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Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

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HistóriaAgrária

do Planalto Gaúcho1850 – 1920

2

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3

1997, Editora UNIJUÍ

Rua do Comércio, 1364

Caixa Postal 675

98700-000 – Ijuí – RS

– Brasil -

Fone: (055) 332-7100, Ramal 217

Fax: (055) 332-7977

e-mail: [email protected]

http://www.unijui.tche.br/unijui/editora/

Capa: Vilson Maurio Mattos

Ca ta lo gação na Fon te :

Biblioteca Central UNIJUÍ

Z36h Zarth, Paulo Afonso

História agrária do planalto gaúcho 1850-1920 /Paulo Afonso Zarth . I ju í : Ed. UNIJUÍ , 1997. - -208 p. -- (Coleção Ciências Sociais).

ISBN 85-85866-60-B

1.História agrária 2.Rio Grande do Sul – Históriaagrária 3.Planalto gaúcho – História agrária 4.Socieda-des agrárias I.Título II.Série.

CDU: 981:316.324.5(816.5)

316.324.5:981(816.5)

981(816.5)"1950/1920".

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4

Sumário

APRESENTAÇÃO ................................................................................... 07

INTRODUÇÃO DO TEMA ........................................................................ 08

Fontes e metodologia ............................................................................... 09

CAPÍTULO I – O PLANALTO DO RIO GRANDE DO SUL ........................ 12

A delimitação da região............................................................................. 12

A delimitação do tempo ............................................................................ 14

O brasil meridional ................................................................................... 14

O planalto ................................................................................................ 17

A fronteira política .................................................................................... 18

A fronteira agrícola ................................................................................... 22

Conclusão ............................................................................................... 25

Notas ...................................................................................................... 26

CAPÍTULO II – A APROPRIAÇÃO DA TERRA......................................... 28

O aldeamento dos indígenas ................................................................ ..... 29

A formação das estâncias ......................................................................... 32

A extensão das estâncias.......................................................................... 34

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5

O militarismo e a apropriação da terra .................................................. 37

Os ervais e as terras florestais................................ .............................. 40

A legislação agrária ............................................................................... 50

A colonização ........................................................................................ 56

O comércio de terras ............................................................................. 59

A evolução dos preços das terras ......................................................... 65

A ideologia e a mercantilização da terra ............................................... 68

Conclusão................................................................ .............................. 72

Notas...................................................................................................... 73

CAPÍTULO III – O USO DA TERRA ......................................................... 78

A estância ................................................................ .............................. 78

O auto-abastecimento da estância ........................................................ 83

A erva-mate............................................................................................ 85

A produção e o comércio da erva-mate................................................. 88

A agricultura .......................................................................................... 93

A expansão agrícola ................................ .............................................. 99

Conclusão................................................................ ............................ 106

Notas.................................................................................................... 108

CAPÍTULO IV – OS TRABALHADORES ............................................... 111

Os escravos ......................................................................................... 111

A população escrava ........................................................................... 114

As atividades dos escravos................................................................. 115

A transição........................................................................................... 118

Os peões .............................................................................................. 124

Os trabalhadores dos ervais ............................................................... 126

Os colonos ........................................................................................... 129

Conclusão................................................................ ............................ 131

Notas.................................................................................................... 132

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6

CONCLUSÃO FINAL............................................................................. 137

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS .......................... 139

ANEXO Nº 1

Relatório da Camara Municipal de Cruz Alta sobre terras

devolutas(1850) .................................................................................. 147

ANEXO Nº 2

Abaixo-assinado ao Imperador D. Pedro II .......................................... 149

ANEXO Nº 3

Artigo do vereador H. Uflacker sobre a indústria agrícola, publicado no

periódico Aurora da Serra, de Cruz Alta (1884)................................ ... 152

ANEXO Nº 4

Processo-crime contra estancieiro por morte e maus-tratos de

escravos .............................................................................................. 155

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7

Apresentação

Este trabalho é resultado dos estudos e pesquisas realizadas durante o curso de

mestrado em História na Universidade Federal Fluminense. A redação do texto foi concluída no

início do ano de 1988. Passados tantos anos de sua redação, o texto vem ao público com

pequenas modificações. Acredito que não poderia ser de outra forma, pois re-escrevê-lo

seria tirar-lhe a identidade.

A realização desse trabalho contou com a colaboração financeira da FIDENE-UNIJUl1

e da CAPES, que me concederam uma bolsa de estudos. Durante a realização do curso de

Mestrado, tive a oportunidade de contar com colegas como Raimundo Palhano, amigo

e interlocutor disposto a longas conversas acadêmicas. Foram importantes as aulas e

sugestões dos professores Nilo Bernardes e Maria Bárbara Levy (que infelizmente não estão

mais entre nós); Victor Valla, Pedro Celso Uchoa Cavalcanti, Margarida Moura, Nancy Smith

Naro, João Fragoso, Francisco Carlos Teixeira da Silva e, em especial, Maria Yedda Linhares.

Agradeço, sobretudo, ao professor orientador Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso, de quem

sempre recebi atenção, estímulos e ampla liberdade para escrever. Agradecimento especial

para a companheira Noeli Weschenfelder.

I ju í, Pr imavera de 1997

Paulo Afonso Zarth

1 Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado (FIDENE) é a instituiçãomantenedora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (IJNIJUf), com sede emIjuí, Rio Grande do Sul.

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Introdução do Tema

A questão agrária, que no momento é objeto de grandes discussões e inspiradora de

lutas, é bastante antiga, no Rio Grande do Sul e no Brasil, e somente perde sua força

nos períodos de repressão e obscuridade que esporadicamente assolam o país. Estudar o

Brasil agrário é, portanto, um trabalho sempre oportuno. Particularmente, estudamos o

processo de ocupação e apropriação da terra no planalto do Rio Grande do Sul, uma região

cuja importância econômica e política – para o período considerado –é secundária se

compararmos com as áreas de plantations. Este é um trabalho de história regional direcionado

para o estudo de um Brasil agrário de segunda classe: o Brasil sem plantation.

São muitas as publicações que tratam dos centros dinâmicos da economia

agroexportadora do país, mas são relativamente poucas as atenções para as regiões agrárias

que se desenvolvem à margem daqueles centros. Essa situação, felizmente, vem sendo

revertida com a publicação de estudos recentes, o que, certamente, permitirá, num futuro

próximo, uma síntese mais consistente da história agrária brasileira.

Tratamos aqui do planalto do Rio Grande do Sul, cujo processo efetivo de ocupação

e apropriação da terra iniciou-se nas primeiras décadas do século XIX e, cem anos mais tarde,

já estava decididamente consolidado. Esse espaço agrário, cuja economia era voltada para

o mercado interno, recebeu poucas atenções da historiografia e foi, ao longo do período,

considerado insignificante e atrasado. Mesmo os tradicionais viajantes europeus daquele

século não lhe deram importância: Arsene Isabelle, francês, viajando pelo sul do Brasil na

década de 1830 escreveu que a serra – assim era conhecido o planalto – era pobre e

subpovoada. Talvez por isso desviou-se dela, não a visitando. Joseph Love, brasilianista dos

anos 1970, citaria aquele viajante para dizer que a serra permanecia subdesenvolvida até

o final do século XIX. Essa é a imagem que encontramos na maioria das obras que tra-

tam da história regional.

Entretanto, é no século XIX, considerado atrasado e subpovoado, que

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encontramos as origens das atuais estruturas agrária e social da região. Foi naquele

período que se formaram as grandes propriedades pastoris e surgiram os primeiros

camponeses sem terra quando, paradoxalmente, havia milhares de hectares de terras

virgens.

Estudar o século XIX desta região significa trazer à luz a história de uma massa

camponesa de origem luso-brasileira que tem sido pouco considerada e até discriminada

em muitos títulos da bibliografia brasileira. Os camponeses brasileiros conhecidos como

"caboclos" que ocupam, de forma esparsa, grandes áreas do país são considerados – por

uma larga lista bibliográfica – símbolo do atraso e do tradicionalismo, ao contrário dos

imigrantes europeus, apresentados como símbolo do progresso e do trabalho.

Não se trata de um gesto de complacência para esses camponeses discriminados,

mas sim de examinar sua real importância no processo de ocupação da terra, nas relações

de trabalho da agropecuária regional e na própria formação da estrutura social. Afinal, entre

os escravos e os imigrantes havia uma considerável população de camponeses nacionais.

Fontes e Metodologia

Para esse trabalho procuramos reunir dados a partir de novas concepções de

pesquisa, no que se refere a fontes, que se vêm desenvolvendo na historiografia brasileira

recente. Assim, visitamos os inventários post-mortetn, os processos judiciais e as cor-

respondências oficiais das câmaras municipais e do governo provincial/estadual. Desse modo

temos uma visão mais próxima e detalhada da sociedade em estudo. Os inventários do

século XIX são muito ricos em detalhes que nos permitem verificar com muita clareza o que

se produzia no estabelecimento agrícola do falecido, bem como sua condição de vida.

Temos, através desses documentos, a possibilidade de avaliar tanto a riqueza de um grande

estancieiro como o grau de pobreza de um posseiro. Não se pode, infelizmente, dizer o mesmo

dos inventários do século XX. Estes perdem sua riqueza de detalhes e os documentos não

mais contemplam as heranças abaixo de valores determinados; somente as heranças que

atingem certa importância merecem a vistoria de uma comissão de avaliadores do órgão

judiciário, que descreve em detalhes os bens do falecido. Mesmo as grandes heranças

perdem em riqueza descritiva, pois desaparecem muitos itens referentes a detalhes como o

dos utensílios domésticos. Os inventários dos colonos do início do século XX, por

exemplo, limitam-se a arrolar o lote colonial apenas, sem mencionar os instrumentos

agrícolas e os utensílios domésticos e mesmo as pequenas benfeitorias que constavam

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nos inventários do período imperial.

O registro paroquial de terras de 1855-56 é uma fonte de grande importância para

formar um quadro da estrutura fundiária e do processo de ocupação da terra. Mas esse

registro apresenta alguns problemas que devem ser considerados: os posseiros pobres

raramente comparecem ao páraco para prestar informações; o tamanho da área de terra é

muito imprecisamente indicado e mesmo, na maioria dos casos, não consta informação a

respeito.

Os processos-crime são também de grande relevância para . a compreensão do

cotidiano e principalmente das relações sociais. Esse tipo de documento é um dos

poucos em que aparecem os depoimentos da população pobre. Nele o povo pobre, ainda

que mal, pode falar. O processo decorrente do crime ou da acusação inclui vários

depoimentos de rara importância, incluindo-se tanto o discurso de um grande fazendeiro

como o de pequenos lavradores pobres e mesmo de escravos. Enfim, é nessa fonte que

podemos ler e sentir a presença das camadas pobres da população, raramente perceptíveis

nos relatórios de viajantes estrangeiros, que tanto têm servido de sustentação para a

historiografia brasileira. É nesses documentos que encontramos, por exemplo, a argumen-

tação de um escravo por matar um cidadão que se atreveu com sua mulher, ou de um

escravo que havia matado seu proprietário em outras terras e se refugiado na região, ou

ainda as reclamações de um posseiro em processo de expulsão de sua roça.

As correspondências oficiais das câmaras municipais nos foram muito úteis por

mostrar-nos um quadro da conjuntura econômica e política de cada momento. Encontramos

relatórios detalhados sobre a propriedade da terra, sobre terras devolutas, sobre política

indígena etc. Na câmara municipal do século XIX eram debatidos muitos assuntos do cotidiano

local.

Os relatórios de presidente da província são uma fonte importante mas, de modo

geral, repetem de forma resumida os relatórios das câmaras municipais. A partir da

República, os relatórios do Rio Grande do Sul são escritos por secretaria. Interessaram-

nos, de modo particular, os da Secretaria dos Negócios e Obras Públicas, nos quais são

relatados assuntos relativos à colonização e à apropriação de terras.

Tivemos ainda a oportunidade de contar com algumas publicações importantes, que

nos serviram de fonte primária. Em 1887, um jornalista de Cruz Alta publicou uma Notícia

Descritiva de toda a região. Em 1909, uma volumosa obra veio à luz, escrita por um

advogado e político, presidente da câmara em três mandatos nas décadas de 1860 e 1870.

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Apesar dos limites que cercam essas obras em termos de confiabilidade e método de ex-

posição, elas são muito úteis, principalmente se considerarmos que os autores tiveram

larga vivência na região.

Além dessas fontes que comentamos, contamos com uma série de outras,

avulsas, como publicações oficiais, jornais e mesmo relatos de viajantes, arquivadas em

diversos locais do país: Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, 2IHGB – Rio de Janeiro,

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Arquivo Público do Rio Grande do Sul, Biblioteca

Pública de Porto Alegre, Museu Antropológico Diretor Pestana, da UNIJUl, Colégio

Santíssima Trindade, de Cruz Alta.

Através do levantamento de dados dos inventários postmortem foi possível

organizar algumas séries estatísticas com informações das próprias unidades produtivas, o

que nos deu segurança maior do que a oferecida pelos relatos dos viajantes, por

exemplo. Assim, conseguimos elaborar quadros com os preços das terras, com a

produção pecuária e agrícola – tanto seu perfil como sua evolução – e com o número, as

condições de vida e o preço dos escravos utilizados em uma estância. Além desses da-

dos que nos permitiram organizar algumas séries, os inventários nos forneceram

informações singulares corno os mecanismos de endividamento e de comercialização e o

padrão de consumo.

Devido ao elevado número de inventários, optamos por recolher uma amostragem,

selecionando o conjunto de documentos relativos a um ano em cada período de cinco. Além

desses, recolhemos os dados de inventários de personagens importantes (grandes

proprietários, chefes políticos, comerciantes), o que implicou examinar praticamente todos.

Para tanto, elaboramos algumas matrizes para facilitar a coleta dos dados e a organização

de séries estatísticas. As séries homogêneas, organizadas a partir dos inventários e de

outras fontes locais, nos permitiram montar um quadro alicerçado nas próprias unidades

produtivas, proporcionando detalhes que outras fontes genéricas não permitem.

2 IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

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I

O Planalto do Rio Grande do Sul

Nesse capítulo procuramos demonstrar as influências de natureza geográfica que

interferem na análise histórica. Examinamos a posição do Rio Grande do Sul e do planalto

em particular, em relação ao conjunto do país.

A condição de fronteira política do Rio Grande do Sul tem grande relevância para o

processo de ocupação do extremo meridional do Brasil. Essa fronteira brasileira foi palco de

intermináveis conflitos com os povos vizinhos da bacia do Prata, o que lhe deu caráter

fortemente militar com importantes repercussões na ocupação de terras.

Outra característica notória é a dicotomia campo/floresta que caracterizava a

cobertura vegetal original do Sul e que serviu para emoldurar os contornos de processos

diferençados de ocupação e uso da terra.

Por fim, é importante examinarmos como a condição de isolamento em relação aos

centros dinâmicos da economia nacional influenciou o desenvolvimento econômico regional.

A Delimitação da Região

O espaço que delimitamos para o nosso trabalho foi determinado por alguns critérios

que expomos adiante, considerando que não se trata de uma região isolada, mas inserida

numa totalidade que influi decisivamente no interior de seus limites e vice-versa.

Consideraremos ainda alguns aspectos históricos e geográficos relevantes para o processo

de ocupação da região.

Os limites da região que recortamos para esse trabalho são condicionados pela

produção das fontes, ou seja, obedecerão a um critério de ordem institucional. Dessa forma,

esses limites regionais são os limites da jurisdição política das câmaras de vereadores ou das

comarcas da justiça. Isso decorre da centralização desses órgãos administrativos e

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políticos, que canalizavam todos os documentos relativos à sociedade abrangida pela

delimitação municipal.

Por outro lado, a região apresenta alguns limites físico-geográficos de significativa

importância para essa regionalização. O planalto é limitado ao sul por uma escarpa

acentuada que consistia em grande obstáculo às comunicações ao longo do século XIX.

Considere-se que, naquele século, as condições de transporte eram muito precárias e com

poucas forças para romper obstáculos geográficos como a escarpa do planalto (a "serra", como

os seus habitantes costumam dizer). O trem, a ferrovia, a grande invenção tecnológica em

termos de transporte, somente chegou à região do planalto no fim do século, melhorando

muito a situação. O caminhão automotor, que é ainda mais eficiente para romper esses obs-

táculos, somente passou a circular quando o século XX já ia longe e portanto passando os

limites do tempo de que nos ocupamos nesse trabalho.

Outro limite importante que reforça o recorte que efetuamos localiza-se ao norte e

ao oeste. Nesses lados corre o rio Uruguai, de difícil transposição dados o volume de suas

águas e a sua profundidade. Além desse obstáculo de ordem geográfica (muito significativo no

século XIX, visto que não havia possibilidades econômicas e tecnológicas para fazer pontes de

porte relativamente grande), na margem oposta estavam ou a província de Santa

Catarina ou a República Argentina (esta a oeste), que se constituem em limites regionais

de ordem política. Afora isso, na margem oposta do rio não havia motivos econômicos que

pudessem tornar possível um avanço dessa natureza além do rio. Em tal margem, a

população era rarefeita e praticamente inexistiam povoados que pudessem se tornar motivo

de alguma ligação maior em termos econômicos. As regiões próximas ao rio Uruguai, em

grande parte de sua extensão tanto de um lado como de outro, eram cobertas de densa

floresta e no máximo havia estradas pelas quais eram conduzidas as tropas de gado para as

feiras de Sorocaba, em São Paulo.

Embora denominemos de "planalto" essa região, isso não significa que a delimitação

proposta coincida com o planalto propriamente dito, considerando os aspectos topográficos.

Como os critérios que utilizamos não se limitam às condições naturais e sim levam em

conta forças de ordens institucional e econômica, deixamos de considerar algumas áreas do

extremo oriental do planalto, por não terem muitas ligações com o centro econômico e

político sobre o qual depositamos nossas atenções: Cruz Alta. Os municípios de Vacaria e

Lagoa Vermelha, no lesse do planalto, tinham ligações mais freqüentes com Porto Alegre,

devido à sua proximidade daquela capital, e sobretudo porque essa área fazia parte do

município de Santo Antônio da Patrulha, cuja sede localiza-se próximo ao litoral.

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A Delimitação do Tempo

O recorte temporal que adotamos nesse trabalho está condicionado à disponibilidade

de fontes e pelo acesso a elas. As fontes relativas ao período em que os jesuítas

dominaram a região, por exemplo, estão espalhadas por vários arquivos da América e da

Europa, o que dificulta a pesquisa. Por outro lado, a ocupação das Missões pelos gaúchos

no início do século XIX constitui um marco muito forte na história do processo de ocupação

e formação da região. A sociedade que se estruturou a partir da tomada das Missões, em

180 rompeu radicalmente com a estrutura agrária e social do período jesuítico que

perdurara até meados do século XVIII.

As fontes que utilizamos nesse trabalho começaram a ser produzidas a partir da

criação do município de Cruz Alta, em 1834. No entanto, tomemos o ano de 1850 como limite

inferior – embora sem muita rigidez – por ser a data da aprovação da lei de terras que

motivou o registro das estâncias pastoris, o que é importante para os propósitos desse

trabalho. Por outro lado, é um ano no qual a província já está normalizada após os dez

anos de guerra civil, a Guerra dos Farrapos, ocorrida entre 1835 e 1845. O limite superior,

1920, é quando o processo de ocupação das terras florestais já está praticamente

consolidado. Restam na década de 1920 poucas áreas a serem comercializadas e as

companhias de terra já abrem frente no oeste catarinense e no sudoeste do Paraná. As

terras ainda devolutas que existem nessa década, por outro lado, serão ocupadas nos

moldes que caracterizam o processo descrito e analisado nos limites desse trabalho.

O Brasil Meridional

Enquanto a ocupação e a exploração portuguesa no nordeste do Brasil tomava

corpo, no século XVI, o atual estado do Rio Grande do Sul passava quase despercebido. Por

mais de um século após sua descoberta pelos europeus, o território sulino permaneceu

desvinculado da agricultura de exportação, como a que se instalara no nordeste brasileiro, pois

não havia na região nenhum atrativo econômico que justificasse alguma iniciativa rentável.

Desse modo, até o final do século XVI, o extremo sul do Brasil atual continuou

povoado por povos indígenas organizados social e economicamente nos moldes

tradicionais da população brasileira anteriores à invasão européia.

Coube aos missionários jesuítas espanhóis a iniciativa de instalar uma nova ordem

econômica e social nos campos sulinos. Aldearam os indígenas e introduziram o gado

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vacum nas pastagens nativas, fato que iria marcar a história econômica do sul por muitas

décadas. Atrás dos jesuítas vieram os bandeirantes paulistas em busca de indígenas para

escravizar_ Milhares de homens foram enviados aos centros econômicos da colônia

portuguesa consumidores de escravos. As aldeias jesuíticas sofreram dessa forma um

irreparável revés.

O gado multiplicou-se rapidamente, no entanto, apesar da destruição dos

aldeamentos, formando um imenso rebanho. Com esse rebanho é que o Rio Grande do Sul

integrou-se efetivamente ao circuito econômico da colônia no século XVIII, fornecendo

couros, carnes e gado muar para o transporte na zona de mineração das Minas Gerais. Os

campos sulinos a partir disso transformaram-se gradativamente em grandes estâncias de gado.

Os estancieiros formariam uma poderosa classe que dirigiria o Rio Grande do Sul de forma

hegemônica até o princípio do século XX.

No processo de ocupação das terras sulinas pelos estancieiros é muito relevante

considerar os aspectos geográficos do território. De forma especial, as condições

fitogeográficas tiveram um papel importante nesse processo: uma das características da

cobertura vegetal da terra era a dicotomia entre o campo nativo e a floresta. Os campos

cobriam quase toda a parte sul do território e ao norte disputavam o espaço com as árvores

que tinham tendência de avançar sobre aqueles. Os campos nativos ofereciam excelentes

condições para a criação de gado sem maiores dispêndios para a formação das unidades

pastoris – as estâncias.

