ambos os autores reconhecem esse diagnósticos. Para Faoro, a “farsa

republicana, habituada a dispensar o povo de suas decisões políticas”3

da

República Velha se atualizou na Nova República, em 1934. Por este motivo,

parece jamais ter sido liberalismo de verdade uma vez que a sociedade nunca

esteve “entregue ao seu livre jogo, para que da liberdade se organizasse a estrutura

econômica e política”4. A verdade do liberalismo, o “jogo livre”, teria sido

adulterada tanto durante a República quanto na sua queda, que substituíra o

individualismo que deveria advir da ruptura institucional por uma forma

atualizada de comando tutelado”. No momento de refundação da República, isto

é, entre 1930 e 1934, mais uma vez o liberalismo receberia o golpe de um “Estado

interventor, dirigente”, quando fez conviver, através de um compromisso

ambivalente, instituições representativas liberais e corporativismo. Para Faoro, a

Constituição de 1934 seria mais um episódio de captura da tradição estatista da

política brasileira, reiteradamente a distanciar o Brasil do moderno através da

frequente atualização de gestos modernizadores.

Não obstante, o Estado Social que então começava a se esboçar pode ser

lido como uma resposta do liberalismo mesmo em face da progressiva

organização dos trabalhadores tão próxima dos ecos da Revolução de 1917 e do

temor da igualmente progressiva organização de movimentos fascistas, ambos

inimigos e substitutos do liberalismo. Além disso, os compromissos realizados

pela ambivalência da Constituição de 1934 são todos operados por atores sociais

competentes e, frequentemente, por agências historicamente incumbidas de

avançar com o projeto liberal, como o empresariado paulista.

A interpretação de Werneck Vianna lança luz precisamente sobre esse

aspecto, a saber, o da adesão de atores dos quais seria de se esperar protagonizar

resistência ao estatismo denunciado por Faoro. Em mais de uma ocasião foi tal

3 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. rev.,

acrescida de índice remissivo. São Paulo: Editora Globo, 2001. p. 783. 4 Idem.

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operação que caracterizou o comportamento dos liberais. Problematiza-se, assim,

a suposição de que que está nos estatismo conservador, não nos liberais, a razão

pela qual nem a sociedade consegue ocupar seus espaços, nem o país consegue

alçar o moderno. Nesse sentido, Werneck Vianna aponta que, no limiar da década

de 1930, apesar da dissidência aberta entre os protagonistas da arena política,

verifica-se por todo lado adesão aos postulados do liberalismo. Os eventos

transcorrem “como se cada classe, fração de classe ou camada disputasse sobre

qual a versão mais adequada para a radicalização da ordem liberal” 5

. Os

“empresários, as diferentes frações oligárquicas, exportadoras ou não, as camadas

médias urbanas e os rebeldes da juventude militar vêm abrigar-se sob a ampla

bandeira do ideário liberal”6. Entretanto, o projeto liberal dos diferentes grupos,

sobretudo dos empresários, dependia da conquista de posições de força a partir da

sociedade civil para que pudessem contestar a política do Estado. Para tanto,

estiveram “articulados aos agrários, ao amparo de instituições burguesas

edificadas por esses e de sua força político-social”7. Por esta razão, puderam

dispensar a orientação burguesa de extração revolucionária que romperia com a

tradição de tutela do Estado e entregaria a sociedade ao referido “livre jogo”.

Não se trata, entretanto, de culpabilizar os atores dos quais se poderia

esperar ocupar o lugar de liberais no processo de chegada do Brasil ao moderno e

de caracterizar seu comportamento como uma espécie de traição histórica. A

sociologia de Werneck Vianna remonta às condições sociais através das quais o

Brasil tinha possibilidades reais de alçar a modernidade, não para chegar a

conclusões apocalípticas e insolúveis tais como as que se pode deduzir do

argumento de Raymundo Faoro, mas para indicar uma especificidade do percurso

brasileiro e para, com Florestan Fernandes, indicar que é certa relação de

continuidade com o passado que nos moveu para frente.

Essas obras foram produzidas durante a ditadura civil-militar, momento

em que se assistiu ao fastígio da modernização conservadora, a qual passou a

protagonizar a agenda de pesquisa dos intelectuais no momento de

5 WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. Liberalismo e sindicato no Brasil. 2. ed. - Rio de Janeiro :

Paz e Terra, 1977. p. 87. 6 Idem.

7 Ibdem. p. 88

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institucionalização das ciências sociais no Brasil. Por este motivo, estão inscritas

no debate sobre as contradições do desenvolvimento do país sob o regime militar,

ao qual se a sociologia brasileira, nas décadas de 1960 e 1970, para compreender

as características da chamada “revolução burguesa brasileira”. Neste contexto,

diversos sociólogos brasileiros empreenderam análises macroestruturais para

compreender a natureza do processo de modernização conservador do país, com o

intuito de decifrar o caráter do capitalismo que então vigia sob o regime

autoritário. De maneira geral, estes estudos se configuraram como análises

históricas — ainda que com os olhos centrados na conjuntura política do presente

— que buscavam empreender um movimento comparativo entre os processos de

modernização de capitalismos retardatários — como aqueles vivenciados em

países como Brasil, Alemanha, a Itália do Risorgimento, Rússia e Japão - e

aqueles vivenciados nos capitalismos “avançados”, tendo como principais

modelos a Inglaterra e a França. A compreensão daRevolução de 1930 foi

tomada como tarefa central para a formulação de uma explicaçãosobre o Brasil

moderno e as particularidades da nossa modernização conservadora.

Foram muitos os trabalhos produzidos por sociólogos que desenvolveram

abordagens nesse sentido, entre os quais vale citar A Economia Brasileira. Crítica

à Razão Dualista (Francisco de Oliveira, 1972), São Paulo e o Estado Nacional,

de Simon Schwartzman (1975); Capitalismo e Tradicionalismo. Estudos sobre as

Contradições da Sociedade Agrária no Brasil, de José de Souza Martins (1975);

A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes (1975) e, finalmente,

Liberalismo e Sindicato no Brasil, de Luiz Werneck Vianna (1976). Não obstante

as diferenças existentes entre essas obras, elas compartilhavam a pretensão de

evidenciar o caráter conservador da revolução burguesa brasileira, que teria sido

operada mediante o estabelecimento de uma coalizão entre as elites modernas e

tradicionais. Dessa forma, a modernização do país não teria implicado no

desaparecimento das antigas elites agrárias, representando, pelo contrário, um

processo de renovação de sua participação no controle político do país. O

moderno, portanto, não vinha a partir da superação do atraso, mas era o próprio

atraso que impulsionava a modernização brasileira.

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A compreensão da revolução burguesa brasileira é, obviamente, o tema

por excelência do clássico A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan

Fernandes, publicado em 1975. Neste trabalho, Florestan reconstrói

historicamente a evolução da economia capitalista e o processo de formação de

classes no país, analisando, para tanto, um longo período, que se estende da

independência até os anos 1960, com o intuito de compreender a lenta e molecular

revolução burguesa brasileira, como uma “revolução encapuzada”. Florestan se

preocupa em analisar as relações de dependência estabelecidas entre as classes

burguesas de um país periférico, como o Brasil, e o processo de dominação

imperialista. Esta dependência se constituiu como elemento fundamental para a

manutenção de relações características do “antigo regime”, bem como para a

conservação da situação de país subdesenvolvido e socialmente desigual.

Respondendo e adaptando-se às mudanças impostas pelo capitalismo

internacional, combinando-se às formas estamentais, a burguesia brasileira,

convertida em “autocracia”, teria logrado sucesso em se constituir como principal

ator de reprodução do interesse econômico das grandes corporações,

transformando o Estado em um mecanismo por excelência para a reprodução de

seu poder autocrático.

Dedicada a compreender a natureza da modernização conservadora

brasileira, e exemplar da nova forma de compreensão da revolução burguesa no

país, Liberalismo e Sindicato no Brasil, de Luiz Werneck Vianna, publicada em

1976, é resultado de sua tese de doutoramento defendida na USP, em 1975. Este

livro pode ser compreendido como uma análise do processo de modernização

conservador brasileiro preocupada em olhar internamente para o país, de modo a

inquirir de que maneira foram conformadas historicamente as relações entre as

elites tradicionais e modernas. Assim como grande parte dos trabalhos que

buscaram investigar as características da revolução burguesa brasileira, em

Liberalismo e Sindicato, Werneck Vianna procurou decifrar o enigma da

Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, para compreender o processo de

modernização conservador do país. No livro, o autor retoma sem ingenuidade a

década de 1930 para, em pleno auge da ditadura militar nos anos 1970, marcada

pela opressão da estrutura burocrático-autoritária sobre o sindicalismo brasileiro

evidenciar as continuidades entre aqueles dois ciclos autoritários, bem como

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apontar para a possibilidade de se considerar o processo da revolução burguesa

brasileira não a partir da lógica da “ruptura”, mas dentro da perspectiva da

continuidade.

Werneck Vianna pensou a modernização conservadora como um longo

processo contínuo, que já seguia, há tempos, o seu curso. Buscou também

compreender as relações intrínsecas existentes entre o moderno e o atraso na

constituição do capitalismo brasileiro. A modernização capitalista teria se dado,

segundo Werneck Vianna, a partir de uma coalizão entre as classes e elites

dominantes modernas e tradicionais e a manutenção do compromisso com a velha

ordem social, o que não seria incompatível com o processo de aceleração da

acumulação capitalista. A Revolução de 30 não consistiria, por conseguinte, em

um corte dramático entre dois períodos qualitativamente distintos, mas em mais

um momento a normativo na contínua constituição da ordem burguesa no país,

assinalando, dessa vez, a passagem para a primazia dafração burguesa industrial.

Seria o elemento da continuidade, portanto, ainda que commudanças, e não o da

ruptura que teria conduzido a modernização brasileira e o processo de constituição

do modo de produção capitalista, com sua plena imposição na formação

econômico-social do país.

Para compreender este processo, Werneck Vianna mobilizou teoricamente

principalmente os estudos agrários de Lênin, reunidos em O Desenvolvimento do

Capitalismo na Rússia, no qual este autor aponta para a “via prussiana” como um

caso paradigmático de transição burguesa reacionária, em que as elites agrárias

tradicionais teriam se apropriado do Estado, liderando a transição ao moderno

através da preservação das formas autoritárias de controle social. Werneck

recebeu também grande influência de Gramsci, sobretudo de seus escritos sobre o

Risorgimento italiano. Além destes dois autores, Werneck estabeleceu amplo

diálogo com Barrington Moore Jr. e sua influente obra sobre as origens sociais da

ditadura e da democracia, visando compreender a natureza autoritária da

modernização capitalista brasileira. O aspecto central que Werneck Vianna

levanta para evidenciar o caráter conservador da nossa modernização capitalista, e

que perpassa toda sua obra, diz respeito à forma que assumiu o liberalismo no

Brasil. Ao contrário da percepção consagrada em Ao Vencedor as Batatas, de

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Roberto Schwarz, na qual o liberalismo é percebido como “uma ideia fora do

lugar”, sublinhando uma perversa e disfuncional distância entre o país real e o

país legal, Werneck seguiu a perspectiva já apontada por Florestan Fernandes em

A Revolução Burguesa no Brasil, demonstrando que o liberalismo que vicejou

entre nós não foi postiço. Pelo contrário, justamente a partir dele que teria nascido

o impulso para a modernidade e a transição para a revolução burguesa. Werneck

aponta para a mesma direção da obra de Florestan, evidenciando a importância do

liberalismo para a modernização brasileira, posto que o primeiro grande salto

fundamental para a evolução do capitalismo no Brasil teria sido antes de natureza

sociocultural do que econômica.

Conforme destaca Werneck Vianna, às vésperas da transição para a

modernização do país, o liberalismo encontrava-se impossibilitado de ampliar os

termos do pacto social. Neste momento, ele havia perdido o apoio dos

empresários, único suporte social que poderia impô-lo como visão de mundo. Sua

continuidade passa, a partir de então, a vincular-se com a persistência de um

sistema político excludente. Neste contexto marcado pela impossibilidade de sua

expansão e pela estreiteza do pacto em curso, emerge um tertius. As elites

agrárias não-exportadoras assumirão a liderança da contestação das camadas

urbanas, “trazendo dos seus domínios senhoriais um projeto de Estado

modernizante e autoritário”. O movimento de 1930 teria se constituído, por

conseguinte, em uma reordenação institucional-legal da dominação burguesa, que,

ao criar organizações corporativas, voltadas para a harmonização entre as classes,

“transformou-as em vigorosos instrumentos de acumulação industrial”.

Mobilizando farto material empírico, Werneck Vianna sublinha a fraqueza

constitutivado liberalismo brasileiro, incapaz de admitir a livre movimentação

das classes subalternas, ainda que exclusivamente no campo mercantil. A ordem

burguesa autoritária teria se constituído, a partir de 1930, mediante um processo

de afastamento entre o capitalismoe a nação por meio da fórmula corporativa

erigida por Vargas. Valendo-se da ideologiada colaboração entre classes, as

instituições corporativas visaram obter alguma solidarização entre o Estado e a

sociedade civil, pelo acoplamento da estrutura sindical ao Estado e pelos

benefícios sociais concedidos aos assalariados urbanos. O capitalismo teria se

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constituído no país recoberto pela norma, pelo direito e pela realização de fins

sociais. Sob a forma corporativa, o Estado particularista fez seu simulacro de

universalizaçãoatravés da “cidadania regulada”, para, agora sim fora do lugar,

mobilizar o vocabulário de Wanderley Guilherme dos Santos, tentando impor a

constituição de uma comunidade ideológica com base na colaboração entre as

classes e o objetivo de grandeza nacional.

Interessa destacar que diferentemente das “teorias populistas” que

colocavam peso excessivo na negatividade das relações heterônomas

estabelecidas entre Estado e sindicatos, Werneck Vianna apontava para seu papel

decisivo no processo de publicização das relações trabalhistas, antes pertencentes

à esfera privada, regulamentando, dessa maneira, áreas até então estranhas às

normas jurídicas. Dessa forma, ainda que reconheça seu caráter recessivo —

principalmente por representar a conformação de um processo de incorporação

social controlada, que interrompeu o movimento de constituição de uma

identidade autônoma das classes subalternas —, a publicização promovida pela

legislação varguista contribuiu decisivamente para conter a ação do mercado

sobre a força de trabalho, fazendo com que a comunicação entre capital e trabalho

passasse a se dar pela intermediação do direito, um meio público, e não pelos

recursos privados detidos por cada um. A ordenação corporativa teria se

apresentado, por conseguinte, como uma construção complexa, na qual teriam

sido combinados elementos destinados a exercera coerção — principalmente por

meio da busca do controle sobre os sindicatos — com elementos voltados para a

produção do consenso, sobretudo através de mecanismos direcionados proteção

social do trabalhador.

Dessa forma, o que se depreende a partir da análise da obra Liberalismo e

Sindicatono Brasil é que esse trabalho pode ser interpretado como exemplar de

preocupações que perpassavam a agenda sociológica dos anos 1970 e que diziam

respeito à investigação da natureza da revolução burguesa brasileira e à vivência

de um novo ciclo autoritário naquela conjuntura específica. Sua específica

relevância para o tema da presente tese repousa sobre a demonstração operada por

Werneck Vianna de que moderno e atraso, longe de se oporem, se imbricaram

fortemente ao longo da história brasileira, com o segundo polo conduzindo o

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primeiro. O autor evidencia, a partir de um olhar interno e do recorte específico da

revolução burguesa no país, o caráter conservador da modernização brasileira.

Em obra ulterior, em que trata do fenômeno da Judicialização da política8,

Werneck Vianna apontará como consequência da prática conciliatória entre

passado e presente a fixação de institucionalidades desconfiadas com a ortodoxia

liberal, mas que cujo intuito era o de viabilizar a chegada ao futuro. Ao aderir a

instituições pautadas pelo Constitucionalismo Comunitarista, a Carta de 1988

confirmou a tradição republicana brasileira, que, ainda nos anos 1930, recobria

duas dimensões fundamentais à modernidade, o mercado político e o mercado de

trabalho, com o direito, suas instituições e procedimentos, por meio da criação da

Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho. Não se trata de reafirmar a cultura

política autoritária a qual remonta o surgimentos dessas duas instituições,

exemplar na legislação sobre o mundo do trabalho que vinculava os sindicatos ao

Estado. Nisso, a Constituição de 1988 é claramente descontínua, mas em suas

inovações institucionais optará por inequívoca continuidade com ela.

Em primeiro lugar porque adotará instituições que claramente visam

responder o diagnóstico de sempre, de que num país desigual, sem história de

auto-organização e carente de virtudes cívicas, as instituições da representação

política liberal tradicional não conduziriam a sociedade aos ideais de justiça

social. Tal diagnóstico excede os limites da tradição republicana, remontando ao

momento de consolidação do Estado-nação, como na obra do Visconde de

Uruguai, que opunha o primado do público e do Direito Administrativo aos ideais

liberais de self-government para os fins de formação de uma cultura cívica no

Brasil. Em uma sociedade naturalmente desarticulada, o Estado deveria se investir

do papel de agente pedagógico na socialização das virtudes da cidadania, razões

que seriam reiteradas e aprofundadas na terceira década do século XX, por

Oliveira Vianna, ao justificar a legislação sindical e trabalhista que então tomava

forma.

8 WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. "O Terceiro Poder na Carta de 1988 e a tradição republicana:

mudança e conservação", in R. Oliven, M. Ridenti e G. M. Brandão (orgs.), A Constituição de

1988 na vida brasileira, São Paulo, Hucitec/Anpocs, 2008.

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Em 1988, a Constituição recusou o caminho de uma Carta limitada a

instituir procedimentos para a formação da vontade coletiva e as garantias da

autonomia aos indivíduos. Ela partiu de uma interpretação do Brasil, em função

da qual determina um programa substantivo a ser perseguido pela coletividade, tal

como nos incisos do Art. 3o do título que trata dos princípios fundamentais que

devem nortear os objetivos da república: construir uma sociedade justa e solidária,

garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e

reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem

preconceito de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A política se judicializou a fim de viabilizar o encontro da comunidade com os

seus propósitos declarados formalmente na Constituição.

A Constituição de 1988 visou ao futuro e se empenha programaticamente,

ao definir os direitos sociais no terreno das políticas públicas. A Judicialização

desses direitos vinculou o legislador ordinário aos comandos da Constituição,

cabendo à sociedade provocar o Judiciário, mediante os novos institutos criados

por ela, no sentido de garantir sua aplicabilidade. Nesse sentido, a Judicialização

da política se apresentou entre nós como uma derivação da vontade do

constituinte ao mobilizar como meio o direito e seus procedimentos a fim de

tornar viável a sua concepção de constituição como obra aberta.

Entre nós, a judicialização da política, em lugar de enfraquecer o sistema

de partidos, tenderia a reforçá-lo, pois propiciaria a conexão da democracia

representativa e a participativa, através das ações públicas em que a cidadania se

encontra legitimada para deflagrar o processo judicial contra as instâncias do

poder. As duas democracias da Constituição, a saber, a da representação e a da

participação não estariam, portanto, em oposição, nem formal nem

substantivamente, pelo que a democratização do acesso à justiça consistiria na

abertura de uma arena de aquisição de direitos, de credenciamento à cidadania e

da animação da cultura cívica capaz de dar vida à República.

A Constituição de 1988 teve ela mesma origem num processo de

transição. A passagem do regime militar para o da democracia política lhe impede

de ser compreendida na chave clássica das constituições que sucedem

movimentos revolucionários vitoriosos. Bem conhecido também o fato de que,

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assim como a Carta de 1946, desconheceu um anteprojeto que servisse de ponto

de partida para o trabalho dos legisladores constituintes, já que José Sarney

recusou o que foi oferecido pela Comissão Afonso Arinos. Por este motivo, o

texto constitucional teve que ser extraído de comissões temáticas multipartidárias

e independentes, a serem submetidas ao crivo de uma comissão de sistematização.

À marca de proceder de uma circunstância de transição política, que admitia tanto

o velho quanto o novo, no vocabulário de Werneck Vianna, soma-se, pois, a da

negociação, num texto que, em princípio, deveria começar do zero.

Estaria, assim, na Constituição 1988 uma pista para investigar, em chave

positiva, e no tema da representação, ambivalências resultantes da inclusão de

alternativas institucionais à ortodoxia em uma ordem político-jurídica liberal. Não

se pretende, entretanto, sugerir qualquer equivalência das instituições corporativas

de 1934 às alternativas à representação verificadas na Constituição de 1988. Mas,

na pista posta por Werneck Vianna, pretende-se sugerir a hipótese de uma linha de

continuidade entre as preocupações presentes no debate público acerca dos limites

das instituições liberais tradicionais para realizar as intenções constituintes nos

dois momentos: modernidade política, no primeiro, redemocratização, no

segundo.

Durante os primeiros anos da década de 1930, a ambivalência das saídas

encontradas para os limites da ortodoxia liberal encontra no debate sobre a

representação profissional um exemplo paradigmático. Entendida como

complemento à representação liberal tradicional, a representação profissional

estava na agenda do dia das nações europeias que enfrentavam todas os desafios

de se manterem vinculadas a uma concepção mínima de Estado num contexto de

crise econômica. Também no Brasil ela foi discutida, durante o Governo

Provisório e ao longo do processo constituinte. Não chegou à Constituição, a qual

acolheu formas corporativas de representação.

Importa esboçar, desde logo, os contornos de algumas das expressões

operativas mobilizadas até aqui. Em razão da polissemia assumida pelos termos

liberalismo, representação política e corporativismo, tais expressões figuram, com

frequência, sem definição. Sobre o século XX, é possível afirmar que o

corporativismo surge como alternativa à impossibilidade de o liberalismo, tal

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como pensado do século XIX, resolver questões que se tornaram centrais no

século XX. Disto é possível deduzir que se trata de uma instituição criada para

substituir o liberalismo. Na França, ainda no século XIX, a reação ao liberalismo

nasce dentro da ciência social, com Émile Durkheim. Neste autor, embora o

corporativismo não seja organizado pelo Estado9, tampouco tem pretensões. Não

obstante, no século XX, muito da reflexão de Durkheim informará a reflexão do

constitucionalista Leon Duguit, o qual desenvolverá, a partir de uma reformulação

do liberalismo e da concepção tradicional de indivíduo, a proposta da

representação profissional como alternativa complementar à representação

política de matriz liberal.

No Brasil, o corporativismo nasceu mediante sua compatibilização com

uma ordem constitucional nova e liberal. Precedeu a esse nascimento um amplo

debate sobre a representação profissional. Talvez por isto seja comum encontrar

atores se referindo àquele para falar desta, e vice versa. Assim, caracterizar

minimamente os conteúdos das expressões corporativismo e representação

profissional é chave para precisar o significado do tema da representação no

Brasil, bem como sua implicação para o debate acerca da experiência liberal e da

persistência da harmonização entre instituições antiliberais e ordens jurídicas

liberais que, em solo pátrio, colaboraram no processo de modernização

conservadora que caracteriza o percurso brasileiro até a modernidade.

Para fazê-lo, é necessário conhecer os gestos que primeiro operaram a

composição entre o corporativismo e uma ordem jurídico-política liberal no

Brasil. Nos discursos presentes no debate público da década de 1930 encontram-

se defesas e ataques às instituições liberais. De um lado, estavam os atores que

pretendiam ver realizado o liberalismo que fora adulterado durante a República

Velha. De outro, aqueles que supunham que o liberalismo não seria capaz de

realizar suas aspirações modernizantes. E, entre uns e outros, havia atores que

perceberam na representação profissional uma síntese capaz de responder à

expectativa de realizar o liberalismo, sem perder de vista a realidade social e as

imposições do contexto das primeiras décadas do século XX.

9 DURKHEIM, Émile. “Prefácio à Segunda Edição”. In: Da divisão do trabalho social. 4. ed. São

Paulo: Editora WMF Martins Fontes LTDA, 2010.

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Assim, investigar esses discursos pode ser revelador acerca da permanente

contemporização que se opera no interior das ordens jurídico-políticas liberais, a

qual se pretende caracterizar como uma ambivalência que não é singularidade da

experiência brasileira, mas uma característica do próprio liberalismo. Propõe-se,

portanto, uma análise da experiência constituinte inaugurada quando da

convocação da comissão para elaborar o anteprojeto constitucional que viria a

orientar os trabalhos da Assembleia que promulgaria, em 1934, a terceira

Constituição brasileira. Pretende-se descrever e interpretar os trabalhos de tal

Comissão à luz dos problemas que então circundavam a realização de uma das

principais bandeiras da Aliança Liberal que conduziu a Revolução de 1930, a

saber, tornar realidade a democracia liberal. Fazê-lo dependia da capacidade dos

constituintes de contemporizar duas dimensões contextuais antagônicas: o

declínio do papel mínimo do Estado, tal como concebido pela teoria liberal

clássica, e o crescente poder de pressão do movimento organizado dos

trabalhadores, quando a Revolução Operária de 1917 era um episódio

historicamente muito próximo.

O referido esforço de contemporização produziu efeitos para a concepção

de representação política. Pensada pela teoria liberal clássica francesa do período

revolucionário como instrumento saneador dos problemas implicados na

possibilidade de que o demos detivesse materialmente o kratos, o liberalismo

político fez com que a soberania popular se operacionalizasse, no plano formal,

através da representação. Uma vez ampliado o acesso à disputa pelo poder

político através do sufrágio universal, o formalismo da representação política

tornou-se evidente. O suposto temor diante do avanço de concepções de

organização política alternativas, postos pela Revolução Socialista de 1917, fez

com que a presença do povo na arena de disputa pelo poder político fosse contida,

na França, pela representação profissional. Uma figura criada, portanto, para

preservar o liberalismo político.

A hipótese fundante do presente trabalho é a de que, no Brasil, a

representação profissional poderia ter figurado nos debates sobre a

reconstitucionalização do país nos anos 1930-34 com a mesma natureza. Procurar-

se-á distingui-la da transfiguração da representação profissional em

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corporativismo, bem como fazê-la interagir com as tradições de interpretação da

experiência liberal brasileira. De um lado, apontando que a representação

profissional, embora distinta da representação política liberal tradicional, também

se difere do corporativismo na medida em que sua finalidade é mantê-lo e não

substituí-lo. De outro, indicando que, na década de 1930, não estaria diante de

uma experiência incompleta e singular, mas de uma experiência finada com as dos

países desenvolvidos de atualização da teoria e da prática liberais. Assim, o debate

sobre a representação profissional não estaria contemplado nas interpretações que

remontam a uma tradição de estatismo certo fracasso do liberalismo no Brasil.

Tampouco encontraria assento naquelas segundo as quais as instituições liberais

foram incorporadas à uma sociedade a elas refratárias mediante um idealismo

indiferente a tal inadequação. Propõe-se ler o debate sobre a representação

profissional desde a perspectiva da ambivalência liberal, segundo a qual o

liberalismo encontra caminhos de realização que dependem de recorrer ao Estado

e suas instituições. Tal perspectiva permite a um só tempo inscrever o Brasil no

movimento maior de atualização do liberalismo na década de 1930, bem como

reconciliá-lo com sua tradição conservadora.

Com a revisitação da distinção teórica entre representação profissional e

corporativismo bem como com a retomada dos usos de ambas as figuras nos

contextos para os quais foram criadas na Europa, pretende-se lançar luz sobre a

inspiração liberal da tentativa brasileira de acolhida da representação profissional.

O objetivo aqui é localizar os debates da Subcomissão do Itamaraty como o

primeiro momento constituinte do período, para então verificar de que formas a

proposta da representação profissional foi lida como medida para lidar com duas

preocupações de natureza liberal: a moralização da delegação da soberania,

contida no programa da Aliança Liberal, e a necessidade de instrumentalizar a

presença de novos atores, num contexto em que o socialismo se esboçava como

alternativa à forma liberal de organização de Estado. Sugere-se que, neste ponto, a

experiência brasileira é idêntica à francesa. E que, ao recusar a proposta, o

anteprojeto da Subcomissão deu o primeiro passo para que a ordem liberal em

construção fosse substituída por uma autoritária.

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A Subcomissão do Itamaraty foi convocada pelo Governo Provisório em

maio de 1932 para elaborar o anteprojeto que deveria orientar os trabalhos da

Assembleia Constituinte de 1934. À época, o governo de Getúlio Vargas já

enfrentara algumas manifestações nacionais que pleiteavam a

reconstitucionalização do país. Por este motivo, é comum que a referida

convocação seja interpretada como uma tentativa de aplacar a instabilidade

política gerada pela distância que se estabelecera entre o momento revolucionário

de 1930, que alçara Vargas a chefe do governo, e a legalidade, que só começava a

se esboçar após transcorridos dois anos da Revolução. Desde fins de 1931, setores

das oligarquias dissidentes dos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São

Paulo, pronunciavam-se por um projeto político liberal e legalista que contasse

com a representatividade da sociedade civil.

De fato, em 1932, o governo de exceção de Getúlio Vargas geria

discricionariamente há dois anos o país. Porém, Vargas já tomara medidas no

sentido da legalidade, como a promulgação do Código Eleitoral, providência com

a qual pretendeu demonstrar que não abandonara as bandeiras da Aliança Liberal

que o pusera no poder dois anos antes. Assim, a instabilidade política que

caracteriza os primeiros anos da década de 1930 pode não ter se devido apenas ao

intervalo entre a Revolução e a reconstitucionalização. É possível que ela remonte

à heterogeneidade dos atores que compuseram o movimento de 1930.

A finalidade de romper com os vícios da República reuniu forças sociais

muito distintas. Nos momentos imediatamente anteriores à ruptura, a campanha

oposicionista articulada em torno da chapa composta por Getúlio Vargas e João

Pessoa foi liderada inicialmente por homens atuantes na República Velha, muitos

deles representantes de oligarquias dissidentes que nada tinham de

revolucionários. O que os movia em sua adesão à Aliança Liberal não era

necessariamente o desejo de ver realizados os princípios liberais adotados na

Constituição de 91, e desvirtuados durante República Velha, mas o de substituir

os políticos que até então haviam monopolizado o poder. Com este objetivo

combatiam a fraude eleitoral que lhes impedia o acesso ao poder político. Uma

vez garantida pela moralidade do sistema representativo a possibilidade de ocupar

o Estado para dar passagem a seus interesses privados, tais atores combatiam

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também a hipertrofia do Poder Executivo com vistas à realização de políticas que

atendessem a fins públicos.

Entretanto, ao lado desses políticos, a Aliança reuniu rebeldes tenentes que

estiveram na oposição desde 1922. Estes se definiam como antioligárquicos e

insistiam na necessidade de reformas político-administrativas que implicavam a

ampliação do papel do Poder Executivo.

Na Aliança liberal, esses atores se encontraram na defesa da moralidade

das instituições que foram adulteradas durante a Primeira República. Mas o

consenso entre eles se limitou à identificação de um inimigo comum. O objetivo

de ver finalmente consolidada uma ordem liberal não é claro, embora, para

aqueles elementos residuais das oligarquias, um sistema eleitoral moderno fosse a

chave para a renovação dos quadros dirigentes. E entre os tenentes é totalmente

ausente. Para estes, era hora de aproveitar a possibilidade de ruptura e, depois, o

período de exceção, para modernizar o Brasil. Apesar das diferenças, a partir de

maio de 1930, com a derrota aliancista nas urnas, uma proposta mais radical

ganhou vulto. E, com a Revolução, os oligarcas dissidentes foram a reboque do

tenentes.

Quando do Governo Provisório, os aliancistas que gozaram de mais

prestígio nos primeiros momentos foram os tenentes, ocupando as interventorias

de quase todos os estados. Mas os elementos oligárquicos que apoiaram a

Revolução não atingiram o objetivo de substituir as oligarquias derrubadas.

Assim, a instabilidade dos primeiros anos do pós 30 foi se caracteriza pela

necessidade do governo de lidar com a oposição no interior da situação.

Isso se traduz na atuação conciliadora do Governo Provisório, compondo

interesses díspares e dando passagem a agendas antagônicas. De um lado,

conceder à reconstitucionalização significava neutralizar as acusações de traição

às bandeiras liberais da Revolução. De outro, o mesmo gesto era lido pelas forças

políticas agrupadas em torno do Clube 3 de Outubro como ameaça aos rumos

empreendedores da obra revolucionária, para as quais a continuidade do regime

do intervencionismo autoritário era mais eficiente.

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À luz da disputa por poder político, é possível discutir sobre a

autenticidade da defesa das instituições liberais. A solução dos conflitos passava

necessariamente por elas. Cabia, portanto, ao Governo Provisório apontar para a

realização de eleições e o encaminhamento de uma constituinte. Foi assim que,

em fevereiro de 1932, promulgou-se um novo código eleitoral. E que, em maio do

mesmo ano, através do Decreto no 21.402, marcou-se a data de 3 de maio do ano

seguinte para Assembleia Constituinte. E que, no mesmo ato, criou-se uma

Comissão para elaboração do Anteprojeto da Constituição. Nada disto impediria,

entretanto, que em 9 de julho de 1932 eclodisse a chamada Revolução

Constitucionalista, capitaneada pela oposição paulista ao Governo Provisório,

cuja principal bandeira era a da constitucionalização do Brasil.

Assim, do ponto de vista do quadro político-jurídico de sua convocação, a

Subcomissão do Itamaraty foi instaurada antes da chamada Revolução

Constitucionalista de 1932. Expressão da insatisfação dos paulistas com a

Revolução de 1930, o movimento serviria, antes de mais nada, para convencer o

Governo Provisório de Getúlio Vargas da necessidade de pôr fim ao caráter

discricionário do regime sob o qual vivia o país. Isto só aconteceria quando a

constituição de 1891, tornada sem efeito, fosse substituída por outra. Não

obstante, a constitucionalização do país teve início em 14 de maio de 1932, ao

passo que a Revolução Constitucionalista só teria início em 9 de julho do mesmo

ano.

A convocação da Subcomissão foi regulamentada pelos Decretos no

21.402, de 14 de maio de 1932, e no 22.040, de 1

o de novembro de 1932, do

Governo Provisório de Getúlio Vargas. O primeiro estipulou explicitamente o dia

3 de maio de 1933 para a realização das eleições à Assembleia Constituinte e

criou uma Comissão para elaborar o Anteprojeto da Constituição. O segundo

regulou os trabalhos deste grupo, determinando como seu presidente o Ministro

da Justiça, então Antunes Maciel, o qual nomearia os membros da Comissão e, a

partir dela, uma Subcomissão composta de um terço de seus membros,

compreendidos entre eles todos os Ministros de Estado àquela presentes.

Poder-se-ia afirmar que uma comissão criada por um governo de exceção

para pautar os debates de uma futura Assembleia Constituinte tem natureza

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autoritária. A desconfiança da oposição ao Governo Provisório, que sobreviveu à

convocação, e se revela na Revolução Constitucionalista que teve lugar em

seguida, seria, portanto, justificada. Entretanto, a Subcomissão Itamaraty surge

como medida do Governo Provisório na direção da reconstitucionalização, com

vistas a aplacar as tensões que mantinha com as forças defensoras de valores

afinados com os do liberalismo, e em detrimento de suas relações até então

estáveis com elementos contrários à plataforma liberal. Neste sentido, não é

evidente a sua inscrição no elenco de decisões discricionárias de um governo

autoritário que pretende permanecer indefinidamente como tal.

A discussão sobre o papel do poder central, positivo e modernizador, de

um lado, e negativo e inibidor da espontaneidade capaz de conduzir o Brasil à

modernidade, de outro, é o pano de fundo da análise que se desenvolverá no

presente trabalho. Tal dualidade de interpretações, representada na ambivalência

da natureza da Subcomissão do Itamaraty, estará presente nos debates que

ocorrerão no curso de suas sessões. Nelas, surgem pela primeira vez, em um

ambiente controlado pela linguagem constitucional, as tensões entre as posições

instrumentalmente afinadas com valores democráticos e liberais e aquelas

influenciadas pelo corporativismo.

Ao longo das 51 sessões que decorreram entre sua instalação, em

novembro de 1932, e seu encerramento, em maio de 1933, os membros da

Subcomissão do Itamaraty só estiveram de acordo sobre a necessidade de se

produzir uma obra de conciliação e compromisso, a partir de concessões mútuas.

Isto reflete, como se viu, as diferenças ideológicas e os interesses divergentes das

forças heterogêneas que haviam se reunido desde a Revolução. Não obstante, em

que pese o tema da representação política, o resultado das discussões deu origem a

um anteprojeto que reflete significativamente as posições defendidas pelos

membros menos próximos do Governo Provisório, os quais reclamavam para si a

posição de defensores da fidelidade à plataforma da Aliança Liberal. Neste

sentido, a derrota da proposta da representação profissional seria uma vitória

liberal na Subcomissão do Itamaraty.

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Entretanto, o argumento histórico de que na década 1930 não havia lugar

para os liberais10

voltou a receber ampla atenção editorial recentemente. O

intervalo que vai do momento em que Vargas é alçado ao poder pela Revolução

de 1930 até o golpe do Estado Novo, em 1937, é compreendido como uma

sucessão de medidas autoritárias que inibem a atuação dos liberais para,

finalmente, cancelá-las por inteiro com a Lei de Segurança Nacional, em 1935, e

com a outorga de uma nova e antiliberal Constituição. As medidas adotadas no

sentido da legalidade e da reconstitucionalização seriam apenas gestos

postergadores de ambas as coisas: promulgava-se um Código Eleitoral, sem que

houvesse eleições; decretava-se a convocação da Assembleia Constituinte, mas, o

ato que marcava sua data, adiava-a para o ano seguinte, estendendo-se, com isto, o

período de exceção.

Essa leitura segue a orientação dos “liberais” da década de 1930. Para

estes, o Governo Provisório se caracteriza pela sucessão de gestos discricionários

que visavam a um projeto pessoal e autoritário de poder. Tais atos se valeriam da

ação dos tenentes, os seriam, portanto, os atores responsáveis pela referida “falta

de lugar” para os liberais. Não obstante, tais “liberais” obtiveram vitórias

expressivas quando da reconstitucionalização, ao passo que os tenentes, os quais

supunham que a dificuldade de obter consenso sobre a forma da nova ordem

significava a necessidade de ampliar o intervalo de Governo Provisório para

garantir que a reconstitucionalização não resultasse no regresso aos vícios da

República Velha, foram progressivamente alijados do poder político.

O dissenso acerca da nova ordem refletia o momento mesmo pelo qual

passavam os projetos de liberalismo nas primeiras décadas do século XX, mesmo

nas nações que o haviam experimentado com as virtudes ausentes e com vícios

diferentes daqueles da experiência brasileira. E reside neste ponto um “lugar”

desperdiçados pelos “liberais” da década de 1930. Após um século de

implementação, o planejamento do liberalismo econômico gerara consequências

negativas para as elites que dele se beneficiavam. Desde o final do século XIX,

depressões financeiras haviam atingido não só a sociedade, mas também o sistema

10

NETO, Lira. Getúlio: Do governo provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São

Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 97 e ss; VILLA, Marco Antonio. A história das

constituições brasileiras. São Paulo: Leya, 2011. pp. 43-60.

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de mercado. Após a crise de 1929, ficou clara, por um momento, a falência do

modelo e a necessidade de pensar alternativas que se compusessem da

possibilidade de integrar novos atores às arenas decisórias e um papel novo para o

Estado. Neste momento, nações que no passado foram modelos de liberalismo

político e econômico discutiram propostas alternativas à hegemonia do mercado,

numa tentativa de preservar o liberalismo do movimento em direção ao Estado

totalizante que, à época, gozava de cada vez mais simpatia. Mas, ao fazê-lo,

compuseram suas concepções de elementos estranhos à ortodoxia liberal, como

direitos sociais, formas de intervenção do Estado na economia e uma alternativa à

representação política tradicional.

Nos anos 1930, estava no ar a tensão entre a crença na capacidade do

liberalismo de realizar a si mesmo através de uma espécie de forma social de

seleção natural e as necessidades impostas pela crise econômica. Reconhecer as

determinações contextuais, e impedir o colapso do liberalismo face à proximidade

do espectro da Revolução de 1917, foram a missão que coube significativamente

aos teóricos do Direito Constitucional11

. Uma figura jurídica potente para indicar

o movimento de atualização da teoria liberal através da teoria constitucional é a da

representação das associações profissionais. No Brasil, o primeiro momento de

consequência em que ela foi discutida é o debate constituinte que começa na

Subcomissão do Itamaraty, uma ocasião algo negligenciada pela bibliografia

especializada contemporânea.

Trata-se de uma oportunidade de problematizar as teses segundo as quais a

atuação do Estado foi a responsável pelos infortúnios da experiência política e,

dentro dela, da experiência liberal brasileira. Resumidamente, tais perspectivas

remontam à ingerência do Estado um resultado inibidor da espontaneidade sem a

qual a sociedade jamais se prepara para as instituições liberais.

Por seu turno, a constatação que as primeiras décadas do século XX se

caracterizam pela identificação da necessidade de atualização das expectativas dos

projetos de liberalismo coloca à interpretação da política do Brasil uma

oportunidade. Neste momento, o lastro de experiência de liberalismo conservador,

11

PINON, Stéphane. ”Léon Duguit face à la doctrine constitutionnelle naissante”. Droits. Revue

du Droit Public et de la Science Politique en France et à l'Etranger, v. 2, 2010. p. 500-15.

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problematizado nas teses refratárias à atividade do Estado, situaria o país ao lado

das nações que servem de metro para essas teses, as quais avaliam o desempenho

do país através da sua localização face a essas nações. Além disto, o fato de que a

experiência liberal brasileira se compôs sempre de uma expressiva presença

estatal afinaria o país com o momento geral de abertura da teoria liberal para as

salvaguardas advindas do Estado, caracterizando um raro momento em que o

argumento clássico de distância entre as instituições e a realidade perderia força.

Nesse trabalho, pretende-se problematizar as teses a que se fez referência a

partir da investigação dos primeiros três anos da década de 1930. Partir-se-á da

exposição das interpretações do Brasil com as quais se manterá permanente

interlocução. Prosseguir-se-á com a exposição do conceito de ambivalência como

chave de leituras das ocorrências práticas do liberalismo, bem como da específica

trajetória política brasileira. Para investigar o significado da representação das

associações profissionais, partir-se-á da caracterização teórica da matriz liberal da

representação política e da descrição político-jurídica do percurso da

representação política no Brasil. O objetivo de tal investimento descritivo é dispor

de subsídios para testar a hipótese de que a proposta de representação das

associações profissionais guarda um significado liberal no contexto de atualização

dos projetos de liberalismo.

Passar-se-á então à analise das atas da Subcomissão do Itamaraty, com

vistas a investigar o sentido assumido pela representação das associações

profissionais nos debates do primeiro passo constituinte após a Revolução de

1930. A hipótese a ser testada é de que estaria aberta uma via de realização de um

projeto específico de liberalismo no Brasil, que ao mesmo tempo aproveitasse a

experiência singular de liberalismo conservador do país e o inscrevesse no

movimento maior de atualização teórica geral dos projetos de liberalismo. E que

tal possibilidade teria sido, não obstante, desperdiçado pelos “liberais” brasileiros.

O presente trabalho se pretende uma investigação do tema da

representação profissional mediante sua distinção do corporativismo e sua

inscrição no tema maior do que se pretendeu caracterizar por ambivalência liberal.

Da ordem percorrida pela pesquisa, extraiu-se sua divisão em três partes. A

primeira delas está dedicada a um estudo da ambivalência do liberalismo. No

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primeiro capítulo, a ambivalência será tratada desde um ponto de vista teórico, a

partir de autores tidos como clássicos da teoria liberal e, em seguida, valendo-se

do debate da ciência social brasileira que interpela o tema desde a dicotomia

liberalismo vs. estatismo. No segundo, o estudo direto da ambivalência liberal

cede lugar a uma recuperação sumária da inscrição liberal do tema da

representação, que aqui se escolheu chamar, em razão da precedência cronológica

em face da representação profissional, de representação política tradicional. No

terceiro capítulo, a formulação da representação profissional será distinguida do

corporativismo, com vistas a indicar sua inscrição liberal mediante a ambivalência

que caracteriza o liberalismo.

A segunda parte está dedicada às razões históricas que levaram à

representação profissional a ser formulada como medida de salvaguarda liberal.

No capítulo quatro, são descritos os desafios impostos ao liberalismo e à

representação política tradicional nas primeiras décadas do século XX. Este tema

depende da descrição da movimentação organizada dos trabalhadores como atores

novos que participaram ativamente da imposição desses desafios, o que se

realizará no quinto capítulo. Sua atuação fora precedida de repetidas investidas de

neutralização, as quais contaram com a forma excludente da representação

política tradicional. É disto que tratará o capítulo seis.

Na terceira parte, serão analisados os discursos dos atores envolvidos com

a produção de um Anteprojeto de Constituição para alimentar a Assembleia

Constituinte de 1933, com vistas a indicar o significado assumido pelo tema da

representação profissional no contexto brasileiro da década de 1930, e inseri-lo no

cenário maior de atualização do liberalismo não só no Brasil, como também nas

nações que lhe serviram de exemplo. O sétimo capítulo tratará de apontar a

inversão da natureza antiliberal de anteprojetos de constituição operada pela

Subcomissão do Itamaraty. No oitavo capítulo, serão identificados os atores

favoráveis e contrários à proposta da representação profissional. O nono capítulo

esboçará a fortuna da representação profissional após ter sido derrotada pelos

liberais na Subcomissão do Itamaraty. E, finalmente, no décimo capítulo, será

investigada a hipótese de que a natureza dessa derrota é mais antiliberal do que a

alternativa da representação profissional.

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Parte I – Liberalismo Ambivalente e Representação

Capítulo 1. Uma leitura do liberalismo pela chave da ambivalência

1.1. Ambiguidade liberal e liberalismo como teoria social

Poucas ideias e práticas da política apresentam ao investigador a

complexidade do liberalismo. São muitas as sua formas, não só ao longo do

tempo, ou nos diferentes lugares, mas num mesmo país, no mesmo momento.

Após uma breve exposição de algumas das principais crenças do pensamento

liberal, arguir-se-á que a referida complexidade se deve a uma dimensão do

liberalismo enquanto experiência política que, a par de todas as particularidades

impostas pelo tempo e pelo espaço, mantém-se constante: a plasticidade.

Por liberalismo, trata-se da orientação que nasce, no século XVIII, da

resistência à tirania. Entretanto, esta não se dirige ao exercício ilimitado do poder

político em abstrato, mas às variações na concepção do que seja tirania. Assim, o

liberalismo se atualiza na resistência às diferentes espécies de invasão

consideradas indevidas em esferas que deveriam ser de liberdade do indivíduo.

Por vezes, tal atualização se deu pela relativização da defesa de princípios

cardeais do liberalismo. Não obstante, o gesto de resistência do liberalismo é

também de ruptura. Por este motivo, afirmar expressamente a possibilidade de

conceder ao seu contrário para sobreviver contradiria as pretensões autopoiéticas

do liberalismo. Ao se pretender puro, para resistir à tirania, e se pensar autor de si

mesmo, para inaugurar uma forma nova de organização social, a forma liberal de

pensar e agir precisa negar a plasticidade que, não obstante, é a sua característica

mais constante: o permanente – e silencioso – esforço de adequação à realidade.

Tal caracterização está referenciada na leitura realizada por Karl Polanyi

no clássico A grande transformação 12

acerca das operações do liberalismo desde

o seu nascedouro, no século XVIII, e da experiência específica da grande crise

pela qual passou tal orientação na terceira década do século XX13

. A tese de

Polanyi é conhecida. Segundo o autor, o libertarianismo econômico de autores,

como Adam Smith, preconizou o aprimoramento da economia segundo premissas

12

POLANYI, Karl. The great transformation . Boston: Beacon Press, 1944. 13

Optou-se por operar a distinção entre pensamento liberal e liberalismo em razão do fato de que,

embora as crenças liberais remontem ao século XIII, o termo liberalismo só seria cunhado no XIX.

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análogas à da seleção natural. Cabia à sociedade adequar-se à economia, não o

contrário. Entretanto, dirá Polanyi, não há nada de natural no mercado livre. A

sociedade comercial moderna foi construída sobre obrigações e sempre dependeu

da “ação deliberada do Estado” com vistas à proteção das elites. Em resumo, dirá,

“o laissez-faire foi planejado”14

.

Segundo Polanyi, após um século de implementação, o planejamento do

liberalismo econômico teria gerado consequências dramáticas para as elites que

dele se beneficiavam. Ao final do século XIX, depressões financeiras

comprometiam não só a sociedade mas também o sistema de mercado. Após a

crise de 1929, ficou clara, por um momento, a falência do modelo. Neste período,

foram propostas alternativas à hegemonia do mercado, numa tentativa de

preservar o liberalismo do movimento em direção a formas totalizantes de Estado

que, à época, gozavam de crescente simpatia. Surgiram propostas social-

democráticas de organização dos Estados, as quais compuseram suas ordens

liberais de elementos de justiça originalmente estranhos a elas. Ao lado das

liberdades civis, direitos sociais; ao lado do mercado livre, formas de intervenção

do Estado na economia. Tudo sob a égide de uma constituição, com previsões de

controle sobre o Poder Político e as garantias individuais fundamentais.

Desse ponto de vista teórico-empírico, a afirmação de que o liberalismo é

uma forma plástica de pensar e agir é apenas aparentemente temerária. Não

obstante, importa caracterizar detalhadamente essa ideia. Fazê-lo não é trivial,

pois depende da caracterização prévia da ideia mesma de liberalismo que, em

razão da plasticidade, é de difícil identificação.

Como se sabe, a palavra liberalismo foi cunhada na França, no século

XIX15

. Mas seu conteúdo remonta ao XVIII, à filosofia universalista das luzes e

14

Idem, p. 24. 15

Remonta-se a Benjamin Constant (CONSTANT, Benjamin; GAUCHET, Marcel. Écrits

politiques: Gallimard, 1997. p. 48), o primeiro uso da expressão liberalismo, no sentido político, o

qual se fixaria como o sentido que a ela se atribuiria posteriormente. Existe, entretanto, uma

controvérsia quanto à origem francesa ou anglo-saxônica do termo. Em pesquisa recente,

(HANNAN, Daniel. Inventing Freedom: How the English-Speaking Peoples Made the Modern

World. Northampton: Broadside Books, 2014. p. 123) aponta-se que o uso moderno da expressão

liberal remete à tradição escocesa, especificamente à interlocução entre William Robertson e

Adam Smith. Pouco após a publicação de A Riqueza das Nações, de Smith, Robertson teria escrito

ao economista escocês para saudá-lo pela obra, a qual considerou verdadeiro “antídoto aos

arranjos antiliberais (an antidote to all illiberal arrangemets). Mais do que isto, a correspondência

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ao libertarianismo econômico inglês. Por sua vez, estas ideias remetem ao século

XVII e às discussões travadas pelos teóricos do jusnaturalismo moderno e da

soberania popular. O percurso de sua ideia central, a de liberdade, recua à

antiguidade e à oposição operada pelo Digesto entre liberdade pessoal e

escravidão16

. Talvez seja possível recuar infinitamente no tempo. Entretanto, o

que faz sentido apontar, tanto histórica quanto logicamente, como primeira

preocupação considerável como liberal, ainda que anterior ao uso da expressão, é

a de resistência à arbitrariedade do governo17

.

Do ponto de vista da política, a primeira liberdade propriamente liberal foi

a garantia de que o governo, ao lidar com seus submetidos, agiria de acordo com a

lei. Trata-se do começo da ideia direitos civis, que se explicita com a de que um

homem que não tem direitos que o preservem da vontade de outro homem, ou de

um governo, é um escravo. Esta ideia se complexifica quando se tem em conta

que Estados não são arbitrários apenas quando não incluem a linguagem do

Direito em suas operações. Governos podem exercer ou reivindicar para si

poderes arbitrários sem que seja desprezado um elemento jurídico. Por exemplo,

numa ordem composta pela previsão de tribunais regulares que sentenciam penas

específicas para ofensas definidas e provadas contra um homem através de uma

forma regular de julgamento, governos arbitrários já recorreram a varias formas

extrajudiciais de prisão, detenção e punição orientadas apenas por sua vontade. O

exemplo mais diretamente ligado ao imaginário que envolve o percurso até os

direitos civis é o da prisão por lettre cachet na França, durante o Antigo Regime18

.

Na Inglaterra, a forma arbitrária de governo foi um dos primeiros objetos

do ataque do Parlamento Inglês, no século XVII, a partir do qual a primeira

liberdade subjetiva foi alcançada através da Petition of Rights e pelo Habeas

Corpus Act. Trata-se do primeiro capítulo da liberdade no século XVII, o qual

entre os dois conteria um indício de que a expressão precisava sair da península e chegar ao

continente, no trecho: “Seu livro deve necessariamente se tornar um código político e econômico

para toda a Europa e deve servir de fonte para consulta aos homens tanto da prática quanto da

especulação”. Apenas então o termo teria chegado aos Estados Unidos e à Europa continental,

onde seria usado para denotar reforma constitucional e participação política, por oposição ao

significado restrito à ideia de liberdade natural. 16

SKINNER, Quentin. Liberty before Liberalism. Cambridge University Press, 1997. 17

HOBHOUSE, Leonard Trelawny. Liberalism. Oxford: Oxford University Press, 1911. p. 22. 18

ROSANVALLON, Pierre. The Demands of Liberty: Civil Society in France since the

Revolution. Harvard: Harvard Historical Studies, 2007. p. 47.

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pode ser resumido pela ideia de “demanda por direito”19

. Sua síntese mais

conhecida está em John Locke, na proposição de que “liberdade sob o governo é

ter regras sob as quais viver que são as mesmas para todos de uma sociedade e

feitas pelo poder legislativo erigido por ela”20

.

Nesse sentido, a primeira condição para a liberdade de todos os sujeitos é a

previsão de uma medida de restrição que seja também universal. Portanto, o

imperativo de um governo livre é que ele não seja determinado pelo governante,

mas fixado pelas regras de direito, às quais também o governante está submetido.

Assim, não haveria, por princípio, qualquer antítese entre liberdade e Direito.

Embora este limite o indivíduo, limita também outros indivíduos de agirem contra

ele desde um cálculo orientado exclusivamente pela vontade. O Direito, enfim,

libera o indivíduo do medo da agressão ou coerção e é o único meio através do

qual a liberdade pode ser franqueada a uma comunidade inteira.

Ao mesmo tempo, reconhecer que o “reino do Direito”21

é o que garante a

liberdade da comunidade é assumir que ele deve ser imparcial, isto é, o mesmo

para todos. E, neste sentido, a liberdade depende da igualdade. Trata-se da

demanda do liberalismo por um procedimento que garanta a aplicação imparcial

do direito. Vem daí a necessidade de independência do Poder Judiciário, para

assegurar a igualdade entre governantes e governados; de um procedimento

acessível a todos; e de abolição dos privilégios de classe.

Do ponto de vista da economia, ao começo da industrialização, à exceção

dos monopólios, a indústria estava acorrentada por leis restritivas. As tarifas, em

particular, não eram apenas restrições ao livre empreendimento, mas uma fonte de

desigualdade para o comércio. Seu efeito fundamental era o de transferir capital e

trabalho dos objetos aos quais ele pode ser mais rentavelmente empregado, para

objetos em que seu emprego é menos rentável, beneficiando certas indústrias e

gerando desvantagens para o consumidor. Aqui também noções liberais atacaram

uma obstrução e uma desigualdade. Na maior parte dos países europeus, este

19

HOBHOUSE, Leonard Trelawny. Liberalism. Oxford: Oxford University Press, 1911. p. 57. 20

LOCKE, John. The second treatise of government. Indianapolis: Bobbs-Merrill Educational

Publishing, 1952. p. 43. 21

O rule of law, em língua inglesa, contemporaneamente traduzido para o português como o

“império do direito”.

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ataque foi bem sucedido na suspensão de tarifas locais e no estabelecimento de

um relativamente amplo mercado livre. Trata-se de uma das maiores vitórias do

liberalismo e, entretanto, uma das mais precárias22

.

A expectativa pelo livre mercado se organizou em torno da resistência às

restrições impostas à indústria. Durante o século XVIII, as antigas regulações

caíram em desuso ou desapareceram completamente. Por algum tempo, parecia

que um empreendimento industrial sem restrições seria progressivamente

atingido. Entretanto, as antigas restrições não foram formalmente removidas até

um novo processo de regulação começasse.

As condições impostas pela liberdade que caracterizava o novo sistema de

fábricas “chocaram a consciência pública”23

. Assim, começaram a ser produzidas

leis que viriam a constituir um código industrial que passaria a regular a vida de

empregados e empregadores mais detalhadamente. Os primeiros estágios deste

movimento foram vistos com desconfiança pelos liberais. A intenção era proteger

o lado mais frágil da relação entre capital e trabalho, mas o método interferia na

liberdade contratual. A liberdade do indivíduo passava a contar com uma

limitação composta de direitos e deveres que determinariam as linhas das relações

que envolviam a produção.

A liberdade contratual e a responsabilidade pessoal sempre foram ideias

caras ao liberalismo. Ainda assim, com o passar do tempo, mesmo homens

movidos pela mais aguda simpatia liberal passaram a aceitar e até a avançar a

extensão do controle público sobre a esfera industrial. Tal controle passava pela

responsabilidade coletiva em matéria educacional, pela alimentação das crianças,

o alojamento da população industrial, o cuidado dos doentes e pela viabilização

do acesso ao trabalho. Nesse momento, o liberalismo parece ter se retraído, senão

em princípio, pelo menos na aplicação24

.

Muito próxima da liberdade de contratar está a liberdade de associação. Se

dois homens podem fazer acordos entre si desde que com isto não comprometam

um terceiro, podem também agir juntos permanentemente e por quaisquer razões

22

HOBHOUSE, Leonard Trelawny. Liberalism. Op. cit. p. 18. 23

Idem. p. 19. 24

Idem. p. 20.

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de interesse comum nas mesmas condições. É dizer: os homens poder formar

associações. Entretanto, os poderes de uma associação são muito diferentes dos

poderes dos indivíduos que a compõem. Uma associação pode se tornar tão

poderosa a ponto de se tornar uma instância à altura de um Estado, e competir

com ele em termos desiguais. A história de algumas associações revolucionárias,

de organizações religiosas e mesmo de trusts americanos podem ser citadas como

exemplos da eminência da questão. Ao mesmo tempo, uma associação pode atuar

de forma opressiva contra não membros e mesmo contra seus próprios membros.

Assim, ainda que a liberdade de associação seja próxima do coração do

liberalismo, haja vista a proximidade de sua natureza com a da liberdade

contratual, a proteção do indivíduo é o argumento de sua limitação. Como

anteriormente afirmado, opor-se a qualquer forma de tirania é da essência do

liberalismo e, portanto, não haveria, nesse caso, qualquer inconsistência de

princípio.

Subjaz a todas as questões de direito aquela de como ele será assegurado e

mantido. As formas de enforcement do direito são responsabilidade dos poderes

Executivo e Legislativo. Eis a linha de conexão entre a teoria geral da liberdade

com a doutrina do sufrágio universal e da soberania popular. Mas o povo pode ser

descuidado com seus direitos, ou impotente diante da necessidade de mantê-los.

Da mesma forma, as políticas daqueles poderes podem se direcionar à

expropriação dos ricos, o que é lido pela teoria liberal como uma forma de tirania.

Assim, a responsabilidade dos poderes Executivo e Legislativo e, por

consequência, a soberania popular e a universalidade do sufrágio podem ser

limitadas.

A previsão de limitação problematiza as expectativas liberais de

desobstrução e abertura dos canais sociais e institucionais para que a

espontaneidade da atividade humana se manifeste livremente. Ao mesmo tempo, a

liberdade pode dar passagem a forças que, operando dentro de sociedades

despreparadas para ela, podem modificar suas práticas, tornando-as liberticida.

Afrouxar excessivamente as amarras que garantem a liberdade é algo que pode

comprometer a espontaneidade humana.

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Naturalmente, essa ideia se choca com a expectativa negativa da teoria

liberal acerca da atividade do Estado. E revela a necessidade de esquemas sociais

para a aplicação dos princípios liberais – e aplicação, nesta sentença, é a palavra

operativa. Do ponto de vista liberal, as respostas não poderiam residir numa

espécie de imposição não espontânea de liberdade. Mas a previsão de

relativização da soberania popular e da universalidade do sufrágio revela de forma

contundente a ambivalência da constatação empírica de que, quando se fala em

liberalismo, fala-se ao mesmo tempo na prescrição de espontaneidade e no credo

em uma teoria que precisava alterar a sociedade.

Embora se afirme com frequência que o movimento conduzido em nome

de ideias - que seriam retrospectivamente chamadas liberais – tenha se guiado, de

início, por princípios gerais, na Inglaterra, buscaram-se suas finalidades através de

um tipo de constitucionalismo mais orientado por precedentes do que por

princípios. O método dos primeiros líderes do Parlamento, encarnado na tradição

conservadora dos Whigs, supõe que as ideias, a par de serem válidas para a

resistência à opressão, eram insuficientes para fins de reconstrução.

O limite da capacidade das ideias se revela no empreendimento

revolucionário, que é o exemplo mais eloquente das realizações do liberalismo. A

razão de uma revolução decorre da resistência à tentativa de manter uma ordem

antiga em circunstâncias novas25

. Embora, em Tocqueville, isto seja verdadeiro

acerca da Revolução Francesa, em face do Antigo Regime, o mesmo pode ser

afirmado acerca da Revolução Gloriosa, de cerca de um século antes26

. Neste

sentido, o gesto de aplicar os princípios dos séculos XIV e XV em 1640 foi, com

efeito, o mesmo que instituir uma revolução. Não obstante, aqueles que levam a

efeito uma revolução devem saber que estão à frente de um movimento, ainda que

ele já esteja em andamento. Eles precisam de uma teoria social.

Tal teoria possivelmente emerja das necessidades práticas sentidas pela

sociedade. E é precisamente por este motivo que ela seria capaz de ser afirmada

como verdade universal, apesar de sua validade ser restrita à contingência. Uma

25

A primeira e jamais superada forma desse argumento está em Tocqueville. In: TOCQUEVILLE,

Alexis de. O antigo regime e a Revolução. Brasilia: Ed. UnB, 1989. 26

HOBHOUSE, Leonard Trelawny. Liberalism. Op. cit. p. 40.

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vez formulada, atuaria sobre as mentes daqueles que a ela aderem e daria unidade

e direção a seus esforços. Tornar-se-ia uma força histórica cuja coerência e

adequação se deveriam não somente à sua verdade teórica, mas, sobretudo, ao seu

momento prático.

Aos diversos momentos pelos quais passou o liberalismo correspondem

teorias sociais através das quais ele buscou se afirmar27

. Não é dizer que o

liberalismo não seja ele mesmo uma teoria social. O que se pretende é justamente

indicar que a pretensão autopoiética de uma forma de pensar e agir precisa negar

sua dimensão prescritiva. E que fazê-lo dependeu de recorrer a formas teóricas

pretensamente exteriores a ela. A primeira delas é a da Ordem Natural. De início,

a missão do liberalismo foi de lidar com a presença autoritária da Igreja e do

Estado. Teve que reivindicar os elementos das liberdades civil e econômica. Para

fazê-lo, defendeu os direitos do homem e, em proporção, porque foi forçado a ser

construtivo, uma suposta harmonia da ordem natural. O governo reclamava uma

sanção supranatural e uma ordenação divina. A teoria liberal de então respondeu

com o argumento de que os direitos do homem repousavam sobre a Lei Natural, e

os do governo nas instituições humanas. A mais antiga destas instituições é o

indivíduo; e a primeira sociedade, o grupamento natural dos seres humanos sob a

influência da afeição familiar e com a finalidade da colaboração mútua.

A sociedade política foi um arranjo mais artificial, uma convenção

alcançada para a específica finalidade de assegurar a ordem e manter a segurança

comum. Foi, talvez, como sustentou John Locke28

, fundada num contrato entre o

rei e o povo, interrompido caso uma das partes violasse seus termos. Ou, segundo

a visão de Jean Jaques Rousseau29

, um contrato do povo consigo mesmo, um

arranjo através do qual a Vontade Geral se formaria do conflito de vontades

individuais. Um governo seria instituído como órgão dessa vontade, mas seria, em

razão da sua natureza, subordinado às pessoas das quais derivava sua autoridade.

O povo era soberano e o governo era seu delegado.

27

Idem. p. 67. 28

LOCKE, John. The second treatise of government. Op. cit. p. 111. 29

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. São Paulo Martins

Fontes, 2006.

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Naturalmente, há muitas diferenças entre as teorias do contrato desses dois

autores, bem como os contextos e momentos históricos dos quais falaram eram

distintos. Entretanto, aqueles que, como Locke e Rousseau, operaram com essa

ordem de ideias participaram da concepção da sociedade política como um limite

ao qual os homens se submeteriam voluntariamente para alcançar finalidades

específicas. Estiveram diante de instituições políticas que eram fonte de

submissão e desigualdade. E propuseram a possibilidade de uma organização de

indivíduos formalmente livres e iguais. Como o indivíduo sozinho é frágil,

embora pudesse ser concebido como sujeito de direitos limitados apenas pelos

direitos de seus pares, não dispunha de meios justos para assegurá-los. Decide

então acordar com os demais o respeito mútuo aos direitos e, para assegurar essa

finalidade, instituiu um governo. A função deste era limitada e definida: manter os

direitos naturais do homem tão bem quanto possibilitasse a sociedade; e mais

nada. Qualquer ação além era um desrespeito ao entendimento sobre o qual a

instituição do governo repousava. Ao entrar no contrato, o indivíduo abria mão de

sua liberdade no limite da necessidade de fazê-lo para garanti-la, submetendo-se

ao mesmo direito que submetia a todos. Abriu mão de seus direitos naturais e

recebeu direitos civis, algo menos completo, mas mais eficiente porque garantido

pelo poder da coletividade. Não obstante, os direitos civis deveriam corresponder

tanto quanto possível aos direitos naturais originais.

A forma de governo opressiva combatida pela teoria liberal era entendida

também como fonte de estagnação. Uma vez removida pelo movimento liberal, a

mola do progresso e da civilização passaria a ser localizada no indivíduo.

Entretanto, também a liberdade individual pode ser fonte de opressão. Se o

indivíduo é livre para perseguir seus interesses, estes podem conflitar com os dos

demais. Como se viu, a possibilidade deste conflito foi reconhecida pelo

liberalismo como origem da sociedade. Por isso, coube a ele harmonizar o intuito

de libertar o indivíduo da opressão dos governantes e a imposição de limites a esta

liberdade. Os homens tiveram que acordar uma medida de limite mútuo à

liberdade para torná-la efetiva.

Não obstante, durante o século XVIII, surgiu, na esfera da teoria

econômica, uma concepção que, embora dependesse da Ordem Natural,

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prescindia de qualquer acordo de limitações mútuas. Trata-se da ideia de que o

conflito das vontades está fundado na má compreensão dos interesses e, mais

importante, que suas consequências seriam agravadas pela imposição

governamental de limites. De fato, está na origem da crença no chamado laissez-

faire a suposição de que subjaz à vida social uma harmonia entre os interesses

que, porque é natural, não pode esbarrar em quaisquer limites. Assim, mantida a

ordem, suprimida a violência, e assegurada a propriedade privada e o

cumprimento dos contratos, o demais seguiria seu curso natural. Cada homem se

guiaria pelo seu próprio interesse, mas este o conduziria pelo objetivo da maior

produtividade. Removidas as barreiras artificiais à liberdade, o indivíduo

encontraria, por exemplo, a ocupação que melhor se adequasse às suas

capacidades, porque através dela ele produziria melhor. Consequentemente, seria

ela a mais valiosa socialmente. Haveria, portanto, uma harmonia natural entre

indivíduo e sociedade. Ao governo caberia apenas impedir a violência e a fraude e

garantir a propriedade, para que os homens pudessem desfrutar na específica

medida daquilo que produzissem.

Na prática, o que se verificou, entretanto, foi o desenvolvimento do

sistema industrial numa forma submetida a condições prescritas pelos Estados. O

direito passou a determinar a segurança, as condições sanitárias, o limite de horas,

o mínimo de remuneração e a responsabilidade do empregador nos acidentes.

Apenas dentro destes limites manter-se-ia a liberdade de contrato.

Entendido segundo as pretensões do laissez-faire, o liberalismo poderia

estar diante da sua decadência. Porém, o fato é que o individualismo, em todas as

suas etapas, quando se viu às voltas com a realidade, foi forçado a incluir a vida

social em seus cálculos. Sempre que tentou tomar quaisquer dos seus princípios

como axiomas, viu-se diante do dado de que liberar o indivíduo depende da

correspondente possibilidade da sociedade controlar os avanços liberticidas da

liberdade.

No século XX, essa ambivalência passou a ser tratada abertamente. Neste

momento, falar em liberalismo era falar em termos de uma teoria construtiva da

sociedade. Não obstante, as pretensões autopoiéticas do liberalismo jamais

deixariam de ser recuperadas. Por este motivo, uma controvérsia se tornaria

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clássica. De um lado, entende-se que as razões do fracasso de experiências

políticas e econômicas se deve ao falseamento da espontaneidade e, de outro, aos

males impostos pela supressão do Estado em cenários avessos à sua ausência.

Assim, experimentos liberais malsucedidos ou remeteriam ao falseamento da

liberdade ou à má compreensão do papel do Estado30

. De ambos os lados,

despreza-se a plasticidade que marca o liberalismo com sua característica

ambivalência.

No Brasil, a controvérsia acerca das razões do suposto fracasso da

experiência liberal atravessa o Império e a Primeira República, sendo identificável

nas discussões entre liberais e conservadores, entre monarquistas e republicanos,

entre os partidários da centralização e os que eram pela descentralização. De todos

os momentos da vida política brasileira, desde que o país se alçou à condição de

Estado-nação, talvez a década de 1930 seja um dos exemplos mais eloquentes

desse debate e com mais consequência para a reflexão sobre a natureza do

liberalismo. Os debates anteriores se atualizaram quando da formação da Segunda

República. De um lado, urgia impor limites à ação do Estado através da garantia

de probidade das formas institucionais de delegação da soberania. De outro, se

impunha a necessidade de modelar a sociedade para receber tais instituições.

Garantir a espontaneidade e impedir que ela se tornasse, a exemplo da experiência

da República Velha, liberticida.

Foi esse quadro que indicou as questões que norteiam a presente

investigação: que resposta foi dada ao problema do falseamento da representação

política, para que não se reprisassem os males da primeira experiência

republicana? Em que medida as escolhas realizadas pelos atores políticos se

orientaram pelo desejo de ver aprimorada a experiência liberal brasileira? Ao

início da década de 1930, discutia-se no Brasil e alhures uma forma que

combinava a representação política tradicional a elementos novos, que tinham a

ver com a necessidade de incluir na vida pública os novos atores, surgidos do

desenvolvimento do mundo produtivo. Embora estranha às pretensões de

30

Uma evidência da contemporaneidade dessa controvérsia é a empreitada conduzida, na França

por Gaspar Koenig, fundador da plataforma Generation Libre, voltada a promover a liberdade na

França e a reabilitar a expressão liberalismo. Expoente do que Rosanvallon qualificou de

“jacobinismo liberal”, Koening, que se afirma como “homem mais liberal da França”, segue

convencido de que se opor ao liberalismo significa comprometer a economia e as liberdades civis.

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espontaneidade e à concepção de indivíduo da teoria liberal da representação, a

representação profissional propunha alternativas que visavam a salvaguardar o

liberalismo político em face do avanço de alternativas a ele, como o comunismo e

o fascismo. Mas, ao fazê-lo, tornava aparente a ambivalência do liberalismo.

De fato, a experiência do pós-30 é ela mesma plena de ambiguidades. A

partir da Revolução de 1930, teve início um período em que foram combinados

um governo de exceção e a elaboração de instituições que aperfeiçoavam a

experiência liberal – em curso no país, sob a forma republicana, desde 1889. Ao

lado de decisões como a que construiu para a vida do trabalho uma forma

institucionalizada, em que o conflito entre capital e trabalho passaria

necessariamente pelas burocracias do Estado, foi promulgado um código eleitoral

moderno e convocada uma assembleia constituinte. Mas a qualidade da

ambivalência que marca o período que vai de 1930 a 1934 inscreve o Brasil na

crise mais ampla das concepções tradicionais de liberalismo no norte do

hemisfério. À época, o liberalismo econômico e as formas da representação

política, tais como concebidos pela teoria liberal e aplicados ao longo do século

XIX, experimentavam dramático fracasso. Conflitos sociais, greves, uma guerra

mundial e a crise econômica de 1929 formaram o cenário que impôs a

necessidade de repensar as formas de combinar a liberdade a preocupações com

os destinos da sociedade. Isto abre o estudo da experiência política brasileira para

a possibilidade de lê-la naquilo que a aproxima das experiências das nações que

serviram de modelo para medir o seu sucesso ou o seu fracasso.

1.2. Interpretações da ambivalência da experiência liberal brasileira à luz da controvérsia liberalismo vs. estatismo

Na seção anterior, foram expostas algumas das crenças centrais do

pensamento liberal. Arguiu-se que a complexidade que se impõe à investigação do

liberalismo não se restringe às peculiaridades de experiências particulares, como a

brasileira, mas a uma dimensão do liberalismo mesmo, a qual se escolheu chamar

de plasticidade. Segundo Karl Polanyi, a ideia de que sociedade deveria se

adequar à lógica de mercado nada tinha de natural. E, por este motivo, o mercado

livre pelo qual os liberais pretenderam pautar a sociedade comercial moderna foi

construído mediante artifícios dependentes da ação do Estado para a proteção das

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elites. Trata-se de uma ambivalência do liberalismo que, não obstante, em razão

da pessoalidade que marcava as relações sociais no Brasil, foi libra pelos autores

pátrios mediante a dicotomia liberalismo vs. estatismo. É o que se verá a seguir.

A análise manterá interlocução permanente com quatro chaves clássicas da

interpretação da história política brasileira: as que supõem o Estado como

operador do sucesso (1) ou do fracasso (2) da experiência política; as que

identificam, na tentativa de harmonizar valores, ideias ou instituições antagônicas,

uma ambiguidade patológica dos processos políticos pátrios (3); e a que avalia o

percurso político como dotado de uma potencialidade própria, desvelada pelas

peculiaridades e soluções encontradas pelos atores e pela sociedade brasileira (4).

Tal interlocução tem a finalidade de sublinhar, por um lado, a competência teórica

da reflexão produzida aqui sobre o país e, por outro, os prejuízos de orientar-se

por uma delas na tomada de posição, seja ela política ou intelectual.

Os autores das primeiras linhas interpretativas têm em comum conferir ao

Estado o status de operador central para o sucesso ou o fracasso da chegada do

Brasil à modernidade política e econômica. É possível reuni-los, para fins

analíticos, em razão do fato de que, em ambas as chaves de leitura, as marcas do

passado sobre a sociedade e o comportamento do Estado condicionam a

experiência política brasileira. Para um intelectual como Francisco José de

Oliveira Vianna, o Estado deve avançar aos espaços a que a sociedade, por razões

que remontam à ocupação colonial, ainda não consegue chegar. Ao contrario, mas

também mobilizando o Estado como operador, bem como encontrando no passado

colonial as suas razões, Raymundo Faoro vê no avanço do Estado a razão pela

qual a sociedade não consegue ocupar, espontaneamente seus espaços.

Segundo uma concepção muito difundida entre as interpretações da

história política do Brasil, é possível ler a experiência liberal através da seguinte

causalidade: países cujo acesso ao modo de produção capitalista se deu

tardiamente mantêm com o liberalismo, político ou econômico, uma relação de

ambiguidade ou de substituição e, por isso, experimentam formas incompletas ou

não democráticas de organização da vida pública. As interpretações que partem da

localização do Brasil numa situação atrasada em relação aos países de capitalismo

maduro indicam uma história de subordinação, primeiro colonial e, após a

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Independência, de articulação dependente com o mundo desenvolvido. Teríamos

nos originado de uma “espécie peculiar de Ocidente”31

, marcados pelas pragas

que nos teriam embargado o caminho progressista e libertário experimentado na

região norte e ocidental do globo. Nossa história é vista, desta perspectiva, como

um contínuo reiterar, através dos tempos, da cultura da fundação. Não obstante as

tentativas de implantar uma forma liberal de organização social, constantemente

nos veríamos submetendo-as a transigências não liberais, em razão da necessidade

de adequação das instituições desejadas a um contexto refratário a elas.