O gado e o campo nativo forma o cerne da economia riograndense por longo tempo e

foi na imensidão das pastagens nativas que se delimitaram as grandes propriedades

pastoris, povoadas com muito gado e pouco gente, de tal forma que o próprio presidente da

província, Francisco José de Souza Soares Andréa, denunciava, em 1849, que:

"um dos obstáculos que se têm oposto nesta província ao desenvolvimento da

agricultura é a existência de grandes fazendas ou antes de grandes desertos, cujos donos,

cuidando só e mal da criação têm o direito de repelir de seus campos as famílias desvalidas

que não têm aonde se conservar em pé...”1

A estância, conforme a queixa de Soares Andréa denuncia, era um estabelecimento

centrado na atividade pastoril; a agricultura era secundária. Enquanto o gado e os

estancieiros ocupavam os últimos rincões de campo, a zona de matas permanecia relati-

vamente estagnada em termos demográficos e econômicos. O gado era o carro-chefe da

economia e exigia menos trabalho e capital que a agricultura comercial. Seria uma

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incoerência derrubar matas para introduzir gado, havendo pastagens naturais.

Não por determinismo geográfico simplesmente, mas por fatores conjunturais, o

processo de ocupação do território sulino está estreitamente ligado às condições naturais

da vegetação.2 A elite pastoril sempre teve a iniciativa de empurrar a fronteira gaúcha até

os limites dos campos nativos tornando-os dos espanhóis se preciso fosse e deixando de

lado as florestas, que seriam efetivamente ocupadas por pequenos agricultores. Em função

disso é que nas zonas de campo encontram-se historicamente as grandes propriedades

rurais do Rio Grande do Sul. A densidade demográfica dos municípios pastoris, também

em função disso, sempre foi bem menor do que a dos municípios t ipicamente

agrícolas.

RIO GRANDE DO SUL - VEGETAÇÃO ORIGINAL-FLORESTAS

E CAMPOS NATIVOS

Os municípios dos vales do Sinos de Taquari e do Caí, que tiveram suas origens em

núcleos coloniais de pequenos agricultores, contavam com uma densidade demográfica em

torno de 25 hab/km2 em 1920. Os municípios das fronteiras oeste e sul – B agé,

Uruguaiana, Livramento entre outros próximos – contavam com uma densidade

demográfica que não passava de 5 hab/km2 naquele mesmo ano, apesar de serem seus

núcleos urbanos maiores do que os dos municípios agrícolas. No planalto, o novo

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município de Ijuí, criado a partir de uma colônia oficial, contavam com uma densidade de 19,87

hab/km2, superando largamente antigos municípios vizinhos corno Cruz Alta, que contava

com um índice de 4,95 hab/km2 apenas, em 1920.3

Ao contrário do nordeste brasileiro, onde, no período colonial açucareiro, o gado foi

expulso para o sertão inóspito em favor da cultura da cana-de-açúcar, o gado sulino foi

privilegiado em detrimento da agricultura, essa, no caso, expulsa para as florestas

inóspitas. O gado no sul era a atividade nobre e o poder político era comandado pelos

pecuaristas que determinavam o processo de ocupação das terras gaúchas.

A agricultura a cargo de pequenos lavradores nas áreas florestais e a pecuária a

cargo de grandes fazendeiros nas zonas de campo formavam uma espécie de divisão do

trabalho na economia local. À agricultura, nesta divisão, cabia um papel inferior diante da

nobreza pastoril.

O Planalto

O planalto, a metade setentrional do Rio Grande do Sul, foi em grande parte

conquistado aos castelhanos em 1801, quando milicianos gaúchos tomaram de assalto o

território das missões. Essa área era sede das antigas reduções jesuíticas – conhecidas

por "Sete Povos das Missões" – que haviam sido destruídas em meados do século XVIII

por portugueses e espanhóis em operação conjunta contra os índios guaranis.

Após a conquista das Missões, seguiram-se lutas entre caudilhos uruguaios e rio-

grandenses até a década de 1820, despovoando e instabilizando a região. Nessas regiões,

alguns estancieiros começaram a instalar-se nos campos de Cruz Alta, transformada em

município e vila em 1834 e que seria, a partir dessa data, o centro político e econômico do

planalto gaúcho durante o século XIX.

O antigo município de Cruz Alta abrangia grande parte do planalto rio-grandense e

tinha uma área aproximada de 60.000 km'. Essa área corresponde a cerca de 20% do

território do Rio Grande do Sul.

As excelentes condições oferecidas pela natureza facilitavam a instalação de

estâncias sem que o estancieiro se preocupasse em investir muito ou em melhorar a

qualidade dos rebanhos. Os verões eram amenizados pela abundante oferta de água da

bem-irrigada região, através dos incontáveis rios e arroios que formam a bacia do Uruguai

e a sub-bacia do Jacuí. O inverno, embora bastante rigoroso, não o era o suficiente para

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comprometer os rebanhos.

Um aspecto de grande influência na ocupação da região foi a cobertura vegetal.

Como no Rio Grande do Sul de modo geral, a cobertura vegetal do planalto divide-se entre

campos nativos e florestas.

Nas florestas encontra-se a erva-mate, pequena árvore de grande importância

econômica conforme veremos adiante. Nos campos nativos foram instaladas as

estâncias de gado, aproveitando-se as condições naturais propícias e seguindo-se o

modelo geral do Rio Grande. Desse modo, a vila Cruz Alta e as sedes de seus distritos

que se foram emancipando no decorrer do século XIX localizavam-se em áreas de campo.

É o caso de Palmeira das Missões e Passo Fundo.

É no planalto que a dicotomia campo-floresta ou pecuária-pequena agricultura

aparece de forma mais saliente. Nessa região, a mata subtropical entremeia-se com os

campos de tal forma que o contato entre estancieiros e pequenos lavradores é direto, ao

mesmo tempo em que revela as contradições existentes entre dois grupos sociais.

TABELA N° 1 — EVOLUÇÃO DA DIVISÃO MUNICIPAL NA REGIÃO 1834/1918

ANO MUNICÍPIO CRIADO1834 Cruz Alta1857 Passo Fundo1873 Santo Ângelo1874 Palmeira das Missões1875 Soledade1891 Vila Rica (Júlio de

Castilhos)1912 ljuí1918 Erechim

Fonte: FELIZARDO, Júlia Netto. Evolução administrativa do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : InstitutoGaúcho de Reforma Agrária, s/d. p. 13.

A Fronteira Política

A condição de fronteira com os países da bacia do Prata sempre teve um papel

importante para o Rio Grande do Sul. Essa condição fronteiriça era objeto de grande

preocupação para o governo brasileiro e o gaúcho, pois a guerra parecia ser sempre imi-

nente – o que de fato se concretizou várias vezes durante o século XIX. A política das

autoridades nesse sentido consistia em criar núcleos estratégicos de povoamento ao longo

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19

da fronteira e assim garantir-se de uma eventual disputa por parte da Argentina, do

Uruguai ou do Paraguai. Essa preocupação tem mais sentido se lembrarmos que o território

das Missões a que nos referimos anteriormente foi tomado aos espanhóis e ao Vice-Reinado

do Prata em 1801, sendo alvo de disputa entre os caudilhos uruguaios, os argentinos e

gaúchos rio-grandenses até o final da década de 1820. Já em 1824, os estrategistas oficiais

tentaram fundar um colônia com imigrantes alemães em São João das Missões. O projeto fra-

cassou pelo isolamento da região em relação ao mercado agrícola, entre outras causas.

Fonte: FELIZARDO, Júlia Netto. Evolução Administrativa do RS. Porto Alegre : Instituto Gaúcho de Reforma

Agrária, s/d.

Os estrategistas do governo imaginaram outras alternativas, como a construção de

uma estrada ao longo da margem esquerda do rio Uruguai, mas inviabilizaram-na o alto

custo da obra e a pouca expectativa em termos de resultados econômicos. Em 1859

projetou-se a instalação de uma colônia militar com contingentes de soldados, como forma

Page 20: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

20

de assegurar a manutenção do núcleo. Para efetivar o projeto, o governo criou a

"Comissão para as colônias no Alto Uruguai", que percorreu a região entre abril de 1860 e

outubro de 1862 e forneceu um minucioso relatório e planos de estradas e colônias. Nesse

relatório o comandante da comissão, José Maria Pereira de Campos, justifica a

preocupação militar-estratégica oficial denunciando a presença de supostos militares

paraguaios disfarçados de ervateiros na zona fronteiriça:

"Em 1857, chegou no rincão de Guarita um paraguaio de nome Fernandode Tal com mais cinco homens, inclusive alguns correntinos e portenhoscom o fim de fazer erva-mate, os quais trazendo em carretas armamentos,munições, ferramentas, mantimentos... fizeram um rancho solido, com pregos...Estes homens tornaram-se suspeitos... porque tendo eles trazido ummaterial imenso avaliado em mais de cinco contos de reis, nem por isso seempregavam muito ao trabalho, pois que ajuntando trabalhadores a dois emeio patacões por dia, esses poucos trabalhavam, levando muitos dias semfazerem nada no mato... pareciam sem dúvida alguns serem soldados."'4

Os supostos militares paraguaios foram pressionados pelas autoridades locais e

retiraram-se do local, segundo informa o mesmo relator. Seja procedente ou não a

suposição dos denunciantes, o exemplo demonstra a preocupação com a necessidade de

povoar a região de forma efetiva. É possível, porém, que as acusações contra o paraguaio

tenham-se devido ao desejo de eliminar um concorrente na extração de erva-mate.

A colônia militar do Alto Uruguai somente seria instalada em 1879. Trinta anos

após, sofria sérias dificuldades para manter-se, devido ao isolamento. O mate não era

suficiente para dar sustentação a uma população razoável.

Todas as pretensões de povoamento tiveram que superar o avanço da população até

a fronteira política através do lento processo de incorporação econômica das zonas

florestais que protegem as margens do alto rio Uruguai.

No final do século a pressão demográfica sobre as colônias velhas, situadas nas

proximidades de Porto Alegre e fundadas sob o sistema de pequenas propriedades,

impulsionaram colonos excedentes para as novas áreas disponíveis nas matas do planalto.

Com esses agricultores, somados aos novos imigrantes europeus e aos antigos

agricultores já instalados, o território rio-grandense foi totalmente ocupado de forma

efetiva. As áreas florestais do Alto Uruguai foram definitivamente transformadas em zonas

agrícolas. Os novos contingentes demográficos e a ferrovia, construída na década de 1890,

deram um grande impulso à tímida agricultura local, aproveitando-se da fertilidade natural dos

solos virgens.

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21

A distância dessa região em relação aos centros econômicos e a precariedade

dos transportes criavam sérias dificuldades na circulação de mercadorias e para a

dinamização econômica de modo geral. Por outro lado, quanto ao gado, que foi em todo o

século XIX o principal produto, essas adversidades eram menores, pois além de "auto-

transportar-se" (no caso do gado muar) para as feiras de Sorocaba, em São Paulo, o

planalto gaúcho situava-se exatamente no caminho das tropas que procediam de regiões

ainda mais ao sul e portanto mais distantes. A desvantagem, porém, ocorria quando o

gado era vendido nas charqueadas de Pelotas. O presidente da província do Rio Grande

do Sul informava em 1854, a esse respeito, que:

"No município de Cruz Alta calcula-se em 80 mil o número desses animais(mulas) que anualmente se vende, dos quais a quinta parte é produção dopróprio município, os outros são dos diversos municípios da província esobretudo das repúblicas vizinhas invernadas nos campos de Cruz Alta para sedirigirem ao mercado principal da feira de Sorocaba."5

A erva-mate, de grande importância econômica, transportada em carretas de boi,

sofria grandes problemas para chegar aos mercados. Descer a escarpa do planalto, rumo

a Rio Pardo, o entreposto comercial às margens do baixo Jacuí, era algo difícil. Durante todo

o século XIX as autoridades locais e os usuários reclamaram constantemente ao governo

provincial a melhoria dos caminhos ou a construção de novas estradas. Boa parte da erva-

mate era exportada pelo porto de Itaqui, no rio Uruguai, cujo acesso era mais fácil e mais

próximo. "A erva mate da Cruz Alta vende-se em diversos mercados... de todos porém o

mais importante é o de Itaqui d' onde se distribui pelo Uruguai abaixo para os estados

vizinhos e para Buenos Ayres."6, é o que nos informa o presidente da província em seu

relatório de 1854.

O isolamento da região era objeto de grande preocupação dos estancieiros e dos

chefes políticos locais. Tanto que, em 1877, houve a tentativa de emancipar a área,

separando-a da província do Rio Grande do Sul. Na exposição de motivos para a criação da

província das Missões, os separatistas argumentavam o seguinte:

"Há 84 anos que esse território foi desmembrado do Vice-Reinado de BuenosAires passando a incorporar-se ao Brasil, durante esse período longo comquanto tem contribuído para os cofres públicos? Com uma soma, semdúvida, avultadíssima e cujo fato será objeto de nosso estudo e conseqüentedemonstração oportuna – no entretanto, quais os benefícios auferidos e quecorrespondem a tão valioso concurso? O completo abandono – não temos umaponte, uma estrada, um qualquer benefício público, logo aquilo que ar-recadamos – aquilo que produzimos ainda que pouco é razoável queapliquemos em benefício próprio, deixando de contribuir para os desperdíciosda centralização – quando tudo nos falta do necessário."'7

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22

A tentativa emancipacionista frustou-se, não havendo consenso entre os

estancieiros sobre a questão, mas revela as grandes dificuldades regionais, principalmente

em termos de transporte. As queixas em relação a estradas foram uma constante durante

várias décadas.

A Fronteira Agrícola

A bibliografia regional, de modo geral, tem caracterizado o planalto gaúcho do século

XIX como área atrasada, que teria passado à condição de zona de fronteira no final do

século, quando fundaram-se várias colônias oficiais e particulares, com imigrantes que

passaram a ser denominados de "pioneiros" da região. Leo Waibel nos escreve que:

"Uma segunda zona pioneira se desenvolveu a partir de 1890 no planaltoocidental do Rio Grande do Sul. Lá foi a construção da estrada de ferrode Porto Alegre a São Paulo, atravessando o Paraná, que tornou possívela colonização desta região remota."'8

O estudo de Waibel, portanto, remonta apenas a 1890, quando os primeiros colonos

imigrantes chegaram. Os habitantes precedentes são desconsiderados.

Jean Roche, um dos autores mais consultados sobre a colonização do Rio Grande do

Sul, ao referir-se à mesma região, escreve:

"Essas colônias oficiais, essencialmente agrícolas, foram abertas emnova zona pioneira, mas convém ressaltar o papel da administração,que não se contentou com fundar estabelecimentos. Interveio durantetoda a fase de exploração, na gestão e no equipamento delas,dotando-as de uma rede de comunicações internas, de um conjunto deedifícios públicos e de escolas, assim como de um cadastro bem emordem; tudo isso traduz, pois, um esforço superior ao que desprenderamos outros Estados do Brasil. Teve de resolver, também, o problemada instalação legal dos intrusos, que haviam precedido a divisão dasterras públicas e se estabelecido aqui e acolá, nas zonas colonizadas."'9

O mesmo autor, falando dos colonizadores, escreve que "na evolução do Rio Grande

do Sul, os colonos teuto-brasileiros não representam tanto uma massa, como uma qualidade

de homens, diferente dos primeiros habitantes, um fermento a que se deve a elaboração de

civilização original..."10

Jean Roche dá muito destaque para a qualidade dos colonizadores, aproximando-se,

Page 23: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

23

desse modo, das concepções weberianas de espírito do progresso e, ao referir-se aos

antigos habitantes, deixa implícita a idéia de tradicionalismo. Nesse discurso, o colono

europeu seria o legítimo portador do espírito de progresso do capitalismo ao passo que o

caboclo brasileiro estaria representando o tradicionalismo, o atraso. Nesse particular, Leo

Waibel nos diz que

"...nem o extrativista, nem o caçador; nem o criador de gado podem serconsiderados como pioneiros; apenas o agricultor pode serconsiderado como tal, estando apto a constituir uma zona pioneira esomente ele é capaz de transformar a mata virgem numa paisagemcultural...""11

Essa concepção de fronteira supõe que existem homens eleitos para ocupar

determinado espaço e promover-lhe o progresso.

Os habitantes que já viviam nesse espaço estão condenados ao atraso, por

estarem imbuídos do espírito do tradicionalismo. Tal é o que efetivamente se observa

quando, ao estudarmos as áreas de fronteira, vemos a expulsão desses homens ocorrer

de forma inexorável.

Esse discurso sobre a fronteira pioneira, do qual Leo Waibel é o mais explícito

representante (por tal razão o tomamos como exemplo), expressa uma postura discriminatória

em relação a uma camada da população que geralmente é excluída. A exclusão desses

habitantes, que diversos autores consideram intrusos, obscurece a compreensão da

própria dinâmica do processo de ocupação da terra e da formação dos grupos sociais. Os

posseiros, ditos intrusos, são os primeiros a proletarizar-se e a sujeitar-se ao precário

mercado de trabalho.

Esses pressupostos que apologizam, no caso do sul do Brasil, os imigrantes

europeus, os quais teriam o esperado espírito de progresso mencionado por Max Weber12

é muito presente na historiografia tradicional local, que simplesmente reproduz e divulga

essa concepção.

Outra forma de ver a fronteira se faz necessária para se ter uma real dimensão do

processo de ocupação e apropriação da terra, da formação dos grupos sociais e da própria

produção econômica. É necessário reportar-se aos primeiros ocupantes da terra,

independentemente do sistema produtivo que adotem, pois é nessa fase que são

construídas muitas características que marcarão o espaço, de tal forma que, mesmo com a

imigração posterior de novos colonizadores, estarão ainda presentes.

Valemo-nos aqui de trabalhos como o de José de Souza Martins, que em sua

Page 24: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

24

crítica à concepção de fronteira que expusemos e criticamos, sugere a noção de frente de

expansão, na qual "...os participantes dedicam-se principalmente à própria subsistência e

secundariamente à troca do produto que pode ser obtido com os fatores que excedem as

suas necessidades..."13. Essa fase antecede a da "frente pioneira", na qual o processo de

ocupação se "...instaura como empreendimento econômico: empresas imobiliárias,

ferroviárias, comerciais, bancárias, etc., loteiam terras, transportam mercadorias, compram e

vendem, financiam a produção e o comércio..."'14 A frente de expansão e a frente

pioneira são, na verdade, duas fases de um mesmo processo de ocupação de novas

terras e só podemos separá-las para fins de análise. A frente de expansão não está

separada da economia nacional na proporção que se supõe. Embora o mercado seja

reduzido e a propriedade da terra precária, não deixa de existir uma motivação do próprio

mercado, por mais fraco que seja, para o processo de ocupação. No caso particular que

estamos examinando, a erva-mate estimulou milhares de homens a embrenhar-se nas matas,

onde se instalaram como extrativistas e agricultores de subsistência. O mate consistia

numa das raras oportunidades do posseiro alcançar o mercado e dessa forma obter

condições de trocar seu trabalho por mercadoria de consumo ou dinheiro.

Outro estudo recente sobre fronteira, no Brasil, é o do inglês Joe Foweraker, em A

Luta pela Terra. O autor prefere analisar a fronteira a partir de três estágios de

desenvolvimento15:

1° – o estágio "não-capitalista", no qual as atividades estão ligadas ao extrativismo

e as trocas são limitadas. O mercado é precário na região tanto para a terra como para a

produção e o trabalho;

2° – o estágio "pré-capitalista", que "é caracterizado por um aumento da migração

para a região e a intensificação da atividade extrativa. A terra começa a ser vendida e

comprada;

3° – o estágio "capitalista" em que a migração é intensificada e a região integra-se

efetivamente na economia nacional; a agricultura passa a predominar sobre o extrativismo e

dá origem a um crescente mercado de terras e mercadoria. Ao lado da pequena produção

agrícola surge o mercado de trabalho livre. 16

A abordagem de Joe Foweraker sobre a fronteira pioneira é feita através do seu

grau de inserção na economia nacional capitalista. A integração das áreas de fronteira

ocorre de forma gradativa obedecendo a estágios de desenvolvimento.

Essa forma de examinar a fronteira rompe, também, com a forma muito difundida por

Page 25: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

25

autores como Leo Waibel. Por exemplo, Joe Foweraker não se preocupa com o espírito de

homem de fronteira mas sim com o desenvolvimento da fronteira em direção ao estágio que

denominou de capitalista, processo esse que se reveste de muita violência, como destaca o

autor.

Embora o processo de ocupação e desenvolvimento da região que estamos

tratando possa ter alguma semelhança com o esquema sugerido por Foweraker, seria

exagero encaixá-lo mecanicamente nos três estágios citados acima. De qualquer forma, o

modelo é útil à medida que oferece condições para caracterizar certos aspectos da

evolução da fronteira referente às relações de produção, ao mercado e à violência

decorrente do próprio processo de ocupação.

Conclusão

O planalto rio-grandense, como todo o extremo Sul do Brasil, constituía-se numa

área em que os objetivos principais do governo português e posteriormente brasileiro eram

de ordem estratégica ou geopolítica. Desse modo, a própria incorporação do planalto à

coroa portuguesa deu-se de forma militar e política. Em função dessas condições, o Sul

brasileiro, embora sendo economicamente periférico, recebia mais atenções, através de

soldos militares e incentivos à formação de estância como forma de garantir o povoamento.

Mesmo com a preocupação governamental em povoar e desenvolver essas

áreas estratégicas, o planalto sofria de grande isolamento em relação aos mercados.