A suposição de ambiguidade que marca a relação do Brasil com sua

possibilidade liberal teria fundado duas tradições: a iberista e a americanista. Para

os autores da primeira, a circunstância é um imperativo, ou a razão pela qual a

política deve derivar da sociologia. Embora siga a pista inaugurada no Império

pelo Visconde de Uruguai (1807-1866), talvez o autor mais expressivo desta

posição seja Francisco José de Oliveira Vianna. É, sem dúvida, o mais relevante

para os fins deste trabalho. Sua obra é orientada pela crítica sistemática ao

idealismo das posições que supunham a capacidade autopoiética do liberalismo.

O pensamento de Oliveira Vianna é uma das matrizes teóricas mais

importantes que informam o debate clássico a respeito da modernização brasileira

e da capacidade do povo deste país para a vida pública. Seu livro Instituições

Políticas brasileiras completou um plano de estudo da sociologia das instituições

brasileiras, começado com Populações Meridionais do Brasil e continuado em

Pequenos estudos de psicologia social, Problemas de política objetiva, O

idealismo da Constituição e O ocaso do Império.

Três preocupações fundamentais, que podem ser identificadas no

pensamento de Oliveira Vianna em geral, têm sua marca em Instituições Políticas

Brasileiras32

, a saber: o estudo da realidade brasileira, valorizando a produção

intelectual nacional; o exame das condições locais para a adaptação das

instituições; e a ideia de que as tradições podem se aprimorar - embora esta

31

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. “Americanistas e Iberistas: a polemica de Oliveira Vianna

com Tavares Bastos. In: A Revolução Passiva. Rio de Janeiro: Revan, 1997. p. 151. 32

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Instituições políticas brasileiras. Apresentação

Antonio Paim. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: EDUFF, 1987. (Coleção Reconquista do

Brasil, 2ª série, v. 105-106). Doravante referido como IPB.

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capacidade de aprimoramento dependa do desempenho de uma função pedagógica

do Estado. Este último ponto é claramente desenvolvido em IPB a partir do tema

da culturologia.

Sua oposição à experiência liberal iniciada com a Independência, e

consolidada na Constituição de 1824, a que o autor se referiu como resultado do

idealismo utópico de nossas elites políticas, bem como sua simpatia pelo liberal-

conservadorismo do Império, fazem-no um saquarema por nascimento e por

afinidade. Não obstante a referida simpatia, para Oliveira Vianna, a distância entre

o projeto político liberal e a realidade da capacidade do povo brasileiro para a vida

pública não seria superada senão por uma forma ingerente e pedagoga de Estado

que em nada se confunde com o liberal.

Segundo Oliveira Vianna, o projeto republicano brasileiro de liberalismo

institucional esteve informado pela leitura de Alexis de Tocqueville acerca da

experiência democrática relatada em Democracia na América, e por um

“encantamento prodigioso” com a prosperidade dos Estados Unidos. Entretanto, a

democracia federativa naquele país estava respaldada pela tradição de

autogoverno daquele povo a partir das townships, o que não encontrava

correspondência no Brasil. Para Oliveira Vianna, a desconsideração do momento

histórico e das circunstâncias sociais na implementação do projeto liberal da elite

levaria a consequências opostas às pretendidas. A descentralização aqui não

fomentaria a participação, nem aquele interesse bem compreendido de que falava

Tocqueville. Teria como consequência o inverso, fortalecendo a falta de

sentimento público de que já padecia o povo, institucionalizando a dominação

pessoal e a desintegração.

A identificação do que chamou de pouca densidade do civismo do povo

brasileiro e a crítica ao investimento político da elite que desconsiderava as

características de nossa tradição política, ocasionaram que este autor absorvesse

muitos temas daquele liberalismo conservador do Império. Concluiu então que, no

país onde faltam tradições de autogoverno, cabe ao Estado uma função

pedagógica de suscitar o espírito público no povo, aproximando-o do direito.

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De fato, as compreensões de civismo e boa sociedade de Oliveira Vianna

não vinham de uma matriz anglo-saxônica, mas do que se convencionou chamar

de Iberismo – lido em chave positiva -, isto é, um outro conteúdo para a

modernidade, uma outra forma de ser ocidental. Seu modelo de sociedade e de

política parte de uma visão laica, embora informada por valores ligados à tradição

católica medieval, a saber: a comunidade, a harmonia, a integração e a aversão ao

conflito, de onde se pode deduzir uma matriz durkheimiana deste autor. Entre nós,

a formação do cidadão não deveria passar pelo conflito, mas pela interferência do

Estado, como promotor do civismo e da paz social, numa sociedade cooperativa.

Quando do momento de sua atuação política objetiva, o plano de Oliveira

Vianna foi o de que, através do corporativismo, o sindicalismo e a legislação

social organizariam a sociedade cooperativa e harmônica em pleno mundo do

capitalismo industrial, do operariado e das classes sociais. A incorporação de

patrão e trabalhador na legislação social criaria condições para o exercício das

liberdades civis e políticas. Se comparada esta lógica à que orientou os países

pioneiros da modernidade, nota-se que há uma completa inversão da sequência

clássica de aquisição dos direitos na formação da cidadania moderna proposta por

Thomas Humphrey H. Marshall, como já foi abundantemente indicado pela

bibliografia especializada33

.

Em IPB, Oliveira Vianna pretendeu esclarecer aspectos do idealismo

utópico de maneira objetiva. À luz das “camadas profundas da nossa história”, o

autor encontrou o conflito existente entre os ideais políticos da elite urbana e a

cultura política da população rural. Constatou que o plano político da elite

metropolitana não se adequava à cultura política do povo-massa da hinterlândia

rural do Brasil, moldada dentro das tradições que correspondem à cultura política

das elites rurais. Estas, por sua vez, decorrem das formas encontradas para a

defesa e expansão das áreas ocupadas do território, bem como da fragilidade da

relação entre sesmeiros e a então expressão central (real) de poder no período

colonial. Isto é, o plano político das elites metropolitanas presumia um espírito

cívico que não encontrou lugar para se desenvolver no curso da história política

33

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Décadas de espanto e uma apologia democrática. Rio de

Janeiro: Rocco, 1998; CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no brasil: o longo caminho. 9. ed.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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do Brasil, nem nas elites rurais nem no povo-massa.

Desde Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Vianna já havia se

proposto uma reflexão acerca da formação social do povo brasileiro, bem como de

sua capacidade para a política sob um regime de democracia representativa e

federativa. Através da identificação dos fatores históricos que influenciaram a

formação da psicologia política do grupo centro-meridional, o autor procurou

estudar seu comportamento em face do Estado, como cidadãos (jus sufragii) ou

como membros do governo (jus honorum). E concluiu que o grupo centro-

meridional não havia logrado superar a solidariedade de clã para atingir um

sentimento de solidariedade social.

Observando expressões locais de solidariedade, concluiu que mesmo o

sentimento de comunidade local era de pouca densidade e inferior ao de clã ou de

partido. Quanto às expressões estado-provinciais, identificou que o espírito de clã

se infiltrava por sua estrutura numa tendência incoercível ao satrapismo e às

oligarquias patriarcais de sentido antinacional e “centrífugo”. Tais fatos

impediram que se formasse uma tradição de cultura política representativa de

interesses coletivos. Estudando as organizações partidárias, em âmbito local,

provincial e nacional, concluiu que elas eram dominadas pelo espírito de clã,

formadas em torno dos senhores de terra e que não haviam atingido uma

consciência que fosse superior à expressão de interesses privados. O complexo

democrático de nação só se verificava numa elite de formação universitária

constituída pelos grandes homens de Estado do Império, que lutavam em favor do

comportamento cívico do regime democrático que as Constituições de 1824 e a de

1891 presumiram existir.

Assim, o autor identificou que o domínio senhorial e o clã parental se

atualizaram posteriormente no clã eleitoral, ou partido político, como elementos

fundamentais de política brasileira. Não se diferem substancialmente uns dos

outros, ambos são constituídos para atingir objetivos particularistas e não

interesses coletivos.

O conteúdo psicológico da atividade política brasileira evidencia a

carência de motivações coletivas nos comportamentos partidários, seja em âmbito

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local, provincial ou nacional. Resultou da análise um desapontamento, pois a

visão objetiva de nossa vida pública suscita uma impressão de vacuidade de

motivações coletivas que marca o comportamento social de cidadãos, governantes

e partidos. Suas causas históricas e sociais são identificáveis a partir do estudo do

meio social em que se desenvolveu o zoon politikon brasileiro, isto é, no campo,

nos grandes domínios que se formaram no processo de colonização do território

brasileiro e através das instituições sociais criadas pelos costumes dessa

população rural. Segundo Joaquim Nabuco, a visão de nossa vida pública suscita

a imagem de “um combate com sombras”.

Com a Constituição de 1824, irrompeu abruptamente a degeneração da

forma pura de governo democrático, ou sua expressão oclocrática, com a vontade

geral do povo massa sendo expressa de forma viciada, convertendo nossa vida

pública em tirania da maioria, já que a multidão que no velho regime colonial

estava excluída do jus sufragi passava a desempenhar uma função política para a

qual não estava preparada - e que não havia reivindicado. Faltava ao povo

brasileiro a escola dos costumes e das tradições que fossem objetivados na

Constituição. As criações da Constituição de 1824 tinham natureza exógena e

exprimiam idealismos artificiais irrealizáveis pelo povo-massa porque estranhos à

sua tradição. O que houve em 1824 foi “a promulgação de uma Carta de

mandamentos que não expressavam senão ideias gerais e pré-noções aprendidas

em livros, sem força afetiva, pois ignoravam inteiramente aspectos centrais da

sociologia (tradição) da capacidade do povo brasileiro para a vida pública”34

.

Para deixar de ser uma democracia de aparências, o complexo político de

cada cidadão deveria ter superado o sentimento de localidade que faz “de cada

família uma república e de nenhum brasileiro um repúblico”. Não tínhamos,

entretanto, base culturológica para servir ao funcionamento da democracia que

formalmente organizamos. O nosso insolidarismo tem causas profundas, portanto.

Para Oliveira Vianna, a partir da Constituição de 1824, criamos um artificialismo

legislativo, uma utopia irrealizável, pois carente de sua matéria prima. Segundo o

autor, a dramaticidade da história política pátria advém da insistência do

investimento das elites em obrigar o povo-massa a praticar um direito elaborado

34

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Direito do Trabalho e Democracia Social. Rio de

Janeiro, 1948, p. 51.

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por elas e desconhecido por ele, do que concluiu que a nossa história política pode

ser definida como a história das evoluções de um povo em torno de uma ficção.

Dos argumentos de Oliveira Vianna, resta indicada a conclusão de que o

processo de formação histórica do Brasil ocasionou o insolidarismo do povo, não

sendo este, portanto, povo-nação, mas somente povo-massa. A passagem para o

Estado nação dependeria, portanto, da atuação das elites políticas. Em

contrapartida, pelo mesmo processo de formação, também as elites não teriam

encontrado terreno fértil para o desenvolvimento de uma consciência coletiva que

as capacitasse à tarefa de construir o Estado. Assim, dependeria deste último

constituir a solidariedade no povo-massa, conduzindo-o ao comportamento de

povo-nação e capacitando-o à atividade fiscalizadora da política, superando todos

os problemas que determinaram o fracasso das experiências liberais do Império e

da República.

A identificação dos particularismos como causa do fracasso da construção

da nação brasileira orienta essa ênfase na necessidade de conformação de uma

consciência dos interesses coletivos. O interesse geral deveria estar presente nas

consciências individuais, para que pudesse se sobrepor aos interesse

particulares35

. Lograda a promoção da consciência dos interesses coletivos,

nenhum dos males que condenaram as experiências de liberalismo teria lugar. O

povo estaria, finalmente, preparado para receber a institucionalidade que

depende, segundo Oliveira Vianna, da solidariedade, do civismo, da opinião

pública, da organização e de todas aquelas virtudes a que se refere repetidamente

ao longo de toda a sua obra. Em uma palavra, ter-se-ia no Brasil a organização

35

A tese de Elisa Reis acerca das origens agrárias do autoritarismo no Brasil se coaduna com este

argumento. Segundo a autora, a mudança de regime ocorrida com a queda do Império, se deu sob a

os auspícios dos argumentos liberais e abriu caminho para o interesse. Contudo, na ausência de um

poder central e mediador, se deu também a queda do equilíbrio de poder experimentado no

Segundo Império, abalado pela representação exclusiva das elites agrárias, a partir do que o Estado

foi posto a serviço de seus interesses. Deu-se a supressão da distinção entre os interesses públicos

e privados, o que implicou a posterior ampliação da esfera de atuação do Estado e impediu o

sucesso do empreendimento liberal. A manipulação do Estado em favor de interesses privados na

solução da questão da força de trabalho inaugurada pela abolição e a mobilização da população

rural para o aumento de seu domínio permitiram aos proprietários de terras que se beneficiassem

da republicanização e da democratização. Assim, a abertura para o interesse e o alargamento da

representação, ocasionaram que Estado e economia se misturassem comprometendo de maneira

fatal a experiência liberal do período. REIS, Elisa. The agrarian roots of authoritarian

modernization in Brazil – 1880-1930. Tese de doutorado, Instituto de tecnologia de

Massachussetts (MIT), Cambridge, 1979.

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social que deve anteceder a ordem liberal. Na ponta deste processo de capacitação

do brasileiro para a vida pública, o Estado perderia, naturalmente, a sua função de

promovê-la. Disto se pode deduzir a sua progressiva diminuição. Até este ponto,

contudo, seu papel é crucial. Na ausência desta consciência coletiva, caberia ao

Estado manifestá-la e, ao mesmo, tempo garanti-la e formá-la.

Onde não se verificam as virtudes cívicas necessárias à ordem política

liberal, também não há falar-se em representação política. Despreparado o povo

para responder a ela e colaborar para seu bom funcionamento, a institucionalidade

liberal é apenas on paper, a representação política demasiado restrita e o interesse

público absolutamente negligenciado. Neste sentido, o problema da vontade geral

de Rousseau, não pôde ser resolvido por Oliveira Vianna à maneira de Sieyès, isto

é, pela representação. No intuito de resolvê-lo, as medidas que levaram à

transformação da institucionalidade liberal tradicional da Primeira República na

Democracia Social posterior à Revolução de 1930 fizeram com que o Estado

amplo que se conformou desde a República para a defesa de interesses privados,

permanecesse amplo, embora, agora, orientado pelo interesse público. Tais

medidas incluíram a regulamentação das profissões, a carteira de trabalho, o

sindicato público e os mecanismos administrativos do corporativismo. Neste novo

cenário, a liberdade contratual sofreu mudanças radicais como a admissão da

existência de um contratante coletivo e a regulação das relações contratuais de

trabalho pela Justiça do Trabalho. Além disso, foi inaugurada a via da

representação funcional, a qual foi acrescida à forma tradicional da representação

política.

O autor desenvolveu o que chamou de uma teoria da legislação social

brasileira36

. A investigação desta reorientação do papel do Estado, expressa pela

intervenção legal no mercado de trabalho através da paulatina criação do Direito

do Trabalho e pela criação de “novas vias de participação”, revela a maneira

segundo a qual o projeto institucional de corporativismo de Oliveira Vianna

operou articulações entre o direito e a política na superação da questão social. A

obra Direito do Trabalho e Democracia Social dispõe as razões e a estrutura da

institucionalidade corporativista. Trata-se de uma coletânea de estudos em que

36

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Direito do Trabalho e Democracia Social. Op. cit, p.

48.

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53

está reunida a produção de Oliveira Vianna entre 1932 e 1940, período em que se

dedicou às atividades do cargo de Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho,

Indústria e Comércio. Nesse período, havia forte movimentação popular resultante

da chamada “questão social”, a qual o autor entendeu como um conflito a ser

contemporizado por uma expressão do Estado que fosse distinta da policial.

Oliveira Vianna sabia que havia uma distância real de um número altíssimo de

pessoas do direito e da política. E compreendeu a questão social como mais uma

manifestação do insolidarismo do povo, insuflado por novas modalidades de

idealismo em um momento em que se encontrava com alguma organização.

Portanto, para o autor, a questão sociológica do insolidarismo do povo

brasileiro antecede os conflitos decorrentes da luta dos trabalhadores - embora

esta última lhe atribua grande urgência. Sendo a solução vislumbrada pelo autor

diretamente ligada à percepção do insolidarismo como problema central, talvez se

possa identificar um duplo significado para a denominação “legislação social”

conferida à Legislação Trabalhista. Esta seria instrumento para a superação da

questão social e, ao mesmo tempo, dela dependeria para atingir o objetivo de

organização social do povo brasileiro em bases solidárias.

Na referida obra, o autor traça as linhas gerais de esclarecimento das

razões sociológicas, jurídicas e políticas da legislação social brasileira,

posicionando a legislação do trabalho como expressão da política, responsável

pelo renascimento do “espírito de serviço”, que se fez necessário em decorrência

dos tenebrosos acontecimentos que tiveram lugar a partir do advento do regime

industrial. A condição do trabalhador, especialmente o operário fabril, nesses

começos de capitalismo industrial, era equiparada à das máquinas por ele

conduzidas, de ambos os quais deveria ser extraído o máximo de lucro com o

mínimo de despesas, o que gerou as consequências massacrantes que levaram à

necessidade de um novo papel para o Estado que, rompendo com os preceitos

doutrinários da liberdade econômica, resolveu tomar as massas trabalhadoras sob

sua proteção.

Essa concepção de trabalhador como instrumento cuja capacidade

produtiva deveria ser explorada, decorrente do paradigma do indivíduo, aponta

para um tipo de relação marcada, segundo o autor, pela “distância entre dois

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54

mundos”. Tal distância deveria ser necessariamente superada, não só para fins de

solucionar a questão social, mas pela articulação que esta relação mantinha com o

diagnóstico do insolidarismo. Como não importava, “em sua dignidade

fundamental de pessoa humana, o trabalhador só era incorporado no mundo do

patrão como instrumento da produção, ocupando, portanto, um infra-mundo37

, em

contraste com o super-mundo dos ricos”38

. Identificando a impossibilidade de que

estes mundos se aproximassem por si mesmos, Oliveira Vianna vislumbra a

necessidade de incorporação das classes produtoras no Estado, aplicando à relação

entre capital e trabalho o diagnóstico que levou à sua concepção pedagógica de

Estado.

Por um lado, observou que, enquanto os ricos mantinham monopólio

absoluto de todos os favores e benesses da civilização e da cultura, “a ralé

fatigada, andrajosa e esgotada pelo trabalho e pela subalimentação” era mantida

em condições de precariedade insuperáveis, determinadas pela própria “força-

empuxo” que sobre os trabalhadores exercia a vida no “infra-mundo”. O infra-

mundo ficava do outro lado da vida, longe demais do universo do patrão para que

ele pudesse ouvir, entender ou atender as reivindicações de justiça dos

trabalhadores. Por outro, o autor tinha claro que o povo, concebido como

composto de empregados e empregadores, todas as classes, inclusive as ricas,

mantinha-se afastado do mundo do governo. Cabia ao Estado, portanto, um

objetivo maior do que o da superação da questão social. O objetivo de Oliveira

Vianna foi o de inscrever os problemas que lhe foram contemporâneos no objetivo

mais amplo da necessidade de organização social do povo brasileiro segundo

bases solidárias. Para tanto, cabia ao Estado operar a aproximação das classes

produtivas pelo corporativismo, envolvendo o povo de maneira integral na

condução dos negócios do governo e gerando, sob a condução do chefe de Estado,

a democracia social.

37

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Direito do Trabalho e Democracia Social. Op. cit.:

“(...) vivendo em mansardas escuras, carecidas dos recursos mais elementares de higiene

individual e coletiva; oprimida pela deficiência dos salários; angustiada pela instabilidade do

emprego; atormentada pela insegurança do futuro, próprio e da prole; estropiada pelos acidentes

sem reparação; abatida pela moléstia sem socorro; torturada na desesperança da invalidez e da

velhice sem pão, sem abrigo, sem amparo (...)”. p. 24. 38

Ibidem.

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55

O quadro opressor presente em todo o mundo capitalista industrializado,

levou-o à percepção de que “foi a dramaticidade dos fatos que forçou o Estado a

intervir”39

. De início, protegendo o operário contra o patrão, pondo “termo às

iniqüidades dos patrões na utilização desta máquina animada e consciente, que era

o trabalhador”. Contudo, embora protegido, o trabalhador não modificava sua

condição de simples instrumento da produção, “máquina viva a funcionar ao lado

de máquinas inanimadas”. O objetivo inicial do Estado foi o de “impedir o

desgaste desta máquina viva, regulando o tempo de sua utilização e sua ração de

combustível”40

.

Mesmo em fases ulteriores de sua evolução, a política protetora nunca

deixou de considerar o trabalhador como instrumento da produção. A proteção do

trabalhador dava-se, portanto, em seu sentido estritamente material, procurando

estender às máquinas vivas, das quais os patrões não eram proprietários, os

cuidados de conservação que eles tinham com as máquinas inanimadas, as quais

suscitavam os carinhos naturais de todo proprietário. O trabalhador deveria ser

preservado para que fosse preservada a sua força de trabalho e,

consequentemente, a sua capacidade de produção: “era a preservação ou a

intensificação da capacidade produtiva do trabalhador o metro que media o

“quantum” da proteção concedida pelo Estado”41

. Mesmo o sindicato e o direito

de greve o Estado reconhecia aos trabalhadores, mas como meios complementares

para a preservação da capacidade produtiva42

. Assim, os dois mundos criados pelo

capitalismo industrial, o dos proletários e o da burguesia, permaneceram

separados “pelos preconceitos de superioridade e dos sentimentos de desprezo de

um lado; das reações correlativas de hostilidade, de revolta e de ódio, de outro”.

O Estado de então reproduzia na proteção a mesma percepção do

trabalhador que massacrava. Podia ser explorado e deveria ser preservado pelo

39

Idem. p. 25. 40

Idem. p. 27: “(...) era sempre a preocupação exclusiva de assegurar, pela proteção do Estado, em

face dos patrões, a conservação do trabalhador na plenitude da sua eficiência como agente da

produção.” 41

Idem. p. 27: “esta preocupação de preservar a capacidade produtiva do trabalhador é que levava

o Estado, por exemplo, à proibição ou à regulamentação do trabalho dos menores. Ela que o

levava à regulamentação da duração do trabalho, estabelecendo o padrão das 8 horas, o repouso

hebdomadário, as férias anuais”. 42

Idem. p. 27: “Ela que o levava à decretação dos salários mínimos, ás escalas móveis de salários

e ao reconhecimento do sindicato e do direito de greve como meios complementares, de que se

armavam os trabalhadores para atingirem, por sua iniciativa, estes objetivos fundamentais”.

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mesmíssimo motivo: porque era instrumento de produção. Os critérios de

interesse público mobilizados para a preservação do trabalhador diziam respeito

apenas à manutenção de sua capacidade produtiva com vistas à preservação do

desenvolvimento econômico do país. A inserção do tema da diferença entre o

trabalhador e as demais máquinas necessárias ao processo de produção conta com

a elevação desse “instrumento” ao estatuto de pessoa humana, segundo Oliveira

Vianna, porque criada por Deus à sua imagem. Assim, identificando como um

absurdo fundamental a equiparação operada pela política estritamente protetora

entre máquinas, homens e animais, Vianna defende a proteção do trabalhador não

por sua humanidade, mas pelo reconhecimento de que ela foi concedida por Deus

da mesma maneira que foi a do patrão. Tendo sido feitos da mesma argila, ambos

possuem a dignidade da pessoa humana que nem máquinas nem animais

possuem. E é nela que “se patenteia a insuficiência da velha política social,

exclusivamente objetivada na proteção”, “que exprime a mentalidade do século

XIX, totalmente distinta da mentalidade do século XX, sobretudo em sua fase

posterior à grande guerra”43

.

A nova política social se conformava, portanto, com a doutrina social da

Igreja Católica, formulada na encíclica Rerum Novarum, escrita pelo Papa Leão

XIII em maio de 1891, e na encíclica Quadragésimo Anno, escrita pelo Papa Pio

XI, em 1931, por ocasião dos quarenta anos da encíclica anterior. O que a

caracteriza é a preocupação de restaurar no “trabalhador ou no operário a sua

dignidade de pessoa humana”. A proteção da pessoa se afina com alguns dos

objetivos da “velha política”, dando, contudo, um “outro significado mais alto e

dignificante à obra do resguardo e tutela do trabalhador” do que a proteção

fundada no paradigma do indivíduo.

Esteve inspirada a nova política social também nas corporações da Idade

Média, de sorte que, com o resgate da dignidade da pessoa, pretendia resgatar

também o espírito de igualdade e justiça presente nas relações entre operários e

patrões que dominava as corporações naquele tempo, em que “o sentimento de

colaboração e solidariedade” decorrente de serem quase nulas as distâncias sociais

entre as classes, envolvia um e outro “na mesma atmosfera de fraternidade”, já

43

Idem. p. 29.

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57

que não havia barreiras insuperáveis entre a condição de operário e a de patrão,

“sendo este último avatar para onde tendia a evolução ascensional daquele”44

.

Resolvido o problema de elevar o trabalhador à dignidade colocando-o em

condições de conforto material e segurança, através da legislação trabalhista e

previdenciária, competia à política social libertar o trabalhador do insulamento em

que se encontrava, encerrado em sua classe, vivendo em seu “infra-mundo”, ainda

como se fora uma raça diversa. Cumpria instituir, portanto, um “regime de

permeabilidade” entre as diversas camadas sociais, de modo a permitir a livre

circulação, por todo corpo social, das capacidades existentes na massa

trabalhadora. À “organização da capilaridade social” do trabalhador, que

possibilitaria à sua ascensão social, não bastava a moradia, o ensino técnico que

lhe conferiria expertise em seu ofício, as bolsas que permitiriam seu acesso à

universidade, se ele seguia completamente alijado de todas as magistraturas do

Estado. Sequer era o bastante que lhe fosse assegurado, pelo sufrágio universal, o

direito de contribuir para a constituição dos poderes públicos pelo exercício do

voto; era necessário tornar possível sua participação na direção dos negócios do

Estado - sem que, para tanto, fosse obrigado a renunciar a sua profissão, ou

abandonar sua classe, mas, ao contrário, como representante dela.

Como Oliveira Vianna entendia o povo como massa desarticulada, sem

organização própria, via negativamente sua diluição nos quadros dos partidos

políticos e, consequentemente, não poderia entender que o objetivo de

aproximação entre o povo e o Estado pudesse se dar pela representação política

tradicional. Por este motivo, o objetivo de aproximação entre povo e Estado

deveria contar com vias alternativas de representação de interesses. Neste sentido,

foram realizadas medidas com o propósito de dar aos trabalhadores, pela

regulamentação do trabalho, pelas instituições de previdência social, pelos

sindicatos armados de representação pública e pelas obras sociais que terão que

constituir e manter, as condições materiais e morais de segurança e conforto, de

tranquilidade e justiça, de independência e dignidade para, então, chamá-los a

colaborar com o Estado, pois havia sido dado ao seu voto e ao dos patrões o

mesmo peso.

44

Idem. p. 30.

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58

Os sindicatos funcionariam como “verdadeiras escolas de educação moral

e de educação cívica”, educando o homem brasileiro no sentimento da

solidariedade social e na compreensão do interesse coletivo. Sendo estes pequenos

grupos compostos de membros muito conscientes de seus interesses comuns,

configuravam-se como verdadeiras democracias em miniatura. Assim, aquela

dissociação entre sindicatos e partidos políticos deveria ser operada para preservar

a pureza dessa ligação entre os membros, impedindo a influência dos interesses

pessoais representados pelos partidos, em oposição ao senso de bem comum e

interesse geral que só seria atingido a partir dessa primeira expressão local.

Parte desse plano seria coberta de maneira objetiva, a partir do aumento e

complexificação dos poderes e atribuições que, a exemplo do poder de tributar,

foram concedidos aos sindicatos com a Constituição de 1937. Imediatamente, a

educação operada pelo sindicato correspondia à aplicação das reservas sindicais,

fruto das taxas arrecadadas de todos os profissionais da categoria, em instituições

escolares para a educação técnica e profissional das respectivas categorias. Se, por

um lado, nesse ponto se encontrava a chave para o problema da educação

profissional do povo, esta não era senão uma expressão pontual da vocação muito

mais ampla dos sindicatos para a educação, que, como mencionado, correspondia

à possibilidade de criar no povo o sentido de solidariedade.

A separação, fundamental ao “velho Estado Democrático”, entre a esfera

do direito público e a esfera do direito privado operava a mesma separação entre o

Estado e o povo. Como só podia atingir a esfera do Estado pela representação

política, dos partidos, o povo esteve ausente do Estado. Era este mesmo o objetivo

da representação. É provavelmente por isso que toda a referência que o autor faz

ao “velho Estado” tem o mesmo tom de referência a um cenário que padece de um

déficit democrático. A estrutura legislativa do “velho regime” lhe parecia

extremamente simples e se lhe apresentava composta dos poderes políticos como

delegações das “oligarquias politicantes”, e da força executiva composta da

burocracia constituída pelos recomendados das oligarquias. Nessa estrutura

simples, o governo era espaço de defesa de interesses privados de poucos.

Segundo seu ponto de vista, antes de haver no povo a solidariedade social

que o levará a ter por objetivo o bem comum e os interesses coletivos, é

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necessário que as menores células de expressão de interesses coletivos, as das

categorias profissionais, sejam orquestradas pelo Estado, como um primeiro passo

no caminho que conduzirá, finalmente, à “República de repúblicos”45

. A relação

entre o povo e o Estado, quando resumida ao voto periódico, isto é, à

representação política da ortodoxia liberal, ocasionava propositadamente a

ausência do povo no Estado. Como na representação política só eram

representados os interesses de uma única categoria, a dos políticos profissionais,

todas as demais classes e profissões ficavam sem representação.

O diagnóstico de que o povo estava afastado do governo apontava para o

fato de que o Estado que se autodenominava liberal-democrático, estava fundado

na ausência do povo e interessado na manutenção desta ausência. Portanto, mais

do que uma crítica à distância entre povo e governo em um regime que se diz

liberal-democrático, é subjacente a toda a sua crítica à República um certo clima

de que ali foi utilizada a defesa de valores que também são os dele, mas de forma

45

Assim, a obra iniciada na Revolução, desenvolvida na Constituição de 1934 e definida

claramente na Constituição de 1937 é a da “introdução das forças vivas do povo na estrutura do

Estado”. Para tanto, ampliou-se o quadro da representação popular “instituindo-se novas formas,

mais significativas e mais compreensivas de representação do povo, como sejam a representação

sindical, a representação profissional e a representação dos interesses.“. Como campo de exercício

destas novas formas de representação foram adotadas a técnica das autarquias administrativas, as

instituições para-estatais e as organizações corporativas, por meio das quais, o povo-massa e o

povo-burguesia (formas insolidárias das várias classes do povo) podem partilhar diretamente do

governo e da administração. Com estas medidas, imensos setores de interesse foram submetidos ao

regime das organizações corporativas e às autarquias administrativas, que implicam numa forma

de representação, a profissional ou sindical, mais representativa do que a representação política ou

de partido. A intervenção das classes produtoras, bem como das profissões independentes ou

liberais operada a partir da representação profissional se realizou através de instituições

consultivas, pré-legislativas, jurisdicionais, controladoras ou administrativas. Todas estas

instituições passaram a conter nos seus quadros de direção e administração representantes do povo

vindos das classes e profissões organizadas, escolhidas nas assembleias sindicais. O povo pôde

então colaborar na administração pública, em função dos poderes que lhes foram delegados pelo

Estado. Neste cenário, os delegados das categorias profissionais passaram a administrar e regular

diretamente seus próprios interesses e relações.

As duas instituições, identificadas pelo autor como principais, aquelas capazes de revelar a medida

dessa participação são as instituições de previdência e as associações sindicais. Estas, a exemplo

das Caixas de assistência executam, por delegação, serviços do Estadoe são dirigidas por Juntas ou

Conselhos Administrativos compostos por representantes do Estado e representantes das classes

interessadas. As Associações sindicais, cujo âmbito de poderes privativos foi ampliado pela

Constituição de 1937, elevaram-se a instituições de direito público capazes de impor contribuições

à totalidade das categorias e de firmar convenções coletivas, obrigatórias, que representam

verdadeiros regulamentos profissionais, com a mesma força executiva das leis elaboradas nas

assembléias legislativas, configurando-se em verdadeira função legislativas, em que as classes

trabalhadoras legislam sobre seu bem comum. Talvez, pelas novas instituições sociais e

corporativas, não possamos identificar novas formas associativas, como quis Oliveira Vianna. Mas

deste seu projeto constam, certamente, novas formas de representação, em que Estado e Povo

estiveram mais próximos no desempenho da administração e do governo.

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a abrir caminho para a proteção de determinados interesses. Uma espécie de

fraude, ou de estelionato político46

.

Essa estrutura, por institucionalizar as relações sociais, é frequentemente

compreendida como a cooptação estatal de formas espontâneas da manifestação

das demandas sociais. Tal cooptação teria por efeito um exacerbado

fortalecimento do Estado que, pela outorga de direitos sociais e pela representação

funcional, provocaria o nocivo resfriamento da vida política nacional, isto é,

ensejaria um povo politicamente desanimado, acostumado a receber do Estado

sem demandar e, no limite, ainda incapacitado para o exercício de sua vida

política de forma autônoma47

. Nesse sentido, além de não contar com as soluções

liberais canônicas da representação política tradicional e da regência

mercadológica da sociedade, a institucionalidade corporativista impediria que o

liberalismo viesse a se desenvolver. Apesar do breve período democrático

inaugurado em 1946, que manteve em diversos aspectos o modelo corporativo48

,

os desdobramentos autoritários ulteriores serviriam para confirmar este

argumento.

Contudo, o Estado forte e ingerente, tal como concebido por Oliveira

Vianna, nasce da necessidade de suprir a ausência de consciência coletiva que, por

sua vez, é necessária ao bom funcionamento da ordem liberal. Ocorre que a

identificação dos particularismos como causa do fracasso da construção da nação

brasileira orientou aquela ênfase na necessidade de conformação da consciência

dos interesses coletivos e numa visão consensual de Estado, em que o conflito

46

A expressão foi cunhada por Joaquim Nabuco, em NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 9. 47

Na análise de Wanderley Guilherme dos Santos, o projeto institucional de Oliveira Vianna criou

o que chamou de “cidadania como viés”. Quando nas primeiras décadas do século XX o Poder

Público reconheceu que a problemática social não era estritamente privada, passou a organizar

tentativas de proteção social em termos de categorias profissionais, seguindo os resíduos

ideológicos da ordem pré-mercantil. Embora o movimento de associação por profissões seja

espontâneo, sua apropriação pelo Estado, própria do corporativismo, teve por conseqüência a

partilha profissional da população para efeitos de direitos perante o Estado e a criação do que

denominou “cidadania regulada ” - um sistema de estratificação ocupacional definido por norma

legal. Eram cidadãos, portanto, aqueles membros da comunidade cuja ocupação era reconhecida e

definida pela lei, cuja evidência jurídica fundamental era a Carteira de Trabalho, compreendida

pelo autor como uma certidão de nascimento cívico. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “A

práxis liberal e a cidadania regulada”. Op. cit. 48

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2009, p. 399.

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deve ser neutralizado em favor da promoção da solidariedade. Tal Estado não tem

como fundamento uma concepção de política como interesses em conflito.

A segunda tradição, a “americanista”, por seu turno, nasceu com Tavares

Bastos (1839-1875), autor, entre outros, de Os Males do Presente e as Esperanças

do Futuro (1861), Cartas do Solitário (1862) e A Província: estudo sobre a

descentralização do Brasil (1870). Afinado com a tradição inaugurada por

Tavares Bastos, Raymundo Faoro, autor do clássico Os Donos do Poder (1958),

participa do diagnóstico do país elaborado por Tavares Bastos, seja na

desqualificação das revoltas regenciais e na crítica aos liberais do Império, seja no

juízo depreciativo que dirige à história política pátria49

. O viés culturalista da

interpretação de Faoro, sugere a reprodução de uma mentalidade política oposta à

da matriz da anglo-saxã. No lugar do individualismo possessivo do liberalismo

anglo-saxão, uma espécie de ideal de justiça e de vontade geral.

Segundo Faoro, a ausência do liberalismo na história do país “estagnou o

movimento político, impedindo que, ao se desenvolver, abrigasse a emancipação,

como classe, da indústria nacional. Seu impacto revelaria uma classe, “retirando-a

da névoa estamental na qual se enredou”. Essa estagnação provocou, segundo ele,

a interrupção da luta do produtor na crise do sistema colonial e do produtor

quando a Revolução Industrial chegou ao país. Ao contrário, o desenvolvimento

autêntico do liberalismo no país poderia ter ampliado o campo democrático.50

Se

isso tivesse acontecido, “o Estado seria outro, não o monstro patrimonial-

estamental-autoritário que está vivo na realidade brasileira”.

O resultado da incongruência da dinâmica do pensamento político é que

todas as fases suprimidas “se recompõem como substitutos numa realidade

absolutista, ainda que reformista, neopombalina em um momento, industrialista

em outro, nunca com os olhos voltados ao povo brasileiro, primeiro no respeito

aos seus direitos, depois às suas reivindicações sociais”. Para Faoro, o caminho

49

Ibidem. 50

“Por meio da representação nacional – que é necessária ao Liberalismo – amplia-se o território

democrático, e participativo, conservando, ao superar, o núcleo liberal. Chegar-se- ia a um ponto

em que o que fosse democrático pressupusesse o espaço dos direitos e garantias liberais,

ampliáveis social- mente. O socialismo, numa fase mais recente, partiria de um patamar

democrático, de base liberal, como valor permanente e não meramente instrumental”. FAORO,

Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro?. Estud. av., São Paulo, v. 1, n. 1, p. 9-

58, Dec. 1987.

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que leva à modernidade é o mesmo caminho no qual trafega a cidadania, uma via

“que só os países modernos e não modernizadores, percorreram”, e que não tem

atalhos: “Os atalhos estão cheios de atoleiros de autocracias”51

.

A alternativa às tentativas claudicantes de alçar o moderno pela

modernização, isto é, levando em conta a realidade sobre a qual se desejam ver

assentadas as instituições modernas, seria a da ruptura com o passado que

produziu este real indesejável. Importaria quebrar os “imperativos das

circunstâncias”52

, o que “implicaria a adoção de estímulos externos ao real

contingente, obrigando-o à mudança pela livre comunicação com os povos

desenvolvidos e pelo livre comércio de mercadorias. A reforma do Estado

antecederia a da sociedade civil”53

.

Segundo Faoro, após a Revolução de 1930, o tema do liberalismo, em

razão da organização democrática do acesso ao poder político que se supunha que

ele proporcionava, foi o que garantiu que a ruptura institucional não se vertesse

em uma espécie de resposta vingativa dos estados que haviam sido excluídos do

pacto do café-com-leite. Ao contrário, os governos de Minas Gerais e do Rio

Grande do Sul esperavam voltar ao funcionamento democrático54

.

Tampouco a sociedade se encontrava em receptiva à atualização do

pactuado na Primeira República. O rumo a ser assumido pela política deveria ser

outro, deveria contar com a necessidade de transigir com os demais estados e de

manter atenção sobre a movimentação das camadas populares55

.

51

FAORO, Raymundo. Apud. COMPARATO, Fábio Konder. Raymundo Faoro historiador.

Estud. av. 2003, vol.17, n.48, pp. 330-337. 52

Sempre que conveniente, será mais ou menos esta a estrutura da argumentação dos

“americanistas” contemporâneos, seja em sua expressão política, científico social ou jornalística. 53

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. “Americanistas e Iberistas: a polemica de Oliveira Vianna

com Tavares Bastos. In: A Revolução Passiva. Rio de Janeiro: Revan, 1997. p. 169. 54

“Rondando as ante-salas do palácio presidencial, o liberalismo dos governos de Minas Gerais e

do próprio Rio Grande do Sul, os aliados da aventura, queria, uma vez realizada a reforma política,

retornar ao jogo democrático. Anular os dois principados, para inaugurar um terceiro — o do

extremo sul —, seria empresa impossível: as cinzas de Pinheiro Machado não renasceriam da

frustração.” In: FAORO, Raymundo. Apud. COMPARATO, Fábio Konder. Raymundo Faoro

historiador. Op. cit. p. 331. 55

“O revide à exclusão do pacto café-com-leite não encontrava nenhuma tolerância, numa

sociedade habituada à política dos despojos. O rumo político-social era outro e exigia medidas de

índole mais profunda.” In: Idem. p. 332.

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63

Embora “discreto”, o espaço aberto em 1930 não permitia a mera alteração

dos atores. Ao contrário, impunha reformas56

. Disto estava ciente o ator que,

“silencioso”, se erguia como um poder cuja potencialidade escapou à maior parte

de seus contemporâneos. E que será, segundo Faoro, por omissão das agências

capazes de contê-lo, a principal fonte do descaminho do liberalismo na década de

193057

.

Faoro concede a Vargas uma espécie de raiz liberal, positivista e não

rousseauniana, que lhe imprimiu uma forma tuteladora de ser liberal. Suas

atividades se orientariam, assim, pela ideia de que cabe ao governo prestar aquilo

que à sociedade caberia fazer. De sorte que a soberania popular seria reconhecida,

dada e, depois, garantida por ele – restando também o seu destino, em que pese

tanto a sua gestão quanto a sua existência – à discricionariedade do governo58

.

Por esse motivo, a solução para a questão social seria a incorporação das

demandas às instituições do Estado. Ao fazê-lo, o governo as atendia ao mesmo

tempo em que as neutralizava59

.

Em nome do progresso nacional, aos já não tão novos atores deveriam ser

reconhecidas suas necessidades, mas não o acesso ao poder político. Entendia-se,

então, que fazê-lo seria o mesmo que franquear passagem à destrutividade

desordeira imposta pela falta de consciência de seus próprios interesses que

caracterizava as camadas médias e populares60

.

56

“A reorganização política esvaziara o poder, com o propósito de reformá-lo. No discreto vácuo

aberto [...]”In: Idem. p. 333. 57

“Esta missão, o presidente provisório, entre transações e compromissos, hesitações e recuos, a

compreende cautelosamente, passo a passo.” In: FAORO, Raymundo. Apud. COMPARATO,

Fábio Konder. Raymundo Faoro historiador. Op. cit. p. 334. 58

“A raiz liberal da formação do ditador — talvez mais viva pelo condicionamento político do que

pessoal — não admitia o desvario das massas desaçaimadas, que engoliriam toda a ordem social,

nem o domínio rígido do nacionalismo direitista. Liberal, sim, mas de teor tutelador, de caráter

positivista e não rousseauniano, com a soberania popular como pressão a ser atendida pelo

governo, guardando este a liberdade de selecionar as reivindicações.” Ibidem. 59

“Os problemas sociais deveriam ser incorporados ao mecanismo estatal, para pacificá-los,

domando-os entre extremismos, com a reforma do aparelhamento, não só constitucional, mas

político-social.” In: Ibidem. 60

“Mudança para realizar o progresso nacional, sem a efetiva transferência do poder às camadas

médias e populares, que se deveriam fazer representar sem os riscos de sua índole vulcânica, listas

correntes ocupam o cenário, na verdade, antes que assumam consciência de seus interesses,

antecedendo às transformações econômicas que justifiquem seu poder.” In: FAORO, Raymundo.

Apud. COMPARATO, Fábio Konder. Raymundo Faoro historiador. Op. cit. p. 335.

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Mover o país para frente e neutralizar a natureza da sociedade, tais eram as

justificativas para um Estado “paternalista” operacionalizado por burocracias sem

fidelidade de classe. Estava aberto o caminho para a forma ditatorial de tendência

fascistizante que governaria o país cinco anos depois61

.

O período discricionário de reformas, embora devesse, para os membros

do 3 de Outubro, durar uma década, se encerraria apenas quatro anos após a

Revolução, em 1934, com a constitucionalização da nova ordem. Com isto, estaria

acabado o “primado militar disperso”, substituído pelo “primado da organização

coesa”, já que, com a Constituição, estariam sanados os conflitos gerados pela

composição heterogênea das forças que conduziram a Revolução62

. Entretanto, a

fase de saneamento e exceção, ainda que reduzida em face das expectativas dos

tenentes, delineara um Estado condutor da economia e da política, espraiando para

além da constitucionalização seu caráter tutelador63

.

O “resíduo liberal” que não desaparecera, fixado nos direitos e garantias

que desaguariam na Assembleia Constituinte, serve à interpretação do período

discricionário. A “ditadura de emergência” serviria à necessidade de encaminhar

as reformas políticas, como a liberação do voto perpetrada pela promulgação do

Código de 1932, impossível sem que fossem contidas pelo Governo Provisório as

milícias estaduais. Não obstante, esvaziado o coronelismo, fortaleceu-se o poder

central, o qual continuaria a se ampliar com o fito de operar novas reformas,

muitas das quais “coloridas ingenuamente de reivindicações de classe média”. A

“dualidade” operada pelas reformas que visavam ao restabelecimento atualizado

do sistema liberal por meio de um Estado forte desagregaria não só as oligarquias,

61

“Daí, na perspectiva do poder, a necessidade de um Estado orientador, alheado das competições,

paternalista na essência, controlado por um líder e sedimentado numa burocracia superior,

estamental e sem obediência a imposições de classe. Repelido o comunismo, duramente

combatido, afastadas as proposições socializantes, o rumo ditatorial será ajudado pela ideologia

fascistizante, num aglomerado confuso de tendências e alas.” In: Ibidem. 62

Este trânsito vai de 1930 a 1934, quando Góis Monteiro chega ao Ministério da Guerra,

encerrando o primado militar disperso, para inaugurar o primado da organização coesa, depurada

de suas vacilações internas. O processo revolucionário, contudo, havia de durar um decênio —

prevê o chefe militar da revolução. 63

“As transformações e as reformas se enquadrariam no nacionalismo econômico, "dirigido por

um Estado cada vez mais fortalecido.” In: Ibidem.

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65

como o Clube 3 de outubro e a Constituição, fortalecendo o Estado e, finalmente,

dando passagem a um sistema ditatorial através da ordem constitucional64

.

A ideia de liberalismo como resíduo e a concepção de um efeito ditatorial

de reformas constitucionalizantes são chave para a compreensão de Faoro acerca

das escolhas presentes ao longo da trajetória política brasileira. A opção pela

modernização para chegar ao moderno jamais daria certo e sua clara ocorrência na

década de 1930 havia frustrado mais uma janela de oportunidade de ruptura com o

passado. Daí a apreciação do autor acerca do significado da Constituição de 1934

como não mais que um equívoco da direção de um Estado orientador65

.

Equívoco, talvez, apenas porque o chefe de governo logo constataria a

“necessidade” de que fosse substituída. No mais, a Constituição previra formas

suficientes para que o Estado fosse cada vez mais o croupier da modernização

conservadora. Ao incluir nas formas de acesso ao poder político a representação,

garantiu, pela fachada liberal, a presença dos representantes classistas que, para

Faoro, seriam verdadeiros “agentes do governo no seio do Poder Legislativo”66

.

De fato, sequer era somente esta a garantia da ditadura na ordem constitucional

em elaboração. Os militares se mantiveram a postos para garantir que os

“banquetes” de direitos da constituintes “não se transformassem em regabofes”.

Uma “democracia vigiada” “sob fuzil engatilhado”67

.

Para Faoro, a representação profissional em face da ditadura maquiada de

liberalismo deixou o “espaço vazio” para o Estado. Em quatro anos, ele não

64

“O resíduo liberal, fixado nos direitos e garantias, não desaparece, desembocando logicamente

na assembléia constituinte. A ditadura seria de emergência, para o encaminhamento das reformas

políticas, com a libertação do voto, cuja condição prévia seria a jugulação das milícias estaduais.

Com isso o coronelismo e as oligarquias se esvaziariam, dando margem a que se fortalecesse o

poder central, para as outras reformas, de maior profundidade, muitas delas. Essa dualidade —

reformas para restabelecer o sistema liberal e reformas sociais por meio de Estado forte —

desagregou o Clube 3 de Outubro e as Legiões, em favor, na superfície, da ordem constitucional,

e, no fundo, do sistema ditatorial.” In: Ibidem. 65

“A direção estatal, com o executivo orientador e reformista, predominou na estrutura política, na

qual a Constituição de 1934 foi apenas um equívoco.” In: Ibidem. 66

“A fachada liberal democrática, para persistir, deveria manter aprisionadas as forças

estadualistas por meio de representantes classistas, na verdade agentes do governo no seio do

Poder Legislativo.” In: Ibidem. 67

“Juarez Távora, tenente já promovido a major, mostra a precariedade do ensaio constitucional à

vista: "Nós, militares, não devemos disputar lugares à mesa do banquete onde se sentam os

políticos vitoriosos. Mas cumpre-nos, como ineludível dever de patriotismo, continuar de

baionetas caladas, para impedir que aqueles banquetes se transformem em regabofes". Sistema

constitucional tolerado — este o esquema possível — sob a vigilância do fuzil engatilhado.”

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dependia de mais ninguém: orquestrava a base sindical através da administração

institucional dos conflitos; submetia a economia cafeeira e a indústria, quer pelo

controle da representação política, quer pelo fomento ao crédito ou pela criação da

siderurgia de natureza estatal. Seu mecanismo de controle deu ampla passagem

para um Estado patrimonialista que se reestrutura rapidamente, à revelia de

partidários e adversários68

.

O poder de Vargas se erguera sobre classes, partidos, facções e Exército

sem que quase nenhum ator se desse conta. Ninguém, senão Getúlio Vargas,

vencera a Revolução69

. Ainda assim, uma Constituição inibiria essa forma

controladora de gestão de interesses. Em 8 de setembro de 1933, o ainda dual

ditador aconselharia os constituintes a atentar para o “fato incontroverso" de que o

individualismo e a democracia liberal encontravam-se em decadência em toda

parte, cedendo lugar a governos de autoridade cuja necessidade se impusera como

consequência “da necessidade de atender maior soma de interesses coletivos e de

garantir estavelmente, sem o recurso das compressões violentas, a manutenção da

ordem pública, condição essencial para o equilíbrio de todos os fatores

preponderantes no desenvolvimento do progresso social”. Mas a obra da

Constituição insistiu em atender reivindicações da Aliança Liberal e, embora

tenha “reduzido o liberalismo a uma franja”, seria substituída pouco tempo

depois.

A Constituição de 1934 deveria pôr termo ao movimento revolucionário e

não poderia fazê-lo sem apaziguar as demandas da Aliança Liberal. Entretanto, a

essa altura, “o banquete se invertera” e dele, segundo Faoro, “o liberalismo era

68

“com a supremacia do Estado, sem dependência exclusivamente militar, sustentado nas

organizações sindicais oficiais, na economia dirigida por órgãos de toda casta, assessorado por

conselhos técnicos de índole vária, e, sobretudo, subordinando a política cafeeira a um órgão

federal. Para apoiar o mecanismo de controle, a indústria seria uma dependência do governo, quer

pelo fomento ao crédito, quer pela criação estatal da siderurgia. Trilhando a estrada real, que seus

tutelados e adversários deixam aberta, o ditador segue, aparentemente solitário, ao encontro da

nação. Um sistema estamental, com a reorganização da estrutura patrimonialista, ocupa o espaço

vazio, rapidamente, diante dos olhos atônitos de camaradas e inimigos.” In: Ibidem. 69

“Um poder se alevanta, sobre as classes, sobre os partidos e facções, sobre o Exército e o povo,

com um líder que poucos vêem. Ao tomar posse do governo, não deixara ilusões: "No fundo e na

forma, a revolução escapou [...] ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis

venceram as classes armadas, nem estas impuseram àquelas o fato consumado. Todas as categorias

sociais, de alto a baixo, sem diferença de idade e sexo, comungaram num idêntico pensamento

fraterno e dominador: — a construção de uma pátria nova, igualmente acolhedora para os grandes

e pequenos, aberta à colocação de todos os seus filhos" In: Ibidem.

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67

apenas a toalha”70

. Uma ampla definição de direitos, orientada por uma clara

desconfiança das tendências do governo não resistiria ao nacionalismo autoritário

que se avizinhava71

.

As forças em disputa se cancelavam mutuamente. Integralistas, herdeiros

da direita nacionalista da década de 1920, embora tivessem alcançado expressão

nacional liam o liberalismo da Constituição como “anarquismo latente, caldo

propício ao golpe comunista”72

. De outro lado, o radicalismo de esquerda não

seria uma ameaça real, mas mera peça do jogo. Ao gerar uma “área de reação”,

composta por ex-tenentes, intelectuais comprometidos na denúncia do atraso

social e trabalhadores, dera passagem à conquista do poder. As reformas

constitucionais e a lei de segurança, votadas para enfrentar os perigos do

radicalismo esquerdista e do avanço do comunismo, “em lugar de fortalecer o

movimento integralista, dotavam o chefe do governo, eleito para o quatriênio

1934-38, dos meios à escalada ao poder”. Como não cabia recurso à

representação, a qual fora esvaziada pelo novo e enfraquecido estatuto da arena de

disputa pelo poder político que havia sido colonizado pelo Executivo, através da

representação profissional, não havia espaço para a dissidência.

Entretanto, não se trata de pensar apenas no sucesso da obra de um

homem, mas no de uma escolha: a da dualidade da modernização conservadora. O

resultado ditatorial após cinco anos de revolução não seria o mesmo sem o

perverso efeito autoritário da dualidade contida na Constituição de 1934,

notadamente na inclusão de um elemento de Executivo no interior do Legislativo.

70

“A Constituição de 16 de julho de 1934 deveria pôr termo ao movimento revolucionário. As

reivindicações liberais, com o matiz que vinha das contestações da década de 20, foram atendidas.

O pleito seria livre, formalmente livre, com a supervisão judicial e o voto secreto. Na realidade,

com as interventorias e os partidos manipulados pelos agentes do governo federal, o coronelismo,

sem desaparecer, se anulara. Ele se acaudilhara, seguindo suas diretrizes íntimas, aos governos

estaduais, que podiam lhe negar pão e água. A obra constitucional, desprezando o talvegue por

onde correram as águas nos quatro anos revolucionários, conduzidas por Getúlio Vargas e sua

burocracia civil e militar ascendente, seguiu o rumo traçado nas reivindicações da Aliança Liberal.

O liberalismo, já reduzido a uma franja, ocupa o lugar da toalha, sobre a mesa do banquete.” In:

Ibidem. 71

Poderia repetir as palavras com que abrira os trabalhos da Constituinte, ao fazer a crítica do

regime deposto: "A obra política criada deixara a nação fora do Estado, e a reação anunciava-se

inevitável".” In: Ibidem. 72

“Segundo um dogma que recebera contribuições antigas e recentes, o liberalismo, entregando a

sociedade a si própria, não passava do anarquismo latente, caldo propício ao golpe comunista. A

"liberal democracia", de outro lado, segundo a fórmula engendrada para depreciar o regime do

voto e dos partidos, além de gerar o caos proporcionaria o domínio do país pelo capitalismo

internacional.” In: Ibidem.

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Sem isso “a nova encarnação do príncipe maquiavélico, marcado de dom-

juanismo sedutor” não poderia ter “cavalgado todas as oportunidades” com

tamanha liberdade. Em pouco tempo, o estatuto de 1934 seria lido como um

intermezzo perturbador do curso pacífico das transformações sociais, e o

movimento de 1937 seria apresentado como a retificação de 30. Teria lugar o

primeiro fruto tardio do “positivismo pombalino” no século XX73

.

As primeira chaves de interpretação abordadas supõem, respectivamente, o

Estado como operador do sucesso e do fracasso da experiência política brasileira.

Foram visitadas as formas teóricas mobilizadas pela ciência social para organizar

o conhecimento sobre o processo de consolidação do Brasil como país política e

socialmente moderno. Pautaram a análise as concepções de Oliveira Vianna e

Raymundo Faoro sobre significado dessa chegada ao moderno e o do papel do

Estado, respectivamente, como catalizador do processo e como seu principal

obstáculo.

A partir de agora, tratar-se-á de interpelar a capacidade interpretativa de

ambos os argumentos a partir de duas categorias de Guerreiro Ramos:

maniqueísmo e ambiguidade. Concentrar-se-á especificamente nesta última, em

razão do fato de que caracterizar como ambíguo o gesto intelectual de harmonizar

valores, ideias ou instituições antagônicas torna impossível superar os problemas

postos ao país durante seu processos políticos.

Faz-se necessário apontar que não é original o gesto de mobilizar a

ambiguidade, tal como cunhada por Guerreiro Ramos para descrever a

transigência que marca o comportamento de determinados intelectuais brasileiros

para descrever processos políticos no Brasil. Em dois estudos sobre os atores e

instituições do Império, José Murilo de Carvalho mobiliza a expressão dialética

da ambiguidade: A Construção da Ordem e Teatro de Sombras. Em A Construção

da Ordem, a expressão caracteriza a dinâmica das relações entre burocracia

imperial e proprietários rurais do período. Carvalho se propôs explorar a

possibilidade de atribuir à diferença na composição das elites políticas a trajetória

peculiar da ex-colônia portuguesa na América. A sugestão do autor é de que a

73

FAORO, Raymundo. “A modernização nacional”. In: República Inacabada. Rio de Janeiro:

Globo, 2008, p. 136.

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manutenção da unidade nacional, a consolidação de um governo nacional, como

também a limitação da mobilidade social e da mobilização política no Brasil, em

contraste com a fragmentação do caudilhismo, a instabilidade política e a maior

mobilização nos outros países da América Latina deviam-se em parte à maior

unidade ideológica da elite política brasileira em comparação com suas

congêneres dos outros países.

Segundo Carvalho, o estudo das elites é especialmente relevante em

situações em que são maiores os obstáculos à formação e consolidação do poder

nacional. Trata-se da maneira típica dos países de capitalismo frustrado ou

retardatário, como são os casos de ex-colônias ou países que experimentaram

rupturas socialistas. Nos primeiros casos, que são representativos do Brasil, a

importância das elites se vincula ao peso maior que cabia ao Estado em forjar a

Nação. Na ausência de uma classe burguesa poderosa, capaz de regular as

relações sociais pelo mercado, caberia ao Estado tomar iniciativa de unificar

mercados, destruir privilégios feudais, consolidar um comando nacional e operar

protecionismo econômico. O Estado encarregado dessas funções agiria por meio

da burocracia que ele treinava para as tarefas de administração e governo74

. Essa

burocracia tinha composição variada, mas era homogênea em termos ideológicos

e de treinamento. Isso é verdadeiro pelo menos para seu núcleo principal. Tal

predomínio do Estado refletia debilidade das classes ou setores de classes em

disputa pelo poder. No mesmo sentido, refletia debilidade dos órgãos de

representação política. Daí a frequente fusão entre os altos escalões da burocracia

e a elite política.

Ao falar em unidade ideológica, Carvalho não quer sugerir unidade social.

Esta, no sentido de ser recrutada de uma só classe, poderia ser importante para a

unidade de sua ação. Mas foram raras as situações em que existiram classes

sociais bem delimitadas e com interesses homogêneos a ponto gerar a identidade

ou a fidelidade de classe capazes de neutralizar divergências por vezes fatais no

interior das elites. Embora não seja possível falar em diferenças sociais radicais

com relação à origem social das elites políticas do Brasil, tendo seus elementos

74

URICOECHEA, Fernando. (1978) O Minotauro Imperial. São Paulo: Difel. p. 203. Apud.

CARVALHO, José Murilo de. (2008) A Construção da Ordem. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira. p. 232.

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sido majoritariamente recrutados da propriedade privada, do comércio e da

mineração, tampouco havia identidade de interesses entre esses setores. Mesmo

entre os senhores de terra havia, senão conflito aberto, pelo menos ausência de

motivação para uma ação coordenada. Por esse motivo, embora recrutada na

classe dominante, a elite não gozava de unidade ideológica e de treinamento para

as tarefas de construção do novo Estado.

As divergências intraelites eram fontes de conflitos potenciais que se

manifestavam em rebeliões e na constituição e ideologia dos partidos. A dinâmica

nacional do sistema passou por sucessivas coalizões efetuadas por setores da elite.

Não obstante, em razão de parte dela estar vinculada ao Estado, e porque em sua

maioria advinha de setores da classe dominante, os conflitos que davam margem

às divergências eram limitados. O confronto interclasse passava à margem da elite

nacional, circunscrevendo-se a lideranças regionais ou locais.

A adoção da expressão dialética da ambiguidade para o estudo de elites

políticas por Carvalho remonta ao tema maior do dinamismo com ordem, ou do

progresso na ordem. Como ponto crucial a orientar a pesquisa, identifica-se o

relacionamento do Estado imperial com a agricultura de exportação de base

escravista. A dialética da ambiguidade operacionaliza-se num Estado que não

pode prescindir da agricultura de exportação, que correspondia a 70% de suas

rendas, por via de tributação de importação e exportação. Nesse sentido, não há

falar-se em um Estado em separado, que domina a nação, como pretendiam os

liberais da época e como atualiza Raymundo Faoro. Em 1868, dizia Saldanha

Marinho que “a sociedade está inerte e morta e só o governo vive”, ao passo que,

em 1958, Faoro afirmava que “o Estado era tudo e a nação quase nada”. Ao

mesmo tempo, a manutenção da ordem seria impossível sem a colaboração dos

senhores de terra. Assim, as elites políticas, sobretudo magistrados, tinham que

compactuar com os proprietários a fim de chegar a um arranjo, senão satisfatório,

pelo menos possibilitador de uma aparência de ordem, embora esta fosse

profundamente injusta.

Entretanto, se, por uma lado, o Estado não podia prescindir dos

proprietários rurais, tampouco estes podiam pretender qualquer tipo de

estamentalização. Como não podiam viver das rendas e serviços prestados por

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camponeses, não tinham disponível o ócio necessário aos serviços militares e

administrativos do Estado, como ocorreu com a elite inglesa. Os proprietários

brasileiros eram produtores e homens de negócios que não podiam dedicar-se às

tarefas de governo. A impossibilidade de estamentalização reduzia sua

potencialidade de coesão, a qual também era desfavorecida pela competição

gerada pela dependência que mantinham do mercado externo. Apenas em raros

momentos em que se alinharam alguns de seus interesses básicos se uniram em

frentes únicas.

Não é desprezível o dado de que o Estado brasileiro foi herdeiro do

português e, logo, de sua tradição de ser uma fonte de poder em si mesmo. O

Estado era empregador de letrados e proletários, regulador da sociedade e da

economia e produtor. Some-se a isto a legitimidade que adquirira em função do

compromisso sempre refundado com os proprietários de terra e do fato de que era

empregador de uma burocracia constituída em grande parte por elementos

marginais à economia escravista de exportação da qual foram excluídos ou não

encontraram oportunidade de emprego.

A desvinculação entre os interesses da burocracia e dos grandes

proprietários reunia-se mediante a coordenação do Estado, legitimado que era pela

dependência que caracterizava a relação entre os três. Não obstante, o Estado e a

elite que o dirigia não podiam prescindir do apoio político e das rendas

propiciadas pela grande agricultura de exportação. Mas, por outro lado, viam-se

relativamente livres para contrariar os interesses da agricultura quando se tornava

possível alguma coalizão com outros setores agrários. É o que se verifica no

episódio da Lei do Ventre Livre, viabilizada pela coalizão parlamentar entre

magistrados e proprietários do Norte75

, irritando os proprietários do sul e

contribuindo para a o início da perda de legitimidade do regime imperial.

A ideia contida na expressão dialética da ambiguidade se expressaria então

na obra de Joaquim Nabuco, para quem o governo era uma sombra da escravidão,

mas também a única força capaz de acabar com ela: “Essa é a força capaz de

destruir a escravidão, da qual aliás dimana, ainda que, talvez, venham a morrer

75

CARVALHO, José Murilo de. (2008) A Construção da Ordem. Op. cit. p. 233.

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72

juntas”76

. A ambiguidade reside na caracterização do Estado como instância capaz

de, por suas elites, manter ou transformar as estruturas sociais.

Mas a ambiguidade não se reduzia à atividade do Estado. Também os

reformistas, políticos, econômicos e sociais assumiam com relação ao Estado uma

posição ambígua. Como reformistas, Carvalho reúne liberais e conservadores.

Aqueles exigiam a liberalização do Estado pela redução do controle sobre a

economia, pela redução da centralização, pela abolição do Poder Moderador, mas

recorriam a ele para resolver os problemas da escravidão, da imigração, dos

contratos de trabalho, do crédito agrícola e da proteção à indústria. A intervenção

que reivindicavam resultaria no aumento do poder do Estado, o qual passariam

energicamente a criticar por sua natureza não liberal. Os conservadores, por seu

turno, não eram antiliberais, mas entendiam pela necessidade de realizar reformas

através do Estado. No Império, verifica-se constante dubiedade e, “para cada

Tavares Bastos que clamava contra o poder excessivo do Estado em defesa de

reformas liberais, haveria um Rio Branco que usaria o mesmo poder para realizar

reformas”77

.

O período seguinte, o da Primeira República, seria composto por uma elite

mais representativa do que a imperial. Compor-se-ia quase que exclusivamente de

advogados. Era também mais provinciana, pois o federalismo impedia a

circulação geográfica que o Império viabilizara. As mais bem treinadas eram

aquelas dos estados que contavam com estruturas partidárias mais sólidas, como

Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Por seu turno, a visão nacional

estava comprometida. Os interesses regionais e de classes tinham acesso mais

rápido e direto ao centro do poder. Em consequência, o Estado Republicano era

mais liberal, mas não mais democrático. Assim, a maior representatividade da

elite faria com que a dominação social se refletisse com mais crueza na esfera

política. Por esse motivo, indica Carvalho, uma das fraquezas das elites vitoriosas

76

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. p. 184. Apud. CARVALHO, José Murilo de. A

Construção da Ordem. Op. cit. p. 234. 77

Idem. p. 234.

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na República foi sua incapacidade de produzir novas elites adequadas para as

novas tarefas e, por isso, são elas “as primeiras vítimas de seu próprio êxito”78

.

Em Teatro de Sombras, José Murilo de Carvalho recupera a ideia de

ambiguidade para caracterizar de que maneira ela penetrava as instituições. A

Constituição de 1824 conferia a representação da Nação ao mesmo tempo ao rei e

ao Parlamento e dava ao rei o controle do Poder Neutro, na esteira do esquema

proposto na França por Benjamin Constant. Assim, o Imperador podia,

legalmente, competir com o Parlamento pela representação da Nação e achar-se

em melhores condições de refletir sua opinião do que a assembleia eleita. Isso o

autor caracteriza como a face absolutista da Constituição, ao mesmo tempo em

que reconhece que esta garantia ao Imperador a possibilidade de arbitrar conflitos

entre os grupos dominantes e, por vezes, contrariá-los em seus os interesses.

Menos absolutista do que conservadora, uma espécie de versão burkiana da

representação, diz o autor, permitia ao rei do Brasil atender ao interesse geral, o

qual podia conflitar com a representação de interesses feita pelo Parlamento e

pelos partidos. A legislação eleitoral da época era constrangida pelo Poder

Moderador que, ao mesmo tempo, garantia a representação e o sistema partidário.

Curiosamente, o autor sugere que a ambiguidade das instituições era mais

evidente em época de crise, embora sugira o tempo todo que o funcionamento

regular das instituições em tempo de normalidade era composto pelo pacto

ambíguo entre rei e barões e pela ficção do regime constitucional, da

representação, dos partidos, do liberalismo político e da civilização. Isso se

resolve pelo argumento de que a ambiguidade das instituições encontrava

correspondência material na dependência dos interesses em face dessas mesmas

instituições, criando “distorção de perspectivas” e “um jogo de realidade e

ficção”. Não por acaso, diversos autores do momento salientavam o aspecto

teatral do jogo político imperial, certo fingimento e muito fazer de conta. Quando

a intuição dessa dimensão era dirigida à instância que mais capitalizava

politicamente com ela, o Imperador era visto como um diretor cruel de uma

montagem teatral. Quando era dirigida à morosidade com que as instituições

operavam transformações sobre a sociedade brasileira, também se dirigiam ao

78

Idem. p. 236.

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Imperador, mas com a intenção de aprimorar sua atuação. Tanto em O

Abolicionismo, quanto em Um Estadista no Império, Nabuco diz que o imperador

passou 50 anos a fingir governar um povo livre, mas o faz em sentido positivo e

elogioso. O sistema imperial é por ele caracterizado como um jogo de aparências.

A metáfora teatral é vinculada à da sombra. O governo, embora fosse sombra da

escravidão, era também a instância adequada ao combate dessa sombra.

Carvalho reconhece que a metáfora teatral se aplica ao fenômeno político

em geral. O ritual e o simbolismo, por exemplo, são partes integrantes de qualquer

sistema de poder, assim como o é o carisma. A política será tão bem sucedida

quanto mais opaca se apresentar aos envolvidos e, sobretudo, a quem ela submete.

A representação política tem elementos que podem ser comparados à

representação teatral. Ambas se exercem em palcos montados, por atores com

papéis conhecidos e reconhecidos. Há regras de atuação, enredo e ficção. A

primeira delas é a própria ideia de representação política, de que alguém possa

falar autenticamente em nome de alguém, quiçá de milhares de pessoas. Na

representação burkeana, a ficção é tanto maior, já que uma pessoa só fala em

nome de toda a coletividade. No Brasil, a ficção da política sofreu com o

acréscimo da dubiedade das ideias e instituições imperiais. “Não só era teatro a

política: era teatro de sombras”79

. Nas sombras, os atores perdiam a noção precisa

de seus papeis. Os proprietários, embora dessem sustentação material à

Monarquia, pensavam dela estar alijados. Os políticos não sabiam se

representavam a Nação ou se respondiam ao imperador. Com isso, a elite passava

a acreditar num sistema representativo que não estava na Constituição e, ao

mesmo tempo, a cobrar sua execução pelo Poder Moderador. O rei, por sua vez,

tentava manter a ficção democrática na medida em que as instituições da

representação lhe permitiam.

Ao ocaso do Império, o teatro republicano começou de maneira distinta.

Sem a dimensão cômica que caracterizava o teatro do Império, mantinha o

espetáculo na República de militares, na qual “a comédia vira logo farsa”80

.

79

CARVALHO, José Murilo de. (2008) Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira. p. 421. 80

Idem. p. 423

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A expressão dialética da ambiguidade foi mobilizada por Alberto

Guerreiro Ramos em 1966, em Administração e Estratégia do Desenvolvimento,

nos seguintes termos:

“(...) ao mesmo tempo em que a estrutura social procura salvaguardar sua

integridade, recorrendo ao formalismo, a fim de cooptar parte do excedente

populacional, os cidadãos, ameaçados pelo fantasma da marginalidade social,

recorrem ao formalismo, em busca de um lugar ao sol. A ambigüidade consiste

em que, de um lado, a estrutura social resiste, como esprit de corps, ao incorporar

em seu seio elementos que possam desnaturá-la e, ao mesmo tempo, diligencia

vencer essa resistência, pois, é compelida a pactuar com aqueles que aceitam

acomodar-se; de outro lado, os cidadãos que projetam ascender na escala social

forçosamente se afirmam pelo combate à rigidez da ordem constituída para, num

momento subseqüente, ajustar-se a tal ordem, desde que ela, de algum modo,

supere a sua inércia, ou sua tendência ao imobilismo. Como nenhuma das partes

cede tudo, o pacto que se estabelece entre ambas, implica necessariamente o

formalismo. A função latente do formalismo é transformar os pólos de uma

polaridade, nos termos de uma ambigüidade". 81

Tal formulação da dialética da ambiguidade seria retomada em 1983, na

comunicação oferecida pelo autor por ocasião de A Revolução de 30 - Seminário

Internacional82

. Este estudo de Guerreiro Ramos tem o objetivo de analisar a

inteligência brasileira na década de 1930 desde o que chama de “linha mestra” de

seus estudos sobre a história das ideias no Brasil. Inaugurada em 1951, em “O

problema da mortalidade infantil”83

e “Pauperismo e medicina popular”84

, a linha

mestra da dialética da ambiguidade passou a orientar o autor na caracterização dos

perfis mentais dos integrantes da inteligência e suas correspondentes

motivações85

.

Em 1983, quando da comunicação sobre a Revolução de 1930, Guerreiro

Ramos pretendera submeter o conhecimento acumulado mediante a orientação da

ambiguidade a sua impressão sobre a inteligência brasileira na década de 1980. O

objetivo do autor foi o de identificar na história intelectual pátria a presença de

81

RAMOS, Guerreiro. Administração e Estratégia do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: FGV,

1966. p. 369. 82

GUERREIRO RAMOS, Alberto. “A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da

perspectiva de 1980”. In: Revolução de 30: seminário internacional realizado pelo CPDOC/FGV.

Brasília: Ed. UNB, 1982, pp. 527-548. 83

GUERREIRO RAMOS, Alberto. “O problema da mortalidade infantil”. In: Sociologia, vol XIII,

no 1. São Paulo, 1951.

84 GUERREIRO RAMOS, Alberto. “Pauperismo e medicina popular”. In: Sociologia, vol XIII, n

o

3. São Paulo, 1951. 85

RAMOS, Guerreiro. A crise do poder no Brasil: problemas da revolução nacional brasileira.

Rio de Janeiro: Zahar, 1961.

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uma ciência social cujo acúmulo, além de precioso em razão do fato de que se

produziu no Brasil, para responder a problemas brasileiros, não pode ser

desprezado porque se difere dos modelos que por vezes lhe serviram de

orientação. Sua tese fundamental enuncia-se por uma espécie de dupla

ambivalência: por um lado, aponta que, a par das orientações contraditórias que se

identificam nos integrantes da inteligência brasileira, estes empreenderam esforço

significativo de interpretação e configuração institucional do país na década de

1930. Por outro, não lograram “transcender o seu confinamento na história

modernista da sociedade ocidental”. A dupla ambivalência encontra-se no fato de

que percorreram caminhos contraditórios, mas mantiveram uma finalidade

comum; intentaram alçar o Brasil ao padrão de modernidade da Europa ocidental

e do norte da América, mas perderam de vista a experiência cultural e política

propriamente brasileira que colaboraram para construir.

Compõem o que Guerreiro Ramos entende como inteligência brasileira as

pessoas que exerceram o que qualificou como um magistério público, orientado

para interpretar e configurar o processo de formação do país. Este conjunto de

pessoas está composto por escritores propriamente ditos, como, segundo

Guerreiro Ramos, são os casos de Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Martins de

Almeida, Alceu Amoroso Lima, Otávio Faria e Plínio Salgado, mas também de

escritores ad hoc, como Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, João Neves da

Fontoura, Góis Monteiro, Luis Carlos Prestes, Juarez Távora e Newton Estillac

Leal, cuja atividade intelectual submeteu-se às necessidades da ocasião.

Em seu esforço de classificação da população de intelectuais da década de

1930, Guerreiro Ramos se vale de três tipos de categorização: os polos de um

continuum posicional e temático composto de pragmatismo crítico e

hipercorreção; a distinção entre o que chama de diletantismo e esteticismo; e o

posicionamento dos intelectuais diante do centro de poder, a partir do que os

distingue como cêntricos, periféricos e fronteiriços.

A par das diferenças, Guerreiro Ramos identifica traços gerais do perfil da

inteligência brasileira. Estes homens raramente estão destituídos de papéis formais

na estrutura social estabelecida e sua fonte primária de trabalho são a cultura e a

ciência adquirida no exterior, sendo a forma hipercorreta ou pragmática de

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assimilação dos conteúdos o que os distingue. Isso é verdadeiro sobre os

intelectuais que protagonizam a década de 1930, mas também sobre os de

períodos anteriores. O que é específico na década em exame é o êxito que tiveram

alguns como integrantes revolucionários do que qualificou como humanismo

civilista e o fato de que a institucionalização de seus objetivos desdobrou-se em

uma obra significativamente duradoura.

A inclusão da inteligência brasileira na estrutura social estabelecida é

indicativa da ambiguidade de seu comportamento, bem como uma primeira pista

da ambiguidade de sua obra. Seja por acomodação, seja por identificação, diz

Guerreiro Ramos, “jamais em nossa história, inclusive na década de 1930,

significante parcela da inteligência brasileira se viu excluída da estrutura social

estabelecida, ou em frontal antagonismo com ela”. Não se trata de afirmar que não

há exceções a esta regra, mas de dizer que, quando houve, sua mensagem nunca

foi socialmente efetiva. Tampouco o autor insinua que a inteligência se caracteriza

por qualquer forma de imobilismo político. Ao contrário, é a “agência política

eminente da sociedade brasileira”. Não obstante, sua inscrição no establishment

limita suas reivindicações a pretensões de modificação na composição de

interesses da configuração do poder. Em uma linha, sua ação não implica a

substituição da estrutura social vigente por uma outra.

A moderação que caracteriza a inteligência, bem como a inclusão na

estrutura social vigente que a determina não indicam homogeneidade na origem

social dos seus componentes. Mas que, mesmo nos casos em que a origem é

modesta, verifica-se um processo cooptativo que assimila ou ao qual se

acomodam os intelectuais, razão pela qual, segundo Guerreiro Ramos, jamais se

formou no Brasil uma intelligentzia no sentido russo86

.

Disso decorre a interpretação do autor acerca da Revolução de 1930. Seus

integrantes não se propuseram mais do que ampliar as fronteiras do sistema

através da implantação de um novo ordenamento de interesses, que lhes

permitisse mais efetiva participação no processo político. Como vozes radicais,

86

“(...) intelectual desocupado, totalmente excluído do sistema formal de papéis e, por isso,

estimulado à rebeldia, ao anarquismo, à revolução e que, possivelmente, explica o êxito do

movimento bolchevista de 1917.” GUERREIRO RAMOS, Alberto. “A inteligência brasileira na

década de 1930, à luz da perspectiva de 1980”. Op. cit. p. 530.

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jamais lograram operar transformações efetivas. Foi em razão de ter sido a

Revolução “uma insurreição de radicalidade limitada”, que pôde ser bem

sucedida. Ao explicá-lo, Guerreiro Ramos recupera o papel de radical de Luís

Carlos Prestes nos eventos que precederam a Revolução. Tivesse ele assumido o

papel de líder da Revolução, dificilmente teria lugar a moderação que caracterizou

as escolhas dos revolucionários.

De fato, a atuação de Prestes na marcha de sua Coluna parecia destiná-lo à

liderança da Revolução. Como é sabido, quando se cogitou atribuir-lhe a chefia

militar da insurreição de outubro de 1930, Prestes declinou em razão de suas

convicções à época. Não quis participar da atualização de um país governado por

uma minoria de “proprietários das terras e dos meios de produção”, “apoiada por

dois imperialismos que nos escravizam e aos quais os politiqueiros brasileiros

entregam, de pés e mão atadas, toda a Nação”. Ao contrário, apelou para a

“insurreição nacional de todos os trabalhadores” e recomendou a confiscação e

nacionalização das empresas estrangeiras, dos latifúndios, concessões, vias de

comunicação, serviços públicos, minas, bancos e a anulação das dívidas

externas87

.

Por um lado, Prestes recusou um papel na Revolução. Por outro, fê-lo em

razão da recusa dos revolucionários de aderir a um projeto de reforma profunda da

sociedade brasileira. Em lugar de se apresentarem ao país como representantes de

uma classe, os organizadores do movimento de 1930 operaram de forma ambígua.

Declararam-se revolucionários, ao mesmo tempo em que não almejaram mais do

que medidas corretivas para o unilateralismo regional e o predomínio das

oligarquias no governo do país, como a reforma política e do sistema legal.

A ambiguidade da posição dos revolucionários de 1930 revela-se no

reconhecimento de alguns de que havia “algo de verdade” no posicionamento de

Prestes. Em carta aberta, o general Isidoro Dias Lopes, em lugar de posicionar-se

contrariamente às indicações do tenente, prescreveu-lhe “oportunismo”, isto é,

que se mantivesse atento à necessidade de consumar a obra revolucionária. Para

87

MALTA, O. Os tenentes e a revolução brasileira. Rio de Janeiro. p. 125-130. Apud.

GUERREIRO RAMOS, Alberto. “A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da

perspectiva de 1980”. Op. cit. p. 530.

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Dias Lopes, tratava-se menos de saber se as ideias de Prestes eram aceitáveis do

que de reconhecer que não se verificava a oportunidade para concretizá-las. Não

havia falar-se na aplicação de um regime comunista a uma nação que todavia

sequer era capitalista.

Segundo a classificação de Guerreiro Ramos, à posição de Prestes

correspondiam medidas propostas do ponto de vista da dialética da polaridade, na

qual só a revolução conduzida pela classe trabalhadora é possível. Por seu turno, a

posição de Dias Lopes autoriza a interpretação da Revolução de 1930 como um

episódio da dialética da ambiguidade, na qual o oportunismo privilegia a

“revolução possível”. Daí a sua radicalidade limitada. Enquanto Prestes parece

estar sozinho na dialética da polaridade, os membros da inteligência brasileira que

se inscrevem na dialética da ambiguidade são muitos e não manifestam um

comportamento homogêneo. Apenas comungam do gesto de submeter princípios

à regra de realidade.

A obra efetiva e duradoura da inteligência brasileira foi conduzida pela

dialética da ambiguidade. É possível, segundo Guerreiro Ramos, distingui-los

entre hipercorretos e orientados pelo pragmatismo crítico. Hipercorretos tendem a

atribuir a ideias e teorias a eficácia direta na configuração dos comportamentos

sociais. Identificam-se de forma ambivalente com o elemento nacional. Os

intelectuais que se caracterizam pelo pragmatismo crítico tendem a se servir das

ideias e teorias importadas mais do que a admitir sua exemplaridade abstrata.

Identificam-se positivamente com o elemento nacional e são sensíveis às

condições contextuais típicas do meio em que vivem. Em seu sentido heurístico,

ou puro, hipercorreção e pragmatismo crítico são atribuídos ao posicionamento

intelectual – cuja identificação negativa ou positiva, respectivamente, com o

elemento nacional, determina a orientação genérica de seu interesse pelas ideias –

e ao modo como assimila a cultura e a ciência estrangeiras. Não obstante a

distinção, com frequência verifica-se hipercorreção em intelectuais pragmáticos e

pragmatismo em hipercorretos.

A lida dos intelectuais com ideias estrangeiras é uma ambiguidade que

decorre, segundo Guerreiro Ramos, “do modo peculiar do advento do Brasil na

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história cosmopolita”88

. A forma expropriativa da colonização e o “vácuo cultural

do território brasileiro” geraram uma nação de “escassa criatividade cultural

primária”89

. Tanto hipercorretos quanto pragmáticos críticos são consumidores de

cultura importada, cabendo-lhes, no caso destes últimos, apenas a sua elaboração

secundária. Hipercorretos “aceitam a cultura produzida nos centros da história

cosmopolita como súmula de paradigmas de ação”, ao passo que pragmáticos

“utilizam-na como elemento subsidiário para qualificar o empreendimento

formativo da sociedade brasileira, da qual se vêem como mandatários”90

.

Representantes da hipercorreção e do pragmatismo crítico se registram em

todos os períodos da história brasileira. À tradição dos primeiros pertencem

indivíduos como Sales Torres Homem, Tito Franco de Almeida, os positivistas

em geral e Rui Barbosa. À tradição do pragmatismo crítico pertencem homens

como Paulino José Soares de Souza, Irineu Evangelista de Souza, Silvio Romero,

Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Vianna. A década de 1930 recebeu e

processou muito do que constituiu as correntes culturais e políticas da década

anterior. Politicamente, a Revolução foi preparada pelos movimentos tenentistas

de 1922 e 1924 e pela Coluna Prestes. O chamado movimento modernista dos

anos 1920 antecedeu o estado de espírito de parte dos integrantes da inteligência

brasileira na década de 1930. A literatura regionalista e a de intelectuais católicos

formam o quadro.

Entre as figuras cêntricas do cenário intelectual da década de 1930,

destacam-se os representantes do pragmatismo crítico como Francisco Campos,

Gustavo Capanema, Lindolfo Collor, Agamenon Magalhães, Oliveira Vianna e

Azevedo Amaral. São representantes dos intelectuais independentes e

hipercorretos do período Gilberto Amado, Martins de Almeida, Virgínio Santa

Rosa, Caio Prado Júnio e Nestor Duarte. Entre os intelectuais confrontivos, os

quais Guerreiro Ramos não classifica com relação a ideias estrangeiras, estão Luís

Carlos Prestes, Otávio Mangabeira e Aparício Toreli.

88

Idem. p. 531. 89

Idem. p. 532. 90

Ibidem.

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81

A importância da inteligência brasileira da década de 1930 é atribuída por

Guerreiro Ramos ao sucesso duradouro do humanismo civilista dos pragmáticos

críticos que caracteriza a sua obra. Tendo inspirado os movimentos insurrecionais

dos anos 20 e 30, lograram também institucionalizar suas aspirações básicas.

Quando diz humanismo civilista, Guerreiro Ramos se refere ao desejo de, em

nome do progresso, ampliar a participação no processo político como condição

para melhoria das condições de vida do país. Mas não vai além de limitar o

mandonismo oligárquico, instaurar o império da lei, o avanço e a diferenciação da

economia e a remodelação institucional do país. Já se manifestara de forma

insipiente em Rui Barbosa e, embora tenha se revelado um instrumento eficaz de

mobilização popular desde as primeiras décadas do século, não foi até os anos

1930 que a promoção política do civilismo foi consumada, “graças a capacidade

articuladora dos revolucionários do período”91

.

Politicamente, o pragmatismo crítico revelou-se na liderança hábil de

Getúlio Vargas. Esta habilidade deveu-se a um conjunto de características, das

quais constam bifrontismo, aversão instintiva a ortodoxias postiças, repugnância a

posições ideológicas rígidas, contradições de caráter, capacidade elástica de

compromisso e conciliação, oportunismo e ocasional e temporária frieza no

combate aos seus adversários. Um líder sob medida para uma revolução morna

conduzida por pragmáticos na esteira da dialética da ambiguidade. Com ele,

conduziram o processo político articuladores como Oswaldo Aranha, Virgílio de

Melo Franco, João Neves da Fontoura, Góis Monteiro, Lindolfo Collor e Augusto

do Amaral Peixoto. Todos vagos e confusos em seus propósitos. Mas eficientes

em empreender um trabalho de articulação política, tendo logrado tomar o poder,

dar forma política e institucional ao país capaz de processar as tensões entre os

interesses dominantes e prover aos extratos médios da população garantias

estáveis e necessárias para o seu avanço e diferenciação profissional e

educacional, assegurando um mínimo de direitos aos trabalhadores e

representação sindical.

As reflexões de Guerreiro Ramos sobre a sociologia no Brasil promovem

uma dura crítica à importação de ideias e ao elitismo dos intelectuais. Retomando

91

Idem. p. 534.

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82

algumas de suas proposições, é possível rever a trajetória do pensamento social

brasileiro, suas contradições e dificuldades em assumir a herança de que dispõe92

.

Essa visão alienadora, segundo ele, tentava solapar as contradições da

sociedade brasileira, desconsiderando a originalidade da estrutura social,

tomando-a como simples reflexo, imitação vil das determinações reinantes nos

países de capitalismo central, avançado. Tal modalidade de pensamento intentava

uniformizar o diferente, apagar os antagonismos, isolar o estranho, abafar o ruído,

sincronizar os tempos históricos. A vivência nacional, situada numa outra fase

cultural, reclamava fidelidade à sua própria temporalidade, sua condição de

“contemporaneidade do não coetâneo” instaurava uma existência cultural própria

e requisitava uma dialética específica.

Guerreiro Ramos compartilhava uma concepção faseológica da história,

segundo ele, alicerçada nos trabalhos de Carl Muller-Lyer: Fases da cultura

(1908), O sentido da vida e a ciência (1910) e A família (1912), dentre outros.

Hélio Jaguaribe também utilizou amplamente essa concepção. Por seu turno,

combinava-a ao conceito de contemporaneidade do não coetâneo, tomado a W.

Pinder, com o qual denotava a coexistência de tempos histórico-culturais

distintos.

Era mister - então - fazer uso da razão sociológica, da capacidade da

sociologia de aplicar(se) seu instrumental, de rever-se, refletir a respeito de si e

com relação à estrutura social à qual estava vinculada, refazendo(se) métodos e

objetivos. Ao método crítico capaz de proceder a uma reflexão dessa natureza,

assimilando criticamente as contribuições teóricas “importadas”, Guerreiro Ramos

chamou “redução sociológica”.

Não obstante, descrever como ambíguo o gesto intelectual dos autores que

se viram diante da necessidade de harmonizar ideias ou instituições que,

originalmente, rivalizavam, levanta o seguinte problema: a história política

brasileira é inteira permeada pela permanência desse gesto. Permanência esta

inconcebível, porque insustentável, numa ambiguidade. Assim, a acepção

92

BARIANI, E. (2006). “Guerreiro Ramos: Uma sociologia em mangas de camisa”. In: CAOS -

Revista Eletronica de Ciencias Sociais, João pessoa, no 11, Outubro. pp. 84-92.

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conferida por Guerreiro Ramos à expressão ambiguidade despreza sua

característica original de composição impossível entre proposições contraditórias.

Por esse motivo, afina-se com as interpretações segundo as quais há um vício que

precisa ser saneado nessa história, sob pena de perpetuar os seus tropeços. E, na

medida em que uma ambiguidade não se sustenta, a mobilização do termo não

explica a permanência da contradição operada pela harmonização de ideias e

instituições concebidas como rivais.

Nesse sentido, a noção de ambivalência têm mais a oferecer ao estudo da

experiência liberal brasileira. Isto é especificamente relevante para o tema da

representação na década de 1930. Desde a criação do Estado Nação, o Brasil

esteve instalado numa ordem liberal. Com a República, o liberalismo foi

confirmado. Em 1934, em razão da ação dos trabalhadores, da Igreja e dos

militares, a Constituição fixou o corporativismo. A Carta liberal previu o

descaminho da representação profissional e o substituto do liberalismo político.

Trata-se de uma mudança institucional que chega ao Brasil em 1934 e persiste até

hoje na vida pública brasileira. A permanência da contradição entre ordem liberal

e instituições não liberais se explica pelo modelo sem ruptura de modernização

conservadora, o qual resistiu à ordem de 1988 bem como à última década de

governos populares experimentados pelo Brasil. Mas não se revela inteira na

expressão ambiguidade.

As primeiras chaves de interpretação abordadas supõem, respectivamente,

o Estado como operador do sucesso ou do fracasso da experiência política

brasileira. Ocorre que, seja do ponto de vista intelectual, seja na experiência com a

política, a tentativa de harmonizar ideias ou institucionalidades antagônicas é uma

característica da experiência política brasileira. Nesta linha, observou-se a

reflexão de Guerreiro Ramos. Agora, percorrer-se-á os argumentos segundo os

quais este problema é lido à luz da possibilidade de o percurso político brasileiro

ser dotado de uma potencialidade própria, desvelada pela leitura das

peculiaridades e soluções encontradas pelos atores e pela sociedade brasileira à

luz do conceito de ambivalência.

A apropriação da ideia de ambivalência como chave de leitura da

experiência liberal em geral, mas especificamente a experiência brasileira da

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década de 1930, remonta à possibilidade de encontrar uma outra “forma de

pensar” a história política e, dentro dela, a experiência liberal brasileira.

Pela ambivalência, torna-se possível interpretar as tentativas empreendidas

no Brasil de responder aos dilemas impostos aos desejos pela realidade, sem que

as contrações inauguradas no percurso sejam insuperáveis93

.

93

A expressão é de Gildo Marçal Brandão através da qual o autor problematizou a possibilidade

de constituir “famílias intelectuais” e formas de pensar a vida política brasileira. Segundo o

Brandão, não há tanto para constituir quanto para reconstituir, isto é, a tarefa é “mais de resultado

do que de pressuposto”. Com sua proposta de forma de pensar, Brandão se referiu ao gesto de

identificar “padrões que se constituem ao longo de reiteradas tentativas, empreendidas aos trancos

e barrancos por sujeitos e grupos sociais distintos, de responder aos dilemas postos pelo

desenvolvimento social”. Embora não seja este o objetivo do presente trabalho, a expressão é a

melhor imagem para compreender o que se pretende propor pela ideia de ambivalência como

chave de leitura. BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São

Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007, pp. 256-257.

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Capítulo 2. Matriz liberal das concepções tradicionais da representação

Na seção anterior, procurou-se apresentar interpretações da história

política brasileira, desde as que supõem o papel do Estado como necessário ao

êxito da experiência política, até aquelas que o entendem como responsável pelo

seu fracasso. Destro desta, apontou-se o argumento segundo o qual a tentativa de

harmonizar valores, ideias ou instituições antagônicas seria uma ambiguidade

patológica dos processos políticos pátrios. Finalmente, expôs-se interpretações

que avaliam o percurso político como dotado de uma potencialidade própria,

desvelada pelas peculiaridades e soluções encontradas pelos atores e pela

sociedade brasileira. A finalidade da seção foi a de sublinhar, por um lado, a

competência teórica da reflexão produzida aqui sobre o país e, por outro,

problematizar a ideia de ambiguidade. De um lado, sublinhando sua

potencialidade de valorizar o percurso singular do pensamento brasileiro na

adequada recepção de objetivos e instituições inspiradas pelas experiências de

outras nações. De, para indicar que talvez fosse o caso de ler a experiência

brasileira, em razão da continuidade da limitada radicalidade das transformações

operadas no país, pela chave da ambivalência. Tal chave ofereceria subsídios para

entender a permanência de institucionalidades que harmonizam componentes que,

na origem, seriam rivais, como, a exemplo do que ocorre a partir de 1934, a

representação política tradicional e o corporativismo. Para tanto, faz-se necessário

caracterizar detidamente a matriz liberal do que ora se chama representação

política tradicional, como se fará a seguir.

Um dos elementos centrais do liberalismo, e que vai se submeter às

variações relativas à sua ambivalência, é a representação. Tome-se como exemplo

a Revolução na França. Após a ruptura, uma primeira tomada de posição

significativa foi a de Sieyès, em cujo O que é o Terceiro Estado, publicado em

janeiro de 1789, postulou a representação como saída inescapável para resistir à

tirania. Sua concepção de Nação, compreendida como união dos indivíduos que,

em razão da necessidade natural de viverem em conjunto, é o resultado do

reconhecimento de que, dispersos, são impotentes e incapazes de resistir à

sujeição imposta pela tirania. A partir desta realidade, a formação da Nação e a

luta pela liberdade e pela igualdade aparecem exaltadas como doutrina política

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cuja finalidade é o combate ao arbítrio e aos privilégios. Mas a Nação, embora

soberana e indivisível, não pode reinar. O exercício da soberania depende da

implantação de uma Constituição, que, por sua vez, deve obedecer ao princípio da

representação.

A representação, tal como a entende a modernidade, nasceu com o

processo de evolução dos parlamentos94

. Estes passaram de simples reuniões de

delegados das comunidades a órgãos permanentes com poder legislativo e, nesta

qualidade, integraram o corpo soberano. Por razões históricas, esse processo

desenvolveu-se primeiro, e durante séculos, apenas na Inglaterra: “Há uma nação

no mundo”, escreve, em 1748, Montesquieu, “que tem por objeto direto da sua

Constituição a liberdade política”. E esta é assegurada, observa o mesmo autor,

através da divisão dos poderes, estando o executivo confiado ao monarca e o

legislativo à câmara dos nobres e à câmara em que têm assento os representantes

dos diversos burgos: “Como num Estado livre todo homem que é considerado ter

uma alma livre deve ser governado por ele mesmo, seria necessário que o povo

enquanto corpo tivesse o poder legislativo; mas como isso é impossível, [...] é

necessário que o povo faça, através dos seus representantes, o que não pode fazer

por ele mesmo.”95

Na origem do avanço progressivo da representação e da consequente

limitação do arbítrio da coroa, encontra-se o princípio segundo o qual só há uma

fonte de autoridade legítima, que é o consentimento dos súditos. Aparentemente

simples e eficaz para contrariar a ideia de um direito arbitrário dos reis, o

consentimento irá, contudo, alimentar duas questões que perduram na história da

representação: em primeiro lugar, trata-se de saber qual a extensão do

consentimento que o poder requer, se é um consentimento universal ou um

consentimento pedido apenas a algumas categorias de indivíduos; em segundo

lugar, saber se tem de haver um consentimento tácito.

A primeira dessas questões está diretamente relacionada com a natureza

que se atribui ao objeto da representação. A tendência para se identificar o

94

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Lisboa: Livros Horizonte, 2009. p. 9. 95

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do espirito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.

294-295.

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representado com a vontade de todos e de cada um dos indivíduos, estimulada

pela ideia de democracia, levou a que, desde meados do século XIX, o sufrágio

universal se tivesse progressivamente afirmado como a única resposta considerada

legítima.

A segunda questão constitui o pólo em torno do qual se enredou boa parte

da discussão sobre o parlamentarismo, pelo menos até a Revolução francesa. E

por um motivo que é fácil de entender. A representação moderna foi o dispositivo

que verdadeiramente consagrou a passagem dos parlamentos de simples órgãos

consultivos para órgãos nos quais se concentra esse núcleo central da soberania

que é o poder legislativo. Mediante tal dispositivo, o estatuto dos parlamentares

conheceu uma mudança de 180 graus. Dado, no entanto, que o que justificou esta

mudança foi a ideia de consentimento, tudo levaria a crer que, pela mesma lógica

com que o poder soberano ficava dependente da vontade dos representantes,

também estes ficariam por sua vez, na dependência daqueles que livre e

expressamente lhes confiam o direito de os representar. Dito em outras palavras, a

representação consentida deveria se traduzir num mandato imperativo.

Surge a inviabilização do objetivo primeiro da representação, que é o de

instituir um poder que seja de fato próximo do povo, mas que, ao mesmo tempo,

possua capacidade e meios de decidir e legislar por e para ele. Daí que a teoria da

representação, na maioria das suas expressões mais elaboradas, tenha procurado

assegurar não só a independência dos representantes, de modo a tornar viável a

tomada de decisões, mas também a sua autoridade no interior do Estado, a fim de

impedir a guerra entre os que estiveram a favor e os que estiveram contra a

entrega a terceiros de um direito a decidir em nome de todos.

Hobbes, verdadeiro inventor do conceito na sua acepção moderna, já

considerava inevitável que a representação com que lida a política fosse de

natureza tácita. Ao afirmar que a instituição do Estado se realiza mediante o pacto

de cada um com cada um dos outros e a posterior entrega do direito de os

representar a um individuo ou a uma assembleia, o autor ressalva que mesmo

aqueles que votaram contra ficarão igualmente vinculados. Trata-se o princípio do

consentimento implícito da minoria. E, um pouco mais adiante, no capítulo XVIII

do Leviatã, Hobbes aponta o motivo: “Aquele que voluntariamente ingressou na

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congregação dos que constituíam a assembleia declarou com esse ato a sua

vontade de [e, portanto, tacitamente fez um pacto] de se conformar ao que a

maioria decidir.”96

Dito de outro modo, entrar em sociedade significa dar

implicitamente o consentimento à pessoa ou instituição representante, esteja-se ou

não a favor dela. Poder-se-ia, talvez, pensar que se trata aqui unicamente de uma

consequência do poder absoluto do Leviatã, dentro do qual Hobbes pensa a

soberania. No entanto, John Locke, para quem a representação se destina, pelo

contrário, a garantir os direitos individuais, refreando a discricionariedade e

limitando o poder do monarca, também afirma e explicita desenvolvidamente a

mesma ideia. E conclui que “qualquer homem que tenha uma propriedade, ou o

usufruto de um aparte do que está sob o domínio de um governo, dá, por esse

mesmo fato, o seu consentimento tácito e está obrigado a obedecer às leis desse

governo”97

. Longe, pois, da ideia de uma representação sem respaldo no

consentimento explícito dos representados – a representação virtual – ser apanágio

exclusivamente da teoria hobbesiana, ela corresponde a um elemento fulcral na

concepção moderna da soberania, não obstante sua inegável ambiguidade e o o

consequente lastro polêmico de que se faz acompanhar.

A discussão da representação virtual ganhará particular acuidade durante a

luta que opôs as colônias americanas à coroa inglesa e que culminará na

independência daquelas. Perante a alegação dos colonos de que não estariam

representados na Câmara dos Comuns, sendo por isso ilegítimos os impostos que

sobre eles recaíam, a resposta por parte dos ingleses foi sempre a de que eles

estavam formalmente representados, à semelhança de muitos outros cidadãos e de

muitas localidades e circunscrições na própria Grã-Bretanha, os quais também não

tinham direito a eleger representantes e, no entanto, faziam parte do povo

representado.

Na literatura da época, será frequente a analogia das localidades sem

representação formal com as mulheres e filhos dos eleitores, cujos interesses se

consideram também representados no parlamento, ainda que só o marido ou o pai

96

HOBBES, Thomas; TUCK, Richard. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de uma república

eclesiástica e civil. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 231. 97

LOCKE, John. The second treatise of government. Indianapolis: Bobbs-Merrill Educational

Publishing 1952. p. 72.

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tenha o direito de votar para a eleição dos representantes98

. Burke, por exemplo,

sustenta essa mesma ideia empiricamente, tentando mostrar que as circunscrições

sem representação formal não eram discriminadas: “Que vantagem achais que os

cargos que abundam em representação possuem os outros onde ela é mais

modesta, em segurança para a liberdade, em segurança para a justiça, ou para

qualquer outro dos meios que proporcionam prosperidade temporal e felicidade

eterna, os fins para que se formou a sociedade? São os interesses locais da

Cornualha e do Wiltshire, por exemplo, as suas estradas e canais, as suas prisões,

a sua polícia, melhores do que os de Yorkshire, Warwuicjshire ou

Straffordshire?”99

.

Da parte americana, porém, contrapunha-se que, mesmo aceitando em tese

a legitimidade de uma representação virtual, os pressupostos que a justificariam

na Grã-Bretanha eram inaplicáveis nas colônias. A hipótese de uma contiguidade

de interesses entre representantes e representados era manifestamente improvável,

tratando-se de colonos a viver do outro lado do Atlântico, sem possibilidade real

de virem a tornar-se eleitores mudando de residência ou atingindo um certo nível

de rendimentos, como acontecia com os não eleitores da metrópole, e cuja

situação concreta o parlamento não podia conhecer o bastante para legislar sobre

ela.

Escusado será dizer que, por detrás dessa contenda pragmática, a

argumentação na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos albergava concepções

distintas sobre o papel dos representantes, as quais pouco a pouco tenderão a

consolidar-se e a marcar diferentemente as tradições de um lado e de outro do

oceano. Na verdade, enquanto na América prevalece a ideia de que o

representante faz parte da sua comunidade de origem e responde pela defesa dos

interesses dos seus eleitores, na Inglaterra prefere-se olhá-lo como membro de

uma instituição que é o parlamento, por cuja independência em face dos nobres e

ao rei ele é responsável. No primeiro caso, trata-se de uma responsabilidade diante

dos eleitores; no segundo, de uma responsabilidade ante a constituição e o povo, o

que apenas aparentemente é igual.

98

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 9. 99

BURKE, Edmund. “Discurso sobre a reforma da representação na câmara dos comuns”. In:

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 60-61.

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A ideia de representação dominante na Inglaterra tinha a sua fonte mais

próxima em Hobbes. Ao ressalvar a autonomia do representante, o autor do

Leviatã atribuía-lhe um papel completamente diferente do que possuíam os

delegados enviados pelas comunidades às cortes, estados-gerais e outras

assembleias convocadas pelos soberanos. Tais assembleias, criadas por toda a

Europa durante a Baixa Idade Média, tinham por vezes alcançado condições e

estatuto que lhes permitiam limitar consideravelmente o poder do soberano,

designadamente em matéria de impostos. Mas um estatuto independente,

consagrando as instâncias representativas como órgãos com poder de deliberar e

agir livremente em nome dos representados, só na modernidade irá surgir. De

acordo com este estatuto, o representante é, como se encontra no Leviatã, um ator,

e sua atuação torna possível, à diversidade dos autores que o autorizam a

representa-los, identificar-se como um todo e agir em comum. Entre

representantes e representados a doutrina cava um fosso, o qual deixa nas mãos

dos primeiros a livre decisão sobre o que é de interesse comum, restando aos

segundos, quando muito, se a representação não for absolutamente virtual, como

preferia Hobbes, serem chamados de tantos em tantos anos para confirmar ou

retirar a confiança nos representantes.

Difícil de assimilar numa perspectiva estritamente democrática, a

independência dos representantes conta, no entanto, com argumentação abundante

em seu favor. Desde logo, o parlamento estaria impossibilidade de ter eficácia e

produzir legislação caso fosse amarrado a um mandato imperativo dos eleitores.

Montesquieu, como tantos dos seus contemporâneos, louva a capacidade que tem

o povo para avaliar o governo e escolher governantes, mas nega-lhe qualquer

capacidade para nele participar100

. E mesmo que a questão se coloque num

registro democrático, de onde os preconceitos aristocráticos estejam ausentes,

poderá ainda argumentar-se, como Sieyes, que seria impossível conhecer em

tempo útil a vontade dos representados sobre cada um dos temas a respeito dos

quais o representante tem de pronunciar-se. Na verdade, deve contudo notar-se

que a questão nunca se pôs exatamente nestes termos. O que de fato se discutia e

continua a se discutir é se os representantes devem decidir e agir tentando se

100

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do espirito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

p. 133.

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aproximar o mais possível da vontade de quem representam, ou se, pelo contrário,

eles devem agir de acordo com a sua consciência e o seu entendimento do

interesse comum.

O mais conhecido defensor desta última hipótese, além de Hobbes, que a

pressupõe num contexto político e teórico diferente, foi Edmund Burke. Em

primeiro lugar, o que para Burke está em jogo na representação não é uma questão

de vontade, sejam as vontades individuais que o liberalismo de Locke tem em

mente, seja, no extremo oposto, a “vontade geral” a que se refere o radicalismo

democrático de Rousseau: “nem a minoria, nem a maioria têm o direito de agir

meramente por sua vontade em nenhuma matéria relacionada com dever,

confiança, compromisso ou obrigação.” E Burke acrescenta: “os deveres não são

voluntários. Dever e vontade são sempre contraditórios.”101

Por isso, contra a

representação da vontade dos eleitores, sempre ocasional, Burke afirmará

enfaticamente a representação de um interesse geral, a identificar pela informada e

livre discussão entre os representantes.

O racionalismo do século XVII e a sua tradição política – o absolutismo

esclarecido – já haviam identificado esse operador a que se chama interesse

comum, ou geral, e em que se fundamenta a arquitetura do Estado moderno.102

Mas Burke suspeita de um interesse definido pelas sutilezas da razão deduzido

unicamente a partir de postulados, como se fosse um teorema. Se há uma instância

que precede a definição do interesse, não é a razão, é a história. Não quer dizer

que o passado de uma nação antecipe, já pré-definidas, as escolhas que terão que

se fazer no presente. Na verdade, nem a história é repetição, nem o

conservadorismo equivale a imobilismo. Mas a história delimita o horizonte no

interior do qual se deve escolher.

“Uma nação não é uma ideia apenas de extensão local e agregação individual

momentânea, mas é uma ideia de continuidade [...]. Não é uma escolha de um

dia, ou de um conjunto de pessoas, nem uma escolha tumultuosa e leviana, é um

eleição deliberada de épocas e de gerações, é uma constituição feita por aquilo

que é dez mil vezes melhor do que a escolha, é talhada pelas circunstâncias

peculiares, ocasiões, temperamentos, disposições e hábitos sociais, morais e civis

do povo que se revelará apenas num longo período de tempo. [...] O indivíduo é

tolo. A multidão, num dado momento, é tola, quando age sem deliberação, mas a

101

PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Berkeley: UC Press, 1967. p. 144. 102

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 22.

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espécie é sábia, e, quando dispõe do tempo, age, quase sempre, enquanto espécie,

corretamente”103

.

O papel dos representantes não se traduz, pois, segundo Burke, num

exercício especulativo sobre o que exigiria em abstrato o interesse ou bem

comum. Traduz-se, pelo contrário, numa auscultação do passado e daquilo que se

enraizou através de uma experiência continuada. A condenação impiedosa que

Burke faz dos philosophes e do que sob a inspiração destes se teria passado na

França fundamenta-se na sua recusa a extrair de teorias abstratas as normas a que

deverá obedecer uma nação constituída ao longo dos séculos. Não se pense,

entretanto, que o autor sustenta uma forma de pragmatismo empírico, ao sabor das

circunstâncias. É ele próprio quem assegura o contrário: “Não estou a vilipendiar

a própria razão. [...] Sempre que falo contra a teoria, viso sempre uma teoria fraca,

errônea, falaciosa, infundada ou imperfeita e uma das maneiras de descobrir que é

uma falsa teoria é compará-la com a prática. É esta a pedra de toque de todas as

teorias atinentes ao homem e aos assuntos humanos.”104

A chegada de uma teoria que de fato seja ajustada à prática, perfilada por

correntes liberais ou democráticas, passaria por definir os meios jurídicos e

constitucionais que fizessem o consentimento de cada um, pressuposto pelo poder

legítimo, refletir-se na representação. Numa tal perspectiva, o representante seria

diretamente responsável perante quem o elege, e a sua legitimidade terminaria

assim que ela falasse e atuasse no seu exclusivo interesse ou noutro qualquer que

traísse a vontade daqueles que o constituíram. É a ideia, retomada sob as mais

diferentes roupagens, do “mandato imperativo”, o qual, no limite, reconduz o

representante à sua figura medieval de simples porta-voz. Contra uma tal solução,

Burke defenderá enfaticamente a ideia do mandato independente. Não por uma

questão de defesa dos interesses dos representantes contra os interesses dos que os

elegeram, mas porque o parlamento, longe de ser uma câmara de eco de interesses

individuais ou de grupos isolados, é por ele considerado uma instituição que se

destina a explicitar o interesse comum. Por isso deve estar separada das pressões

103

BURKE, Edmund. “Discurso sobre a reforma da representação na câmara dos comuns”. Op.

cit. p. 57-8 104

BURKE, Edmund. “Discurso sobre a reforma da representação na câmara dos comuns”. Op.

cit. p. 59.

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particulares, que inevitavelmente a desviariam do seu objetivo. Conforme vem

afirmado no célebre discurso aos eleitores de Bristol,

“o parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diferentes e

hostis, interesses que cada um deles deveria sustentar, como um agente e

advogado, contra os outros agentes e advogados; o parlamento é uma assembleia

deliberativa de uma nação, com um interesse, o interesse do todo [...]. Vós podeis

de fato escolher um membro; mas, uma vez escolhido, ele não é um membro de

Bristol, é um membro do parlamento”105

.

A relação entre o representante e os eleitores, após o momento de eleição,

passa pela mediação de uma terceira entidade, o povo ou a nação, a qual funciona

como referente do plural “nós”, em que todos se reconhecem – we, the people –, e

como premissa de onde o parlamento deduz as medidas que deve tomar. Mas é

evidente que subsiste uma assimetria entre a multidão de eleitores, com a

multiplicidade contraditória de interesses que se dá entre eles, e esse coletivo uno

que surge como sujeito de um interesse comum. O interesse da nação não é

equivalente à soma algébrica, de resto, impossível, dos interesses em presença.

Nem o fato de se lhe atribuir uma consistência empírica, que equivaleria à

resultante dos diversos interesses, como virão a tentar, já nos presentes dias, os

investigadores que adotam o paradigma da Rational Choice, afasta a existência da

referida assimetria. Sendo assim, ficará sempre por apurar a verdadeira identidade

desse “nós” que é a nação e que constitui, no entender de Burke, algo de renitente

a uma definição especulativa, porque está assentada na contingência e em

precedentes de natureza histórica que predeterminam qualquer raciocínio sobre a

matéria. Acima de tudo, resta saber em que medida e de que modo a

independência dos representantes viabiliza as decisões adequadas ao interesse

nacional, em vez de fazer deles os verdadeiros soberanos. Com efeito, mesmo

admitindo que essa independência os poupa à pressão dos interesses particulares

dos eleitores, nada garante que eles escapem à “pressão” dos seus próprios

interesses, como observa James Madison na passagem já citada dos Federalist

Papers, e muito menos que a sua visão do interesse comum seja realmente a mais

adequada.

105

BURKE, James (editor). The Speeches of the right Hon, Edmund Burke. Dublin: James Duffy,

1862. p. 130.

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A dificuldade com que a doutrina de Burke se defronta é a mesma que

serve de fundamento à recusa da representação por parte de Rousseau. “A

soberania – diz o Contrato Social – não pode ser representada, pela mesma razão

por que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a

vontade não se representa: ou é a própria, ou é outra; não há meio termo; os

deputados do povo não são, portanto, nem podem ser seus representantes, são seus

comissários.” É por isso que, acrescenta Rousseau, o povo inglês se engana

quando pensa ser livre, porque não o é senão “durante a eleição dos membros do

parlamento”106

. Para que o povo seja livre o ano inteiro, é preciso que se

identifique realmente, e não apenas nominalmente, com o soberano e seja o

verdadeiro autor das leis, sem a mediação de representantes, que vão

irremediavelmente usurpar-lhe a soberania. No plano dos princípios, nada haveria

a objetar: a lei só é legítima quando exprime uma “vontade geral”, isto é, uma

vontade que não seja apenas a dos representantes, nem sequer a da maioria dos

eleitores. O problema surge quando se pretende fazer da “vontade geral” um

operador político, e não meramente ético, transferindo-a, para usar termos

kantianos, do plano transcendental para o plano empírico. A este respeito, o que se

aproveita das páginas do Contrato Social não vai muito além da nostalgia da

cidade grega e dos cantões suíços da infância do autor, manifestamente

insuficiente para pensar o funcionamento de uma república atual. Com uma

agravante: leituras de Rousseau não tardarão em ler sua exigência de identificação

de governados e governantes como condição para que a liberdade prevaleça e a

autoridade seja legítima, como argumento a caucionar totalitarismos de vários

tipos. Nestes casos, a ausência de representação se traduzirá na existência de

governos que, apresentando-se como verdadeira expressão do povo soberano,

condenam e punem qualquer dissidência como um crime de lesa-soberania.

O dilema de Rousseau é o mesmo de todas as formas que depois dele e até

hoje buscam formas de democracia direta como alternativa à democracia

representativa. Na realidade, ao pressupor a sociedade como um todo unificado,

sem distinções de nenhuma espécie, nem sequer entre governantes e governados,

a democracia direta afasta em teoria qualquer espécie de desigualdade. Mas torna,

por isso mesmo, impensável a existência política do agregado: a vontade geral é,

106

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 134.

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por natureza, impossível de se dar empiricamente, o que por um lado faz com que

os enunciados concretos da lei sejam sempre fruto da vontade particular do

legislador – os representantes –, mas por outro lado faz com que a dissidência seja

um elemento natural, que só pela violência pode ser arrancado do interior do

corpo político. Por este motivo, a lado das tentativas de abolir a representação e os

parlamentos, para radicalizar o fator democrático inerente à doutrina de Rousseau,

vêm-se assistindo nos últimos dois séculos a tentativas de afirmar a representação

como forma de incorporar o máximo de democraticidade compatível com a

prática social107

.

A primeira e mais paradigmática dessas tentativas de teorizar a democracia

representativa pode encontrar-se em Sieyes, cuja obra parte de comentários e

frases colhidas diretamente do Contrato Social. Tal como Rousseau, Sieyes

recusa o conservadorismo burkeano e o culto do passado como fonte de inspiração

das leis. Algumas frases de Sieyes podem ser lidas como dirigidas

especificamente a Burke. Sieyes indigna-se, por exemplo, “contra essa multidão

de escritores que se consomem a pedir ao passado aquilo que devemos ser no

futuro, a buscar em tradições miseráveis , tecidas de desrazão e mentiras, as leis

restauradoras de ordem pública”108

. Leva mesmo a refutação ao sarcasmo, quando

alvitra a hipótese de existir “em algum lugar da terra, fora do poder dos tiranos e

ao abrigo dos estragos causados pelo tempo, um depósito sagrado onde se

conservariam religiosamente os arquivos autênticos dos povos, e que aí, com um

recurso sempre aberto às nações, se poderia consultar, quando fosse e os direitos

de toda a associação humana”. E Sieyes conclui com uma frase tipicamente

iluminista: “Os arquivos dos povos não estão aniquilados, sem dúvida que não,

mas é na razão, e não alhures, que está o seu depósito fiel e seguro.”109

A razão

proclama de forma irrefutável “que a vontade individual é o único elemento a

partir do qual se pode formar as leis e que uma associação legítima não pode ter

outra base a não ser a vontade dos associados”110

.

107

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 26 108

SIEYES, Emmanuel Joseph. “Observações sobre os meios de execução de que poderão dispor

os representantes da França em 1789”. In: AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op.

cit. p. 82. 109

Idem. p. 75. 110

Idem. p. 76-8.

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96

Contrariando uma vez mais Edmund Burke, e se alinhando com Rousseau,

Sieyes pensa a soberania como uma questão de vontade. Tenta, no entanto,

escapar às aporias de Rousseau e contornar o obstáculo que constitui a

identificação por este feita entre o legislador e a população submetida às leis,

esboçando no capítulo V do ensaio O que é o terceiro-estado?111

uma teoria da

representação. Ele parte da noção de que “para prover às necessidades comuns, é

necessária uma vontade comum”, e que “esta vontade deve ser naturalmente o

produto geral de todas as vontades particulares”. Como, porém, as vontades

particulares divergem entre si, é necessário convencionar que a vontade comum

seja a vontade da maioria. E como, numa sociedade com alguma dimensão, não é

possível reunir todos a cada vez que se decide, delimitam-se as circunscrições que

enviam porta-vozes. Mas os porta-vozes precisam de negociar entre si para chegar

a uma decisão. E aí levanta-se o problema crucial da representação, isto é, o

momento em que a teoria se vê forçada a dar o salto para a independência da

vontade dos representantes:

“Temos que perceber que, se fosse necessário consultar novamente os comitentes

das diferentes jurisdições, dar-lhes parte do que se passou, aguardar até novas

ordens, e recomeçar este mesmo ciclo, enquanto os pareceres não apresentarem

uma vontade comum, os negócios não teriam fim, o interesse público sofreria

com isso, e a generalidade dos associados, por querer reservar-se demasiado

imediatamente o exercício da sua vontade, interdir-se-ia o uso dela. [...] a

comunidade resolve-se, pois, a atribuir mais confiança a seus mandatários. Provê-

os de procuração a fim de se reunirem, deliberarem, conciliarem-se e quererem

em comum: então, em vez de simples portadores de votos, ela passa a ter

verdadeiros representantes”112

.

Esse salto lógico se afasta do plano rousseauniano em que a demonstração

de Sieyes ocorrera até então. Não, entretanto, sem que o autor procurasse atenuar

os efeitos do afastamento: “Note-se que a missão dada aos representantes nunca

pode ser uma alienação [...]. Esta missão é essencialmente livre, constantemente

revogável e limitada segundo o arbítrio dos comitentes, quer no tempo, quer na

natureza dos negócios. [...] a comunidade não se despoja do direito de querer”113

.

Esse direito de querer é, antes de mais nada, a soberania entendida como

pura liberdade, sem qualquer determinação, a vontade em estado de natureza. Mas

111

SIEYES, Emmanuel Joseph. Qu'est-ce que le Tiers Etat?. Paris: Puf/Quadrige, 1982. 112

SIEYES, Emmanuel Joseph. Observações sobre os meios de execução de que poderão dispor

os representantes da França em 1789. Op. cit. p. 76-8. 113

SIEYES, Emmanuel Joseph. Qu'est-ce que le Tiers Etat?. Op. cit. p. 137.

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também o poder constituinte, como lhe chama Sieyes, o poder de definir os

contornos que terão de apresentar todas as disposições que os representantes

venham a tomar. É esse direito de querer que permanece inalienável, de tal modo

que o agregado não pode jamais ficar refém de nenhuma das formas em que se

exprime a sua própria vontade. A vontade soberana, ou o poder constituinte, é o

princípio absoluto do ordenamento jurídico e, nessa qualidade, permanece

subjacente a cada uma das leis positivas. Por debaixo de cada norma lateja a

vontade da nação, que é seu fundamento.

Contudo, os elementos de que é feita essa vontade comum, isto é, as

verdadeiras vontades individuais, não se cristalizam e estagnam no ato de vontade

que dá origem à constituição da nação. Enquanto vontades e enquanto singulares,

elas mudam e vão divergir a respeito dos próprios termos em que ficou selada a

sua associação. Para que a ordem assim constituída se perpetuasse

espontaneamente como vontade comum, nos temos em que Sieyes a define, seria

necessário imaginar um conjunto de vontades que estivessem permanentemente a

reativar a vontade de se manterem associadas. Seria necessário que a nação se

definisse unicamente como pode constituinte, sem mediações, das quais a vontade

comum corre sempre o risco de ficar refém ou de nelas se alienar.

Entretanto, a imagem de uma nação que se esgota na reafirmação contínua

de sua identidade seria literalmente uma nação apolítica e irreal. Para encarnar,

para que a multiplicidade das vontades individuais assuma forma e desse modo se

transforme num Estado soberano, a nação tem literalmente de se desdobrar: a

vontade comum, que é o poder constituinte, só pode se manifestar concretamente,

e assumir uma existência histórica, dando-se a si mesma uma forma, afirmando-se

como poder constituinte. Nessa medida, a nação é um conceito limite: ela é

vontade absoluta e indeterminada, ou direito de natureza, mas é também o seu

contrário, ou seja, vontade expressa e fixada numa Constituição, a qual molda os

decretos e a ação dos legisladores e governantes, conferindo uma forma concreta à

liberdade dos cidadãos114

.

114

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 29.

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Uma vez que se recuse a ideia burkeana de que a representação resulta

unicamente da experiência histórica de um povo, resta definir a origem e o

fundamento da Constituição, bem como o intérprete autorizado do interesse

nacional. Sieyes prevê, como Rousseau previra, que os cargos executivos sejam

delegados naquilo a que ele chama de “representantes ordinários”. Mas estes são

meros comissários, que administram e governam de acordo com as leis. O

problema está no poder legislativo, na questão de quem tem legitimidade para

legislar em nome do povo. Para responder a ela, sobre a qual a doutrina de

Rousseau é omissa, Sieyes sugere o mecanismo da representação: “Como uma

grande nação não pode reunir ela própria de cada vez que circunstâncias fora do

comum possam exigi-lo, é preciso que confie a representantes extraordinários os

poderes necessários nestas ocasiões”. Este “corpo de representantes

extraordinários” não tem de possuir “a plenitude da vontade nacional”. No

entanto, “substitui a nação na sua independência de todas as formas

constitucionais”. E, sendo certo que tais representantes só estão mandatados para

um assunto específico e por um tempo determinado, nesse preciso assunto e nesse

preciso tempo eles “estão colocados em lugar da nação” e “a sua vontade comum

valerá como a da própria nação”115

. Assim, para que a nação seja realmente

soberana, é preciso haver não só representantes, mas representantes que sejam

soberanos em nome dela. Estava em marcha a democracia representativa.

A tradição democrática dos últimos dois séculos é toda ela atravessada

pelo paradoxo de uma soberania que tende a ser recusada, para que a liberdade

individual permaneça, e que ao mesmo tempo é requerida, para emprestar

efetividade à vontade comum. Por um lado, a democracia, ao afirmar a identidade

entre o povo e o soberano, leva o eleitor a querer ver-se nos representantes, isto é,

a querer ver as suas opiniões e aspirações expressas no parlamento e traduzidas

em leis. Por outro, legislar exige competências – técnicas, científicas, morais –

que só alguns possuem ou que nem todos se dispõem a exercer. É necessário,

portanto, proceder a uma eleição.

Não se está diante apenas de uma razão pragmática para a necessidade de

eleger representantes, embora seja este o motivo frequentemente invocado para

115

SIEYES, Emmanuel Joseph. Qu'est-ce que le Tiers Etat?. Op. cit. p. 143-144.

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legitimar a constituição dos parlamentos. Não é apenas porque é impossível a um

povo numeroso reunir-se para cada uma das decisões, mas porque uns fazem

melhor do que outros, sem que isso ofenda o princípio da igualdade, desde que

este se entenda em sentido aristotélico: a cada um o que lhe é devido. Os

representantes constituem uma elite, não apenas por serem eleitos mas também

porque devem ser possuidores de competências que para tal os habilitem.

A questão de que competências são essas e do que difere a elite

democrática da aristocrática foi uma das mais sensíveis no contexto de combate

aos privilégios que caracteriza o da Revolução Francesa. Tratava-se então de

definir as condições de possibilidade de um corpo que fosse ao mesmo tempo a

figuração do conjunto de cidadãos e o criador da própria nação. Isto é, de definir

os princípios constitucionais em que todos eles se reconhecem. O credo

republicano, no interior do qual a discussão se desencadeia, irá providenciar dois

conceitos que, no dizer de Pierre Rosanvallon, desempenham um papel

fundamental: o mérito e a confiança. O mérito requer-se não apenas por ser um

fator distintivo mas sobretudo por ser um elemento intrinsecamente pessoal, não

hereditário nem extensível a qualquer tipo de grupo: familiar, social ou

profissional. Recrutando pelo mérito, reúne-se a qualidade individual e forma-se

um coletivo que não é uma casta nem uma classe, mas um grupo efêmero e

intrinsecamente volátil. Quanto à confiança, ela define a relação ao mesmo tempo

de proximidade e de distância entre representados e representantes: manifestar

confiança em alguém é, por um lado, ser cúmplice, reconhecer-se no que ele faz,

e, por outro, autorizar outrem a fazer algo que se reconhece como seu. Ao

contrário do mérito, a confiança não se baseia em nenhuma qualidade intelectual,

econômica ou social: é uma relação ética, ou melhor, psicológica, que o eleito

poderá eventualmente defraudar. Mas é também, tal como o mérito, uma

caracterização híbrida, que tem um pé na identidade, outro na distinção e que,

deste modo, mascara o fosso entre eleitores e eleitos116

.

Entretanto, apenas aparentemente esses dois conceitos serão suficientes

para dar consistência à ideia de soberania popular de modo a ultrapassar o

impasse de Rousseau e consagrar em definitivo a democracia como

116

ROSANVALLON, Pierre. Le peuple introuvable. Paris: Gallimard, 1998. p. 61.

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representativa. A tensão entre igualdade e representação sobrevive. Para ser

inteiramente democrática, a representação teria de voltar a traduzir-se em

mandatos imperativos. Porém, como se viu com Burke, não seria possível

conciliar o mandato imperativo com o sistema representativo parlamentar. A

representação e o mandato imperativo excluem-se um ao outro117

. O mandato

imperativo supõe a responsabilidade do representante em face do representado,

enquanto o sistema representativo supõe que o representante é responsável

unicamente perante a sua consciência, e que só a livre discussão racional entre os

homens de mérito e de confiança que forem eleitos, separados das respectivas

famílias e grupos de interesse, forjará a verdadeira vontade comum, isto é,

constituirá a nação. A representação, ao menos desde sua formulação hobbesiana,

e ao longo de toda modernidade, considera isoladamente cada um dos indivíduos

e cidadãos. Toda a máquina social deriva dessa multidão de premissas que são as

vontades individuais. O eleitor ao eleger tal como o eleito ao agir têm por critério

último a sua própria consciência. Daí as suspeitas, visíveis já em Rousseau, e até

muito tarde constantes no pensamento republicano e liberal do século XIX, em

relação aos faccioninsmos, aos cartéis de opinião e de interesse, à própria

formação de partidos organizados.

De acordo com o Contrato Social, todos os votos devem ser contados, o

que ditará o alastramento do sufrágio universal. Mas cada um deles, para

constituir realmente um dos elementos de que se faz a vontade geral, terá de ser

decidido em separado, à margem de qualquer influência, num isolamento que o

cerimonial das eleições se encarrega de perpetuar ainda nestes dias.

Tanto os setores conservadores como os radicalmente democráticos irão

por muito tempo resistir a uma tal consagração do individualismo e à absorção das

estruturas tradicionais pela arquitetura racional do poder emergente: os primeiros,

por considerarem o sistema uma abstração vazia, um corpo inorgânico, em ruptura

com a sociedade de classes, corporações e outros tipos de divisões com as quais

os indivíduos tradicionalmente se identificaram; os segundos, porque o sistema,

embora proclame a soberania popular, não conduz a um exercício efetivo do

poder pelo povo. Neste ponto, Proudhon foi certeiro ao afirmar:

117

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Op. cit. p. 309.

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“Sem dúvida, quando um povo passa do Estado monárquico ao Estado

democrático, há progresso porque ao multiplicar o soberano oferecem-se mais

oportunidades à razão para se substituir a vontade; mas, no fundo, não há

revolução do governo, pois o princípio ficou o mesmo. Ora, nós temos a prova,

hoje, de que é possível, com a democracia mais perfeita, não ser livre.”118

Ao sublinhar o silêncio do povo, Proudhon colocava o dedo numa ferida

insistentemente diagnosticada, apesar de toda retórica destinada a ocultar o

verdadeiro estatuto do representante e a sua incompatibilidade com o paradigma

tradicional, segundo o qual a representação se associava a uma delegação pelo

povo, identificando representante e representado. A dificuldade reside

precisamente no fato de o povo, enquanto unidade e vontade comum, só existir

mediante a representação.

O pensamento conservador tenta responder à questão contrapondo à nação

dos revolucionários, suspeita de não se traduzir senão no voluntarismo da parte

atuante do povo119

, uma nação como a que Burke se referira e que o romantismo

irá decantar, dotada de uma história, um espírito e uma personalidade particulares,

que antecederam e que devem informar a decisão dos legisladores. À luz de

semelhante conceito de nação, o povo pode ser representado quer por um rei, que

não é eleito, quer por um parlamento eleito, quer até de ambas as formas: em

qualquer dos casos, os representantes são tidos unicamente por intérpretes do

interesse nacional. Porém, do ponto de vista da representação, o essencial do

problema permanece o mesmo, seja em versão nacionalista, em versão liberal ou

em versão democrática. Em todos esses modelos, o que está em questão, sem

excluir as profundas diferenças que naturalmente os opõem, é aqueilo que Hobbes

definira como a criação de “uma pessoa una”, através da unidade do

representante120

.

O objetivo de tal entendimento de representação foi substituir a sociedade

medieva, com sua cascata de órgãos e corporações relativamente autônomos, por

aquilo que Norbert Elias chamou de sociedade dos indivíduos, na qual a figura da

unidade política, ou do Estado, surge como réplica do uno biológico: o Leviatã

118

PROUDHON, Pierre-Joseph. La royauté du people sauverain. Paris: Temps Nouveaux, 1912.

p. 3. Apud: AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 34. 119

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 43. 120

HOBBES, Thomas; TUCK, Richard. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de uma república

eclesiástica e civil. Op. cit. p. 220.

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hobbesiano é um homem artificial. O receio da multiplicidade de facções, como as

monarquias e repúblicas, provém dessa ideia, segundo a qual o corpo político se

traduziria obrigatoriamente pela homogeneidade da crença e da vontade em que

assenta o alegado interesse nacional. Esta é a razão por que os projetos

revolucionários foram sucessivamente assaltados pelo mesmo receio que assaltara

o absolutismo esclarecido. Ambos tentaram reagir do mesmo modo, perseguindo

toda a diferença que se verificasse no seu interior121

. Na medida em que a

unidade, tanto num caso quanto noutro, se pensa como unicidade, a identificação

do poder com o povo não deixa margem para a diversidade de opiniões no espaço

público. Tudo o que seja dissidência, mais ou menos organizada, dirigida à

política aparecerá como um Estado dentro do Estado.

O artificialismo em que se traduz o Estado, enquanto multiplicidade de

vontades unificadas pelo mecanismo da representação, não se confronta apenas

com os nostálgicos dos antigos privilégios. Confronta-se igualmente com a

diversidade de agrupamentos sociais que não se consideram representados. O

poder eleito atribui-se a si próprio o monopólio da representação política e, de

fato, é ele que representa a sociedade como um todo, já que este todo só existe em

razão da representação que o constitui.

Porém, nem a sociedade como um todo equivale a um todo social que

supostamente a antecederia, nem, por outro lado, o mito da representação como

descrição da sociedade alguma vez desaparece do horizonte. Pelo contrário, a

assimetria entre a realidade social e a realidade da representação, evidenciada por

todas as minorias e excluídos da formação da vontade geral, fomenta a exigência

da igualdade e da identificação entre o poder e o povo. Nos séculos XIX e XX, os

produtores centrais da constante crítica da representação como usurpação do

poder pela oligarquia de representantes serão os movimentos operários.

O contexto de críticas, oriundas das pontas radicais à esquerda e à direita,

e de generalizada suspeição ou suspeição por parte dos ideólogos da

representação, é o cenário pelo qual se deve entender o escrito de Hans Kelsen, de

1925. Trata-se de uma proclamação em defesa do parlamento, contra os muitos

121

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 33

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sinais do seu declínio, dos quais o autor se faz eco. Porém, no escrito de 1925,

Kelsen elabora um conjunto de sugestões para a reforma do parlamento, com

relevo para a recusa do corporativismo e para o reconhecimento dos partidos

como entidades mediadoras da vontade popular. Para Kelsen, os deputados

deveriam ser responsáveis perante os partidos, ao ponto de considerar “por demais

lógico que o deputado tenha de perder o seu cargo, se deixar de pertencer ao

partido que o enviou para o parlamento”122

.

O texto de Kelsen enuncia vários fatores da hostilidade à representação,

mas um é especialmente sublinhado:

“Mal o domínio do parlamento substituiu o da monarquia constitucional,

recorrendo precisamente ao princípio da soberania popular, não pôde escapar à

crítica a crassa ficção implícita na teoria, já formulada na Assembleia Nacional

francesa de 1789, de que o parlamento, por sua própria natureza, é o

representante do povo [...]. Não deve, pois, fazer espécie que, entre os

argumentos hoje dirigidos sem rebuço contra o parlamentarismo, figure em

primeiro lugar a descoberta de que a vontade do Estado formada pelo parlamento

não é, em absoluto, a vontade do povo.”123

É uma crítica certeira. Se o parlamento se pensar como extensão da ideia

de liberdade democrática, de tal modo que a lei não possa ser ditada senão

diretamente pela mesma vontade popular que terá de lhe obedecer, então está-se

perante um embuste, “quanto mais não fosse porque, segundo as Constituições

dos Estados governados parlamentarmente, não se pode formar uma vontade do

povo – salvo no ato de eleição do parlamento”.

Entretanto, o parlamento esteve até tarde associado aos ideais

democráticos, precisando por isso de um operador conceitual para fazer aparecer a

vontade do legislador como afirmação da soberania popular. Este operador, como

anteriormente apontado, foi precisamente o conceito de representação, um

conceito, segundo Kelsen, “ligado a condições demasiadamente primitivas de

técnica política”. Mesmo que este conceito tenha tido algum efeito positivo a

conter “a violenta pressão da ideia democrática”, ele perdeu a sua

operacionalidade assim que a ideia de parlamento deixou de ter um adversário

político contra o qual tivesse que se afirmar. O desafio que se coloca, para Kelsen,

122

KELSEN, Hans. O problema do parlamentarismo. In: AURÉLIO, Diogo Pires. Representação

Política. Op. cit. p. 157. 123

Idem. p. 155.

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é defender o parlamentarismo e apontar o caminho para que este saia da crise que

todos lhe diagnosticam, sem no entanto recorrer à desacreditada “ficção da

representação”. Em uma linha, para o autor, se a representação perdera

pertinência, o parlamento não tinha necessariamente que conhecer a mesma sorte.

O parlamento é, por essência, um “meio técnico-social” destinado a formar

a vontade do Estado, não a vontade do povo, embora seja este quem elege os

agente dessa formação. Se a eleição associa o parlamento às ideias de liberdade e

autodeterminação, a “divisão do trabalho” que nele tem lugar, confiando a uma

elite a formação da vontade do Estado, contradiz “o caráter fundamental da ideia

de liberdade democrática”. O parlamentarismo é apenas uma técnica de preservar

o máximo de liberdade individual, embora limitando-a. “O parlamentarismo [...]

apresenta-se como um compromisso entre a exigência democrática de liberdade e

o princípio diferenciar da divisão do trabalho, que é a condição de todo o

progresso da técnica social.”124

A oposição de Carl Schmitt às ideias de Kelsen é conhecida e presente

também no tratamento dado por cada um ao tema da representação. Ela é visível

no primeiro capítulo de Essência e Valor da Democracia (1923), quando o

primeiro critica o último por conceber a organização da democracia como uma

empresa econômica. Kelsen replicará em 1925, criticando Schmitt por associar o

liberalismo a um “vasto e coerente sistema metafísico”. Ao que Schmitt irá

treplicar, inserindo na segunda edição do já referido texto (1926) uma extensa

nota prévia, em que retoma as mesmas críticas a Kelsen.125

Tal como Kelsen, Schmitt também considera a democracia animada por

princípios que se opõem àqueles que inspiram o parlamentarismo: “A moderna

democracia de massas procura realizar uma identidade entre governantes e

governados, e depara-se nesse caminho com o parlamento enquanto instituição

que passou a ser incompreensível, decrépita”. Esta decrepitude se deve à

suposição de que os representantes são independentes e decidem orientados pela

própria consciência, o que é contrário à democracia, cuja essência tende a vinculá-

los a um mandato imperativo dos eleitores. Além disso, supõe-se que as decisões

124

Ibidem. 125

AURÉLIO, Diogo Pires. Representação Política. Op. cit. p. 36

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105

baseiam-se na livre discussão entre os representantes, com publicidade e

transparência, o que não acontece na chamada democracia de massas, onde tudo

se decide em segredo nos comitês partidários, que “não se defrontam como

opiniões em discussão, mas como grupos de poder”. No decorrer do século XIX,

as duas fontes de inspiração confundiram-se, porque tanto liberais como

democratas se opunham ao absolutismo. Mas sua heterogeneidade latente veio à

luz, e a oposição entre o ethos moral que anima o individualismo liberal e o

“sentimento de Estado democrático, dominado por ideias essencialmente

políticas”, revelou-se intransponível.126

Kelsen considera a representação como um resíduo de um paradigma

cultural que se teria tornado insustentável à luz da ciência positiva: a ciência do

direito não lida com ficções. Contudo, o autor também não vê alternativa ao

parlamentarismo, que define essencialmente como uma técnica social destinada à

produção e apuramento das normas. E, embora remeta a representação para a

categoria das mistificações e menospreze a questão dos princípios e valores em

que se funda o parlamentarismo, não vê qualquer contradição nos termos e julga

ser perfeitamente viável a consolidação da democracia parlamentar, num quadro

histórico e cultural diferente daquele em que ela teve origem e se desenvolveu.

Schmitt, porém, insiste na diferença de valores em que assentam o

parlamentarismo, por um lado, e a democracia, por outro, reatualizando, assim, a

conhecida ideia de Montesquieu de que cada regime é animado por um princípio

unificador, que dá coerência às leis e à vida política e social. Schmitt discorda

ainda de que a representação possa ser entendida como simples adjacência

instrumental, ou técnica jurídica, na medida em que ela remete sempre a questões

de valor: sem valores não há representação.

No opúsculo Catolicismo Romano e Forma Política (1925), Schmitt

sublinhara que a representação não é aquilo por que a toma a visão liberal e o

mundo burguês, o mundo dominado pelo “pensar econômico”, onde ela se

entende como reflexo, emanação, ou espelhamento, a que corresponde no direito

privado a simples delegação de interesses. Contrariamente a este tipo de

126

Idem. p. 36

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representação, que exerce alguém mandatado por outrem para fazer em nome dele

uma negociação – um embaixador, por exemplo – a representação de que se fala

em política não confunde com um conceito pragmático pois supõe sempre no

representante uma autoridade pessoal: “A representação dá à pessoa do

representante uma dignidade própria, porque o representante de um valor elevado

não pode não ter valor. Contudo, não é apenas o representante e o representado

que requerem um valor, é também o terceiro, o destinatário para o qual se voltam.

Diante de autômatos e de máquinas não se pode representar.”127

Isso quer dizer, à

boa maneira hobbesiana, que o representante terá que ser uma personificação do

povo, não do povo empiricamente dado ou da soma dos eleitores, mas da

totalidade una em que se reconhece cada um dos indivíduos que o compõem, a

unidade superior em que se realiza o que Schmitt designa por “complexio

oppositorum da multiplicidade dos interesses e dos partidos”128

.

Entretanto, se o pensamento se confina à weberiana “racionalidade

instrumental” característica do mundo econômico, a ponto de a própria política se

considerar um efeito ou reflexo deste, tal personificação tenderá a ser interpretada

como instrumento de mistificação e dominação. A ideia de que o representante

personaliza o povo idealmente entendido como unidade é uma abstração. Tomá-la

por algo efetivo é recorrer ao modelo da transcendência. E a transcendência supõe

sempre dois planos: o dos que mandam e o dos que obedecem.

Consequentemente, tal proposição representa uma ruptura com o princípio da

igualdade.

Kelsen, à sua maneira, isto é, preservando a diferença do político e do

Estado ante o econômico, recusa-se a admitir uma personalização do

representante. Para o Estado se identificar com a ordem jurídica – uma das teses

centrais da principal obra de Kelsen, a Teoria Pura do Direito – e a legitimidade

com a legalidade, a lei não pode pensar-se senão impessoal, como um sistema de

normas produzidas no interior da própria lógica que o anima. Daí que a

representação lhe apareça não só como ficção dispensável, mas também como

vestígio de transcendência que o seu positivismo jurídico rejeita.

127

Idem. p. 58. 128

Ibidem.

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107

Nesse capítulo procurou-se recuperar a matriz liberal de diferentes

concepções de representação política. Procurou-se fazê-lo em atenção à

necessidade de esclarecer os contornos liberais da tradição teórica da

representação para identificar, oportunamente, e com clareza, em que medida a

representação profissional se distingue dela. O objetivo, entretanto, não é,

naturalmente, o de caracterizar a representação profissional como uma adversária

da representação política, confundindo-a com o corporativismo. Ao contrário, o

que se quer é preparar o caminho para apontar de que maneira a representação

profissional se distingue dele e se aproxima dos objetivos da representação

política tradicional. É o que se fará a seguir.

No presente capítulo procurou-se apresentar a representação como um dos

elementos centrais do liberalismo, a representação. Para isto, foram apresentadas

diferentes concepções de representação, tanto para apontar a matriz liberal da

representação política moderna, quanto para indicar que ela está submetido às

variações relativas à ambivalência do liberalismo. No século XX, razões

contextuais se impuseram sobre a teoria liberal, produzindo para a representação a

necessidade de uma atualização. Esta, porque dependeu da reformulação da

unidade central da teoria liberal, o indivíduo, será carregada de ambivalências.

Como medida de salvaguarda do liberalismo político, foi proposta a ideia de

representação profissional, a qual se fundará em unidades coletivas. Ela precisa

ser cautelosamente distinguida de um contemporâneo seu, o corporativismo, o

qual, ao contrário, foi pensado como substituto do liberalismo. É disto que tratará

o próximo capítulo.

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Capítulo 3. Sobre a formulação liberal da representação profissional e sua distinção em face do corporativismo

Nas primeiras décadas do século XX, o liberalismo precisou “mudar de

alma e de significado”129

para sobreviver. Sobretudo após a Primeira Guerra,

viviam-se momentos de desencantamento com as promessas de progresso e de

autonomia moral do homem que caracterizaram o século XVIII. Enquanto o

século XIX experimentou a organização das nações segundo as premissas da

filosofia liberal, as primeiras décadas do século XX testemunharam o fracasso da

expectativa de justiça pela espontaneidade do liberalismo, tanto político quanto

econômico. Diante da Primeira Guerra Mundial, a bestialidade de sua

mortalidade, duração e frivolidade, assim como a pobreza gerada pela natureza

concentradora do modo de produção, denunciaram a precariedade do estado

civilizacional do homem e a fraude do argumento de enriquecimento advogado

em nome do capitalismo na Europa. O mundo produtivo produzira um número

considerável de vítimas que, deslocados da vida política, passaram a se organizar

no movimento operário para demandar direitos.

Não foi outra a razão pela qual, no Brasil, a Constituição de 1934 fixou,

em seu Capítulo II, dedicado ao Poder Legislativo, o convívio entre duas formas

de representação na Câmara dos Deputados, a tradicional, dos representantes

eleitos pelo povo, e a profissional, dos eleitos pelas “organizações profissionais”.

Definiu que os “representantes do povo” seriam eleitos mediante o sistema

proporcional e sufrágio universal, igual e direto, mas furtou-se a definir com

precisão a forma da representação profissional, limitando-se a afirmar, em seu art.

23, que a “Câmara dos Deputados compõe-se [...] de representantes eleitos pelas

organizações profissionais na forma que a lei indicar”130

. Não obstante a omissão

da Constituição de 1934 em detalhar os termos da representação profissional, o

tema fora objeto de acalorado debate desde 1932, quando começaram as reuniões

da Subcomissão do Itamaraty, encarregada de elaborar o anteprojeto de

Constituição que orientaria a Assembleia de 1933. O dissenso repousava,

129

ATIAS, Christian. “Philosophie du droit: les enjeux d'une fin de siècle”. In: PLANTY-

BONJOUR, Guy; LEGEAIS, Raymond. L'évolution de la philosophie du droit en Allemagne et en

France depuis la fin de la seconde guerre mondiale. Paris: PUF, 1991. p. 241. 130

BRASIL. “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”. In: Constituições do

Brasil. São Paulo: Edição Saraiva, 1967. p. 244.

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109

principalmente, sobre a potencialidade antiliberal desse tipo de representação num

ambiente em que floresciam formas fascistas de corporativismo.

Importa desde logo caracterizar o que se está a chamar de corporativismo e

dele distinguir a representação profissional. Segundo uma forma geral conhecida,

corporativismo é a doutrina que propõe a organização da sociedade com base em

associações representativas dos interesses e das atividades profissionais, ou

corporações. Graças à solidariedade dos interesses concretos e às fórmulas de

colaboração daí derivadas, seriam removidos ou neutralizados os elementos de

conflito, como a concorrência no plano econômico, a luta de classes no plano

social, ou as diferenças ideológicas no plano político.131

A realidade conflitiva do

mundo do trabalho seria absorvida por instituições estatais que tratariam de

resolver as disputas de maneira a reduzir os seus impactos para a produção e, ao

mesmo tempo a blindar os trabalhadores das propostas de organização inspiradas

pelo socialismo.

O corporativismo moderno nasce no interior da ciência social, no

momento mesmo em que ela se pretende delimitar enquanto campo autônomo. É

com Émile Durkheim132

que ele atinge sua forma mais acabada, e também a mais

pertinente para a finalidade do presente trabalho de investigar a representação

profissional, já que o principal autor a pensa-la desenvolveu muitos pontos de sua

reflexão acerca do corporativismo133

.

Durkheim estabeleceu sua teoria sociológica através de uma espécie de

reação ao “individualismo liberal”. Na segunda metade do século XIX,

Individualismo e Utilitarismo dominavam o clima intelectual e acadêmico do

ocidente. Os mais proeminentes teóricos dessas orientações filosóficas eram

Jeremy Bentham e John Stuart Mill, em teoria política e economia política, e

Spencer, em sociologia. Durante esse período, em que os pioneiros da sociologia

procuraram desenvolvê-la como uma ciência, pensou-se que a disciplina não

obteria sucesso acadêmico sem que se dirigisse aos conceitos de individualismo e

131

DURKHEIM, Émile. “Prefácio à segunda edição”. In: Da divisão do trabalho social. 4. ed. São

Paulo: Editora WMF Martins Fontes LTDA, 2010. 132

DURKHEIM, Émile. “Prefácio à segunda edição”. In: Da divisão do trabalho social. 4. ed. São

Paulo: Editora Martins Fontes, 2010. 133

DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. Paris: Fontemoing, 1927.

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110

utilitarismo, principais visões filosóficas do momento. Acreditou-se, portanto, que

enquanto o individualismo focava no indivíduo, um estudo científico dos

indivíduos ajudaria a explicar o fenômeno social. Não se reconhecia, pois, a

sociedade como algo distinto de seus membros. A tendência acadêmica dirigida

pelo utilitarismo e o individualismo foi responsável pelas ciências sociais

legitimarem apenas disciplinas que tinham por base o individualismo e o

utilitarismo, como a psicologia, a economia política e a história.

Durkheim procurou explicar o fenômeno social mediante a caracterização

de que o individualismo não cabia na pesquisa sociológica. Como o

individualismo ligava-se ao liberalismo, criticou-o e foi dele um adversário. Foi

um crítico duro do utilitarismo e do “individualismo metodológico”.

O liberalismo guarda um sentido político moderno. É a tendência de um

indivíduo de privilegiar políticas liberais, tais como a imprensa livre, liberdade de

voto, mercado livre, liberdades iguais etc. O liberalismo considera o indivíduo

como unidade primordial e principal componente do grupo social. Considera,

portanto, o grupo como a soma de seus membros. O principal fator que leva um

indivíduo a ingressar numa comunidade é o desejo de se preservar e ser protegido

através de um sistema – a sociedade. Esta é sistematizada espontaneamente, sem

planejamento deliberado. Essa comunidade sistematizada, que é a soma dos

indivíduos, permite aos indivíduos usufruir dela de acordo com suas necessidades.

Isto, por seu turno, beneficia toda a sociedade. Uma sociedade equilibrada tem

para os indivíduos a mesma função que o mercado tem na economia. Para tanto, o

liberalismo tem que ver a sociedade como um ambiente livre de valores.

Um pensamento orientado à maneira liberal frustra qualquer iniciativa de

analisar a sociedade. A sociedade não é independente, mas um corpo artificial que

consiste de seus membros, os indivíduos. Ela não tem potencial para explicar o

fenômeno social, pois os indivíduos são os princípios de qualquer explicação

fenomênica da vida social. A noção de que a sociedade funciona como um

mercado econômico, ou que existe uma mão invisível que sistematiza a sociedade,

elimina a necessidade de qualquer pensamento social, deixando a dimensão

econômica agir sobre a estrutura da sociedade.

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111

Durkheim argumentou que o que dificultou a emergência da sociologia foi

a visão dos cientistas políticos de que a sociedade era feita de indivíduos134

,

segundo os quais a sociedade não era mais do que uma ferramenta para que os

indivíduos obtivessem mais benefícios enquanto cooperassem entre si. Como tais

benefícios não são atingidos caso os indivíduos não se tornem sociais, a

socialização se baseia numa decisão e num planejamento dos indivíduos.

De fato, os cientistas políticos estavam confundindo a sociedade com o

corpo político, o qual pode ser percebido como o resultado do planejamento e da

cooperação de indivíduos. Entretanto, o mesmo não pode ser dito da sociedade.

Durkheim, tradicionalmente tomado por um funcionalista135

, defende a visão

oposta, considerando a sociedade como algo que normalmente aparece como

resultado da presença de humanos juntos. É a participação humana num grupo que

cria a totalidade da sociedade.

Durkheim define a sociedade como “um complexo de ideias e

sentimentos, de maneiras de ver e sentir, certo esquema intelectual e moral

distintivo que caracteriza o grupo inteiro”136

. Em relação percepção de

comunidade entre os indivíduos, o autor argumenta que os sentimentos de

pertencimento dos indivíduos se devem a sua “consciência coletiva”, em lugar de

simplesmente do indivíduo. Ele acredita que a sociedade existe separada dos

indivíduos que a formam. É um fenômeno nela mesma e deve se considerada

como tal. Valores, modos e metáforas existem não apenas nas consciências

indivíduos, mas como uma “consciência coletiva” independente desses

indivíduos. A sociedade é coletivista, ou é percebida coletivamente, não sendo

apenas o produto de ideias ou desejos individuais.

Durkheim considerou que a sociologia, no nível metodológico, era uma

ciência independente da economia. Considerou que a sociologia deveria livrar-se

das características psicológicas dos indivíduos, e dos constrangimentos das leis da

economia. Esse tipo de sociologia não guardava apenas pretensões acadêmicas,

134

DURKHEIM, Émile. “Prefácio à segunda edição”. In: Da divisão do trabalho social. 4. ed. São

Paulo: Editora Martins Fontes, 2010. 135

RAMP, W. Durkheim and After The New Blackwell Companion to the Sociology of Religion

(pp. 52-75): Wiley-Blackwell. 2010 136

BELLAH, R. N. “Emile Durkheim on morality and society”. In: Chicago: University of

Chicago,1973. p 277.

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112

mas continha um programa para proporcionar (ou devolver) à sociedade o

controle sobre a economia.

Ao distinguir entre liberalismo e métodos cooperativos de estrutura social,

Durkheim apontou que, enquanto o modelo liberal depende de contratos entre

indivíduos, o método cooperativo depende da coletividade. A indústria é o

principal motor econômico das sociedades modernas, razão pela qual os

indivíduos dessas sociedades são sobretudo profissionais que trabalham e servem

às indústrias. Assim, esses profissionais devem se integrar em grupos sociais que

garantam seus direitos e deem a eles a oportunidade de serem parte do processo

decisório de suas próprias vidas. Trata-se de uma tentativa de organizar o trabalho

nas sociedades industrializadas. Para Durkheim, os sindicatos eram o método

mais apropriado de organizar o trabalho na era industrial, porque não fariam

concessões quanto aos direitos dos trabalhadores. Ao contrário, levariam em conta

as vidas de tais trabalhadores. Não se trata, entretanto, de sindicatos organizados

pelo Estado, mas de instituições que adviriam dos trabalhadores e que

funcionariam como mediadoras entre eles e o Estado. Os sindicatos seriam um

mecanismo que elevaria interesses individuais dos trabalhadores, e de seus

direitos perdidos, ao nível do interesse público.