As estradas foram precárias durante o século XIX. O gado, no entanto, sofria menos

essa dificuldade, pelas características do seu transporte realizado na condução das

tropas, do que a erva-mate. Esta, transportada em carretas, enfrentava as agruras da

ausência de estradas. A agricultura não poderia ir além da mera subsistência, pois

jamais poderia competir, nessas condições, com a de outras áreas mais favorecidas

em termos de localização e transporte.

As condições climáticas do Sul de certa forma também contribuíram para a

impossibilidade de instalação de uma agricultura comercial tropical, destinada à

exportação para os mercados europeus do século XIX. Caberia ao Sul produzir

para o mercado interno; produção secundár ia numa economia cent rada na

monocultura de produtos tropicais exportáveis.

A dicotomia campo-floresta contribuiu para a formação de duas formas de

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26

estabelecimento rural: as grandes fazendas de gado nas zonas de campo nativo e

a agricultura de subsistência nas áreas de floresta, levada a cabo em pequenas

propriedades.

Notas

1 Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul; Francisco José de

Souza Soares Andréa. Porto Alegre, junho de 1849. Manuscrito MALRS.

2 Ver sobre esse aspecto:

BERNARDES, Nilo. Bases geográficas do povoamento do estado do Rio Grande do Sul. Boletim

Geográfico. Conselho Nacional de Geografia, IBGE, Rio de Janeiro, n° 171, nov.-dez. de 1962

e n.172, jan.-fev. de 1963. Esta obra foi publicada em 1997, pela Editora UNIJUI.

3 Cf. Censo geral do Brasil - 1920 - In: Fundação de Economia e Estatística ( FEE). De

província de São Pedro e estado do Rio Grande do Sul - censos do Rio Grande do Sul - 1803-

1950. Porto Alegre : FEE, 1981. P. 127.

4 Relatório de José Maria P. Campos, chefe da "Comissão para as Colônias no Alto Uruguai".

Cruz Alta, 18 de setembro de 1860. AHRS, códice 285, documento 23.

5 Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, João Lins Vieira

Cansansão do Sinimbu, 2 de outubro de 1854, Porto Alegre. P. 5 1 .

6 Idem.

7 Trecho do memorial da Câmara Municipal de Cruz Alta, citado em ROCHA, Prudêncio.

História de Cruz Alta. 2.ed. Cruz Alta : Mercúrio, 1980. p.90.

8 Cf. WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro : IBGE,

1979. P.282.

9 Cf. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo, 1969.

P.219.

10 Idem. P. 5.

11 Cf. WAIBEL, Leo. Op. cit. P.282.

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27

12 Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo : Pioneira,

1983. Pp. 28/50.

13 Cf. MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo : Pioneira, 1975. P.

45.

14 Idem. P. 47.

15 Cf. FOWERAKER, Joe. A luta pela terra. Rio de Janeiro : Zahar, 1982. P. 58.

16 Idem. P. 64.

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28

II

A Apropriação da Terra

Na primeira fase da apropriação efetiva da terra na região, iniciada na década de

1820, ocorreu a ocupação dos campos nativos e a formação das estâncias pastoris. Nessa

fase, que marcou o início do latifúndio regional, as principais vítimas foram os indígenas

locais, aos poucos encurralados nas densas florestas que demandam as margens do rio

Uruguai. Apesar da resistência, os grupos indígenas capitularam diante da superioridade dos

invasores. Nessa fase, grosso modo, apenas as áreas cobertas com pastagens naturais

foram apropriadas de forma efetiva pelos fazendeiros, que deixaram de lado as áreas

cobertas de mato entremeadas com os campos.

Na segunda fase, que não sucedeu-se, rigorosamente, à primeira, mas, em parte,

transcorreu concomitante a ela, houve uma frente extrativista que avançou sobre as áreas

florestais em busca de erva-mate. Esses contingentes de coletores de mate eram ao

mesmo tempo pequenos agricultores de subsistência que, por forças circunstâncias, não se

tornaram proprietários das terras que ocupavam e nem dos ervais. Estes eram considerados

públicos e assim administrativos e explorados ao longo do século XIX pela municipalidade.

Por volta da década de 1860, entretanto, quando os latifundiários pecuaristas já não

tinham possibilidades de incorporar novos campos devolutos, iniciou-se um processo de

apropriação das áreas de mato e desse modo explodiu uma série de conflitos entre os

usurpadores e os coletores de erva-mate que até então não possuíam propriedade jurídica

de seus roçados e dos ervais. É nesse instante que a exclusão dos camponeses pobres tem

início, obrigando-os a emigrarem para áreas inóspitas e ainda devolutas ou a tornarem-se

peões de estância em substituição ao escravo negro. Essa apropriação de terras florestais

visava também à venda futura a colonos imigrantes subsidiados pelo governo que, desde

1824, vinham se multiplicando na província. Nesse particular, na década de 1870, a câmara

municipal de Cruz Alta solicitava a vinda de colonos para a região de forma insistente,

como forma de "incrementar a agricultura" nos matos do município.

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29

Em 1890, com a vinda dos colonos europeus e das colônias velhas inaugura-se nova

fase na ocupação das terras locais: uma etapa que trouxe grandes contingentes

demográficos para as inúmeras colônias oficiais e particulares que se criaram nas áreas de

mato, valorizando as terras e incrementando o comércio.

O Aldeamento dos Indígenas

Entre as primeiras vítimas da privatização das terras na região estão em primeiro

lugar os indígenas remanescentes das antigas reduções jesuíticas e imigrantes

caingangues de outras áreas do sul do Brasil. Os indígenas do século XIX, no norte

riograndense, ofereceram forte resistência diante dos invasores, terminando, como sempre,

por capitular.

Para ocupar a região os pecuaristas, os extrativistas e os agricultores enfrentaram e

submeteram a população guarani e caingangue numa luta que durou várias décadas e que

de certa forma ainda não se encontra no fim, pois os atuais aldeamentos oficiais continuam

sofrendo pressões por parte de agricultores da região, estranhos à comunidade indígena.

No século XIX, as queixas mais veementes em relação aos indígenas partiam dos

comerciantes de bestas que cruzavam as áreas em que estavam sujeitos aos ataques, dos

indígenas. Para os comerciantes de bestas, para os tropeiros, o índio deveria ser simplesmente

eliminado, pois se constituía em sério obstáculo para o livre-trânsito das tropas de muares

que rumavam à feira de Sorocaba, em São Paulo. Pediam, nesse intuito, providências às

autoridades provinciais e durante longos anos essa questão mereceu um capítulo especial

nos relatórios anuais dos dirigentes da província.

A política oficial em relação ao índio nem sempre concorria com o imediatismo dos

tropeiros e dos estancieiros locais, para os quais tratava-se de resolver o problema a

qualquer custo. O governo imperial e o provincial enxergavam o índio de outra forma,

como elemento povoador da zona fronteiriça com as repúblicas do Prata. Tratava-se,

portanto, de submeter e controlar os nativos e não de eliminá-los. Isso implicava adotar

outras medidas no sentido de garantir a presença dos índios na zona de fronteira, mas de

forma pacífica. O governo estabeleceu uma política de aldeamentos – por via da catequese –

para delimitar o espaço de atuação dos índios e sistematizar o controle da população, utili-

zando-a à medida do possível para os interesses governamentais, integrando-a, por via da

produção, à comunidade regional. Ao mesmo tempo, adotou-se uma forte repressão aos

Page 30: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

30

que se negavam a aldear-se ou criavam problemas. No relatório do presidente da província,

em 1852, essa prática em relação ao índio fica explícita:

"...o sistema de força e o de persuasão empregados separadamente para tirar dos

matos os nossos indígenas tem sido ambos improfícuos. Até aqui nos temos limitado: 1°, a

atrair os índios por meio de algumas roupas e ferramentas distribuídas nas aldeias de

Nonohay e Guarita, e a conservá-los ali pelos esforços dos padres jesuítas: de

catequização propriamente dita pouco se tem feito, sem dúvida porque aqueles padres

ignoram a língua, em que deveriam dirigir aos índios as palavras de conversão. – 2° Abater

os índios, perseguí-los e matá-los, quando eles têm feito alguma agressão e a colocar

guardas por algum tempo nos lugares por onde eles tem agredido. Pela simples

enunciação se vê que esses dois sistemas são incompletos; e a experiência os tem

condenado. Os índios recebem roupas e ferramentas e voltam às matas. Batidos e

perseguidos depois da agressão, reaparecem mais hostis em outros lugares, não sendo

possível colocar guardas em todos aqueles por onde eles fazem os seus assaltos ..."1

Como evidencia o relato, essas medidas não davam nos resultados esperados, pois,

fosse qual fosse a estratégia governamental, os indígenas não estavam dispostos a

submeter-se gratuitamente.

Diante dos perigos que sofriam os tropeiros e moradores locais, o governo

tomava medidas preventivas para amenizar a situação, enquanto os resultados esperados

pela política indigenista não tomavam corpo. Dessa forma, em 1846, o Conde de Caxias,

presidente da província, deslocava recursos para esse fim, conforme suas próprias

ordens:

"...para afugentar os bugres selvagens que atacam viajantes nas picadas dos

matos Português e Castelhano ordenei ao Ten. Cel. Antônio Maia, comandante do 2°

batalhão de caçadores e da guarnição de Cruz Alta, que mandasse alargar com mais 20

braças as ditas picadas na extensão de duas léguas e meia pelo mato português e de

meia légua pelo mato castelhano, empregando nesse serviço para maior economia 100

praças do dito batalhão, vencendo a gratificação de 200 reis diários e autorizando-o a chamar

paisanos habituados a esse trabalho:"²

No outro aspecto da estratégia, o de aliciá-los e aldeá-los, o encarregado local sugeria:

"mandar para ali um mestre ferreiro para efeito de ensinar aos índios esse ofício e

encarregar-se de compostura de ferramentas (...).

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31

"É indispensável também um professor de primeiras letras e outro de música com

instrumentos próprios, por serem os mesmos muito apaixonados por música e por esse meio

habituá-los para as danças que sobremodo contribuirá para a sua reunião geral e

permanência no aldeamento'.'³

Apesar dos esforços do Diretor dos índios, a modificação do modo de vida da

população indígena não era uma tarefa fácil e por isso o aldeamento das tribos foi uma

longa luta das autoridades encarregadas da questão. Para os indígenas, o aldeamento sig-

nificava perder a liberdade de circular livremente pelas florestas em busca de caça e em

atividades extrativistas de fazer roçados em terras novas num estilo rudimentar mas

racional diante das condições presentes (abundância de terras virgens). Além disso,

alguns grupos indígenas não viam com simpatia a reunião com grupos rivais. De qualquer

modo, o poderio dos estancieiros com a ajuda governamental submeteu a população

indígena confinando-a em áreas florestais e forçando-a a mudar de comportamento. Já em

1849, no relatório do presidente provincial, essa tendência era evidente: "...o acampamento

da Guarita parece ser o mais adiantado dos dous e tem já mandado ao mercado cerca de 500

arrobas de erva-mate tendo plantado dez a doze alqueires de milho...".4

Essa tendência dos indígenas'do aldeamento do Guarita tornarem-se pacíficos

agricultores sedentários e produtores de ervamate para o mercado era o ideal para as

autoridades locais. Mas, evidentemente nem todos os grupos aceitaram essa condição, pre-

ferindo viver em grupos relativamente pequenos mas com bastante mobilidade pelas

florestas do Alto Uruguai. Em 1850, un censo organizado pelo encarregado do aldeamento

dava conta que em Nonoai, onde se pretendia aldear os índios da região, havia vários grupos

assim divididos:5 "Gente de Vitorino Condá", "Gente de Pedro Neiafé", "Gente de

Conhafé", "Gente de Vutuoro", "em Nonoai".

Não é nosso propósito explicar as razões da existência de várias lideranças

indígenas e respectivos grupos, bem como as suas rivalidades, mas o que parece

importante é que, dessa forma, o agrupamento tornava-se extremamente difícil para as

autoridades encarregadas do aldeamento. Por outro lado, esses grupos pequenos tinham

grande mobilidade no interior da floresta, o que tornava também difíceis as medidas

repressivas.

Entretanto, apesar da longa resistência, os grupos indígenas, à medida que a

fronteira agrícola avançava, obrigavam-se a aceitar as imposições e o aldeamento para

poderem manter-se numa região que já não fornecia mais condições de sobrevivência no

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32

estilo tradicional de caça e extrativismo associados à agricultura de coivara. Talvez o

escritor e político Evaristo Afonso de Castro, numa publicação de 1 887 , resuma bem a longa

luta entre os indígenas e os invasores, demonstrando o triunfo da política governamental:

"O major Oliveira, na Guarita pode travar relações e catequizar o cacique

Fongue de modo que no decurso de alguns anos pode o governo aldear em Nonoahy os

índios que vagavam nesta província apresentando-se depois os que existiam em Guarapuava,

na província clo Paraná. Assim aldeados esses índios tornaram-se nossos fiéis aliados, po-

rém evitando sempre mesclar-se com a população do país e conservando-se sempre sob a

direção de seu cacique."'6

A Formação das Estâncias

Da mesma forma que nas zonas de ocupação mais antigas do Rio Grande do Sul,

a apropriação das terras no planalto começou pelos campos nativos e com a formação das

estâncias pastoris. Um relatório da câmara municipal de Cruz Alta, datado de 1850, nos

dá uma idéia bastante clara desse processo de ocupação de terras:

"...tendo os antigos padres da Companhia de Jesus fundado as reduções nesses

lugares, então só habitada por índios e fundado os Sete Povos da Missões oriental do Uruguai

fizeram estabelecimentos de agricultura e criação em diversos lugares e abandonaram esses

estabelecimentos quando não eram de vantagem, para colocarem em outros lugares. Visto

que só eles habitavam as ditas Missões. Depois de sua extinção os administradores

espanhóis conservaram o mesmo regime e depois da conquista é que começou a ser habi-

tada estas missões pelos portugueses e julgando-se os administradores e cabildos dos

povos com direito de venderem os terrenos de missões, fizeram vendas não só de al-

guns estabelecimentos que ocuparam, como de terrenos devolutos sobre os quais nem

um direito podiam ter, exceto se considerar-se como pertencente as comunidades dos ín-

dios todo o terreno que formava a antiga província de Missões. Como era mais fácil as

pessoas que vinham se estabelecer nesse lugar comprarem a um cabildo o campo que

precisavam por baixo preço, que obter sesmarias, preferiam a esse expediente até que

sendo o comandante geral de missões autorizado a conceder terrenos devolutos a quem os

queria cultivar, e sendo esse meio ainda mais fácil de obter terrenos a ele se recorriam

todos que queriam obter terrenos. Este concedia a quem pedia desde que pela informação do

comandante do distrito e resposta das áreas confinantes lhe constava estar o terreno

desocupado, sem distinguir se pertenciam ou não a comunidade dos índios.

Page 33: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

33

"Por esta razão são muito raros os terrenos obtidos por sesmarias nesse

município, e os únicos títulos que há de propriedade dos terrenos é além da posse, vendas

feitas pelos cabildos dos povos e concessões dos comandantes gerais. Mas pelo que

ficou dito por sem dúvida conhecerá V. Exa. que nem os títulos de vendas feitos pelos

cabildos denota que o terreno foi propriedade dos índios...

"Só que pode saber com alguma exatidão dos prédios que conservaram até a sua

extinção e alguns que ainda há vestígios dos estabelecimentos que tiveram no lugar.

Desses pelas informações que pode obter esta câmara, consta que existe nesse primeiro

distrito as estâncias da Conceição, hoje em poder de Antônio Fernandes de Almeida

e a da Tupanciretã em poder de João Nunes da Silva, da vila de Alegrete e não pode a

câmara obter o conhecimento da extensão dos campos de ditas estâncias e nem dos

títulos por que são possuídas...

"No 8° distrito não pode também esta câmara ter perfeito conhecimento se existia

estabelecimentos dos índios, porém informa que como no segundo distrito, há muitos

campos cujos títulos são compras feitas aos cabildos. Além dos estabelecimentos que foram

dos Povos das Missões, das ruínas dos mesmos povos, telhas e mais objetos que os par-

ticulares terem tirado de ditos povos não consta a esta câmara que haja mais bens alguns

em circunstâncias de serem incorporados aos próprios nacionais. São estas as informações..."7

Conforme o documento, os campos nativos foram conquistados pelos futuros

estancieiros através do simples expediente de obter concessão das autoridades militares

locais. Dessa forma, militares e tropeiros conseguiram a preços irrisórios vastas áreas de

campo nativo que deram origem às grandes estâncias das quais ainda restam resquícios.

A concessão da terra tinha alguma ligação direta com o governo imperial, que poderia

recomendar os beneficiados. Em geral, porém, tudo era articulado em nível local. As

autoridades "vendiam" as terras a militares e tropeiros e certamente a corrupção era

constante. Mas sobretudo o fato das terras serem de fronteira e de população escassa foi o

que estimulou e deixou à vontade as autoridades locais para distribuir terras a quem quisesse.

O interesse dos beneficiários da concessão de terra resumia-se a zonas de campo

nativo e à criação de gado. Isso é justificável se lembrarmos que a região de Cruz Alta era

rota de gados muar e vacum para as feiras paulistas desde o século XVIII. A freguesia do

Divino Espírito Santo da Cruz Alta, criada em 1821 primeira da região serrana, era local de

invernada de gado ao longo do caminho que demandava a província de S. Paulo. Por

Page 34: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

34

outro lado, a agricultura nessa área não tinha condições de ir além da mera produção para

subsistência por absoluta falta de pessoal de transporte. Não se podia produzir algo

comercialmente viável como o era a cana-de-açúcar do Nordeste ou o trigo no vale do Rio

Pardo, próximo a Porto Alegre – onde o transporte era fácil e comércio mais intenso.

Em 1850, os campos nativos de toda a região já estavam todos apropriados. Um

relatório da câmara municipal de Cruz Alta, feito a partir de informações dos juízes de Paz

dos distritos, informa detalhadamente as terras devolutas que existiam naquele município

naquela data. Pelo relatório, que descrevemos (Anexo N" 1), pode-se notar que as terras

devolutas eram florestas e tinham grande extensão.8

A Extensão das Estâncias

É consensual na historiografia rio-grandense, que as estâncias pastoris tinham sido

grandes propriedades. A distribuição de sesmarias no século XVIII e no princípio do XIX

tinha como padrão uma área de três léguas de fundo por uma de frente, o que eqüivale a

cerca de treze mil hectares. A pecuária extensiva exigia uma área grande para a

alimentação dos animais de forma natural, aproveitando a pastagem nativa.

São poucas as sesmarias distribuídas na região serrana pois o povoamento efetivo

se iniciou na década de 1820, quando a lei de sesmarias foi abolida pelo Império do Brasil.

A partir de 1822, as terras eram concedidas através de títulos de posse.

O registro paroquial de terras nos dá uma noção da área das propriedades no

município de Cruz Alta. Em um dos livros da paróquia daquele município, os registros

indicam que cerca de 90% dos estabelecimentos tinham área superior a cem hectares e as

propriedades entre 1001 e dez mil hectares representavam mais de 30% do total registrado

com área discriminada. Esses índices são resultantes dos registros que discriminam a área

do estabelecimento, pois de modo geral os informes não mencionam o tamanho da terra

registrada e limitam-se a descrever a localização aproximada.

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TABELA N" 2 – ÁREA DAS PROPRIEDADES REGISTRADAS EM CRUZ ALTA1855/1856

menos de100ha

menos de1000ha

menos de10.000ha

mais de10.000ha sem especifi-

cação deárea

Wirriero depropriedades

9 72 47 10 144

Fonte: Livro número 6 do registro paroquial de terras da Paróquia do Divino Espírito Santo da Cruz Alta (1855-

1856) – Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

Apesar da fragilidade dessa fonte, os dados coincidem com a evidência que nos

indica a historiografia regional referente às demais regiões do Rio Grande do Sul,

sobretudo se considerarmos a estrutura fundiária de anos posteriores, para os quais temos

dados mais precisos. No censo de 1920, as grandes propriedades rurais da região

localizavam-se justamente nos municípios de tradição pastoril e que ainda mantinham essa

atividade de forma hegemônica (Tabela n° 3).

TABELA N° 3 – CENSO DE 1920 – NÚMERO DE ESTABELECIMENTOS RURAIS E SUAÁREA EM ALGUNS MUNICÍPIOS DO RS

Tot.Est.

-41ha

41100

101200

201400 401

100010012000

20015000

50011000

0

1000125000

25001e mais

Cruz Alta 2538 1394 602 222 311 104 49 31 18 5 2

Erechim* 4922 3722 992 154 30 16 6 1 1

Ijuí* 3083 2255 685 103 27 11 1 1

Júlio de Castilhos 1826 770 532 181 119 135 40 30 10 1

Lagoa Vermelha 3641 2002 1012 283 154 126 43 18 3 1

Palmeira 2700 1124 978 276 152 99 40 23 7 1

Page 36: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

36

Passo Fundo 3105 1522 941 305 170 98 34 27 5 2 1

Fonte: Recenseamento do Brasil 1920: Agricultura, Rio de Janeiro IBGE, 1927. p. 184191 – Apud "De provínciade São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: censos do RS, 1803-1950. Fundação de Economia eEstatística. Porto Alegre: FEE, 1981.

* Municípios de origem colonial.

Os municípios de Erechim e Ijuí foram fundados a partir da colonização oficial,

obtendo os colonos pequenas propriedades em áreas de mata virgem. Os demais

municípios da tabela tinham cobertura original vegetal de campos nativos na sua maior parte e

foram criados a partir da pecuária iniciada nas primeiras décadas do século XIX. As pequenas

propriedades que aparecem nesses municípios são em significativa parcela decorrentes do

processo de colonização com base na pequena propriedade que nesse período,

desenvolvia-se nas áreas de mato pertencentes aos respectivos municípios

hegemonicamente pastoris. Os núcleos coloniais desses municípios ainda não haviam se

emancipado na data do censo. É o caso das colônias General Osório e Neu Württemberg em

Cruz Alta, por exemplo. As pequenas propriedades concentram-se nos municípios ditos

coloniais; os percentuais indicam cerca de 75% e 73% para Erechim e Ijuí

respectivamente enquanto nos municípios pastoris esse índice oscila entre 41% em Pal-

meira e 54% em Cruz Alta. Nesse último já havia várias colônias instaladas na época do censo,

conforme ressaltamos.

TABELA Nº 4 — PERCENTAGEM DE ESTABELECIMENTOS RURAIS

CONFORME A ÁREA — CENSO DE 1920

Fonte: Recenseamento do Brasil – 1920: Agricultura, Rio de Janeiro – IBGE, 1927. P. 184-191. Apud: Deprovíncia de Silo Pedro a estado do RS-- censos do RS: 18031950, Fundação de Economia e Estatística. Porto

Alegre, 1981.

Por outro lado, é presumível que os pequenos agricultores, os camponeses pobres,

Page 37: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

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não se dirigissem ao pároco local para dar conta das terras que cultivavam. Era comum entre

os agricultores pobres o uso das terras florestais sem a formalidade jurídica da posse;

além disso, praticavam uma agricultura que exigia grande mobilidade para aproveitar os

recursos naturais do solo, através do pousio longo. Esses pequenos agricultores, tais como

os estancieiros, eram posseiros e tinham o direito à propriedade conforme o estabelecido

pelo lei de terras de 1850. A não-habilitação dos posseiros pobres deve-se ao descaso que

faziam da importância do registro; talvez nem mesmo tenham tomado conhecimento de tal

procedimento, já que habitavam as áreas mais distantes da paróquia e pouco freqüentavam a

igreja. Não há, também, garantia de que o pároco tenha divulgado a importância do

registro entre as camadas pobres da população. Enfim, as evidências mostram que os

lavradores pobres não compareceram ao registro paroquial, em sua maioria. A grande

massa de agricultores vivia do extrativismo de erva-mate e os ervais eram da

municipalidade, que concedia os espaços entre as árvores para a agricultura, para que os

lavradores mantivessem os ervais limpos e protegidos.

O Militarismo e a Apropriação da Terra

A apropriação das terras e a formação das estâncias pastoris do sul do Brasil teve

no seu bojo uma forte presença militar. O militar, desde a ocupação do território sulino pela

coroa portuguesa no século XVII, recebia como prêmio áreas de campo corno incentivo para

defender ou conquistar novas áreas dos castelhanos da bacia do Prata. No século XVIII,

esses militares passaram a constituir uma poderosa classe de grandes proprietários –

militares que procuravam expandir a apropriação dos campos nativos em direção às áreas

ocupadas por castelhanos.

Sebalt Rüdiger caracterizava bem esse processo militarista de apropriação das

terras sulinas quando escreve que:

"a colonização ia decorrendo das circunstâncias militaristas dos vais e vens do

expansionismo Luso-espanhol (...), A sociedade sulina devia plasmar-se sob a égide, o

controle de uma classe de estancieiros-soldados. Eles eram originários das tropas do

exército colonial e seus serviços lhes valeram o privilégio de ocuparem sem embaraços os

campos lentamente ganhos ao inimigo, tinham consciência de ganhar aquilo pelo que

lutavam e arriscavam a vida – seu prestígio crescente e inevitável inquietava naturalmente

o governo colonial, mas o limite para uma reação se estreitava tanto mais quanto

permanecia indefinida a pendenga secular com os castelhanos. Não se podia pensar em

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acabar com a nova classe, senão a guerra seria perdida."'9

O autor faz suas afirmações alicerçado na concessão de terras efetivada no século

XVIII. Nos registros de terra, a maioria dos concessionários é de origem militar.

Obviamente, a ocupação das terras do Sul não se limitou a esse aspecto militar

mas não há dúvidas que o militarismo é um fator importante para analisar esse processo.

Nesse sentido, a conquista das missões em 1801 por milicianos gaúchos confirma as

iniciativas locais de avançar sobre os campos nativos e do estabelecimento de estâncias sob a

égide do militarismo.

A bibliografia a respeito do militarismo dos estancieiros gaúchos é abundante na

historiografia rio-grandense embora faça apologia de um suposto heroísmo dos

estancieiros, o que justificaria a posse dos latifúndios pastoris do ponto de vista moral.

Particularmente na formação das estâncias do planalto, que nos interessa e que é

mais recente, seguiu-se o mesmo modelo. A freguesia do Divino Espírito Santo de Cruz

Alta, instalada em 1821 e emancipada em 1834, teve seus vastos campos apropriados a

partir da conquista das missões em 1801. As autoridades militares do território tomado

aos castelhanos doavam ou vendiam a preços irrisórios os campos a militares e tropeiros.

É notória a presença de militares estancieiros na nominata inaugural da câmara

municipal de Cruz Alta, primeira da região. Um dos vereadores (a título de exemplo), o

alferes Athanagildo Pinto Martins, mais tarde coronel, foi um dos pioneiros na criação de

gado. Segundo uma correspondência do comandante das missões de 1816, o dito alferes

fora

"...encarregado de procurar trânsito para uma estrada, desde o acampamento ou

povoação de ATALAIA – no extremo setentrional dos campos de Guarapuava e 115 léguas de

caminho distante da cidade de São Paulo – para esse país, conforme a ordem que

recebera e vai inclusa por cópia do Ten. Cel. Diogo Pinto de Azevedo Portugal,

comandante em Chefe da Real expedição e conquista de Guarapuava..."'10

Militar e aventureiro, conforme evidencia o documento acima, o alferes – que era

filho de capitão-mor paulista – tornou-se proprietário de grandes extensões de campo. No seu

inventário Post-Mortem constam inúmeras invernadas, escravos, fazendas e um bom

número 'de animais.

Outro vereador da mesma câmara, o ten. cel. Joaquim Thomas da Silva Prado,

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declarou ao registro paroquial de terras em 1855 a extensão de 39,2 hectares de campos,

obtidos por "despacho de concessão do comandante da fronteira, cel. João Palmeiro em 4 de

abril de 1825.11 Ainda no mesmo registro, o mesmo ten. cel. declarava várias fazendas

em nome de parentes. O seu inventário Post-Mortem, é invejável; constam várias

fazendas, campos, equipamentos e escravos.12 Do mesmo modo, o cel. Vidal José do

Pillar, tido como um dos primeiros fazendeiros locais, deu origem a uma rica família de

chefes políticos e militares.13

A participação das elites locais nas guerras internas do país e nas externas sempre

foi intensa. Na Guerra dos Farrapos, entre 1835 e 1845, a elite local dividiu-se e tomou

parte ativa em ambos os lados. Já na guerra do Paraguai, vários grupos de combatentes

foram formados, chegando a haver escassez de braços nas atividades locais. Em 1867,

em plena guerra, a câmara municipal de Cruz Alta enviava um ofício ao governo

provincial com uma nominata de "cidadãos que têm prestado serviços ou concorrido com

auxílios para a atual campanha contra o Paraguai". O mesmo ofício reclama que um capitão

local ainda não fora condecorado pelos seus serviços como voluntário na guerra, para o

qual organizara um corpo de 120 homens. Os nomes da lista são de tradicionais famílias

locais. Segundo o informe da câmara, tiveram heróica participação no comando de atividades

militares. Evidentemente que a nominata restringe-se aos chefes militares e pouco se faz

referências aos soldados "voluntários", a não ser quando esses desertavam.14

Os nomes desses chefes estancieiros e militares também figuram na comissão

encarregada de compra de cavalos. Não se trata de historiar a participação. O

envolvimento na guerra era uma forma de manter o tradicional prestígio militar e dessa forma

manter o poder de influência nas decisões políticas e econômicas.

Após a guerra contra o Paraguai, o capitão da Guarda Nacional e coronel honorário

do Exército, Tibúrcio Alvares Siqueira Fortes, que participou do conflito como

comandante do sexto Corpo Provisório de uma das divisões militares, foi protagonista de

um disputado processo de apropriação de terras. Na década de 1870, já muitos campos

nativos estavam privatizados. Restavam então avançar sobre os matos devolutos e os ervais

públicos onde viviam agricultores extrativistas pobres. Com o cargo de juiz-comissário do

município de Santo Antônio da Palmeira, encarregado de medir terras devolutas, o dito

capitão passou a demarcar arbitrariamente os ervais em que trabalhavam centenas de

coletores de erva-mate, que faziam ali seus roçados além de exploração do mate.

Evidentemente, a relação entre apropriação de terras e militarismo não é um fenômeno

novo, pois as usurpações, de modo geral, são sempre fruto da força e da arbitrariedade. O que

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se pode destacar no caso sulino é que os usurpadores de terra procuram ter um respaldo

moral, à medida que se apresentam como defensores da pátria diante dos tradicionais

oponentes estrangeiros da bacia do Prata. Dessa forma, as lutas internas que travam contra a

população desprivilegiada passam despercebidas.

Um exemplo notável dessa postura é o caso do comandante da fronteira do Rio

Grande, em 1774, ao qual o vice-rei português dirigiu a denúncia de que

"...um daqueles escandalosíssimos proprietários que tem feito por esse estranho

modo as maiores usurpações é o coronel Rafael Pinto Bandeira que, fazendo-se absoluto

e temido por todos, em razão do autorizado posto que ocupa e aproveitando-se daqueles

conhecimentos que tem do país, para fazer a sua escolha livremente se acha com a sua

numerosa parentela ocupando grandes extensões de terrenos e os mais bem situados,

estabelecendo com duas largas estâncias para a criação de animais e tirando de outros a

utilidade da venda que faz a diversas pessoas.15

O referido coronel é tido como herói nas lutas contra os espanhóis do século

XVIII. Em sua defesa, o historiador Guilhermino César diria:

"...mas o herói de Tabatingaí, de Santa Tecla e de São Martinho não seria

poupado, depois de tanto servir aos interesses da coroa, nem mesmo em sua honra,

armou-se contra ele um processo-crime, após a expulsão do espanhol sob a acusação de

se ter locupletado com as presas de guerra feitas em Santa Tecla."16

A prática desse herói sulino, sem entrar no mérito de seu heroísmo, foi assumida pelos

fazendeiros do século XIX, porque, grosso modo, a sociedade pastoril do Rio Grande do Sul

pouco udara de um para outro século tanto em termos econômicos como de comportamento.

Daí que muitos estancieiros de Cruz Alta e região tornaram-se "heróis" da guerra do

Paraguai.

Os Ervais e as Terras Florestais

A erva-mate, ao lado da pecuária, foi um dos principais produtos da região serrana

durante o século XIX. Particularmente, o mate tinha especial importância por ser a principal

fonte de recursos das câmaras municipais, através do tributo que incidia sobre a exportação

do produto. Embora o gado fosse o principal produto regional, o tributo sobre sua exportação

para outras províncias ou para o exterior era arrecadado pelo governo provincial.

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A tabela n° 5, organizada a partir dos demonstrativos das câmaras municipais, ilustra a

importância do mate nas receitas municipais (Ver tabela na página seguinte).

No município de Santo Antônio da Palmeira a arrecadação total dos anos de 1874 a

1880 indica um índice de 58% para a participação do mate na receita.'17

Além desses números, as câmaras municipais, em várias correspondências, deixam

saliente a importância do mate para as receitas dos municípios. Nesse sentido, a câmara

de Cruz Alta, em 1852, informava:

"Todos os ervais encravados nas serras a câmara os tem considerado públicos,

desde que sua instalação em 1835, por meio de suas posturas, fazendo a principal parte

de suas rendas e impostos de 40 reis em arroba que pagam os exportadores, não consentindo

que os particulares se apossem deles como propriedade, permitindo porém a todos o fabrico

da erva."18

Com essa representatividade nas receitas municipais, a extração da erva-mate

recebia muitas atenções da municipalidade, no sentido de manter a produção em níveis

ótimos. Essa atenção aos ervais implicava manter rígido controle sobre o corte do produto

e impedir a destruição das árvores que corriam sérios riscos caso não fossem respeitados

os períodos ideais para a poda. Além da questão da poda em tempo certo, o fogo era um

grande inimigo dos ervais, numa época em que queimar roçados era uma prática cotidiana.

TABELA N° 5 – PARTICIPAÇÃO DO IMPOSTO SOBRE ERVA-MATE NA RECEITA DO

MUNICÍPIO DE CRUZ ALTA

Imposto sobre aRECEITA exportação deerva-mate(em réis) (em réis)

1860 1 18.531$780 9.916$880 53

1861-62 2 24.760$415 10.060$480 40,6

1865-66 3 8.090$830 5.621$580 69

1870-71* 4 20.8849.218 9.430.992 45

1871-72* 4 24.218.131 9.532.343 391872-73* 4

24.040.468 12.520.940 52Fontes:

1 – Orçamento da receita e da despesa da câmara municipal da vila de Cruz Alta apresentado à assembléiaprovincial no ano de 1860. Porto Alegre, TYP. do Conciliador, 1860 AHRS – CCMCA CX 110 doc 390 A;

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2 – Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Rio Grande Sul pela Câmarada vila de Cruz Alta. P. Alegre TYP do Mercantil. P. Alegre. 1862. (B.N. );

3 – Relatório da Câmara de Cruz Alta – 11 janeiro 1870 – AHRS CCMCA, CX 159;

4 – Relatório da Câmara de Cruz Alta – 30 de janeiro 1874 – AHRS CCMCA, CX 159.

É pertinente reproduzir alguns itens do código de posturas da câmara municipal de

Santo Antônio da Palmeira redigido em 1875 e que seguia as normas em vigor no município

de Cruz Alta desde 1835, ao qual pertenciam os ervais lá situados antes da emancipação

desse distrito: '19

"ART. 41 – São considerados como públicos todos os ervais dessemunicípio que estiverem descobertos ou possam a se descobrir emterrenos devolutos, onde se poderá colher erva-mate em comum."ART. 42 – Ninguém poderá colher nem fabricar erva-mate sem terobtido licença da câmara que lhe será concedida por intermédio doprocurador e seus fiscais nos distritos onde estiver o erval, a qual terávigor durante o ano que foi concedida. Esta licença será fornecida emtalões assinados pelo procurador da câmara. O contraventorincorrerá em multa de 10$000 e pena de oito dias de cadeia."ART. 43 – É proibido colher erva-mate nos meses de outubro,novembro, dezembro, janeiro e fevereiro."ART. 44 – É proibido colher erva-mate de brote sem ter decorrido de umaa outra poda quatro anos."ART. 46 – É proibido fazer roças contíguas a ervais ou em matos ondetenha erva e queimá-los sem ter feito um ACEIRO pelo menos desete metros bem limpos para impedir incendiar-se o erval. Entende-sepor lugar contíguo ao erval distante das roças ao menos 500 metros."

Existiam ervais privados, sobre os quais a fiscalização era difícil de efetivar-se. As

próprias autoridades tinham receio de tomar medidas, em função do direito de propriedade,

preferindo abster-se. É o que fica explícito nesse ofício dos vereadores cruzaltenses ao

governo provincial em 1850:

"...Releva aqui ponderar a V. Exa. Que nos grandes capões imediatos a serras há

abundância de erva, porém como esta câmara não tenha querido invadir o direito que nela

possam ter os proprietários ou posseiros dos campos, se tem abstido de tomar medidas a

respeito..."20

De qualquer forma, tudo indica que a maior parte dos ervais eram públicos e, a julgar

pelos reclames sobre a má qualidade da erva-mate produzida, a fiscalização de modo geral era

ineficiente.

Por outro lado, se a condição pública dos ervais não foi suficiente para controlar a

qualidade da produção, pelo menos foi eficiente para controlar o acesso à terra. Sendo

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públicas as terras de ervais nativos, o acesso ao solo era disciplinado pelas câmaras

municipais. Dessa forma, os coletores de mate não eram posseiros no sentido jurídico da

palavra, o que os tomava vulneráveis aos processos de apropriação que iriam se

desenrolar no decorrer do século XIX.

Se a condição de terras públicas permitia o acesso dos agricultores pobres ao

extrativismo e às roças, por outro lado essa mesma condição era muito instável à

medida que a terra estava sujeita a um processo de privatização pelas elites locais, que aos

poucos transformaram os ervateiros em proletários sem terras, forçando-os a emigrar para

áreas inóspitas e devolutas ou a submeter-se à condição de peões das estâncias em

substituição aos escravos.

A privatização dos ervais públicos e das terras de floresta iniciou-se numa fase

posterior à apropriação dos campos nativos. Essa fase foi uma etapa de longa luta na qual os

coletores de erva acabaram por submeter-se à força dos usurpadores que controlavam

várias instâncias do poder público e não vacilavam em usá-las em proveito próprio.

Podemos considerar a década de 1860 como início do avanço que ocorreu sobre as

zonas florestais, em termos de privatização.

É claro que a privatização de terras de mato vinha se desenvolvendo

paralelamente à dos campos, mas até essa data o confronto com pequenos agricultores e

ervateiros era irrelevante, pois os ervais eram públicos e havia abundância de terras

florestais devolutas.

Mas, a partir da Lei de Terras de 1850, regulamentada em 1854, todas as terras

tidas como devolutas tornaram-se objeto de venda pelo governo. A ocupação de terras

não mais poderia ser "mansa e pacífica", na expressão usada na época, mas sim através

da compra. Dessa forma o acesso à terra, do ponto de vista legal, ficou difícil para as

camadas pobres da população camponesa, mas nem tanto para as elites locais, que além de

regularizar suas propriedades procuraram avançar ou incorporar novas áreas onde viviam

muitos posseiros pobres sem poder para reagir.

Na década de 1860 os conflitos entre extrativistas-agricultores e latifundiários

tomam corpo. Em 1862, poucos anos após a regulamentação da Lei de Terras e do registro

paroquial de 185556, uma representação de ervateiros deu queixa à câmara de Cruz Alta

da tentativa de apropriação de terras por parte de usurpadores locais. Diz o documento

"Foi apresentada nesta câmara a petição que a V. Exa. designarão os moradores do

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erval do Faxinal representando contra o juiz-comissário desse município, o capitão Fran-

cisco José Alves Monteiro por ter procedido irregularmente na medição dos campos de

Monte Alvão, incluindo nessa medição esse erva l sem respei to as pessoas nela

estabelecidas, e tendo esta câmara em data de 4 do corrente oficiado ao mesmo juiz

pedindo-lhe esclarecimentos, esse nem uma atenção prestou ao pedido (...) não sendo a

primeira irregularidade cometida por esse juiz..."21

Essa reclamação dos moradores mostra a flagrante arbitrariedade das autoridades. O

juiz nem sequer se dignou a responder à interpelação da câmara, que por sua vez tinha

interesse em manter o controle dos ervais, conforme já comentamos acima. Por outro lado, o

episódio demonstra o conflito entre os poderes municipais e os imperiais. Nesse caso, o juiz,

ao medir as terras para o fazendeiro, estava amparado na própria lei de terras que autorizava a

legitimação das posses efetuadas de forma mansa e pacífica antes de 1850.

O artigo quinto da Lei número 601 de 18 de setembro de 1850 em seu parágrafo

primeiro diz que:

"...cada terra em posse de cultura ou em campos de criação compreenderá: além do

terreno aproveitado ou do necessário para pastagens dos animais que tiver o posseiro,

outro tanto mais de terreno devoluto que houver contínuo, contanto que em nenhum a

extensão total de posse exceda a de uma sesmaria, para cultura ou criação, igual as últimas

concedidas na mesma comarca ou nas mais vizinhas".22

Evidentemente, no caso, as terras que o fazendeiro pretendia incorporar como

contíguas não eram devolutas, se considerarmos como posseiros os ervateiros

reclamantes. O difícil, no entanto, estava em convencer o juiz e o fazendeiro de que

os ervateiros teriam direito sobre o erval como posseiros ou como usuários de um bem

público. A Lei de Terras, no entanto, tinha uma série de artigos que procuravam impedir

esse tipo de arbitrariedade através da "fixação de editais em lugares públicos" e de audiências

com os confrontantes. Mas, certamente, como fica evidente em vários conflitos dessa

natureza, o juiz fazia pouco caso dos artigos inibidores da arbitrariedade, constantes na

Lei.23 Por outro lado, é pouco provável que a população pobre tivesse conhecimento da lei; e

também eram poucas as possibilidades de reagir diante do poder dos usurpadores, numa

terra e numa época onde a arbitrariedade era prática comum.

A privatização do erval citado acima era uma contradição no sistema de coleta de

mate, à medida que proibia o acesso dos coletores ao produto que até então era

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regulamentado pelas normas municipais tradicionalmente respeitadas pela população lo-

cal. Os coletores, acostumados com essas normas tradicionais, não tinham a mesma

preocupação ou não tinham condições de privatizar o erva!, sendo-lhes desnecessária

a propriedade jurídica dos terrenos.

Os processos de apropriação jurídica das terras a partir da década de 1860 tendeu

a avançar e a agravar cada vez mais a situa-ção dos posseiros pobres. A condição de

fronteira de boa parte das terras da região permitia a concessão gratuita dos terrenos,

conforme o artigo primeiro da lei de Terras de 1850:

"Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de

compra. Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em

uma zona de dez léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamen te."24

A gratuidade das terras não era suficiente para que os agricultores e os coletores de

mate tivessem o acesso à propriedade: também nessa faixa de fronteira a apropriação era

iniciativa de oportunistas e usurpadores, da mesma forma que em outras áreas fora da zona

fronteiriça.