A democracia, aos olhos de Durkheim, não poderia ser baseada na

representação resultante da divisão geográfica do território. Tal sistema embarca

representantes de tais e quais regiões, do que resulta que a atividade do

parlamento se exaure na resolução de problemas locais de tais regiões. Para

Durkheim, a democracia deve refletir as necessidades dos cidadãos. Por seu turno,

a existência social desses cidadãos não poderia basear-se no território, mas em

seus pertencimentos profissionais. Os representantes não representariam seus

territórios de origem, mas as categorias dos profissionais envolvidos na sociedade

industrial.

Tal visão contrasta com a do “individualismo liberal”, bem como com os

interesses das classes dominantes, porque permitiria uma transformação profunda

da estrutura da democracia que, até então lhes vinha favorecendo.

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113

Nos primeiros anos do século XX, surgiu na França a proposta de

representação profissional, com vistas a harmonizar a possibilidade da

representação mediada de interesses dentro de uma ordem liberal. Neste país, o

debate sobre uma nova forma de representação teve lugar no corpo de uma

discussão maior sobre a necessidade de pensar e legitimar a ordem da Terceira

República e a democracia liberal reconfigurada que veio com ela. Esta, por seu

turno, tem a ver com questões que envolvem a sociedade do pós-Primeira Guerra.

O período de exceção produzira enorme centralização política e econômica e

aumentara a produção industrial. Por seu turno, incrementou-se a organização do

movimento dos trabalhadores para demandar direitos. O recém garantido sufrágio

“universal”137

ampliara a possibilidade dos atores do mundo da produção se

fazerem representar no parlamento, o que ensejou resistências e o surgimento de

uma “nova direita”, antiparlamentarista. Pôs-se, então, a necessidade de repensar

o fundamento da representação política.

A “Grande Guerra” havia mobilizado quantidades inéditas de recursos

humanos e tecnológicos, o que demandou coordenação centralizada. O esforço da

guerra implicou alterações na distribuição do poder nos Estados nacionais

envolvidos. Houve aumento da estrutura e dos poderes do governo para planejar e

dirigir a economia e, consequentemente, enfraquecimento dos parlamentos. O

estado de sítio passou a ser utilizado como ferramenta para garantir a estabilidade

na condução nacional138

. Tal centralização não se limitou ao período da guerra,

alterando a percepção acerca da separação e dos papéis dos poderes do Estado na

condução das políticas nacionais.

Entrava em crise o liberalismo clássico. Alterara-se a forma como era

sentido o regime de liberdades. Até a guerra, na França e nas sociedades anglo-

saxãs, a propriedade, a família, a livre concorrência, a preponderância do

indivíduo e as atribuições reduzidas do Estado caracterizavam o liberalismo. Em

menos de um ano de conflito, todas as grandes potências experimentaram a

137

Então ainda restrito aos homens. 138

BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São

Paulo: Quartier Latin, 2008. Apud. DEL PICCHIA, Lucia Barbosa. Estado, democracia e direitos

na crise do constitucionalismo liberal: uma comparação entre o pensamento jurídico francês e o

brasileiro. 2012. Tese (Doutorado em Direito Econômico e Financeiro) - Faculdade de Direito,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em:

<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2133/tde-22042013-141125/>. p. 30.

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114

exceção. E em regimes excepcionais, a ordem dos valores humanos é rebaixada.

Comer, beber e dormir tornam-se preocupações imensas. Preocupações que

consomem, mas que, durante a guerra, não dependem dos indivíduos. É o Estado

que se ocupa delas.

O fim da guerra não interrompeu os seus efeitos. A paz oficializada pelo

Tratado de Versalhes, em 28 de junho de 1919, não representou a retomada da

situação econômica, social e política anterior. Na França, a morte de cerca de 8

milhões de soldados gerou um déficit de homens adultos durante os anos 1930 e

comprometeu a produção. O consequente aumento da imigração ensejou a

xenofobia que formaria a base dos movimentos nacionalistas do entre-guerras. A

indústria, que fora motivada pelas demandas da própria guerra, havia passado a

recorrer à mão-de-obra feminina. Pôs-se então, no horizonte das mulheres, a

possibilidade de mobilização e engajamento em sua situação social, sobretudo em

que pese a questão do voto – que, naquele país, só seria alcançado após a Segunda

Guerra. O mesmo tipo de acréscimo foi percebido pelos operários de forma mais

ampla139

. A redução da capacidade produtiva em um momento de aumento da

demanda pela produção industrial, somada à devastação de recursos naturais,

consumiu cerca de 150 trilhões de francos, aproximadamente 30% da riqueza

francesa140

. Tornou-se necessário que o Estado assumisse um papel ativo na

recuperação da vida econômica, mas, para fazê-lo, não poderia ser mais o mesmo

Estado dotado de função negativa do liberalismo clássico141

. Sob o impulso da

guerra, a condução centralizada da economia, assumida pelo Executivo, e fora do

Parlamento, fez surgir uma prática de governo por decreto que seria reforçada, ao

final dos anos 1920, pela crise econômica mundial142

.

139

“(…) a mobilização da mão-de-obra induziu, igualmente, uma profunda perturbação no sistema

social. Solicitados como atores-chave do esforço de Guerra, os operários se viram, repentinamente

mais considerados”. ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée - histoire de la

souveraineté du peuple en France. Paris: Gallimard, 2000. p. 362-363. 140

THOMSON, David. Democracy in France - the Third and Fourth Republics. 2. ed. ed. London:

Oxford University Press, 1952 [1946]. p. 192. 141

“A guerra de 1914-1918, como se sabe, perturbou profundamente as relações anteriores do

Estado com a sociedade, as exigências de mobilização industrial conduziram a um crescimento até

então desconhecido da intervenção do poder público na economia”. ROSANVALLON, Pierre. La

démocratie inachevée - histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris: Gallimard, 2000. p.

362-363. 142

BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. Op.

cit. p. 309.

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Fora da França, o entre-guerras havia reconfigurado outros países da

Europa. Na Rússia, a Revolução de 1917 dera novo fôlego ao movimento operário

em todos os países. Na Alemanha, a República de Weimar introduziu a social

democracia reformista que influenciaria socialistas e operários pelo continente.

Surgiu uma nova direita nacionalista, com a ascensão do fascismo de Mussoline,

na Itália, em 1922 e, uma década depois, com Hitler, na Alemanha. Aprofundou-

se cada vez mais a distância entre direita e esquerda, entre os movimentos

reformistas e a propaganda do medo de subversão da ordem. Do ponto de vista

jurídico, verificou-se a positivação de novos direitos, relacionados ao homem

inserido no mundo do trabalho e à promulgação de constituições que consagram

esses direitos e modulam um Estado que, ao regular as esferas econômica e

social, distingue-se do modelo liberal clássico. A grande representante desse

padrão de “constituição econômica” é a alemã, de 1919.

Por toda a Europa, o cenário de crise econômica, desigualdade social e

organização das forças produtivas aprofundou as tensões sociais. Na França, o

confronto entre os que clamavam pela manutenção da ordem e os que

demandavam transformação assume o centro da arena política, fazendo-se

representar no Parlamento. De um lado, os movimentos operários, socialistas e

antifascistas se reestruturam e ganham organização. De outro, se arrefece a nova

direita.

Em 1920, confrontado com os dilemas da adesão à Terceira Internacional,

foi fundado o Partido Comunista, e foram divididas as forças do movimento

operário. Mas os partidos de esquerda se fortaleceram como um todo, aumentando

sua representação no Parlamento, conseguindo compor governos de maioria entre

1924-26 (Cartel des Gauches) e, depois, entre 1936-39 (Front Populaire). Foi

este também o momento das grandes greves, a exemplo das de fevereiro, março e

maio de 1920, e da greve geral de fevereiro de 1934143

.

Esse momento da esquerda francesa não se caracteriza, majoritariamente,

por pretender uma revolução insurrecional imediata. Ao contrário, são

143

DEL PICCHIA, Lucia Barbosa. Estado, democracia e direitos na crise do constitucionalismo

liberal. Op. cit.

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116

reconhecidos a importância e o potencial do sistema democrático144

. Entretanto, o

medo da tomada autoritária do poder e do fim da democracia liberal era

propagandeado pelos que vinculavam o movimento operário a uma suposta

“ameaça socialista”. De fato, os movimentos de esquerda organizavam-se em

torno da busca de reformas que lograssem para a economia a mesma igualdade

assegurada na política pelo sufrágio universal. Não obstante, suas bandeiras de

República social e democracia industrial não implicavam a subversão completa da

ordem, qualquer restrição à liberdade ou o fim da democracia. Mesmo porque

suas lutas eram travadas através de uma representação nada desprezível no

Parlamento.

Entretanto, capitalizando do medo dos socialistas que ela mesmo produziu,

a nova direita combinava chauvinismo, antiparlamentarismo e, não raro,

antissemitismo, e que flertava com a ditadura de um partido e com o

corporativismo145

. Esta nova direita esteve aliada à “velha direita” na crítica à

“esquerda radical”. A difusão do medo operada por ela, esta sim, atingia a

democracia. Na medida em que repousava sobre a crença de que as instituições

democráticas estavam tomadas por movimentos nocivos que podiam

comprometer a ordem, era esta, e não a democracia, ou o Parlamento, o valor a ser

preservado146

.

Novas questões ganharam a ordem do dia, frutos das alterações sofridas

pela sociedade no pós-guerra. Movimentos sociais organizados, corporações e

bancos colocaram a economia no centro do debate, com demandas por uma

democracia industrial, de um lado, e corporativismo, de outro147

. A nova realidade

é especialmente sentida pelos liberais, uma vez que suas crenças em um Estado

144

“(…) os movimentos democráticos de massa mais imediatamente perigosos, os movimentos

operários socialistas, eram, na realidade, tanto em teoria quanto na prática, tão comprometidos

com os valores da razão, da ciência, do progresso, da educação e da liberdade individual quanto

qualquer um (…). Seu desafio era à economia, não ao governo constitucional e à civilidade.”

HOBSBAWN, Eric. The Age of Extremes - A History of the World, 1914-1991. New York:

Vintage Books, 1996. p. 110. 145

Naturalmente, o corporativismo é, nesse momento, uma proposta ideologicamente orientada

pelo fascismo da nova direita. 146

“Na década de 1920, tanto a velha quanto a nova direita estavam atacando o socialismo (e o

comunismo) marxistas como um mal incubado na democracia liberal. MAIER, Charles (1988).

Recasting Bourgeois Europe - stabilization in France, Germany, and Italy in the decade after

World War I. Princeton: Princeton University Press. Apud. DEL PICCHIA, Lucia Barbosa.

Estado, democracia e direitos na crise do constitucionalismo liberal. Op. cit. p. 37 147

THOMSON, David. Democracy in France - the Third and Fourth Republics. Op. cit. p. 182.

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não interventor e numa democracia fundada na igualdade formal de indivíduos

abstratos já não garantia a manutenção da ordem e os interesses das elites. Para os

liberais, a “crise” é a preocupação da hora. Falam em “crise da liberdade”, “crise

da democracia”, e em outras tantas crises que, não raro, justificam sua adesão a

ideias antiliberais, como à ideologia do corporativismo com vistas a garantir

antigos arranjos sociais148

.

A democracia de massas, franqueada pelo sufrágio universal e a

consequente incorporação dos diferentes setores sociais ao Parlamento, implicou

uma significativa produção legislativa, que buscou responder às demandas de uma

sociedade em transformação. Uma legislação moderna passou a refletir as novas

demandas. Ao mesmo tempo, o Parlamento se tornou espelho de uma sociedade

permeada por tensões e diferentes orientações e disputas políticas. Tal cenário era

insuportável para o modelo de parlamentarismo liberal delineado pelas leis

constitucionais de 1875, preparado apenas para governos de maioria coesa.

Não houve mudança da ordem constitucional, mas já não se verificava no

entre-guerras um Estado liberal tal como formatado na origem da Terceira

República. O arcabouço legal, a jurisprudência e as disputas no interior do

Parlamento denunciavam a necessidade da atualização das estruturas de governo e

representação. Coube aos teóricos do direito constitucional interpelar o problema

da urgência de um novo modelo de Estado. O problema apresentado aos teóricos,

postos em primeiro plano no projeto de estabilização da nova República, nas

palavras de Pierre Rosanvallon, era “como instituir em torno do sufrágio universal

um regime sólido e estável ao mesmo tempo”149

. Em torno dessa questão, formou-

se a geração dos chamados clássicos do direito constitucional, como Ahémar

Esmein (1848-1913), Léon Duguit (1859-1928), Maurice Hariou (1856-1929),

Léon Michoud (1855-1916) e Carré de Malberg (1861-1935).

148

“A liberdade não tem mais, sem dúvida, definição. Ela não se mede senão à medida em que é

restringida. Não se testa senão no momento em que dela somos privados. Não se desfruta senão

observando a escravidão de outrem. Ela é questão de memoria e de comparação. Mas não se

lamenta senão aquilo que já se conheceu bem. Nossa geração sofre vivamente seu declínio. É

pouco provável que nossos filhos provem do mesmo sentimento. Temamos desejá-la novamente

muito tempo depois de sua morte.” GUÉRIN, Paul (1939). Le problème français. Paris: Gallimard.

pp. 58-9. Apud. DEL PICCHIA, Lucia Barbosa. Estado, democracia e direitos na crise do

constitucionalismo liberal. Op. cit. p. 38 149

ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée - histoire de la souveraineté du peuple en

France. Paris: Gallimard, 2000. p. 243.

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118

Segundo a análise de Pierre Rosanvallon, a resposta oferecida por autores,

em um primeiro momento, veio do projeto de “República absoluta”150

. Mantendo

alguma desconfiança acerca das possíveis consequências negativas da expansão

do sufrágio, o desafio era construir bases para certa limitação teórica da

democracia. De certa forma, os homens do direito constitucional mantiveram sua

vocação histórica de teóricos da limitação do poder. Apenas, nas décadas de 1920-

30, inverteram-na, passando a teorizar sobre a limitação do acesso ao poder.

Fornecer elementos para conciliar o sufrágio universal com as premissas liberais

de representação e democracia era a questão enfrentadas pelos pensadores do

início da Terceira República.

Como se sabe, a democracia não é uma premissa do liberalismo político.

Ela o é apenas na medida em que é entendida como teoria da soberania popular, o

que não se confunde com a possibilidade material de fazer representar os

interesses no Parlamento. Por este motivo, é relevante que tenha sido operada nos

trabalhos acadêmicos do período a distinção entre soberania nacional e soberania

popular151

. A primeira passou a ser associada à ideia abstrata de nação una e

indivisível, ao passo que a segunda passou a ser vinculada à noção fragmentária

de povo como massa heterogênea, concreta e historicamente situada152

.

De maneira geral, o argumento da soberania da nação dos teóricos da

“República absoluta” repousava sobre a ideia de que ela produzia a combinação

entre democracia e liberalismo ao realizar, “ao mesmo tempo, a manifestação de

um poder [puissance] e o princípio de uma limitação de todas as pretensões de

falar em nome da totalidade social”. Seria, a um só tempo, democrática e liberal,

porque “indissociável da forma representativa do governo, uma vez que a

formação do interesse geral não pode resultar senão de uma interpretação e de

150

ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée - histoire de la souveraineté du peuple en

France. Paris: Gallimard, 2000. p. 253. 151

ESMEIN, Adhémar. Éléments de droit constitutionnel français et comparé. Paris: Recueil

Sirey, 1909; CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Contribution à la théorie générale de l'État.

Paris: Dalloz, 2004 (1920). 152

“Au people multiple et changeant, infigurable en sa totalité concrète puisque toujours

subsistent des vies et des voix qui ne sont pas prises en compte (ne serait-ce que celles des enfants

ou des femmes alors exclues des urnes), se substitue ainsi le corps dense de la nation, dont la

complétude ne peut procéder que d’une interprétation et d’une reconstruction, l’érigeant en sujet

par nature abstrait. Puissance ‘théorique’ de la nation et limitation ‘pratique’ du pouvoir du

peuple vont sur cette base aller de pair”, in ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée.

Op. cit. p. 248-49.

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119

uma formatação organizada”153

. Mas os eleitos eram tomados como uma elite

selecionada, capaz de perceber a vontade da nação como uma unidade. A ideia de

representação já não se vinculava ao mandato imperativo, como no século XIX,

mas mantinha certo elitismo na noção de aristocracia eletiva154

. A “República

absoluta” constituía-se em teoria sobre o ideal de uma aristocracia política

emancipada, que conciliava governo representativo e sufrágio universal em um

Parlamento de experts, e sobre a crença na intangibilidade do regime e de suas

bases.

Nesse momento, proliferaram-se contestações teóricas ao governo

representativo e ao parlamentarismo, sempre através do diagnóstico de “crise”,

seja da democracia, seja do governo representativo ou do Estado. O clamor era

por uma reforma constitucional. Alterara-se a composição do Parlamento, assim

como se alterara a relação de seus membros com os eleitores e a forma como seu

papel na sociedade era concebido. Tudo isso sem que houvesse reforma

substancial das leis constitucionais e da instituição parlamentar em si. A sensação

era a de que, embora houvesse constituição, uma outra era a praticada155

.

Os membros do Parlamento tornaram-se progressivamente defensores

diretos de seus eleitos, respondendo a grupos de interesse e a pressões sociais

coletivas. Pouco a pouco, tornou-se o lugar de enfrentamento das forças sociais,

distanciando-se do modelo de autonomia do representante que encarnava o

suposto interesse da nação compreendida como unidade abstrata. Insatisfeita com

as transformações experimentadas pela representação, a crítica que começa a se

formular atacou a prolixidade dos parlamentares, sua deficiente formação, a

vulgaridade dos temas tratados e o encarecimento da manutenção da máquina

parlamentar. Todas as críticas eram dirigidas ao problema que, a rigor, não era

nenhum desses, mas o fato de que tudo quanto acontecia no Parlamento passou a

ser o reflexo de interesses e discussões que começaram fora desta instituição. À

153

Idem. p. 250-51. 154

“(...) o regime representativo supõe a superioridade do eleito, que deve comandar e não

obedecer”. VILLEY, Edmond. “La Souveraineté nationale”. Revue du droit public, t. XXI, jan-fev

1904, p. 23, apud. Idem. p. 253. 155

DESLANDRES, Maurice. La crise de la science politique. Revue du droit public et de la

science politique en France et à l'étranger. Paris, p. 5/49, jan-jui, 1900. p28. Apud. DEL

PICCHIA, Lucia Barbosa. Estado, democracia e direitos na crise do constitucionalismo liberal.

Op. cit. p. 42.

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época, isto foi interpretado como o abandono do governo representativo e

confundido com uma forma rudimentar de democracia direta, apenas porque o

povo “já não era mais o titular nominal, mas (o) depositário efetivo da

soberania”156

.

A dificuldade de combinar de forma estável e duradoura uma cultura

social democrática a uma convicção política aristocrática tornava evidente que,

embora não houvesse mudança institucional, ou ruptura, os hábitos haviam se

alterado157

. Rosanvallon fala de um “duplo giro”, ao mesmo tempo material e

formal, “uma revolução silenciosa do sistema político”, que é material, isto é, que

ocorre “no plano dos fatos”, e uma ruptura no “método de consideração das

questões políticas”. Foi abandonada a “abordagem normativa, por muito tempo

dominante”, e que caracterizara os clássicos do direito constitucional francês.

Pouco a pouco, ganharam lugar as análises mais factuais. “Ao debate anterior

sobre valores e formas desejáveis de organização política, se sucede uma

preocupação de descrever, para melhor compreender, o advento de uma nova era

política”158

. O movimento foi de abandono das pretensões teóricas mais abstratas

do sistema político em favor de uma tendência descritiva e pragmática na ciência

do direito.

As contradições do novo momento político, ao se aprofundarem após a

guerra em razão do mecanismo de estado de sítio, reforçaram a percepção de crise

da democracia liberal159

, entendida como ordem política fundada na soberania

nacional. Como anteriormente referido, o Executivo capitalizara do

fortalecimento obtido com a assunção de funções de coordenação durante a

guerra. Ao mesmo tempo, questionava-se o papel do Parlamento como locus da

soberania. Eis a receita para o diagnóstico de crise do modelo liberal, da qual

capitalizaram forças sociais diferentes de maneiras distintas.

156

DESLANDRES, Maurice. La crise de la science politique. Revue du droit public et de la

science politique en France et à l'étranger. Paris, p. 5/49, jan-jui, 1900. p 34. Apud. Idem. p. 42. 157

“Não são, portanto, as instituições que mudaram. Nenhuma suptura social é igualmente a causa.

São, simplesmente, os hábitos [moeurs] e as práticas que remodelaram sensivelmente a vida das

instituições e mudaram seu espírito.” in: ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée. Op.

cit. p. 260. 158

Ibidem. p. 245. 159

“a adoção dos plenos poderes não implica, necessariamente, em ditadura, apenas demonstra a

existência de uma crise. Mas esta crise, embora não seja da democracia em si, é da democracia

representativa, pois demonstra a incapacidade do parlamento lidar com as situações excepcionais”.

in BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição. Op. cit. p. 285.

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Em substância, a exigência de respostas alternativas àquelas do modelo

liberal tradicional variava desde as capazes de conferir mais densidade ao ideal

democrático, até as antiparlamentaristas e antidemocráticas. Estas viam como

solução a ruptura com as premissas de democracia liberal vigentes desde a

fundação da República. O rearranjo da separação de poderes e o fortalecimento do

Executivo em razão das demandas da guerra, aliados ao diagnóstico de crise da

democracia liberal, ensejaram a defesa da “racionalização” e da autonomização da

administração, da criação de um corpo de autoridades técnicas “profissionalizado”

e da tecnocracia, restringindo, consequentemente, a importância do Parlamento160

.

A direita se organizou em torno de movimentos nacionalistas, que se valiam da

difusão da crença em uma ameaça de subversão da ordem pelos socialistas e

partidos de esquerda, levando suas críticas ao parlamentarismo e flertando com

soluções autoritárias, a exemplo do que se vinha implementando nas vizinhas

Itália e Alemanha.

Do lado dos que ansiavam pela realização consistente do ideal

democrático, encontram-se o operariado organizado e os sindicatos, que

clamavam por uma democracia industrial – termo importado dos EUA e da Grã-

Bretanha, onde já se falava em industrial democracy desde o final do século XIX.

Protestava-se por direitos em matéria econômica que fossem equivalentes à

igualdade de direitos em matéria política garantida pelo sufrágio universal161

.

Surgiu o debate em torno do controle operário, de sua participação na gestão das

fábricas e de uma espécie de colaboração de classes. A democratização que vinha

se consolidando no campo político chegara à esfera econômica da produção162

.

A busca por alternativas à democracia liberal tradicional ganharia espaço

em todo espectro de críticos. À direita, em razão da resistência à ocupação

popular do Parlamento, propõe-se a alternativa tecnocrática. À esquerda, pelo

160

Rosanvallon, citando Émile Faguet, sublinha o tom jocoso das críticas de direita da época: “a

denúncia da ‘tarântula democrática’ se torna um dos lugares comuns da imprensa de direita e

extrema direita que evoca com deleite sua definição do político: ‘um homem nulo em termos de

ideiais pessoais, de instrução medíocre, que compartilha os sentimentos e as paixões gerais da

multudão’”. in ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée. Op. cit. p. 369, citando

FAGUET, Émile. Le Culte de l’incompetence. Paris: Bernard Grasset, 1910. p. 29. 161

Idem. p. 363. 162

“À noção de soberania, os sindicatos farão suceder aquela do trabalho, porque se nós não

sabemos onde está o soberano popular, ficção doravante liberticida, nós sabemos onde está o

trabalhador, rude realidade emancipatória.” In. LEROY, Maxime. Les Techniques nouvelles du

syndicalisme, 1921, p. 204. Apud. Idem. p. 372.

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anseio de que chegasse ao mundo material a igualdade formal cada vez mais

alcançada na política, o movimento conselhista ganha força na Europa do entre-

guerras. Verificam-se a crítica de Lênin ao Parlamento e sua defesa dos soviets, a

experiência da República de Weimar e o esforço de implementação dos conselhos

econômicos. A socialdemocracia operaria, através de reformas institucionais e

políticas, uma democracia econômica que avançaria a igualdade formal para a

igualdade material, inclusive com controle compartilhado das indústrias.

Na França, essa é a linha de pensamento que orienta autores como

Georges Gurvitch, que trata do Direito Social. Ao lado do “controle operário” e da

“democracia industrial”, entram na ordem do dia outras bandeiras como

“república do trabalho”, “constitucionalismo de usina” e “democracia

operária”163

. O momento é de busca por propostas de reforma do sistema político

com vistas à incorporação das novas demandas sociais. Ganham força as ideias

que atualizam a disjuntiva Estado-indivíduo, tradicional ao individualismo da

Revolução Francesa, para alçar como atores políticos grupos sociais

intermediários, como associações e sindicatos. São exemplos deste tipo de

iniciativa as propostas de representação orgânica, profissional ou de interesses, as

quais serviram tanto à direita quanto à esquerda. Assim, o questionamento do

regime democrático que tem lugar no entre-guerras, ao mesmo tempo em que

produz tentativas de limitação do espaço de deliberação, através da racionalização

e da valorização da técnica em detrimento da representação política, amplia o

espectro do político.

O Parlamento francês se apresentou às questões do momento através de

sua função típica, isto é, pela produção de legislação inovadora. Já antes da

Grande Guerra, verifica-se a promulgação das leis que constituíram o arcabouço

jurídico do reconhecimento e da proteção de novos atores. Do ponto de vista

coletivo, verificam-se a legislação social, os direitos dos trabalhadores e as

liberdades coletivas (desde 1881, com a liberdade de reunião, e, em 1910, com o

Código do Trabalho e da Previdência Social). Do ponto de vista individual, as

mulheres alcançaram capacidade civil e a regulação do salário da mulher casada.

Porém, as reformas legislativas que traduziram para o direito as demandas de uma

163

Idem. p. 373.

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sociedade em transição não representaram refundação constitucional. Em parte em

razão da resistência liberal às reformas sociais e à alteração da concepção de

democracia exigida pela presença dos novos atores e pelas alterações que viria a

sofrer a relação entre Estado e Sociedade após a guerra. Com isto, a democracia

parlamentar espontaneamente fixava o Parlamento como locus da divergência, o

que lhe impunha, ao mesmo tempo, a alteração de sua natureza tradicional. À

esquerda e à direita, multiplicaram-se os partidos, como o Partido Comunista

Francês e a Union démocratique républicaine. Não obstante, verificou-se a

dificuldade de chegar a consensos que viabilizassem dar passagem às reformas

necessárias, o que fazia com que as opiniões expressas nas urnas encontrassem

dificuldades em se concretizar em governos, gerando radicalização tanto da

esquerda quando da direita e incessantes sucessões de governos ministeriais.

No campo do pensamento, a fase inicial da Terceira República é um

momento de revisão das doutrinas constitucionais anteriores, sobretudo em razão

da necessidade de legitimar a República nascente. De um lado, impunha-se revisar

a tradição nacional legalista e, de outro, desenvolver a nova abordagem jurídica

que se experimentava na Alemanha. O legalismo da Escola da Exegese,

movimento surgido com a promulgação do Código Civil de 1804 e fortemente

vinculado ao liberalismo individualista da Revolução Francesa, identificava o

direito com a lei e o papel do jurista com a busca da “vontade do legislador”. A

crítica a esse movimento e a tentativa de caracterizar o direito como campo

científico autônomo, seguindo o exemplo da Alemanha, é o que caracteriza o

início da Terceira República164

.

164

“Na França, o século XIX termina com a descoberta do BGB [Burgerliches Gesetzbuch,

Código Civil Alemão], que acentua e confirma o aparente envelhecimento do Código civil de

1804. Se há uma lição de Portalis que é bem esquecida, é a que trata da idade dos códigos. Nesse

final do século XIX, ninguém mais diz que um código novo é uma ‘ferramenta inconveniente’. O

tema central da teoria jurídica francesa é o da antiguidade do Código civil, da sua excessiva

antiguidade. O racionalismo gera aqui um evolucionismo primário. Havia tomado um século para

tecer os fios da codificação na trama cerrada da tradição jurídica anterior, e no entanto esse

trabalho mal havia avançado e os juristas já começam a falar da revolta do direito ou dos fatos

contra o código. Outros como François Gény, Raymond Saleilles e René Demogue, compreendem

que os intérpretes estão mais em causa do que o Código”. In: ATIAS, Christian. “Philosophie du

droit: les enjeux d'une fin de siècle”. In: PLANTY-BONJOUR, Guy; LEGEAIS, Raymond.

L'évolution de la philosophie du droit en Allemagne et en France depuis la fin de la seconde

guerre mondiale. Paris: PUF, 1991. p. 241.

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Os franceses se voltaram para a ciência do direito racional e formalizada

da Alemanha. Mas estiveram conscientes de que a solução para os desafios

deveria ser eminentemente francesa. Na Alemanha, em razão de sua trajetória

política específica e sua recente unificação, o método, os princípios, a precedência

do Estado como pessoa jurídica dotada de poder de dominação irresistível, o

combate ao direito natural, a defesa do direito positivo e a centralidade do direito

subjetivo são elementos de uma ciência que se afirmava num ambiente

aristocrático que necessitava se consolidar como Estado-nação moderno,

unificado e forte, diante de movimentos liberais. Poucas destas características

serviam a uma República democrática às voltas com um Parlamento soberano

eleito pelo sufrágio universal. Não obstante, algumas asserções do pensamento

alemão foram preciosas à doutrina que se desenvolveu na França.

As teses da jurisprudência alemã do século XIX são conhecidas. O direito,

para se consolidar como ciência, precisa de um método próprio. O indivíduo é

posicionado no centro do sistema jurídico, que passa a se articular a partir de

premissas independentes das demais instâncias sociais, como a economia e a

política, valendo-se, para tanto, de abstrações como a ideia de um sujeito de

direitos livre e dotado de vontade, e fixando como a tarefa do direito a proteção de

seu plexo de direitos subjetivos. No direito privado, esta é a abordagem da

chamada Escola Histórica, cujo maior expoente é Friedrich Karl von Savigny

(1779-1861). Seu transporte para o campo do direito publicou operou-se por Carl

Friedrich von Gerber (1823-1891), consolidando-se com a obra de Paul Laband.

Pouco depois, Georg Jellinek (1851-1911) usaria as ferramentas do positivismo

jurídico para conceber uma teoria do Estado puramente jurídica.

Ao defender o estudo do direito apartado de considerações históricas e

políticas, porque exteriores a ele, Gerber instituiu um rígido dualismo entre as

noções de ideia e de ciência “real”. Laband aprofundou o uso do método jurídico

para elaborar uma teoria sobre a legitimidade do poder de dominação do Estado, a

qual seria cara aos franceses. Seu ponto reitera o objetivo de Gerber, ao tratar o

direito de maneira exclusivamente jurídica165

. Ao formular sua teoria do Estado,

165

“A simples transposição de princípios e de regras de direito civil às relações de direito público

certamente não é útil para ter um conhecimento exato destas últimas: esta maneira `civilista de

tratar o direito público não é conveniente. Mas frequentemente a condenação do método `civilista

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Jellinek dá mais um passo na concepção autônoma de direito. Sem desconsiderar

as diversas possibilidades de conceituação e descrição do Estado moderno,

entende que uma decisão exclusivamente jurídica deve abstrair todo elemento que

lhe seja externo, isto é, que não pertença à dogmática e à formalidade interna ao

direito enquanto sistema fechado de normas e princípios. O esquema de Jellinek

pretende ter validade universal. Pode, portanto, ser tomado como teoria geral.

Nele, o Estado aparece como unidade jurídica suprema, dotado de personalidade e

que, a exemplo dos indivíduos, é capaz de atos de vontade. Tais atos de vontade

são resultados do poder de dominação irresistível e soberano juridicamente

qualificado pelo direito.

Na Alemanha, portanto, o movimento era de separação do direito das

demais instâncias sociais, dotando-o de método próprio e fundando-o sobre os

conceitos abstratos de homem, Estado e vontade. Isto era conveniente para um

Estado que se formava como um império. Mas a França, que vivia a formação

recente de sua Terceira República, não poderia seguir esta direção. A doutrina

jurídica francesa experimentava, assim, o desafio de construir o direito como

ciência, mas de acordo com a tradição nacional. Isto significava, de um lado, por

termo à Escola da Exegese - e à sua busca pela vontade do legislador - e, de outro,

incorporar o que vinha sendo produzido na Alemanha e responder a uma realidade

social que mudava na direção de uma República liberal, mas democrática.

Na França, a proclamação da Terceira República e o novo cenário nacional

e internacional apresentavam novas demandas para o direito. Ele deveria

responder à tendência cientificista que marcava o pensamento jurídico do período

e afirmar-se como campo autônomo das demais ciências sociais. Mas não podia

fazê-lo ignorando a realidade histórica e as novas demandas sociais.

Progressivamente, seria questionado o gesto de conceber o direito exclusivamente

como sistema calcado em um homem abstrato e em direitos subjetivos que

esconde a repugnância ao tratamento do direito público de uma maneira `jurídica’, e, buscando

apartar os princípios de direito privado, rejeita-se verdadeiramente os princípios de Direito, para os

substituí-los por considerações filosóficas e políticas. Sem dúvida, na verdade, a ciência do direito

privado atingiu um tal avanço sobre todas as outras disciplinas do Direito que estas não devem

recear seguir a escola da primeira, melhor desenvolvida; no estado atual da literatura de direito

público e em particular de direito público do Império, há bem menos a temer em vê-la inspirada

em demasia no direito civil, que em vê-la perder todo seu caráter jurídico e cair ao nível da

literatura política de jornal”. In: LABAND, Paul. Droit public de l'Empire Allemand. Paris: V.

Giard & Brière, 1900. p. 129.

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visavam à preservação da sua liberdade. Ao mesmo tempo, como o Parlamento

fora transformado pelo sufrágio universal, esperar que a “vontade do legislador”

fosse o operador de estabilização do regime já não era possível. Impunha-se à

doutrina atribuir contornos definidos ao direito, ao método jurídico, ao Estado e à

forma de democracia que melhor serviria aos desafios de então.

Com o sufrágio universal e a transferência do poder de decisão para a

maioria da população, o direito passou a ter como sujeito um indivíduo concreto,

socialmente inserido e coletivamente organizado, um homem que possui

demandas da vida prática, que se traduziam na necessidade de garantias

específicas, como as relacionadas ao mundo do trabalho, e de prestações do

Estado, como os serviços públicos. A nova República francesa estava na busca

por uma filosofia que considerasse a irrupção do social, as consequências da

revolução industrial, o significativo aumento de reformas legislativas, a tensão

entre o coletivo e o indivíduo, as querelas religiosas e o reposicionamento do

Estado como motor do progresso. Conceber um direito que garantisse a

estabilidade da nova ordem, absorvesse a política e a função de legitimação seria

o desafio dos juristas da Terceira República. Não bastava a letra da Constituição;

era preciso uma teoria que legitimasse o regime e impedisse a subversão da ordem

tanto para a esquerda, quanto para a direita.

A ideia de estabilização relacionava-se à possibilidade de assegurar

alguma continuidade para a ordem e para o arranjo social que beneficiara velhas

elites e, ao mesmo tempo, incorporar novos atores e demandas. A cátedra de

direito constitucional, então recentemente reorganizada, surgiu como recurso

político voltado para esta finalidade166

. Desde 1852, o direito constitucional fora

apartado das matérias das faculdades de direito, justamente em razão de seu

caráter político. Não por acaso, quando da formação da Terceira República,

verificou-se um déficit de teóricos capacitados para legitimar o novo Estado

republicano. Em 1889, a reforma dos cursos de direito criou cursos semestrais de

elementos de direito constitucional. De sorte que, ao final do século XIX, a

166

DEL PICCHIA, Lucia Barbosa. Estado, democracia e direitos na crise do constitucionalismo

liberal. Op. cit. p. 57.

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missão dos juristas foi dupla, inventar uma disciplina e, ao mesmo tempo,

desempenhar o papel social do professor de direito constitucional167

.

Naturalmente, não se produziu uma teoria que sozinha fosse capaz de

responder ao problema de legitimar a nova ordem, absorver os conflitos, garantir a

estabilidade e incorporar os novos atores. A relação de contiguidade entre direito

e política que caracteriza o direito constitucional marcou de grande inquietação o

pensamento dos juristas do período168

. Enquanto o século XIX se caracterizara

pela concepção estática de direito, equivalente à lei escrita, o início do século XX,

que assistiu à erupção de questões sociais e instabilidade política, não podia se

valer dessa perspectiva liberal, individualista e pretensamente neutra de

abordagem do direito. Uma nova forma de entendê-lo fazia-se necessária diante

de aspirações ao mesmo tempo individuais e sociais.

Ao lado dessas questões, o catolicismo social fazia-se presente nos meios

jurídicos por meio de congressos, publicações e núcleos nas faculdades de direito.

Após tornada pública, em 1891, a Encíclica Rerum Novarum, a instabilidade

social e a necessidade de fornecer novas soluções para a relação entre indivíduos e

entre sociedade e Estado passaram a ser lidas por esses atores como uma missão

para a prática integradora da Igreja. À época, a Igreja dirigia suas críticas à

degeneração moral que evidenciada pelas condições laborais e de vida da classe

trabalhadora, pela a desigualdade social e pelo silêncio do Estado liberal laico.

Para saneá-la, o então Papa Leão XIII atualizou suas críticas ao individualismo

também no campo do direito, através de um libelo dos direitos sociais – e, logo,

de um papel prestacional para o Estado – e da organização coletiva dos

trabalhadores e empregadores em associações, preferencialmente católicas169

. No

167

Idem. p. 57. 168

Daniel-Rops caracterizará os pensadores do período como “geração de juristas inquietos”: “La

malaise essentiel vient sans aucun doute du fait que tout homme, par le sentiment qu’il a de son

unité individuelle, participe à son insu à une notion de totalité et universalité, en dépit de toutes les

analyses, mais se sent incapable d’y accéder. D’où les deux formes actuelles de l’inquiétude :

l’une, qui tend à unifier l’homme en le haussant jusqu’à la signification qu’il s’accorde à lui-même

et qu’il assigne à son destin, l’autre, qui tend à le déchirer, à multiplier ses postulations, et qui,

dans la machine, trouve un moyen commode d’augmenter la force de chacun des pouvoirs

autonomes qu’elle a disséqués”, DANIEL-ROPS, Apud BONNECASE, Julien. La pensée

juridique français - de 1804 a l'heure présente. Bordeaux: Delmas Éditeur, v. t. I e II,1933, p. 94. 169

“(Das associações operárias católicas) [...] Neste estado de coisas, os operários cristãos não têm

remédio senão escolher entre estes dois partidos: ou darem os seus nomes a sociedades de que a

religião tem tudo a temer, ou organizarem-se eles próprios e unirem as suas forças para poderem

sacudir denodadamente um jugo tão injusto e tão intolerável. Haverá homens, verdadeiramente

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128

ambiente jurídico católico, começou-se a falar em “socialização do direito”, isto é,

assegurar sua chegada a todos os membros da sociedade170

.

Entretanto, socializar o direito dentro da moldura político-jurídica liberal-

individualista francesa seria o mesmo que fundar uma ambiguidade com

pretensões duradouras, o que é logicamente impossível. Para fazê-lo, os juristas

puseram em questão o pensamento anterior e empreenderam a tarefa de legitimar

teoricamente uma forma de Estado que aclimatasse todas as pretensões

antagônicas que então estiavam em disputa. Para sobreviver, o liberalismo

precisaria “mudar de alma e de significado”171

.

Até então, admitira-se que a ordem jurídica tivera em sua base os direitos

do indivíduo, que a sociedade seria tão mais bem sucedida quanto mais livres

esses direitos pudessem florescer e que era este, isto é, o de assegurar a

coexistência pacífica das liberdades, o papel do direito. Na passagem do século

XIX para o XX, a radicalização da precariedade das condições de vida e trabalho

e o fenômeno da aproximação solidária entre os indivíduos impuseram ao credo

liberal alguma necessidade de adaptação. Na crise do individualismo, foram

convocados os juristas para que concebessem uma ordem jurídica que respondesse

empenhados em arrancar o supremo bem da humanidade a um perigo iminente, que possam ter a

menor dúvida de que é necessário optar por esse último partido? [...] Os Bispos, por seu lado,

animam estes esforços e colocam-nos sob a sua protecção: por sua autoridade e sob os seus

auspícios, membros do clero tanto secular como regular se dedicam, em grande número, aos

interesses espirituais das corporações. Finalmente, não faltam católicos que, possuidores de

abundantes riquezas, convertidos de algum modo em companheiros voluntários dos trabalhadores,

não olham a despesas para fundar e propagar sociedades, onde estas possam encontrar, a par com

certa abastança para o presente, a promessa de honroso descanso para o futuro. [...]Proteja o

Estado estas sociedades fundadas segundo o direito; mas não se intrometa no seu governo interior

e não toque nas molas íntimas que lhes dão vida; pois o movimento vital procede essencialmente

dum princípio interno, e extingue-se facilmente sob a acção duma causa externa.” In. Rerum

Novarum, #32. 170

“Socializar o direito é torná-lo mais compreensivo, mais amplo que era antes, estendê-lo do

rico ao pobre, do possuidor ao assalariado – do homem à mulher, – do pai ao filho, ou seja, é

admiti-lo em benefício de todos os membros da sociedade”. In: CHARMONT, Joseph. “La

socialisation du droit”. Revue de Métaphysique et Morale, 1903. p. 380. 171

“As divisões se aprofundam gravemente em uma sociedade francesa que enfrenta

sucessivamente a Comuna, o nascimento da República, o boulangisme, o affair Dreyfus, a

separação da igreja e do Estado... Nessa época, o liberalismo muda de alma e de significado”. In:

ATIAS, Christian . “Philosophie du droit: les enjeux d'une fin de siècle”. In: PLANTY-

BONJOUR, Guy; LEGEAIS, Raymond. L'évolution de la philosophie du droit en Allemagne et en

France depuis la fin de la seconde guerre mondiale. Op. cit. p. 246.

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129

às transformações do momento, mantivesse ordem e, consequentemente,

contivessem movimentos que visassem à transformação radical da sociedade172

.

Individualismo e voluntarismo estavam postos em questão por pelo menos

três razões. De um lado, verifica-se o desapontamento com a autonomia da

vontade. De outro, o desenvolvimento da industrialização não foi acompanhado

pela socialização de seus frutos e resultou na organização coletiva das aspirações

por justiça social. Consequentemente, a acolhida jurídica das liberdades coletivas,

a exemplo da autorização da liberdade de associação de 1881 e a lei de liberdade

sindical de 1884 antagoniza com aqueles dois pilares do liberalismo.

Do ponto de vista doutrinário, o direito já não podia mais vincular-se à

vontade de um homem abstrato, mas sim a um ideal de justiça socialmente

construído. Boa parte do reposicionamento dos juristas a este respeito deve ser

tributada à influência católica sobre o campo. Do ponto de vista da forma de

governo, a concepção liberal clássica de soberania nacional, encarnada no

Parlamento, cujo poder se legitimava pela solução representativa encontrada para

a expressão da vontade geral, começava a ser problematizada. A ampliação

democrática ocasionada pelo sufrágio universal e os debates sobre alternativas

para a representação da vontade popular indicavam a expectativa do povo de não

mais ser o titular nominal, mas o titular real da soberania. Segundo o princípio

representativo vigente durante o século XIX, os representantes da nação eram os

responsáveis pela expressão da vontade geral, não detentores provisórios de

mandatos delegados por eleitores. Progressivamente, a vontade popular

encontrava canais para se fazer presente nos destinos da vida pública. Assim, o

desenvolvimento da doutrina constitucional francesa com vistas a fundamentar o

novo regime e garantir ordem e estabilidade passavam pela necessidade de

atualizar o regime representativo.

O contexto de transformações sociais e políticas do pós-Primeira Guerra

trouxera para a ciência jurídica europeia dos anos 1920 os desafios de elaborar

soluções jurídicas adequadas e modernas para a constatada insuficiência da

compreensão liberal clássica acerca do Estado e do direito. Era urgente dotá-los

172

BONNECASE, Julien. La pensée juridique français - de 1804 a l’heure présente. Op. cit. p. 89.

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de um fundamento novo e de capacidade de responder às novas demandas sociais.

Ao mesmo tempo, na esteira do que se vinha fazendo na Alemanha, um direito

pensado modernamente deveria ser um campo autônomo, dotado de unidade

científica.

Tratava-se de uma missão ambivalente. As concepções liberais de Estado

e de direito não atendiam à nova realidade, posta, na França, pelo sufrágio

universal, pela centralização política e pela organização coletiva dos

trabalhadores. Ao mesmo tempo, as alterações postas para a representação pelo

sufrágio universal, ao colocarem em questão a representação liberal tradicional,

dotavam-no de certa potencia antiliberal173

. No mesmo sentido, o Estado laico e

mínimo do liberalismo clássico, que tampouco cabia na nova circunstância

econômica e social, plena de demandas por assistência e por direitos, passava por

um momento de crise. Isto o tornava vulnerável ao avanço de radicalismos à

direita e à esquerda.

A tradição futurista do direito constitucional colocou seus atores em

posição privilegiada para fixar soluções para ambos os problemas. Reconhecer

formalmente uma realidade problemática e fixar soluções para ela num horizonte

de sentido sempre foi uma das melhores habilidades do direito constitucional.

Naturalmente, no contexto de realismo que se impunha tanto no campo teórico

quanto no das decisões práticas, os novos fundamentos e missões, tanto do Estado

quanto do direito, deveriam repousar sobre dados da realidade política, social e

econômica da época. Para a tradição clássica do direito constitucional174

, isto

significava incorporar ao direito as preocupações políticas, para com isto traduzir

em termos jurídicos a complexidade do Estado e da sociedade. Mas esta tradução

se dava apenas no plano teórico, através de uma doutrina consistente, mas não de

alterações materiais do direito.

173

“O sufrágio universal se tornou uma conquista que ninguém mais poderia sonhar seriamente em

recolocar em causa, qualquer que seja a profundidade das dúvidas e das reticências que subsistam

para muitos. Como aceitar, então, esse poder social ao mesmo tempo prevenindo seu possível

antiliberalismo? Como de uma ‘força brutal’ fazer uma ‘força regrada’, como transformar uma

‘ferramenta de revolução’ em um ‘instrumento político’, [...]”. In: ROSANVALLON, Pierre. La

démocratie inachevée. Op. cit. p. 244-245. 174

A expressão “juristas clássicos” obedece à classificação de BEAUD, Olivier. “Joseph

Barthélemy ou la fin de la doctrine constitutionnelle classique”. In : Droits, Revue Française de

Théorie, Philosophie et Culture Juridique, v. 32. pp. 89-108. Apud. DEL PICCHIA, Lucia

Barbosa. Estado, democracia e direitos na crise do constitucionalismo liberal. Op. cit. p. 66.

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131

Não obstante, o peso sobre a reflexão teórica não era injustificado. A

circunstância do nascimento da Terceira República e as consequências políticas

das transformações sociais geradas pelas alterações no mundo da produção

puseram para os autores do direito constitucional a missão de enfrentar temas

como o Estado, sua legitimidade, sua fundação e sua limitação pelo direito. Para

tanto, se viram às voltas com assuntos que depois seriam distanciados da reflexão

tipicamente jurídica, como a relação entre indivíduos e sociedade, a democracia e

a legitimidade do poder.

Ao lado das distinções que se verificam entre cada autor, há algo nas obras

dos juristas da Terceira Republica que os une, e que caracteriza o tipo de

pensamento do direito público francês do final do século XIX e das primeiras

décadas do XX. Era constante a ambição de trazer para o direito público o projeto

de cientificidade que vinha se desenvolvendo no campo do direito privado e a

necessidade de concebê-lo desde sua necessária relação de contiguidade com a

política, isto é, como um direito político. Léon Dguit, Maurice Hauriou e Raymon

Carré de Malberg175

são os autores centrais da Belle Époque da Terceira

República, tendo os três tratado de pensar de forma abrangente sobre temas da

vida política, inserindo-os em reflexões jurídicas e com pretensões de

cientificidade. Entre eles, o mais influente sobre o pensamento brasileiro que

enfrentou o tema da representação profissional é Léon Duguit.

As obras de Duguit e dos demais autores clássicos são imensas e não é

uma intenção deste trabalho resumi-las a umas poucas linhas. Importa, entretanto,

notar que esses teóricos estiveram todos às voltas com produzir uma resposta

jurídica às irrupções sociais. E que lhes é comum a identificação do problema

jurídico-político do início do século XX, a saber, que a democracia de massas e a

luta por direitos criaram problemas para as concepções originais de Estado liberal

e de parlamentarismo.

A obra constitucional de Léon Duguit começou a ser publicada em 1901,

quando veio a público L’État, le droit objectif et la loi positive, volume em que

175

BEAUD, Olivier. “Carré de Malberg, juriste alsacien. La biographie comme élément

d'explication d'une doctrine constitutionnelle”. In: BEAUD, Olivier; WACHSMANN, Patrick. La

science juridique française et la science juridique allemande de 1870 à 1918. Strasbourg: Presses

Universitaires de Strasbourg, 1997, p. 219.

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132

expôs sua abordagem sobre a teoria do Estado e o direito constitucional. Em 1903

foi publicado o segundo volume da obra, L’État, les gouvernants et les agentes. A

primeira edição de seu famoso Traité de Droit Constitutionnel, composto de cinco

volumes, é de 1911, tendo sido seguida de duas outras, a última publicada em

1927. Seu pensamento se tornou bastante popular nas primeiras décadas do século

XX, tanto na França quanto no resto da Europa, assim como na América Latina. A

difusão internacional de seu pensamento se deu, sobretudo, através de sua

atividade docente e editorial. Duguit foi conferencista e professor visitante na

Colômbia e na Argentina, em 1911 e 1920, respectivamente, e professor visitante

na Espanha, em 1923. Em 1927, participou da fundação do Instituto Internacional

de Direito Público, ao lado de Hans Kelsen176

, com quem havia criado, um ano

antes, a Revue internationale de théorie du droit.

É possível compreender a obra de Duguit pelas duas tarefas que pretendeu

realizar, a saber, a crítica e a propositiva177

. Consciente de que sua contribuição

teórica foi mais potente na desconstrução ou na crítica às visões normativistas e

“metafísicas” do direito do que na proposição de uma nova metodologia teórica,

Duguit pensa sua obra dividida entre uma dimensão negativa e uma positiva178

.

A crítica, ou a dimensão negativa do pensamento de Duguit, teve como

adversárias as teorias subjetivistas consolidadas no século XIX. Na Alemanha, o

direito concebido como campo científico autônomo apoiou-se na noção de Estado

personificado, dotado do poder do dominação irresistível que fundamentava sua

capacidade de positivar regras jurídicas. Consta das teses de Laband, Gerber e

Jellinek uma concepção de Estado que, à semelhança do indivíduo, de sujeito de

direito, cuja vontade é a origem do direito e cujo poder não reconhece acima dele

nenhum outro. Na França, a legitimidade do direito também esteve ligada à

origem das normas, mas como produto do poder de dominação da soberania da

176

Sobre a relação de Duguit e Kelsen, cf. HERRERA, Carlos Miguel. Duguit et Kelsen: la

théorie juridique, de l'épistémologie au politique. In: BEAUD, Olivier; WACHSMANN, Patrick.

La science juridique française et la science juridique allemande de 1870 à 1918. Op. cit. 177

PINON, Stéphane. ”Léon Duguit face à la doctrine constitutionnelle naissante”. Droits. Revue

du Droit Public et de la Science Politique en France et à l'Etranger, v. 2, 2010. p. 524. 178

“É antes de tudo, e eu o reconheço de bom grado, uma obra negativa. Eu me esforcei para

contestar as noções tradicionais de direito subjetivo, sujeito de direito e soberania. Já tentei

edificar uma construção jurídica sobre a ideia de regra de direito. Talvez esteja iludido, mas

persisto em pensar que as objeções que me foram dirigidas não arruinaram completamente minha

empreitada. In: DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. Op. Cit. p. XVII.

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133

nação, herança da Revolução Francesa. A possibilidade de o Estado positivar o

direito se devia ao fato de que ele personificava a nação, esta concebida na forma

rousseauniana, isto é, como unidade distinta da soma dos indivíduos que a

integram.

Portanto, do ponto de vista negativo, a produção teórica crítica de Duguit

esteve dedicada à desconstrução da ideia de Estado que situa na ilimitação de seu

poder a legitimidade do direito, assemelhando-a à vontade livre do indivíduo

abstrato. Do ponto de vista positivo, verifica-se, na última versão do Traité de

Droit Constitutionnel, de 1927, uma tentativa de substancialização do direito

através da introdução de uma concepção de justiça. Assim, a crítica ao modelo

normativista, voluntarista e, afinal, liberal de Estado e de direito orienta a

produção de uma teoria propositiva, que concebe o direito como momento de

integração social por meio da realização da solidariedade.

Duguit concentrou-se em desconstruir o apriorismo das ideias gerais e

abstratas da “metafísica” que caracterizava a teoria jurídica alemã, tais como

“unidade” e “pluralidade”, ou “soberania” e “direito subjetivo”179

. Procurou opor

a essa visão o “método histórico-sociológico”, ou realista, o único capaz, segundo

ele, de corresponder ao anseio por cientificidade que se pretendia para o campo do

direito. Tratou de produzir uma proposta teórica cujos conceitos são deduzidos

dos fatos sociais, das experiências concretas, ao contrário da metafísica

individualista que os apoia em postulados de “essência” ou “substância”. A ideia

de uma perspectiva teórica deduzida da realidade empírica, assim como a acolhida

das unidades analíticas durkheimianas, os fatos sociais180

, evidencia a orientação

do projeto teórico de Duguit, a saber, opor à perspectiva do indivíduo a da

sociedade.

O método histórico-sociológico, ou histórico-objetivo, herdeiro do

positivismo sociológico, já não era uma atitude epistemológica “na moda da

época”. Não obstante, para Duguit, a observação e o raciocínio sobre os dados

179

“O homem teve sempre a necessidade de explicar o visível pelo invisível, de colocar em

segundo plano o fenômeno que ele constata diretamente, atrás de uma entidade invisível que

funciona para ele como suporte a causa eficiente do fenômeno que ele constata”. In: Idem. p. 18. 180

“[...] consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de

um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem”. In: DURKHEIM, Émile. O que é o fato

social? In: RODRIGUES, J. A. Durkheim. São Paulo: Ática, 2000. pp. 48.

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134

eram o caminho para chegar a soluções práticas e justas. Por este motivo, Duguit

acreditava que trazer para o direito público o gesto positivista, já acolhido no

direito privado, de descartar os conceitos a priori de direito subjetivo e de sujeito

de direito era a única possibilidade de “descobrir” a sua “verdade científica”181

.

Após a Revolução Russa e a ascensão do fascismo, a afirmação do

pensamento de Duguit esteve dedicada sobretudo a contrapor as doutrinas

crescentemente estatistas e totalizantes. Em uma linha, consta da obra de Duguit –

desde sempre, mas de forma mais clara em 1927 – uma atualização do que era ser

liberal.

As últimas contribuições de Duguit surgiram quase que como o apelo de

um liberalismo que se vê perdendo terreno para o surgimento de Estados

totalitários. Não por acaso, a imagem da guerra que propõe ao leitor é a de um

choque entre duas concepções de Estado: a potência comandante alemã e a justa

colaboração para o bem-estar francesa182

. Este último, embora liberal, tem

substância, mas nem por isso rivaliza com suas pretensões de objetividade

científica. Primeiro por que não se estaria a defender um ideal metafísico, mas a

reconhecer um valor oferecido pela realidade183

. A descrição da realidade logra a

identificação de valores que levam sua teoria a progressivamente comportar um

181

“eu continuo pensando que a observação e o raciocínio sobre os dados de observação são os

únicos instrumentos de investigação que o homem possui para chegar a descobrir a pequena

parcela de verdade que lhe é dado conhecer. Eu continuo pensando que no domínio do direito não

podemos chegar a soluções ao mesmo tempo práticas e justas senão descartando todos os

conceitos a priori e toda a vã dialética que lhe pretendemos associar. Eu continuo pensando

notadamente que todas as construções que nos esforçamos em edificar em direito público e em

direito privado sobre os conceitos a priori de direito subjetivo e de sujeito de direito estão

arruinadas. Tenho um profundo respeito pelas crenças religiosas sinceras, admiro os sonhos

metafísicos traduzidos em bela linguagem, mas nem umas nem outros fizeram nada para a

descoberta da verdade científica”. In: DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. Op. cit. p.

XVI. 182

“Diz-se, muito justamente, que a guerra que acaba de terminar não foi exatamente o choque

entre dois grupos de nações, mas sim o choque entre suas ideias. Ela foi a luta entre a ideia de

Estado potência comandante, soberana, contra a ideia de Estado colaboração de membros de um

mesmo grupo nacional, trabalhando em conjunto pela realização da justiça e do bem-estar. A ideia

do Estado potência, afirmada por todos os publicistas e juristas alemães, se chocou contra a ideia

de Estado colaboração, de que a França é iniciadora e que venceu nas margens do Marne e nas

ravinas de Verdun. A França saberá, apesar das dificuldades e das vitórias momentâneas da

estupidez e do mal, assegurar sua completa realização”. In: Idem. p. XI/XII. 183

“penetração recíproca e cada dia mais íntima e mais profunda das inteligências e dos corações,

no trabalho cotidiano de cada indivíduo pelo bem comum, na realização constante do fato social

que é simplesmente a interdependência dos indivíduos”. In: Idem. p. XVIII/XIX.

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viés prescritivo. É certo idealismo do positivismo herdado da Sociologia que

autoriza o reconhecimento da existência objetiva de uma escala de valores.

A defesa de um liberalismo substantivo – composto por um elemento de

justiça e uma concepção de bem – se operacionaliza sem problemas através de

uma teoria constitucional orientada pelo positivismo metodológico recepcionado

da Sociologia. Seguindo a proposta teórica de Émile Durkheim184

, Duguit

compreende o processo de individualização como paralelo ao de socialização. Isto

lhe franqueia a possibilidade de refundar a relação indivíduo-sociedade para a

teoria constitucional sem recorrer ao dualismo antitético e ao subjetivismo da

Jurisprudência do século XIX. Supondo que o indivíduo é produto da divisão do

trabalho, porque quanto mais inserido na lógica da cooperação e do progresso,

mais consciente de sua individualidade e de sua função na reprodução do todo

social e do progresso coletivo, é a ideia de consciência que reconcilia a disjuntiva

individuo-sociedade.

Não se trata, entretanto, de afirmar que Duguit parte de um ponto de vista

contrário ao individualismo e, portanto, antiliberal. Ao contrário, a consciência

individual tem papel fundamental na inserção do indivíduo na sociedade185

. Não

obstante, não é no conteúdo do pensamento individual, como queriam as teorias

individualistas, que se encontra o traço fundador da sociedade, pois é ao pensar

nela que o homem pensa em si mesmo186

. Talvez a distinção mais esclarecedora

deste ponto seja aquela operada por Psier-Kouchner entre subjetivismo e

individualismo, entre individualismo e liberalismo. Individualista seria a teoria

que toma o indivíduo como fonte do direito. Liberal seria aquela que toma o

indivíduo como finalidade. Duguit seria, portanto, anti-individualista, mas

liberal187

.

184

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 4. ed. São Paulo: Editora WMF Martins

Fontes LTDA, 2010. 185

“O fato irredutível, que está no começo de todos os fenômenos de que o homem é fato, é o

pensamento individual consciente de si mesmo”. In: DUGUIT, Léon. L’État, le droit objectif et la

loi positive. Paris: Dalloz, 2003 [1901]. pp. 25 186

“O conteúdo desse pensamento pode ser exclusivamente social. O homem talvez tenha pensado

a sociedade antes de pensar a si mesmo; o homem, talvez, não pense senão porque é um ser social;

a única realidade objetiva é, talvez, a sociedade. Que importa? O conteúdo da consciência é (...)

exclusivamente social; mas a consciência é exclusivamente individual”. In: Idem. pp. 25 187

“na realidade, Duguit pretender criticar mais o subjetivismo do que o individualismo, apesar de

muito frequentemente confundir os dois termos. Ele parece admitir uma distinção entre

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Ainda que os indivíduos sejam dotados de consciência, vontade e se

movam com o objetivo de ver realizada uma finalidade, não existem isolados. Não

podem, portanto, ser tomados, em abstrato, como instância fundadora da

sociedade. Ao contrário, é a sociedade o fato primário imanente. Ela é lida por

Duguit como composta de indivíduos e representada em suas consciências. Não é

o resultado de suas escolhas livres, o que é indemonstrável em bases científicas.

Trata-se, antes, de um gesto que não resulta de uma escolha, mas da necessidade

comum de minimizar o sofrimento, ou de maximizar o bem-estar de todos188

.

Em 1895, quando na França discutia-se a composição do Senado, Léon

Duguit publicou artigo no qual defendeu a representação política dos sindicatos.

Argumentou que tais entidades compunham a soberania nacional ao lado dos

indivíduos e partidos e deveriam figurar nos órgãos decisórios. Paralelamente, fez

o ponto de que as demandas apresentadas ao Estado naquele momento histórico

tornaram-se mais complexas – o que exigia decisões qualificadas – para as quais o

poder público deveria se valer de um legislativo formado pelas entidades. A ação

parlamentar das entidades visaria, portanto, ao bem comum, não somente aos

interesses que atingissem diretamente as categorias que representavam.

Duguit formara-se na tradição francesa da sociologia inaugurada por

Auguste Comte, mas, sobretudo, pelas ideias de Durkheim. Neste sentido, o

constitucionalista afirma que o direito se fundamenta na solidariedade humana e é

o resultado das necessidades da vida em sociedade. Com isto, mostrou-se crítico

do fundamento individualista das teorias da soberania, as quais toma por

metafísicas. Por este motivo, o reconhecimento dos grupos sociais, como os

sindicatos, seria uma forma de recompor os laços entre indivíduos e Estado e

garantir a eficiência da vida coletiva.

individualismo e liberalismo: é individualista a teoria que toma o indivíduo como fonte do direito

(mas trata-se nesse caso do subjetivismo propriamente dito). É liberal a doutrina que toma o

indivíduo como finalidade, e nesse sentido, Duguit se vê como anti-individualista, mas liberal”.

PISIER-KOUCHNER, Evelyne. Le service public dans la théorie de l'Etat de Léon Duguit. Paris:

LGDJ, 1976. p. 36. 188

“Dizer que o homem é um ser vivente e organizado é dizer que ele morre. Ora, é um fato de

observação que o homem morre mais rápido se fica isolado dos outros homens. De outro lado, o

homem sofre; a dor não é uma palavra vã, como queria a filosofia estóica; ele é sim uma realidade,

a mais incontestável das realidades. Ora, é ainda um fato de observação que a soma dos

sofrimentos humanos é menor quando o homem vive em relação com outros homens (...). De fato

o homem sofre, sabe que sofre e quer sofrer menos e, de fato, ele sofre menos se vive em um

grupo humano”. In: DUGUIT, Léon. L’État, le droit objectif et la loi positive. Op. cit. p. 31.

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137

Essa orientação de pensamento encontra-se sintetizada em Traité de Droit

Constitutionnel189

, um texto muito mobilizado pelos atores brasileiros190

, mesmo

por aqueles que foram contrários a ele191

.

O reconhecimento dos limites da representação tradicional para responder

aos desafios impostos às democracias do período, notadamente a atualização da

relação entre Estado e sociedade e a administração do conflito entre capital e

trabalho, trouxe a alternativa da representação profissional à pauta das reuniões da

Subcomissão do Itamaraty.

A discussão sobre a representação profissional no Brasil versou sobre

quatro pontos: (1) os atributos a serem concedidos à representação das

associações (função consultiva ou deliberativa); (2) o local em que seria exercida

(Parlamento ou Conselhos Técnicos); (3) as entidades elegíveis (sindicatos ou

outras formas organizacionais); e (4) a organização das entidades para efeito de

representação (por profissão, por ramo da atividade econômica ou por classe).

Em razão das concepções distintas acerca do que era e de onde deveria ter

lugar, a representação das associações recebeu vários nomes: representação

“profissional”, “das profissões”, “classista”, “de classe”, “de interesses” ou

“corporativa”. Adotar-se-á a expressão representação das associações

profissionais para designar a participação formal deste tipo de entidade no aparato

decisório do Estado. Trata-se da presença das categorias produtivas organizadas

nos processos de formulação de normas e regras de aplicação restrita aos

membros das respectivas entidades profissionais, ou extensíveis à toda a

população. Foi este o conteúdo dado à “representação das profissões” pela

Constituição de 1934192

. Assim, a adoção do nome representação das associações

189

DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. Op. cit. pp. 753-75. 190

Como a obra não foi traduzida para o português, supõe-se que foi lida no original em francês. 191

“Duguit desempenhou o papel de um tirano no pensamento político e constitucional brasileiro.

(...) Foi realmente um grande constitucionalista e teve ascendência sobre muitos dos nossos

teóricos políticos. (...) as tendências positivistas de Duguit casavam-se facilmente com o nosso

positivismo político e social, se não dominante, pelo menos subjacente. Estávamos preparados

para absorver e aceitar, de certo modo, os ensinamentos do decano de Bordéus”. Apud

TAVARES, Ana Lúcia de Lyra. A constituinte de 1934 e a representação profissional. Rio de

Janeiro: Forense, 1988. p. 130. 192

“Art. 7.º Compete privativamente aos Estados: I - decretar a Constituição e as leis por que se

devam reger, respeitados os seguintes principios: [...] h) representação das profissões”. BRASIL.

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138

profissionais preserva os elementos consensuais da disputa sobre os atributos das

entidades e sobre o local onde deveriam exercê-las, ao mesmo tempo em que se

distingue dos nomes adotados no debate. Por este motivo, será ela a denominação

utilizada ao longo da presente exposição.

A conjuntura dos primeiros anos da década de 1930 foi marcada por um

corte institucional e pela percepção de que alterações importantes deveriam

ocorrer no país. Por um lado, em razão da missão assumida pela Revolução de

moralizar a representação, diante da experiência de fraudes eleitorais da Primeira

República. Por outro, pela necessidade de modernizar as instituições do país,

imposta pelas alterações vivenciadas em todo o mundo, e também no Brasil, nas

relações entre Estado e Sociedade, decorrentes da organização do mundo do

trabalho e dos consequentes conflitos gerados no mundo da produção. Neste

sentido, parte das elites intelectual e política do país supunham que a participação

política das associações profissionais nas ações públicas seria uma solução. Não

por acaso, em janeiro de 1931, apenas dois meses após chegar ao poder, Getúlio

Vargas referiu-se à “representação por classes” como uma das mudanças a serem

implementadas pela Revolução193

. No mesmo sentido, a representação das

associações profissionais constou do Decreto 22.621, de cinco de abril de 1933,

que pôs o Regimento Interno e a composição da Constituinte194

.

Nos três anos que decorreram entre o discurso de Vargas e a promulgação

da Constituição de 1934, teve lugar o debate acerca do modo de incorporação das

associações profissionais ao Estado. O debate ganhou a agenda pública através de

livros, artigos de revistas ou jornais, peças jurídicas e declarações à imprensa. No

“Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1934”. In: Constituições do Brasil.

São Paulo: Edição Saraiva, 1967. p. 245. 193

O programa da revolução reflete o espirito que a inspirou e traça o caminho para o

ressurgimento do Brasil: [...] modifica o regime representativo com a aplicação de leis eleitorais

previdentes, extirpando as oligarquias politicas e estabelecendo ainda a representação por classes,

em vez do velho sistema da representação individual, tão falho como expressão da vontade

popular [...].”VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1938,

1v. p. 81. 194

“[...] o Govêrno achou de melhor alvitre manter o status quo, isto é, o critério da tradição, para

a representação politica na Assembléa Nacional, com a mesma distribuição pelos Estados,

acrescentando dois deputados para o território do Acre, em obediência ao Código Eleitoral, que

deu direitos políticos áquêle território e quarenta para a representação das associações

profissionais, a que alude o Código Eleitoral, no seu art. 142.”

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-22621-5-abril-1933-509274-

publicacaooriginal-1-pe.html

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bojo dessa discussão, verifica-se o recurso aos temas de Direito Constitucional e

Ciências Sociais tal como tratados pela tradição francesa195

. Tal influência é

conhecida e amplamente explorada. Importa, entretanto, sublinhar que, a esta

altura, estava em disputa a feição que seria assumida pela nova ordem. E, com ela,

estava em disputa o significado atribuído à representação profissional naquilo em

que ela se distingue do corporativismo. Isto é, estava em questão aproveitar ou

não a representação profissional como alternativa capaz de contribuir para a

construção de uma ordem liberal nos termos exigidos pelas circunstâncias,

incorporando os novos atores e atualizando as funções do Estado para obstar, ao

mesmo tempo, a aproximação dos trabalhadores das ideias socialistas e obstar a

centralização excessiva do Estado.

Não foi o que houve. Intelectuais autoritários que criticavam o liberalismo

da República Velha e pensavam em alternativas centralizadoras para o Estado e

para a representação. Após a Revolução, procurou-se ampliar a esfera de atuação

do poder público sobre a sociedade. Descrentes das instituições liberais e, entre

elas, da representação tradicional, propuseram substituir o conflito entre as

diferenças ideológicas por uma ideologia só, a qual era comum referir-se como

corporativista. Enquanto isto, os liberais de então propunham uma reforma

política em que a modernização do sistema representativo ocupava lugar central.

Escapou-lhes perceber a representação das associações do velho regime que não

se confundia com o corporativismo.

Durante os primeiros anos da década de 1930, a nova ordem estava em

disputa. Na esteira das reformas fixadas no Código de 1932, a Carta de 1934

manteve a representação tradicional, aprimorou o sistema representativo e, como

se viu, incluiu de uma forma aberta de representação profissional. Não por acaso,

o corporativismo assumiria contornos institucionais definidos quando do Estado

Novo. O autoritarismo do regime fixado na Constituição de 1937 havia cancelado

a competição pelo poder político e neutralizado as arenas de deliberação. E, com

corporativismo do Estado Novo, procurava-se fazer precisamente isto, submeter

todo conflito social à regência do governo central.

195

BARRETO, Álvaro. Representação das associações profissionais: a influência francesa no

debate brasileiro da década de 30. v. v. 45, n. n. 177, p. p. 171-183, jan./mar. 2008. Disponível

em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/160333 >.

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Em 1937, rompia-se pela primeira vez com a tradição liberal dos textos

constitucionais anteriormente vigentes no país. A essência autoritária e centralista

da Constituição de 1937 a colocava em sintonia com os modelos fascistizantes de

organização político-institucional então em voga em diversas partes do mundo. A

representação política tradicional de matriz liberal foi inteiramente substituída

pela concentração de poderes nas mãos do chefe do Executivo, o qual nomeava as

autoridades estaduais, aos quais, por seu turno, cabia nomear as autoridades

municipais. Como o Parlamento e os partidos políticos eram considerados

produtos espúrios da democracia liberal, foram descartados. Em contrapartida, a

Constituição de 1937 previa a convocação de uma câmara corporativa com

poderes legislativos. Entretanto, isto jamais aconteceu. Por este motivo, seria

possível arguir que sequer o corporativismo teve oportunidade de funcionar

durante o Estado Novo. A excessiva centralização teria impedido a estrutura de

funcionar como no Portugal de Salazar ou na Itália de Mussolini. Os limites

impostos pela centralização ao funcionamento das organizações oficiais

apontariam para um “corporativismo” que serve mais como pano de fundo para as

decisões do líder do que como canal para a verdadeira formação das decisões196

.

A esse corporativismo, entendido como forma de substituir as instituições

representativas liberais para contrabandear a vontade do chefe do Poder

Executivo, contrapõe-se a noção de corporativismo como de representação

mediada de interesses197

. A ideia é de Philippe Schmitter, o qual, a partir dos anos

1970, propôs a identificação da expressão corporativismo com a noção de sistema

de representação de interesses compreendido como arranjo institucional típico-

ideal utilizado para conectar a associação organizada de interesses da sociedade

civil com os espaços decisórios do Estado. O resultado da operação teórica de

Schmitter foi o de deflacionar o registro autoritário do corporativismo,

apreciando-o dissociado de ideologias fascistas e apenas como uma das

196

PINHEIRO, Paulo Sergio. “Trabalho Industrial no Brasil”. In: Estudos Cebrap nº 14 Out-Nov-

Dez, 1975. p. 122. 197

SCHMITTER, Philippe. “Still the Century of Corporatism?”. In: The Review of Politics, The

New Corporatism: Social and Political Structures in the Iberian World Vol. 36, No. 1, Jan., 1974.

Cambridge University Press.

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configurações possíveis da representação de interesses, da qual o pluralismo

liberal democrático seria a versão mais conhecida198

.

Subjaz à ideia de corporativismo como representação mediada de

interesses, portanto, a pretensão de propor uma alternativa ao paradigma pluralista

da política dos interesses, desde a possibilidade de sua mediação. O pluralismo,

como modelo teórico, é utilizado para analisar o sistema político, mais

propriamente para a “análise da formação das decisões” e das relações entre

interesses individuais e poder público. Pelo pluralismo, as decisões políticas e o

funcionamento do sistema político poderiam ser explicados pela interação e pela

competição entre uma multiplicidade de interesses diversos. A unidade de análise

é o indivíduo. Entretanto, segundo a proposta de Schmitter, a análise não pode

desprezar como unidade o grupo, pois, para o autor, o entendimento do

funcionamento do sistema político deve partir do estudo dos grupos ativos e das

suas interações. Isto porque o sistema político do pluralismo é uma arena na qual

interesses individuais competem entre si e com interesses sociais organizados,

todos perseguindo suas preferências. Neste sentido, caberia ao Estado garantir a

legitimidade da competição e o respeito às regras do jogo.

Tal acepção de corporativismo surge como possibilidade de apreender a

especificidade de trajetórias políticas particulares sem submete-las ao

enquadramento de instituições e às fases de desenvolvimento político encontradas

na experiência das democracias europeias e americana. O percurso da história

política dos países latino-americanos, por exemplo, não seria, portanto, anormal.

Teria apenas características próprias. Tal conceito de corporativismo permitiu a

elaboração de uma categoria que viabilizasse pensar tanto os movimentos

corporativistas dos anos 20 e 30 quanto a persistência das estruturas de vinculação

Estado/sociedade corporativistas que persistiram em ordens liberais, apesar do

desaparecimento ou rejeição das velhas ideologias corporativistas.

198

Ibidem. p. 86.

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Parte II - Imposições Contextuais ao Liberalismo e à representação política tradicional nas primeiras décadas do século XX no Brasil

No capítulo anterior, viu-se que Durkheim concebe uma forma de

representação de interesses através das associações profissionais que prescinde do

Estado. Ao contrário, que serão elas as encarregadas de representar os interesses

coletivos dos trabalhadores, alçados a interesses públicos, diante do Estado. Viu-

se que sua teoria sociológica, assim como essa concepção coletivista de

representação, nasce de uma reação “individualismo liberal” e à representação

política tradicional.

Assim, o corporativismo moderno nasce no interior da ciência social, mas

sem a pretensão de harmonizar-se com as formas do liberalismo. Ao contrário,

Durkheim supunha que foram as pressuposições teóricas do liberalismo as

principais responsáveis pelas dificuldades da sociologia para fixar-se como campo

científico autônomo no momento mesmo em que ela se pretende delimitar

enquanto campo autônomo.

Tal forma de representação de interesses mediada por associações

profissionais não se confunde, portanto, com a formulação de Léon Duguit,

elaborada nas primeiras décadas do século XX, com a precisa finalidade de

resolver o tema da representação que, naquele contexto, ameaçava a sobrevida do

liberalismo. É dele que se tratará na Parte II desta investigação.

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Capítulo 4. Desafios impostos ao liberalismo no século XX

Em agosto de 1914, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, a

imaginação europeia não suspeitava da natureza e da extensão do conflito que se

iniciava. Não se acreditava na possibilidade de uma guerra entre as nações tidas

como civilizadas. De fato, foi o contexto de crença no progresso e na civilização

das nações europeias que ocultou o horizonte de possibilidades da violência que

teria lugar entre os povos europeus, então só imaginável como factível em regiões

periféricas ocupadas por povos tidos como pouco civilizados. A dimensão que

assumiria o conflito foi sentida como surpreendente.