Um historiador local, reportando-se à Lei de Terras de 1850, que distribuía terras

gratuitamente aos interessados, é preciso ao afirmar que

"...um fator consideravelmente desfavorável resultava das disposições legais. A lei das

terras, com seu regulamento, a par das terras devolutas que o governo fazia, ensejava a

medição das posses dos particulares. Estes deveriam suportar os encargos financeiros

dessa medição, que não seriam poucos. Ao contrário, acontecia que grande parte dos mora-

dores de Campo Novo, com raras exceções se constituía de gente pobre, humilde, sem

recursos, que vivia da exploração dos ervais públicos ou que ocupava seu tempo na con-

dição de simples peão, agregado, ou apenas era fazedor de erva mate para os donos de

engenhos."25

O caso a seguir, num documento da câmara de Santo Antônio da Palmeira de 1877,

demonstra essa situação:

"...constando a esta câmara que foi pelo governo imperial nulificado a concessão feita

na zona de dez lagoas no Alto Uruguai assim considera esta câmara nulos os atos pelo co-

missário ad hoc que mediu parte do 3° distrito desta vila... ficando assim isolados parte dos

habitantes do Campo Novo que não puderam por sua pobreza medir os terrenos que

ocupavam, aliás ocupados aos mesmo tempo. Tendo desta forma despovoado-se o

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mencionado distrito, em vez de se essenderem no país, passarão a povoar terras no estado

vizinho em número talvez de duzentas almas..."26

Destaca-se nesse documento uma realidade importante no processo de apropriação

de terra: os camponeses pobres não tinham recursos para medir as terras a que teriam

direito legalmente por serem posseiros. Não tinham certamente condições de pagar ao

agrimensor os serviços, e nem de encaminhar a solicitação junto às autoridades

governamentais, que cobravam, por menos que fosse, uma quantia em selos, pela

tramitação e pela legalização dos processos. Em caso de alguma contestação, a

contratação de um advogado seria impossível. Aproveitando-se dessas condições, os

usurpadores requeriam as terras às instâncias superiores e tornavam-se proprietários delas

em detrimento dos posseiros que ali viviam. Não devia ser raro chegar algum sujeito com um

título de proprietário da terra na mão e apresentá-lo aos que realmente ocupavam as terras e

usufruíam delas.

As medições eram obra de um juiz-comissário, que usava sua autoridade para a

privatização de terras em detrimento dos moradores, sem ouvir os apelos da câmara

municipal. Eis aqui uma dessas reclamações municipais ignoradas:

"...constando a esta câmara que se acha o Dr. Acauã juiz-comissário de Passo Fundo

medindo os campos denominado Campo Novo por petições de alguns habitantes do mes-

mo campo, constando porém a esta câmara que o referido campo sempre tem sido

considerado como servidão pública e que fazia parte do patrimônio desta municipalidade,

quando pertencendo a esse município, constando que por mais de uma vez essa

municipalidade ordenou a retirada de porção de animais que diversos moradores tentarão

criar, dentro do referido campo por tanto, querendo esta câmara tomar medidas a

respeito visto que pertencendo anteriormente dito campo à essa municipalidade, hoje deve

ter passado a esta o mesmo domínio, para cujo fim tomou a deliberação pedindo a V. S. dar

a esta câmara o que por ventura possa existir no arquivo dessa.27

O município de Santo Antônio da Palmeira, ao desmembrar-se de Cruz Alta em

1873, diz ter assumido o patrimônio daquele, referente às terras de Campo Novo, bem

como dos ervais. O Campo Novo era um distrito e centro ervateiro do município e portanto

considerado de domínio público. Esse distrito tinha uma pequena área de pastagens naturais

cercada de matas com erva-mate e era utilizada de forma comum pelos ervateiros para

o pastoreio de seus animais.

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O juiz-comissário que determinou a medição e portanto a usurpação de uma área de

domínio público por fazendeiros e pessoas influentes politicamente, e que articularam a

apropriação diretamente nas instâncias superiores, representa uma política deliberada

nesses anos no sentido de avançar sobre as áreas devolutas, que existiam em abundância na

região. A localização próxima da fronteira, que permitia a pura e simples requisição sem

maiores ônus, levava a que pessoas bem-informadas juridicamente e com poder suficiente

para tanto iniciassem um processo de privatização das terras, entre as quais se incluíam os

ervais que até então haviam sido explorados de forma comum.

Era corrente o confronto entre o poder municipal e o imperial no processo de

privatização das terras. A execução da Lei de Terras era responsabilidade do governo imperial

através da presidência da província, que se encarregava de nomear os juízes-comissários

para atuarem nos municípios. No caso das terras de ervais, as câmaras, por unia

questão política e devido à importância do mate na receita municipal, procuravam manter o

controle e normalmente defendiam os ervateiros.

Um caso típico desse confronto foi uma tentativa de medição dos ervais do Campo

Novo em 1876. Uma representação de moradores denunciou que o juiz-comissário passara

a medir os terrenos "ocupados por mais de três mil almas". Reclamavam ainda os

moradores que

"[o] dito juiz-comissário não tendo ern consideração os graves prejuízos que causa

aos habitantes do sobredito distrito em dividir a meia dúzia de interessados fazendo assim um

prejuízo considerável a Hm' Câmara sobre as rendas do município, visto que os ervais

(...) ficam pertencendo a propriedade particular...28

A defesa dos ervateiros e dos lavradores teve o apoio dos comerciantes de erva-

mate, que possuíam razoável força de barganha em nível municipal, bem como da

municipalidade que tinha consciência da perda do controle dos ervais e de suas conse-

qüências na arrecadação de tributos. Nesse particular, os queixosos não esqueceram de

lembrar a sua importância econômica para o município.

O primeiro nome da lista de signatários é exatamente o do fiscal da erva-mate, José

Duarte da Silva Paran hos, e o apresentante da representação é o juiz de Paz da localidade.

Na batalha jurídica pela posse de terra o poder imperial parecia ter vantagens diante

do diminuto poder municipal. Nessas condições a população ligada ao extrativismo da erva-

mate resolveu apelar diretamente ao imperador num abaixo assinado de 1879. O documento é

longo e exaustivo em suas argumentações, cujas premissas são as seguintes:

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1°) o governo imperial teria autorizado os moradores ligados ao extrativismo do niare

a usufruírem dos ervais pelo aviso de 20 de maio de 1861;

2°) o juiz-comissário estaria medindo terras de forma criminosa e contra a "disposição

da Lei n° 601 de 18 de setembro de 1850 (a Lei de Terras) artigo 1° que proibiu a aquisição

de terras devolutas";

3°) os habitantes expulsos das terras estariam sujeitos "a mendigar o pão para

suas famílias em país estranho", porque seriam tomados os únicos terrenos que lhes foram

concedidos na "pátria que os viu nascer";

4°) acusam os ricos e poderosos de quererem essender seus domínios e de oprimi-

los pela violência;

5°) denunciam os mecanismos fraudulentos usados para comprovar o direito de

posse dos expropriadores.29

O aviso de 20 de maio de 1861 a que se referem os suplicantes permitia que se

distribuíssem aos coletores de erva-mate os ervais nacionais, nos termos da Lei de Terras

de 1850, mediante as seguintes condições:

1°) serem devolutas as terras em questão;

2°) ser feita a distribuição em lotes conforme as forças de cada família;

3°) serem esses terrenos medidos e demarcados antes da concessão;

4°) o governo deveria aprovar um plano de distribuição das terras e conservação

de matos a ser apresentado pela presidência provincial.

O apelo dos suplicantes enfatiza dois aspectos significativos no processo de

apropriação das terras. O relator, sutilmente, faz referência à possibilidade dos habitantes

mudarem-se para país estranho, no caso, a Argentina, ao mesmo tempo em que lembra a

"valorosa participação" dos habitantes do Rio Grande do Sul nas lutas fronteiriças contra o

Uruguai, o Paraguai e a Argentina. Outro ponto destacado no apelo é a própria Lei de

Terras que, nesse caso, é citada em favor da população pobre, que assina o docu-

mento, no sentido de impedir que falsários, através do simples expediente de pagarem multa

por não terem registro, se apossem da terra.

Para complicar ainda mais a situação dos coletores de erva-mate, a câmara

municipal de Santo Antônio da Palmeira requereu a área em questão como patrimônio

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municipal em 1877. O pedido da Câmara não foi atendido mas foi mais um entrave à

regularização das ditas terras. Ou seja, o poder municipal era mais um interessado na

disputa pela terra, cujo controle já vinha exercendo através de leis municipais que ficaram

obsoletas diante da Lei de Terras do Império, no momento em que a discussão tomou

caráter de batalha jurídica.

O juiz-comissário, por sua vez, ciente de seu poder e da possibilidade de

manipulação, acusa a câmara municipal de vender terras aos agricultores e iludi-los, pois

as terras não estavam sendo legitimadas. Por outro lado, o juiz encontrou um agitador

entre os habitantes e acusou-o de insuflar o povo contra a Lei. Afirma o juiz Tibúrcio

Alvares de Siqueira Fortes que "...entre algumas das causas resulta o criminoso procedi-

mento de Luiz Minho Flores com suas consecutivas proclamações em diversos pontos do

município onde possa ser ouvido (...) contra as leis que nos regem, aconselha aos posseiros

que não procedam a medida alguma...30

Sem discutir o mérito da acusação do juiz-comissário, não é por acaso que o

ervateiro Luiz Minho Flores foi assassinado em 1881 por um proprietário de terras, que se

defendeu argumentando que a vítima invadira sua propriedade para retirar erva-mate.31 O

mesmo Luiz Minho Flores aparecia novamente nas páginas dos processos judiciais alguns

anos após sua morte, numa ação de despejo impetrada contra sua família. O

responsável pela ação, em seu relatório para a justiça, relata que os "intrusos da fazenda

BOA VISTA", ofereceram "RESISTÊNCIA que tomou o mau caráter de uma sedição". A

ação de despejo impetrada pelos donos da fazenda era contra "Luiz Minho Flores e sua

mulher de quem são prepostos os intrusos resistentes".32

O juiz-comissário protagonista do conflito e que media terras para si próprio,

segundo denúncia dos habitantes locais, tinha uma larga folha de serviços como mi litar.

Participara ativamente da guerra contra o Paraguai e além de capitão ostentava o título de

coronel honorário do exército nacional.

Por outro lado, a disputa de terras não se limitava a uma discussão entre o

poder local e as instâncias superiores do poder. Numa época em que o caciquismo político

era muito forte no Rio Grande do Sul, as lutas de terra passavam também pela luta no

seio da própria oligarquia local, dessa forma saindo parcialmente do terreno de simples

batalha entre grupos sociais diferentes. No exemplo anterior da resistência armada dos

supostos invasores da fazenda Boa Vista, os ditos intrusos eram apoiados por um major com

larga influência política e militar, que teria interesse em "saciar seu ódio contra a família

Borges", proprietária da fazenda, segundo as palavras de um oficial.33

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Nesse aspecto, a população local estava fortemente atrelada a caudilhos com os

quais estabelecida relações de "favores recíprocos", em que os estancieiros é que levavam

as vantagens: a relação, na verdade, era unilateral. O controle político e militar dos

fazendeiros era inquestionável. Basta lembrar que, durante a guerra do Paraguai e

quando de guerras intestinas, os coronéis locais não tinham grandes dificuldades em

arregimentar soldados para as batalhas, mesmo que muitas batalhas fossem de caráter

político e pessoal. Nesse sentido, o prestígio e o poder de um estancieiro estava muito ligado à

sua capacidade de aliciar homens dispostos a um enfrentamento armado contra qualquer

inimigo possível. Nesse particular, são conhecidas as atrocidades cometidas na Revolução

de 1893, na qual a prática da degola tomou proporções assustadoras.

Além dessa questão dos ervais, após a regulamentação da Lei de Terras, em 1854,

os agricultores pobres passaram a ser sistematicamente controlados pelos interessados na

apropriação das terras. Na década de 1860 e posteriores, os processos na justiça contra

invasão de matos nacionais por pequenos agricultores tornaram-se comuns. Em 1863, por

exemplo, no cartório de Cruz Alta corria processo contra seis agricultores por derrubar o

mato da nação às margens do rio Ijuí: "...à cerca de um ano principiarão a roçar, derrubar e

plantar em matos nacionais sem que esse e aqueles possam dizer que aí tem posse feita

ou comprada..."34

Com todo esse controle político e institucional das elites locais, as terras devolutas

e os ervais públicos perderam espaço gradativarnente para a privatização. Formou-se, desse

modo, uma legião de homens despossuídos em meio à imensidão de terras, numa região

de baixíssima densidade demográfica, á época.

A Legislação Agrária

Há quase consenso na historiografia brasileira de que a Lei de Terras de 18 de

setembro de 1850, além de tentar disciplinar o acesso à terra, veio para impedir ou dificultar a

posse da terra por parte da população pobre e principalmente dos imigrantes que viriam ao

Brasil para atender às exigências do processo de substituição do trabalho escravo

pelo trabalho livre nas zonas cafeicultoras do país.

Essa idéia parte do raciocínio básico segundo o qual "num regime de terras livres

o trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre e terra tinha que ser cativa.35

Essa afirmação de José de Souza Martins, em O Cativeiro da Terra, insere-se dentro dos

pressupostos de H. J. Nieboer (Slavery as an Industrial Systein)36 que classifica as sociedades

em:

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a) povos com recursos abertos (disponíveis);

b) povos com recursos fechados.

No primeiro caso, a possibilidade de acesso aos meios de subsistência, que estariam

disponíveis, forçaria uma classe dominante, para poder existir, a impor o trabalho

compulsório como forma de conseguir explorar o trabalho de outrem. Isto é, a escravidão

poderia ocorrer naquelas sociedades em que houvesse a possibilidade de um homem prover-

se independente e livremente dos recursos necessários à sua subsistência. No segundo caso,

onde os recursos são escassos e a população depende de um capitalista ou senhor de

terras para sobreviver, não haveria necessidade do trabalho compulsório.

Esse modelo explicativo, apesar de adaptar-se ao caso da cafeicultura brasileira, não

significa que, necessariamente, as coisas teriam que se dar daquela forma. Mas, de

qualquer modo, a Lei de Terras de 1850 parece ter propiciado o efeito desejado para as

elites do café.

Paulo Bessa Antunes, em recente trabalho sobre a propriedade rural no Brasil,

conclui:

"Com a lei n° 601 de 18 de setembro de 1850, foram vedadas todas as

possibilidades de caracterização de uma economia formada pela propriedade familiar.

Embora aparentemente buscando garantir um acesso fácil e democrático à terra aqueles

que o desejassem, a alienação onerosa das terras públicas, de fato, foi mecanismo

profundamente elitista e mantenedor do status quo vigente.37

Por outro lado, no Sul do Brasil, diferentemente de São Paulo, a questão da terra

tinha outro caráter, pelas circunstâncias econômicas e políticas que diferiam bastante

daquelas dos cafeicultores. Primeiro porque as elites gaúchas dedicavam-se à pecuária,

que evidentemente exigia menos mão-de-obra que a cafeicultura, tanto que o fim do tráfico

negreiro em 1850 afetou mais os cafeicultores e nem tanto os pecuaristas do Sul, que até

exportavam escravos para aquele setor.

Para o estancieiro gaúcho o mais importante era ter uma grande área de campo

nativo e muitas cabeças de gado, sendo menos difícil conseguir peões baratos ou

agregados para o trabalho do campo. Isso não significa que a estância pastoril excluísse o

escravo, mas que, em termos relativos, esses eram menos importantes que para um

cafeicultor.

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Em segundo lugar, os imigrantes recebiam a terra para pagar em longo prazo e

ainda recebiam subsídios para praticarem uma agricultura de subsistência nas áreas

florestais.

No Sul do Brasil, a imigração fazia parte da política de povoamento do extremo Sul

fronteiriço com os países da bacia do Prata, por tratar-se de uma região altamente

estratégica em termos geopolíticos. Ao mesmo tempo, tratava-se de uma política de tornar o

Rio Grande um celeiro para abastecer o mercado das regiões agroexportadoras. Tratava-se,

ainda, de uma política de valorização de terras.

A prisão da terra na zona cafeicultura do país era algo imprescindível para a

implantação do trabalho livre, por ser uma atividade econômica em plena expansão e

exigente de abundante mão-de-obra. Já no Rio Grande do Sul, a principal atividade econômica

ao longo do século XIX, a pecuária extensiva, era um sistema de produção que exigia muita

pastagem natural, mas incomparavelmente menos trabalho que a cafeicultura. Por tal

razão, não se pode pretender que a expansão da pecuária exigisse imigração em massa

para atendê-la, como ocorreu com o café.

Portanto, a Lei de Terras de 1850, que cativou a terra, não foi elaborada pensando-

se em criar dificuldades para o imigrante tornar-se pequeno proprietário no Rio Grande do

Sul. O imigrante sulino não foi convocado para trabalhar nas fazendas de gado como

foram os imigrantes de São Paulo para o café. Ao contrário, os colonos foram chamados

pelo governo provincial e por particulares exatamente para serem pequenos proprietários.

Nesse particular, um militar alemão contemporâneo opinava na década de 1850:

"O governo é muitas vezes acusado de ter a intenção de não criar proprietários de

terras mas apenas atrair ao país trabalhadores brancos para substituir os escravos negros.

Embora tal acusação, depois de terem sido declarados claramente, na lei provincial

número 229 de 4 de novembro de 1851 os princípios da Assembléia Legislativa quanto à

colonização, chegue a raias à tolice, vamos, contudo refutá-la mais detalhadamente...38

De fato, o governo provincial gaúcho, através da lei número 229, estava disposto a

conceder gratuitamente terras aos colonos e também a pagar: "[a] despesa da condução

dos colonos desde o porto do Rio Grande até as colônias e bem assim a que se fizer com

ferramenta e sementes que se lhes suprirá por uma vez somente."(É o que consta no artigo 10

da referida lei).39

Poucos anos após, através da lei número 304, de 1854, as terras passaram a ser

vendidas aos colonos, mas as condições eram bastante facilitadas. Além do apoio técnico

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oferecido pelo governo, o primeiro pagamento somente seria exigido no fim do terceiro ano

após a sua instalação nos lotes coloniais. Mesmo assim, a cobrança da dívida dos colonos

foi extremamente difícil. A cobrança da terra aos colonos em substituição à gratuidade era

uma forma do governo provincial obter receitas para viabilizar o próprio projeto de

colonização, não se tratando de uma medida para inibir o acesso à propriedade, como

parece ter sido o caso da cafeicultura.

Para o governo provincial gaúcho, de modo particular, a imigração era uma saída

econômica para uma província que produzia para o mercado interno. Em 1853, o mesmo

alemão a que nos referimos acima, Joseph Hõrmeyer, talvez tenha resumido com

bastante precisão a importância dos imigrantes nesse particular:

"As vantagens financeiras que resultam para o Estado pela imigração ressaltam, por

si, aos olhos de cada um. Além do fato de, dessa maneira, entrarem no país dinheiro,

valores (em dinheiro) e trabalhadores, aumentam a produção, consumo, exportação, e

importação, portanto o comércio e conseqüentemente também os impostos aduaneiros de

tal forma que os sacrifícios que o Estado faz para o fomento da imigração em breve lhe serão

recompensados de forma centuplicada.40

Não se pode atribuir um papel rigorosamente determinante à legislação agrária no

processo da ocupação de terras. No período anterior ao da Lei de Terras de 1850, o

regime de posses instituído em 1822 em substituição à Lei de Sesmarias é considerado

juridicamente favorável à população pobre, para o acesso à terra; mas nem por isso a

população efetivamente conseguia apropriar-se da terra. Ruy Cirne Lima, escrevendo

sobre a legislação agrária nos afirma que:

"A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos. A posse é, pelo

contrário, – ao menos em seus primórdios – a pequena propriedade agrícola, criada pela

necessidade, na ausência de providência administrativa sobre a sorte do colono livre e

vitoriosamente firmada pela ocupação...

"Era a ocupação tomando o lugar das concessões do poder público e era igualmente

o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado sobre o senhor de engenhos ou

fazendas, o latifundiário sob o favor da metrópole."41

Entretanto o próprio autor, algumas páginas adiante, aponta claramente as

distorções entre o jurídico e a prática efetiva da apropriação do solo:

"...a humilde posse com cultura efetiva, logo, entretanto se impregnou do espírito

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latifundiário, que a legislação de sesmarias difundira e fomentara.

"Depois de 1822 sobretudo, data da abolição das sesmarias, as posses passaram a

abranger fazendas inteiras e léguas a fio."42

E por fim, atribuindo à pura questão de mentalidade a existência do latifúndio o

escritor reconhece que "qualquer sistema territorial lhe teria servido para o mesmo fim...43

Evidentemente, a legislação agrária, num Estado exclusivamente agrícola como o

Brasil no século XIX, não poderia ser empecilho para a hegemonia dos latifundiários. E, se

fosse necessário, não seria difícil alterar as leis para adequá-las às novas pretensões dos

mesmos latifundiários, como de fato ocorreu com a lei de 1850. Daí que fossem infrutíferas

as queixas que muitos contemporâneos do século XIX, liberais notadamente, faziam acerca

dos males que o latifúndio acarretava para o pleno desenvolvimento econômico e social da

nação. É o caso do charqueador Antônio José Gonçalves Chaves,44 que escreveu em

1823 uma verdadeira proposta de reforma agrária para o jovem Estado brasileiro. No

mesmo sentido, o presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul denunciava,

em 1849, o latifúndio gaúcho como sério entrave à agricultura e causador da miséria do

povo.45 Outras vozes somaram-se a essas durante todo o século XIX e historiadores

posteriores não deixaram de denunciar o latifúndio e os sistemas agrícolas como irreparável

irracionalidade dos agricultores passados.