Alguns meses após o início da guerra, em 1915, Sigmund Freud buscou

oferecer alguma compreensão acerca do evento que causava enorme

desapontamento ao público europeu199

. Segundo Freud, não se acreditava que a

guerra traria o horror e o sofrimento dos quais já se começava a ter notícia por

todos os lados do conflito. Supusera-se, ao contrário, que no caso de deflagração

de um conflito armado, ele certamente seria “uma oportunidade para mostrar o

progresso do respeito entre os seres humanos”.200

Ao contrário da expectativa de um embate cavalheiresco, com o propósito

limitado de estabelecer a superioridade de um dos lados, o que se experimentou

foi uma guerra mais sangrenta e destrutiva do que as anteriores, potencializada

pelo desenvolvimento da capacidade tecnológica de destruição das armas

modernas. Borraram-se todos os limites “civilizatórios”: ignoraram-se os direitos

das nações, as prerrogativas dos feridos e dos médicos e a distinção entre civis e

militares. O resultado foi o inédito cômputo de mortos, cerca de 13 milhões de

199

“Esperávamos que as grandes nações dominantes da raça branca, líderes da humanidade, que

cultivaram interesses em escala mundial, e às quais devemos tanto o progresso técnico no controle

da natureza como a criação de padrões culturais artísticos e científicos – esperávamos que estas

nações encontrassem outra maneira de resolver suas diferenças e seus interesses conflitantes”. In:

FREUD, Sigmund. Reflections on war and death. Mofat, Yard and Company, 1918. 200

FREUD, Sigmund. Reflections on war and death. Op. cit. 1918.

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pessoas.201

A aventura guerreira dos Estados nacionais europeus tinha entrado

numa nova era, a do encontro com a morte em massa.202

Talvez a leitura da Primeira Guerra pela década de 1930 tenha se

inaugurado com o conhecido ensaio A mobilização total, de Ernst Jünger. Nele, o

autor comparou a experiência das guerras com a da erupção dos vulcões.203

Assim

como os vulcões cospem sempre a mesma lava, enquanto as regiões em que

ocorrem erupções são muito diferentes, “a guerra é sempre a mesma e sempre

outra”. Acerca da necessidade de ler a guerra à luz do comprometimento que ela

gerou para as crenças histórico-filosóficas na civilização, a metáfora jüngeriana

indica duas pistas204

. A primeira remonta a Freud, segundo o qual o caminho para

a compreensão da guerra é o mesmo que desfaz a ilusão progressista das filosofias

da história, porque se encontra “nos impulsos transhistóricos (e, portanto,

incanceláveis pelo capital civilizacional acumulado ao longo do tempo) dos

membros da espécie. A segunda é a da sugestão de Jünger, para o qual a erupção é

o resultado da especificidade histórica do encontro, ali realizado, entre o “gênio da

guerra” e o “espírito do progresso”. Em ambos os casos, os horrores da violência

indiscriminada e do morticínio em massa aparecem como figuras que inauguram o

novo século como o das atrocidades inéditas.

A década de 1930 também produziu uma das mais contundentes críticas às

expectativas liberais acerca do mundo produtivo. Às portas da Segunda Guerra

Mundial, Karl Polanyi começou o empreendimento que culminaria com a

exposição, com improvável didática, dos equívocos do liberalismo econômico

advogado no século XVIII205

. Como evidência, mobilizou o dado de que, após ter

sido efetivado ao longo do século XIX, o século XX estaria testemunhando os

efeitos da crença no mercado livre que, em razão da crise econômica que se

radicalizou ao final da década de 1920, não mais atingia somente os pobres.

201

O número de mortos na Primeira Grande Guerra não se compara aos 400 mil mortos na guerra

napoleônica contra a Rússia, a mais sangrenta entre as conhecidas até aquele momento, ou os 150

mil franceses e 45 mil prussianos mortos na guerra Franco-Prussiana de 1870. 202

MOSSE, George Lachmann. Fallen Soldiers. Oxford University Press, 1990 . 203

“Ter participado de uma guerra pode comparar-se com o fato de encontrar-se na zona

ameaçadora de uma destas montanhas que vomitam fogo” Junger 204

JASMIN, Marcelo. “Guerra e Paz” (Conferência). In: VI Simpósio Internacional de Teologia.

Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, (2 de setembro) 2015. 205

POLANYI, Karl. The great transformation . Boston: Beacon Press, 1944.

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A forma mais acabada do argumento de Karl Polanyi está fixada em A

Grande Transformação: As origens políticas e econômicas do nosso tempo. A

obra data de 1944, mas começou a ser elaborada em 1933, quando Polanyi foi

convidado a deixar seu posto na revista vienense Österreichische Volkswirt. Então

conhecido como jornalista e intelectual publico, critico agressivo da Escola

Austríaca de Economia de Mercado Livre e de seus cultuados líderes, Ludwig von

Mises e Friedrich Hayek, Polanyi foi demitido com a justificativa de que sua

presença impunha riscos ao periódico, em razão de suas posições socialistas.

Então aos 47 anos, o escritor começou uma espécie de saga via Londres,

Bennington e Vermont, e de uma imposta experiência docente que levou à

produção, em 1944, de uma das mais proféticas obras de economia política do

século XX.

Ao interpretar o século XVIII, Polanyi viu que a catástrofe do período do

entre-guerras, composta por Grande Depressão, fascismo e, mais tarde, Segunda

Guerra, como a consequência lógica da radicalização do laissez-faire que teve

lugar até os anos 1920. Ao contrário do que preconizara John Maynard Keynes,

que delimitara as questões do período ao fascismo e à Segunda Guerra, para

Polanyi, as “origens do cataclismo residem no empreendimento utópico do

mercado autorregulado posto pelo liberalismo econômico”. Até então, ninguém

havia conectado os pontos desde a Revolução industrial.

O mais importante crítico da economia capitalista, Karl Marx, previu seu

colapso associando-o a suas contradições internas. Entretanto, um século após

Marx, no pior momento pós Segunda Guerra na Europa e nos EUA, a burguesia

era numerosa e crescente. O proletariado gozava de constante aumento de renda.

A energia política dos trabalhadores, que Marx havia antecipado como

revolucionária, ao contrário, dirigiu-se ao apoio de partidos parlamentares

progressistas que construíram o Estado de Bem-Estar, para alterar, mas não

substituir o capitalismo. Enquanto isto, as nações que celebraram versões de Marx

encontravam desafios econômicos e sociais. Em Polanyi, o pensamento de Marx

funciona como interlocutor, não como guia para a interpretação e o saneamento

dos custos gerados pela interação do mercado com a sociedade. Polanyi, com o

benefício de falar após um século de evidência acumulada, e mais humanista do

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que materialista, esperou participar da denúncia necessária ao esclarecimento dos

líderes democráticos, para que pudessem aprender com a história e não repetir os

erros calamitosos do século XIX e das primeiras décadas do século XX.

A Grande Transformação, embora repleto de erudição, foi escrito para o

grande público – sua prosa é fácil, apesar do inglês ser a terceira língua de

Polanyi, após o húngaro e o alemão. O centro de sua tese é de que, ao contrário do

que preconizou o libertarianismo econômico de Adam Smith e, depois, de Hayek,

não há nada de natural sobre o mercado livre. A economia primitiva foi construída

sobre obrigações sociais. A sociedade comercial moderna dependeu na “ação

deliberada do Estado” com vistas à proteção das elites. Em uma linha, o laissez-

faire foi planejado.

Os economistas libertários – os quais trataram o mercado como universal

e, portanto, desvinculado das culturas locais e do tempo histórico – seriam

fanáticos cujas ideias conduziram a uma tragédia. Em seu delírio, supuseram que

a sociedade era uma espécie de apêndice do mercado. Realizaram uma inversão:

em lugar da economia se assentar na sociedade, era a sociedade que deveria se

adequar à economia.

Como Marx, Polanyi começou na Inglaterra, a primeira nação

completamente capitalista. Segundo Polanyi, a passagem lenta do sistema

econômico pós-feudal para o capitalista foi acelerada no século XVII, quando os

cercamentos (“the enclosure movement”, “the revolution of the rich against the

poor”) privaram a população rural de seu direito histórico à renda suplementar

advinda da pastagem de animais domésticos em terra comum. Neste momento, a

revolução industrial teria começado a minar as ocupações artesanais.

Por um tempo, formas de salvaguarda societal, residuais do feudalismo,

teriam abrigado a sociedade das turbulências dos mercados. Por este motivo, a

Inglaterra teria suportado, sem graves prejuízos, a calamidade dos cercamentos.

Em razão das proteções garantidas pela Coroa, o processo de “aprimoramento da

economia” teria sido adiado até que se tornasse socialmente suportável.

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Os conservadores ingleses teriam compreendido “a necessidade” de

proteger a classe trabalhadora rural através das poor laws206

. Segundo o tory

George Canning, que fora secretário das relações exteriores e, depois, primeiro

ministro, era necessária a distribuição de verbas entre os trabalhadores do meio

rural a fim de evitar o seu colapso. A dimensão conservadora do reconhecimento

dessa necessidade é a compreensão de que tal medida teria “poupado a Inglaterra

de uma revolução”.

No começo do século XIX, a classe mercadora crescente, o emergente

Partido Liberal e a ideologia do laissez-faire produziram juntos uma ordem social

baseada no mercado autorregulado. As antigas poor laws foram abolidas em 1834

em favor da poorhouse, uma instituição pensada para ser tão degradante que os

trabalhadores seriam levados a aceitar qualquer salário imposto pelo mercado e

trabalhar sob uma lógica que Polanyi classificou como moinho satânico. Logo a

livre troca se tornaria a norma, o que significou baixo custo dos grãos e

desvalorização dos salários, e aumento da volatilidade no preço da comida. No

mesmo período, o surgimento do padrão ouro limitou a habilidade do Estado de

intervir na economia. Todos os fatores confluíam para que o pauperismo atingisse

estágio sem precedentes.

A inversão criada pelos teóricos liberais do século XVIII, já mencionada,

consistiu na suposição de que é a sociedade que se aloja nas formas da economia.

Não obstante, a organização do mundo produtivo é uma operação que se

desenvolve para servir à sociedade. Não há registros de que “no princípio, era a

economia”. Não é, portanto, a sociedade que deve servir à economia, como

pretenderam os economistas liberais. Inverter o real tem consequências. Foi o que

colheu a experiência liberal do século XIX: pauperismo, epidemias e demais

males urbanos que assolam primeiro os pobres. Não por acaso, os patrocinadores

das medidas protetivas foram os rivais dos liberais. Conservadores e “reacionários

esclarecidos” preocupados com a estabilidade social, como o tory Benjamin

206

O objetivo da Poor Law, de 1662, era distanciar a administração das políticas, até então em

prática, de punição dos indivíduos por seu estado de pauperismo, fazendo chegar a eles, “alívios”

na forma de dinheiro, comida ou vestimentas. Até a sua suspensão, operada pelo Poor Law

Amendment Act, de 1834, foram promulgadas quatro Poor Laws: Poor Relief Act, de 1662;

Workhouse Test Act, de 1723; Gilbert's Act, de 1782; e Speenhamland, de 1795.

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Disraeli e o Chanceler Prussiano Otto von Bismark foram os responsáveis por

medidas como Ten Hours Bill, de 1847.

Como era falsa a inversão advogada pela crença no mercado, as

consequências da falácia da autorregulação ricocheteariam também sobre ele. Ao

final do século XIX, pânicos e depressões financeiras eram frequentes e

comprometiam não só a sociedade, mas também o sistema de mercado. É possível

que esse cenário tenha sido mau lido por uma forma de nacionalismo que

culminaria na Primeira Guerra Mundial. Depois dela, as nações vitoriosas

tentaram restaurar a trindade da autorregulação, padrão ouro e mercado livre de

trabalho. Obcecados pelo objetivo de uma moeda estável, banqueiros e ideólogos

do mercado exigiram medidas de austeridade que tiveram consequências para a

sociedade, mas, mais uma vez, também para a economia: desemprego em massa e

episódios de hiperinflação. Some-se a isto o legado de dívidas da Guerra e têm-se

mais do que a economia e a sociedade puderam suportar.

Durante os anos 1920, as instituições de mercado quebraram por toda

parte. Em alguns lugares, à hegemonia do mercado e à segurança do Estado

totalizante, a política produziu uma terceira alternativa. A social democracia da

Suécia e o New Deal americano divisaram uma economia mista que civilizaria a

energia bruta do capitalismo.

Em 1944, momento em que Polanyi estava escrevendo, outros autores

convergiram para a aspiração do bem estar social. Na Inglaterra, Lord Beveridge

estava elaborando a estrutura do welfare state do pós guerra. Em Bretton Woods,

John Maynard Keynes e Harry Dexter White estavam inventando um sistema

financeiro internacional do pós guerra que abria caminho para uma democracia

social doméstica livre das pressões do ouro e da deflação. Poucos meses após a

obra de Polanyii seguir para a prensa, indicando a necessidade de que fossem

adicionados aos direitos do cidadão o direito do indivíduo a um emprego, Franklin

Roosevelt discursava sobre uma “Segunda Bill of Rights”, conclamando

precisamente isto.

Polanyi não fez parte do planejamento de Bretton Woods, nem cita

Beveridge ou poderia saber do discurso que seria proferido por Roosevelt. Mas

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após o cômputo de depressão, ditadura e guerra da primeira metade do século XX,

a visão compartilhada de um capitalismo administrado estava no ar. Mas ninguém

deu a ela contexto e gravitas como Polanyi. Por três décadas o sucesso de uma

espécie de acordo entre capital e trabalho vingou a crítica de Polanyi. Mas o

compromisso não durou, e o percurso do capitalismo, a partir dos anos 1970,

repetiria o século XIX. Ao ponto da obra não ter perdido atualidade sequer no

século XXI, quando a hegemonia do mercado volta a discussão, apesar da história

reapresentar a economia e o reacionarismo político das décadas de 1920 e 30.

No Brasil, essas décadas puseram a necessidade de interpretações

produzidas por uma ciência comprometida com o mundo empírico a tal ponto que

não se furtasse uma função propositiva. Para tratar de problemas pertinentes ao

mundo social, foram convocados os cientistas especialistas na matéria. O

intelectual com pretensões de cientista mais expressivo do período é Oliveira

Vianna, que ocupou o cargo de Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho,

Indústria e Comércio, a partir do ano de 1932, tendo desenhado a implantação do

sindicalismo corporativista e o judiciário trabalhista no Brasil.

Nos primeiros anos da década de 1930, o Governo Provisório era o ator

responsável pela implementação de instituições afinadas com aquela terceira

alternativa, a de bem-estar. Para tanto, não obstante, contava com a celeridade da

excepcionalidade que lhe caracterizava. Por este motivo, no Brasil, o dualismo do

hemisfério norte, que opusera os fundamentalismos de mercado e de Estado, foi

reproduzido na oposição entre partidários do Governo Provisório e os atores que

mantinham como expectativa a promessa liberal de 1891. O país acabara de

realizar uma revolução peculiar, para qual confluíram forças heterogêneas, e cujas

bandeiras incluíam fortemente a promessa de realização escrupulosa do

liberalismo político fraudado durante a Primeira República. Mas, em razão da

natureza das medidas adotadas pelo Governo Provisório, do contexto mundial de

opções no sentido de uma refundação da ideia mesma de liberalismo, e da

necessidade de realizar as promessas liberais da Revolução de 1930, a simples

oposição entre economia livre e estado total é de difícil caracterização. A disputa

no Brasil se dava, antes, entre a expectativa de reconstitucionalizar o país e a de

realizar o máximo durante a vigência do Governo Provisório.

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Por esse motivo, a pressão pela constitucionalização sofrida pelo Governo

Provisório é digna de detida atenção. O discurso constitucional é, por excelência,

a ferramenta jurídica do encantamento. Ao convocar uma Assembleia

Constituinte, o Governo Provisório estancaria o período de reformas. Mas a

constitucionalização poderia realizar a tarefa de administração de remédios

estranhos, embora necessários ao liberalismo. Na Europa, o momento é de

reconhecimento tácito de que a sobrevida do liberalismo só seria possível pela

constitucionalização da ambivalência da experiência liberal. Deveriam compor o

mesmo instrumento constitucional, medidas que, na origem, rivalizam. Direitos

civis passariam a conviver com direitos sociais e a liberdade na economia passaria

a contar com previsões de intervenção do Estado. Tudo afiançado pelo debate

constitucional e pelo silencioso reconhecimento de que o liberalismo sempre

negociou com a intervenção quando o tema era preserva-lo dos males que ele

próprio criou.

Conforme apontado por Polanyi, o liberalismo já nasce tentando

harmonizar ideias que rivalizam. Uma delas é a de que o postulado da

autoregulação, quando não funciona – e nunca funciona – é uma exceção. Não

obstante, o argumento da excepcionalidade se inverte no discurso liberal,

permitindo a intervenção sem prejuízo da premissa. Lido desta maneira, os

liberais brasileiros sempre entenderam de liberalismo. E, por isto mesmo, talvez

não haja falar-se que os descaminhos da política e da economia pátrias se devem a

adulterações das formas puras da teoria liberal. Ao contrário, liberais brasileiros

acolheram a ambivalência liberal como uma espécie de desafio imposto pela

realidade brasileira à sua realização por aqui. Como resultados, encontraram-se

formas bastante criativas de transigência entre postulados puros e realidade, numa

espécie de atualização da ambivalência liberal do XVIII: a temporalização. O

constitucionalismo sempre serviu para isso. É da sua lógica fixar futurismos.

O processo constituinte da década de 1930 é uma espécie de episódio

exemplar dessa ideia. No jogo político inaugurado pela Revolução de 1930,

alianças se estabeleceram com finalidades que foram traídas por esses mesmos

gestos. Elites políticas tradicionais e tenentes, por exemplo, se encontraram na

Revolução, mas a harmonização dos seus objetivos era impossível. A vontade de

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ver realizadas mudanças econômicas e sociais sempre vai rivalizar com a vontade

brutal de acumulação. Não obstante, a tensão entre as duas pode durar

indeterminadamente através do discurso constitucional, cuja forma futurista

falseia as afinidades, porque as conduz. Para que o que aqui se está chamando de

ambivalência se torne mais claro, é necessário recuperar a história do momento

constituinte que vai de 1930 a 1934.

Compreender o processo constituinte de 1930-34 impõe conhecer o

contexto histórico de que ele é fruto, as forças políticas que o determinaram ou

foram determinadas por ele e as ideias que se apresentaram ao debate. Isso é

importante para reconhecer ao referido processo o pragmatismo das adesões a

postulados liberais. Ao mesmo tempo, importa oferecer uma leitura alternativa

àquelas que se mantém próximas dos dualismos autenticidade vs. pragmatismo,

liberais vs. conservadores: a de que o modo liberal é o da ambivalência, ou o da

harmonização futurista de interesses que rivalizam.

Partir-se-á do momento da ruptura institucional operada em 1930. Em

primeiro lugar, importa indicar que existe uma orientação da historiografia que

questiona a localização do momento revolucionário no ano de 1930,

argumentando que este se localizaria em 1928, com a ação do Bloco Operário

Camponês207

. Não obstante, a ruptura com ordem Republicana de 1891, que

caracteriza os eventos aos quais se convencionou referir como Revolução de

1930, se deve à descontinuidade que é aspecto predominante – embora não

exclusivo208

- em 1930.

O movimento de 1930 foi liderado pelas forças reunidas em torno da

Aliança Liberal. Ao depor o então Presidente Wahington Luís, pretenderam

bloquear a posse do eleito Julio Prestes e colocar Getúlio Vargas em seu lugar.

Inaugurou-se, então, um período de Governo Provisório, o qual se caracteriza pela

transitoriedade do regime e pela intenção de restabelecer a ordem constitucional

em novas bases.

207

A referida orientação remonta à obra de Edgard Decca. DECCA, Edgard. 1930: O silêncio dos

vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981. 208

Sobre continuidades e descontinuidades, cf. FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama

Conde Sá. “A Crise dos anos 20 e a Revolução de Trinta”. CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2006,

pp. 22 e ss; FAUSTO, Boris. “Estado, classe trabalhadora e burguesia industrial (1920- 1945):

uma revisão”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 20, 1988, pp. 15 e ss.

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Trata-se do período de consolidação de um pensamento que se pretendia

tipicamente nacional, de viés autoritário, fundado na crítica à importação de

modelos que, segundo essa orientação, vinha sendo praticada no Brasil e marcava

especialmente a Constituição de 1891.

A Revolução de 3 de outubro de 1930 foi inaugurada por um movimento

armado liderado pelos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba.

Como estados dissidentes, tais estados haviam lançado, no ano anterior, a Aliança

Liberal, que sustentava a candidatura presidencial de Getúlio Vargas contra o

candidato indicado pela oligarquia paulista. A oportunidade para a ação da

Aliança Liberal lhe fora franqueada pelo desrespeito de Washington Luís à

alternância entre candidatos de São Paulo e Minas, que caracterizava a chamada

“política do café-com-leite” da Primeira República. O clima de instabilidade

ocasionado pela crise econômica mundial do período, a crise política acima

mencionada e o assassinato de João Pessoa foram potencializados pela bandeira

de combate à fraude eleitoral, dando início à revolta. Em decorrência, a 3 de

novembro de 1930, Vargas foi alçado à qualidade de chefe do Governo

Provisório.

A economia da Primeira República era eminentemente agrário-

exportadora, organizada em latifúndios produtores. Isso se reflete na organização

política do país. Victor Nunes Leal, no clássico Coronelismo, Enxada e Voto

(1948), analisa a correlação entre a propriedade das terras, o poder privado, e o

poder político local, o coronelismo. É dele a descrição clássica do sistema de

compromissos políticos e econômicos da Primeira República. As lideranças

políticas regionais (estados) controlavam os votos, a partir da ampla jurisdição e

poder que detinham sobre seus dependentes e sobre a população local, que havia

sido incluída no processo político com a proclamação da República e o fim do

critério censitário, que, no limite, manteve o de gênero e o de escolaridade (isto é,

votavam homens alfabetizados). Controlando a moeda de troca, o voto, as

lideranças locais barganhavam vantagens, conveniências e represálias aos seus

adversários com o governo estadual para manutenção do poder209

. O poder

público republicano e o poder privado, que se compõe em acordos entre as

209 FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. “A Crise dos anos 20 e a

Revolução de Trinta”. Op. cit. pp. 4-5.

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oligarquias rurais, fortaleceu-se lado a lado, comprometendo-se também na

composição do poder central.

A principal atividade era a exportação de produtos agrícolas. Cultivava-se

café, açúcar borracha e fumo. A burguesia cafeeira detinha, em última análise o

poder, por intermédio do eixo São Paulo-Minas210

. As oligarquias proponderantes,

a paulista e a mineira, alternavam-se no poder central, no que ficou conhecido

como “política do café-com-leite”, garantindo incentivos à produção cafeeira. Os

chamados estados satélites, eram acomodados pelos estados de São Paulo e Minas

neste desenho. 211

A República se estabilizou com a chamada “política dos

governadores”, de Campos Sales, empossado presidente em 1898, a partir da qual

estabeleceram-se relações de igualdade entre os estados dominantes e a União.

Extraindo sua força, em última instância, da grande propriedade agrária, ela

exprime entretanto menos o ‘coronel’ do interior, vinculado apenas ao meio rural,

do que os interesses de conjunto de classe, condensando os grupos produtores,

comerciais e financeiros ligados ao café212

.

Política e economia, público e privado: a composição de forças permitiu

uma simbiose entre interesses econômicos privados e políticas econômicas

governamentais, especialmente focadas na garantia da economia cafeeira. A

queda de preços do café no mercado internacional tornava oportuna a intervenção

do governo no mercado “autorregulado” daquela ordem liberal. Era necessária

para assegurar ao setor a viabilidade do negócio, com práticas de controle cambial

e mesmo de compra, estoque e destruição de parcelas da produção, passando

também pelo endividamento externo. Foram criadas entidades públicas

diretamente responsáveis pelas políticas governamentais destinadas à economia

cafeeira, como o Instituto de Defesa do Café (1922) e o Instituto Paulista de

Defesa do Café (1924), posteriormente chamado de Instituto do Café de São

Paulo (1926).

210

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. 16a. ed. São Paulo:

Companhia das Letras, [1970] 2005. p. 120. 211

FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá (2006). “A Crise dos anos 20 e a

Revolução de Trinta”. Op. cit. pp. 5 212

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. Op. cit. p. 121.

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A intervenção frequente do governo para disciplinar os preços e a oferta

do café é uma prática de difícil conciliação teórica com as premissas do laissez

faire econômico consolidadas na Carta de 1891. Essa contradição é reputada a

uma peculiaridade do liberalismo brasileiro, o “arquiconhecido” fato de que “as

relações de trabalho no setor agrícola da economia jamais chegaram a se

aproximar das condições da acumulação laissez-fairiana clássica”213

. Do mesmo

modo, as relações entre a produção privada e o poder público também não

mantiveram a independência esperada do liberalismo econômico, na medida em

que o crescimento da economia brasileira sempre dependeu das políticas do

governo.

A desejada intervenção na economia e a ocupação privada do poder

público que caracterizam a experiência liberal brasileira da Primeira República, a

par das peculiaridades da circunstância brasileira, não agridem, segundo Polanyi,

o modo liberal de realizar a si mesmo. No Brasil de então, entretanto, a

ambivalência liberal não era constitucional, fixando na Constituição uma ordem

liberal que contrabandeava, no plano real, a prevalência de grupos de produtores

agrícolas, reunidos em oligarquias regionais, estaduais, que detinham o poder

econômico privado e controlavam o poder político a fim de manter suas posições.

A articulação das grandes oligarquias lograva controlar o poder central e

estadual através do controle local do eleitorado operado pelos coronéis (“voto de

cabresto”), o que se realizava mediante à compra de votos, arregimentação de

eleitores e fraudes eleitorais. Esta operação se viabilizava pelo cenário composto

por 70% da população vinculada a ocupações agrárias e trabalhadores em

“condições que não se afastavam muito dos tempos da escravidão”214

, com baixos

salários e relações de trabalho precárias. A taxa de alfabetização, em 1920, era de

24,5%, e apenas Distrito Federal e Rio Grande do Sul superavam os 30%. Os

analfabetos estavam excluídos da participação eleitoral, o que restringia o corpo

eleitoral, que não chegava a 8% da população e apresentava um comparecimento

eleitoral inferior a 3%. Mas mesmo os aptos a exercerem o poder político

213

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem

brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979. p. 71. 214

CARVALHO, José Murilo de. “Os três povos da República”. In: Revista USP. São Paulo, 59,

set/nov, 2003. p. 101.

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estavam sujeitos ao poder político dos coronéis. Era generalizado o receio de sair

às ruas em dias de eleição devido à violência dos capangas a serviço dos

candidatos215

.

Antes da eleição, as oligarquias compunham-se para a indicação de

candidatos, porque arregimentar eleitores e comprar votos tornava as eleições

muito caras. O resultado eram eleitos com mais de 70% dos votos na maioria das

eleições presidenciais. Por este motivo, para José Murilo de Carvalho, “o

eleitorado, o povo das eleições, o povo político oficial, por si só, era incapaz de

constituir qualquer ameaça ao sistema”216

. Segundo a leitura que faz dos dados de

sua pesquisa, o analfabetismo, a maneira censitária de lidar com ele do ponto de

vista da concessão de direitos políticos e o fenômeno do coronelismo indicam que

o povo era ausente da transformação social e política pela via eleitoral e, portanto,

não constituía ameaça efetiva de subversão da ordem.

Não obstante, não é possível falar-se em passividade do povo. Mesmo que

se subscreva as teses de que não constituía ameaça pela via eleitoral. Basta uma

vista d’olhos pela reflexão produzida no período para perceber que a “questão

social” era objeto de preocupação para as elites políticas. O povo realizou pressão

latente sobre o status quo oligárquico e isto se verifica no reconhecimento da

necessidade de lidar com a “questão social”.

Nesse sentido, “já no processo de abertura da crise da oligarquia, seria

necessário dar atenção ao fato de que a ausência das massas na insurreição de

1930 não pode ser entendida como indicadora de uma passividade global de seu

comportamento. Elas se encontram ausentes da ação, mas presentes para qualquer

das duas facções em conflito, como uma pressão permanente. Suas lutas, que se

estenderam por todas as primeiras décadas do século e, embora não tenham

conduzido a claras projeções de transformações políticas, parecem ter sido

suficientes para apresentar-se às minorias dominantes como um problema real e,

até certo ponto, como uma ameaça217

.

215

Idem. p. 105. 216

Idem. p. 107 217

WEFFORT, Francisco. O Populismo na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

p. 75.

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Já nos anos 1920 não é desprezível a formação de uma burguesia

industrial urbana localizada, sobretudo, em São Paulo e no Rio. O setor industrial,

então composto de unidades de pequeno porte, era voltado à produção de bens de

consumo para os trabalhadores, predominando os ramos têxteis e de alimentos. A

indústria da época se caracterizava pela dependência do setor agrário-exportador,

pela insignificância dos ramos básicos, pela baixa capitalização e pelo grau

insipiente da concentração218

. Na medida em que “produzia-se somente o que não

era importado”, não se formara uma setor industrial orgânico, razão pela qual “os

industriais não se constituíram em um grupo de pressão autônomo e coeso,

preferindo solicitar favores, individualmente, dos cafeicultores que detinham o

poder político”219

. Apesar da existência de pontos de tensão entre o setor agrário

e o industrial, que se organizava em associações e começava a pressionar por

incentivos à dinamização do setor, bem com a exigir medidas protecionistas de

restrição às importações, predomina a complementaridade básica entre eles, e a

incapacidade dos industriais de apresentar um projeto alternativo de

desenvolvimento para o país.

Não obstante, o setor industrial era ao mesmo tempo dependente e crítico

do setor agrário, na medida em que não podia prescindir nem de seu capital

político, nem de resistir a suas visões antindustrialistas, em razão da qual os

agrários afirmaram, inclusive na Constituinte de 1933/34, uma “vocação agrária

nacional”.

Ainda assim, a existência de um setor industrial, embora nascente, tem

como consequência direta a formação de uma classe operária urbana que era

praticamente o único extrato das camadas populares que se encontra organizado

ao final da Primeira República. Não era majoritário: conforme dados do

recenseamento de 1920, apenas 13% das ocupações nacionais estava ligada à

indústria220

. Entretanto, tampouco era desprezível. As condições de trabalho nas

cidades eram muito precárias, com homens, mulheres e crianças cumprindo

218

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. Op. cit. p. 36-39. 219

ROWLAND, Roberto. “Classe operária e estado de compromisso (origens estruturais da

legislação trabalhista e sindical)”. In: Estudos Cebrap, São Paulo, 1974. pp. 11/12. Ao discutir as

condições políticas que envolveram, no início da década de 1930, as primeiras medidas

intervencionistas na esfera das relações de trabalho, Roberto Rowland salienta as características

corporativistas do sistema de relações de trabalho e da sociedade brasileira de maneira geral. 220

Dados em CARVALHO, José Murilo de. “Os três povos da República”. Op. cit. p. 100.

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jornadas de trabalho excessivas e mediante remunerações assimétricas. Não por

acaso, a fixação de critérios claros para a remuneração e a igualdade dos salários

para a mesma quantidade de trabalho estavam na base das reivindicações do

movimento dos trabalhadores, que demandava paridade e salario mínimo. A

reivindicação por uma legislação social eficaz foi o motor das greves de 1917-19

em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Assim, embora pequena se comparada à agrária, a mão de obra industrial

era expressiva. Mobilizou, em 1917, “45 greves na capital e 29 no interior do

Estado de São Paulo”221

, contando com a participação de mais de 60.000

trabalhadores, os quais foram sistematicamente reprimidos pelos governos. As

greves tiveram como efeito potencializar a importância da organização do setor

dos empregados em associações de classe, como o já existente Centro Industrial

do Brasil (1904) e o posterior Centro das Indústrias do Estado de São Paulo

(1928)”222

.

Durante os anos finais da Primeira República, os imigrantes também

foram presença que não raro encontrou-se no centro do conflito. Também à

questão dos imigrantes os governos responderam com repressão e, em 1921, com

a edição da Lei de Expulsão dos Estrangeiros, que permitiu a expulsão sumária de

imigrantes envolvidos em “agitação social”.

Em 1922 foi fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Durante a

Primeira República, o partido esteve a maior parte do tempo na ilegalidade, só

apresentando funcionamento legal de março a junho de 1922 e de janeiro a agosto

de 1927223

. Neste intervalo, esteve organizado para participar da disputa política

institucional.

Segundo Felipe Alencastro, a nacionalização do trabalho foi um fator

relevante para a sociedade da Primeira República. Por volta de 1930, a

territorialização do mercado nacional, desvinculou o trabalho do padrão anterior,

221

Dados em CARVALHO, José Murilo de. “Os três povos da República”. Op. cit. p. 108 222

DEL PICCHIA, Lucia Barbosa. Estado, democracia e direitos na crise do constitucionalismo

liberal: uma comparação entre o pensamento jurídico francês e o brasileiro. Tese (Doutorado em

Direito Econômico e Financeiro) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2012, p. 181. 223

CARONE, Edgard. A Segunda República (1930-1937). São Paulo: Difel, 1974. p. 352.

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baseado na mão de obra imigrante. O decrescente fluxo de imigrações e o

crescente fluxo de migrações internas, especialmente direcionadas a São Paulo,

eliminou a subvenção oficial à imigração em 1927. Com isto, tornou-se necessária

a incorporação “política e ideológica” de uma massa de trabalhadores nacionais.

Esse seria um dos maiores desafios do Governo resultante da Revolução de 1930.

Enquanto o mercado de trabalho foi predominantemente alimentado pelo

tráfico negreiro e pela imigração, “enquanto a economia brasileira comia os

trabalhadores crus”, o poder político se opunha aos trabalhadores, que então

encontravam-se em situação de infracidadania. Nessas condições, o discurso

ideológico resumia-se praticamente ao diálogo entre as classes dirigentes, que à

época eram compostas pelas burocracias imperial e republicanas, e as classes

dominantes, compostas pelas oligarquias regionais. A partir do momento em que a

reprodução ampliada da força de trabalho se territorializou, “quando a economia

passou a comer trabalhadores cozidos”, o discurso ideológico não pôde mais se

movimentas dentro do restritíssimo espaço do poder. Tornou-se necessária uma

ideologia que encobrisse o sentido e a orientação do cotidiano, “que justificasse as

relações complexas unindo dominantes e dominados”224

.

A nova composição do mercado de trabalho, o movimento operário e o

Partido Comunista são forças no cenário social e político que compõe a crise da

Primeira República. Embora talvez não possam ser consideradas determinantes

para os eventos, por não terem tido sobre eles influência direta, são chave para a

compreensão do processo. Neste sentido, as camadas populares não podem ser

vistas como ausentes, ou em estado de simples passividade. A principal evidência

disso está na mudança de tratamento dado à “questão social”. Tratada como “caso

de polícia” pela gestão de Washington Luís, a questão social exigirá

reposicionamento na agenda política nacional. O fato de que o movimento

revolucionário passará a tratar das demandas populares em novos termos – como

caso de direito – é indicativo de que essas camadas adquiriram poder de pressão

sobre as instâncias governamentais, forçando-as a algum diálogo após a

Revolução de 1930.

224

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “A pré-revolução de 1930”. Novos Estudos Cebrap. São

Paulo, v. 18, pp. 17/21, setembro, 1987. p. 20.

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Após a Primeira Guerra, verifica-se a insatisfação crescente com a

condução e com as condições das Forças Armadas brasileiras. Oficiais de patentes

intermediárias, coronéis e tenentes, tinham sua promoção cada vez mais lenta. Isto

os tornava cada vez mais numerosos, o que viabilizou sua organização em um

movimento, o tenentismo.

Resistentes ao esquema oligárquico que “havia transformado o país em

vinte feudos cujos senhores eram escolhidos pela política dominante”225

,

agruparam-se em torno de ideias difusas pautadas pelo nacionalismo, pela

centralização política e pelo papel dos militares na política. O tenentismo foi

responsável por insurreições contra o governo durante toda a década de 1920, do

que são exemplos a revolta dos Dezoito do Forte de Copacabana, de 5 de julho de

1922, a revolta de 1924 (o chamado 5 de julho) e a Coluna Prestes, que teve lugar

entre 1924 e 1927. Neste sentido, o comportamento das Forças Armadas

brasileiras caracteriza-se como de oposição ao governo oligárquico226

.

O programa dos tenentes era difuso e se articulava, de início, em torno de

propostas como “a reforma da Constituição, a limitação da autonomia local, a

moralização dos costumes políticos e a unificação da justiça e do ensino, assim

como do regime eleitoral e do fisco”227

. Sobretudo neste último ponto, valia-se da

crítica ao liberalismo fundado em 91 do século anterior. Seu centro é o famoso

dualismo entre país real vs. país legal, isto é, a contradição entre o argumento

liberal e a sua realização material, entre a retórica liberal e as práticas eleitorais

das oligarquias regionais. Tal crítica calava fundo às camadas médias urbanas

que, em razão do modo excludente da política oligárquica, estavam de fora da

política.

225

FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. “A Crise dos anos 20 e a

Revolução de Trinta”. Op. cit. p. 12. 226

“Como a independência se fez sem guerra civil, não surgiram no Brasil os caudilhos militares

ligados à grande propriedade da terra. O Exército formou-se em ambiente político de predomínio

civil (...). Em 1930, os jovens militares ainda eram uma força de oposição à elite civil. A

experiência adquirida desde 1922, os contatos civis da oposição, deu a eles maior visão política,

ideias mais claras sobre reformas políticas e, sobretudo, econômicas e sociais. Como em 1889,

eram favoráveis a um governo forte que, usando a linguagem positivista, chamavam de ditadura

republicana. Esse governo deveria ser usado para centralizar o poder, combater as oligarquias,

reformar a sociedade, promover a industrialização, modernizar o país. Apesar de não ser

democrático, o tenentismo era uma força renovadora”. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania

no Brasil - o longo caminho. 6a. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004. p. 96-97. 227

FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. “A Crise dos anos 20 e a

Revolução de Trinta”. Op. cit. p. 12.

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Não obstante a crítica à ordem liberal que unira atores tão distintos, o

debate acadêmico sobre o tenentismo polemiza sobre a autenticidade ideológica

do liberalismo da Revolução. É verdade que a união dos atores repousava sobre

uma crítica à ordem liberal de 1891. Mas não se tratava de uma união por

afinidade ideológica. Havia um inimigo comum. E a melhor forma de

comprometê-lo era denunciá-lo na promessa que ele não cumpriu: denunciar o

descaminho da ordem liberal de 1891.

A ordem oligárquica, que se valera da descentralização para ocupar o

Estado e favorecer interesses econômicos das elites, havia excluído da política

tanto militares quando as classes médias urbanas. Isto permitira aos discursos,

quando da Revolução, recurso aos princípios liberais que não haviam sido

realizados pela Primeira República. Por seu turno, essa reunião sob bandeiras

liberais mereceu desconfiança do olhar acadêmico acerca da autenticidade das

filiações ao liberalismo. Por isso, o debate especializado há muito se organiza em

torno dos temas do elitismo e da autenticidade ideológica.

O tenentismo revelaria certo elitismo. Isto se evidenciaria numa forma de

insurreição distante das classes populares, cuja passividade as impedira de

derrubar a ordem oligárquica228

. Nesta chave, a Revolução de 1930 é lida como

uma revolução sem povo e em defesa da nação229

.

Quanto à passividade do povo, já se sublinhou a necessária polêmica230

.

Quanto à inscrição ideológica de tão distintos atores, o debate parece seguir nos

históricos termos de autenticidade da orientação liberal. Desde a primeira

experiência liberal brasileira, no Império, os problemas enfrentados pela

implementação de uma institucionalidade liberal no país foram lidos à luz das

ideias de falta de autenticidade e do pragmatismo. De um lado, liberais

228

“O ‘elitismo’ tenentista se revela, desde logo, na estratégia revolucionária: a insurreição

desligada das classes populares, incapazes de superar a passividade e promover, por suas próprias

mãos, a derrubada das oligarquias”. FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e

história. Op. cit. p. 89. 229

“A Revolução deveria se feita de forma autônoma ao povo, que não soube romper com sua

passividade para derrubar as oligarquias e o Exército seria a proteção da nação contra a eventual

indisciplina popular”. BERCOVICI, Gilberto. “Tentativa de Instituição da Democracia de Massas

no Brasil: Instabilidade Constitucional e Direitos Sociais na Era Vargas (1930-1964)”. In: SOUZA

NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (coord.). Direitos Sociais - Fundamentos,

Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 25, nota 2. 230

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “A pré-revolução de 1930”. Op. cit.

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argumentaram que o liberalismo foi falseado por uma presença que lhe era

estranha, o Poder Moderador. O que, aliás, já se encontra abundantemente

problematizado pela bibliografia especializada. De outro, os conservadores

entendiam que o liberalismo precisava ser temporalizado para que a sociedade

tivesse tempo de se adequar às expectativas liberais de espontaneidade. De sorte

que a presença de instituições estranhas à natureza liberal tinha a finalidade de

realiza-lo. Ambos os argumentos, entretanto, aceitam a premissa da autenticidade

como chave de interpretação. Escapa-lhes, portanto, o dado de que negociar com

seu contrário é próprio da lógica liberal desde o seu nascedouro231

.

Acerca da Revolução de 1930, existe uma interpretação segundo a qual

havia uma contradição na combinação entre o elitismo do tenentismo e sua

bandeira de denúncia de descaminho da ordem liberal. No mesmo sentido, haveria

necessária tensão o a entre a filiação ideológica democrático-liberal das camadas

médias232

e sua adesão à promessa de liberdade pelo elemento militar.

Entretanto, não convergiam apenas em razão da insatisfação geral e da

identificação do inimigo comum233

. A convergência no desejo de ampliação da

república, através do voto secreto e das liberdades individuais, só pôde unir

classes tão díspares porque é natural do liberalismo harmonizar diferenças.

Produzir a aproximação provisória entre interesses que rivalizam, bem como a

exclusão apenas aparentemente provisória do povo da vida pública foi, desde

sempre, uma das astúcias do liberalismo.

231

POLANYI, Karl. The great transformation. Op. cit. 232

Um argumento em favor da autenticidade da filiação das classe médias: “A medida em que,

sobretudo nos seus níveis mais baixos [das camadas medias], começava a se manifestar uma

consciência crítica, esta assumia formas jurídico-moralistas e opunha à prática das oligarquias as

formulas abstratas de uma democracia liberal”, in: ROWLAND, Roberto. “Classe operária e

estado de compromisso (origens estruturais da legislação trabalhista e sindical)”. Op. cit. pp. 7/40. 233

Um argumento em favor do pragmatismo da filiação das classes médias a notas de liberalismo:

“Desde os primórdios do rompimento das fileiras das oligarquias dominantes, a partir dos

discursos dos líderes mineiro e gaúcho na tribuna da Câmera dos Deputados, as classes medias

urbanas principiaram a colher os frutos da situação. Antes de tudo, como vantagem inicial, a

polarização súbita das diversas oposições regionais em torno de um bloco coordenador dos

situacionismos dissidentes provocou o fortalecimento instantâneo de nossa vida partidária,

associaram-se incontinenti para a grande batalha. As minorias dos núcleos urbanos, o eleitorado

das metrópoles estaduais, surgiram repentinamente arregimentadas como uma força coesa e e

ponderosa. As vozes abafadas pela tacanhez tumultuosa das minorias, os votos perdidos graças à

grosseria formidável do nosso sistema eleitoral, tudo isso se ergueu de chofre, para engrossar as

hostes do aglomerado de esperanças e descontentamentos variados e desconexos que se chamou

Aliança Liberal…”. In: SANTA ROSA, Virgínio. O sentido do tenentismo. 3a ed. ed. São Paulo:

Alfa-Ômega, 1976 (1933). p. 50.

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No mundo inteiro os anos 1920 começam como tempos de crise. No

Brasil, disputas em torno das eleições de 1922234

indicavam a possibilidade de um

racha entre as grandes oligarquias paulista e mineira e as oligarquias médias – Rio

de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul. Estas se organizaram numa

chapa concorrente, a Reação Republicana, encabeçada por Nilo Peçanha235

.

Cerca de 1929, após um período de estabilidade proporcionado pela

repressão às revoltas tenentistas durante o governo Washington Luís, a crise

econômica e o início do processo de sucessão presidencial voltaram a

desestabilizar a situação política nacional. A contenção internacional do crédito, a

superprodução de café, seguida de queda violenta dos preços, haviam liquidado o

programa de estabilização do governo.

Não obstante, sistema político do coronelismo, embora em declínio em

razão das mudanças ocasionadas pela crise econômica mundial, ainda era fator

importante nas negociações eleitorais. Tratava-se do sistema que teve vigência

durante a República Velha, garantido pela Constituição de 1891, através do qual a

presidência era o grande prêmio da política nacional. Como o presidente era

proibido constitucionalmente de substituir a si próprio, a cada quatro anos a

política se agitava quando os lideres do partido governante procuravam fazer

acordos com os lideres das principais maquinas estaduais para nomear um

sucessor. O objetivo era justamente fazer o poder estadual transcender o tempo

dos mandatos através da ocupação estadual do executivo federal. Uma vez

decidida, a nomeação equivalia à eleição, pois os governadores dos estados

tinham o poder de administrar localmente as eleições garantindo o resultado. Com

os resultados manipulados, os acordos pré-eleitorais podiam ser cumpridos.

O paulista Washington Luiz, então presidente, acreditava ter conseguido

apoio suficiente para seu candidato, Julio Prestes, também paulista, o que

garantiria a São Paulo mais quatro anos de governo federal. De fato, Júlio Prestes

recebeu 1.091.709 dos 1.890.524 votos registrados naquele pleito. Mas a

continuidade paulista incitou uma resistência furiosa por parte da oposição da

234

A crise é também transição, do que são indícios a fundação do PCB e a Semana de Arte

Moderna, que tiveram lugar no mesmo ano. 235

FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá . “A Crise dos anos 20 e a

Revolução de Trinta”. Op. cit. pp. 6-11.

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Aliança Liberal, liderada por Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a qual,

denunciando as “fraudes e compressões” tanto dos cabos eleitorais quanto da

legislação eleitoral, que estimulava tais práticas, ensejou a conspiração armada

que, um ano depois (1931), ocasionaria a ascensão de Getúlio Vargas à

presidência.

O acontecimento que catalisou uma rebelião armada foi o assassinato do

antigo candidato a vice-presidente, João Pessoa, da Paraíba. Sua morte, embora

não seja um caso atípico da política de clãs que vigorava na costa do Nordeste,

teve efeito traumático naquele momento, pois Washington Luiz apoiava o grupo

político ao qual estava associado o assassino. Assim, mesmo os conspiradores

hesitantes foram levados de na onda de indignação gerada pelo caso e aproveitada

para criar uma atmosfera revolucionária. A data da revolta foi marcada para 3 de

outubro de 1930.

A revolta começou com Vargas exortando os rebeldes no Rio grande do

Sul a encabeçar a marcha pelo Rio de Janeiro. A conspiração recebeu o apoio de

um grupo de políticos da Aliança Liberal e de um grupo de jovens oficiais

revolucionários, os tenentes. À força dos rebeldes se somava a perda do apoio

militar de Washington Luiz.

Incomodados pela perspectiva de uma guerra civil contra um movimento

armado de oposição nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná,

os militares encontraram sua posição no líder dos oficiais dissidentes, Tasso

Fragoso, que responsabilizou o presidente pelo clima de inquietação e

desconfiança. Com Fragoso e Mena Barreto, os militares avançaram em 24 de

outubro dispostos a tomar o poder do presidente. Viam-se obrigados a agir como

forma de conter a agitação que eclodia pelo Brasil e, assim, evitar uma “revolução

nacional como jamais tinham visto”236

. Uma junta militar governou o Rio de

Janeiro de pleno direito durante dez dias, até afinal entregar o poder, em 3 de

novembro, a Getúlio Vargas, líder inconteste do movimento de oposição.

236

CARVALHO, Estevão Leitão de. Dever Militar a política partidária. São Paulo, 1959. In:

SKIDMORE, Thomas E. Brasil : de Getúlio a Castello (1930-64). São Paulo: Companhia das

Letras, 2010. p. 39.

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Existe uma concepção bastante difundida, segundo a qual os

acontecimentos subsequentes à Revolução de 1930 caracterizam-na como apenas

mais um capítulo na história das disputas internas das elites que dominaram a

política brasileira desde a Independência, em 1822. Segundo essa concepção, não

seria possível caracteriza-la como revolução burguesa, em razão da inexistência

da contradição necessária entre os setores agrário-exportadores e o

desenvolvimento industrial237

. Tampouco haveria verdadeira ruptura em razão de

uma suposta fragilidade das reformas realizadas durante o período discricionário,

quanto pela Carta de 1934, do que seria evidência a sua vida curta.238

Apesar de acertadas acerca do equívoco de identificar na Revolução de

1930 com uma substituição direta das classes dominantes, escapa a este tipo de

interpretação a hipótese de que a Revolução de 1930 tenha realizado uma

revolução burguesa “pelo alto”239

. Descartam-se as possibilidades analíticas do

possível nexo entre o episódio e o desenvolvimento industrial no país.240

À noção de que o episódio da ruptura de 1930 não é mais do que uma

“mudança de liderança política trazida pela ascensão de Vargas à presidência, a

qual ficou conhecida como Revolução de 30”, escapa também o dado de que, na

esfera política, a partir da Revolução, quase todas as características do sistema

político e da estrutura administrativa seriam submetidos a reformas. Supõe-se que

“não foram muito mais do que ficções jurídicas”241

. Entretanto, se havia algum

consenso entre as forças revolucionárias, este repousava sobre a necessidade de

revisão geral do sistema político. A interpretação que esvazia a obra da Revolução

de 1930, entretanto, tem que ver com a profundidade dessas mudanças e, mais

importante, com o fato de que a obra constitucional franqueada pela ruptura não

237

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 : historiografia e historia. Op. cit. 238

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64). Op. cit. p. 36. 239

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. Liberalismo e sindicato no Brasil. 3. ed. - Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1989. 240

Tratam-se de análises cuja referência teórica é o conceito de revolução passiva, elaborado por

Antonio Gramsci a partir da análise do Risorgimento na Itália, entendido como processo

revolucionário de consolidação do capitalismo – pela burguesa industrial, no caso brasileiro – sem

a presença de um momento “jacobino”, evitando a participação popular e, ao mesmo tempo,

atendendo a suas demandas, o que efetivamente ocorreu no Brasil. O paralelo entre a Revolução

de 1930 e o Risorgimento italiano se reforça na medida em que, à semelhança do episódio

histórico italiano, a burguesia industrial no Brasil, abriu mão de sua função hegemônica, como

liderança intelectual, moral e política, em benefício de uma nova força que fizesse valer seus

interesses: o Estado. Ibidem. 241

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64). op. cit. p. 37

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tenha produzido meios de estabilidade, tendo sido derrubada, com relativa

facilidade, apenas um ano após a promulgação da Constituição de 1934242

.

A possibilidade de arguir que a Revolução de 1930 não foi mais que um

capítulo da história das disputas internas da elite repousa sobre três noções: que se

considere apenas que a estrutura social permaneceu intacta, permanecendo

predominantemente rural; que as forças políticas demoraram excessivamente a

mudar; e que a obra da Revolução foi uma só, a saber, pôr fim à estrutura

republicana de 1890, substituindo a diversidade que lhe seria característica

República por um operador unitário243

.

A rigor, internamente à coalizão que se revoltou contra os líderes

governantes da República Velha, o espectro de expectativas era bastante amplo.

Havia quem só esperasse algumas mudanças constitucionais em estrito sentido

jurídico, quem estivesse disposto a lutar por ambiciosos planos de mudança

econômica e social. A unidade operava-se pelo desejo comum de experimentar

novas formas políticas – ou, de pelo menos descartar as velhas. O fato é que, entre

1930 e o golpe que, em 1937 impôs o Estado Novo, o Brasil viveu um riquíssimo

período de disputa política, o qual contou com uma profusão de reformas sociais,

a ampliação do sufrágio, uma revolta regionalista em São Paulo, um movimento

de frente popular, um movimento fascista, uma tentativa de tomada de poder

comunista e uma constituição de inspiração liberal.

Simplificando a coalizão heterogênea que fez a Revolução de 1930, de

maneira rápida, existe uma divisão básica de revolucionários e não-

revolucionários entre os que apoiavam a mudança do poder244

. Embora nenhum

dos grupos tivessem um programa claro, seria possível distinguir duas grandes

posições. 245

242

Idem. p. 37. 243

“Ao longo de “sete anos de agitada improvisação [...], em 1937, um Brasil cansado terminou

sua experimentação política e entrou no período de oito anos de governo autoritário do Estado

Novo.” Idem. p. 39. 244

Idem. p. 41. 245

Tal divisão se pauta pela análise de Afonso Arinos de Melo Franco. FRANCO, Afonso Arinos

de. Um Estadista da República. volume III, p. 1421; FRANCO, Afonso Arinos de. Evolução da

crise brasileira. 1965, pp. 76-82.

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Entre os não-revolucionários estavam os constitucionalistas liberais, que

desejavam ver realizadas as clássicas ideias liberais246

de eleições livres, governo

constitucional e plenas liberdades civis. Essa posição liberal-constitucionalista,

cujos defensores mais firmes encontravam-se na classe média de algumas grandes

cidades, tinha presença forte em São Paulo.

Não obstante a inscrição eminentemente paulista dessa posição nos anos

30, seu mais distinto precursor fora um baiano, Rui Barbosa, o qual, durante a

República Velha, investira numa campanha contra o candidato do governo em

1910 fixando-se na história da Primeira República como o ponto alto da oposição

liberal às máquinas partidárias estaduais que manipulavam a sucessão

presidencial. Fora de São Paulo, o mais famoso representante do

constitucionalismo liberal fora de São Paulo foi o político gaúcho Assis Brasil, do

Partido Libertador247

.

Quando do momento da Revolução, posição liberal-constitucionalista era

significativamente representada pelo Partido Democrático de São Paulo, o qual se

organizara em 1926 e fora contrário ao candidato presidencial do Governo, Julio

Prestes. Desde antes de 1930, a fragilidade do constitucionalismo liberal era a

questão social. Por não propor uma saída para ela, o Partido Democrático de São

Paulo foi objeto das críticas de Oliveira Vianna, o qual o acusou de refletir apenas

a realidade de São Paulo248

.

Os revolucionários moviam-se pela preocupação com a “regeneração

nacional” e a modernização. Em nome desses valores, seus partidários estavam

dispostos a experimentar formas não democráticas, com vistas a alcançar

mudanças sociais e econômicas sobre as quais falavam, entretanto, de modo vago,

mas apaixonado.

Os principais proponentes dessa posição em 1930 eram os jovens tenentes

(2), militares intransigentes que haviam participado de uma série de revoltas

malogradas em 1922 e 1924, no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do

246

DORIA, A. de Sampaio. O espírito das democracias, São Paulo, 1925. 247

ASSIS BRASIL. Democracia Representativa: Do voto e do modo de votar. Rio de Janeiro,

1931. 248

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. O idealismo da Constituição. Rio de Janeiro, 1927.

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Sul249

. Sua insatisfação com a República Velha não de restringia à incapacidade

do regime de realizar os ideais liberais constitucionalistas contidos na Carta de

1891. Desejavam uma mudança fundamental, embora imprecisamente enunciada,

na administração pública, nos serviços sociais e no nível de consciência nacional.

Temiam recorrer a eleições há tão pouco tempo da revolução. Ela ainda

não tinha realizado a compreensão da necessária equalização entre os interesses

particulares e o geral. Supunham, acertadamente, que as tradicionais máquinas

políticas estaduais manipulariam qualquer pleito em benefício próprio. A ambição

dos jovens tenentes era a de ver o Brasil como um país moderno e a curto prazo.

Isso só poderia ser alcançado por um grupo inflexível de tecnocratas não políticos,

imbuídos de inabalável clareza sobre sua missão nacional.

De fato, com o Decreto no 19.398 de 11 de novembro de 1930, a

Revolução instituiu seus poderes discricionários e, ao mesmo, assumiu um

compromisso com a revisão da legislação vigorante e com a reintegração da nação

num regime legal através do processo político de convocação de uma

Constituinte. Com isto, o Governo Provisório se definiu, a priori, como um

período passageiro, um expediente revolucionário que deveria subsistir até que os

legítimos representantes da nação – os Deputados constituintes eleitos –

assumissem a tarefa da construção da nova ordem legal.250

A junção desses dois pontos no texto do decreto sugere a legitimidade que

se procurava assegurar ao Governo Provisório através do compromisso com a

constitucionalização. A Chefia do Estado nas mãos do ex-candidato presidencial e

a promessa da Constituinte faziam parte de um mesmo todo: o esforço de

manutenção das linhas legais de procedimento dentro de um contexto

revolucionário, que se caracteriza exatamente pela ruptura dessas linhas. A

questão da Constituinte, portanto, está colocada no centro do quadro político

desde os primeiros instantes do Governo Provisório cabendo a ele a condução de

todo o processo para sua convocação e instalação.”

249

CARNEIRO, Glauco. História das revoluções brasileiras. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965.

pp. 223-309; SILVA, Helio. “O ciclo de Vargas”. In: 1922: Sangue na areia de Copacabana. Rio

de Janeiro, 1964; SILVA, Helio. 1926: A grande marcha. Rio de Janeiro, 1965. 250

GOMES, Ângela Maria de Castro. et al. O Brasil Republicano, v. 10: sociedade e política

(1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. (História Geral da Civilização Brasileira; t3; v. 10),

2007. p. 20.

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Por um lado, é possível arguir que o Governo Provisório precisou

conceder desde seu primeiro momento de existência em razão do fato de que a

Revolução fora conduzida por forças díspares, unidas dera-se em razão de

afinidades cuja reunião dependia de um operador aglutinador permanente. Isto

seria razão para o Governo Provisório conceder parte de seu ímpeto por uma

ampla competência a ações constitucionalmente reguladas por uma Carta

constitucional a ser elaborada e promulgada “em breve”.

Não obstante, é próprio da lógica do constitucionalismo fixar

compromissos para o futuro: tem-se hoje uma realidade que desaparecerá

oportunamente, isto é, quando se realizar a Constituição. A equação da

discricionariedade provisória pós-30 é a mesma: têm-se agora poderes

discricionários (por)que desaparecerão. Não há qualquer contradição na

harmonização das duas coisas.

Fixa-se numa constituição o direito à igualdade porque o desejo de uma

sociedade é pela igualdade. Mas, obviamente, a igualdade não existe meramente

porque ela consta da Constituição. Entretanto, a realidade desigual já não é a

mesma face à promessa constitucional de igualdade. O mesmo pode ser dito

sobre a discricionariedade do Governo revolucionário. Sua discricionariedade já

não é a mesma face à promessa de legalidade. Os sentidos de provisoriedade e o

futurismo presentes na operação do Governo Provisório são elementos do

cancioneiro constitucional. O fato de que o Governo subsistiu provisório por

muito tempo não significa que os constitucionalistas foram enrolados, mas que a

eles foi oferecida sua própria lógica.

Para que se desse a renovação nos quadros dirigentes do país, Getúlio

Vargas recorreu a um grupo que se tornaria um dos mais expressivos no processo

revolucionário: os "tenentes". Muitos não tinham mais essa patente, mas o título

havia se generalizado ao longo do movimento tenentista, que se iniciara na década

de 1920.

Nos primeiros meses do Governo Provisório, os grupos políticos

disputaram a indicação dos interventores federais que substituiriam os antigos

presidentes estaduais eleitos, depostos pela revolução. Vargas por diversas vezes

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nomeou tenentes como braços do Governo Provisório para coordenar as áreas de

conflito. A situação mais grave era a dos estados do Norte e do Nordeste, o que

levou à indicação do líder tenentista Juarez Távora para supervisionar a atuação

dos interventores no território que se estendia do Acre até a Bahia. Em 1931, com

exceção de Pernambuco e Bahia, todos os estados do Norte e do Nordeste tinham

um "tenente" no governo. Para impedir abusos e melhor controlar a ação dos

interventores, o Governo Provisório criou, em agosto daquele ano, o Código dos

Interventores251

.

Em São Paulo, a presença dos "tenentes" deveu-se à suposição de que um

dos estados mais importantes e poderosos da Primeira República poderia se

constituir na principal força antirrevolucionária e devia, por isso, ser mantido sob

vigilância. Assim, para a interventoria paulista foi nomeado o "tenente" João

Alberto, e não um representante do Partido Democrático de São Paulo, que tivera

participação no movimento revolucionário e esperava ser recompensado. Para a

chefia da Força Pública do estado, Vargas indicou Miguel Costa, outro importante

líder do tenentismo. Essas nomeações desagradaram profundamente o PD e

importantes parcelas das elites paulistas, interessadas em manter o controle

político sobre o estado.

O outro estado que protagonizara a cena política na Primeira República,

Minas Gerais, não recebeu de Vargas qualquer enfrentamento aos grupos

oligárquicos regionais. Minas foi o único estado que não teve interventor: foi

mantido no cargo o presidente estadual Olegário Maciel. Coisa análoga ocorreu

no Rio Grande do Sul, mas porque o estado, antes da revolução, fora governado

pelo próprio Vargas. Foi nomeado como interventor um homem de longa tradição

na vida política gaúcha, Flores da Cunha.

251

Nome dado ao Decreto nº 20.348, de agosto de 1931, por meio do qual o presidente Getúlio

Vargas regulamentou o controle a ser por ele exercido sobre as interventorias federais nos estados.

A nomeação de interventores após a vitória da Revolução de 1930 não transcorreu sem problemas.

Sentindo-se preteridos, os membros das tradicionais forças políticas locais logo entravam em

conflito com as novas autoridades, e desse modo se criavam focos permanentes de crise política.

Além disso, surgiam denúncias de abuso de poder por parte dos interventores, cuja ação com

frequência extrapolava o âmbito estadual e influenciava os rumos da própria política nacional. O

Código dos Interventores, que procurava exatamente evitar uma concentração excessiva de

poderes nas mãos de alguns governantes estaduais, entre outras coisas proibia os estados de

contrair empréstimos sem a prévia autorização do governo federal e restringia os recursos que cada

estado poderia destinar às suas forças policiais, impedindo-as de rivalizar com o Exército nacional.

Tratava-se, em suma, de um instrumento de centralização do poder.

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Os "tenentes" eram os verdadeiros revolucionários. Assim se

consideravam, porque não queriam que a Revolução de 1930 se reduzisse a uma

mera troca de cadeiras entre os grupos oligárquicos. Por isso, trataram de criar

instrumentos de ação política capazes de levar adiante o projeto de um governo

centralizador, intervencionista e reformista. Entre esses instrumentos esteve a

formação, em alguns estados, de legiões revolucionárias. No Rio de Janeiro,

fundou-se o Clube 3 de Outubro, principal porta-voz dos tenentes. Importantes

lideranças civis apoiaram a criação do clube, como os ministros Oswaldo Aranha

e José Américo de Almeida e os interventores Carlos de Lima Cavalcanti (PE) e

Pedro Ernesto (DF).

Fundado por elementos vinculados ao movimento tenentista, em fevereiro

de 1931, no Rio de Janeiro, o Clube 3 de Outubro foi uma organização política

criada para oferecer apoio ao Governo Provisório de Getúlio Vargas. Depois de

vencida a Revolução de 1930, e instalado o novo governo, logo surgiram atritos

entre as forças que sustentavam Vargas. De um lado, colocavam-se os "tenentes",

que se auto-intitulavam revolucionários autênticos; de outro, postavam-se os

políticos ligados às oligarquias dissidentes que haviam dado apoio à revolução.

Nesse ambiente, os principais líderes da facção tenentista decidiram criar uma

organização política que sistematizasse as propostas do grupo e unificasse sua

atuação. O Clube 3 de Outubro, assim denominado em homenagem à data do

início da Revolução de 1930, defendia em princípio o prolongamento do Governo

Provisório e o adiamento da reconstitucionalizacão do país. Sua primeira diretoria

foi formada por Góes Monteiro252

(presidente), Pedro Ernesto (primeiro vice-

presidente), Herculino Cascardo (segundo vice-presidente), Oswaldo Aranha

(terceiro vice-presidente), Augusto do Amaral Peixoto (tesoureiro), Themístocles

Brandão Cavalcanti (primeiro-secretário) e Hugo Napoleão (segundo-secretário).

Divulgado pelas legiões revolucionárias, a agenda centralizadora do

projeto tenentista defendia medidas como a centralização do sistema tributário, o

fortalecimento das Forças Armadas, a federalização das milícias estaduais, a

criação de uma legislação trabalhista e a modernização da infraestrutura do país.

Acerca da política, os "tenentes", ao apoiarem a concentração do poder nas mãos

252

Que, pouco depois, participaria da reconstitucionalização como membro da Subcomissão do

Itamaraty.

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de Vargas, demonstravam desconfiar da representação partidária, a qual viam

como palco para a atuação de grupos voltados apenas para os seus interesses

privados. Era o mesmo que defender a manutenção de um governo de caráter

excepcional – e, portanto, ditatorial – e o adiamento do processo de

constitucionalização.

No mesmo momento, a introdução de um regime de base constitucional

era a principal reivindicação dos grupos oligárquicos, que se sentiam cada vez

mais preteridos pelo governo e temiam o fortalecimento político dos tenentes. O

conflito se acirrou em 1932 e, em julho deste ano, grupos políticos paulistas

partiram para um confronto armado com Vargas, conduzindo o que ficaria

conhecido como Revolução Constitucionalista253

. As batalhas duraram cerca de

três meses. Porém, sem o apoio dos outros estados, em 2 de outubro, as

oligarquias paulistas experimentariam a derrota que, curiosamente, comemoram

até hoje no estado.

A interpretação de que a guerra paulista foi responsável pela aceleração do

processo de constitucionalização é frequente na bibliografia especializada

tradicional254

. A Revolução Constitucionalista seria uma manifestação explicita

do descontentamento de importantes grupos políticos regionais, deslocados do

poder desde a Revolução de 1930. Segundo essa orientação bibliográfica, o

Governo Provisório, embora vencedor na guerra de São Paulo, ao escolher

convocar as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, teria reconhecido

que não havia mais condições de manter esses grupos à margem do poder político.

Depois da vitória nas armas, seria a hora da composição política.

Naturalmente, foi péssima a recepção da notícia pelos tenentes. Para eles,

a constitucionalização do país significava que teriam que disputar o poder no

campo do adversário, isto é, no voto. Além disso, representava um contrassenso

manter um projeto revolucionário em meio ao processo de normalização política.

253

Durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas, irrompeu em São Paulo a Revolução

Constitucionalista de 1932. Durante três meses, estiveram frente a frente nos campos de batalha

rebeldes e legalistas. A revolta paulista pressionou o governo para pôr fim ao caráter

revolucionário do regime. Foi o que ocorreu em maio do ano seguinte, quando se realizaram as

eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, que elaboraria a Constituição de 1934. 254

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo:

2009; GOMES, Ângela Maria de Castro. Op. cit.; SKIDMORE, Thomas E. Brasil : de Getúlio a

Castello (1930-64). Op. cit.

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O resultado foi o esvaziamento do Clube 3 de Outubro e a divisão entre os

tenentes. Visando garantir seu futuro político, importantes líderes tenentistas,

como Juarez Távora e o interventor na Bahia Juraci Magalhães, se aproximaram

dos grupos oligárquicos regionais. Outros, como o ex-interventor no Rio Grande

do Norte Herculino Cascardo, se desiludiram com os rumos da Revolução de

1930 e resolveram abandonar o governo. Lideranças militares mais antigas, como

o general Manuel Rabelo, continuaram a defender a implantação de uma ditadura

no país.

As eleições de 1933, corresponderiam ao esgotamento de um movimento

de jovens oficiais que abalou as bases da Primeira República, teve um papel

decisivo na Revolução de 1930 e empalmou grandes parcelas do poder nos

primeiros anos da Era Vargas. O tenentismo teria se diluído porque se mostrou

incapaz de construir uma sólida base política, necessária à implementação de seu

projeto de mudanças nas estruturas do país.

Colide com a referida orientação bibliográfica, o dado de que uma

Comissão para elaboração de um anteprojeto de Constituição havia sido

convocada em maio de 1932, isto é, no mesmo mês em que irromperam as

batalhas em São Paulo. Igualmente, antes isso, em fevereiro daquele ano, foi

promulgado o Código Eleitoral, através do Decreto nº 21.076. Trata-se de numa

indicação de que o Governo Provisório mantinha disposição conciliadora com a

vontade de normalização jurídica e política dos grupos resistes desde os primeiros

momentos pós-revolucionários.

O Código Eleitoral de 1932 foi pensado como conjunto de normas

legislativas para reger o processo de eleição para cargos políticos na nova

República e, com isto, sanear os vícios da representação política da velha. Não se

trata da primeira vez em que o país contou com disposições eleitorais normativas,

as quais remontam à Constituição de 1824. Através dos tempos, diversas

alterações, de maior ou menor relevância, foram sendo feitas na regulamentação

das eleições brasileiras. Porém, um código eleitoral propriamente dito, que

reunisse todas as disposições legislativas referentes ao processo eleitoral, só foi

instituído no Brasil pelo Decreto nº 21.076, de fevereiro de 1932. Elaborado por

uma comissão nomeada pelo então ministro da Justiça Maurício Cardoso, o

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Código Eleitoral de 1932 regulou o alistamento dos eleitores e trouxe importantes

medidas importantes para a modernização da democracia brasileira, como a

instituição do voto feminino e do voto secreto, a criação de uma Justiça Eleitoral

e, em maio de 1932, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A descrição do trajeto percorrido pelas forças políticas paulistas desde a

Revolução de 1930 atribui contornos mais definidos ao seu “projeto”. Em

fevereiro de 1932, formou-se aliança entre os dois principais partidos políticos do

estado de São Paulo, até então rivais: o Partido Republicano Paulista (PRP) e o

Partido Democrático(PD). Este último apoiara o movimento revolucionário com

vistas a substituir o PRP no comando da política paulista, que dominara os

governos federal e estadual desde os últimos anos do século XIX. Entretanto, as

expectativas do PD se frustraram após Getúlio Vargas nomear interventor federal

no estado, em lugar de Francisco Morato, presidente do partido, o "tenente" João

Alberto.

O clima de animosidade entre os democráticos e interventor tenente logo

se aprofundou e culminou com a ruptura, em abril de 1931, com João Alberto e,

em janeiro de 1932, com Vargas. A partir de então, os democráticos iniciaram

imediata aproximação com o PRP, dando origem à Frente Única Paulista, cuja

agenda, além da devolução da autonomia política a São Paulo, com a nomeação

de um interventor paulista e civil, foi adicionada da demanda pela

reconstitucionalização do país. A união entre as duas agremiações se deu apenas

em razão da demanda específica pela autonomia do estado, para a qual o discurso

de constitucionalização funcionava como um promissor instrumento de

legitimação. Isto é, para resistir à constitucionalização, Vargas teria se assumir um

ditador e abdicar do capital político das forças heterogêneas que apoiaram a

Revolução, ao mesmo tempo em que, na Constituinte, São Paulo teria

oportunidade de restabelecer a autonomia de São Paulo em face do governo

federal.

A investida coordenada pela Frente Única de São Paulo contra os

revolucionários foi a responsável pelo o movimento armado de julho de 1932.

Dominada a Revolução Constitucionalista, no final do ano de 1932 e começo de

1933 a campanha eleitoral para a Assembleia Nacional Constituinte tomou conta

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do país. Mais uma vez as forças políticas se reorganizaram para aquela que seria a

primeira eleição desde a vitória da Revolução de 1930. A aliança instrumental

entre PRP e PD, que formara a Frente Única de São Paulo, deu origem à Chapa

Única por São Paulo Unido.

Entre os novos procedimentos introduzidos pelo Código Eleitoral de 1932

estava a formação de uma bancada classista composta por representantes de

funcionários públicos, empregados e empregadores, eleitos por delegados

sindicais. O Governo Provisório também se fez presente, tanto pela criação de

uma Comissão Constitucional para elaboração de um anteprojeto de Constituição,

quanto através da elaboração do Regimento Interno da Constituinte, da qual se

incumbiu. Representa consenso na bibliografia a noção de que, com essas

medidas, o governo procurava intervir no conteúdo e no encaminhamento dos

debates com vistas a dar passagem aos seus interesses.

Formar uma bancada fiel ao governo foi a missão delegada por Vargas ao

então ministro da Justiça, Antunes Maciel, que também presidira a Comissão que

elaborou o anteprojeto. O objetivo era promover uma ampla articulação política

junto aos grupos oligárquicos regionais. Esperava-se contar com o apoio de

setores expressivos da bancada classista, que teria 40 das 254 cadeiras da

Constituinte. Os votos a favor das propostas governistas deveriam vir dos

representantes dos trabalhadores, eleitos por sindicatos legalizados pouco antes

pelo ministro do Trabalho, Salgado Filho.

Lideranças tenentistas próximas do governo também buscaram se fazer

representar nos embates políticos da Constituinte. Para tanto, contaram com o

apoio do interventor no Distrito Federal, Pedro Ernesto, que criou o Partido

Autonomista, e do interventor em Pernambuco, Lima Cavalcanti, que criou o

Partido Social Democrático. Onde a influência do governo e dos tenentes era

menor, os grupos políticos regionais trataram de formar novas frentes ou partidos.

Em São Paulo, o Partido Democrático e o Partido Republicano Paulista uniram-se

na Chapa Única por São Paulo Unido. No Rio Grande do Sul, Flores da Cunha

organizou o Partido Republicano Liberal; em Minas Gerais, Gustavo Capanema e

Antônio Carlos de Andrada fundaram o Partido Progressista. Finalmente, entre as

forças que participaram das eleições, destacou-se a Igreja Católica, que tinha no

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Centro Dom Vital um núcleo de debates e difusão de ideais e, para a ocasião,

organizou a Liga Eleitoral Católica.

Nas primeiras décadas do século XX, a crescente urbanização e a

secularização da cultura haviam contribuído para o enfraquecimento da influência

tradicional do catolicismo. Visando resistir a tais mudanças, o arcebispo do Rio de

Janeiro, dom Sebastião Leme, liderou um movimento destinado a defender os

ideais cristãos na vida política nacional. Foram criados a revista A Ordem (1921) e

o Centro Dom Vital (1922), sob a direção de Jackson de Figueiredo. No final da

década de 1920, quando Alceu Amoroso Lima assumiu a direção do Centro Dom

Vital e de A Ordem, a Igreja se tornou uma força político-social expressiva.

Em 1932, com o objetivo de articular-se com o mundo da política, o grupo

católico liderado por dom Leme, criou a Liga Eleitoral Católica, cujo secretário

geral foi Alceu Amoroso Lima. A estratégia da Igreja era, em nome da "segurança

da comunidade católica", exaltar as virtudes da concessão e do compromisso

daqueles que se opunham a Vargas e pretendiam formar partido de oposição que

se pautasse por valores católicos. Tendo arregimentado intelectuais e segmentos

da classe média, a Liga Eleitoral Católica teve expressiva participação nas

eleições de 1933 para a Assembleia Nacional Constituinte. Sua atuação consistiu

em supervisionar, selecionar e recomendar ao eleitorado católico os candidatos

aprovados pela Igreja, enquanto mantinha postura apartidária.