A Lei de Terras de 1850, a primeira legislação efetiva das terras do Estado

brasileiro, tinha mecanismos jurídicos tanto para impedir a posse de terras pela população

pobre quanto para criar dificuldades a que os abastados se apossassem de grandes exten-

sões. Mas não impediu, na prática, que grandes extensões fossem apropriadas de forma

ilícita. José de Souza Martins é exato quando nos afirma que, após a Lei de Terras de 1850,

teria surgido:

"Uma verdadeira indústria de falsificação de títulos de propriedade sempre datadas da

época anterior ao registro paroquial, registradas em cartórios oficiais geralmente mediante

suborno dos escrivães e notários...

"Tais procedimentos, porém, eram geralmente inacessíveis ao antigo escravo e ao

imigrante, seja por ignorância das praxes escusas, seja por falta de recursos financeiros

para cobrir despesas judiciais e subornos das autoridades..."46

Para burlar a Lei de Terras, os usurpadores brasileiros eram muito criativos. Um

exemplo dessas fraudes nos é indicado por Warren Dean:

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"José Teodoro de Souza, emigrando de Minas Gerais a São Paulo em 1856, cercou

cinco posses em la región de Campos Novos de Paranapanema que abarcaban

ochocientas leguas cuadradas (345000.00 km2) com ayuda de um compahero de

immigración que era ei amo político de Botucatu. Aun después de cerrado ei registro

podían todavia coserse páginas nuevas en los libros, o descubrirse espacios en

blanco. Había libros que se perdian o se estropeaban accidentalmente. Un

subterfugio aún más sencillo era declarar ante notario la compra de una posse perteneciente

a un intruso que había residido en esas tierras antes de 1850.47

No Rio Grande do Sul os expedientes ilícitos também eram largamente utilizados. O

presidente do Estado, em 1898, Júlio de Castilhos, é incisivo em denunciar a ineficácia da

legislação para conter os abusos. Afirma o presidente:

"Nas minhas mensagens anuais dirigidas à Assembléia dos representantes tenho

insistentemente relatado as principais ocorrências do serviço de Terras Públicas, exposto

os inúmeros e criminosos abusos que o haviam conspurcado desde longo tempo; a atual

administração do Rio Grande do Sul há posto em prática para estancar as fraudes e

usurpações que estavam ousadamente desfalcando o patrimônio territorial do Estado...

...para formardes um juízo aproximado das fraudes a que estiveram expostos as terras

públicas no antigo regime, basta indicar-vos que em 1881, durante os 28 anos decorridos

após o regulamento de 30 de janeiro de 1854, tinham sido ainda legitimadas posses de cerca

de 50 léguas quadradas! De setembro de 1885 a 15 de novembro de 1889 ficou também

facilmente legitimada a área de 70' léguas quadradas. 48

Do mesmo modo, esses procedimentos usurpadores foram utilizados também na

região que estamos analisando especificamente. Um desses expedientes, segundo uma

denúncia da época, era o pagamento de multa irrisória por não haver registro de posse.49

O usurpador dizia que tinha comprado a terra de um posseiro que afirmava ter ocupado a

terra de forma mansa e pacífica antes de 1850 e que, no entanto, não fora ao registro

paroquial registrá-la como exigia o regulamento de 1854.

É pertinente ressaltar que a política deliberada de propiciar o desenvolvimento de

pequenas propriedades agrícolas era uma política voltada para os imigrantes europeus.

Assim, uma parcela significativa da população regional acabou mesmo sendo atingida

fortemente pela Lei de Terras de 1850. A população de lavradores pobres e coletores de erva-

mate foi por aquele diploma jurídico impedida de apropriar-se do solo. Essa população

acabou sendo utilizada como força de trabalho nas estâncias, após a abolição da

Page 56: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

56

escravidão, e nos próprios projetos de colonização como organizadores da infra-

estrutura – estradas, desmatamento... Por essa razão é que os lavradores nacionais

tinham dificuldades de tornar-se proprietários da terra que utilizavam. Os colonos imi-

grantes eram tão ignorantes dos aspectos jurídicos como os caboclos; alguns sequer

conheciam a língua portuguesa; no entanto um funcionário público levava-os até o lote

rural e entregava-o para ser pago em suaves prestações, pois eram esses os agricultores

encarregados do desenvolvimento agrícola e não os caboclos, na política oficial. Essa é a

razão do tratamento diferenciado que recebiam os caboclos brasileiros e que acabaram por

tornar-se sem-terras, intrusos e peões baratos.

A Colonização

A preocupação de criar colônias nas matas do Alto Uruguai como forma de povoar a

fronteira com a Argentina sempre foi um objetivo do governo imperial e provincial durante o

século XIX. Já em 1825 malograra a fundação da colônia de São João das Missões, antiga

redução jesuítica. Depois, a guerra civil que atingiu a província entre 1835 e 1845 estagnou

todos os projetos de colonização com imigrantes europeus.

Na década de 1850 e nas seguintes, várias colônias foram criadas por particulares

e pelo governo, mas sempre em locais relativamente próximos das antigas colônias do vale

do rio dos Sinos. O caminho da colonização estrangeira seguiu um movimento a partir

dos centros econômicos mais sólidos e dinâmicos próximos do litoral (Porto Alegre) e

privilegiava as terras ao longo dos cursos dos rios que davam acesso a Porto Alegre,

capital da província.

Em todo o período imperial a colonização estrangeira não conseguiu atingir as matas

que verdejavam os rios da bacia do Alto Uruguai, tanto que em 1877 a câmara de Cruz Alta,

o centro político e econômico regional, solicitava a vinda de colonos imigrantes e oferecia

gratuitamente 115 lotes aos colonos que quisessem se estabelecer às margens do rio

Ijuí, afluente do Uruguai.50

O pedido e a oferta dos vereadores cruz-altenses não foi suficiente para atrair

colonos. O ministério da Agricultura recusou a oferta dos lotes, argumentando que não havia

condições de mercado para a criação da colônia naquela região.

Na década de 1880 o debate em torno da agricultura e da formação de colônias foi

muito fértil na imprensa regional. O periódico Aurora da Serra publicou vários artigos a partir

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57

de 1884 a respeito da necessidade de desenvolver a agricultura e acusava a população

brasileira de negligência e descaso. Um dos artigos assinados por Uflacker H.

proclamava: "abençoado país esse nosso para os vagabundos". Mas, com otimismo,

propunha no mesmo artigo que

"...já é tempo de cuidarmos em medidas sérias e apropriadas que elevem a

indústria agrícola nesta região a altura de que é condigna. Não será em época muito remota

que ela ainda se constituirá em uma das fontes mais ricas do engrandecimento e

prosperidade desta região, e pode estar tão próxima esta época que unicamente depende

em conseguirmos os prolongamentos das vias férreas do norte e do sul desta província até

os pontos principais de nossa região serrana."51

A questão da via férrea, que o autor do artigo lembrava, era fator decisivo para a

viabilidade da expansão agrícola e fundamental para atrair imigrantes. A ausência de

uma rede de transportes eficiente inviabilizava a produção agrícola de gêneros consumidos

no mercado interno pela absoluta desvantagem em relação às colônias próximas aos rios

navegáveis que desciam até o estuário do Guaíba, em Porto Alegre, e dava acesso ao

oceano pelo porto de Rio Grande – por via da Lagoa dos Patos.

A questão agrícola local era normalmente apresentada de forma atrelada à

necessidade de imigrantes. Dessa forma, o mesmo periódico citado exaltava as qualidades

dos colonos alemães e italianos e recomendava precauções de cunho racista como esta:

"...devemos nos precaver com real cuidado na introdução desses últimos (o

italiano) em cujo país superabunda uma parte de população péssima, essa então pode ficar

por lá, já temos de sobra uma massa enorme de libertos e de escravos suficientes para nos

incomodar. Precisamos sim de gente, porém, morigerada de bons costumes e

trabalhadora."52

Apesar dos proclamas dos arautos da imigração, a primeira colônia oficial só seria

fundada em 1890, com aplausos da imprensa local. A fundação de colônias no planalto

coincide com a construção de alguns trechos da ferrovia São Paulo-Rio Grande. E são as

colônias próximas às ferrovias as que mais se destacaram em seu desenvolvimento. Ijuí e

Erechim recebiam intenso fluxo de colonos estrangeiros e das colônias velhas, enquanto as

demais colônias sofriam sérias dificuldades para escoar a produção.

Além dessas questões de mercado e de projetos de desenvolvimento agrícola, o

sentido da imigração consistia sobretudo numa estratégia de valorização das terras, o

que explica, entre outros motivos, a insistência nos imigrantes em detrimento dos lavradores

Page 58: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

58

nacionais.

Outro aspecto importante considerado pelas autoridades locais para justificar a

necessidade de imigrantes, e que também se relaciona com a política de valorização de

terras, é o isolamento da região. A colonização se fazia necessária para amenizar o

relativo isolamento regional. As queixas nesse sentido eram tantas que alguns estancieiros

locais e políticos chegaram a propor a autonomia política da região através da criação da

Província das Missões. 53

Se uma colônia agrícola de imigrantes nos moldes das tradicionais do vale dos

Sinos era inviável em função do isolamento e da impossibilidade de realizar-se a produção

agrícola, o governo, no entanto, preocupado com a condição fronteiriça do Alto Uruguai,

tomou a iniciativa de fundar uma colônia militar. Essa colônia era uma espécie de

colonização agrícola desenvolvida por homens fardados. O governo demarcou uma área de

treze mil hectares às margens do rio Uruguai, dividiu-os em lotes rurais e urbanos e

distribuiu-os entre os soldados do exército.

A expectativa oficial era de que esse núcleo colonizador pudesse expandir o

povoamento da área e desse modo atingir o objetivo militar de povoar de forma densa a

região fronteiriça com a Argentina. Trinta anos após a fundação da colônia, que ocorreu

oficialmente em 1879, a situação dos habitantes era bastante precária. Um relatório oficial

em 1913, quando a colônia ganhou status civil, informa o seguinte quadro:

"Visitei os principais pontos colonizados ... as casas em que moram são simples

abrigos. Sente-se que tem havido desânimo em toda a colônia. Os colonos em geral nutrem

a esperança de, com o regime civil, melhore a sua situação...

"O pessoal colono, em sua maioria, composto de ex-praças do exército não é mau; é

ordeiro e trabalhador mas não sabe trabalhar na agricultura...54

Esse tipo de colônia tinha, evidentemente, um propósito puramente estratégico e

vinha sendo cogitado desde os primeiros anos do Império. A comissão encarregada de criar

essa mesma colônia havia iniciado seus trabalhos em 1862 e somente quinze anos mais

tarde é que foi possível efetivar a sua fundação.

As colônias que interessavam aos donos das terras agrícolas monopolizadas eram,

porém, as tradicionalmente desenvolvidas nas região do vale dos Sinos, do Jacuí, onde os

colonos prosperavam com a produção agrícola e as terras próximas adquiriam preços cada

vez mais elevados. Nesse sentido, as primeiras colônias oficiais, fundadas na região,

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59

datam de 1890 e 1891 – colônia Ijuí e colônia Guarani. Os lotes coloniais eram

previamente demarcados, inclusive os lotes urbanos que formariam as futuras cidades. De

modo geral, a demarcação dos lotes era feita através de linhas retas formando um traçado

uniforme e simétrico com terrenos retangulares de 250 m x 1000 m. Ou seja, 25 hectares ou

"uma colônia", como se convencionou chamar popularmente esses lotes.

Esse modelo de distribuição de lotes não levava em conta os cursos da água,

criando dificuldades para alguns lotes pois os riachos eram de extrema importância para a

unidade agrícola. Mais tarde, outras demarcações passaram a considerar as condições

topográficas, os cursos d'água e as estradas. É o caso da colônia Santa Rosa.

A ocupação espontânea de certas áreas por pequenos lavradores, tanto imigrantes

como antigos agricultores nacionais, levou também à formação de um modelo irregular, sem

princípio organizativo e sem padrão de tamanho dos lotes. É o caso de algumas áreas

próximas ao rio Uruguai.

O Comércio de Terras

Com a vinda de colonos estimulados pelas iniciativas oficiais da fundação de

colônias como as de Ijuí e Guarani, as terras próximas a esses núcleos oficiais passaram

a ser objeto de comercialização pelos proprietários de grandes áreas de mata virgem, que

as dividiam em pequenos lotes, seguindo o padrão da colonização oficial (cerca de 25

hectares).

Os loteamentos rurais particulares eram anunciados através de jornais comumente

lidos pelos colonos, nos quais nos foi possível verificar a dimensão e os detalhes do comércio

de terras. Servimo-nos especialmente do periódico Die Serra Post e de sua versão em

português, Correio Serrano, que era largamente lido nas colônias alemãs do Sul. Os

alemães ou os seus descendentes eram os principais compradores de terras, por serem os

mais antigos no Estado: sua população havia crescido além da capacidade de absorção

dos lotes coloniais, levando em consideração o modelo de agricultura praticada.

Um anúncio de 1917, quando a colonização oficial já havia se consolidado na

região, oferece terras próximas à colônia Ijuí nos seguintes termos:

"as colônias do Sr. Germano Hoffmeister no município de Ijuí; situadas na margem

do rio Conceição apresentam a cada comprador vantagens extraordinárias: Pelas grandes

possibilidades de venda de seus produtos, pela proximidade da estação ferroviária e da

Page 60: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

60

vila (duas horas só). Pela fertilidade das terras destas colônias com bastante e excelente

água como também pela abundância de madeiras de lei. Em vista da baratez da terra, de

modo que também colonos menos ricos podem comprar terra fertilíssima a preços

baratos. Quem quiser ver as colônias tem condução gratuita. Compradores queiram dirigir-se

ao Sr. Emílio Scherer ...55

Nota-se no anúncio a importância da ferrovia, sem a qual a produção teria dificuldades

de escoamento. Nesse particular, fica evidente que a colonização e a agricultura

desenvolvida nesses núcleos eram estreitamente veiculadas ao mercado de alimentos do

país. Outros anúncios de colônias sempre destacam a localização em relação à ferrovia

São Paulo-Rio Grande, principalmente as do município de Passo Fundo, por onde a ferrovia

passava:

"Empresa colônia Barro, Lace & Rosa & Cia. – Comunicamos a todos os

compradores de terras que temos mais de 1000 colônias em parte medidas e em parte em

medição de modo que a extensão e o progresso de nossa colônia estão garantidos. Nossa

estrada de rodagem da estação Barro para a nova sede Três Arroios ficará pronta ainda

esse mês. A situação é bela e pitoresca. As colônias perto da sede já estão vendidas;

com exceção das chácaras cuja medição está em serviço. Em conseqüência de tudo isto um

desenvolvimento ligeiro e favorável está assegurado. Para as igrejas e escolas cuida-se

suficientemente. Uma linha telefônica está em construção. A estrada de rodagem seguirá

imediatamente para norte e oeste e para as colônias novamente medidas. Como a

colônia pertence a esse Estado 'e fica muito distante do lar de amotinações nos Estados

vizinhos uma inquietação é completamente impossível e o desenvolvimento pacífico está

garantido.56

As possíveis amotinações que o anúncio comenta refere-se à guerra do Contestado,

que abalou por vários anos os estados do Paraná e Santa Catarina e cujo motor era,

justamente, a disputa de terras ao longo da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, que se achava

em construção na década de 1910.

Nota-se também a preocupação da empresa em informar que o espaço para a igreja e

a escola estavam garantidos, o que era de grande importância para os agricultores, em geral

muito devotos.

Essa preocupação da empresa com a religiosidade dos colonos era importante para

atrair compradores e explicitava a experiência da companhia colonizadora em tratar com os

costumes e a espiritualidade daqueles. Num desses anúncios, uma empresa oferecia terras

Page 61: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

61

em colônias específicas para seguidores das religiões protestante ou católica:

"Colônias = Bom Retiro, São Pedro (só para católicos) – Frankonia (só para

protestantes). Bom Retiro é situada na estrada de ferro São Paulo/Rio Grande perto da

estação Herval (Santa Catarina), perto da União da Vitória. Carazinho, Out. 1917. H.

Haecker & Cia."57

Com a multiplicação de companhias colonizadoras e o incremento do mercado de

terras, os preços evidentemente dispararam e finalmente os monopolizadores da

propriedade puderam realizar a venda das áreas florestais que haviam incorporado ao

patrimônio próprio depois de lutarem contra os posseiros nas repartições oficiais ou, quando

necessário, apelando para a pura e simples violência.

O comércio de terras desenvolvia-se através das companhias colonizadoras,

que compravam grandes áreas de terras de um fazendeiro que as havia monopolizado

anteriormente e as negociava com os colonos em pequenos lotes.

O jornal Correio Serrano, em 1918, noticiava:

"Os Srs. João Seering e Jacinto Gomes, em Passo Fundo compraram dois mil lotes de

terras e matos pertencentes à fazenda Guarany e situados no 6° distrito daquele município,

afim de serem colonizadores.58

Afora o comércio realizado através das empresas colonizadoras, as quais

geralmente criavam núcleos com certa infra-estrutura, grande quantidade de terras era

vendida diretamente pelos grandes proprietários próximas aos núcleos coloniais oficiais e

particulares já instalados.

Os negociantes de terra também compravam as terras do Estado a preços

módicos e as revendiam aos colonos imigrantes. Um desses negociantes da região foi

Hermann Meyer, que fundou várias colônias particulares com imigrantes alemães. No

relatório da Comissão de Terras, com sede em Ijuí, o engenheiro Augusto Pestana informa que

"...foi vendida ao Dr. Hermann Meyer uma área de 26629513 m2 (2662 hectares)

discriminadas entre os arroios Fiuza e Palmeira junto a colônia Neu Württemberg

pertencente ao mesmo Dr. Meyer."59

Em 1900, um negociante de terras entrou em disputa com o Estado pela posse de

urna área de matos devolutos que o protagonista insistia em provar que havia sido de

posseiros que, embora não tendo título, tinham direito à propriedade. Nesse caso, o pre-

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tendente da terra alegava que comprara a área dos moradores, os quais eram arrolados

como testemunhas do processo. Diz um relatório de 26 de junho de 1900, da Comissão

de Verificação de Posses em Ijuí, que "foram discriminados os matos desse pontão de serra

que pertencem ao Estado e de que pretendiam apossar-se os Sr. Kruel e Lima ( ) foi feito o

recenseamento completo dos moradores de tais matos tomando as indicações necessárias

para poder-se mais tarde julgar do direito dos mesmos posseiros."60

Os pretendentes perderam o processo para o Estado, mas o que fica explícita

nesse caso é a presença de moradores caboclos que, ou foram usados pelos

pretendentes para apossarem-se da terra e nesse caso estariam vendendo suas posses aos

negociantes, certamente por preços irrisórios, ou, caso não fossem efetivamente posseiros,

como julgou o Estado, eram portanto homens desprovidos de terra e que tiveram que dar

lugar para os colonos a quem o governo vendeu as terras posteriormente.

Tomamos corno exemplo de comerciante de terras o empresário alemão Hermann

Meyer, que teve grande atuação no mercado imobiliário da região. Esse empresário era um

editor em Leipzig, sócio do "Instituto Bibliográfico", importante editora alemã. Formando em

Geografia e Economia, Meyer viera ao Brasil para uma excursão ao Xingu, na Amazônia, da

qual participaram alguns teuto-riograndenses que seriam futuros sócios seus no comércio

de terras no Rio Grande do Sul.

Hermann Meyer, através de seus sócios, passou a investir capital na compra e na

colonização de terras. Adquiriu várias áreas de terra virgem nos municípios de Palmeira

das Missões e Cruz Alta por seu procurador Carlos Dhein, fundando várias colônias com

colonos alemães e teuto-riograndenses. A principal colônia desse empresário foi a "Neu-

Württemberg", no município de Cruz Alta, de que temos razoáveis informações e

documentos.61

Vamos seguir alguns passos desse empresário germânico, para exemplificar corno

se processava o comércio de terras, ou a colonização, como preferiam dizer as

empresas. Em 1897, Hermann Meyer efetivara sua primeira compra em Palmeira das

Missões. Seu procurador comprara a posse de Maria Rita do Es-pírito Santo, com cerca de

1,8 mil hectares, pela quantia de 15:500$000 réis, ou seja, 8$525 réis por hectare.

Nessa área fundou a colônia "Xingu", a primeira de uma série de outras.

Nos anos seguintes as compras continuaram. Em 1898, foram compradas as

terras da futura colônia Neu-Württemberg, a principal da empresa e que se usava como

propaganda em prospectos e postais na Alemanha e nas colônias velhas do Vale dos

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63

Sinos. Essa colônia localizava-se próxima à ferrovia Cruz Alta-Passo Fundo; os lotes

foram comprados do Estado e de particulares pecuaristas, que haviam incorporado ao

seu patrimônio os matos contíguos aos campos nativos. Para a colonização, somente eram

utilizadas as terras florestais, aproveitando a fertilidade natural e os preços baixos. Essas

áreas de mato pouco valiam para os pecuaristas.

Numa visita a Cruz Alta em 1898, Hermann Meyer foi recebido com grandiosa

festa. Ele próprio informa a respeito dessa recepção:

"Quando o trem entrou na estação de Cruz Alta, começou a pipocar em todos os

cantos. Foguetes estouraram e uma banda tocou um dobrado alegre. A plataforma estava

literalmente tomada por enorme multidão. (...) Em poucos segundos conhecia as mais

altas autoridades da cidade. A música silenciou, todos tiraram os chapéus, embora

chovesse torrencialmente, e fui saudado com um solene discurso, no qual me chamaram

de distinto explorador, colonizador e amigo da terra ilustríssima do Rio Grande do Sul, atri-

buindo-me, ainda qualidades e virtudes as quais nem sonhara.62

Não poderia haver melhor recepção para um grande empresário, cuja maior

virtude certamente era a de ter capital para investir no comércio imobiliário, nas terras

florestais ociosas.