Nas eleições de maio de 1933, numerosos deputados foram eleitos com o

apoio da Liga Eleitoral Católica, entre eles Luís Sucupira255

, Heitor Anes Dias256

,

255

No pleito de maio de 1933 foi o deputado mais votado por seu estado à Assembleia Nacional

Constituinte na legenda da Liga Eleitoral Católica (LEC), com o apoio da Associação de

Funcionários Públicos Federais do Ceará. Assumindo sua cadeira em novembro do mesmo ano,

participou dos trabalhos constituintes e, com a promulgação da nova Carta em 16 de julho de

1934, teve o seu mandato prorrogado até maio do ano seguinte. Como deputado constituinte, foi o

responsável pelo projeto de que resultou o Decreto nº 7, de 20 de dezembro de 1934, que instituiu

o 7 de setembro como Dia da Pátria. Em outubro de 1934 foi eleito suplente de deputado federal

pelo Ceará. Deixando a Câmara ao final de seu primeiro mandato, foi convocado a ocupar uma

cadeira em julho de 1937. Em 10 de novembro desse ano, com o advento do Estado Novo, que

suprimiu os órgãos legislativos do país, perdeu seu mandato e deixou a vida política. 256

Em maio de 1933 elegeu-se deputado pelo Rio Grande do Sul à Assembleia Nacional

Constituinte, na legenda do Partido Republicano Liberal (PRL). Transferindo-se para o Rio de

Janeiro, então Distrito Federal, iniciou seu mandato em novembro de 1933 e passou a ministrar a

disciplina de clínica médica na Faculdade Nacional de Medicina. Como deputado constituinte

apresentou proposições contra o divórcio e sobre endemias rurais. Em outubro de 1934 foi eleito

deputado federal, permanecendo na Câmara do início da legislatura, em maio de 1935, até

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Plínio Correia de Oliveira257

. Dos demais grupos, foi clara a vitória dos políticos

regionais. Os "tenentes" obtiveram fraca votação. Dois meses depois, as entidades

de classe indicaram os representantes classistas. Entre os 254 constituintes foi

eleita uma mulher: a médica paulista Carlota Pereira de Queirós258

, que

intensificou a luta pela participação política feminina, já reconhecida no plano

normativo desde 1932259

.

Muitas mulheres haviam se candidatado à Constituinte de 1934. Mais

próxima dos tenentes, Berta Lutz260

foi candidata pelo Partido Autonomista do

Distrito Federal, representando a Liga Eleitoral Independente, ligada ao

movimento feminista. Também pelo Distrito Federal, Almerinda Farias Gama

novembro de 1937, quando, com a implantação do Estado Novo, foram dissolvidos os órgãos

legislativos do país. 257

Em 1932 participou, como membro do setor de religião, da Sociedade de Estudos Políticos

(SEP), que mais tarde daria origem à Ação Integralista Brasileira. Ao lado de Alceu Amoroso

Lima, foi um dos fundadores da Liga Eleitoral Católica, associação de âmbito nacional instituída

no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, em 1932. O objetivo da liga era mobilizar o eleitorado

católico em torno dos candidatos comprometidos com a doutrina social da Igreja, tendo em vista

as eleições de 1933 para a Assembleia Nacional Constituinte e as de 1934 para a Câmara dos

Deputados e as assembleias constituintes estaduais. Foi secretário da Liga e por ela indicado, com

dois outros membros, para compor a Chapa Única por São Paulo Unido — coligação formada por

várias forças políticas e sociais, tais como o Partido Democrático (PD), o Partido Republicano

Paulista (PRP), a Associação Comercial e a Federação dos Voluntários —, que concorreu às

eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Foi o candidato mais votado no estado e o mais

jovem integrante da Assembleia. Assumindo o mandato em novembro de 1933, participou da ação

da Liga, que teve os três pontos mínimos de seu programa aceitos por mais de 2/3 dos

constituintes e incorporados à Constituição. Eram eles o reconhecimento constitucional da

indissolubilidade do matrimônio e da validade civil do casamento religioso, a instrução religiosa

obrigatória nas escolas e a concessão de assistência religiosa oficial às forças armadas, às prisões e

aos hospitais. Com a promulgação da nova Carta (16/7/1934), teve o mandato estendido até maio

de 1935. 258

Durante a Revolução Constitucionalista, movimento de contestação à Revolução de 1930,

ocorrido em São Paulo em 1932, organizou, à frente de 700 mulheres, a assistência aos feridos.

Em maio de 1933, foi a única mulher eleita deputada à Assembleia Nacional Constituinte, na

legenda da Chapa Única por São Paulo. Na Constituinte, Carlota integrou a Comissão de Saúde e

Educação, trabalhando pela alfabetização e assistência social. Foi de sua autoria o primeiro projeto

sobre a criação de serviços sociais, bem como a emenda que viabilizou a criação da Casa do

Jornaleiro e a criação do Laboratório de Biologia Infantil.

Após a promulgação da Constituinte em 17 de julho de 1934, teve o seu mandato prorrogado até

maio de 1935. Ainda em 1934, ingressou no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Eleita

pelo Partido Constitucionalista de São Paulo, no pleito de outubro de 1934, permaneceu na

Câmara até 1937, quando foi instaurado o Estado Novo (1937-1945). Durante esse período lutou

pela redemocratização do país. 259

Reconhecida pelo Código Eleitoral de 1932 e sublinhada pela eleição de uma Deputada para a

Constituinte, a representação política feminina, de fato, remonta a 1928 quando, foi eleita, em

Lajes, no Rio Grande do Norte, a primeira prefeita da América do Sul, Alzira Soriano. 260

Candidata em 1933 pelo Partido Autonomista do Distrito Federal, representando a Liga

Eleitoral Independente, ligada ao movimento feminista, não conseguiu eleger-se, nem nas eleições

à Assembleia Constituinte de 1933, nem para a legislatura federal em 1934. Nos dois pleitos, viu

seus votos “desaparecerem” das mesas de votação. Companheiros do próprio partido Autonomista

lançaram a calúnia de que ela, sim, havia fraudado as eleições. Em fevereiro de 1935, Bertha foi

inocentada pelo Tribunal Eleitoral.

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participou como delegada sindical da eleição de representantes classistas. Carlota

Pereira de Queirós conseguiu se eleger pela Chapa Única por São Paulo.

Como deputada na Constituinte, Queirós convidou Lutz para elaborarem

em conjunto uma defesa da eleição da mulher e a reforma do ensino de acordo

com as demandas da nova sociedade urbano-industrial. Em razão dessa

cooperação, vários artigos da Constituição de 1934 beneficiaram as mulheres,

entre eles os que estabeleceram a regulamentação do trabalho feminino, a

igualdade salarial e a proibição de demissão por gravidez. Naturalmente, a

problematização do papel da mulher não contava com qualquer consenso. O grupo

católico, por exemplo, articulado em torno do Centro Dom Vital, fazia restrições à

emancipação feminina, considerando-a uma ameaça à estabilidade familiar. Esse

ponto de vista se expressaria cotidianamente no cotidiano. Nas revistas

humorísticas ilustradas, a mulher emancipada passaria a ser objeto de inúmeras

charges e caricaturas.

O principal confronto da Assembleia Nacional Constituinte, instalada em

novembro de 1933, foi entre regionalismo e centralização política. Os estados do

Norte e Nordeste defenderam o centralismo, enquanto os estados do Centro-Sul

reivindicaram maior autonomia em relação ao poder central.

No dia 16 de julho de 1934, após oito meses de discussões, foi promulgada

a nova Constituição. A vitória do princípio federalista assegurou autonomia aos

estados. Em contrapartida, ampliou-se o poder da União nos novos capítulos

referentes à ordem econômica e social. Minas, jazidas minerais e quedas d'água

foram nacionalizadas, assim como os bancos de depósito e as empresas de seguro.

No plano da política social foram aprovadas medidas que beneficiavam os

trabalhadores, como a criação da Justiça do Trabalho, o salário mínimo, a jornada

de trabalho de oito horas, férias anuais remuneradas e descanso semanal.

Apesar das conquistas, para parte da bibliografia especializada, a Carta de

1934 não realizou, senão timidamente, a sua missão. Após 43 anos de governos

excludentes ou discricionários, isto é, desde o golpe que instaurou a Primeira

República, em 1891, até o encerramento do período de exceção do Governo

Provisório, iniciado com a Revolução de 1930, a esperança era de que, através da

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constitucionalização, a República fosse democratizada. Entretanto, a Carta

Política que deveria institucionalizar a revolução, teria sido apenas "supostamente

revolucionária". Foi esta a avaliação de Oliveira Lima, o qual estendeu a sua

crítica à própria revolução, que não seria autêntica, não passando de uma

insurreição a mais, na conturbada história da Primeira República. Além de um

saldo de reformas aquém das esperanças depositadas em sua ação renovadora, a

ordem fundada em 1934 não teria conseguido estabilidade, tendo sido derrubara,

pouco mais de três anos após a promulgação da Constituição, pelo golpe que, em

1937, instaurou o Estado Novo261

.

O governo sofreu uma importante derrota com a aprovação da pluralidade

e da autonomia sindicais, em grande parte em razão do apoio recebido da Igreja,

em lugar do sindicato único por categoria profissional262

.

A unidade sindical se inscrevia nos objetivos do conjunto de medidas

destinadas, desde a criação do Ministério do Trabalho, a mudar o padrão das

relações de trabalho no país. Partia-se do pressuposto de que apenas com a

intervenção direta do poder público seria possível amortecer os conflitos entre

capital e trabalho presentes no mundo moderno. Essa intervenção e concretizou

em março de 1931, quando, pelo Decreto n° 19.770, foi estabelecida a Lei de

Sindicalização. A nova lei tinha como objetivo geral fazer com que as

organizações sindicais de empresários e trabalhadores os tornassem órgãos de

colaboração do Estado. A inspiração da medida remonta ao modelo sindical do

corporativismo.

A pluralidade sindical existente até então representava um obstáculo. Por

isto, a Lei de Sindicalização adotava o princípio da unidade sindical, em que

apenas um sindicato por categoria profissional era reconhecido pelo governo.

Como em outros órgãos governamentais, vedava-se a propaganda política e

religiosa no interior das agremiações sindicais. A sindicalização não era

obrigatória, mas a lei estabelecia que apenas as agremiações reconhecidas pelo

261

FAUSTO, Boris. História do Brasil. Op. cit. 262

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. Liberalismo e sindicato no Brasil. 3. ed. - Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1989.

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governo poderiam ser beneficiadas pela legislação social. Caberia ao Ministério

do Trabalho supervisionar a vida política e material dos sindicatos.

As lideranças católicas, empresariais e de trabalhadores reagiram

imediatamente. A Igreja temia que a ampliação do raio de ação do Estado

pudesse, na prática, inviabilizar o movimento sindical católico em expansão

naquele início dos anos 30. Além disso, tratava-se de uma ordem revolucionária

cuja feição regular ainda era incerta. Orientados pelas encíclicas papais, os

católicos supunham que a forma liberal havia se esgotado e que a missão do

governo para com a sociedade não seria possível através de um Estado laico.

Setores do empresariado também se mostraram descontentes. De um lado,

porque temerosos da força de sindicatos únicos com respaldo governamental e, de

outro, porque interessados em preservar a autonomia das suas organizações

sindicais, ainda que vissem com bons olhos o propósito apaziguador da nova

legislação. Por seu turno, as correntes operárias, interessadas em manter o

sindicalismo livre da tutela estatal, receberam a lei como uma séria ameaça à

sobrevivência da liberdade sindical. A palavra de ordem passou a ser o máximo de

resistência possível ao sindicalismo oficial.

Não obstante, o governo insistiu na implementação de seu projeto. Com o

intuito de viabilizar o novo modelo de sindicalismo, tratou de introduzir novas leis

trabalhistas e previdenciárias. Tanto na gestão de Lindolfo Collor (1931-1932), no

Ministério do Trabalho como na do seu sucessor Salgado Filho (1932-1934),

foram muitas as iniciativas governamentais no sentido de regulamentar as relações

de trabalho no país. Entre as mais importantes, pode-se destacar a nova Lei de

Férias, o novo Código de Menores; a regulamentação do trabalho feminino, e o

estabelecimento de convenções coletivas de trabalho. Esse conjunto de medidas

encontrou forte resistência de setores do empresariado, preocupados com as

limitações que os direitos dos trabalhadores imporiam ao lucro que haviam se

acostumado a extrair de suas atividades econômicas.

No mesmo sentido, foi criada a Justiça do Trabalho, encarregada de julgar

e conciliar os dissídios surgidos, individual ou coletivamente, entre empregados e

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empregadores, bem como quaisquer controvérsias surgidas no âmbito das relações

de trabalho.

De fato, a criação de uma Justiça do Trabalho propriamente dita foi obra

da Constituição de 1934263

. Não obstante, após a Revolução de 1930, medidas

efetivas já foram sendo tomadas no sentido da implantação da Justiça do

Trabalho. Em maio de 1932, foram criadas as Comissões Mistas de Conciliação,

com funções conciliatórias, seguidas pelas Juntas de Conciliação e Julgamento,

instituídas em novembro do mesmo ano. A Constituição de 1934 aperfeiçoaria o

processo, tendo estabelecido, em seu artigo 122, a criação da Justiça do Trabalho

como instituição que excedia o âmbito do Poder Judiciário264

.

A assistência social também foi estratégica para o projeto do governo. Ao

lado das Caixas de Aposentadoria e Pensões (que vinham desde a década de

1920), foram criados os Institutos de Aposentadoria e Pensões, órgãos

responsáveis pela extensão de direitos sociais a categorias nacionais de

trabalhadores. Durante a década de 1930, foram criados Institutos de

Aposentadoria e Pensões de várias categorias como industriários, comerciários,

bancários, funcionários públicos etc.

A ampliação dos direitos dos trabalhadores mediante a coordenação do

Estado foi uma estratégia bem sucedida. Foram legalizadas centenas de sindicatos

de trabalhadores tornaram-se legais nos anos de 1933 e 1934 para poder gozar dos

benefícios previstos pela nova legislação e para poder eleger deputados classistas

à Assembleia Constituinte. A luta sindical, cada vez mais, passou a orientar-se no

sentido de ver aplicadas as leis burladas pelas empresas. Nesse sentido, tornou-se

muito importante o papel das Juntas de Conciliação e Julgamento, criadas pelo

263

Os primeiros órgãos contemporâneos da Justiça do Trabalho surgiram na Europa no início do

século XIX. No Brasil, apareceram em princípios da década de 1920, através da iniciativa do então

presidente do estado de São Paulo, Washington Luís, que criou os chamados Tribunais Rurais em

1922. Em abril do ano seguinte, surgiu a primeira iniciativa de âmbito federal, quando o presidente

Artur Bernardes instituiu o Conselho Nacional do Trabalho. 264

Só viria a ser a ele integrada pela Constituição de 1946. Confirmada pelas Constituições

posteriores da história brasileira, a Justiça do Trabalho é composta pelo Tribunal Superior do

Trabalho (TST), sua instância máxima, por Tribunais Regionais do Trabalho e por Juntas de

Conciliação e Julgamento. Sua jurisdição abrange todo o território nacional, e todos os seus órgãos

possuem composição paritária, com representantes dos empregados e dos empregadores.

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governo em 1932 para dirimir conflitos trabalhistas. Esses órgãos foram a base da

Justiça do Trabalho, que seria estabelecida pela Constituição de 1934.

Na Assembleia Nacional Constituinte, o governo sofreu um grave revés

quando sua proposta de manutenção da unidade sindical foi derrotada e

substituída pelo princípio da pluralidade. A nova orientação, vista com bom olhos

pela Igreja Católica e pelo empresariado, foi expressa em uma nova Lei de

Sindicalização (Decreto n° 24.694, de julho de 1934), que garantiu maior

autonomia sindical mas manteve a exigência de reconhecimento pelo Ministério

do Trabalho.

As previsões de 1934 incluíam, além da pluralidade sindical, um capítulo

exclusivo sobre a família e a oficialização do casamento religioso – conquistas da

bancada católica. Estabeleceu-se que a primeira eleição presidencial após a

promulgação da nova Carta seria feita indiretamente, pelo voto dos membros da

Assembleia Nacional Constituinte. As futuras eleições deveriam realizar-se pelo

voto direto. No dia 17 de julho, Getúlio Vargas foi eleito com 175 votos contra 71

dados aos demais candidatos, entre os quais se incluíam Borges de Medeiros e

Góes Monteiro.

Apesar de estar em absoluta afinidade com a reflexão do campo do Direito

Constitucional na Europa e nos EUA, a Constituição de 1934 não completaria três

anos. Costuma-se atribuir sua vida curta à tentativa de estabelecer uma ordem

liberal e moderna e, ao mesmo tempo, fortalecer o Estado e seu papel diretor na

esfera econômico-social. O resultado teria desagradado a Vargas, que se teria

sentido tolhido em seu raio de ação pela nova Carta. Em seu primeiro

pronunciamento, Getúlio tornou pública sua insatisfação; em círculos privados,

chegou a afirmar que estava disposto a ser o "primeiro revisor da Constituição".

Não obstante, o primeiro gesto a comprometer o liberalismo da Constituição de

1934 viria do Congresso, em 1935, com a promulgação da Lei de Segurança

Nacional.

Os meses que se seguiram à promulgação da Constituição haviam sido

marcados pelo avanço do movimento sindical e pela radicalização política. O

novo ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães, atuou no sentido de manter a

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situação social sob controle. Haviam sido criadas agremiações novas, leais ao

governo, ao mesmo tempo em que foi sistemática a intervenção em um grande

número de sindicatos de trabalhadores. Em 1935, a aprovação pelo Congresso da

Lei de Segurança Nacional deu carta branca ao governo para combater os

subversivos, arrefecendo a intervenção nos sindicatos e comprometendo o

liberalismo de 1934.

Os intelectuais tiveram papel central ao longo da década de 1930. Após a

Revolução, o Estado lançou as bases de uma política cultural que se iniciou com a

criação do Ministério da Educação. Intelectuais das mais diversas formações e

orientações, como modernistas, positivistas, integralistas, católicos e socialistas

participaram da contiguidade entre cultura e política que caracterizou os anos 30,

ocupando centrais na burocracia do Estado. Como em outros momentos da

história brasileira, os intelectuais se apresentaram como a elite capaz de "salvar" o

país, reinterpretando o passado para captar a realidade brasileira e construir

retratos e alternativas para o Brasil.

Para compreender o papel dos intelectuais, é necessário remontar aos anos

20, quando o campo da arte e cultura era dominado pela discussão sobre a

identidade e os rumos da nação. De fato, a ideologia revolucionária que grassou

nos primeiros anos da Era Vargas revelou pontos de contato com as propostas

antiliberais desde então defendidas por intelectuais como Oliveira Viana, Azevedo

Amaral e Francisco Campos, que se tornaria o primeiro ministro da Educação.

Para esses autores, os principais responsáveis pela crise brasileira eram as

oligarquias rurais que se haviam apoderado do Estado graças às deficiências do

modelo de governo liberal-federalista introduzido pela Constituição de 1891,

incapaz de resolver os problemas nacionais. A ideia de que a experiência liberal,

não só brasileira, mas mundial, esgotara-se, condenava os instrumentos clássicos

de resolução para o país, como os partidos políticos e o Congresso.

De fato, as décadas de 1920 e 1930 foram marcadas pela crise mundial que

contribuiu para o desprestígio da democracia liberal. Associada ao capitalismo,

que prometera igualdade de oportunidades e abundância, mas trouxera

empobrecimento e desemprego, o colapso econômico do final dos anos 20

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ensejou a interpretação de que a democracia liberal, com seus partidos e lutas

políticas, era insuficiente à superação da crise. Caberia, então, ao governo central

tomar as rédeas do poder e ditar as diretrizes do desenvolvimento brasileiro. No

Brasil, tais noções eram compartilhadas pelas lideranças tenentistas, que no início

do Governo Provisório ocuparam as interventorias nos estados, estratégicas para a

administração central.

Entretanto, a política cultural de Vargas não envolveu apenas a nomeação

de intelectuais afinados com a resistência ao liberalismo. Postos de destaque e a

criação de diversos órgãos de organização e fomento atraíram para o governo

muitos outros intelectuais. Em 1930, o arquiteto Lúcio Costa foi indicado para a

direção da Escola Nacional de Belas Artes. Manuel Bandeira foi convidado, em

1931, para presidir do Salão Nacional de Belas Artes. Em 1932, o escritor José

Américo de Almeida assumiu a pasta da Viação e Obras Públicas. Gustavo

Capanema foi nomeado em 1934 ministro da Educação e Saúde Pública, e

convidou o poeta Carlos Drummond de Andrade para chefiar seu gabinete. Mário

de Andrade iria assumir, em 1935, a direção do Departamento de Cultura da

Municipalidade de São Paulo.

A ideia de que a participação dos intelectuais na vida nacional se

justificava por incluir na condução do país uma elite composta de homens

sintonizados com as novas tendências do mundo e atentos às diversas

manifestações da cultura popular foi recentemente abandonada no Brasil. Não

obstante, à época, os artistas e intelectuais que tratavam em suas obras das

questões sociais que estavam na ordem do dia e participavam do debate político-

ideológico entre a direita e a esquerda que mobilizava o mundo eram convidados

a participar da administração do governo.

Foi um período profícuo para a cultura. Nos livros publicados por uma

indústria editorial em expansão, aprofundava-se a temática da cultura negra,

indígena e caipira. Através da literatura proletária e do romance regionalista fazia-

se a crítica dos valores da sociedade patriarcal e oligárquica identificados com o

tempo passado. Interessava retratar a vida do homem comum das cidades e dos

sertões.

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Em 1933, Gilberto Freyre publicou Casa Grande e Senzala, obra que

modificava o enfoque da questão das raças formadoras do país e fazia a defesa da

colonização portuguesa, condensada na ideia da democracia racial. No mesmo

ano, Caio Prado Jr. escreveu Evolução política do Brasil, cuja orientação marxista

enfatizava a participação das camadas populares na história nacional. Em 1936,

Sérgio Buarque de Holanda publicou Raízes do Brasil, na qual se contrapunha a

Gilberto Freire ao ressaltar a necessidade de o país superar as raízes culturais

portuguesas como condição para ingressar na modernidade.

O debate intelectual e político sobre que matriz regional expressaria

melhor a nacionalidade também caracteriza a década de 1930. Além da sociedade

nordestina retratada por Gilberto Freyre, tinha-se nos textos de Cassiano Ricardo a

defesa da sociedade bandeirante como modelo para a democracia brasileira. Alceu

Amoroso Lima, por sua vez, apontava na sociedade mineira traços do espírito de

família e de religiosidade que seriam os verdadeiros valores da civilização

brasileira.

De certa forma, a Revolução de 1930 franqueou passagem à tendência de

diversificação cultural e, ao mesmo tempo, de integração política nacional, que

permitiu realizar aspirações já formuladas nos anos 20. A cultura se beneficiou

das mudanças na educação, na literatura e nos estudos brasileiros, assim como da

melhoria da qualidade do livro e do crescimento do mercado editorial.

Quando, em 17 de julho de 1934, Vargas foi indiretamente alçado, pela

Assembleia Nacional Constituinte, ao cargo de presidente da República, o período

de governo discricionário encontrou seu fim. Mas não teve início um estável

governo constitucional. Os movimentos sociais se tornaram cada vez mais

efervescentes, com greves operárias e manifestações da classe média em diversos

estados do país. Gradativamente a atividade política foi se radicalizando, o Poder

Legislativo foi abrindo mão de suas prerrogativas e o Executivo foi se tornando

cada vez mais forte. Em 1935, a Lei de Segurança Nacional iniciou o processo

que culminaria, em 10 de novembro de 1937, com o golpe do Estado Novo.

Intelectuais também foram operadores da radicalização da política no

período. Movimentos políticos radicais já existiam bem antes do termo do

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processo de constitucionalização. Ainda em outubro de 1932 foi criada a Ação

Integralista Brasileira, um movimento de inspiração ítalo-fascista, que defendia

um ideário nacionalista, antiliberal e antissemita. De fato, as décadas de 1920 e

1930 representaram um momento de expansão de movimentos autoritários na

Europa. Em 1922, Mussolini assumiu o poder na Itália e, em 1933, o nazismo foi

vitorioso na Alemanha.

A Ação Integralista Brasileira possuía seções em diversos estados do país,

congregando elementos das camadas médias urbanas como intelectuais, em sua

maioria católicos, profissionais liberais, funcionários públicos e militares. Seu

lema é conhecido, "Deus, Pátria e Família", assim como o são seus principais

ideólogos: Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale. Seus inimigos eram o

liberalismo econômico e político, o socialismo e o capitalismo financeiro

internacional, o qual localizavam em mãos judaicas. Barroso, seu ideólogo

antissemita mais famoso, é autor de Brasil, Colônia de Banqueiros e Sinagoga

Paulista, de expressão tipicamente nazista e no qual denuncia figuras da elite de

São Paulo como conspiradores judeus da “plutocracia paulista”.

Como demonstração de força política, os integralistas realizavam grandes

desfiles em que usavam uniformes que lhes valeram o apelido de "camisas-

verdes". Nas manifestações de rua, os enfrentamentos com os comunistas eram

constantes. A oposição que os integralistas faziam ao regime Vargas era difusa.

As críticas ao governo concentravam-se, sobretudo, no seu aspecto liberal.

Depois de promulgada a Constituição de 1934, foi criada, em 12 de março

de 1935, a Aliança Nacional Libertadora, uma organização inspirada na proposta

das frentes populares surgidas em diversos países da Europa com o objetivo de

combater o avanço do nazi-fascismo. A Aliança congregava atores de orientações

distintas, como comunistas, socialistas, "tenentes", liberais e católicos. Pregando a

formação de um governo popular-nacional-revolucionário, transformou-se, como

o integralismo, num grande movimento de massas. De seu programa faziam parte

a luta contra o latifúndio e o imperialismo, a defesa da reforma agrária e das

liberdades democráticas, a suspensão do pagamento da dívida externa brasileira e

o combate ao nazi-fascismo.

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A Aliança, assim como o integralismo, mantinha declarada oposição a

Vargas. Importantes "tenentes" que haviam atuado na linha de frente da

Revolução de 1930, como Miguel Costa, Herculino Cascardo, Agildo Barata,

João Cabanas, Silo Meireles e Roberto Sisson, romperam radicalmente com o

governo e tornaram-se dirigentes da Aliança. Luís Carlos Prestes, um dos

principais expoentes do tenentismo e agora dirigente comunista, foi escolhido

presidente de honra da entidade.

Como na Europa, os integralistas e os comunistas brasileiros se

enfrentaram ao longo dos anos 1930. Tendo em comum a crítica ao Estado

Liberal, a valorização do partido único e o culto à personalidade do líder,

mobilizavam sentimentos absolutamente diversos. Também entre o autoritarismo,

que ganhava força no Brasil do período, e o Integralismo havia fortes diferenças.

Este supunha que um partido mobilizaria as massas descontentes e tomaria o

Estado. O autoritarismo não apostava nos partidos, mas no Estado; não acreditava

na mobilização da sociedade, mas na clarividência de alguns homens. Os

autoritários encontravam-se no interior do Estado e tinham sua principal

expressão na cúpula das Forças Armadas. Daí já não haver mais lugar para os

tenentes, atores importantes quando do momento revolucionário, em razão do fato

de que rompiam com um princípio básico da organização estatal: a hierarquia.

Polos opostos, integralistas e aliancistas contribuíam para tornar tenso o

quadro político, enquanto o governo pressionar o Congresso a adotar medidas

autoritárias. Em abril de 1935, sob o impacto das várias greves, o Congresso

aprovou a Lei de Segurança Nacional e, apenas quatro meses após sua fundação,

em em 11 de julho de 1935, a Aliança Nacional Libertadora foi tornada ilegal.

Com o seu fechamento, a perspectiva de tomada do poder através de uma

insurreição ganhou força. Dirigentes do Partido Comunista do Brasil, com o aval

da Internacional Comunista, decidiram então promover pelas armas a derrubada

do regime Vargas.

O fracasso dos levantes comunistas desencadeou intensa reação por parte

da polícia política. Para as elites civis e militares do país, o comunismo tornou-se

inimigo público. Com o apoio de 2/3 dos parlamentares, Vargas conseguiu

aprovar uma série de medidas repressivas que iriam cercear cada vez mais o Poder

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Legislativo. Foi decretado estado de sítio em todo o território nacional por 30

dias, o qual seria prorrogado por mais 90.

Entre o final de 1935 e o início de 1936, centenas de civis e militares

foram presos em todo o país. Entre os prisioneiros estava Pedro Ernesto, prefeito

do Distrito Federal, acusado de manter ligações com membros da Aliança. A

prisão de lideranças comunistas e a apreensão de documentos em seu poder

forneceram a justificativa para a decretação, em março de 1936, do estado de

guerra, que vigoraria até meados de 1937. Conferindo ao governo poderes de

repressão quase ilimitados, a medida, aprovada pelo Congresso, diferentemente do

estado de sítio, tornava vulneráveis até mesmo os parlamentares. Dois dias após a

decretação do estado de guerra, foram presos os deputados oposicionistas Otávio

da Silveira, Domingos Velasco, João Mangabeira e Abguar Bastos, e o senador

Abel Chermont.

Em 1936 foi criada ainda a Comissão Nacional de Repressão ao

Comunismo, encarregada de investigar a participação de funcionários públicos e

outros em atos e crimes contra as instituições políticas e sociais. O atestado de

ideologia passou a ser exigido para todos os que exercessem cargos públicos e

sindicais. Instituiu-se o Tribunal de Segurança Nacional para julgar os acusados

de envolvimento com a revolta de 1935.

O padrão autoritário foi uma marca da política do país. Dificuldades

encontradas na organização das classes e na formação de associações

representativas e dos partidos políticos tornou recorrente a solução pelo alto. Não

só para conservadores, como liberais e para a esquerda, o autoritarismo era uma

atração constante. Para a última, liberalismo era algo muito próximo das

oligarquias, pelo que a democracia formal prometia muito pouco para o futuro. Os

liberais, por seu turno, temiam reformas sociais e aceitavam a interrupção do jogo

democrático sempre que se viam ameaçados por forças subversivas. Não se quer

com isto afirmar que fossem todos autoritários. Como ideologia, o autoritarismo

se difere das adesões contingentes a ele. Seus ideólogos instrumentalizaram a

concepção de modernização conservadora, através da qual o país desarticulado

carecia do Estado como organizador da nação e promotor do desenvolvimento

econômico e do bem-estar geral. Através dele, teriam fim os conflitos sociais e

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partidários e o excesso de liberdade de expressão, os quais eram associados ao

enfraquecimento do Brasil.

Entretanto, é digno de nota que não só de autoritarismo se fez a inscrição

do Brasil nos eventos que marcaram as décadas de 1920 e 1930 na Europa. Em

primeiro lugar, porque convencionou-se afirmar, acertadamente, que a

Constituição de 1934 teve como modelo a da República alemã do momento que

vai do fim da Primeira Guerra Mundial à ascensão do nazismo, a qual ficou

conhecida como Constituição de Weimar. Em segundo lugar, em razão do

argumento que o presente trabalho pretende sublinhar, de que o debate sobre a

representação profissional inscreve o Brasil no movimento maior de atualização

teórico e prática do liberalismo. Não obstante, o perigo de uma nova revolta

comunista foi justificativa suficiente para o governo pôr termo ao que sobrara da

ordem de 1934 e, em 10 de novembro de 1937, dar o golpe do Estado Novo.

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Capítulo 5. Novos atores e imposição de uma reformulação liberal para a representação

O tema da ausência dos atores na vida pública brasileira foi muito

explorado durante os anos 1930. Não se trata de uma novidade da década. Já na

Primeira República, sucessivas medidas de deslocamento dos cidadãos

caminharam ao lado da caracterização da primeira experiência republicana

brasileira como um largo episódio de ausência do povo. É verdade que, além das

fraudes, as eleições foram sempre marcadas pela baixa taxa de comparecimento.

Entretanto, a rigor, praticamente não existem dados sobre o número de eleitores

inscritos e de quantos compareceram para votar. Um dos poucos resultados

eleitorais com números para todo o país foi o das eleições de 1912 para a Câmara

dos Deputados, que teve taxa de comparecimento de 2,6% da população. No

pleito para presidência, em 1930, o comparecimento foi de 5%. Entretanto, não

espanta que fosse baixo o grau de participação. No Brasil de então, o voto era

proibido para mulheres e analfabetos, os quais correspondiam, respectivamente, a

aproximadamente 50% e 60% da população. Some-se a isto o fato de que nem o

alistamento nem o voto eram obrigatórios e o que se tem são eleições

propositadamente esvaziadas.

Na presente seção, pretende-se analisar quais são e que composição

apresentam os grupos de atores políticos com mais expressão entre a Revolução

de 1930 e o início do processo constituinte, em 1933. Esta análise será pautada

pela problematização do já referido argumento da ausência dos atores. Objetiva-se

propor que, embora deliberada e reiteradamente deslocados, o povo, identificado

nos novos atores surgidos do mundo do trabalho, foi presente e pressionou a

necessidade de que seus interesses fossem incorporados à agenda política pós

revolucionária. E, finalmente, que essa incorporação era necessariamente liberal.

Seja por razões de fidelidade com as propostas da Aliança Liberal, seja pelo temor

da proximidade das alternativas ao liberalismo, a saber, o socialismo e o fascismo.

Este esforço atende à necessidade de localizar no debate nacional a utilidade

liberal da representação profissional que será discutida, pela primeira vez, na

Subcomissão do Itamaraty.

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Nos empreendimentos de reconstituição da vida republicana brasileira, é

costume identificar a experiência republicana como um conjunto de

acontecimentos marcado pela ideia de ausência: ausência de povo, de ânimo

reativo oficial compatível com as glórias e com a duração do Império que a

precedeu, de um programa consistente e de unidade por parte dos vitoriosos. Não

obstante, o estado de “bestialização” em que se encontrava o povo quando do

golpe de estado de 15 de novembro de 1889, identificado por Aristides Lobo, e

reeditado por José Murilo de Carvalho, pode ter tido menos que ver com a

disposição da população do que com efeitos gerados sobre ela pelas decisões

excludentes do Império, as quais o regime republicano não tardaria em

atualizar265

.

Os percalços da República que se inaugurava em 1889 seriam

incrementados pelo fato de que, no dia 16 de novembro daquele ano, o Brasil

amanheceu sem Poder Moderador. O sistema político do país ficou desprovido da

“chave” de sua orientação institucional. Segundo a tradição do Império, as

atribuições do Poder Moderador foram fundamentais para estabelecer tanto os

limites quando a dinâmica do corpo político. Coube a ele garantir a contenção do

espírito de facção e guardar a neutralidade e a conservação, então expressões de

“necessidades fundamentais” e de “direitos adquiridos, interesses criados,

tradições e glórias”266

. O Poder Moderador, como engenharia institucional,

caracterizava-se por seu uma doutrina simbólica da representação267

e uma forma

de geração e constituição de atores políticos legítimos.

As avaliações sobre o modelo político e institucional do Império

coincidem na enumeração de suas faltas. São elas: a indistinção programática e

social dos partidos, ausência de enraizamento do sistema político na sociedade,

eleições fraudulentas e inexistência de sistema representativo. No entanto, seria

equivocado sustentar que o Império dispensou, em sua organização política, o

265

Oito anos antes do golpe, em 1881, a mais radical das reformas eleitorais do Império, a Lei

Saraiva, deslocara da representação política centenas de milhares de eleitores. Além disso, por

razões endógenas às formas sucessórias do Império, a possibilidade de um terceiro reinado

implicaria coroar um estrangeiro. Acostumado à distância da vida pública, à falta de fervor cívico

capaz de alentar a Monarquia não correspondeu qualquer adesão ao novo regime. LESSA, Renato.

A invenção republicana. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015. p. 90. 266

LESSA, Renato. A invenção republicana. Op. cit. p. 92. 267

PITKIN, Hanna. The Concept of Representation. Berkeley: University of California Press,

1972. Apud. LESSA, Renato. A invenção republicana. Op. cit. p. 93.

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princípio da representação. Acolheu-o, entretanto, de maneira distinta do modelo

clássico e liberal de representação descritiva, pelo qual os poderes políticos de

uma nação ficam subordinados à comunidade política mais ampla. O Império

revela a opção pela ideia de representação simbólica, presente na concepção que

faz do príncipe o criador do Estado, e desse o instituidor da sociedade. Desta

perspectiva, a formação de um poder central compacto aparece como condição

necessária à criação de instituições capazes de definir a extensão e as regras de

interação da política e o alcance da incorporação do povo. Subscritas essas teses, e

adotadas as instituições que lhes correspondem, falar em ausência de povo faz

menos sentido do que em fracasso do artifício que reclamou competência para

cria-lo, ou no seu êxito em inibir sua criação espontânea.

O golpe que pôs a República cancelou o legado do Império, implicando o

abandono de soluções tradicionais a questões cruciais pertinentes ao sistema

político. Ao acordar sem Poder Moderador, o Brasil ficou sem qualquer resposta

institucional a respeito de si mesmo. Não se sabia quem fazia parte da

comunidade política, como se dariam as relações entre política e povo, entre o

poder central e as províncias, como se organizariam os partidos, ou como se

definiriam as identidades políticas. Sem o operador que dava todas essas

respostas, não se sabia quem deveria mandar.

Fechado o ciclo militar, com o término do governo Floriano Peixoto, em

1894, a experiência republicana não havia gerado respostas às questões

institucionais deixadas em aberto com a queda do Império. Permaneciam incertas

variáveis cruciais para a sobrevivência do regime. Não eram todavia conhecidos

os critérios para geração de atores políticos coletivos, as relações entre poder

central e poderes regionais, e os procedimentos de interação entre Executivo e

Legislativo. A incerteza com relação a esses pontos é natural em momentos de

transição. Mas, em 1894, o país já vinha de três anos de ordem constitucional

restabelecida, donde se conclui que a incerteza não havia sido aplacada por ela.

Ao contrário, a incerteza talvez tenha sido ampliada pela Constituição de

1891. Além de não resolver os pontos em aberto, criou uma institucionalidade

toda nova, sem correspondência às formas então tradicionais de condução da vida

política. De fato, a definição de mecanismos constitucionais não implica

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obrigatoriamente a existência de fórmulas políticas pacíficas, as quais dependem

menos do direito constitucional do que de arranjos informais. É possível dizer que

uma forma de ultranormatividade caracteriza 1891. Presidencialismo, autonomia

dos estados e alargamento das prerrogativas do Legislativo foram inovações que

opuseram a nova ordem à tradição imperial do Monarca Constitucional

centralizador e dotado de Poder Moderador. Mas a acomodação desses aspectos,

não sendo matéria constitucional, dependeu do desempenho prático e pragmático

dos atores políticos e de sua capacidade de gerar um pacto não escrito.

Na tentativa de criar novas instituições, os inventores da Constituição de

1891 foram extremamente zelosos em imaginar as partes componentes do novo

sistema político em sua total independência. O valor autonomia – presente nas

dilatadas atribuições do Legislativo, na virtual irresponsabilidade do Executivo e

na intocabilidade legal dos estados, falou mais alto do que o valor integração. Ao

que parece, o somatório geral das partes do sistema político naquela chave

ficcional, deveria ser consequência automática de sua máxima diferenciação. Mas

a experiência provou o contrário.

Ao final do governo Prudente de Moraes, com a predominância dos

fatores de instabilidade, provou-se que a maximização simultânea das atribuições

do Executivo, do Legislativo e dos poderes estaduais não tendia ao perfeito

equilíbrio institucional, mas a conflitos de soberania e incerteza. Emergiu com

nitidez o fato de que a institucionalização da República não poderia comportar a

existência de um parlamento com substância liberal, formado a partir de escolhas

individuais dos cidadãos e segmentado segundo diferenciações político-

partidárias. Por este motivo, a existência de um Executivo irresponsável em

termos políticos, para cuja definição não concorre o Legislativo, e a precedência

do fenômeno da distribuição natural do poder, fragmentando a comunidade

política nas unidades regionais dos estados, serão, no governo de Campos Sales,

os principais referenciais para definir o lugar e os limites da soberania do

Congresso.

A nova institucionalização evitou o fortalecimento das instituições

representativas clássicas. A estabilidade deveria derivar de um arranjo entre o

governo nacional e os chefes estaduais, com vistas a definir o que se pode

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designar como a parte não constitucional do pacto político. Reconhecer a

morfologia espontânea do poder e introduzir algum desígnio político, em razão do

suposto de que a dinâmica espontânea, embora gere os atores, o faz somente em

estado bruto.

A institucionalização republicana pela mão de Campos Sales reedita a

prescrição de Bernard de Mandeville, traduzida no idioma das oligarquias. No

lugar da fórmula vícios privados, virtudes públicas, as bases doutrinarias do novo

regime estabelecem a disjuntiva particularismo estadual, unidade nacional. E,

como Mandeville, não cabe na operacionalização dessas bases a ação da

providência. A tradução do vício em virtude depende das artes do bom governo.

A forma peculiar de entender a distribuição do poder se revela na maneira

segundo a qual entendeu o pleito mesmo que lhe alçou à Presidência. Campos

Sales foi o Presidente menos votado em toda a história republicana, tendo

recebido das urnas apenas 174.578 votos, 116.305 a menos que seu antecessor e

141.670 a menos que seu sucessor, Rodrigues Alves268

. No entanto, como a

República não se fazia com votos e eleições, o cálculo político de Campos Sales

privilegiou o que se pode entender como a verdadeira expressão do resultado

eleitoral, sua dimensão qualitativa269

. E, qualitativamente, o que o voto em

Campos Sales significou foi, segundo ele, acentuar o espírito republicano no

governo da República. Com isto, pretendeu associar sua vitória à inauguração de

uma política nacional de tolerância e concórdia, na qual os partidos seriam

necessários na medida em que soubessem exercer uma ação prudente, tolerante e

disciplinada, pregando a aversão aos partidos através da crítica ao espírito de

facção.

Com Campos Sales, a República encontrou sua rotina. Como toda ordem

emergente, essa também tratou de negar o passado. O singular, nesse caso, foi

que, do ponto de vista da construção institucional, as regras definidas pelo pacto

oligárquico não tiveram como contraponto o regime que a República substituiu. A

referência negativa para a nova ordem não foi o antigo regime, mas a infância do

próprio regime republicano. Salvar a República de seus primeiros passos implicou

268

CARONE, Edgard. Apud. LESSA, Renato. A invenção republicana. Op. cit. p. 169 269

LESSA, Renato. A invenção republicana. Op. cit. p. 169.

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tornar a nova ordem, senão semelhante, ao menos respeitosa com relação ao

passado monárquico.

Campos Sales, como nenhum outro ator político de seus tempo, percebia

que o abandono da forma monárquica não implicava o desaparecimento dos

problemas institucionais que aquele regime, a seu modo, soube resolver. Nesse

sentido, a engenharia política do pacto oligárquico e a definição do governo como

instrumento de administração podem ser enquadradas como sendo a busca por um

equivalente funcional do Poder Moderador. Trata-se de uma suposição verificável

pela comparação entre os atributos do Poder Moderador e os problemas que

buscava encaminhar com os alvor da nova regulação pretendida a partir do pacto

oligárquico.

A engenharia política do Poder Moderador dotou o sistema político

imperial do controle sobre quatro aspectos básicos de qualquer ordenamento

político e institucional, a saber, dinâmica legislativa (atribuição exclusiva do PM

em dissolver a Câmara e nomear os senadores), eleições (legislação excludente e

poder dado ao governo para realiza-las), administrações regionais (nomeação de

presidentes de província, que preparavam as eleições) e processo de geração de

atores políticos legítimos (ação exercida sobre os partidos pelo Poder Moderador,

o único eleitor relevante do modelo).

Os primeiros anos da República não lograram respostas duradouras a

respeitos daquelas questões. A política dos governadores, por seu turno, constituiu

na reposta republicana aos problemas deixados em aberto com a queda do

Império. A mudança do regime não alterara os valores básicos do mundo público,

daí ser possível ao analista tratar o novo modelo desde os antigos problemas270

.

No modelo de Campos Sales, não cabe falar em relação entre política e

povo em escala nacional. Cada estado correspondia a um “grupo de exploradores

privilegiados”, sem que o governo federal se preocupasse com os métodos

utilizados para a perpetuação das facções aquinhoadas no poder, as relações entre

povo e política saem da esfera nacional e realizam-se no plano das políticas

estaduais.

270

LESSA, Renato. A invenção republicana. Op. cit. p. 188.

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O confinamento da relação entre povo e política à esfera estadual fez com

que o governo federal ficasse desobrigado de tratar do problema da incorporação

política e da participação como questões políticas nacionais. O arranjo era

adequado à definição dada por Campos Sales a respeitos das metas do governo,

preocupado exclusivamente em exercer a administração, Nesse sentido, uma das

principais virtualidades da dinâmica política baseada em disputas eleitorais

periódicas, a ação e o surgimento de oposições, dica confinada exclusivamente ao

desempenho de organizações políticas subnacionais. O efeito conseguido foi o da

maximização dos custos da oposição , produzido a partir da ação de diversos

operadores: fraudes e violências durante o processo eleitoral, degola de

parlamentares oposicionistas e riscos de intervenção ou de tratamento não

preferencial, no caso de divergência entre uma situação política estadual e o

governo federal.

A pulverização da política e a plena autonomia dada a suas parcelas para

tratar dos eleitorados locais contribuiu de forma decisiva para reduzir a

competitividade das políticas estaduais. Pretendia-se com a política dos

governadores obter, também, baixa competitividade na definição dos que devem

ocupar o governo federal. A percepção da comunidade política nacional como

formada pela reunião de estados configura um espectro de sujeitos políticos com

recursos desiguais. Aos grandes estados, com maior eleitorado e presença

parlamentar, cabem iniciativas para fazer das sucessões presidenciais rituais de

transmissão do poder, sem apelo à incorporação do povo e mesmo de parcela

maior dos integrantes da política. Algum conflito foi sempre inevitável. Mas seu

tratamento foi sempre conduzido por meios de canais desprovidos de caráter

público.

Os procedimentos aplicados por Campos Sales para configurar a parte não

constitucional do pacto oligárquico acabaram por rotinizar a política e a estruturar

a dinâmica dos conflitos durante a Primeira República. Os termos práticos do

arranjo diziam respeitos à constituição da ordem política republicana, visando

dotar a esfera publica de maior capacidade de governo, através do congelamento

da competição política, via reconhecimento das oligarquias regionais como

proprietários das parcelas estaduais do povo e como únicos atores políticos e

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sociais relevantes. A proposta de Campos Sales definia, ao mesmo tempo, os

critérios de formação e reconhecimento dos sujeitos políticos relevantes bem

como as bases da ação coletiva legítima, entendida como ação organizada das

oligarquias.

O “Modelo Campos Sales” pode ser decomposto em duas dimensões

básicas: a substantiva e a procedimental. A primeira diz respeito a valores,

definidores das artes do bom governo. A dimensão dos procedimentos é realista,

pois implica o reconhecimento do estado do mundo político tal como ele se

apresenta: oligopólio das oligarquias sobre o povo nacional. Os termos do arranjo

podem ser formulados pela soma entre a finalidade de dotar a esfera executiva de

um mínimo de governabilidade e o mínimo de governabilidade – que implicou

congelar a incorporação do povo e atribuir autonomia plena às elites estaduais,

estabelecendo nexos específicos entre povo e política e envolver a esfera pública

em um padrão de política administrativa, para o qual a competição política é

inessencial e nefasta.

O Modelo Campos Sales pode ser entendido como uma reedição seletiva

do Modelo Visconde de Uruguai. Na reedição está ausente a preocupação com a

hipercentralização, mas não a ênfase na necessidade de um padrão de decisões

administrativas. Ao pretender confinar a política aos estados, Campos Sales

atribuiu ao governo federal o monopólio da gestão do interesse geral, que deveria

ser administrado de forma graciosa, isto é, distante do mundo conflitivo e faccioso

da política.

Portanto, quando da consolidação da primeira experiência republicana

brasileira, a substituição da tradição imperial do Poder Moderador pelas formas

descentralizadas introduzidas da Carta de 1891, coube ao governo produzir criar o

funcionamento da nova ordem. O que fez através da gestão administrativa da

política, para a qual a presença do povo nas arenas políticas não só é dispensável,

como é indesejável. Desta feita, não há falar-se exclusivamente em “ausência de

povo”, ou de um povo “bestializado”, senão de atores reiteradamente deslocados

dos canais através dos quais eles poderiam se fazer presentes.

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No mesmo sentido, Maria Alice Rezende de Carvalho afirma que a ordem

liberal institucionalizada em 1891 foi consolidada quando se lhe atribuiu

estabilidade sem centralização271

. Isto é, quando Campos Sales idealizou e

realizou a Política dos Governadores, ou dos Estados como preferia, em

substituição às concepções centralizadoras dos militares, cujo deslocamento

impusera às elites politicas a necessidade de conceberem formas novas de garantir

a estabilidade da nova ordem.

A autora afirma que, a par de outras razões da instabilidade política do

período, como a reação monárquica, as relações entre civis e militares e as

manifestações do plebeísmo na Capital Federal, nenhuma delas foi tão

ameaçadora quanto o liberalismo da constituição de 91 em meio a uma realidade

oligárquica. De fato, a superposição de uma normatividade liberal a uma

formação histórico-social “de outro calibre”, não era um fenômeno novo. A

institucionalidade liberal do Império também exercera papel de invólucro ideal a

recobrir sistemas autônomos de poder local.

Entretanto, naquele momento, as relações entre a institucionalidade liberal

e as formas tradicionais de mando eram coordenadas por um eficiente operador, o

Poder Moderador. A ele cabia “combinar centralização política e preservação, no

plano local, das ordens privadas, responsáveis, em seus respectivos redutos, pelo

controle social e político dos seres subalternos do mundo agrário”. Isso significa

que o Estado Imperial centralizado exibia um padrão consciente de verticalização

institucional. Sua característica básica, a centralização, atualizava a histórica

fórmula que combinava expropriação política do patriarcado rural e preservação

de suas condições de controle sobre vastos contingentes de homens livres e

pobres. Preservado o mundo privado, a construção do mundo público podia restar

pacificamente a cabo do Estado.

Os principais problemas concernentes à construção do mundo público, sob

o Império, viam-se resolvidos. Em que pesem as elites, inibiam-se os efeitos

deletérios da fragmentação, principalmente os riscos de que o Brasil mergulhasse

271

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “A crise e a refundação republicana em 1930”. In.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de (org). República no Catete. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro,

Museu da República, 2001.

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no caos da luta entre facções. A política era monopólio do Estado e a ele competia

definir e eleger os atores que teriam acesso ao governo. Em que pese a massa de

homens livres e pobres excluídos do sistema político, seu controle era transferido

para os domínios regionais.

Proclamada a República, observava-se a continuidade dos sistemas

autônomos de poder local, revelados pela opção federalista do republicanismo

vitorioso. Mas faltava um operador eficiente que realizasse a operação de que

garantir a autonomia das partes preservando a integridade do todo, isto é,

combinar os interesses dos mandões locais ao funcionamento regular do sistema

político. A rotina institucional do Império fora deslocada sem que, afinal, os

republicanos lhe opusessem uma modalidade alternativa de organização política e

administrativa consistente.

O sistema político posto pela Carta de 91, imbuído do legado

revolucionário norte-americano, baseava-se no federalismo, no presidencialismo e

no sistema representativo democrático. Isso instalava uma considerável margem

de incerteza no interior da nova ordem. A centralidade conferida aos estados

acirrou a luta entre facções no âmbito local. Isto tornava incerta a composição do

Parlamento e imprevisível seu padrão de interação com o Executivo. A

intervenção do governo central nas bases regionais quando o conflito nos estados

tornava-se demasiado agudo tencionava todo o sistema, pois seus poderes legais

eram, para esse fim, discutíveis, ampliando ainda mais o grau de incerteza na

organização política dos estados e na relação entre eles e a União.

A Constituição de 91 mostrou-se incapaz de solucionar os problemas

causados pela ruptura com a institucionalidade do Império que, entretanto, não

removeu o fundamento de uma das principais instituições imperiais. Na medida

em que foram mantidos intocados os domínios do poder privado, baseado na

propriedade da terra e em vínculos patrimoniais, a supressão do Poder Moderador,

enquanto agência saneadora da distância entre a ordem liberal e as formas

tradicionais de mando não produziu transformação, mas vazio institucional.

Por volta dos anos 1920, Oliveira Vianna identificara que havia se posto

no horizonte do país uma crise de legitimidade das instituições republicanas.

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Oliveira Vianna observara o desajuste entre a empiria brasileira e o “exotismo

político” da República liberal pela lente do tema da singularidade brasileira. À

época, tal tema encontrava-se popularizado pela disjuntiva país real/país legal e,

em Oliveira Vianna, desembocava numa defesa da autonomia estatal face aos

interesses de indivíduos e grupos, concebido o Estado como agência civilizadora.

Em vez de viabilizador da convivência da tradição com o novo, o Estado passara a

operar a correção dos particularismos locais responsáveis pela distância entre o

legal e o real.

Desde 1891, as lideranças liberais brasileiras teriam aderido à cultura

anglo-saxã, sem enfrentar os temas da revolução agrária, da extinção do

monopólio da terra e da elevação do homem do campo à condição de cidadão

livre e portador de direitos. Entrincheirados nos centros urbanos e cegos às

questões estratégicas para a superação dos condicionantes ibéricos da nossa

formação social, os liberais brasileiros tinham a miragem de uma sociedade coesa

e ativa, onde só existiam indivíduo e Estado.

Novas institucionalidades vão sendo propostas sem que seja removido o

fundamento do Poder Moderador (domínios do poder privado, baseado na

propriedade da terra e em vínculos patrimoniais). Isso tem que ser removido? Não

basta não ser garantido? E, nesse sentido, o problema da República não foi

justamente encontrar uma forma nova de sobrevivência pacífica das formas

tradicionais de mando?

Segundo Oliveira Vianna, o doutrinarismo exótico dos legisladores de

1891 cancelou a centralidade que o Império conferira ao Estado na organização da

vida nacional. Com isto, deram curso a um modelo de República incapaz de

estabelecer a primazia do público sobre o privado, do universal sobre o particular,

da legalidade sobre a força. O resultado foi o estímulo ao individualismo

privatista, note-se que a despeito das intenções do legislador de 91, afirma. Não

houve produção da coesão social, nem a “educação” do interesse mercantil, o qual

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emergia moderno, mas bruto, adicionando a associabilidade brasileira tradicional

os novos conflitos típicos da modernidade capitalista272

.

Oliveira Vianna esteve atento a duas ordens de problemas. A primeira

continha um elemento de correção e se refere à ideia de que o desenho

institucional da Constituição de 91 e a realidade do patrimonialismo agrário, da

fragmentação social e da inexistência do cidadão, personagem-chave das

democracias representativas ameaçaram fazer do Brasil a cópia extemporânea da

anarquia caudilhesca de que o Império acusara os nossos vizinhos continentais. A

essa específica ordem de problemas atribuiria sua condenação à institucionalidade

liberal republicana.

A segunda ordem de problemas enfrentada por Oliveira Vianna é

especialmente pertinente ao argumento de ausência que se pretende problematizar.

Em sua crítica à institucionalidade de 1891, Oliveira Vianna reconhece que contra

a prática patrimonial da ordem republicana, os interesses sociais alijados pelo

sistema oligárquico poderiam sempre acionar a armação racional-legal da

Constituição. Isto era especialmente problemático para um sociólogo obcecado

pela ordem, pela neutralização do conflito e consciente de que, a exemplo dos

países centrais, da modernização industrial que começava a se esboçar no país

sociedade poderia advir desagregação social, desordem e conflito273

.

De fato, interesses estaduais traídos pelo sistema oligárquico seriam os

principais operadores da ruptura institucional de 1930. Mas a heterogênea

composição do movimento que culminaria da Revolução só foi possível em razão

de a diversidade de interesses ter podido se reunir em torno de um objetivo e um

inimigo comuns, a saber, dar vida à verdade da República e combater a ordem que

a falseava. Não obstante, a possibilidade desse movimento se deve ao surgimento

de atores novos que, se não foram responsáveis pela Revolução de 1930, foram

determinantes para as escolhas que dariam forma a ordem do pós 1930.

272

WERNECK, “O Estado Novo e a Ampliação autoritária da República”. In: CARVALHO,

Maria Alice Rezende de (org). República no Catete. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, Museu da

República, 2001, p. 112. 273

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “A crise e a refundação republicana em 1930”. Op. cit.

p. 94.

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201

Para Werneck Vianna, a República que se tornara vitoriosa em 1889, foi

um movimento de elites orientado a liberar os interesses emergentes nos

principais estados da Federação, particularmente São Paulo, da centralização do

Império274

. Esta era identificada, desde os anos 1860, como obstáculo à livre

iniciativa e ao desenvolvimento de uma saudável vida mercantil. Encontrou no

ideário liberal democrático sua inscrição ideológica, embora tenha mobilizado a

seu favor uma ampla aliança com a hierarquia do Exército e coma jovem

oficialidade de adesão positivista.

Tratava-se, pois, de uma República sem vocação da incorporação da

sociedade que emergia com a expansão da vida mercantil que ela colaborou para

ampliar. Foi liberal em economia e excludente em política e no social, porque

criada por homens de frágeis convicções republicanas, sem jacobinos e,

sobretudo, sem povo275

. Entretanto, foi também um processo liberatório da

atividade política e do alargamento de suas práticas a setores da sociedade que, até

então, viviam inteiramente à margem dela.

A República não deu logo a conhecer o que havia de virtualmente

dinâmico na sua natureza. A Constituição de 91 representa, desde uma perspectiva

político-institucional, uma ruptura com o Império. Inspirada no legislador

republicano da Revolução Americana, sua clara marcação liberal fixou o Brasil

formalmente como uma democracia representativa, com governantes escolhidos

livremente pelos governados e onde o Poder Legislativo exerceria a função

soberana na criação do direito e nas decisões políticas mais relevantes.

Persistia, entretanto, entre o desenho institucional e a realidade uma

grande distância. Logo se imporia a Política dos Governadores, o coronelismo, a

permanência dos traços patrimoniais que caracterizavam a formação social

brasileira, trazendo de volta a supremacia do Executivo sobre o Legislativo e a

prevalência da ordem patrimonial sobre a racional-legal; duas marcas da

Monarquia Constitucional. A rigor, a hegemonia paulista, expressão do interesse

moderno do capitalismo brasileiro, para poder se exercer, fora obrigada a

274

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. “O Estado Novo e a “ampliação” autoritária da República”.

Op. cit. 275

Conforme o já apontado registro de José Murilo de Carvalho, a República teria sido evento ao

qual o povo assistiu “bestializado”.

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estabelecer alianças com o que havia de mais retardatário, em termos políticos e

econômicos, nos outros estados. Não por acaso, já na década de 1910, dois dos

mais importantes publicistas brasileiros do período insistiriam na denúncia do que

seria o “idealismo da Constituição”, expresso na distância entre o país real e o

legal.

É dessa distância que vai derivar o fermento revolucionário do processo

republicano. Contra a “republica dos carcomidos” a instalação da pureza de

princípios republicanos; contra os currais eleitorais do coronelismo, a proteção e a

lisura do processo eleitoral; contra a justiça de apadrinhados, uma justiça livre.

Em uma linha, contra a prática patrimonial, os descontentes podiam brandir a

armação racional-legal, que, pelo texto constitucional de 1891, a todos obrigava.

Dar nova vida à República significava dar vida a seu princípio fundador e

toma-lo “contra o que vinha sendo a perversão de sua prática”. Esse movimento

somente se torna afirmativo quando, a partir dos anos 1910 o cenário republicano

se enriquece com a presença de novos personagens: o movimento sindical e

operário, os empresário, a nova classe media das profissões liberais e da

administração publica e a intelligentsia.

Na passagem dos anos 1910 para os anos 1920, as grandes greves

operarias iniciam uma eclosão de movimentos sociais, culturais e militares, a qual

atinge seu ápice com a rebelião tenentista de 1922, mais tarde radicalizada pela

Coluna Prestes, pela Semana de Arte Moderna, do mesmo ano e pelo nascimento

do Centro Dom Vital, organização da intelectualidade católica criada com a

finalidade de renova a ação apostólica da Igreja na nova sociedade civil brasileira.

São anos que apresentam não só grande fermentação cultural, social e política,

como um movimento da intelligentsia de “ida ao brasil e a seu povo”. Como os

sanitaristas adentraram os sertões, os modernistas e os tenentes foram em busca da

matéria prima de ondem pudessem extraís uma estética, um imaginação e um

pensamento singular, mediante o qual fosse possível reinventar o país e a

República.

A República já não era mais marcada pela distância somente entre a Carta

constitucional e a realidade política e social do Brasil, mas também pelo lapso

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entre as práticas retardatárias da Repúblicas e as expectativas da sociedade.

Instaurou-se uma crise que se viu agravada pela iniciativa do então presidente da

República, o paulista Washington Luiz, de romper com a prática do “café-com-

leite”, indicando outro paulista, Júlio Preste como sucessor, no lugar de Antonio

Carlos de Andrada, então governador de Minas Gerais. Tendo sido deslocado, este

estado atrai o Rio Grande do Sul para uma composição de oposição, oferecendo a

Getúlio Vargas, então governador daquele estado, a cabeça da chapa

oposicionista. Formou-se assim a Aliança Liberal, cujo programa, ao reconhecer a

crise do sistema oligárquico, cedia expressão às demandas dos setores que haviam

emergido com o avanço do processo urbano-industrial – as camadas médias das

cidades e os trabalhadores industriais.

A República voltava a seus fundamentos, empenhada no alargamento do

seu pacto e na democratização do liberalismo. Derrotada nas urnas, a Aliança

Liberal denuncia como fraudulento o processo eleitoral. E, em meio aos efeitos da

crise mundial de 1929 sobre os negócios do café e às repercussões do assassinato

de João Pessoa, a Aliança se converteu no instrumento político das forças que

desencadeariam a Revolução de 1930.

Desta feita, na raiz dos episódios que marcaram aquele anos de 1930, se

encontram o ideário liberal e a democratização da República, no sentido do

reconhecimento do peso social e político dos setores urbano-industriais, ainda que

se preservasse, dada a natureza das elites que dirigiam o movimento, o exclusivo

agrário. No entanto, a Revolução logo se afastará dos princípios que a animaram,

alinhando-se a concepções corporativas em voga em alguns países da Europa,

como a Itália fascista e também influentes na hierarquia da Igreja Católica desde a

encíclica Rerum Novarum, de 1891, confirmada, em 1931, pela Quadragesimo

Anno.

Revolução de 1930 refunda a república com características contrárias a sua

inspiração original. Impõe o predomínio da União sobre a federação, das

corporações sobre os indivíduos, e a precedência do Estado sobre a sociedade

civil. Para tanto, foi influente o ideário positivista de muitas elites políticas,

especialmente as originárias do Rio Grande do Sul, como era o caso do dirigente

revolucionário vitorioso, chefe do Governo Provisório e futuro presidente da

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República Getúlio Vargas. O mesmo é possível afirmar das elites provenientes da

juventude militar, congregada no Clube 3 de Outubro. São elas que, nos primeiros

anos da nova ordem, protagonizarão seu processo de institucionalização, em

particular na deposição das oligarquias estaduais das suas posições de mando. São

elas também que encaminham o impulso da Revolução para a compreensão do

papel do Estado na condução da modernização, em franco dissidio com o

liberalismo de mercado que marcara a república Velha. E são elas que, por fim,

associam os objetivos da industrialização com os ideais de soberania nacional e de

solução da questão social, manifestando-se, neste caso, favoráveis à legislação

protetora do trabalho, da qual deveriam ser excluídos os trabalhadores do campo.

O impulso para o moderno, para a indústria, para a regulação do mercado

de trabalho e para a elaboração da legislação social provinha de setores

antiliberais orientados por uma cultura estatista e refratários a mudanças na

estrutura agrária do país. O moderno não vinha com a vocação de erradicação do

atraso, mas como uma solução de compromisso com ele, o que denuncia a

natureza conservadora do processo de modernização desencadeado pela

Revolução de 1930.

A revolução que se precipitara sob a bandeira da Aliança Liberal, se

institucionalizará sob a forma corporativa, denunciando o liberalismo como

ideologia anacrônica e pretendendo favorecer uma cultura de colaboração e de

harmonia entre as classes sociais, sob a condução Estado entendido como o

representante geral da nação276

. A República do pós 30 se ampliaria

autoritariamente. Entretanto, ao contrário do argumento de ausência de povo, é a

história do movimento operário a melhor evidência de que a identificação da

potencialidade política dos novos atores que surgem do desenvolvimento da

atividade produtiva no país, e que não foram incorporados pela República Velha,

foi a responsável pela ampliação autoritária da nova República277

.

276

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. “O Estado Novo e a “ampliação” autoritária da República”.

Op. cit. 277

Ibidem.

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205

Para tratar da história do movimento operário, convém apreciá-lo “como

dado apartado do sindical”278

, na medida em que interessa à finalidade do presente

trabalho sublinhar a potencialidade dos atores do mundo do trabalho para agir fora

dos marcos institucionais criados para pautar as suas ações. Assim, tem-se que até

1889, a ação operária não reúne condições para intervir na fixação da

regulamentação do trabalho. Entre 1889 e 1891, mantêm-se o mesmo nível baixo

de ação e de organização do movimento operário, embora o Estado já passe a

intervir, mediante uma perspectiva modernizadora, na disciplina do mercado de

trabalho. O intervalo que vai de 1891 a 1919 se caracteriza pela legislação dos

sindicatos, a qual data de 1907, e pela ortodoxia liberal do marco institucional que

impedirá, como atentatória à liberdade do exercício profissional, qualquer

restrição ao movimento “natural” do capital como fator de produção. Ao mesmo

tempo, é neste momento que se legitimam as atividades de resistência do

movimento operário com a admissão do direito de associação. Essa previsão

confronta diretamente o marco institucional não intervencionista. Tal contradição

fixa no período o convívio entre uma ordem legal que recusa como ilegítima a

atividade material de resistência que é essência do movimento operário279

.

Entre 1919 e 1930, a homologação do Tratado de Versailles pelo

parlamento brasileiro abre um período em que o governo se obriga a regular as

condições de trabalho. A legislação produzida a partir de 1923, mas, sobretudo, a

emenda constitucional de 1926, porão fim ao estatuto liberal da “liberdade

profissional” da Carta de 1891. Neste momento, intensifica-se a ação

reivindicatória do movimento operário, o qual se insere na vida política através da

criação do Partido Comunista em 1922280

.

Entre 1931 e 1934, o Estado inicia outro tipo de prática intervencionista,

atuando no mercado de trabalho em nome de uma pauta abertamente não-liberal e

restringindo a vida associativa operária a fim de neutralizar a capacidade destes

atores de pressionar tanto o mercado quanto o reconhecimento de seus direitos

pelo Estado. Não obstante, trata-se de um intervalo em que a institucionalidade da

278

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. Liberalismo e sindicato no Brasil. 3. ed. - Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1989. p. 37. 279

WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. Liberalismo e sindicato no Brasil. 3. ed. - Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1989. p. 38. 280

Ibidem.

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nova República está em disputa, assim como está em aberto a forma através da

qual será tratada a existência do movimento operário e o reconhecimento de seu

poder de resistência.

O liberalismo ambivalente da Constituição de 1934 fixou a autonomia e a

pluralidade sindicais, atribuindo aos sindicatos a liberdade de atuar sobre o

mercado, embora sem que estivesse verdadeiramente livre do controle do

Ministério do trabalho. No mesmo sentido, fixou-se a forma tradicional e liberal

para a representação política, ao mesmo tempo em que se previu, sem

regulamentação, a representação das associações profissionais. Nesta última frase,

as palavras operativas são sem regulamentação. Ao não dizer expressamente de

que maneira se daria a representação profissional, a Constituição de 1934 não

fixou sua finalidade, a saber, a de assegurar poder deliberativo às entidades

profissionais no Parlamento, aproximando-as desta instituição liberal para, a um

só tempo, viabilizar uma ordem liberal blindada da “ameaça comunista” e das

ideologias fascistas então em voga.

Assim, o processo liberatório que, tendo sido inaugurado pela República,

esteve em disputa após a Revolução de 1930, encontrou-se entre a ampliação da

presença do povo no Parlamento e sua incorporação nos canais corporativos

abertos pelo Estado centralizado. Os atores que reclamavam para si a posição de

liberais, porque supuseram que a representarão profissional incrementaria a

possibilidade de presentificar o projeto de poder de Vargas no Parlamento,

votariam contrariamente à representação profissional quando da Subcomissão do

Itamaraty. Talvez porque, historicamente, as instituições representativas

tradicionais jamais tivessem corrido o risco de acolher os interesses do povo, pelo

que os interesses das elites econômicas permaneceriam preservados. Talvez

porque não tivessem se dado conta de essa era uma realidade insustentável face à

pressão que os novos atores já eram capazes de exercer. Em todo caso, perderam a

oportunidade de fixar constitucionalmente a síntese entre a representação política

liberal e possibilidade de acolher tais pressões num ambiente relativamente

controlado através da representação profissional, antes que tal fosse feito pelo

governo central e desde o fundamento ideológico autoritário que lhe dava

sustentação.

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207

O que se pretende apontar, portanto, é que se perdeu a oportunidade de

ampliar a República segundo instituições que correspondem ao empreendimento

de atualização do liberalismo que estava em discussão nas primeiras décadas do

século XX, franqueando passagem à sua ampliação autoritária. Portanto, no

período de qua trata este estudo, os novos atores surgidos do mundo do trabalho

encontravam-se organizados num ambiente em que a Revolução Russa era

historicamente muito próxima, em que a vida política brasileira contava com um

Partido Comunista e em que doutrinas fascistas ganhavam fôlego. Além disso,

como se viu, estava em disputa uma nova ordem, disputa esta que fora franqueada

por um movimento que reuniu atores de diferentes orientações ideológicas e

inscrições sociais sob bandeiras liberais. Ao mesmo tempo, o sufrágio universal

previsto pelo Código de 1932 poderia, por um lado, franquear excessiva passagem

às agendas daqueles novos atores – como ocorrera na França, tal como exposto do

Capítulo 3 deste estudo – ou neutralizá-las, como ocorrera na primeira experiência

republicana de representação política brasileira, a qual se verá detalhadamente a

seguir.

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Capítulo 6. Neutralização dos novos atores através da representação política tradicional no Brasil das primeiras décadas do século XX

Como se viu anteriormente, durante a Primeira República, “a

representação política não se fazia como votos e eleições”281

. A crítica ao

falseamento das instituições operada no período, cuja formalidade liberal é

conhecida, foi a dimensão mais explorada pela Aliança Liberal, em 1930. Foi

também o principal operador de homogeneização dos discursos que compuseram

sua variada formação. Dois documentos procuraram condensar e formalizar o que

os atores da Aliança definiram como ideário do movimento. O primeiro, e mais

extenso, escrito por Lindolfo Collor, foi o manifesto apresentado à convenção

aliancista em setembro de 1929. Uma síntese desse texto foi apresentada no

segundo, a plataforma lida pelo então candidato Getúlio Vargas, na Esplanada do

Castelo, Distrito Federal, em 20 de janeiro de 1930. A plataforma política da

candidatura de Vargas apresenta, como os “problemas atuais” que a Aliança

pretendia resolver, questões políticas de natureza representativa282

.

Malogradas as eleições, a moralização do sistema representativo foi

erguida como um dos máximos ideais da revolução vitoriosa em 3 de outubro de

1930. A imoralidade, que contaminara a representação até o momento, tinha que

ver com problemas decorrentes do falseamento das instituições liberais da

Constituição de 1891, não superadas pelas diversas tentativas de solução via

legislação eleitoral durante a Primeira República.

Entre 1889 e 1930, foi profusa a produção legislativa sobre matéria

eleitoral. Como qualquer legislação de um regime novo, os empreendimentos

legislativos da Primeira República procuraram mostrar a intenção de realizar a

representação com mais sucesso do que a do regime anterior. De fato, entre os

primeiros gestos do governo provisório instaurado após o golpe que derrubou o

Império, estão a adoção do voto direito e a supressão do “censo alto”. A Lei

Saraiva, última legislação imperial sobre a qualificação eleitoral, instaurara o

critério de renda e fora a mais radical das reformas eleitorais do período, tendo

deslocado da representação política quase um milhão de eleitores. Através do

281

LESSA, Renato. A Invenção Republicana. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015. 282

Idem. p. 277.

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209

decreto no 6, de 19 de novembro de 1889, o governo provisório republicano aboliu

o “censo alto”. Assim, apenas quatro dias após proclamada a República,

extinguiu-se a exigência de renda para ser eleitor ou candidato. Mas a nova ordem

não tardaria em recuar. No mesmo ato, os analfabetos foram proibidos de votar:

“consideram-se eleitores, para as câmaras gerais, provinciais e municipais, todos

os cidadãos brasileiros, no gozo dos seus direitos civis e políticos, que souberem

ler e escrever”. Tal restrição só seria suspensa cem anos depois.

O decreto no 6, composto de três artigos, se prestou apenas a isto:

extinguir a exigência do censo alto e impor a das letras283

. Cerca de um ano

depois, o Congresso Constituinte de 1890 seria escolhido por eleitores mediante

estas exigências. E a constituição que dele resultou, em 1891, confirmou o direito

de voto para os homens maiores de 21 anos e a exclusão dos analfabetos. Entre

suas provisões constavam também a não obrigatoriedade de alistamento e voto, os

principais postos de poder do país passaram a ser preenchidos por intermédio de

eleições, o presidente e o vice-presidente eram escolhidos em pleitos

independentes e eleitos por maioria absoluta, com mandatos de quatro anos sem

possibilidade de reeleição. Cada estado elegia, por maioria simples, três senadores

para mandatos de quatro anos. A cada três anos, 1/3 do Senado era renovado. A

Câmara dos Deputados era eleita para um mandato de três anos. Ambas as

eleições, para Senado e Câmara, aconteciam no mesmo dia. Cada estado tinha

autonomia para organizar o processo eleitoral de escolha de governadores de

estado e das assembleias legislativas.

Como toda legislação eleitoral que se pretendesse moderna, os textos de

lei produzidos ao longo da Primeira República procuraram aprimorar três pontos

basilares para a representação tradicional: a qualificação dos eleitores e

candidatos e, dentro dela, o alistamento; o procedimento de votação e, dentro

dele, o sigilo do sufrágio; e o sistema eleitoral. Contando-se com a Constituição

283

Há registros de que o decreto tenha feito muito mais, como reduzir para 21 anos a idade

mínima para ter direito de voto, exceto para os homens casados, oficiais militares, bacharéis

formados, doutores e clérigos, e preservar o voto do cidadão já alistado pela Lei Saraiva, incluindo

ex oficio mesmo os analfabetos. Isto não se verifica, entretanto, no texto do decreto de 1889.

Apenas a redução da maioridade consta da Constituição que seria promulgada dois anos depois,

em seu art 70.

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de 1891, foram produzidos, no período, 7 leis com vistas a modernizar a

representação284

.

Uma das principais legislações a tratar da matéria, o Decreto no 200-A, de

8 de fevereiro de 1890, confiou a qualificação a comissões distritais, compostas

do juiz de paz mais votado, do subdelegado da paróquia e de um cidadão alistável,

nomeado pelo presidente da câmara municipal. As listas definitivas de eleitores

eram organizadas por comissões municipais, integradas pelo juiz municipal do

termo, pelo presidente da câmara e pelo delegado de polícia. Os recursos que

tivessem lugar em razão de eventuais exclusões deveriam ser dirigidos ao juiz de

direito da comarca.

Em 26 de janeiro de 1892, foi publicada a primeira lei eleitoral da

República, a Lei 35, que estabeleceu o procedimento para as eleições federais.

Instituíram-se o voto limitado e o voto distrital de três deputados por distrito.

Estabeleceram-se, pela primeira vez, as condições de elegibilidade para o cargo de

Presidente, quais sejam: ser brasileiro nato com mais de 35 anos de idade e estar

na posse dos direitos políticos. A Lei 35 introduziu novas regras para o

alistamento. Cada município, através de comissões de cinco eleitores escolhidos

pelos membros dos governos municipais (Câmara, Intendência ou Conselho),

passaram a ser incumbidas de alistar os eleitores. Cada comissão era responsável

pelo alistamento de uma seção eleitoral do município. Ao contrário da legislação

anterior, a Lei Saraiva, que responsabilizava o Judiciário pelo alistamento, a nova

lei franqueou a politização do processo de qualificação. As facções majoritárias na

política local passaram a controlar o alistamento, o que abriu o processo para

fraudes e manipulações com vistas à inclusão de correligionários e a exclusão de

adversários. Para as eleições federais, os eleitores alistados recebiam um título

eleitoral. Para outros cargos, o cadastramento dos eleitores era de

responsabilidade dos estados municípios.

A Lei no 1.269, de 15 de novembro de 1904, chamada Lei Rosa e Silva,

reformou a legislação eleitoral, revogando toda a anterior. Mudou a composição

284

Decreto 200-A, de 8 de fevereiro de 1890; Regulamento Alvim, de 23 de junho de 1890;

Constituição de 24 de fevereiro de 1891; Lei 35, de 26 de janeiro de 1892; Lei 426, de 7 de

dezembro de 1896; Lei Rosa e Silva, de 15 de novembro de 1904; Lei no 3.139, de 2 de agosto de

1916.

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da comissão de alistamento, que passou a ser composta pelo juiz de direito, dois

dos maiores contribuintes de imposto predial, dois dos maiores contribuintes de

imposto sobre a propriedade rural e três cidadãos eleitos pelo governo municipal.

A lei condicionou o cadastro do eleitor à comprovação de que o cidadão sabia ler

e escrever. Isto se realizava pelo preenchimento, em livro especial, e perante a

comissão, de nome, estado civil, filiação, idade, profissão e residência do

potencial eleitor. Não obstante, manteve o voto limitado e o distrital – agora com

cinco deputados por distrito –, o a precariedade do sigilo285

do voto e deixou

inalterada a influência da política local sobre o procedimento. de introduzir o voto

cumulativo.

Somente em 1916286

, vinte e sete anos após substituída a Lei Saraiva, o

Judiciário voltou a ser o responsável exclusivo pela qualificação dos eleitores nas

eleições federais. A documentação necessária ao alistamento ficou mais exigente,

pois deveria ter firma reconhecida, e compunha-se de: o cidadão deveria oferecer

comprovação de idade, capacidade de assegurar subsistência, residência por mais

de dois meses no município e de que sabia ler e escrever. Apesar de alterar a

competência para o alistamento e a qualidade dos documentos necessários, a lei

de 1916 não contornou as fraudes existentes no processo de qualificação, tendo

falhado em contribuir para a superação do cenário de adulteração da representação

na Primeira República.

Durante as quatro décadas da Primeira República, o procedimento de

votação praticamente não foi alterado. O decreto no 511, de 23 de junho de 1890,

foi o primeiro a reger o processo eleitoral. Conhecido como Regulamento Alvim,

em razão do nome do ministro que lhe referendou, dispôs sobre a composição e

presidência da mesa em cada distrito, sobre a solução dada às dúvidas e incidentes

que tivessem lugar durante o pleito, sobre os limites de quaisquer arguições por

parte dos eleitores, sobre a qualidade das maiorias e das listas e sobre a

competência e o procedimento para a apuração dos votos. Assim, foi decretado

que a mesa eleitoral, em cada distrito, compunha-se de cinco membros. Para todos

os distritos, o presidente da câmara de vereadores designava os membros das

mesas, compostas de presidente, dois vereadores e dois eleitores. No distrito da

285

Viabilizada pela legislação de 1896, tratada a seguir. 286

Lei no 3.139, de 2 de agosto de 1916

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sede 287

do município, além de designar os quatro mesários, o presidente da

câmara presidia a mesa. Antes de sua composição, as dúvidas e incidentes eram

resolvidos pelo presidente da mesa e, depois de composta, pela maioria dos votos

de seus componentes. Os eleitores da seção só poderiam suscitar ou discutir

quaisquer questões se a mesa o consentisse.

A eleição era feita por maioria relativa, em lista completa. A mesa era a

responsável por apurar os votos, lavrar a respectiva ata e queimar imediatamente

as cédulas. Desta forma, a apuração final se dava através das cópias das atas, pelas

câmaras municipais das capitais dos estados e do Distrito Federal. Para concorrer,

não se exigia registro prévio dos candidatos no pleito, ou que fossem vinculados a

um partido.

A forma do Regimento Alvim foi a obedecida nas eleições para o

Congresso Constituinte de 1890, que pôs a Constituição de 1891. Esta manteve o

desígnio republicano de ampliação limitada do sufrágio. Eram eleitores todos os

cidadãos maiores de 21 anos que se alistassem na forma da lei. Mantiveram-se

excluídos, portanto, as mulheres, os mendigos, os analfabetos, os praças de pré e

os religiosos sujeitos a voto de obediência que importasse renúncia da liberdade

individual. Quanto à competência legislativa, a Constituição de 1891 limitou a

União a regular as condições e o processo da eleição para cargos federais,

destinando aos estados a faculdade de legislar sobre as eleições estaduais e

municipais288

.

Após a Constituição, a primeira lei eleitoral a apresentar alguma diferença

com relação ao Regimento Alvim foi a lei federal no 35, de 26 de janeiro de 1892,

que instituiu o sistema de lista incompleta em distritos de três deputados e propôs

uma forma nova de alistamento, mas manteve intocada a forma de apuração dos

votos. A etapa da qualificação se operacionalizava através de uma assembleia,

composta dos vereadores e seus imediatos em votos, em igual número, incumbia

dividir os distritos em seções e eleger os cinco membros efetivos e os suplentes

das comissões secionais. A estas competia fazer o alistamento. A instância

recursal para questões relativas à qualificação era uma comissão municipal,

287

A sede de um município corresponde à sua área urbana. 288

Constituição de 1891, art. 34, no 22.

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constituída do presidente do governo municipal e dos presidentes das comissões

secionais. Da comissão municipal, dava-se recurso à junta eleitoral, composta, em

cada estado, do juiz federal, do seu substituto e do procurador secional da

República. A apuração era a mesma adotada nos pleitos estaduais e municipais:

continuou nas mãos das mesas eleitorais. Estas se organizavam pela mesma forma

que as comissões secionais de alistamento. A apuração final era feita no

município-sede do distrito eleitoral por uma comissão composta dos cinco

vereadores mais votados e dos cidadãos que se seguiam em votos ao vereador

menos votado. A comissão de apuração final era presidida pelo presidente do

governo municipal.

O sigilo do sufrágio era precário. Sobretudo após a publicação da Lei no

426, de 7 de dezembro de 1896, fora introduzida a figura do voto a descoberto.

Sem formalmente eliminar o voto secreto, a lei previa um dispositivo pelo qual o

eleitor recebia uma segunda via do voto devidamente certificada pela mesa

atestando em quem o eleitor tinha votado289

. Trata-se da alteração que

instrumentalizou a legalidade da estratégia que ficou conhecida como voto de

cabresto, já franqueava práticas políticas de controle e gestão dos resultados

eleitorais.

A sala em que tinha lugar a votação era dividida, menos para preservar a

privacidade do eleitor ao votar, do que para que a atividade da mesa eleitoral fosse

resguardada. O cidadão apresentava o título de eleitor, assinava o livro de

presença e depositava a cédula de papel fechada na urna. O papel utilizado não era

padronizado. Frequentemente, os jornais publicavam cédulas dos candidatos, que

podiam ser recortadas pelos eleitores. Também era comum a distribuição de

cédulas pelos cabos eleitorais. Por este motivo, a legislação impôs, a partir de

1916, a exigência de que a cédula fosse colocada em um invólucro fechado, que

não podia ter nenhuma identificação.

289

Idem: “Art. 8o Será lícito a qualquer eleitor votar por voto descoberto, não podendo a Mesa

recusar-se a aceitá-lo.

Parágrafo único. O voto descoberto será dado, apresentando o eleitor duas cédulas, que assinará

perante a Mesa, uma das quais será depositada na urna e a outra lhe será restituída depois de

datada e rubricada pela Mesa e pelos fiscais.”

http://www.tre-pr.jus.br/arquivos/tse-legislacao-historica-eleitoral-brasil-republica

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A par de numerosas alterações parciais, somente com a publicação da Lei

no 1.269, de 15 de novembro de 1904, também conhecida por Lei Rosa e Silva, o

sistema da lei no 35 foi substituído. Estendeu-se o procedimento de alistamento

adotado na lei no 35 às eleições estaduais e municipais,

A par de numerosas alterações parciais, somente com a publicação da Lei

no 1.269, de 15 de novembro de 1904, também conhecida por Lei Rosa e Silva, o

sistema da lei no 35 foi substituído. Aumentou-se para cinco o número de

deputados de cada distrito e manteve-se a lista incompleta, a qual foi associada o

voto cumulativo. A apuração manteve-se a cargo das mesas, mas a apuração final

passou para os presidentes das câmaras municipais do distrito eleitoral, sob a

presidência do substituto do juiz federal, ou de seus suplentes.

A lei no 1.269 foi substituída pela legislação de 1916, que teria vigência

até o fim da Primeira República. Trata-se da reforma que levou o nome do

senador Bueno de Paiva e foi composta de duas leis. A primeira, no 3.139, de 2 de

agosto daquele ano, reconheceu a competência dos estados para regularem o

alistamento estadual e municipal, anulou o alistamento anterior e confiou a

qualificação para as eleições federais exclusivamente às autoridades judiciarias. A

segunda lei, no 3.208, de 29 de dezembro do mesmo ano, manteve o sistema de

votação: distritos de cinco deputados, lista incompleta e voto cumulativo. A

apuração já não era feita nas sedes dos distritos, mas nas capitais, por uma junta

apuradora composta do juiz federal, do seu substituto e do representante do

ministério público junto ao tribunal local de segunda instância. As mesas

eleitorais mantiveram a incumbência de apurar os votos, mas sua organização

recebeu alguma atenção da lei no 3.208.

O sistema eleitoral adotado ao longo de toda a Primeira República foi a

representação majoritária. Verificam-se, apenas, algumas variações. Na primeira

eleição republicana, em 15 de novembro de 1890, em que se escolheram os

representantes responsáveis pela elaboração da nova Constituição, o sistema

empregado foi o mesmo da primeira eleição do Império. O eleitor depositava na

urna uma lista com tantos nomes quantos fossem as cadeiras do estado na

Câmara. Terminada a votação, os votos eram imediatamente contados pelas mesas

eleitorais, o resultado era registrado em ata e as cédulas eram queimadas. Os

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resultados dessa primeira apuração eram enviados às câmaras municipais das

capitais para que fossem apurados, 30 dias após as eleições, através das atas

produzidas pelas mesas. Estas eram presididas pelo presidente da Câmara

Municipal, que indicava cinco componentes. Ao final do procedimento, os nomes

mais votados no estado eram eleitos.

Após a promulgação da Constituição de 1891, um novo sistema eleitoral

foi adotado para as eleições da Câmara dos Deputados, em 1892. Os estados

foram divididos em distritos eleitorais, cada um deles elegendo três deputados.

Cada eleitor votava em 2/3 dos candidatos do distrito. Finda a votação, a mesa

contava os votos, registrava o resultado, queimava as cédulas e enviava as atas

para a apuração final. Esse sistema foi o utilizado na eleição para deputados em

quatro legislaturas: 1894-96; 1897-99; 1900-02; 1903-05.

Em 1904, o sistema eleitoral sofreria a última alteração até o final da

Primeira República. Os distritos passaram a eleger cinco representantes e o eleitor

podia votar em quatro nomes. Podia, inclusive, em razão da figura do “voto

cumulativo”, votar quatro vezes no mesmo candidato. O objetivo de tal medida,

segundo o senador Rosa e Silva, principal defensor da mudança no Congresso, era

assegurar a representação das minorias. Depois de terminada a votação, cada mesa

eleitoral contava os votos e enviava os resultados para o município-sede do

distrito, para que fosse feita a apuração final. A partir de 1916, a apuração final

seria feita na capital de cada estado. Os quatro nomes mais votados eram eleitos

deputados. Este foi o sistema mais duradouro, tendo eleito representantes para

nove legislaturas: 1906-08; 1909-11, 1912-14; 195-17; 1918-20;1921-23; 1924-

26; 1927-29; 1930.

A República tornou eletivos os principais postos de poder. Também foi

produzido, no período, detalhada legislação para regular a qualificação, o sistema

eleitoral, o processo de votação, a apuração e o reconhecimento dos eleitos no

período. Apesar do empreendimento legislativo com vistas a modernizar a

representação, a Primeira República fracassou na finalidade de por termo ao

problema das fraudes eleitorais que viriam a caracterizá-la.

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Como as eleições não foram nunca limpas, raramente foram competitivas,

servindo menos para expressar preferências dos eleitores, do que para legitimar,

pelo verniz da representação, o controle do governo pelas elites políticas

estaduais. As fraudes, em todas as fases do procedimento eleitoral,

comprometeram a representação nas quatro décadas da Primeira República

brasileira. Duas “falsificações” 290

dominaram as eleições no período: o bico de

pena e a degola, ou depuração. Uma eleição feita a bico de pena era aquela em

que o resultado era produzido pela mesa eleitoral no momento de registro da

contagem dos votos nas atas através das quais se faria a apuração final. Como as

mesas eleitorais tinham função de junta apuradora, fazia-se de tudo: inventavam-

se nomes, ressuscitavam-se os mortos, faziam-se comparecer os ausentes. Na

feitura das atas, a pena dos mesários orientava o pleito.

A degola tinha para si uma instituição inteira: a Comissão Verificadora de

Poderes. Tratava-se de uma comissão da Câmara dos Deputados responsável por

organizar uma lista de deputados presumivelmente legítimos para a legislatura

seguinte. O controle realizado por tal comissão, composta de deputados

governistas, impedia que candidatos eleitos pela oposição tivessem seus diplomas

reconhecidos291

. Era, portanto, obra das câmaras legislativas, com incidência

sobre o reconhecimento de poderes292

.

Ambos foram expedientes largamente utilizados na Primeira República.

Resumindo as várias fases da defraudação do voto na vigência da Constituição de

1891, exprimiu o Assis Brasil em discurso proferido na segunda Constituinte

Republicana:

290

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: (o município e o regime representativo no

Brasil). 4. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. 291

Existe uma anedota conhecida e muito citada sobre Pinheiro Machado que, ao responder a um

correligionário de cuja fidelidade desconfiava, disse: “Menino, tu não serás reconhecido, por três

razões. A terceira é que não foste eleito”. Ao falar do futuro negando-lhe como passado, Pinheiro

Machado ilustraria o fato de que o número de votos depositados na urnas era de pouca significação

para a realização da etapa do reconhecimento do aspirante a representante. 292

Igualmente conhecida é a sentença de Assis Brasil, um dos mais incisivos críticos da

experiência eleitoral do período: “Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor; ninguém tem

certeza de votar, se por ventura for alistado; ninguém tem certeza de que contem o voto, se por

ventura votou; ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado

na apuração da apuração, no chamado terceiro escrutínio que é arbitrária e descaradamente

exercido pelo déspota substantivo, ou pelos déspotas adjetivos, conforme o caso for da

representação nacional ou das locais.”

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“No regime que botamos abaixo com a Revolução, ninguém tinha certeza de se

fazer qualificar, como a de votar. Votando, ninguém tinha certeza de que ;lhe

fosse contado o voto. Uma vez contado o voto, ninguém tinha a segurança de que

seu eleito havia de ser reconhecido através de uma apuração feita dentro desta

Casa e por ordem, muitas vezes, superior”.293

Nenhum dos empreendimentos legislativos que visaram modernizar a

representação impediram a Primeira República de “voltar ao princípio”294

, isto é,

de manter excludente – ou não representativo – o sistema político brasileiro. Por

este motivo, em 1930, a Aliança Liberal compôs a plataforma de seu candidato,

Getúlio Vargas, de uma defesa do voto secreto, do combate às fraudes e da

representação proporcional. Após o fracasso das eleições, a moralização do nosso

sistema representativo fortaleceu-se como um dos máximos ideais da revolução

vitoriosa em 3 de outubro de 1930.

Rapidamente, o aperfeiçoamento da representação passaria de uma das

principais diretrizes do programa da Aliança Liberal, a uma dívida do Governo

Provisório. A promulgação de um código eleitoral seria exigida do governo

revolucionário como indício de que cumpriria sua promessa. Ainda em 1930,

Vargas, então chefe do Governo Provisório, designou uma subcomissão para

propor alterações ao processo eleitoral. De fato, após um longo período de

discussão, o trabalho da comissão resultou no Código Eleitoral de 1932,

conhecido pelas importantes modificações que introduziu na vida representativa

brasileira. Aprovado pelo decreto no 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, o código

instituiu o voto feminino, baixou para 18 anos o limite de idade para ser eleitor e

deu segurança efetiva ao sigilo do sufrágio.

O Brasil não havia ainda experimentado processos políticos regulados por

uma legislação sistematizada em um código. Sabemos que as primeiras

disposições eleitorais no Brasil datam da Constituição de 1824, e que a Primeira

República foi profícua na produção de instrumentos de regulamentação das

eleições. Porém, um código eleitoral propriamente dito, como conjunto de normas

de direito que rege o processo de eleição para cargos políticos, que reunisse todas

293

Anais, II. p. 507. Na mesma oportunidade, resumiu Carlos Reis: “Tínhamos – disse o Deputado

Carlos Reis – três frauds: na eleição, na apuraação e no reconhecimento”. Anais, II. pág. 231. 294

“A República, partindo do voto direito e suprimindo o censo alto da Lei Saraiva, em tudo mais,

a bem dizer, voltou ao princípio.” LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: (o município

e o regime representativo no Brasil). Op. cit. p. 251.

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as disposições legislativas referentes ao processo eleitoral, só foi instituído no

Brasil pelo Decreto nº 21.076.

Elaborado por uma comissão nomeada pelo então ministro da Justiça

Maurício Cardoso, o Código Eleitoral de 1932 regulava o alistamento dos

eleitores e trazia, além das inovações já mencionadas, a criação da Justiça

Eleitoral, retirando do Poder Legislativo o controle sobre seu próprio processo de

renovação. Com a criação da Justiça Eleitoral, procurava-se eliminar os

mecanismos do bico de pena e da degola, pelos quais votos eram produzidos ou

suprimidos, e candidatos oposicionistas eleitos para as casas legislativas do país

podiam ter seu reconhecimento negado pelos membros da legislatura anterior.

O alistamento, no Código de 1932, foi previsto de duas maneiras: por

iniciativa do cidadão, como na Primeira República, ou automaticamente, isto é,

ex-officio. Neste último caso, os chefes das diversas repartições públicas e

empresas eram obrigados a inscrever seus subordinados. Uma vez alistado, o

cidadão recebia um título, que passou a conter uma foto do eleitor. Pela primeira

vez, nas eleições para o Congresso, foram previstas sanções para o brasileiro não

inscrito. Se alistável, o cidadão deveria apresentar seu título de eleitor para

trabalhar como funcionário público e comprovar sua identidade. Essas normas não

valiam para as mulheres ou para os homens maiores de 60 anos.

A principal inovação do Código Eleitoral de 1932 consistiu em confiar

todas as fases do processo eleitoral à Justiça Eleitoral. Devolver o procedimento

eleitoral ao Judiciário tinha o significado de tornar neutros os atos de conversão

da vontade política em cadeiras legiferantes ou de governo. Acreditava-se que

despolitizar o processo eleitoral era necessário para evitar que interesses e poder

políticos falseassem a representação. Por este motivo, é comum que se identifique

como a medida mais importante adotada pelo Código de 1932 para tornar as

eleições mais limpas a criação da Justiça Eleitoral. Tratou-se não só devolver ao

Judiciário a competência para administrar e controlar o processo eleitoral, como

de criar um órgão específico para fazê-lo. A Justiça Eleitoral passou, então, a ser

responsável pelo alistamento, pela apuração e pelo reconhecimento e proclamação

dos eleitos. Nos municípios, que foram divididos em seções de até 400 eleitores,

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quando terminada a votação, as urnas eram lacradas e enviadas para o Tribunal

Regional Eleitoral, onde só então os votos eram apurados.

A Justiça Eleitoral, além do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais,

tinha, em cada circunscrição judiciaria, como juiz de primeira instância, o juiz

local vitalício, ou o escolhido pelo Tribunal Regional, e juntas apuradoras nos

lugares designados, constituídas cada uma de três juízes locais vitalícios, sob a

presidência daquele que tivesse jurisdição no município da sede. Cabia à Justiça

Eleitoral, além da atribuição de expedir instruções complementares da legislação

eleitoral, do trabalho de alistamento, apuração e reconhecimento e ainda a divisão

de municípios em seções eleitorais, a distribuição dos eleitores pelas várias seções

e a formação das mesas receptoras. Estas, uma para cada seção, eram compostas

de um presidente, um primeiro e um segundo suplentes, todos nomeados pelo juiz

eleitoral, e de dois secretários, escolhidos pelo presidente da mesa. A lei

discriminava as incompatibilidades e preferencias para o exercício da função de

mesário, e permitia que os trabalhos das mesas fossem inspecionados pelos fiscais

e delegados dos partidos. Assim, as mesas foram privadas da atribuição de apurar

os votos, o que era fonte permanente da produção de atas falsas. A contagem das

cédulas passou a ser feita pelos Tribunais Regionais e, nas eleições municipais,

pelas juntas apuradoras, compostas de juízes vitalícios. Tendo-se confiado a

proclamação dos eleitos e a expedição dos diplomas aos Tribunais Regionais e ao

Tribunal Superior, ficaram abolidos os reconhecimentos das assembleias

legislativas e as fraudes que deles decorriam.

Como sistema de representação295

, o código adotou, para as eleições para

deputados, um sistema misto, bastante complexo, que combinava aspectos da

representação proporcional com a majoritária. Até 1920, a proposta de adoção do

sistema proporcional como medida de garantia da representação de minorias era

defendida por um número restrito de políticos e intelectuais. O principal deles foi

Assis Brasil, que apresentou um projeto na Câmara dos Deputados, em 1893,

sugerindo a representação proporcional. Não por acaso, Assis Brasil foi membro

295

É a forma que o autor escolheu para se referir ao que hoje chamamos de sistema eleitoral, cujas

variações obedecem a alterações que comprometem ou favorecem a capacidade do sistema de

transformar, de maneira a garantir a representatividade, a vontade política em cadeiras legiferantes

ou de governo. Idem. p. 251-257.

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da comissão encarregada de elaborar o Código de 1932 e principal formulador do

sistema eleitoral que viria a ser adotado.

Tratava-se de um sistema misto, na medida em que continha “dois turnos

simultâneos” e de naturezas distintas: o primeiro era proporcional, através dos

quocientes eleitoral e partidário, e o segundo era majoritário. Os nomes dos

candidatos deveriam ser impressos ou datilografados na cédula. Era possível votar

em tantos nomes quantas fossem as cadeiras do estado na Câmara,

independentemente do partido do candidato. Mas o voto não era mais cumulativo.

Na apuração, privilegiava-se o primeiro nome, o que ficou conhecido como

primeiro turno. Calculava-se o quociente eleitoral através da razão entre o número

de eleitores que comparecessem ao pleito e o número de cadeiras a serem

ocupadas. Cada partido elegia tantas cadeiras quantas vezes atingisse o quociente

eleitoral. Os candidatos mais votados de cada partido eram eleitos. Os votos nos

nomes que não encabeçavam a lista de cada cédula eram somados e os mais

votados ficavam com as cadeiras não ocupadas depois da distribuição pelo

quociente. Essa segunda etapa da distribuição de cadeiras, que subscrevia o tipo

majoritário de representação, era conhecida como segundo turno.

Foi esse o sistema utilizado nas eleições para os Deputados constituintes,

em 1933, e para as eleições para a Câmara dos Deputados, em 1934. Entretanto,

na eleição de 3 de maio de 1933, em que se escolheu a representação popular da

segunda Constituinte republicana, a representação proporcional, que também

figurou296

, obedeceu a outras normas297

. Não obstante, os princípios básicos da

reforma de 1932 foram incorporados ao texto da Constituição de 1934.

Pela primeira vez, os candidatos tiveram que se registrar antes do pleito.

Os partidos, ou grupos com pelo menos cem eleitores, tinham que registrar no

Tribunal Regional Eleitoral, até cinco dias antes das eleições, uma lista dos seus

candidatos, os quais ficavam vinculados a uma legenda. Era permitido o registro

de candidatos avulsos. O número de competidores somado à complexidade do

sistema fez com que os resultados das eleições para a Constituinte demorassem a

ser proclamados.

296

“promiscuamente”, segundo o autor. Idem. p. 257. 297

Decretos nos

22.653, de 20 de abril de 1933 e 22.696, de 11 de maio de 1933.

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221

As eleições para a constituinte de 1933 guardaram uma peculiaridade

importante para o escopo do presente trabalho. Além dos 214 representantes

eleitos pelo voto popular, 40 nomes foram eleitos pelas associações profissionais,

distribuídos da seguinte forma: 17 dos empregadores e 18 dos empregados, três

profissionais liberais e dois funcionários públicos. O sistema de escolha dos

representantes classistas era indireto. Primeiro, os associados dos sindicatos e

associações legalmente organizadas escolhiam, por escrutínio secreto e pelo

sistema de maioria absoluta, os seus delegados. Estes reuniam-se na capital da

República para escolher os representantes que participariam da Constituinte. Após

promulgada, a Constituição de 1934 confirmou as duas formas de eleição para a

Câmara dos Deputados, no mesmo ano, e para a legislatura seguinte (1935-1937),

tendo a Câmara sido composta de 300 deputados, 250 eleitos pelos eleitores e 50

pelas associações profissionais.

A críticas ao código de 1932, suscitadas pelos pleitos de maio 1933 e de

outubro de 1934, motivaram a promulgação de outro, a lei no 48, de 4 de maio de

1935, que introduziu poucas alterações e vigorou até o golpe de Estado de 1937.

Juízes facciosos ou desatentos podiam favorecer uma das correntes políticas em

disputa, compondo mesas partidárias tendenciosas, ou nomeando para elas

justamente os elementos mais ativos dos partidos adversários, para impedir que

pudessem coordenar, ordenar e assistir seus eleitores livremente. Verificam-se

casos assim nas eleições de 1933, sobretudo em que pesem irregularidades quanto

ao sigilo do voto. Uma modalidade curiosa de fraude foi a da entrega da

sobrecarta ao eleitor já contendo uma cédula preenchida. Isto ocasionava que, na

apuração, quando se verificassem duas cédulas desiguais, o voto não fosse

apurado.

O sigilo do voto, apesar de proclamado várias vezes durante a Primeira

República, era burlado por diferentes processos. O mais frequente consistia no uso

pelos partidos de sobrecartas de tamanho, formato e cor diferentes para que, ao ser

depositado na urna, momento que se realiza à vista de todos, o voto pudesse ser

identificável. Eleitores mais atentos começaram a utilizar a sobrecarta de partidos

que se opusessem ao seu voto. Por este motivo, a mesa passou a entregar o

envelope contendo a cédula já preenchida. Para prevenir tais abusos, as

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legislações de 32 e 35, com vistas a tornar o voto verdadeiramente indevassável,

passaram a punir com a nulidade a identificação do voto ou sua mera

possibilidade.

Na vigência do Código de 1932, a solução dada pelo Tribunal Superior

Eleitoral à controvérsia sobre o preenchimento das cadeiras destinadas a

completar o quociente partidário permitiu uma prática viciosa, a qual o deputado

J. J. Seabra denominou esguicha. Era uma reprodução do processo de fabricar

antagonistas aparentes, que funcionou na vigência do sistema de lista incompleta.

A despeito dos excessos e defraudações que podem ter ocorrido entre

1932-37, os depoimentos mais numerosos são favoráveis à experiência das leis

eleitorais de 1932 e 35. De fato, bastaria que tivessem vedado o reconhecimento

às próprias câmaras para que cessassem as mais graves acusações de falseamento

de nossa representação política.

Apesar das denúncias sobre a permanência da fraude eleitoral, não faltam

cronistas da época e analistas contemporâneos a afirmar que a legislação de 1932,

confirmada pela Constituição de 1934, atingiram o objetivo de realizar a previsão

da Aliança Liberal de tornar limpas as eleições no Brasil. O próximo passo seria

ampliar o contingente de eleitores. Mas, em 1937, foi interrompida a breve

experiência democrática dos anos 1930, tendo os partidos sido impedidos de

funcionar, as eleições sido suspensas e o Congresso Nacional Fechado. Por 11

anos, isto é, até dezembro de 1945, não haveria eleições no Brasil.

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Parte III – Sobre o que não fez a Subcomissão do Itamaraty

Viu-se, desde um breve relato histórico, que o liberalismo se encontrava,

nas primeiras décadas do século XX, numa encruzilhada, que podia compromete-

lo de maneira fatal. Viu-se que, no Brasil, boa parte do impulso para a

reformulação das concepções tradicionais liberais veio das pressões exercidas

pelos novos atores advindos do mundo organizado do trabalho.

Finalmente, que a representação política tradicional, experimentada

formalmente na Primeira República, fracassou em razão das numerosas

modalidades de fraudes eleitorais produziu. Mas viu-se também que foi bem

sucedida em não dar passagem aos novos atores. A bandeira de moralização das

instituições representativas da Aliança Liberal incluía sua modernização, mas não

resolvia o problema da ampliação da democracia. Esta só seria interpelada pelo

Código Eleitoral de 1932, o qual garantia a universalização do sufrágio, mas não

assegurava que novas formas excludentes de defraudação da representação

pudessem se atualizar, pondo em risco a institucionalidade que com dificuldade

caminhava para a constitucionalização.

Quando da efetiva possibilidade de constitucionalização de uma ordem

liberal que contemplasse a ampliação democrática da República, foi discutida pela

comissão encarregada de produzir um anteprojeto da Constituição a proposta de

representação profissional. Embora, na França, ela tenha nascido de um

investimento intelectual de salvaguarda liberal, no Brasil ela não foi defendida por

liberais, mas por governistas ligados às bases do Governo Provisório, como

Osvaldo Aranha e Themístocles Cavalcanti, e por um comunista, João

Mangabeira. Os liberais optaram pela representação política tradicional, a qual,

combinada com sua adesão às forças mais recessivas da sociedade brasileira, os

agrários, garantiu-lhes a possibilidade de defender a pureza plutocrática das

instituições liberais. É disto que tratarão os próximos três capítulos.

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Capítulo 7. Da recepção da formulação da representação profissional em solo brasileiro

No presente capítulo, tratar-se-á da recepção do tema da representação

profissional segundo diferentes atores importantes no período que vai de 1930 a

1934. O objetivo aqui é apontar que tais autores leram a reflexão francesa

contemporânea e a receberam de acordo com a forma como concebiam as

potencialidades da sociedade brasileira para acolher instituições modernas e de

acordo com a caracterização dos limites da representação tradicional para resolver

os problemas contextuais do liberalismo político em face da necessidade de, ao

mesmo tempo, não traír as promessas da Revolução de 1930.

Themístocles Cavalcanti foi um dos principais defensores e mais fieis à

formulação de Léon Duguit da representação das associações profissionais.

Cavalcanti já começara a trabalhar num livro sobre a matéria constitucional

quando foi indicado para integrar a Subcomissão do Itamaraty, encarregada da

elaboração do anteprojeto da nova Carta e coordenada por Afrânio de Melo

Franco. Durante os debates, defendeu o unicameralismo, reduzido ao número

essencial de deputados, que não deveria ser menor que seis e maior que 16 em

nenhum estado. O Senado deveria ser abolido ou transformado num conselho

federal que representasse os estados, mas sem exercer propriamente o Poder

Legislativo, a não ser em certos casos. Reformulando os princípios da

Constituição de 1891, propunha algumas inovações tomadas da Constituição

alemã de 1919 e da Constituição mexicana de 1917.

Terminados os trabalhos da Subcomissão, declinou dos convites para ser

interventor federal em Pernambuco e para candidatar-se à Assembleia Nacional

Constituinte. Neste momento, Themístocles Cavalcanti dedicou-se integralmente

a trabalhar em seu livro sobre a matéria. No prefácio do livro que começara a

escrever quando trabalhava na Comissão do Itamaraty, afirmava que a

Constituição não iria durar por não haver no país um ambiente propício à prática

democrática. Não obstante, promulgada a nova Carta em julho de 1934,

considerou-a “revolucionária” por apresentar entre seus institutos jurídicos a

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“representação classista” na Câmara, o que, segundo sua avaliação, “permitia um

equilíbrio político muito maior”298

.

Themístocles Cavalcanti declarou-se leitor assíduo de Léon Duguit299

, em

cujas obras Le Droit social, le droit individuel et la transformation de l’État e

Souveraineté et liberté, encontrou os ensinamentos que o conduziram à convicção

de que o estabelecimento da personalidade pública dos sindicatos seria o meio de

ampliação da união social. Não por acaso, em 1938, foi o autor do prefácio e

anotações à edição brasileira de Sindicalismo, corporativismo e Estado

corporativo, de Roger Bonnard, seguidor de Duguit. Este dado sublinha não

somente a influência da tradição fundada por Duguit sobre o pensamento de

Cavalcanti mas também a velocidade do fluxo de informação entre Brasil e

França, haja vista que a edição original fora lançada apenas um ano antes. Toda a

argumentação do autor em favor da representação das associações profissionais

foram inspiradas por Léon Duguit, como se verifica neste excerto do prefácio ao

livro de Bonnard:

“[...] sob o ponto de vista representativo de forças organizadas dentro do Estado,

não há, efetivamente, como atribuir às entidades menos significado do que se

reconhece, nos regimes democráticos, às cidades, municípios ou qualquer partido

político, e ainda com a vantagem de constituírem as corporações organizações

homogêneas e conscientes”300

.

O pensamento de Cavalcanti se inscreve numa orientação de pensamento

que via de modo crítico a realidade brasileira e era refratária à possibilidade de

que as instituições liberais tradicionais pudessem fazer sozinhas o trabalho de

alterá-la. Trata-se de uma tradição com representantes desde o século XIX. Nas

primeiras décadas do século XX, contava com nomes como Oliveira Vianna e

Azevedo Amaral, além dos membros do Clube 3 de Outubro. Em que pese a

representação política, esses atores não acreditavam na eficácia da representação

individual e do processo eleitoral numa sociedade desarticulada, carente de

opinião pública autônoma e dominada por relações de clientela, como era a

298

Cf. ABREU, Alzira Alves de et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-

1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. In:

<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/temistocles-brandao-cavalcanti> 299

CAVALCANTI, Themistocles. “Tópicos de uma história política”. Revista de Ciência Política,

v. 3. jul/set, n. 21, 1978. p. 17. 300

CAVALCANTI, Themistocles “Notas e Comentários”. In: BONNARD, Roger. Sindicalismo,

corporativismo e estado corporativo. Rio de Janeiro: F. Bastos, 1938. p. 8.

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brasileira. Para eles, sanear as eleições não cumpriria a tarefa da Revolução de

1930, sintetizada no lema “representação e justiça”, cunhado por Assis Brasil,

para quem o aprimoramento das instituições representativas tradicionais seria o

caminho para “civilizar” o Brasil301

. Tal medida seria uma medida apenas formal,

sem condições de modificar a infraestrutura, a partir da qual o país já vinha

vivendo há tempo de mais uma representação política falsa. Neste contexto, as

propostas de Leon Duguit ganham destaque, porque oferecem uma alternativa

para atualizar a missão da Revolução. Com a representação das associações

profissionais, lograr-se-ia libertar o eleitor, atingir a representação verdadeira e

qualificar o processo decisório, ao mesmo tempo em que se preservaria a

instituição parlamentar.

A ideia de representação parlamentar das associações profissionais foi

repudiada por membros da elite política tradicional, notadamente a paulista, que

procurou combatê-la no plano político e das ideias. Isto exigia apontar os

problemas teóricos e práticos da incorporação dos sindicatos aos órgãos

legislativos, bem como reafirmar os valores clássicos da teoria da soberania

nacional ou popular, a qual só reconhece indivíduos como seus elementos

constitutivos. Na França, este confronto vinha ocorrendo no campo do Direito

Público, especificamente, no do Direito Constitucional. Entre os autores mais

destacados envolvidos no debate encontram-se, de um lado, Léon Duguit, e, de

outro, Adhémar Esmein, Maurice Hariou e Joseph Barthélemy. Coube aos

intelectuais brasileiros, portanto, trazê-los à discussão sobre o contexto nacional.

Um dos textos mais influentes no debate nacional foi o parecer A

Representação profissional ou de classes, elaborado pelo então Consultor-Geral

da República, Raul Fernandes, em novembro de 1932, a pedido do Governo

Provisório. A importância do documento se deve, de um lado, ao renome de seu

autor: ex-deputado da Liga das Nações e consultor jurídico do Tribunal de Justiça

301

Conforme se verifica de excerto extraído de documentos que correspondem, provavelmente, a

um panfleto de propaganda da Aliança Libertadora do Rio Grande do Sul, pois não constam

referências de publicação, mas apenas a data da mesma: 1925: “O Brasil pretende ser considerado

um país civilizado: pois bem, o Brasil não dispõe das duas condições mais rudimentares e

essenciais para tal, porque o Brasil não tem representação e não tem justiça.”. Cf. BUARQUE DE

HOLANDA, Cristina. et al (coords.). Revista de Estudos Políticos. Rio de Janeiro, 2010. In:

http://revistaestudospoliticos.com/a-alianca-libertadora-ao-pais-por-assis-brasil/

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227

Internacional de Haia302

e futuro relator-geral da Constituinte de 1933-34. De

outro, o texto assumiu importante significado após a publicação na imprensa e em

revistas jurídicas como a “Revista do Direito”, do Distrito Federal, e “Justiça”, de

Porto Alegre, pois, ao buscar respaldo jurídico para as posições que defendia,

encontrou-o quase que integralmente na tradição francesa. De fato, uma de suas

falhas mais evidentes é a ausência de referências substanciais ao panorama

brasileiro.

Com o parecer, o chefe do Governo Provisório procurava legitimar a

representação das associações profissionais. O contexto era delicado para Vargas:

embora o Código Eleitoral o autorizasse a decidir sobre a matéria, a representação

das associações desagradava a setores importantes que, contrariados, poderiam

resultar em oposição na futura Constituinte. Entretanto, Fernandes, crítico das

ideias de Léon Duguit, censurou também a medida pretendida pelo Governo que

lhe encomendou o parecer. Fê-lo baseando-se nas ponderações de Esmein,

constantes de Élements de Droit Constitutionnel français et compare303

.

O primeiro ponto de Esmein sustentado por Fernandes no parecer refere-se

à ideia de que não é lógico reconhecer a uma unidade social menor o que não se

reconhece a uma maior, que é composta por aquela. Assim, se à nação se

desconhece uma vontade, não é possível reconhecê-la às suas unidades304

. Da

mesma forma, tampouco faria sentido reconhecer representação a grupos cujos

integrantes, na qualidade de indivíduos, já a têm. Deste modo, decidir pela

representação das entidades significaria disponibilizar aos indivíduos que as

compõem uma dupla de representação. Na França, argumentos como os de

Esmein ampliavam as fileiras da escola individualista ou subjetivista do Direito

Público em seu embate com a orientação positivista, de Léon Duguit. Este se

escandaliza com a teoria da soberania tal como apresentada por Esmein, com sua

302

ABREU, Alzira et al. (Coord.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro. Rio de Janeiro:

Fundação Getulio Vargas 2001. p 2143. 303

ESMEIN, Adhémar. Élements de Droit Constitutionnel français et compare. 8. Paris: Ricueil

Sirey, 1927. 304

“se à própria nação se desconhece uma vontade própria ou uma psicologia coletiva, como

reconhecer tais atributos a grupos ou classes dentro da nação?” ESMEIN, Adhémar. Élements de

Droit Constitutionnel français et compare. 8. Paris: Ricueil Sirey, 1927. p. 275.

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defesa radical dos princípios individualistas da Revolução de 1789305

. Ao

mobilizar os argumentos de Esmein, Fernandes ecoa a controvérsia que se dera na

França.

A ideia de que a representação se exaure no indivíduo ganha clareza na

citação extraída por Fernandes de La Crise de la Démocratie et les reformes

nécessaires du povoir legislatif, de Émile Giraud: “há milhões de franceses a

quem interessa infinitamente mais a perseguição de lebres ou as provas esportivas

do que o futuro moral da humanidade”306

, ao que complementa sublinhando o

ridículo que seria privilegiar aqueles interesses em detrimento destes, em função

do fato de que representam o interesse de um grupo. A ideia é de que o critério

das opiniões políticas deveria prevalecer sobre o dos vínculos sociais.

Outro texto do mesmo ano apresenta restrições semelhantes às expostas

por Fernandes: Novas formas de organização política, um curso proferido por

Vicente Rao, entre setembro e outubro de 1933, na Faculdade de Direito de São

Paulo307

. Inspirado pela experiência de ter assistido, em Paris, ao curso de Direito

Público Comparado, dirigido por Mirkine Guetzévich, Rao sublinha que a falha

da representação das associações profissionais reside no fato de que não

compreende todos os que estão em jogo na formação do Estado. Concorrem com

ele interesses de gênero completamente distinto, como religiosos, éticos e

estéticos308

. Soma-se à influência de Guetzévich a do Hans Kelsen, A

Democracia, citado por Rao através da edição francesa.

Feito o argumento de que a representação das associações profissionais

carece de sentido teórico, Fernandes passou, na segunda parte do parecer de 1933,

a expor as dificuldades para organizá-la de um ponto de vista prático. Para fazê-

lo, começou por interpelar a sugestão formulada por Léon Duguit ,em 1895, de

que o espaço de participação das entidades econômicas e, entre elas, das

associações profissionais deveria ser o Senado. Fernandes argumenta

305

PARROT, Jean-Philippe. La repr'sentation des intérêts dans le mouvement des idées politiques.

Paris: Puf, 1974. p. 118. 306

GIRAUD apud FERNANDES, Raul. “A representação profissional ou de classe”. Revista de

Direito, v. 107, n. fev/mar, 1933. pp. 277-278. 307

RAO, Vicente. "Novas formas de organização política". Revista da faculdade de Direito de São

Paulo, v. 29, 1933. 308

Idem. p. 149.

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contrariamente, afirmando a impossibilidade de separar as questões de ordem

política das demais, haja vista inexistirem as de natureza puramente econômica.

Neste sentido, o Senado seria uma câmara artificial e, como tal, não produziria os

efeitos pretendidos, além de tornar-se uma agência produtora de conflitos

insolúveis com a câmara política. Os argumentos mobilizados para contrapor a

solução de Duguit foram encontrados por Fernandes em Précis de Droit

Constitutionnél, de Maurice Hauriou. Outros autores são citados no parecer como

exemplos, ao lado de Duguit, de tentativas pouco satisfatórias, como Charles

Benoist, em La Crise de l’État moderne, e Henri Lambert, em artigo publicado

na Revue Politique et Parlamentaire.

Embora não tenham sido utilizadas por Fernandes no parecer em questão,

as críticas de Joseph Barthélemy dirigidas às ideias de Duguit foram amplamente

mobilizadas pelos brasileiros do período. É o caso de Gilberto Amado que, em

Eleição e Representação, de 1931, tem como fonte principal a obra de

Barthélemy309

. Ao tratar da possibilidade de implementação da representação das

associações profissionais no parlamento de regimes democráticos, Amado se vale

de Barthélemy para afastar a hipótese, arguindo ser impossível conciliá-la à

representação tradicional. Na mesma obra, Amado afirma que, em palestra

proferida em Paris, o autor expos como outra impossibilidade a organização das

associações a serem representadas, por três razões: não havia como designar estes

grupos; na hipótese de ser possível, não havia como dosar, de forma equânime, o

espaço político de cada grupo; superadas as duas primeiras dificuldades, não havia

como corresponder satisfatoriamente ao problema dos poderes a serem atribuídos

às associações310

.

A última estratégia do parecer de Fernandes contra a representação

parlamentar das associações profissionais foi denunciar seus fracasso das

experiências conduzidas em outras partes do mundo. E o fez com o sugestivo

309

BARRETO, Álvaro. Representação das associações profissionais: a influência francesa no

debate brasileiro da década de 30. Op. cit. p. 176. 310

AMADO, Gilberto. Eleição e Representação Política. Rio de Janeiro: Oficina Industrial

Gráfica, 1931. p. 130-32.

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argumento de que “nos países onde as novas instituições se fizeram sob o controle

preponderante dos partidos de esquerda, essa inovação foi repelida”311

.

Antes dele, entretanto, José Augusto, ex-deputado federal e ex-governador

do Rio Grande do Norte, já se tornara referencia em estudos sobre os conselhos

econômicos na Alemanha e na França, o modelo de Estado fascista da Itália e a

construção soviética. Sua atenção se voltara também para outras experiências,

como Portugal, Tchecoslováquia, Hungria, Iugoslávia, Romênia, Polônia, Grécia

e Japão. Em A representação profissional nas democracias, José Augusto organiza

os exemplos do exterior segundo três critérios: países que especularam a inclusão

da novidade, mas desistiram, como a Espanha; os que a incluíram na Constituição,

mas jamais a aplicaram na prática, como a Áustria; e os que a adotaram, mas não

obtiveram êxito, como a República de Weimar. Tendo constatado que não se

verificavam no mundo experiências bem sucedidas de implementação da

representação parlamentar das associações profissionais, concluiu que a forma

mais recomendada de incorporação das entidades profissionais ao Estado seria o

conselho técnico.

A forma que deveria assumir a incorporação das entidades profissionais

foi objeto de ampla discussão entre o ano de 1932 e a promulgação da

Constituição de 1932. Debate este que excede as referências francesas, na medida

em que revela as posições políticas dos atores e os interesses que representam.

Problemas como o conflito entre o desejo antigo por ver implementado um

parlamento idôneo e tradicional e receber as mudanças que a conjuntura

econômica e social impunha às instituições. Sobretudo, estava em discussão a

necessidade de incorporar o conflito entre capital e trabalho aos canais estatais,

bem como o grau de centralização política a ser desfrutada pelo Estado. Sobre esta

última questão, temia-se a permanência do fenômeno que Vitor Nunes Leal

chamou de governismo, que caracterizara a República Velha.

Parte da caracterização da República Velha elaborada por Vitor Nunes

Leal denuncia como “governismo” o acesso privilegiado ao poder político de

quem está na situação. . Segundo este autor, o fenômeno tornara-se uma

311

FERNANDES, Raul. "A representação profissional ou de classe". Revista de Direito, v. 107, n.

fev/mar, 1933. p. 282.

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permanência na vida representativa brasileira, verificável também na década de

1930. Não obstante o aumento da oposição parlamentar, foi notória a

predominância da bancada governista na Assembleia Constituinte de 1933 e na

Câmara ordinária que se seguiu. Também a representação no Senado foi

prejudicada pelo governismo. Em primeiro lugar, porque era um órgão menos

numeroso e, portanto, mais fácil de ser controlado pelo que chamou também de

“situacionismo”. Em segundo, porque teve sua primeira investidura realizada por

eleição indireta.

O autor inclui no elenco de problemas da representação ligados ao

situacionismo a alternativa à representação tradicional cujo convívio com ela foi

fixado pelo Código de 1932, a saber, o corporativismo. Adotado na Constituinte

através da representação das associações profissionais, o corporativismo logo se

faria visível na bancada classista, “em sua maioria, obediente ao governo”312

. A

ampliação da ingerência do Poder Executivo, que caracteriza o corporativismo,

teria se comprovado, segundo o autor, em diversas circunstâncias, mas, desde

logo, na ocasião do afastamento de Antonio Carlos da presidência da Câmara.

Prevista desde a promulgação do Código Eleitoral de 1932, a

representação das associações profissionais foi implantada na Assembleia

Constituinte de 1933-34 e consagrada na Constituição de 1934313

como partícipe

do Congresso Nacional e das assembleias legislativas estaduais. Teve vigência até

1937, quando, após o golpe do Estado Novo, interrompeu-se o funcionamento de

todos os órgãos legislativos do país.

Embora a representação das associações profissionais jamais se tenha

verificado outra vez sob a forma parlamentar, sua versão corporativista nunca

mais deixaria a vida política do país314

. De fato, a discussão sobre a forma que

deveria assumir esta maneira de representação no processo constituinte dos anos

1930 é reveladora das razões dessa permanência. Neste sentido, revela-se, por um

lado, a importância do tema para a interpretação da vida política pátria e, por

312

LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo Enxada e Voto. p. 261. 313

Constituição de 1934, art. 23, caput: “a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do

povo […] e de representantes eleitos pelas organizações profissionais.” 314

BARRETO, Alvaro Augusto de Borba. Representação das associações profissionais no Brasil:

o debate dos anos 1930. Op. cit. p. 121.

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outro, a relevância do tema da representação no período para o esclarecimento

desta permanência.

Segundo Vitor Nunes Leal, a causa de um fenômeno político não deve ser

procurada no direito. No caso do governismo, sua causa não será encontrada na

legislação eleitoral. Isto porque, por mais defeituosa que seja, ela apenas reflete as

condições gerais da vida política do país.315

Neste sentido, o direito é um bom

terreno para quem quer descrever um fenômeno, mas não para investigar suas

razões. Assim, conhecer os instrumentos através dos quais a representação das

associações profissionais foi introduzida no Brasil é chave. Não obstante, é a

discussão sobre o que deve virar direito que revela as razões políticas de sua

transformação em corporativismo e de sua permanência na vida política pátria.

Embora se operacionalize em linguagem jurídica, o debate constituinte é

eminentemente político, se realiza em arenas de natureza política e é lugar

privilegiado para investigar a aquelas “condições gerais” a que se refere Vitor

Nunes Leal. Deste modo, seria nos debates através dos quais se iniciou o processo

de constitucionalização da ordem franqueada pela Revolução de 1930 que se

esclareceriam as causas do governismo. Seguindo esta orientação, buscaremos no

debate constituinte do período, quando o tema da representação das associações

profissionais assumiu diversas acepções, pistas sobre as razões da permanência do

fenômeno do corporativismo.

Como panorama geral do debate, verifica-se a divisão entre os argumentos

que defendiam a representação das associações profissionais com poderes

consultivos e os que advogavam para ela poderes deliberativos316

. O Estado

liberal como forma de organização da vida política e econômica e, logo, da

representação, perdera força e passara a ser identificado como um aparato gerador

de conflitos e inadequado ao país. Não por acaso, Gilberto Amado, ao caracterizar

o panorama que levou à adoção da representação das associações profissionais,

afirmou que “não havia lugar para os liberais”317

. Tal diagnóstico orienta o

questionamento acerca do papel do Estado, seus pressupostos, suas formas de

315

LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo Enxada e Voto. Op. cit. p. 261 316

BARRETO, Alvaro Augusto de Borba. Representação das associações profissionais no Brasil:

o debate dos anos 1930. Op. cit. p. 121. 317

AMADO, Gilberto. Eleições e Representação. Rio de Janeiro: Oficina Industrial, 1932. p. 115.

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atuação, sua responsividade, sua forma de se relacionar com a sociedade e de se

organizar. O mundo do trabalho já não era o mesmo e organizar a participação das

categorias profissionais no poder público era “o grande problema do período”318

.

Reconhecia-se a necessidade da presença de corpos intermediários para

operacionalizar a relação entre a sociedade e o Estado, que estes corpos eram as

entidades profissionais e que sua incorporação no aparelho decisório do Estado

passaria pelo tipo de papel, consultivo ou deliberativo, a elas reservado.

O centro do debate brasileiro versou sobre os poderes ou atributos que

caberiam às entidades profissionais, isto é, se lhes caberiam funções consultivas

ou deliberativas a serem exercidas, respectivamente, em conselhos técnicos ou no

Parlamento. A defesa da representação das associações profissionais como

participação formal das entidades no Congresso Nacional, com função

deliberativa igual à da representação popular, foi predominante no período. Foi o

modelo que prevaleceu na Assembleia e na organização política prevista no texto

constitucional que dela resultou. No plenário da Constituinte, seu mais enfático

defensor foi Abelardo Marinho, deputado eleito pelas profissões liberais e

membro do Clube Três de Outubro. Mas também foi a posição de diversas

personalidades, escritores e movimentos políticos com diversas orientações

ideológicas. Entre eles encontram-se Getúlio Vargas, Juarez Távora, Osvaldo

Aranha e José Américo de Almeida; o líder católico leigo Alceu Amoroso Lima; o

socialista João Mangabeira; e toda a bancada dos patrões na Constituinte, que

tiveram à frente Oliveira Passos e Euvaldo Lodi. A reunião de interesses tão

diferentes se explica pelo consenso em torno da tese de que a representação das

associações profissionais nos organismos legislativos seria a via mais adequada

para a efetiva representação dos interesses dos cidadãos num contexto de ausência

de tradição partidária. É a interpretação de Leôncio Martins Rodrigues, que sobre

a questão afirma:

318

MAGALHÃES, Agamenon. O Estado e a realidade contemporânea. Recife: Diário da manhã,

1933. p. 69.

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“Na década de 1930, corporativismo, autoritarismo, centralismo, anti-liberalismo

e nacionalismo constituíam componentes de uma ‘ideologia de Estado’ assumida

por diferentes forças políticas emergentes, dos integralistas aos comunistas,

passando pelas várias facções tenentistas e pelos getulistas”319

Entre os argumentos favoráveis à função deliberativa da representação das

associações profissionais encontra-se a defesa da necessidade de que os órgãos do

Estado reproduzissem a sociedade, o que não se realizaria sem a incorporação das

categorias. Argumentava-se que, entre os interesses dos indivíduos e sua

representação no aparado estatal, estaria a representação de interesses coletivos,

que realizaria a aproximação de Estado e sociedade, pois, como afirmaria

Themístocles Cavalcanti, então vinculado ao Clube Três de Outubro e membro da

Subcomissão do Itamaraty: “o que pode exprimir coisa de concreto, de real, nos

regimes conhecidos são as entidades coletivas”320

.

Assim, a corporação e o sindicato deveriam poder influenciar mais

diretamente nas atividades do poder público. Esta influência dos interesses

coletivos fora negada pela representação política tradicional do século XVIII,

orientada por ideias como as de vontade geral, interesses da nação ou do povo.

Como corpo intermediário, o grupo profissional seria mais homogêneo e natural

do que os partidos. Preocupa-se com questões reais próximas dos indivíduos, ao

mesmo tempo em que o que defende são os interesses partilhados pela categoria.

Foi neste sentido que se posicionou Virgínio Santa Rosa:

“Colocado no seio de sua classe, irmanado e firmemente associado a homens de

mesmíssimos interesses, a voz de cada indivíduo, mais forte e clara, se fará ouvir

pelo representante de sua classe. E aqueles que falem em seu nome e defendam

os seus interesses, usarão de toda probidade e consciência, por possuírem

interesses idênticos aos de seus representados. Cada qual poderá ter a certeza e

segurança de que será realmente representado e defendido por sócio material e,

quiçá, espiritual. [...] Num Parlamento constituído por representações de classes,

todas as parcelas propulsoras da economia nacional têm a certeza de encontrarem

defensores.”321

Em Esboço do programa revolucionário de reconstrução política e social

do Brasil, os membros do Clube Três de Outubro enfatizaram argumento no

319

RODRIGUES, Leôncio Martins. “O sindicalismo corporativo”. In: Partidos e sindicatos. São

Paulo: Ática, 1990. p. 52. 320

CAVALCANTI, Themistocles. “Notas e Comentários”. In: BONNARD, R. Sindicalismo,

corporativismo e Estado corporativo. Rio de Janeiro: F. Bastos, 1938. pp. XVI-XVII. 321

SANTA ROSA, Virgínio. A desordem: ensaio de interpretação do momento. Rio de Janeiro:

Schmdt, 1932. pp. 140-141.

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mesmo sentido. E adicionaram que a representação das associações profissionais

forneceria melhores condições para a administração pública. A tese é de que a

complexidade social, econômica e técnica do mundo que lhes era contemporâneo

exigia um tipo de resposta do Estado que o Parlamento formado pelo método

tradicional, em razão da morosidade de seus procedimentos, era incapaz de

fornecer. A representação das entidades no Parlamento asseguraria “bom rumo à

administração, facultando aos especialistas interferência eficiente na gestão dos

negócios públicos”322

.

Esse tipo de afirmação da necessidade de um “governo técnico” era forte

no período. Mas nem sempre se instrumentalizava através da representação

parlamentar das associações profissionais. Curiosamente, os casos exemplares de

defesa da administração técnica do Estado realizam a insólita aproximação de

atores com inscrições sociais e interesses díspares como Oliveira Vianna e os

industriais vinculados ao Centro de Indústrias do Estado de São Paulo e à

Federação das Indústrias do Estado de São Paulo323

.

Em Problemas de Política Objetiva, de 1930, Oliveira Vianna tratava do

que compreendia como a “progressão do legislativo como órgão puramente

político” 324

. Entendia que a representação parlamentar das associações

profissionais serviria à manipulação política, já que, para ele, as entidades ainda

não se encontravam suficientemente formadas no país. Por este motivo, quando

membro da Subcomissão do Itamaraty, em 1932, votou contrariamente ao novo

modelo de representação. Propôs, ao contrário, que grande parte das atribuições

legislativas passassem ao Executivo, ou, alternativamente, que fossem criados

organismos técnicos de apoio ao Parlamento. No seu voto, afirmou a necessidade

de criar, em uma “cláusula da Constituição, a obrigatoriedade da consulta prévia

para todos os projetos de lei, como para todos os projetos de regulamento”.

Através de tal consulta, ter-se-ia “dado às classes e aos grupos de interesse uma

322

CLUBE TRÊS DE OUTUBRO. Esboço do programa revolucionário de reconstrução política

e social do Brasil. 1934-1937 b. p. 190. 323

Doravante, CIESP-FIESP. 324

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Problemas de Política Objetiva. São Paulo:

Nacional, 1930.

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forma pronta, imediata e eficaz de participação na vida política do país”325

.

Durante o Estado Novo, Oliveira Vianna aprofundaria sua desconfiança quanto ao

Parlamento, independentemente do modo como fosse composto. E enfatizaria a

importância de organismos técnico-administrativos (conselhos, comissões e

autarquias), formados com a participação das associações profissionais, que

exerceriam muitas das funções legislativas e regulamentadoras antes atribuídas ao

Parlamento. A isto o autor chamou de “descentralização funcional via adoção de

corporations”326

.

Entre os industriais vinculados ao CIESP-FIESP encontram-se Roberto

Simonsen, Ranulpho Pinheiro Lima e Horácio Lafer, os quais conduziam uma

linha argumentativa “antipolítica” que, neste único sentido, era análoga a de

Oliveira Vianna. Haveria para os industriais paulistas uma participação da

realidade social e da gestão pública marcada pela tecnicização, pela

cientificização e pela racionalização. A política e, logo, o Parlamento, nas

condições até então em vigor, eram incapazes de interpelar a nova realidade327

. A

natureza corruptora da política gerava políticos profissionais desinteressados das

necessidades do real. Para os industriais de São Paulo, portanto, seria indiferente a

composição da casa que abrigaria os políticos corruptos e omissos que a política

por sua própria natureza se encarregava de produzir.

Esses industriais atuaram como deputados da classe dos empregadores na

Constituinte de 1933-34. Fizeram-no com competências deliberativas, a propósito.

Utilizaram-nas, entretanto, para reforçar a bancada da Chapa Única por São Paulo

Unido e propor que a presença das associações profissionais se restringissem a

organismos técnico-consultivos, cuja missão era a de instruir os poderes com

capacidade decisória.

Sugeriram a formação de quatro conselhos nacionais: Economia,

Educação e Saúde, Defesa e Trabalho. Estes seriam formados por ¾ de membros

eleitos na forma indicada por lei ordinária e um ¼ de nomeados pelo governo. A

325

AZEVEDO. Elaborando a Constituição Nacional. 2a edição. Brasília: Senado Federal, 1993

[1933]. p. 90. 326

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Problemas de Direito Corporativo. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1938. 327

SILVA, Zélia Lopes da. O arcaico e o moderno na Constituinte de 1933-34. São Paulo. Tese

(Doutorado em História), 1991 ou 1994. pp. 47-49, 94-95.

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competência dos membros de tais conselhos se restringiria a: propor projetos de

lei, dar parecer sobre temas que dissessem respeito a assuntos de sua competência

e colaborar na regulamentação e na instrução para a execução das leis. A

justificativa, tal como afirmado por Ranolpho Pinheiro Lima, por exemplo, era de

que, sem mudar a estrutura dos poderes políticos e sem ferir o princípio da livre

movimentação dos indivíduos que basilava o regime sob o qual, do ponto de vista

institucional, o país já vinha operando, e sem órgãos intermediários, conceder-se-

ia aos interesses das associações328

. Nota-se que o argumento “antipolítico”, no

caso dos industriais, dirigia-se apenas aos interesses coletivos do mundo do

trabalho.

Embora privados de qualquer poder de decisão, os conselhos sugeridos

pelos industriais paulistas teriam suas funções, prerrogativas e composição

referenciadas no texto constitucional. Não poderiam, portanto, nem formal, nem

politicamente, ser desprezados no processo de deliberação dos assuntos relativos à

sua atividade. Seriam arenas estratégicas que garantiriam às entidades espaços

exclusivos no aparato do Estado. Como resultado, em lugar de assegurar poder de

decisão para as categorias profissionais, a medida ampliaria a possibilidade de o

governo, através da consulta a conselhos em parte escolhidos pelo Poder

Executivo, intervir no processo decisório do parlamento. Neste sentido, o modelo

dos industriais de São Paulo se aproxima dos instrumentos corporativistas

sintetizados no enunciado de Philippe Schmitter: “[...] corporativismo, como

sistema de representação de interesses ou atitudes é um arranjo institucional

particular-modal ou típico-ideal para ligar interesses da sociedade civil

organizada em associações às estruturas decisórias do Estado”.329

Aproximam-se, portanto, as posições de Oliveira Vianna e dos industriais,

em que pese à visão de que a colaboração das associações profissionais não tem

natureza política e não deve se realizar através dos canais da representação.

Diferem-se, entretanto, quanto ao lugar e àquilo que não deve ser político. Para o

328

AZEVEDO. Elaborando a Constituição Nacional. 2a edição. Brasília: Senado Federal, 1993

[1933]. p. 455-456. 329

Tradução da autora. No original: “[...] corporatism as a system of interest and or attitude

representation, is a particular modal or ideal-typical institutional arrangement for linking the

association ally organized interests of civil society with the decisional structures of the state”.

SCHMITTER, Philippe. “Still the century of corporatism?” The Review of Politics. Notre Dame.

v. 36, n. 1. 1974. p. 86.

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primeiro, o Parlamento deveria ser progressivamente esvaziado de sua dimensão

política, ao passo que, para os segundos, é a representação das associações

profissionais que não deve ser política e, portanto, não pode compor o

Parlamento. Mas estes atores se distinguem em pelo menos mais um ponto:

quanto à autonomia de organização e à administração das entidades.

Em Problemas de Direito Corporativo (1938)330

e Problemas de Direito

Sindical (1943)331

, Oliveira Vianna defenderá que o monopólio da representação e

da participação nos órgãos públicos das associações profissionais estava

condicionado à sua subordinação ao Estado. Esta posição assumiria contornos

definidos durante a discussão sobre a aplicação da lei de sindicalização do Estado

Novo332

. Por seu turno, quando da Constituinte, os industriais vinham

propugnando a proposta dos conselhos mediante a condição de que estes

gozassem de autonomia de organização e administração. Neste sentido, a posição

dos industriais identificava-se com o o chamado “corporativismo privado”333

,

inspirado pelo corporativismo católico, especialmente aquele de Brèthe de la

Gressaye, e pelas ideias do romeno Mikhail Manoilesco334

. De fato, o livro de

Manoilesco seria editado no Brasil, em 1938, com o apoio da elite industrial.

Partindo das ideias destes autores, os industriais postulavam um tipo de

corporativismo que exigia a permanência do modo autônomo e peculiar segundo o

qual os grupos vinham articulando e associando os seus interesses. Manter-se-iam

as entidades à distância da intervenção estatal, mas privilegiar-se-iam as

formações controladas pela cúpula de uma elite de grandes empresários, a

exemplo do CIESP-FIESP335

. Sem este pressuposto, os conselhos resultariam em

mais independência para o Estado do que em um novo status para o patronato.

330

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Problemas de Direito Corporativo. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1938. 331

OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Problemas de Direito Sindical. São Paulo: M.

Limonad, 1943. 332

COSTA, Vanda Maria Ribeiro. A armadilha do Leviatã. A construção do corporativismo no

Brasil. Rio de Janeiro: UERJ, 1999. BARRETO, Alvaro Augusto de Borba. Aspectos

institucionais e políticos da representação das associações profissionais no Brasil nos anos 1930.

Porto Alegre: Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do

Sul, 2001. 333

LEOPOLDI, Maria Antonieta. Industrial Associations and Politics in Contemporary Brazil.

Oxford: St. Anthony’s College, 1984. 334

BARRETO, Alvaro Augusto de Borba. Representação das associações profissionais no Brasil:

o debate dos anos 1930. Op. cit. p. 124. 335

Idem. p. 124.

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Ao manterem essa linha de ação, os industriais paulistas se opuseram a

características fundamentais do modelo sindical do governo Vargas. A defesa de

autonomia de organização e administração das associações patronais contrariava a

unicidade, a oficialização e o enquadramento que caracterizavam o modelo de

Vargas. Assim, os industriais combateram o Decreto nº 19.770 que, em 19 de

Março de 1931 passou a regular a sindicalização das classes patronais e operárias.

Na Constituinte, articularam a defesa da pluralidade e da autonomia sindicais.

Tais bandeiras seriam retomadas quando da regulamentação do Decreto-lei no

1402, de julho de 1939, a lei de sindicalização do Estado Novo.

Ao mesmo tempo, a expectativa de autonomia, ao restringir-se ao

patronato, manifestava-se contrariamente à representação das associações

profissionais no que ela guardava de possibilidade de acesso dos trabalhadores

organizados às esferas decisórias do Estado. De fato, no intuito de impedi-lo, os

industriais de São Paulo não acolheram nenhuma proposta de representação das

entidades profissionais que exigisse a organização por base profissional.

Argumentaram que tal padrão correspondia apenas à realidade das classes

trabalhadoras e atenderia exclusivamente a seus interesses. Para isto, serviram-se

de uma distinção operada por Oliveira Vianna entre as atividades dos sindicatos

de patrões e empregados. Para este autor, bem como para os industriais que lhe

subscreveram a tese, as atribuições dos sindicatos de empregadores e empregados

se diferem na medida em que enquanto estes orientam seu esforço de cooperação

para o confronto com o patrão aqueles se associam para controlar a competição no

interior da própria classe.

Os membros do Clube Três de Outubro se afirmavam defensores da

representação parlamentar das associações profissionais, mas também se valeram

da figura dos conselhos técnicos. Entretanto, para os outubristas, os conselhos

guardavam atribuições distintas e se distribuíram institucionalmente de maneira

diferente das propostas pelos atores citados acima. Entendiam que a relação entre

representação parlamentar e conselho técnico era de complementariedade, logo,

ambos eram considerados modalidades da representação das associações

profissionais.

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Para muitos proponentes da função deliberativa, a ideia de conselhos

técnicos era repudiada como tentativa de esvaziamento do papel das entidades nas

decisões públicas. De fato, os conselhos não eram instituições representativas

como o Parlamento pretendia ser. É de sua natureza operar como canais de

representação privilegiada para associações profissionais e especialistas no

aparato estatal, para que possam apresentar e defender interesses, negociar e

influenciar a tomada de decisões legislativas ou administrativas sem mediação

partidária ou eleitoral. Por este motivo, a lógica de funcionamento dos conselhos

não é a de tornar públicas as decisões ou convocar a sociedade à discussão, mas

de fazê-lo na esfera dos interesses privados diretamente relacionados às decisões e

de chamar à participação os saberes e entidades envolvidos. Por outro lado, é por

isso que faziam sentido para outubristas simpáticos à centralização e industriais

elitistas refratários à via da discussão político-parlamentar.

O exemplo dos outubristas, defensores da competência deliberativa da

representação das associações profissionais e, ao mesmo tempo, dos conselhos

que, por natureza, aponta para uma outra questão. A despeito de aderirem à

função deliberativa, os atores do período divergiram quanto aos tipos de

organização das entidades para efeitos de representação. Num momento de

reconstitucionalização, como é o caso do período em análise, tornava-se

necessário traduzir as orientações ideológicas em emendas que consagrassem os

procedimentos através dos quais funcionaria a representação das entidades. O

resultado dessa tradução foi uma diversidade de arranjos institucionais propostos

por defensores da função deliberativa.

O modelo de Parlamento que acolheria a nova modalidade de

representação na Constituição foi objeto de caloroso debate. À época, havia duas

alternativas básicas: uma estrutura totalmente formada pelas entidades ou um

Parlamento misto. A primeira era a mais radical e pressupunha a substituição

integral da representação fundada no indivíduo pela dos grupos profissionais. Foi

considerada pelos intérpretes do período, entre os quais, Gilberto Amado336

, José

Augusto337

, Darcy Azambuja338

e Vítor Viana339

, como a mais radical. Para eles, a

336

AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Op. cit. 337

AUGUSTO, José. A representação professional nas democracias. Rio de Janeiro: P. Pngetti,

1932.

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substituição total da representação tradicional era antidemocrática e autoritária.

Identificada com a União Soviética, ou com fascismo ou sindicalismo

revolucionário de inspiração soreliana, foi indicada como a extinção da via

parlamentar como arena de representação da sociedade civil, que seria substituída

por um órgão controlado pelo Estado. No Brasil, foi formulada e defendida pela

Ação Integralista Brasileira e por Olbiano de Melo, que acabaria por integrar a

AIB. Na Constituinte, foi objeto de uma única proposta de emenda ao Anteprojeto

da Subcomissão do Itamaraty, encabeçada por Ewald Possolo, Deputado pela

bancada dos Empregados. Nela, previa-se que o Poder Legislativo seria exercido

pelas assembleias estaduais e por uma Câmara Técnica, a qual seria composta por

14 órgãos representativos das forças produtivas. Odilon Braga, redator do capítulo

relativo ao assunto na Constituinte, considerou-a sugestiva em suas linhas gerais,

mas impraticável no Brasil340

.

Ganhou a pauta de deliberações na Constituinte a alternativa de um

Parlamento misto. Foram propostas 12 emendas ao Anteprojeto seguindo o

formato misto assumido pela própria Constituinte, que fora composta de 214

deputados populares e 40 das associações profissionais. Foi este o padrão fixado

na Constituição de 1934. Mas não sem antes haver discussão quanto a como

realizar a composição entre representação tradicional e profissional. As opções

apresentadas podem ser reunidas em duas modalidades de mistura: a da

convivência da dupla representação em um mesmo corpo e a do Parlamento

bicameral, com cada casa composta exclusivamente por um tipo de representação.

A noção de um Parlamento bicameral, com uma das câmaras composta

somente de representantes das associações profissionais pode ser encontrada nas

primeiras manifestações do Clube Três de Outubro. Foi a proposta apresentada no

Esboço de Programa revolucionário, de 1932, e aprovada na Convenção

Nacional da entidade no mesmo ano. No mesmo sentido, Alceu Amoroso Lima

defendeu, nas conclusões do Congresso Revolucionário, de novembro daquele

338

AZAMBUJA, Darcy. Renovação nacional. Porto Alegre: Globo, 1933. 339

VIANA, Vítor. A Constituição austríaca: a racionalização do poder e a representação de

classes. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1933. VIANA, Vítor. O regime fascista e a

democracia: a utopia reacionária e as realidades brasileiras. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio,

1933. 340

AZEVEDO. Elaborando a Constituição Nacional. 2a edição. Brasília: Senado Federal, 1993

[1933]. p. 299.

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ano, uma proposição análoga, fundada na ideia de um Estado “ético-corporativo”,

baseado na Doutrina Social da Igreja341

. Na Constituinte surgiram três emendas ao

Anteprojeto com esta intenção. Uma de Luiz Sucupira, eleito pela Liga Eleitoral

Católica do Ceará. Outra, capitaneada pela Frente Única Gaúcha, e inspirada nas

ideias de Borges de Medeiros, previa a instalação de uma câmara exclusiva para a

representação das associações profissionais depois que as instituições de direito

público abrangessem as principais profissões. A terceira proposta de emenda foi

realizada por Agamenon Magalhães e apresentou uma Câmara Corporativa

presidida pelo Ministro do Trabalho, com competência apenas sobre a legislação

relativa às relações de trabalho.

A alternativa do Parlamento misto foi a que encontrou mais adesão e

acabou incorporada pela Constituição de 1934. Além da representação classista e

da bancada governista, a ela incorporaram-se Osvaldo Aranha, Góis Monteiro,

José Américo de Almeida e Themístocles Cavalcanti. A discussão entre os

adeptos da ideia de um Parlamento misto repousou sobre a questão da divisão ou

da unicidade cameral. Um congresso misto e unicameral foi a posição defendida

por João Mangabeira desde a Subcomissão do Itamaraty e foi o modelo obedecido

nos trabalhos da Constituinte. A hipótese de um Legislativo bicameral impunha o

problema do lugar onde haveria o misto de representações. Como não houve no

Brasil nenhum defensor da presença da representação profissional nas câmaras

baixa e alta, o debate versou sobre em qual das duas se verificaria a mistura. A

opção por uma câmara baixa mista foi a preferida, razão pela qual todas as dez

emendas ao Anteprojeto encaminharam-se neste sentido.

Por fim, foi objeto de debate a organização das entidades, isto é, as

categorias instrumentais a partir das quais se configurariam as associações

profissionais. A discussão teve lugar após vitoriosa a função deliberativa da

representação das associações profissionais, quando já estava garantida no

ordenamento jurídico nacional. Ao longo da redação da Constituição, surgiram

quatro modelos: representação dos empregados, de classes, de profissões afins e

dos ramos de atividade econômica.

341

LIMA, Alceu Amoroso. Indicações Políticas: da Revolução à Constituição. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1935. pp. 89-90.

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A representação exclusiva dos empregados figurou em uma emenda

capitaneada pelo representantes dos empregados João Vitaca, que foi uma voz

isolada, tendo recuado e negociado em torno das demais propostas. A

representação de classes dividia empregadores e empregados. Foi defendida por

João Mangabeira na Subcomissão do Itamaraty, aplicada na Constituinte e

definida pelo Governo Provisório. Mas na Constituinte foi desconsiderada pelos

principais defensores da função parlamentar da representação das associações

profissionais.

O modelo da representação das profissões afins foi o defendido pelo Clube

Três de Outubro e se operacionalizaria pela divisão em distritos eleitorais,

formados por indivíduos sindicalizados reunidos pelo grau de afinidade entre as

atividades profissionais que, quando conveniente, dividir-se-iam em patrões e

empregados. O processo eleitoral seria indireto e em graus sucessivos. Começaria

nos municípios, onde delegados das entidades que compõem o distrito reunir-se-

iam em convenção para eleger, dentre eles, alguém para exercer o sufrágio na

assembleia nacional. Esta se realizaria nos mesmos moldes e definiria os

delegados-eleitores à convenção nacional, instância que efetivamente procederia à

eleição dos deputados representantes das associações profissionais na câmara

baixa do Parlamento misto. Esta proposta foi acatada no estágio inicial do

trabalho da Constituinte, tendo recebido apoio da bancada dos empregados, à

exceção de um grupo de quatro de seus deputados mais à esquerda, intitulado

minoria proletária. Apoiaram-na também os funcionários públicos e o chamado

“Bloco do Norte”, conjunto de deputados do Norte-Nordeste do país.

O sucesso da proposta do Clube Três de Outubro levou seus antagonistas à

formulação de uma alternativa capaz de reverter a tendência pelo modelo das

profissões afins. A reação veio da bancada dos empregadores, com exceção dos

industriais do CIESP-FIESP. O modelo proposto foi a “representação por ramos

da atividade econômica”. Sem romper com a função deliberativa e parlamentar, e

com sufrágio indireto, ela estabeleceu uma espécie de meio-termo entre as

propostas “de classes” e “de profissões afins”. Definiu quatro categorias em que

as entidades seriam reunidas para fins eleitorais, correspondentes a amplos setores

da atividade econômica: lavoura e agropecuária; indústria; comércio e transportes

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(divididas paritariamente entre patrões e empregados); e profissões liberais e

funcionários públicos.

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Capítulo 8. Da natureza autoritária de Comissões de Anteprojeto e a inversão liberal da Subcomissão do Itamaraty

Muitas vezes, em sua trajetória constitucional, o Brasil conheceu a criação,

pelo Poder Executivo, de grupos aos quais foi entregue a tarefa de elaborar

anteprojetos para orientar os trabalhos de produção das Constituições. A primeira

foi a dissolução da Assembleia Constituinte em novembro de 1823 pelo

Imperador Pedro I, o qual determinou, em seguida, que o Conselho de Estado

preparasse a Constituição. Para equalizar o gesto autoritário com as demandas que

caracterizavam o liberalismo do momento, prometeu que a Constituição nova, em

relação ao projeto anterior, de Antônio Carlos, seria “duplicadamente liberal”.

O Conselho de Estado, criado em 13 de novembro de 1823, era composto

de seis ministros: o do Império, primeiramente Vilela Barbosa, depois Araújo

Lima, depois João Severino da Costa; o de Estrangeiros, Carvalho e Melo; o da

Justiça ,Clemente Ferreira França; o da Fazenda, Sebastião Luís Tinoco, depois o

Marquês de Maricá; o da Guerra, José de Oliveira Barbosa, depois Silveira

Mendonça; e o da Marinha, Pedro José da Costa Barros, depois Vilela Barbosa; e

de mais quatro membros: o Barão de Santo Amaro, Antônio Luís Pereira da

Cunha, Manuel Jacinto Pereira da Gama e José Joaquim Carneiro de Campos, a

quem se atribuiu a maior parcela da elaboração do texto.