Para revender as terras em forma de lotes coloniais, era necessário muita propaganda;

os colonos eram disputados pelas companhias colonizadoras nos navios, nos hotéis. Os lotes

oferecidos seguiam o padrão regional: 25 hectares — uma colônia, como se convencionou

chamá-los — a preços que iam de setecentos mil réis em Boi Preto e um conto de réis

em Neu Winttemberg, ou seja, 28 e quarenta mil réis o hectare, respectivamente (1901). Em

1912, urna colônia já valia entre dois e 3,5 contos de réis — oitenta a 140 mil réis por hectare.

As colônias eram vendidas em prestações anuais, o que dava origem a situações

difíceis quando as safras agrícolas sofriam intempéries ou adversidades do mercado. Os

ânimos dos empresários e dos colonos se acirravam e as contradições surgiram em forma

de conflitos. Desse modo, as relações entre os colonos e a empresa colonizadora nem

sempre eram harmônicas. Entre 1900 e 1905, os colonos de Neu-Württemberg, liderados

pelo moleiro Wagner, empreenderam grande campanha contra a empresa de Meyer por

razões da precariedade da infra-estrutura e pela incerteza de conseguir o título definitivo

da propriedade, estando as terras em litígio. Esses problemas administrativos seriam

resolvidos com a contratação de um pastor evangélico de WürttembergHermann Faulhaber —

amigo pessoal de Meyer, que se empenhou ativamente como administrador da colônia e

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64

tornou-se, ele próprio, um empresário de terras com atuação no Rio Grande do Sul e em

Santa Catarina.

Apesar de supostas adversidades para a empresa colonizadora "Doutor Hermann

Meyer", que teve no seu início um sócio desonesto (que desviou dinheiro para o bem

próprio) e sofreu outros percalços de ordem administrativa, os resultados finais foram

bastante favoráveis. Durante a Primeira Guerra Mundial a empresa de Hermann Meyer

na Alemanha sofrera dificuldades imensas em função do conflito e coube à sua empresa rio-

grandense cobrir seus déficits. Meyer, que tantas vezes se queixava do pouco rendimento da

empresa de colonização, afirmava após a guerra:

"Quem pensaria que o Brasil, minha preocupação de tantos anos, viria a ser minha

salvação?"63

Nessa época, grandes somas de dinheiro eram enviadas para a Alemanha para

atender às dificuldades de Meyer. Nada mau para um capitalista que poucas vezes viria para

examinar seus investimentos, e que controlava uma empresa através de telegramas do além-

mar a seus prepostos no Rio Grande do Sul.

As empresas colonizadoras eram muitas no Rio Grande do Sul, no início do século

XX, inclusive com atuação nos estados do Paraná e de Santa Catarina, para onde

seguiam colonos das colônias velhas do Sul. Entre as empresas de meros objetivos co-

merciais, havia as que se intitulavam filantrópicas, cujos objetivos eram de ordem étnica e

política. Um exemplo desse tipo de empresa, mas que também operou em especulação

empresária de terras como as outras, foi a Jewish Colonization Association, que comprou

93850 hectares em Passo Fundo para povoá-la com imigrantes judeus. Essa empresa judaica

era de capitalistas de Paris e Londres, criada em 1891 nessa cidade inglesa com capital

inicial de vinte mil ações de duzentas libras cada. O principal sócio da companhia era o barão

Maurice de Hirsch, de Paris, e entre seus sócios estava lorde Rotshchild. Os objetivos da

empresa, segundo a versão oficial, era atender à comunidade judaica internacional com

dificuldades nos países anti-semitas, e com esse propósito foram fundadas várias

colônias na América. A principal colônia sulina dessa empresa foi a "Philippson", próxima à

cidade de Santa Maria, criada em 1902. Em 1909, a mesma empresa comprou as terras em

Passo Fundo para a segunda colônia, a "Quatro Irmãos". A fazenda foi dividida

parcialmente em lotes coloniais e dotada de infra-estrutura para receber os imigrantes

judeus de vários países, entre os quais a Rússia, a Argentina e ainda a Bessarábia. Cada

família recebia uma unidade de 150 hectares de campo com casa, animais, instrumentos

agrícolas etc.. A terra deveria ser paga em até vinte anos.64

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65

Esses colonos judeus passaram a explorar a madeira (extração e comércio),

abundantes nas terras loteadas e na região toda. Poucos desses colonos seguiram o ramo

da agricultura, preferindo atividades mais compensadores nas cidades.

A Evolução dos Preços das Terras

Não há estatísticas oficiais referentes ao preço das terras, mas a partir dos

inventariospost-rnortem foi possível elaborar uma série de preços de terras com certo grau de

precisão, embora haja limites que dificultam a apreensão segura desses preços. Um dos

principais problemas dessas fontes é a imprecisão ou a omissão da área das

propriedades. Tais quais os registros paroquiais de 1 855-1 85 6, os inventários, em

muitos casos, limitam-se a informar o local da propriedade, sem determinar a sua área.

Essa fonte nos permite observar a evolução aproximada dos preços desde que essa evolução

seja compatível com outras referências lógicas que autorizem acreditar nas eventuais

modificações da série. Por exemplo, é natural que os preços subam quando ocorre uma

expansão demográfica ou quando uma ferrovia é construída nas proximidades.

Outro aspecto a considerar no preço das terras é a disparidade entre os

valores atribuídos aos campos de qualidades diferentes em áreas próximas e que não é

captada pelo inventário, pois esse não traz referências à qualidade do campo. O preço de

um campo sofria a influência do tipo de gramínea predominante na propriedade. Nesse

aspecto, os campos são classificados em "campos limpos" e "campos sujos". A topografia

e a disponibilidade de água também entram em consideração na avaliação do campo,

além da distância das sedes distritais ou da ferrovia, quando esta existe.

Feitas essas ressalvas e considerações, elaboramos uma tabela de preços capaz

de apreender a evolução dos preços das terras ao longo do período.

TABELA Nº 6 – PREÇO DAS TERRAS DE CAMPO NATIVO NO PLANALTO GAÚCHO

(réis/hectare)

ANO Preço Mínimoem réis

Preço MínimoDeflacionado

Preço Máximoem réis

Preço MáximoDeflacionado

1851 $500 $500 $500 $5001856 $550 $520 1$800 1$7011861 1$800 1$577 2$300 2$0151866 $640 $532 5$500 4$573

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66

1871 $600 $495 8$600 7$0961876 1$000 $869 4$400 3$8211881 $820 $617 5$500 4$1391886 3$600 2$301 3$600 2$3011891 3$000 l$536 14$600 7$4751896 2$100 $649 22$000 6$8491901 2$400 $940 20$600 7$9991906 8$600 4$787 20$600 11$4681911 7$500 4$149 34$400 19$0321916 14$000 5$773 41$500 17$113

Fonte: Inventário Post-Morrem. Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões - Arquivo Público doEstado - Porto Alegre / RS

Na década de 1850 era possível comprar campo nativo pelo um preço máximo de

1,8 mil réis o hectare ou a 550 réis um campo de qualidade inferior. Pode-se observar que ao

longo do período os preços subiram estrondosamente, mesmo considerando a inflação

da moeda. No final do século, quando ocorreu forte expansão demográfica por força da

imigração, os preços tiveram forte elevação. Se considerarmos os preços máximos, dos

melhores campos, temos uma alta real de mais de 1000% no período. Nos anos

subseqüentes os preços continuam a subir numa média considerável. Por isso, em 1911

atingem 34 mil réis o hectare e 41,5 mil réis em 1916, ou cinqüenta mil réis em 1921.

Deve-se acrescentar que, no final do século XIX, além da forte imigração, foi

inaugurada a ferrovia ligando a região aos centros econômicos de Porto Alegre e

Pelotas, entre outros, e no início do século XX a mesma ferrovia alcançava Curitiba e São

Paulo. Ou seja, a ferrovia São Paulo-Rio Grande atravessava a região.

Os preços mínimos das piores áreas também evoluem, mas não na mesma

proporção, o que é natural, pois são terras de precária utilização econômica. As terras de

melhor preço no século XIX, considerando as condições técnicas do trabalho da terra eram:

os campos com pastagens naturais e com boa água, e também matos com ervais e matos em

geral, pois a agricultura praticamente se limitava ao aproveitamento da fertilidade natural

da floresta através cio sistema de pousio longo. Esta última somente passou a ter preço

considerável à medida que a densidade demográfica subia e, de forma especial, seus

preços dispararam quando começou o surto de colonização com colonos estrangeiros ou

de outras áreas de antiga colonização do Rio Grande, onde a densidade

demográfica era muito elevada para o modelo de agricultura que se praticava. Enfim, as

terras de preço mínimo que aparecem na tabela são aquelas que não se enquadram na

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67

classificação anterior, ou seja, são terras com campo nativo mas de qualidade inferior

e provavelmente muito dobradas e rochosas, insuficientes para o pastoreio, portanto, e

totalmente descartáveis para a agricultura.

Em termos comparativos, a erva-mate, um dos principais produtos da região, manteve

seu preço quase estagnado ao longo do século XIX. Desconsiderando breves oscilações,

o valor da arroba de mate girava em torno de 2,5 mil réis e somente no princípio do século

XX seu preço atingiu cerca de cinco mil réis, ou seja, um acréscimo de 100%; pouco, em

relação aos mais de 1000% da elevação do preço das terras.65

Os preços das terras de mato ou lavradias foi impossível de arrolar ou organizar em

séries pela insuficiência das informações disponíveis nos inventários. São raros os casos

em que as terras de mato ou as lavradias estão discriminadas quanto à área, o que

demonstra a primazia dos campos e da pecuária sobre a agricultura praticada naquela

região. Normalmente o inventário refere-se a uma "posse de matos" ou uma "área" de

matos ou de terras lavradias, cujos valores são baixos. Não constando a extensão, é-nos

impossível calcular o preço por hectare. Mas o descaso com que aparecem no rol dos bens

de raiz do inventariado e o pouco valor relativo atribuído nos convencem de que o valor

era bastante baixo. Além disso é lógico que o preço de terras abundantes situadas onde a

agricultura era estritamente de subsistência, com pouquíssima circulação e mercado, onde

predominava a pecuária e o extrativismo de mate, deveria ser necessariamente baixo.

Com a "colonização" da região por imigrantes da Europa e das antigas colônias

alemãs e italianas, os preços das terras de cultura ou de matos subiram

extraordinariamente. Prevendo o aumento dos preços das terras por força exclusiva do

monopólio os usurpadores locais trataram de privatizar o maior número possível de

hectares para revender aos futuros compradores que, efetivamente, surgiriam na forma de

colonos imigrantes, os quais reuniam algum capital pela venda de excedentes agrícolas nas

áreas próximas a Porto Alegre, por exemplo, e investiam em novas terras férteis nas matas

do planalto. Da mesma forma, os agricultores das colônias oficiais como Ijuí e Erechim, por

exemplo, à medida que conseguiam poupar algum dinheiro, compravam pequenos lotes

para garantir o "futuro de seus filhos", ou ainda vendiam suas terras bem-localizadas e já

valorizadas pela infra-estrutura desenvolvida e compravam um área bem maior nas novas

colônias particulares que se multiplicavam pelo sul do Brasil por iniciativa dos especuladores

de terra.

As terras de cultura ou de matas de pouco valor no século XIX (o século da

pecuária e do extrativismo de mate) passaram a ter preços elevados no século XX. Esse

Page 68: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

68

tipo de terra era negociado em lotes pequenos, medindo em torno de 25 hectares. Esse

tamanho-padrão chegou a constituir-se em unidade de medida entre os agricultores da região,

ou seja, por "uma colônia" entendia-se 25 hectares. Na condição de pequena propriedade

ou pequena área, o preço de cada unidade dependia ainda mais fortemente das condições

topográficas, da existência de água e da distância dos canais de escoamento da produção

– estradas, ferrovias e casas comerciais.

Se, no período imediatamente anterior ao da criação de núcleos coloniais e da

construção da ferrovia, a terra de cultura ou de matos tinha um preço irrisório, a partir desses

eventos os seus preços cresceram enormemente. Em 1901, na colônia de Cadeado, um

hectare valia cerca de quatorze mil réis; em Ijuí, colônia próxima, em 1913 os preços

atingiam a média de cinqüenta mil réis o hectare; ern 1926, os números indicam valores

de 15 mil e 214 mil réis na colônia General Osório, com condições idênticas às daquelas.66

A Ideologia e a Mercantilização da Terra

A historiografia rio-grandense de modo geral pretende mostrar a imigração e a

colonização das áreas florestais do Rio Grande como principal motor de avanço da fronteira

agrícola, chegando, nos casos mais apologéticos, a supor que os imigrantes eram

verdadeiros heróis, combatendo as selvas e arrancando dali a riqueza agrícola.

Um autor francês, em minucioso e já clássico estudo sobre a imigração alemã no

Rio Grande, chega a inspirar lirismo quando escreve:

TABELA Ni' 7 - POPULAÇÃO DO PLANALTO GAÚCHO E DO RIO GRANDE DO SUL

ANOPlanalto ( a) Rio Grande do Sul ( b) a/b =%

1846 7.492' 149.3634 5,01847 6.750 2 118.882 4 5,71848 9.346 2 187.082 4 5,01857 34.692 3 282.444 4 12,31862 45.000 4 370.446 4 12,11872 41.462 3 434.813 2 9,51890 101.030 2 897.455 2 11,31900 128.140 2 1.149.0702 11:1

Page 69: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

69

1920 292.470 2 1.993.368 214,7

Fonte:

I. Quadro da população nacional livre organizado pelo encarregado da estatística segundo listas paroquiais.AHRS. Lata 531.

2.De província de São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: censos (1803-1950). Porto Alegre : FEE, 1981.

3.Relatório de Joaquim A. F. Leão, presidente da província. 5 de novembro de 1859. Porto Alegre : MALRS.

4.CAMARGO, Antônio Eleutherio. Quadro estatístico da província de São Pedro do Rio Grande do Sul.Porto Alegre : Tipografia do Jornal do Comércio, 1868.

5.Censo geral do Brasil (1872). Rio de Janeiro : IBGE.

"Qualquer que seja nosso esforço de imaginação, custa-nos imaginar os

sentimentos que oprimiam os imigrantes pos tos na floresta virgem. O comboio de mulas era

dividido. As bagagens haviam sido amontoadas à beira da picada. Esta era a única brecha

aberta na mata, apenas um túnel de três ou quatro metros de largura onde tropeçavam

nas raízes e nos cepos, onde se feriam no fio das hastes cortadas acima do solo. De um a

outro lado, elevavam-se árvores monstruosas, estreitavam-se os arbustos e as plantas do

sub-bosque, enlaçavam- se os cipós. Era a obscuridade misteriosa a umidade sufocante do

dia, a ameaça confusa da noite, a angústia e o desespero.67

Para alguns autores de duvidosa postura de frente ao racismo ou ao etnocentrismo,

e na opinião dos arautos da imigração no século XIX, a qualidade do imigrante era

fundamental; o alemão em particular era visto como o mais eficaz e competente desbra-

vador de terras virgens. Nesse sentido, conforme já citamos anteriormente, em Cruz. Alta, na

década de 1880, um articulista de um periódico local insistia na vinda desses imigrantes por

serem os de melhor qualidade para o trabalho agrícola. Nesse caso, é interessante a

justificativa que alguns historiadores dão para a fracassada colônia de São João das

Missões, na região missioneira, que foi fundada em 1825 e que redundou no maior fracasso

desse tipo de empreendimento colonizador. O historiador Aurélio Porto, em seu Trabalho

Alemão na Rio Grande do Sul, atribui o fracasso da colônia à péssima qualidade dos colonos

para lá enviados, ao contrário dos colonos da bem-sucedida São Leopoldo, próxima à ca-

pital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Diz o autor:

"Nas sumacas Ligeira e Delfina, despejara Schaeffer, no Rio Grande do Sul, parte dos

elementos indesejáveis, que angariara na Alemanha. Eram indivíduos de toda a espécie.

Datam daí os atritos e dissídios que convulsionaram a família germânica que fundara São

Leopoldo. Quando penetra ali essa vasa da colonização, irrompem logo as desordens. Os

primeiros colonos, elementos da ordem e do trabalho, vem do-se de momento, envolvidos em

lamentáveis questiúnculas e quebrada a tranqüilidade que tinha existido até aquele

Page 70: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

70

instante, dirigem-se as autoridades apelando, em nome da boa harmonia da Colônia,

separem os recém vindos, que não lhes mereciam apreço, por serem homens que não

sabiam se conduzir.68

Esses colonos foram enviados para as longínquas Missões, distantes dos mercados

agrícolas, onde a agricultura somente era possível para a subsistência e não como forma de

exploração comercial. Ao contrário, São Leopoldo teve seu sucesso graças à proximidade de

Porto Alegre. As colônias do Planalto ou Missões, para onde foram enviados os "alemães

indesejáveis" da década de 1820, somente se desenvolveriam no final do século XIX, quando

ferrovias como a São Paulo-Rio Grande permitiriam o escoamento da produção para um

mercado interno nacional cada vez mais dinâmico e em expansão. Isso explica também a

fraca agricultura dos lavradores nacionais, de que reclamavam os defensores da

colonização.

Ao transferir o fracasso da colônia São João das Missões, na década de 1820,

para a qualidade do colono alemão, que nesse caso, excepcionalmente, seria de "má

qualidade" ao contrário da maioria de seu compatriotas, o autor justifica também a usurpação

e a especulação de terras de que foram vítimas os antigos agricultores nacionais, esses

também considerados de "qualidade inferior" e incompetentes para a atividade agrícola.

Era o discurso oficial da era da colonização.

Com essas observações queremos evidenciar que a colonização tinha um caráter

excludente e também nos permite entender melhor a pura e simples versão tradicional de

que o avanço da fronteira é algo heróico e obra de homens empreendedores e trabalhadores

que, de forma natural, empurram a fronteira adiante como um farmer americano. Nessa

versão, a especulação de terras aparece de modo muito tímido ou mesmo desaparece sob

a idéia de avanço natural de colonos sobre terras livres e inexploradas que estariam à espera

desses homens decididos e corajosos.

Na realidade, quando o colono imigrante ou filho desse chega à zona de fronteira

agrícola, encontra uma população local que lhe servirá de mão-de-obra barata para

desmatar, para abrir estradas e para construir, inclusive as ferrovias que escoarão os

excedentes agrícolas daqueles. As indústrias de madeira certamente não utilizavam

apenas colonos para derrubar e transportar ou serrar milhares de árvores, que eram

exportadas para o Uruguai ou a Argentina.

As terras, quando o colono chegava, não eram tão livres como se poderia imaginar.

Afora os indígenas, há muito encurralados nas pequenas reservas, havia milhares de

Page 71: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

71

caboclos que, aos poucos, foram também encurralados nas áreas mais distantes e inós-

pitas, ou submetidos ao assalariamento precário nas serrarias, nas empresas oficiais

encarregadas da infra-estrutura das colônias oficiais ou particulares que seriam vendidas

aos laboriosos colonos temos, italianos e tantos outros. Um anúncio de 1918, de uma

empresa encarregada de abrir uma estrada rumo às margens do Uruguai, em plena

floresta, contratava peões trabalhadores a 2$300 réis por dia para aquele empreendimento,

cujo proprietário também passou em seguida a vender lotes coloniais para os colonos:

"No trabalho da estrada para a colônia do mel, no município de Palmeira, o Senhor

Antônio Mariano Zanato precisa de muitos trabalhadores. Pagando 2$000 até 2$300 por

dia a dinheiro livre, não paga comida em dias de chuva nem nos domingos."69

O autor do anúncio não se estava dirigindo apenas aos colonos, pois esses se

ocupavam em trabalhar em suas propriedades, mas também à massa de homens sem-

terras que se havia formado na região. Um exemplo notável da existência de uma população

despossuída consta num relatório oficial de 1913. Diz o relator:

"A cinco léguas e a NE da vila da Palmeira há um núcleo colonial de cerca de

duzentas famílias, no lugar... Fortaleza, à margem esquerda do rio da Várzea... São em

sua maior parte Intrusos ali estabelecidos durante o último período revolucionário.70

O relator, que se refere à Revolução de 1893-95, que assolou a região, envolvendo

fazendeiros com posturas políticas diferentes e que arrastavam em suas fileiras todos os

homens possíveis, sugere que o Estado legitime as terras dos ditos intrusos.

A presença dos chamados intrusos, que constantemente eram enxotados pelos

proprietários legais das terras, é uma constante nos relatórios oficiais e nos relatos de

colonizadores que, ironicamente, se autoproclamam de "pioneiros".

Outro relatório informa e solicita ao governo que:

"Convém também e com urgência, regularizar o estabelecimento de grande número

de nacionais que prestaram serviços na defesa da República e se estabeleceram na

margem direita do rio Ijuí onde é imprescindível fazer a verificação das medições efetuadas

pelo Banco Iniciador de Melhoramentos, dos quais não existem mais vestígios, legalizando

ao mesmo tempo os direitos de grande número de posseiros que naquela zona não estão

reconhecidos como proprietários das terras que ocupam."71

Atribuir o sucesso da empresa agrícola na região exclusivamente à obra dos colonos

Page 72: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

72

imigrantes é incorrer num erro capaz de mascarar o processo de ocupação e apropriação das

terras na fronteira agrícola. Não se trata apenas de uma questão ideológica com objetivos

enaltecedores do trabalho desta ou daquela etnia em detrimento de outra, mas sim de

analisar a questão da fronteira sob outro prisma que não seja excludente e nem apoiado

na análise étnica ou numa expansão pura e simples da pressão demográfica das áreas mais

antigas de colonização no Rio Grande, que, nesse sentido e nessa forma de analisar,

estariam fadadas a emigrar para novas áreas. Isso é uma explicação cujo centro está fora

da fronteira.