Afirma-se que o trabalho final era mais bem articulado, apresentava mais

metodicamente as matérias e “repetiu, muitíssimas vezes, o da Assembleia

dissolvida”342

. Disto dera conta o próprio Antônio Carlos, principal autor do

Projeto da Constituinte dissolvida: “Os Senhores Conselheiros de Estado, que

entraram a fazer a Constituição, não fizeram senão inserir poder moderador,

elemento federativo, colocar alguns artigos diferentemente e nos mais copiaram

meu Projeto.”343

342

SOUSA, Otávio Tarquínio de. A vida de D. Pedro I. Rio de Janeiro: José Olympio Editores,

1972, t. 1, p. 152. 343

Sessão de 12 de junho de 1841. In Grandes discursos. Brasília: Instituto Tancredo Neves e

Fundação Freidrich Neumann, jan./mar., 1988, p. 7. Apud. AZEVEDO, José Afonso de Mendonça

de. Elaborando a Constituição Nacional. Op. cit. p.19.

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A obra de Antônio Carlos “recolhera ou compilara o essencial das

Constituições do mesmo gênero, e copiá-la simplificava o esforço dos dez homens

empenhados em acatar depressa”344

. E depressa foi concluída a tarefa que,

iniciada em 13 de novembro de 1823, terminou apenas 28 dias depois, em 11 de

dezembro do mesmo ano. A publicação do texto final, em 20 de dezembro,

revelava no título a participação do Monarca no trabalho: “Projeto de Constituição

para o Império do Brasil organizado em Conselho de Estado sobre as bases

apresentadas por S. M. I. o Sr. D. Pedro I, Imperador Constitucional e Defensor

Perpétuo do Brasil”.

A segunda ocasião deu-se com a instalação da República. Chefe do

Governo Provisório, o Marechal Deodoro, por decreto de 3 de dezembro de 1889,

constituiu uma comissão de cinco membros para elaborar o projeto da nova

Constituição. Agenor de Roure, em livro que detalharia o trabalho da Assembleia

Constituinte, eleita em 15 de setembro de 1890, diria que, assim, o Governo

Provisório dava “prova de lealdade para com a Nação e do seu desinteresse”345

.

Saldanha Marinho, Antônio Luís Santos Werneck, Américo Brasiliense de

Almeida Melo, José Antônio Pedreira de Magalhães Castro e Rangel Pestana

integravam o grupo, sob a presidência do primeiro. O resultado do esforço – um

Projeto “baseado nas Constituições americana e argentina, com algumas ideias da

Suíça”346

– foi apresentado em 30 de maio de 1890 e, submetido à revisão de Rui

Barbosa, publicado em 22 de junho.

O processo decisório da Assembleia Nacional constituinte de 1946,

embora não se tenha pautado exatamente por um anteprojeto, desenvolveu-se

bastante concentrado numa “comissão de elaboração do texto constitucional”,

com poderes muito acentuados em comparação com as comissões temáticas. Em

1946, a Comissão de Constituição praticamente elaborou a maior parte da

Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil.

Após os três atos institucionais e as quinze emendas que desfiguraram a

Constituição de 1946, o Presidente Castelo Branco julgou ser o caso de, em 1964,

344

SOUSA, Otávio Tarquínio de. A vida de D. Pedro I. Op. cit. p. 152. 345

ROURE, Agenor de. A Constituinte Republicana. Brasília: Senado Federal, 1979, p. 1. 346

ROURE, Agenor de. A Constituinte Republicana. Op. cit. p. 56.

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institucionalizar “ideais e princípios” do movimento civil-militar de março. Para

fazê-lo, designou uma Comissão encarregada de elaborar o texto que se tornaria a

Constituição de 1967. Compuseram a Comissão Levi Carneiro, Oronsimbo

Nonato, Miguel Seabra Fagundes e Themístocles Brandão. Seabra se afastaria do

grupo, por entender não se tratar de substituir a Constituição de 1946, senão de

emendá-la. O trabalho final, elaborado pelos membros remanescentes, e revisto e

modificado pelo Conselho de Segurança Nacional, seguiu para o Congresso

Nacional, onde foi duramente criticado por Afonso Arinos. Como é sabido, o

texto foi promulgado, sem alterações, em janeiro de 1967, passando a ter vigência

em março daquele ano347

.

A chamada sexta República, fixada pela Constituição de 1988, teve seu

início com a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, instituída pelo

Decreto no 91.450, de 10 de julho de 1985. Ao contrário da de 1967, foi

propriamente uma comissão para elaboração de anteprojeto de constituição.

Segundo o então Presidente José Sarney, utilizando-se da imagem que o PMDB

jamais abandonaria, a Comissão seria “uma ponte entre a gente brasileira e os

representantes que ela elegerá”, “uma arena de discussão livre e informal das

razões nacionais, submetendo ao debate teses básicas quanto ao Estado, à

Sociedade e à Nação”. Presidida por Afonso Arinos, a Comissão foi composta por

cinquenta membros e teve seu Anteprojeto publicado no Diário Oficial de 26 de

setembro de 1986. Seu texto, no entanto, não seria enviado oficialmente ao

Congresso. A justificativa do Planalto era de que o Presidente decidira não

encampar o Anteprojeto, “nem mesmo a título de sugestões ao constituinte”. A

Assembleia era, portanto, “livre e soberana para elaborar seu próprio projeto” e o

Executivo não poderia “interferir nos trabalhos do legislativo”.348

Destacou-se da apresentação cronológica o trabalho da Subcomissão do

Itamaraty, que existiu entre 11 de novembro de 1932 e 5 de maio de 1933, em

razão de se tratar do objeto da presente investigação.

347

FERREIRA, Marcelo Costa. “Os Processos Constituintes de 1946 e 1988 e a definição do papel

do Congresso Nacional na Política Externa Brasileira”. Revista brasileira de política

internacional. Brasília , v. 53, n. 2, p. 23-48, 2010. 348

PRADO, Nei. Os notáveis erros dos notáveis. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.1.

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Em 14 de maio de 1932, Vargas baixou o Decreto no 21.402, o qual fixou

o dia 3 de maio de 1933 para a realização das eleições da Assembleia Constituinte

e, no mesmo ato, criou uma Comissão para elaboração do Anteprojeto da

Constituição. Pouco tempo depois, em 9 de julho de 1932, eclodiria a chamada

Revolução Constitucionalista, capitaneada pela oposição paulista ao Governo

Provisório, cuja principal bandeira era a da constitucionalização do Brasil.

Assim, decorridos dois anos de Governo Provisório, uma suposta

desconfiança quanto à intenção deste de convocar uma constituinte teria sido o

motivo da eclosão do movimento contrarrevolucionário de São Paulo. Seu

objetivo imediato seria, portanto, a constitucionalização do país. Por muito tempo,

esse objetivo foi confirmado por boa parte dos autores que se dedicaram ao

período349

. Entretanto, há de se considerar que o levante de julho de 1932 é

posterior ao decreto do governo, de maio daquele ano, que fixara para maio de

1933 a Constituinte e recrutara o grupo de juristas encarregados de elaborar seu

anteprojeto.

Nesse sentido, “não foi nem uma revolução, nem foi constitucionalista”350

.

O levante paulista, ao contrário do que proclamaram seus líderes, não teria sido

um impulso sincero pela instauração do regime constitucional, mas uma espécie

de explosão de “ressentimentos políticos [...] que, de certa forma, veio a retardar o

processo de integração do país no regime constitucional”351

.

A luta pela reconstitucionalização assumia, para o movimento paulista,

uma plataforma para recuperar a autonomia político administrativa do estado. O

projeto modelado pelo Partido Democrático de São Paulo perdia legitimidade, na

medida em que identificava as demandas estaduais com uma plataforma nacional

que restaurava os restritos interesses de velhos oligarcas, excluídos do poder após

349

BRITO, Lemos. A nova Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Jacinto, 1934. p. 52-6;

BELLO, José Maria. História da República. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972. p.

309; SOUZA, Nelson Oscar de. “Oliveira Vianna e a Constituição de 1934”. Revista Direito e

Justiça. Porto Alegre: PUC, (3):93, 1980; GOMES, Angela M. de Castro et alii. “Confronto e

compromisso no processo de constitucionalização (1930-1935)”. In: FAUSTO, Boris (editor).

História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1981, v. 3. p. 19. 350

AMARAL PEIXOTO, Alzira Vargas de. Getulio Vargas, meu pai. Porto Alegre: Globo, 1960.

p. 54. 351

MELO FRANCO, Afonso Arinos. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense,

1968. v. 2. p. 176.

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a Revolução, e dos federalistas liberais, voltados para o separatismo regionalista

ou para a supremacia econômica do estado mais rico da União352

.

De fato, a mais bem-sucedida obra da chamada Revolução

Constitucionalista foi a de obstar o início dos trabalhos da Comissão encarregada

de dar início ao processo de institucionalização constitucional da nova ordem. Um

novo decreto, no 22.040, de 1

o de novembro de 1932, passou a regular o trabalho

do grupo. A partir de então, o Ministro da Justiça, Francisco Antunes Maciel

Júnior, nomeado presidente da Comissão, poderia nomear, para formar um Projeto

de Constituição, que servisse de base às deliberações do plenário, uma

Subcomissão composta de um terço dos membros da Comissão, compreendidos,

obrigatoriamente, nesse número os Ministros de Estado a ela presentes.

O Presidente da Comissão original, Ministro da Justiça Antunes Maciel

não presidiria a Subcomissão, tendo designado para tanto o Ministro das Relações

Exteriores Afrânio de Melo Franco. Os demais ministros que a compuseram

foram Osvaldo Aranha, da Fazenda e José Américo de Almeida, da Viação. A

Subcomissão foi composta, ainda, por Agenor de Roure, Antônio Carlos, Artur

Ribeiro, Assis Brasil, Carlos Maximiliano, Castro Nunes, o General Góis

Monteiro, João Mangabeira, Oliveira Vianna, Prudente de Morais Filho e

Themístocles Cavalcante. Com o posterior afastamento de Artur Ribeiro, José

Américo e Oliveira Vianna, passaram a compor a Subcomissão Castro Nunes e

Solano da Cunha. As reuniões, inicialmente na casa de Melo Franco, se fizeram,

depois, no Palácio do Itamaraty, daí que o grupo se denominasse “Subcomissão

do Itamaraty”. O resultado de seu trabalho, após 51 sessões, foi publicado no

Diário Oficial.353

Na Subcomissão do Itamaraty, aparecem as primeiras tensões entre

352

WOLKMER, Antonio Carlos. “A questão dos direitos sociais na Comissão do Itamaraty”.

Revista de Ciência Política. Rio de Janeiro, 27(3):45:58, set/dez, 1984. p. 47. 353

Ainda em 1933, suas atas foram transcritas no livro de José Afonso de Mendonça de Azevedo,

relançado apenas em 2004, em edição fac-similar, pelo Senado Federal. O volume original vinha

acompanhado dos textos das Constituições alemã, americana, argentina, uruguaia e mexicana, bem

como do Código de Direito Internacional Privado e da Constituição de 1891, com a reforma de

1826, todos suprimidos na edição de 2004. Todas as referências às sessões e manifestações da

Subcomissão Itamaraty referem- se à compilação das atas de 2004, referência que fica desde logo

mencionada, consta da bibliografia final e não será repetida nas citações seguintes, onde se fará

constar apenas a menção ao orador, à sessão e à página correspondente. AZEVEDO, José Afonso

de Mendonça de. Elaborando a Constituição Nacional. Belo Horizonte, [1933] 2004.

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democratas liberais e elementos mais críticos, influenciadas pelo corporativismo e

pelos modelos fascistizantes, ou ligadas ao socialismo, como no caso de João

Mangabeira. Ao oferecer um panorama das inclinações ideológicas principais, a

descrição dos personagens que compuseram a Subcomissão é um ponto de partida

para problematizar seu caráter autoritário. A começar pelo fato de que estiveram

ali representadas ideias de difícil conciliação. A Subcomissão teria sido

“um verdadeiro microcosmo do panorama ideológico e político do momento,

incluindo alguns dos principais líderes políticos da Revolução de 30 – como

Osvaldo Aranha, José Américo e o General Gois Monteiro –, juristas da tradição

liberal da ‘República Velha’ – como Carlos Maximiliano –, e defensores do

autoritarismo e do corporativismo, como Oliveira Vianna”354

.

De fato, de maneira geral, os membros só estiveram de acordo sobre a

necessidade de produzir uma obra de conciliação e compromisso a partir de

transações mútuas. Isto bem reflete a natureza da Revolução de 1930 como

reunião de forças heterogêneas a que se fez menção anteriormente. E, ao mesmo

tempo, de que a Revolução, a par de ter sido verdadeira ruptura institucional, não

correspondeu a um movimento de ruptura com a ordem social da República

Velha. Alterá-la seria a obra das reformas do Governo Provisório (para os

tenentes) e, posteriormente, da Constituição. Na Subcomissão, atuou-se sob a

convicção de que “uma Constituição, salvo a hipótese da vitória de uma

revolução social, será sempre uma fórmula de equilíbrio e transação entre ideias,

correntes e interesses, que atuam num meio social determinado”355

.

A Subcomissão se reuniu por 51 sessões, entre as datas de instalação –

novembro de 1932 – e de encerramento – maio de 1933. No último mês de

trabalho, processaram-se modificações entre os seus membros, determinadas pela

saída de Artur Ribeiro, José Américo e Oliveira Vianna, e a substituição por

outros, como Castro Nunes e Solano da Cunha.

A primeira reunião da Subcomissão ocorreu em 11 de novembro de 1932,

quando se debateu o método de trabalho. Convergindo na proposta de

354

KUGELMAS, Eduardo. “A Ordem Econômica na Constituição Brasileira de 1934”. In: ______

Processo constituinte; a ordem econômica e social. São Paulo: Fundação do Desenvolvimento

Administrativo - FUNDAP, 1987. p. 31. 355

MANGABEIRA, João. Em torno da Constituição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1934. pp.

9/10.

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apresentação de projetos parciais pelos membros e a indicação de Carlos

Maximiliano para relatoria geral, a sessão se encerrou. Na reunião seguinte,

distribuíram-se os capítulos ou matérias constitucionais da seguinte forma:

Conselho Nacional: Mello Franco, José Américo e Prudente de Morais; Família,

Educação, Ordem Econômica e Social: José Américo, João Mangabeira e Oliveira

Vianna; Defesa Nacional, Organização das Forças Armadas e Policiais dos

Estados: Góis Monteiro; Poder Judiciário: Arthur Ribeiro e Antônio Carlos;

Política Econômica e Financeira: Antônio Carlos, Agenor de Roure e Oswaldo

Aranha; Direitos e deveres fundamentais e cidadania: Mello Franco e

Themístocles Cavalcanti356

. A partir daí, seguiram-se as sessões com os debates

sobre os temas, conforme as propostas dos relatores parciais.

Metodologicamente, a Subcomissão utilizou-se, inicialmente, do modelo

de trabalho da Carta de 1891. Contudo, como esta Constituição não incorporava

as questões interpeladas pelo constitucionalismo de então, depois de “terminada a

parte contida no antigo Código Republicano”357

, os integrantes da Subcomissão

relataram capítulos especiais, como as formas de intervenção do Estado na vida

econômica e social e, como se verá, na política, através da representação

profissional.

As discussões centram-se sobre os dispositivos e institutos mais concretos

que produziriam a nova Constituição, de modo que as opiniões gerais sobre o

modelo de Estado e sobre o novo direito público que se delineava ficam

dissolvidos antes de aparecerem como discursos mais gerais, como acontece na

Assembleia Constituinte. A premissa fundamental era a de que se estavam

reunindo para buscar um consenso, um compromisso, uma solução que

representasse um acordo entre as diversas convicções ideológicas dos membros da

Subcomissão, especialmente entre “o liberalismo dos velhos juristas republicanos

e o autoritarismo modernizador dos novos e impetuosos revolucionários”358

.

356

Cf. 2a Sessão (Subcomissão Itamaraty), p. 15. 357

WOLKMER, Antonio Carlos. “A questão dos direitos sociais na Comissão do Itamaraty”. Op.

cit. p. 20. 358

WOLKMER, Antonio Carlos. “A questão dos direitos sociais na Comissão do Itamaraty”. Op.

cit. p. 48.

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Quanto ao desenvolvimento dos inúmeros debates e às divergências

doutrinárias entre o velho liberalismo e o autoritarismo modernizador elucidou

Afonso Arinos:

"Percorrendo-se as opiniões manifestadas nos debates, nota-se a existência de uma

espécie de inclinação fascistizante nos espíritos revolucionários mais jovens. Góis

Monteiro exprimia um nacionalismo militarista, desconfiado das tradições liberais e

da técnica da democracia clássica, que, de resto, conhecia muito pela rama. Oliveira

Vianna - grande figura intelectual - tinha as convicções sociologicamente

aristocráticas e autoritárias, que compendia em toda a sua obra de discípulo dileto de

Alberto Torres. José América e Osvaldo Aranha flutuavam nas indecisas aspirações

de uma justiça social e de uma· organização estatal influenciadas pelos novos

modelos ditatoriais da Europa. João Mangabeira era o ilustre jurista e o insigne

orador de sempre; como sempre brilhante e impetuoso, cedendo, às vezes, às

perigosas impressões de momento, que vestia com as roupagens sedutoras da sua

dialética e de sua contraditória cultura, ao mesmo tempo liberal, à maneira de Rui, e

esquerdista à maneira da filosofia marxista. Surpreendente é o equilíbrio de Antônio

Carlos. O que faltava ao Andrada em preparação intelectual, sobrava em finura,

sensatez e experiência (...) Themístocles Cavalcanti dava, então, os primeiros passos

na carreira de cultor do direito público, em que, depois, se notabilizou. Aquele tempo

suas opiniões pareciam fortemente coloridas da influência autoritária a que há pouco

me referi. O esforço de Melo Franco, quase sempre bem-sucedido, era o de coordenar

os debates, esclarecer as obscuridades, contornar, habilmente, os choques, afastar,

quando necessário, os desatinos, aceitar as inovações úteis ou inevitáveis, reunir tudo,

enfim, no notável projeto que pôde ser submetido à Constituinte."359

Dessa forma, os principais debates se deram em torno da organização

judiciária, da supressão do Senado e criação do Conselho Supremo, da

responsabilização do Presidente da República e dos ministros de Estado, da

Segurança Nacional e do estado de sítio, e do federalismo versus centralização

política e, finalmente, da representação profissional.

As principais conclusões consolidadas no anteprojeto, que contou com 129

artigos, foram

“supressão do Senado e criação do Conselho Supremo; instituição do legislativo

formado de uma câmara única, a Assembleia Nacional; eleições diretas para o

Legislativo; participação dos ministros no Legislativo; rejeição da representação

de classes, consagração da legislação trabalhista e da concernente à

nacionalização e proteção da economia; legislação sobre educação, saúde,

funcionalismo e família, e legislação sobre segurança nacional”360

.

359

MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Um estadista da República. Op. cit. p. 178-9.; CARONE,

Edgar. A República Nova (1930-1937). Rio de Janeiro, DifeI, 1976. p. 175; MORAES FILHO,

Evaristo de. “A experiência brasileira da representação classista na Constituição de 1934”. Carta

Mensal, Rio de Janeiro, Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, (258):13-5,

1976. 360

GOMES, Ângela de Castro. Confronto e Compromisso no Processo de Constitucionalização

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253

De modo geral, os membros da Subcomissão vinculam-se ao resultado

final361

. Embora derrotado no tema da representação profissional, João

Mangabeira foi o principal defensor do anteprojeto, inclusive naquilo que ele teve

de eclético. Assim, afirmou:

“Os que acusam o anteprojeto de não haver adotado integralmente uma doutrina,

e, procurando conciliar divergências, ter caído no erro do ecletismo, realçam,

exatamente nisso a sua virtude, ou o seu acerto, de fugir aos extremismos de

qualquer natureza, conservando-se no meio termo da harmonização dos

interesses, condição essencial a qualquer lei de grande porte (...). Constituição

sem ecletismo, expressão total e absoluta de um sistema, somente será possível,

quando, após uma revolução social triunfante, uma grande personalidade impuser

ao seu partido vitorioso o predomínio de sua inteligência, seu prestígio e sua

vontade. É o caso da Constituição Soviética. Não era, nem poderia ser, o caso da

revolução brasileira de 930, em cujo leito desaguavam correntes partidárias de

pontos opostos, em cujo bojo se abrigavam os interesses mais antagônicos, em

cujas fileiras se atropelavam as ideias mais adversas, numa escala cromática, que

se distendia do vermelho das reivindicações marxistas ao negro da reação

clerical”362

O trecho acima explicita o desafio constitucional brasileiro, qual seja, o de

promover um acordo mínimo entre as diferentes linhas de pensamento da época,

de modo que o resultado, ainda que eclético, conseguisse servir como

compromisso para o que seria o governo e o país futuros. Era esse o esforço que

pretendia o anteprojeto elaborado como ponto de partida para os trabalhos da

Assembleia Constituinte, que a partir das posições dos juristas membros da

Subcomissão, apresenta-se como a compilação das ideias em voga na época sobre

a Constituição em seu formato social. Consequentemente, dificilmente o resultado

seria um anteprojeto passível de ser qualificado como “escorreito e íntegro” em

espelhar tal ou qual doutrina, como fora classificada a Constituição de 1891. Pelo

contrário, acabou sendo uma “composição eclética”363

antes de tudo, ainda que

disputada pelas diferentes tendências, que querem ver nele um texto liberal ou

(1930-1935). In: FAUSTO, Boris (dir.). História Geral da Civilização Brasileira - tomo III: O

Brasil Republicano. 3a ed. ed. São Paulo: Difel, v. 3 (sociedade e política, 1930-1964), 1986. pp.

22/23. 361

O General Góis Monteiro assume uma postura dúbia, explicitando novamente sua posição ao

afirmar: “Julga admirável o trabalho dos companheiros de comissão naquilo que pode apreender

e julgar, mas, doutrinariamente, como se sabe, é contra o Estado como foi previsto no projeto.

Como disse o sr. João Mangabeira, não é pelo regime democrático. Mais tarde, os responsáveis

pelos destinos do Brasil hão de se convencer de que ainda é cedo para entrarmos nesse regime,

tal como foi instituído em 1889 e que nós, de certa maneira, mantivemos”, in 51a Sessão

(Subcomissão Itamaraty), p. 1024. 362

MANGABEIRA, João. Em torno da Constituição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1934. pp,

10 e 13. 363

Ibidem.

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socialista, a depender de quem o avalia.

A natureza autoritária da Subcomissão do Itamaraty se evidencia no

procedimento que sucedeu o seu encerramento. Após a 51a Sessão, em 5 de maio

de 1933, o Anteprojeto foi enviado ao Governo Provisório, para eventual revisão

e posterior encaminhamento à Assembleia Nacional Constituinte.

Foi tal natureza que recebeu a atenção da bibliografia que até o presente

momento se debruçou sobre a Subcomissão. Escolheu-se especificar aspectos da

Subcomissão que a caracterizam como uma “estratégia do intervencionismo

bismarquiano, qual seja, a outorga e oficialidade legal mediante os parâmetros de

um anteprojeto governamental, da nova política econômico-social”364

. Inscrever-

se-ia nesta “estratégia” o tema da representação.

A Subcomissão do Itamaraty definiu pela unicameralidade da organização

do Legislativo; suprimia-se o Senado e criava-se, em seu lugar, um novo órgão de

consulta e deliberação dos três poderes – o Conselho Supremo da República. Para

as escolhas pertinentes ao Poder Executivo, o projeto, idealizado por Melo

Franco, posteriormente abolido na Constituinte de 1933, inspirou-se na

experiência da Carta espanhola de 1931. Decidiu-se pela eleição indireta do

presidente da República pelo escrutínio majoritário de uma assembleia nacional, e

pela emenda que fixava a necessidade do comparecimento dos ministros de

Estado perante o Legislativo. Assim, dos debates em torno da extinção do

bicameralismo e da proporcionalidade da representação nacional, o Brasil se

avizinhou das propostas centralizadoras que intentaram modificar os tradicionais

critérios de favorecimento aos grandes estados, com a eventual exclusão dos

blocos periféricos. Foi sob o ângulo desta temática que se desenvolveu uma das

discussões mais conhecidas e relevantes de todo o anteprojeto: a representação

profissional.

É costume tratá-la como “nada mais (era) do que uma pedra insubstituível

no jogo das suas recônditas intenções"365

. Receando contra si a força das

oligarquias de Minas Gerais e São Paulo, Vargas estaria procurando

364

WOLKMER, Antonio Carlos. “A questão dos direitos sociais na Comissão do Itamaraty”. Op.

cit. p. 49. 365

Ibidem.

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contrabalançar a situação, enfraquecendo as grandes bancadas estaduais eleitas

tradicionalmente pela introdução paralela de um novo poder, o da representação

profissional: "era a formação de um grupo classista, praticamente nomeado pelo

presidente, e mais numeroso do que qualquer bancada estadual".366

Com isto,

constituía-se, para o chefe do Governo Provisório, um meio eficaz de neutralizar a

ação dos blocos políticos dos estados hegemônicos.

Themístocles Cavalcanti, ideologicamente identificado com os tenentes e

uma das forças mais ortodoxas da Subcomissão, havia também proposto a

substituição da Câmara política por uma classista. Sua posição foi lida como a de

um ator que, incluindo-se entre os adeptos do unicameralismo, justificava sua

posição deixando antever a "descrença no modelo liberal-democrático de

representação", bem como sua filiação a "um modelo em bases mais

corporativas"367

, embora ele mesmo apontasse que estava confiante na

possibilidade de um regime misto de transição e não mencionasse o

corporativismo:

"Se eu tivesse de dar o meu voto, sem atender a outras considerações que não as

de caráter puramente ideológico, opinaria por uma pequena assembléia, técnica,

profissional, organizada por meio de representação de classes. Mas bem

compreendo que estamos em um período de transição entre o sistema

individualista-democrático e um regime novo absorvido por preocupações sociais

e cuja estrutura política tem um caráter eminentemente prático, que não permite

ilusões a respeito da eficácia dos grandes parlamentos constituídos pelo sufrágio

universal. (...) temos de aceitar um regime misto, de transição, que acompanhe a

revolução sem desprestigiar interesses ainda predominantes. Por isso, transigindo

diante de tais imperativos, voto por uma assembléia só, com dupla representação,

uma política e outra de classe, com funções conjugadas e número reduzido e

limitado de membros."368

O depoimento de Themístocles Cavalcanti é defendido e aceito tanto por

João Mangabeira quanto por Osvaldo Aranha. Este último, inclusive, em março

de 1933 explicitava a representação profissional "como indispensável à

organização geral do país, trazendo um novo elemento integrador do conjunto,

para dirigir e formar nosso governo e nossa ação geral". Por fim, após sucessivos

debates, não obstante todo o esforço de Vargas e de seu ministro Antunes Maciel,

366

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República Op. cit. p. 1050-1. 367

BOMENY, Helena. A estratégia da conciliação: Minas Gerais e a abertura política dos anos 30.

In: GOMES, Ângela de Castro. et a1ii. Regionalismo e centralização política; partidos e

Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. p. 209. 368

Idem.

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o projeto da representação profissional é rejeitado, voltando apenas na

Constituinte, pelas mãos de Vargas, que se fundamentou na previsão das

disposições transitórias do Código Eleitoral de 1932.

As análises dos votos, em que pese ao papel histórico, restringem-se a

vinculá-los aos personagens. Assim, quem votou pela representação profissional o

fez em razão de sua proximidade com Vargas ou com os tenentes. Do outro lado

restariam os liberais “verdadeiros”: defensores da tradicional autonomia

federalista, tais como Afrânio de Melo Franco, Antônio Carlos, Carlos

Maximiliano, Prudente de Morais, Agenor de Roure e Artur Ribeiro. Não

obstante, como se verá, ao votarem contra a representação profissional e por uma

Assembleia Legislativa concebida como resultado de eleições realizadas pelo voto

secreto, direto e universal, estes atores foram verdadeiros conservadores369

do

modo elitista do estadualismo oligárquico da Primeira República.

Em regra, os favoráveis à representação classista advogavam um projeto

de centralização política e um amplo intervencionismo estatal no âmbito da ordem

econômico-social: Themístocles Cavalcanti, João Mangabeira, Osvaldo Aranha,

José Américo e Góis Monteiro. Por outro lado, e curiosamente, não obstante

muitas de suas posições, Oliveira Vianna votou contra a representação

profissional.

O tema da representação profissional é anterior às discussões da

Subcomissão do Itamaraty. Surge na vida institucional brasileira com o Código

Eleitoral que, desde 24 de fevereiro de 1932, já o impunha no art. 142 de suas

Disposições Transitórias: “No decreto em que convocar os eleitores para a eleição

dos representantes à Constituinte, o Governo determinará o número de

representantes nacionais que a cada estado caiba eleger, bem como o modo e as

condições de representação das associações profissionais.” A institucionalização

da representação profissional foi operada, portanto, por um dispositivo normativo

que se inscreve entre os atos do Governo Provisório no sentido de realizar a

legalização do país após a Revolução.

369

WOLKMER, Antonio Carlos. “A questão dos direitos sociais na Comissão do Itamaraty”. Op.

cit. p. 50.

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257

Entretanto, a redação citada não foi obra do grupo incumbido da

elaboração do Código, mas de um ato discricionário do chefe do Governo

Provisório. Assis Brasil, Mauricio Cardoso, Mário Pinto Serva e João da Rocha

Cabral haviam recusado, em ambos os anteprojetos que produziram, acolher a

figura da representação profissional. O texto final, que incluía a previsão da

representação, foi editado por determinação de Getúlio Vargas, com o argumento

de que, com isto, se contrabalançaria “as duas mais poderosas organizações

políticas – os Estados de São Paulo e Minas Gerais”.370

Assim, a primeira

aparição institucional da representação profissional no Brasil surge como medida

do Governo Provisório, claramente inscrita na tradição da modernização

conservadora.

Pretendia-se, com o Código Eleitoral, modernizar a representação política

segundo a orientação da crença liberal de que a correspondência entre a vontade

daquele que delega a soberania e aquele que age em seu nome será tão perfeita

quanto melhor for o procedimento que a realiza. A forma da delegação seria o que

aproximaria representantes de representados. A proposta da representação

profissional, ao contrário, visava a incorporar à arena de decisão representantes

substantivamente mais próximos da vontade que representavam. Manter-se-ia o

vínculo com a crença no procedimento, inserindo nele um elemento substantivo.

Este, por seu turno, contrariaria a forma tradicional segundo a qual se concebia o

sucesso da representação política encerrado no aprimoramento do procedimento.

A quem defendesse as formas liberais tradicionais da representação era natural

recusar a representação profissional.

Ao mesmo tempo, esta tensão teórica se atualizava no plano material dos

interesses. À defesa de instituições liberais correspondia a intenção de preservar,

na nova ordem que estava em disputa nos anos 1930, a autonomia estadual e, com

isto, os interesses oligárquicos. Por outro lado, instituir novas formas de interação

entre o Estado e a vida política e econômica se afinava com a visão de que tal era

necessário para impedir o regresso aos vícios da República Velha e garantir a

modernização do país. Daí os debates do período se caracterizarem pela curiosa

tensão entre “liberais conservadores” e “autoritários modernizadores”.

370

COUTINHO, Lourival. O General Góis depõe. Rio de Janeiro: Edit. Coelho Branco, 1956. p.

246.

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258

O debate sobre a representação profissional na Subcomissão do Itamaraty

poderia ter resultado num meio termo entre as instituições liberais da ordem de

1891 e a ampliação do papel do Estado. Uma possiblidade de tratar da questão

social sem romper com o liberalismo. Entretanto, entendeu-se que anuir à

proposta de representação profissional significava permitir uma presença na

Assembleia Constituinte que desequilibrava a balança das disputas pela nova

ordem em favor do Governo Provisório. Para garantir à Assembleia Constituinte a

disputa por uma ordem que devolvesse às oligarquias estaduais a possiblidade de

ocuparem o Estado, os “liberais” preferiram passar um anteprojeto que manteve a

representação política tradicional e tratou da questão social através dos direitos

sociais e das instituições corporativistas antiliberais.

Como se viu, na origem, as propostas de representação das associações

profissionais como alternativa aos modelos de parlamentarismo então vigentes nas

primeiras décadas do século XX não se confundem com o corporativismo de

Estado. Este se assenta sobre a crença de que as democracias representativas

davam passagem a movimentos nocivos que podiam comprometer a ordem e era

esta, e não o Parlamento, o valor a ser preservado. A instabilidade gerada pelos

novos atores que se faziam presentes através de movimentos cuja organização

gerava cada vez mais consequências para a produção foi interpretada como crise

do modelo que lhe dava passagem, a democracia, justificando a defesa de ideias

antiliberais, como corporativismo.

O corporativismo, na sua versão clássica, tinha como ideia básica a

premissa de que a harmonia entre as classes era essencial para o funcionamento e

a estabilidade da sociedade. Esta harmonia poderia ser alcançada se os vários

grupos funcionais — sobretudo capital e trabalho — agissem guiados por uma

noção de direito recíproco, semelhante ao que teria mantido os grupos unidos na

Idade Média. As diversas correntes corporativas comungavam do mesmo

objetivo: superar o individualismo liberal, a atomização da representação política

e do mercado capitalista – que seriam os maiores responsáveis pela alienação – e

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o conflito nas sociedades modernas. Os movimentos corporativistas dos anos 20 e

30 foram reações à democracia, ao capitalismo e à revolução bolchevique371

.

Quando foi proposta por Leon Duguit, a representação profissional surgiu

para fundamentar teoricamente a experiência que, segundo ele, devia ter lugar,

não só para adequar as instituições às circunstâncias, mas para salvaguardar as

instituições liberais de seus potenciais substitutos – o socialismo e o

corporativismo, neste caso entendido como programa. E nisto a interpretação da

experiência brasileira prescinde da necessidade de uma categoria que acolha suas

especificidades, porque em nada ela se distingue da europeia. Também aqui a

representação profissional surge como tentativa de salvaguarda liberal. Entretanto,

em razão de ter sido proposta por atores alinhados, ainda que instrumentalmente,

com o Governo Provisório, foi derrotada.

371

ARAÚJO, A. M. C.; TAPIA, J. R. B. Corporativismo e Neocorporativismo: O Exame de Duas

Trajetórias. BIB, n. 32, 2 ° semestre, Rio de Janeiro, 1991. p. 5.

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Capítulo 9. Sobre os atores que derrotaram a proposta de representação profissional na Subcomissão do Itamaraty

O objetivo deste capítulo é examinar a posição adotada pelos membros da

Subcomissão do Itamaraty acerca do tema da representação profissional e coteja-

la com seus votos para a representatividade dos estados. Nem todos os membros

que compuseram a Subcomissão influenciaram nas decisões pertinentes à

representação profissional, assim como nem todos permaneceram até o final dos

trabalhos, quando foi votada a forma final dessas escolhas. Não obstante, partir-

se-á de uma exposição breve de cada um dos membros que passaram pela

Subcomissão, para viabilizar a referencia dos argumentos aos seus autores.

Francisco Antunes Maciel Júnior, natural de Pelotas, no Rio Grande do

Sul, bacharelou-se em Direito, no Rio de Janeiro. Elegeu-se Deputado Federal

pelo seu estado em 1915, pelo Partido Federalista. Voltou à Câmara em 1921,

participou ativamente da revolta de 1923 e foi um dos articuladores do Tratado de

Pedras Altas. Fez a campanha da Aliança Liberal e, com a Revolução de 1930,

integrou, como Secretário da Fazenda, o Governo Flores da Cunha, do Rio

Grande do Sul. Em novembro de 1932, foi designado Ministro da Justiça de

Vargas. Presidente da Comissão encarregada de elaborar o Anteprojeto da

Constituição, designou para este trabalho uma subcomissão, cuja direção entregou

a Afrânio de Melo Franco.

Formado em Direito, em São Paulo e, inicialmente, Promotor Público no

interior de Minas Gerais, Afrânio de Melo Franco participou da fundação da

Faculdade de Direito de Minas Gerais. Deputado Estadual em 1902, comporia, em

1906, a câmara Federal, onde, em 1915, foi Relator-Geral do Projeto de Código

Civil. Ministro da Viação de Delfim Moreira em 1918, exerceu praticamente, a

direção do Governo, naquilo que veio a se denominar “Regência Republicana”.

Delegado do Brasil em várias conferências internacionais, embaixador

permanente junto à Liga das Nações, foi, com a Revolução de 1930, designado

Ministro das Relações Exteriores, exercendo o cargo até dezembro de 1933,

quando se afastou em razão da não indicação de seu filho, Virgílio, para o

Governo de Minas Gerais, em substituição a Olegário Maciel, que falecera.

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Como presidente da Subcomissão, atuou, segundo seu filho, Afonso

Arinos, de maneira a equalizar o debate entre homens a quem “sobrava ardor

modificativo, mas faltavam cultura jurídica e experiência política”. Em seu livro,

Arinos afirma que o conhecimento a que seu pai chegara “dos segredos dos

labores da Comissão, outorgava-lhe maestria na condução técnica dos trabalhos,

quer se tratasse do encaminhamento das discussões, quer da oportunidade da

apresentação dos assuntos ou da tarefa de colher os resultados das opiniões.372

Agenor Lafaiete de Roure nasceu em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, em

1870. Formou-se em Odontologia, mas preferiu ingressar no jornalismo, tendo

sido redator e secretario do Jornal do Brasil, redator da Gazeta de Notícias, da

Tribuna e do Jornal do Comércio. Funcionário da Câmara dos Deputados, onde

chegou a secretario do Presidente e chefe da Secretaria, acompanhou, de perto, os

trabalhos da Constituinte de 1890/91 e pôde, em 1920, publicar o mais completo

estudo sobre os trabalhos daquela Assembleia.373

Serviu no Governo Epitácio

Pessoa sendo, ao final da gestão, nomeado para o Tribunal de Contas da União.

Antônio Carlos era mais um grande Andrada a integrar a política

brasileira, filho do segundo Antônio Carlos, que fundara o ramo mineiro da

família, e neto do primeiro Martim Francisco. Diplomado bacharel em Direito

pela Faculdade de São Paulo, foi, depois, Promotor Público e Juiz no interior de

Minas. Secretário de Finanças do Governo do Estado, em 1902, Prefeito de Belo

Horizonte, elegeu-se Deputado Federal em 1911, sendo reeleito em 1912 e 1915.

Ministro da Fazenda de Venceslau Brás, em 1917, voltou à Câmara e, em 1926,

passou a integrar o Senado. Após a Revolução de 1930, Antônio Carlos compôs a

Subcomissão com, segundo Arinos, surpreendente equilíbrio: “O que faltava ao

Andrada em preparação intelectual, sobrava em finura, sensatez e experiência.”

Considerava Arinos “acima da expectativa a firmeza e o acerto de muitas das suas

atitudes, na discussão de temas delicados, atitudes que ele disfarçava com um ar

de displicente bonomia”.374

Em 1933, foi eleito Deputado à Assembleia

Constituinte, a cujos trabalhos passaria a presidir.

372

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República. t. 3,p. 1408. 373

ROURE, Agenor. A Constituinte Republicana. Brasília: Senado Federal, 1979. 374

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República. t. 3,p. 1414

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Artur Ribeiro de Oliveira nasceu em 1866, em Minas Gerais. Formou-se

em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Paulo. Promotor

e Juiz em Minas, serviu, a partir de 1903, como Procurador-Geral do Estado e, em

1907, como Desembargador. Em 1923, foi nomeado para o Supremo Tribunal

Federal. É reveladora a caracterização feita por Afonso Arinos, que afirma sobre

Artur Ribeiro que se trata de “mineiro, retraído, como convém ao verdadeiro juiz

(...)”, mas que, no relatório sobre o capítulo da Organização Judiciária, “não

esquece de enfrentar virilmente a onda do militarismo pós-revolucionário e

ignorante, desencadeada contra o Supremo Tribunal e a ordem jurídica”.375

Teria

sido esta, aliás, segundo Arinos, a razão de seu afastamento, em 25 de janeiro de

1933, da Subcomissão.376

Assis Brasil, de São Gabriel, Rio Grande do Sul, tornou-se bacharel em

Direito, em 1882, pela Faculdade de São Paulo. Deputado à Assembleia de

Representantes de seu estado, em 1885 e 1887, é Enviado Extraordinário e

Ministro Plenipotenciário do Brasil na República Argentina. Eleito para a

Constituinte de 1890, quando, no final dos trabalhos, se dá a eleição de Marechal

Deodoro, protesta, votando em Prudente de Morais, e renuncia a seu mandato.

Serve, como diplomata, em Lisboa, em Washington e no México. Disputa com

Borges de Medeiros o Governo do Rio Grande do Sul. Eleito Deputado Federal

em 1927, é com a Revolução de 30, designado Ministro da Agricultura. Um dos

maiores estudiosos do processo eleitoral no País, integra, com Mário Pinto Serva

e João Cabral, Subcomissão criada por Vargas, para exame e proposição de

reformas na lei, do que resultou a edição, em 1932, do primeiro Código Eleitoral.

Outra vez, em 1931, Embaixador e Ministro do Plenipotenciário na Argentina,

afasta-se em 1932, daquelas funções e, também, do Ministério. Elegeu-se em

1933, para a Assembleia Constituinte.

Carlos Maximiliano, nascido em São Jerônimo, Rio Grande do Sul,

formou-se em Direito pela Faculdade de Belo Horizonte, em 1898. Regressando

ao seu estado, onde advogou, assumiu, em 1911, lugar na Câmara Federal,

reelegendo-se em 1912. Em 1914, no Governo de Venceslau Brás, ocupou o

Ministério da Justiça. Voltando à Câmara no final de 1918, ali ficou até 1923.

375

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República. t. 3,p. 1414-5. 376

Em carta de 29 de janeiro, retira sua renúncia, mas jamais volta ao grupo.

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Com a Revolução de 1930, pouco depois de integrar a Subcomissão do Itamaraty,

foi nomeado Consultor-Geral da República. Eleito, em 1933, para a Assembleia

Constituinte, presidiu, ali, a Comissão dos 26. Em 1934, Carlos Maximiliano foi

designado Procurador-Geral da República e, em 1936, Ministro do Supremo

Tribunal Federal.

José Castro Nunes nasceu em Campos, Rio de Janeiro, e se formou em

Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da Capital. Redator do

Correio da Manhã e de A Noite, foi, depois, advogado e Procurador dos Feitos em

Niterói. Membro do Tribunal de Contas da União, de 1938 a 1940, foi nomeado

para o Supremo Tribunal Federal, onde permaneceu até 1945. Publicou, entre

outros livros, Do Estado Federado e sua organização municipal (1920), A

jornada revisionista (1924) e Teoria e prática do Poder Judiciário (1943).

Góis Monteiro, natural de São Luís do Quitunde, Alagoas, entrou para o

Exército em 1904, na Escola Preparatória de Realengo. Transferiu-se, em 1906,

para a Escola de Guerra, em Porto Alegre. Permaneceu na capital gaúche até

1916, quando, segundo-tenente, ingressou, no Rio, em curso de Engenharia

Militar. Mais tarde, teve destacada atuação nas forças que perseguiram a Coluna

Prestes. Na Revolução de 30, Góis Monteiro foi chefe do Estado-Maior das

Forças Revolucionárias e, vitorioso o movimento, alcançou, no início de 1931, o

posto de general-de-brigada, sendo designado para comandar a 2a Região Militar,

em São Paulo. Na Subcomissão do Itamaraty, Góis Monteiro, segundo Afonso

Arinos, “exprimia um nacionalismo militarista, desconfiado das tradições liberais

e da técnica democrática clássica, que, de resto, conhecia muito pela rama”.377

Em

verdade, Góis Monteiro sentiu-se deslocado na Subcomissão, como afirmou em

diversas sessões e em um depoimento a Lourival Coutinho. “Senti-me, de certa

maneira, deplacé, não só porque fui nomeado para substituir um oficial de grande

cultura, o General Tarso Fragoso, que declinou do convite que lhe fora feito nesse

sentido, como também porque, sendo militar, só podia nela figurar pelos meus

conhecimentos profissionais, como uma espécie de consultor técnico.”378

377

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República. t. 3,p. 1409. 378

COUTINHO, Lourival. O General Góis depõe. Rio de Janeiro: Coelho Branco, 1956, p. 236.

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João Mangabeira nasceu em Salvador, onde formou-se pela Faculdade de

Direito, em 1897, quando passou a advogar em Ilhéus. A partir de 1906, foi eleito

Deputado Estadual, Prefeito de Ilhéus e Deputado Federal, posto que ocupou até o

final da Primeira República. Com a Revolução de 1930, voltou à advocacia. Na

Subcomissão do Itamaraty, foi “ao mesmo tempo, liberal à maneira de Rui e

esquerdista à maneira marxista.”379

Nas páginas do Diário Carioca, Mangabeira

publicou uma série de artigos em que fazia uma defesa vigorosa do Anteprojeto e

esclarecia os pontos, como o do sistema unicameral, do qual foi o maior defensor.

Estes textos foram depois reunidos em livro380

.

José Américo nasceu em Areia, na Paraíba. bacharelou-se, em 1908, pela

Faculdade de Direito do Recife. Foi Promotor e advogado no interior até 1911. A

partir de então, foi nomeado Procurador-Geral do Estado, e, em 1922, Consultor-

Geral. Em 1928, assumiu a Secretaria-Geral do Governo de João Pessoa. Como

Secretário de Segurança, comandou o combate a José Pereira, o revolucionário de

Princesa. Com a vitória do movimento de 1930, assumiu a presidência do estado,

sendo também designado Governador-Geral do Norte e, depois, nomeado por

Vargas Ministro da Viação e Obras Públicas. Na Subcomissão, José Américo,

participou orientado por aspirações de justiça social e de uma organização estatal

influenciada pelos modelos ditatoriais da Europa381

.

Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, no Rio de Janeiro. Bacharelou-se

em 1906, pela Faculdade Livre de Direito do estado. Escreveu em jornais, ensinou

na Faculdade de Direito de Niterói, elegeu-se para a Academia Brasileira de

Letras e publicou obras fundamentais para a interpretação da realidade brasileira,

como Populações Meridionais do Brasil (1920), Pequenos estudos de Psicologia

Social (1921), O ocaso do Império (1925), O idealismo da Constituição (1920) e

Instituições Políticas Brasileiras (1949). Com a Revolução de 1930, recebeu dos

tenentes a encomenda de um programa de ação e que supervisionasse, no

Ministério do Trabalho, recém criado, a reforma social planejada. Convidado por

Vargas para o Supremo Tribunal, recusou o convite, mas aceitou, depois, integrar

o Tribunal de Contas. No grupo que preparou o Anteprojeto, Oliveira Vianna

379

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República. t. 3,p. 1409-10. 380

MANGABEIRA, João. Em torno da Constituição. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1934. 381

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República. Op. cit. 1409.

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265

manteve posições consistentes com a sua sociologia “aristocrática” e, embora

figure entre os membros mais faltosos e não tenha permanecido na Subcomissão

até o encerramento, contribuiu consideravelmente para a derrota da proposta de

representação profissional.

Osvaldo Aranha nasceu em Alegrete, no Rio Grande do Sul, em 1894.

Formou-se em Direito no Rio de Janeiro, 1916. Dedicou-se à advocacia no

interior do seu estado. Foi Deputado Federal como substituto de Getúlio Vargas,

quando este passou a Ministro da Fazenda do Governo de Washington Luís, pasta

que passaria a ocupar após a Revolução de 1930.

Prudente de Morais Filho nasceu em Piracicaba, em são Paulo, em 1874.

Formou-se pela Faculdade Livre de Direito, do Rio de Janeiro. Foi eleito

Deputado Estadual em 1913, reeleito em 1915. Foi professor catedrático de

Direito Civil e publicou em profusão na área.

Francisco Solano Carneiro da Cunha nasceu no Cabo, Pernambuco. Em

1909 bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Recife. Em 1918, foi designado

Diretor da Caixa Econômica Federal. Foi eleito Deputado Federal em 1924,

reeleito em 1927. Integrou a Aliança Liberal e participou da Revolução de 1930,

sendo nomeado, depois, Vice-Presidente do Tribunal Especial para julgar os

crimes do regime deposto. Elegeu-se Deputado à Constituinte em 1933.

Themístocles Cavalcanti nasceu no Rio de Janeiro em 1899, onde

bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio.

Começou como advogado defendendo os cadetes e tenentes revolucionários de

1922. Foi preso em 1924. Com a vitória do movimento de 30, foi nomeado

Procurador do Tribunal Especial, já referido. Sobre a Subcomissão do Itamaraty,

publicou À margem do Anteprojeto Constitucional, em que expos sua posição

sobre os temas pertinentes ao sistema representativo382

, dos quais se tornaria uma

referência no campo do Direito Público.

Themístocles Cavalcanti, assim como Antunes Maciel, Osvaldo Aranha,

Góis Monteiro, Carlos Maximiliano, Prudente de Morais, Arthur Ribeiro, Agenor

382

AZEVEDO, José Afonso de Mendonça. Elaborando a Constituição Nacional. Op. cit. p. 20.

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de Roure e João Mangabeira estiveram presentes na 5a sessão da Subcomissão do

Itamaraty, em 28 de novembro de 1932. Tratava-se da primeira vez em que foi

interpelado o tema da representação profissional. Faltaram Assis Brasil, José

Américo, Antonio Carlos e Oliveira Vianna.

A sessão se abriu com o tema do número de Câmaras que deveriam

compor o Poder Legislativo. Na ata, indicou-se que o propósito de pôr fim à

dualidade das Câmaras já se encontrava insinuado desde a sessão anterior, quando

foram aprovados artigos das Disposições Preliminares do Anteprojeto, de autoria

de Carlos Maximiliano. Desde a sessão de abertura dos trabalhos, optara-se por

tomar como roteiro a Constituição de 1891, que previa, nos cinco capítulos da sua

Seção I, que o Poder Legislativo seria exercido pelo Congresso Nacional e que

este seria composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Assim, o primeiro

artigo do Anteprojeto à Constituição na nova República substituiria o Congresso

Nacional do sistema bicameral por uma Assembleia Nacional, cuja composição

passaria a ser o assunto das próximas sessões.

Entretanto, a questão da unicameralidade ainda seria resolvida até o final

da sessão. A ideia de que o Senado era uma instituição aristocrática e, portanto,

antidemocrática, remonta aos debates em torno da promulgação da Constituição

Espanhola de 1931. No século XX, quando o movimento na direção da

democracia parecia incancelável, o Senado teria perdido sua função.

Prudente de Morais foi o primeiro a se posicionar. Em seu voto, dialoga

com a obra de Assis Brasil, ao qual se opõe, e oferece razões pragmáticas para a

adoção do sistema unicameral:

“O meu voto no assunto não encontra, pois, embaraço que eu consideraria muito

sério, de um afirme opinião em contrário do sr. Assis Brasil. Embora sem

nenhum autoridade, faço como ele. Deixo em paz os livros, mesmo porque neste

cenáculo de doutos, seria ridículo mostrar tão barata erudição. Dos livros

lembrarei apenas a informação que eles trazem de antecedentes no sentido do

meu voto, em constituições smodernas, como as da Hespanha, da Estonia, da

Finlandia e da Yugo-Slavia. Passei pela política. Fui deputado alguns anos e

assisti se desenrolarem as mais inconvenientes de desarrazoadas divergências

entre o Senado e a Câmara [...] que perturbam a serenidade dos trabalhos

legislativos e devem, a meu ver, ser evitados e o meio de evita-los de vez é

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instituir uma câmara só. Além disso, é indiscutível que a segunda câmara torna

muito mais morosos os trabalhos do parlamento”.383

Não obstante o voto em favor do sistema unicameral, está em Prudente de

Morais a primeira pista da relação que sua adoção guarda com o tema do

liberalismo e seu descaminho durante a República Velha. Segundo ele, em razão

da representação proporcional que caracteriza o acesso a cadeiras legiferantes na

Câmara, a supressão do Senado poderia facilitar meios para que os estados mais

expressivos cancelassem a representatividade dos estados menores. Assim, a

característica que mais consequentemente adulterou o liberalismo da República

Velha, a oligarquização do Estado, encontraria formas de atualização na nova

República. Para contornar a questão, Prudente de Morais sugere que se institua a

fixação de um número máximo de deputados por estado, determinado por lei,

“não devendo esse número, em relação a cada estado, ser inferior a quatro, nem

superior à sexta parte da totalidade dos membros da Câmara”384

.João Mangabeira

e Osvaldo Aranha acompanharam o voto e as razões de Prudente de Morais.

Carlos Maximiliano foi o primeiro a problematizar o sistema unicameral

em razão da sua composição substantiva, e não apenas numérica. Embora tenha

subscrito a supressão do sistema bicameral, indicou que permanecia atual a

necessidade de uma instituição capaz de fazer a mediação entre os interesses

durante a produção legislativa. Segundo ele, o direito público já criara tal

instituição: o Conselho Nacional. Essencialmente técnico, o conselho seria

indicado pelo Poder Executivo.

Themístocles Cavalcanti foi o segundo a problematizar a composição do

sistema unicameral.

“Si eu tivesse de dar o meu voto, sem atender a outras considerações que não as

de caráter puramente ideológico, opinaria por uma pequena Assembleia, technica,

profissional, organizada por meio da representação de classes.

Mas, bem compreendo que estamos em um período de transição, entre o systema

individualista-democratico e um regimen novo asorvido por preocupações sociaes

e cuja estrutura política tem um caracter eminentemente pratico, que não permitte

illusões a respeito da efficacia dos grandes parlamentos constituídos pelo

suffragio universal. De sorte que temos de aceitar um regimen mixto, de

383

AZEVEDO, José Afonso de Mendonça de. Elaborando a Constituição Nacional. Belo

Horizonte, [1933] 2004. p. 66. Doravante, referir-se-á à obra simplesmente por Atas. 384

Atas. p. 67.

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transição, que acompanhe a revolução sem desprezar interesses ainda

preponderantes.

Por isso, transigindo deante de taes imperativos, voto por uma Assembléa só,

com dupla representação, uma política e outra de classe, com funções conjugadas

e número reduzido e limitado de membros.”385

Ao se manifestar, Themístocles Cavalcanti apontou a relação entre o tema

da organização do Poder Legislativo e o da representação profissional. Do seu

voto, é possível deduzir as três posições disponíveis aos debatedores: o voto pelo

sistema unicameral, em favor da representação popular e com o risco da

assimetria entre os estados; o voto pelo sistema unicameral, com a mediação do

Conselho Nacional, que orquestraria a disputa política a partir de agentes

indicados pelo Poder Executivo; e, finalmente, pela forma unicameral, composta

pela representação popular e pela profissional. A última posição, de “um regimen

mixto de transição”, situa-se entre a crença na capacidade da representação

tradicional de equalizar, por meio do sufrágio universal, o rebatimento das

assimetrias da vida social sobre o jogo político e a supressão da representação

pelo voto individual, em favor da representação de coletivos formados a partir dos

interesses das categorias profissionais.

O único a se manifestar favoravelmente ao sistema bicameral a essa altura

foi Arthur Ribeiro, alegando os benefícios do trâmite por duas casas para a

elaboração das leis. Como o seu ponto fora respondido pela proposta do Conselho

Nacional, não voltou a se manifestar.

Quando o presidente, Afrânio de Melo Franco, votou pela forma

unicameral, a questão passou a versar exclusivamente sobre a composição da

Assembléa Nacional. Passa-se então, por sugestão de Osvaldo Aranha, a apreciar

os artigos subsequentes do “roteiro”, cuja redação está associada à previsão de

duas câmaras que caracterizava a Constituição de 91. Mais do que alterar as

ocorrências das expressões Congresso Nacional, Câmara dos Deputados e Senado,

por Assembleia Nacional, importava decidir a composição da mesma.

385

Atas. p. 69.

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Agenor de Roure foi o primeiro a se manifestar, afirmando ser favorável à

composição exclusiva por deputados eleitos diretamente pelo povo. A ele sucedeu

Prudente de Morais, que leu um longo voto contrário à representação profissional:

“[...] não estava em dia com o que se tem escrito e falado sobre a representação

profissional. [...] Mas não achei nada que me convencesse da superioridade de

semelhante systema ao da representação política nem da conveniência de sua

adopção entre nós, para a constituição da Assembléa Nacional, quer no seu todo,

ou em parte.

Prefiro que os profissionaes sejam eleitos como simples cidadãos, que sejam

espalhados na massa dos eleitores, sem nenhum diferenciação, e como tais, dêm

os seus votos individuaes. Todos os profissionaes poderão influir assim na

escolha da representação [...] devem, simplesmente, ser ‘cidadãos’”386

João Mangabeira votou contrariamente à representação exclusiva das

classes profissionais, a alternativa ideal segundo Themístocles Cavalcanti. Mas

entendeu que era necessário dar representatividade aos interesses coletivos das

associações profissionais. E o fez por reconhecer que o homem não é só

indivíduo, mas é também parte do grupo de cujas posições e interesses participa e

a cujas pressões está submetido.

“[...] não me animaria, no momento, a votar por uma camara inteiramente de

classes. Não é possível, porém, illudir-se a realidade. Não existem, deante do

Estado, apenas cidadãos ou indivíduos; existem também associações

profissionaes e syndicatos. É preciso reconhecer essa realidade e dar-lhe um

remedio qualquer.

[...] O Conselho Economico da França tem collaborado na legislação daquelle

grande paiz. É, porém, um Conselho Economico e só votaria por elle em último

recurso. Se deve dar às classes alguma representação, porque, si é exato que cada

um vota como individuo, sob uma modalidade, não menos certo é que quando

vota pela classe o espírito do eleitor é outro. O indivíduo tem, muitas vezes, sua

opinião pessoal, mas reunido, mesmo em família, [...] acaba arrastado pelo voto

dos demais. O mesmo ocorre nas profissões. [...] A representação de classes sob a

forma alvitrada no voto do sr. Themistocles Cavalcanti, foi levantada a primeira

vez por um dos maiores gênios que a humanidade tem visto, por um ilustre e

estupendo homem de Estado, deante de cuja projecção como estadista empalideça

sua própria glória militar – Napoleão. [...] E essa idea foi referendada, teve

contextura por um dos maiores gênios, uma das maiores glorias da humanidade,

pelo philosopho, estadista, politico, historiador, pensador, literato, Benjamin

Constant. A alliança de Napoleão e Benjamin Constant, de um grande ideologista

e de um grande homem de acção, correspondia, na realidade, a um facto

verdadeiro já no tempo de Luiz XVIII.”387

386

Atas. p. 70. 387

Atas. p. 71.

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Mangabeira entendeu pela possibilidade de que se formasse uma câmara

em que, atendendo-se às condições do país, uma quarta ou terça parte do número

dos seus membros se destinasse exclusivamente à representação de classes, que

não desceria à análise das profissões, mas que estas seriam divididas em duas, ou

no máximo, em três: a dos patrões, a dos empregados e a das profissões liberais.

A isto chama de Conselhos Técnicos, para que especialistas estivessem à mão

quando a matéria tratasse de questões operárias ou industriais. Em seguida, cria

uma correspondência entre tais conselhos, a representação profissional e a

possibilidade de que fossem ouvidas as aspirações populares: “[...] apenas uma

quarta ou uma terça parte para a representação das classes, mas que se attenda a

essa representação, uma vez que taes aspirações populares são hoje do mundo

inteiro”388

.” e para que fosse dada representatividade à dimensão coletiva da vida

social. Ao identificar a representação profissional com a possibilidade de se

fazerem ouvir as “aspirações populares”, João Mangabeira trouxe a discussão para

o centro da questão: tratava-se de democratizar o acesso à disputa na arena

política, o que a representação tradicional fracassara em fazer.

Carlos Maximiliano reage ao eloquente voto de Mangabeira com um

argumento que reclama para si uma nota de realismo. Segundo Maximiliano, o

Brasil era um pais novo, em que não havia “differença nenhuma entre as classes”.

Sabia da existência, no Rio de Janeiro, “de uma classe humilde, que parecia

organizada – a dos estivadores”389

. Mas que era dominada por um estrangeiro que

nunca fora estivador. De sorte que, franquear à representação profissional acesso

ao legislativo seria, ao mesmo tempo, dar institucionalidade a uma demanda que

não existia no Brasil e correr o risco de que essa representação fosse usurpada por

elementos estranhos ao país. Por este motivo, votou pela autonomia dos

municípios, para que a representação profissional pudesse ser experimentada nas

localidades em que as classes começassem a se esboçar como realidade.

Osvaldo Aranha aproveitou o tom realista para responder a Carlos

Maximiliano na linha de João Mangabeira. Afirmou que escolher entre a

representação “individualista” ou a “de classes” não era tarefa da Subcomissão.

Cumpria-lhe reconhecer o que já produzira efeitos benéficos e as vantagens que

388

Atas. p. 72. 389

Atas. p. 72.

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poderiam advir do aprimoramento da representação. Assim, por um lado, até

então vinha sendo assegurada ao brasileiro a expressão individual, partidária e

política da sua vontade. Cabia acrescer aos direitos do cidadão o de votar dentro

de sua classe, pois não havia indícios de que disto se pudessem colher quaisquer

prejuízos para a organização do país. Se, por um lado, as classes só haviam

começado a se esboçar em municípios como o Rio de Janeiro, por outro, são estas

mesmas experiências as responsáveis por “fazer o povo”390

. Era necessário

acolher o que se passava no litoral para que se atingisse o homem do interior. E

avançou que, na representação tradicional, as cadeiras são ocupadas por homens

escolhidos dentro de seus respectivos estados, segundo os interesses destas

localidades. Assim, quando votados os membros da Assembleia Nacional, os

eleitos seriam os deputados que melhor representassem tais interesses. Em nada

isto se distanciaria da representação orientada pelos interesses de uma classe.

Finalmente, afirma votar com a proposta de João Mangabeira, no que foi

acompanhado por Góis Monteiro.

O Presidente então se posicionou no sentido de reconhecer a atualidade do

tema da representação de classes e a presença da discussão sobre os países do

hemisfério norte. Mas indicou a conveniência de que, caso acolhida, deveria sê-lo

num sistema bicameral, cabendo a representação profissional a uma câmara “à

parte”. A esta altura, o tema já se encontrava resolvido, de modo que a

manifestação do Presidente pode ser lida como um voto em contrário à

representação profissional.

Antunes Maciel foi o próximo a se manifestar. Encontrou por bem indicar

que a representação profissional, pelo menos na composição da Assembleia

Constituinte, era uma previsão do Código Eleitoral, incluída ali por ato do Chefe

do Governo Provisório. Não está claro no relato das atas se, ao se pronunciar,

Antunes Maciel procurou alertar os membros da Subcomissão da futilidade da

discussão, que seria invariavelmente resolvida pelo governo, ou se pretendeu

pautar o debate, indicando que este deveria se ater a encontrar a melhor fórmula

para uma previsão que já estava determinada. Em todo caso, escolheu fazê-lo no

momento imediatamente posterior à intervenção do Presidente, da qual poderia

390

Atas. p. 73.

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resultar o encerramento da discussão e a consequente recusa da representação

profissional.

João Mangabeira passou então a orientar a discussão problematizando a

questão do número de deputados que comporiam a Assembleia Nacional, no que

foi acompanhado por Osvaldo Aranha, Themístocles Cavalcanti e Agenor de

Roure. Nada foi decidido e a sessão foi encerrada.

A 6a Sessão da Subcomissão do Itamaraty ocorreu em 1

o de dezembro de

1932 e começou com participações pertinentes às sessões anteriores, leituras de

atas resumidas e justificativas dos faltosos. Não consta da ata da 5a sessão, mas

João Mangabeira teria ficado incumbido de redigir uma forma conciliatória das

opiniões emitidas na sessão de 28 de novembro. Assim fixou João Mangabeira:

“Art. A Assembléa Nacional compõe-se de Deputados do Povo Brasileiro e dos

de classe, eleitos de accordo com a lei ordinária, observadas as seguintes

prescripções:

§1o Os deputados constituirão ¾ da Assembléa e serão eleitos pelo systema

proporcional e por suffragio universal, igual, directo e secreto dos maiores de 18

annos, e qualque sexo, legalmente alistados.

§2o Os deputados de classe serão eleitos separadamente, obedecidas as seguintes

condições:

I – 40% caberá à classe capitalista representada pelos patrões commerciaes,

industriaes e agrícolas; 40% à dos trabalhadores manuaes de qualquer natureza,

de serviços públicos ou empresas particulares, urbanos, ruraes, marítimos ou

aeres, artezãos ou assalariados, bem como a dos empregados agrícolas,

commerciaes, industriaes ou domésticos, contando que seu ordenado não

excedade três contos de réis mensaes; 20% à das profissões liberais,, de accordo

com a discriminaçãoo legal, nellas incluído o professorado e os technicos, ainda

quando façam parte permanente do funccionalismo publico”

A 6a sessão foi marcada pelo preparo com que se apresentaram os

membros contrários à representação profissional. Sabendo disso, o primeiro a

falar foi Osvaldo Aranha, que abriu e deu a palavra aos opositores ao chamar sua

atenção para a necessidade de que se decidisse se deveria ou não haver

representação de classe na composição da Assembleia Nacional.

Agenor de Roure pediu a palavra e leu um longo voto contrário à

representação profissional. Começou por afirmar que não se opunha à ideia,

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tomada em abstrato, mas que não acreditava que ela correspondesse à realidade

brasileira. Propôs que se começasse a experiência da representação profissional

pela forma dos conselhos, fossem Municipais, um Conselho Nacional ou outro

órgão técnico. Jamais, disse ele, na Assembleia Nacional. Fazê-lo seria ferir a

expectativa de que se afirmasse no Brasil o regime democrático, pois nele todos

os poderes deveriam emanar do povo, pelo sufrágio universal, como se fazia “nas

mais cultas e civilizadas nações do Mundo”. Não fazia sentido combinar, “dentro

da democracia, da origem popular dos poderes, do suffragio universal, e da

representação com caráter nacional e popular um parlamento, que em parte,

fique composto de homens não eleitos pelo povo brasileiro, mas por um suffragio

restricto, dentro das classes”391

. Assim, ao adotar a forma democrática, a

Subcomissão já teria automaticamente resolvido a matéria. Do contrário, seria o

caso de remover do preâmbulo do Anteprojeto já votado a palavra democracia.

O próximo a falar foi Oliveira Vianna. Acompanhou Carlos Maximiliano

na ideia de que se deveria começar a experiência da representação de classes nos

municípios. E, só depois de vê-la necessária e operante nos estados, passá-la à

Assembleia Nacional. Oliveira Vianna não guardava afinidades com a associação

entre democracia e representação popular. De sorte que, embora tenha acabado

por votar com Agenor de Roure, suas razões eram completamente outras. Seu

ponto era de que a representação de classes era impossível sem que se verificasse

a prévia organização profissional dessas mesmas classes.

A argumentação de Oliveira Vianna segue a linha de O idealismo da

Constituição, em que dispõe sobre os equívocos de supor que uma Constituição

seja capaz de operar na sociedade as transformações que seus autores idealizaram:

“[...] a organização profissional das classes não é obra que se realize por uma

simples disposição da lei, por uma decisão imperativa da Carta Constitucional. É

obra do tempo, da evolução econômica, do trabalho lento das forças sociaes e

espirituaes. Ora, nada disto está feito aqui: O Brasil é o paiz da insolidariedade e

da aus6encia do espírito de associação, e isto em tanta maneira que, mesmo as

classes poderosas e esclarecidas, como a dos plantadores de café e as dos

productores de assucar, constituindo uma verdadeira elite econômica, ainda não

se conseguiram unir de uma maneira effectiva e permanente. Se assim é para as

classes, pode-se imaginar o que não será para o resto do paiz, principalmente para

os 80% de matutos, sertanejos, gaúchos, praeieiros, etc. espalhados, como

391

Atas. p. 86.

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proprietários e como trabalhadores, por todos os nossos vastos sertões, matas e

pampas. Ordenar por um decreto que tudo isto, toda essa massa informe e

incohesa tome subitamente, forma e organização; que todo esse passado de

insolidariedade e individualismo se dissolva e desapareça e, em lugar della, surja

todo um presente de cooperação, solidariedade e espírito corporativo é

evidentemente acreditar muito no poder transfigurador das leis”392

Em absoluto Oliveira Vianna acreditava, em qualquer grau, no poder

transfigurador das leis. De fato, para ele, instituir a representação política das

profissões antes que elas estivesses previamente organizadas seria preparar um

“espectaculo enganador e especioso de uma súbita floração de pseudo-

syndicatos”, meras artificialidades que se utilizariam do direito para fins

eleitoreiros.

Não havia, portanto, falar-se em representação profissional na Assembleia

Nacional. O que mais conviria, segundo Oliveira Vianna, para resolver o

problema da participação das classes na obra do Estado seria a consagração de

Conselhos técnicos. Para sua formação, não se faria necessária a poderosa

estrutura dos sindicatos, porque o que se procuraria nos Conselhos seria uma

representação de competências, não de interesses. Nos Conselhos, os técnicos

desempenhariam atividade consultiva, colaborando na atividade estatal de forma

cooperativa, sem poder de deliberação, isto é, de decidir.

O próximo a falar foi Antonio Carlos, que concluiu contrariamente à

representação profissional, mas na linha de Agenor de Roure, isto é, porque

“queria ver o Brasil dentro da organização de uma democracia clássica, cuja

base fosse a livre e verdadeira manifestação da soberania popular”393

. Após o

seu voto, manifestaram-se Prudente de Morais e Osvaldo Aranha, que

reafirmaram os votos por eles proferidos anteriormente.

José Américo, que faltara à 5a seção, declarou-se favorável à representação

profissional. Indicou que o argumento realista de que a experiência deve começar

nos municípios era equivocado, na medida em que a experiência municipal era,

segundo ele, ausente no Brasil. No mesmo sentido, afirmou que não era próprio

aguardar a organização das profissões num país em que “nada há organizado”394

.

392

Atas. p. 87. 393

Atas, p. 92. 394

Atas. p. 96.

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Concluiu que é a ideia de representação que se deve interpelar. A observação

realista, segundo ele, constata que a experiência da representação não alcançou

mais do que os interesses de regiões e de partidos. E concluiu que o que se deve

proporcionar é a representação geral, o interesse coletivo, que seria a coordenação

de todos os interesses. Para José Américo, seria a representação de classes parte

da representação política, não o contrário, como indicado nas propostas de 1/3 ou

1/4 das cadeiras da Assembleia Nacional para a representação de classes. E, nesse

sentido, inverte o argumento de João Mangabeira, ampliando-o.

Themístocles Cavalcanti, Góis Monteiro e Carlos Maximiliano

reafirmaram seus votos e Arthur Ribeiro limitou-se a votar pela manutenção da

forma adotada na Constituição de 1891.

Passou a falar então o Presidente. Indicou apenas que sua posição,

contrária à representação de classes, era conhecida de todos. Desenvolveu a ideia

de que considerava funestas as consequências da proposta de que, numa mesma

câmara, seus membros partilhem das mesmas funções, mas cheguem a suas

cadeiras por meios diferentes.

Ao final da seção, foi declarada não aceita a representação de classes,

contra os votos de Osvaldo Aranha, José Américo, Themistocles Cavalcanti, Góis

Monteiro e João Mangabeira. O tema da representação voltaria a figurar nos

debates em mais sessões: a 13a, 19

a, 36

a, 42

a, 43

a e 45

a. Mas as discussões

repousariam exclusivamente sobre as questões pertinentes à forma do sistema

proporcional.

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Conclusão

A defesa da representação profissional feita por atores como João

Mangabeira aponta que havia uma possibilidade à esquerda para o

corporativismo. Aquelas realizadas por Osvaldo Aranha, José Américo e Góis

Monteiro podem ser remontadas a uma defesa dos interesses do Governo

Provisório na Subcomissão. É precisamente por esses motivos, que atores como

eles não foram privilegiados no trabalho que agora se conclui.

Deu-se preferência a sublinhar as escolhas de alguém como Themístocles

Cavalcanti, porque este parece ter entendido o que no presente trabalho se

procurou chamar de ambivalência. Participante do diagnóstico de que “no Brasil

não havia ambiente para a prática democrática”395

, defendeu a representação

profissional na Subcomissão do Itamaraty, supondo que “deputados eleitos pelos

grupos profissionais ao lado de deputados eleitos por sufrágio universal

permitiriam um equilíbrio político muito maior”396

. Para ele, não se tratava de

suprimir a democracia liberal até que a sociedade estivesse para ela preparada. Ao

contrário, e, sobretudo após demonstrada a influência que sofrera pela obra de

Leon Duguit, para Cavalcanti trava-se de preparar a sociedade através de

instituições liberal-democráticas atualizadas.

Cavalcanti não pode ser tido como uma presença do Governo Provisório

na Subcomissão. Não após as suas propostas de limitação do exercício do poder

político central, entre as quais a do Mandado de Segurança, cuja função é

precisamente dar ao cidadão meios legais de se opor a eventuais exageros da

ingerência do governo na vida individual. Nem por isto deixou de reconhecer a

necessidade de centralização. Longe de ser contraditória, a posição de Cavalcanti

aponta para a compreensão da ambivalência do liberalismo daquele momento,

razão pela qual entende que a inclusão da Constituição de 1934 da representação

foi um avanço do Brasil na direção da modernidade política. Não se tratava de

estabelecer na Constituição formas de um corporativismo à direita ou à esquerda.

Mas de atualizar a ordem jurídico-política brasileira.

395

Cf. Alzira Alves de ABREU et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-

1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. In: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-

republica/CAVALCANTI,%20Tem%C3%ADstocles.pdf 396

Ibidem.

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Procurou-se problematizar as teses que remontam à atividade do Estado a

fortuna da experiência política liberal brasileira, seja por ter sido ingerente

demais, em momentos em que sua ação inibiu a espontaneidade da sociedade, seja

por te sido omisso em momentos que impunham sua atuação. Começou-se por

expor o argumento segundo o qual, a atividade do Estado não é estranha ao

liberalismo, cujos atores frequentemente provocam o Estado a intervir em seu

favor. Prosseguiu-se à exposição do argumento de que a experiência liberal nasce

marcada dessa característica, a qual se escolheu tratar pelo conceito de

ambivalência.

Procurou-se investigar tal hipótese de problematização através do tema da

representação política, apontando sua matriz liberal e a atualização que sofreu

quando, no século XX, as pretensões liberais de autonomia da iniciativa societal

em face da atuação do Estado foram desafiadas por crises econômicas e pelas

pressões de atores sociais excluídos pela fórmula da “liberdade” que pautava o

acesso à disputa pelo poder político.

Recuperou-se o percurso da representação política em ambiente

republicano para, então, indicar uma oportunidade perdida no período de

reconstitucionalização da década de 1930. Neste momento, encontraram-se

disponíveis alternativas para aproveitar a experiência liberal brasileira, a qual

sempre contou com a ação do Estado, e inscrever o país no movimento maior de

atualização das expectativas liberais pelo qual passavam as nações que serviram

de metro para a apreciação do sucesso ou do fracasso da trajetória política pátria.

Apontou-se a ocasião da comissão para elaboração do Anteprojeto da

Constituição, que se reunião entre 1932 e 1933, como uma das oportunidades

privilegiadas de realizar a referida atualização. Através da proposta de

representação proporcional, ter-se-iam aberto canais de participação dos atores

que haviam se tornado progressivamente mais poderosos, porque organizados, no

mundo da produção. Com a adoção da representação profissional, ter-se-ia

ampliado a nova República, impedido o regresso à assimetria entre os estados que

caracterizara a velha, e contido o avanço da modernização exclusivamente pelo

alto que caracterizava o Brasil desde sua fundação como Estado nacional.

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Na terceira parte do trabalho, viu-se que a história das constituições

brasileiras é precedida por uma história de produção de anteprojetos cuja

finalidade é limitar a soberania das assembleias que produziriam as Constituições.

Procurou-se indicar que, quando da atuação da Subcomissão do Itamaraty, estava

em discussão não só uma nova institucionalidade para o Brasil, mas a

possibilidade de inscrever o país no movimento de atualização do projeto liberal e

que este passava pela inclusão e pela delimitação em termos democráticos das

competências da representação das associações profissionais. Finalmente, viu-se

que os membros da Subcomissão que foram veementemente contrários à proposta

foram os que reclamavam para si a defesa “autêntica” de valores liberais.

Concluiu-se que coube a eles o desperdício da oportunidade que lhes foi

franqueada.

Os membros da Subcomissão poderiam ter reconhecido representatividade

a atores historicamente deslocados da disputa por poder político. E, no mesmo

gesto, poderiam ter aproveitado a chance de reconciliar o país com sua tradição

ambivalente de liberalismo, num momento em que era este o movimento das

nações que tantas vezes lhe serviram de modelo.

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