Nesse trabalho, propomos ver a fronteira agrícola de outro prisma. Incluímos,

portanto, urna análise dos contingentes que foram efetivamente os pioneiros, no caso os

caboclos extrativistas de mate e pequenos agricultores. Incluímos na análise, também,

como forma fundamental de expropriação, a privatização da terra pelos especuladores, bem

corno seu incentivo à imigração com o objetivo de criar mercado para a terra e valorizá-la.

Nesse caso, as colônias oficiais em terras devolutas serviam de ponta de lança para a

imigração generalizada de colonos que logo transbordariam os núcleos oficiais para

avançar e comprar terras dos especuladores.

Conclusão

É nítida a presença do militarismo, diretamente ou indiretamente, no processo de

apropriação da terra na região. As primeiras áreas foram concedidas a aventureiros e

militares que, ao longo do século XIX, mantiveram-se fiéis à tradição militar dos es-

tancieiros gaúchos, formando milícias particulares dispostas a qualquer tipo de luta.

Esse poder militar, associado ao poder político, deu condições para a apropriação de terras

públicas e para a usurpação de terras da massa de lavradores pobres, os quais se viram

gradativamente na condição de sem-terras em meio aos latifúndios improdutivos.

Nas terras de pastagens nativas perpetuaram-se, ao longo do tempo, os latifúndios

pastoris, enquanto as áreas florestais transformaram-se em zonas de pequenas propriedades

agrícolas. Essas áreas de mata ocupadas por extrativistas e lavradores pobres foram aos

poucos privatizadas por usurpadores poderosos locais através dos mais diversos

expedientes e, mais tarde, foram revendidas aos imigrantes europeus através das

companhias de colonização. Isso com exceção de algumas terras públicas, repassadas di-

retamente aos colonos pelo Estado. No final do período de que tratamos neste trabalho,

podemos observar com nitidez a presença do velho latifúndio pastoril; de uma massa de

Page 73: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

73

colonos de origem européia dedicada à agricultura nas áreas florestais; e de uma massa de

lavradores nacionais pobre e sem terra.

A presença de agricultores imigrantes europeus, solicitada pelas próprias

autoridades locais, parece ser paradoxal quando havia considerável população de

camponeses nacionais. No entanto, essa população foi utilizada como mão-de-obra para a

construção da infra-estrutura nos empreendimentos das companhias de colonização e

para as atividades das estâncias de gado.

A solicitada imigração dos colonos europeus, amparada por um discurso ideológico

em torno do espírito de trabalho, foi parte de uma estratégia, na qual coube àqueles o

papel de agricultores para o mercado interno e, principalmente, o de compradores das

terras florestais ociosas em mãos dos estancieiros. Aos lavradores nacionais, os caboclos,

foi reservado o trabalho nas estâncias pastoris em substituição ao escravo e nas

companhias de colonização, além de formarem as fileiras das milícias particulares dos

chefes políticos locais.

Em relação à legislação agrária, a Lei de Terras de 1850 e suas regulamentações

posteriores tinham em seu bojo o propósito de impossibilitar o acesso à terra por parte de

uma camada pobre da população, como forma de garantir mão-de-obra barata para os

cafezais paulistas, dentro do processo de extinção do trabalho compulsório. Não tiveram,

entretanto, esse mesmo efeito ou objetivo no Sul do país, em função das diferentes

características da economia regional. O monopólio da terra na região serrana gaú-cha não se

propunha apenas gerar urna massa de desamparados, sujeitos ao assalariamento nas

estâncias, simplesmente. Esse monopólio da terra significava a possibilidade de vendê-la no

mercado que seria proporcionado por colonos pequenos proprietários, dando seqüência a

uma larga experiência desse tipo de negócio nas áreas mais antigas do Rio Grande do

Sul. Por outro lado, a legislação não foi obstáculo para os grandes latifundiários, que não

hesitavam em usar expedientes fraudulentos e arbitrários.

Notas

1 Relatório do vice-presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Luiz A. L. de

Oliveira Bel lo, na abertura da Assembléia Provincial em primeiro de outubro de 1852. Porto

Alegre, Tipografia do Mercantil, 1852.

2 Relatório com que abriu a primeira sessão ordinária da segunda legislatura da província de

São Pedro do Rio Grande do Sul no dia primeiro de março de 1846 o Exmo. Sr. Conde de

Page 74: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

74

Caxias. Porto Alegre, Tipografia I. J. I.opes, 1846. P. 21.

3 Relatório de José Joaquim de Andrade Neves, diretor-geral dos índios ao Ministro do Império.

Rio Pardo, abril de 1854. (Manuscrito - Biblioteca Nacional - BN, Rio de Janeiro, 1.32.14. 14)

4 Cf. relatório do tenente-general Francisco José de Souza Andréa na abertura da Assembléia

Provincial de primeiro de Junho de 1849. P. 12.

5, 6 CASTRO, Evaristo Affonso de. Notícia descritiva da região missioneira. Cruz Alta :

Tipografia do Comercial, 1887. P. 30.

7 Cf. ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta ao presidente da província. 16 de janeiro de 1850

(Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul - AHRS; Correspondência da Câmara Municipal de Cruz

Alta - CCMCA. Cx. 110).

8 Idem (Ver Anexo n° 1.).

9 RÜDIGER, Sebalt. Colonização e propriedades de terras no Rio Grande do Sul, século XVIII.

Porto Alegre : Instituto Estadual do Livro, 1965. P. 70.

10 Apud, SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Porto Alegre : 13els, 1974.

P 104.

11 Cf. Registro Paroquial de Terras. Paróquia do Divino Espírito Santo da Cruz Alta.

1855 e 1856. Arquivo Público do Rio Grande do Sul - APRS. Porto Alegre.

12 Inventário post-mortem de Joaquim Thomas da Silva Prado. Cartório de Órfãos e Ausentes

de Cruz Alta. Maço 3, n° 67 - APRS.

13 Cf. PILAR ROSA, Izaltina Vidal do. Cruz Alta. Rio de Janeiro : Tipo Editor, 1981. (Esta

obra contém uma biografia da família Pilar, a qual pertence à autora).

14 Cf. correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da Província. 6 de maio

de 1867. AHRS. Cx. 116. Doc. 482.

15 Cf. ofício do vice-rei Luiz de Vasconcelos a Martinho de Melo e Castro. In: Corcino Medeiros

dos Santos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul - Séc. XVIII. Brasília : Nacional e INL,

1984. P. 49.

16 Cf. CÉSAR, Guilhermino. Histórico do Rio Grande do Sul. São Paulo : Brasil Ed., 1981. P.

198.

17 Cf. correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira (Palmeira das

Missões) ao governo da província - AHRS. Cx. 116.

18 Idem.

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75

19 Código de Posturas de Santo Antônio da Palmeira (Palmeira das Missões) - AHRS. Lata 124.

Maço 97.

20 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da província. Cx. 116.

21 Idem. Cx. 159. Doc. 422.

22 Lei n° 601 de 18 de setembro de 1850. In: Coletânea da legislação agrária do Rio Grande

do Sul. Porto Alegre : Secretaria da Agricultura do RS, 1961. E 6.

23 Ver o Decreto n° 1318, de 30 de janeiro de 1854. Idem, p. 13.

24 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da província. Cx. 116.

25 Cf. BINDÉ, Wilmar Campos. Apontamentos para a história de Campo Novo. Santo Angelo,

1985. P. 104.

26 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira - AHRS. Cx. 116.

27 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira - AHRS. Cx. 116.

Doc. 18 a.

28 Idem, Doc. 20.

29 Abaixo-assin ido ao Imperador do Brasil D. Pedro II - 24 de maio de 1879. AHRS. Lata 124.

Doc. 75 A. Maço 97.

30 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira - AHRS. Cx. 116.

Doc. 87.

31 Cartório do Civil e Crime de Santo Antônio da Palmeira. AHRS. Maço. 01. N° 10.

32 Corresponcléneia da Justiça de Santo Antônio da Palmeira-AHRS. Maço 16. Lata 124.

33 Idem.

34 Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Maço 45. N° 1778.

35 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 2.ed. São Paulo : Hucitec, 1981.

P. 32.

36 Citado por HOETINK, H. Slavery and race relations in the Americas. New York : Harper &

Row, 1973. PP. 76/83.

37 ANTUNES, Paulo Bessa. A propriedade rural no Brasil. Rio de Janeiro : OAB/ RJ, 1985. P.

143.

38 HORMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul em 1850: descrição da província do Rio Grande

do Sul no Brasil meridional. Porto Alegre : D. C. Luzatto e Edunisul. Tradução de Heinrich A. W.

Page 76: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

76

Bunse, 1986. P. 85.

39 Lei n° 229 de 4 de dezembro de 1851. In: HORMEYER, J. Op. Cit. P. 114.

40 HORMEYER, Joseph. Op. Cit. P. 85.

41 CIRNE LIMA, Ruy. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas: Porto

Alegre : Sulina, 1954. P. 47.

42 Idem, p. 54. " Idem, p. 54.

43 Idem, p. 54. " Idem, p. 54.

44 CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias económico-políticas sobre a administração

pública do Brasil. Porto Alegre : Cia União de Seguros Gerais, 1978. PP. 79/99. Edição fae-

simile da publicação da Tipografia Nacional, Rio de Janeiro, 1823).

45 Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Francisco José de

Souza Soares Andréa. Porto Alegre, Museu da Assembléia Legislativa do RS - MALRS, 1849.

(Manuscrito).

46 MARTINS, José de Souza. Op. Cit. P. 29.

47 DEAN, Warren. Latifundios y política agrária en el Brasil del siglo XIX. In: FLORESCANO,

Enrique. Haciendas, latinfundios y plantaciones en América Latina. México : Siglo XXI, 1975.

48 Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Secretaria

da Agricultura, 1961. P. 24.

49 Cf. abaixo-assinado ao imperador. Palmeira, 24 de maio de 1879. AHRS. Cx. 116. Doc. 70 A.

50 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta. AHRS. Cx. 116. Doc. 568.

51 Cf. Aurora da Serra. Cruz Alta, dezembro de 1884. N° 1. Ano 2. PP. 99-100.

52 Aurora da Serra. Cruz Alta. Abril de 1886. NI' 4. P. 1.

53 Cf. ROCHA, Prudêncio. História de Cruz Alta. Mercúrio, 1962. P. 90.

54 Relatório de Lindolpho A. Rodrigues da Silva. 30 junho 1913. AHRS. Cód. 219. Manuscrito.

55 Correio Serrano, 5 novembro 1917. P. 2. Ijuí.

56 Idem, p. 3. " Idem, p. 4.

58 Idem, 24 junho 1918. P. 2.

59 Relatório do engenheiro Augusto Pestana - 31 junho 1902. In: Relatório dos Negócios

das Obras Públicas. Porto Alegre : MALRS. P. 37.

60 Relatório dos Negócios das Obras Públicas. Porto Alegre. 31 julho 1900. P. 69. (MALRS)

Page 77: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

77

61 As informações sobre Hermann Meyer e sua empresa forma retiradas de:

FAUSEL, Erich. De Elsenau a Panambi: desenvolvimento da colônia NeuWürttemberg, fundada

pelo dr. Hermann Meyer. In: cinqüentenário de Panambi -s/ed., 1949. PP. 3-36 e

FAULHABERSTIFTUNG. Neu-Württemberg: eine siedlung deutscher in Rio Grande do Sul,

Brasilien. Stuttgart : Ausland und Heimat Verlags. 1933.

62 FAULHABERSTIFTUNG. Op. Cit., 7 (Tradução).

63 FAUSEL, Erich. Op. Cit.

64 Cf. BACK, Léon. A imigração judaica. In: Enciclopédia Rio-Grandense. 5° V. Klaus Becker

(Org.). Canoas : Regional, 1958. PP. 271-280.

65 Ao longo do século XIX, os preços da erva-mate indicados nos inventários postmortem de

Cruz Alta, Passo Fundo e Santo Antônio da Palmeira, oscilavam em tomo de 1$500 e 3$000

réis. Na década de 1910 a lista de preços agrícolas do jornal Correio Serrano indica 5$000 rs

(1917) (por arroba).

" Os preços referentes às colônias Ijuhy e General Osório estão indicados nos inventários post-

mortem do Cartório de Cruz Alta e Ijuí. O preço referente à colônia do Cadeado está indicado em

ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo, s. d. P. 54.

ROCHE, Jean. Op. Cit. P. 52.

68 Aurélio. O trabalho alemão e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Gráfica S. Terezinha, s.

d. P. 86.

69 Correio Serrano. 14 de junho 1918. P. 3.

70 Relatório de Lindolpho A. Rodrigues da Silva. 30 junho 1913.

71 Relatório dos Negócios e Obras Públicas. 31 de julho 1889. p. 55.

Page 78: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

78

III

USO DA TERRA

A economia regional durante o século XIX esteve assentada na pecuária e no

extrativismo da erva-mate, e sustentada por uma agricultura de subsistência.

Examinamos a organização desses três setores neste capítulo no que se refere: às

técnicas agrícolas; à dimensão e ao uso das propriedades; às ligações com o mercado.

A agricultura, que recebeu grande impulso no final do século, é examinada a partir

da influência das expansões demográfica e do mercado. As técnicas agrícolas utilizadas

pelos agricultores locais são observadas a partir das teses expostas por Ester Boserup em

Evolução Agrária e Pressão Demográfica, que demonstram a racionalidade intrínseca de

sistemas de cultivo considerados arcaicos e irracionais quando visto sob a ótica das

modernas técnicas de cultivo desenvolvidas pelo universo agronômico.

A Estância

A pecuária representou durante todo o século XIX a principal atividade econômica

do planalto gaúcho. Mais especificamente as estâncias típicas do planalto criavam gado

bovino, cavalar, muar e ovino. A participação relativa de cada um desses tipos de animais

pode ser vista no gráfico que elaboramos abaixo, a partir de uma série de inventários post-

mortem de estancieiros da região. Devido ao grande número de inventários,

recolhemos uma amostragem, selecionando o conjunto de documentos relativos a um

ano em cada período de cinco anos.

Page 79: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

79

GRÁFICO Nº 01 – PERFIL DA PRODUÇÃO PECUÁRIA NO PLANALTO GAÚCHO SEGUNDO UMAAMOSTRAGEM ELABORADA A PARTIR DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM. %

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%100%

1851 1856 1861 1866 1871 1876 1881 1886 1891

Vacum Cavalar Muar Ovino

Fonte: Cartório dos municípios de Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões. Arquivo Público do RioGrande do Sul. Porto Alegre.

Como se pode observar nesse gráfico, a tendência é de crescimento relativo do gado

bovino e decréscimo relativo de cavalares e muares, enquanto a ovelha aparece de forma

pouco significativa. O gado bovino em 1851 representava cerca de 37% do plantel de

animais das estâncias, enquanto os cavalares chegavam próximo dos 50%. Os muares

ficavam em torno de 12% e as ovelhas com cerca de 3% apenas. Nos anos seguintes, o

gado bovino, na situação de superioridade, mantém certa estabilidade até a década de

1880, quando cresce bruscamente, atingindo uma participação relativa de mais de 90%,

em 1891. Os cavalares, por sua vez, mantém certa estabilidade, também, durante esse

período, logo abaixo do gado vacum, mas tendem a perder sua importância na década de

1890, quando atingem um índice relativo de apenas 7%.

Convém assinalar que a produção de muares estava estreitamente ligada à criação de

fêmeas cavalares – as éguas – que são as matrizes para a criação daqueles, a partir do

cruzamento com o burro. Dessa forma, os animais cavalares que aparecem no gráfico são

na maioria matrizes destinadas à criação de mulas, estas de extrema importância no mercado

da época. Ou seja, os cavalares, na verdade, não tinham a importância da mula no mercado.

Essas condições podem induzir a erros de avaliação e creditar exagerada participação de

animais cavalares em relação aos muares, em termos de importância comercial. Por isso,

nos inventários postmortem é mais provável que se encontre maior quantidade de éguas do

que de mulas. A importância das bestas em termos econômicos pode ser medida pelo preço:

Page 80: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

80

uma mula era vendida, em 1861, pelo preço médio de quinze mil réis e uma égua valia em

torno de 2,5 mil réis. Assim, podemos afirmar que o gado vacum e o gado muar eram os mais

importantes animais comercializados pelas estâncias, até o final do século XIX.

Para reforçar os dados do gráfico, apresentamos outras evidências para dar

sustentação ao perfil de animais nele representado.

Tomamos o perfil de duas estâncias em períodos diferentes. Em 1866 o plantei da

fazenda Estrela de Germano Rodrigues da Silva no segundo distrito de Cruz Alta

apresentava o seguinte perfil:

GRÁFICO Nº 02 – PERFIL DO PLANTEL DE ANIMAIS DA FAZENDA ESTRELA – CRUZ ALTA – %

48%

22%18% 15%

0%10%20%

30%40%

50%60%70%

80%90%

100%

BOVINO CAVALAR MUAR OVINO

BOVINO CAVALAR MUAR OVINO

Fonte: Inventário post-portem de Germano Rodrigues da Silva – Cartório de Órfãos e Ausentes deCruz Alta -- Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Maço 4, n° 101. Porto Alegre

As várias estâncias do Barão de Ibicuhy, sediadas em vários municípios da região,

mantinham um plantei muito semelhante ao da fazenda Estrela no ano do falecimento do

proprietário (1879).

GRÁFICO Nº 03 – PERFIL DO PLANTEL DOS ANIMAIS DAS FAZENDAS DO BARÃO DO IBICUHY – 1879

50%37%

15%

0%10%20%30%40%50%60%70%80%90%

100%

BOVINO CAVALAR MUAR

BOVINO CAVALAR MUAR

Fonte: Inventário do barão do lbicuhy – Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz Alta –Arquivo Público do RioGrande do Sul. Maço 9, n° 245. Porto Alegre, 1879.

Page 81: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

81

A ausência de ovelhas nas estâncias do Barão evidencia a pouca importância

desses animais nas fazendas do século XIX nessa região.

Uma estatística oficial, de 1920, confirma a tendência indicada no gráfico

número 1, de declínio dos muares e da ascensão relativa dos bovinos. Naquele ano, 1920,

mesmo as ovelhas, com uma participação de 13% do plantel regional, superaram as mulas,

estas com apenas 6% (Ver gráfico na página seguinte.).

GRÁFICO Nº 04 – PERFIL DO PLANTEL DOS ANIMAIS NOS MUNICÍPIOS DO PLANALTO – 1920(Participação relativa)

68%

15%10%

16%

0%10%20%

30%40%50%

60%70%80%

90%100%

BOVINO CAVALAR MUAR OVINO

BOVINO CAVALAR MUAR OVINO

Fonte: Anuário estatístico do estado do RS – 1921. Secretaria de Negócios do Interior e Exterior – Gráfica d'AFederação. Porto Alegre. 1922. p. 341-360. (Os dados referem-se aos municípios do Planalto).

A mula, que foi por longo tempo objeto de intenso comércio nas feiras de Sorocaba

em São Paulo, teve seu ciclo encerrado no final do século XIX. Alfredo Ellis Júnior em seu

trabalho sobre o tema conclui que o "ciclo do muar nasceu com a abertura da estrada do Rio

Grande do Sul a São Paulo em 1724 e terminou em 1875, mais ou menos, com o advento da

ferrovia.1

Em 1885, as exportações dos municípios de Cruz Alta e Palmeira das Missões

demonstram a supremacia do gado bovino em relação aos muares. Foram exportadas dez

mil bestas contra vinte mil a 22 mil reses em Cruz Alta e duas mil a três mil bestas contra

cinco mil a seis mil reses em Palmeira.2 Trinta anos antes o presidente da província afirmava

em seu relatório de 1853 que em Cruz Alta "as principais produções são mulas e erva mate.3

Os sintomas de decadência do comércio de muares já se pronunciavam na década de

1860. O relatório da Câmara Municipal de Cruz Alta de 1862 queixava-se que "quando da

última feira de Sorocaba (SP) foi extraordinária a baixa de preços, não fazendo diferença

alguma dos custos das tropas invernadas nesta província".4

Page 82: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

82

A Câmara sugeriu que "a diminuição por alguns anos, ao menos, da taxa

estabelecida por cada besta exportada é urna necessidade para que todo não cesse esse

ramo de comércio".5

Um comentário feito na década de 1880 ilustra a situação do comércio de gado da

região:

"O comércio de exportação de mulas foi uma das principais fontes de riqueza desta

região, que anualmente enviava para a feira, em Sorocaba, São Paulo, muitos milhares

desses animais, que ali eram reputados por bom preço, todavia ainda que esse ramo tenha

decaído um pouco, contudo ainda é de grande interesse e vantagem.

"A exportação de gado vacum para as charqueadas da província e principalmente

de Pelotas constitui o ramo mais seguro de comércio de animais, tendo todos os anos

saído em maior ou menor escala, o que não se dá com o das mulas que é muito sujeito a

paralisação ou pouca demanda.6

Quanto à qualidade das raças do gado vacum, houve pouca preocupação entre os

estancieiros do século XIX. São poucas as referências nesse sentido. Uma dessas raras

informações indica que no município de Cruz Alta alguns estancieiros teriam mandado vir

melhores touros de São Paulo e Minais Gerais, e também cavalos. É uma informação

muito vaga e não dá motivos para se dizer que houvesse uma política de melhora de raças.

Em 1919, o governo gaúcho criou o "Posto Zootécnico" em Porto Alegre, cujo objetivo

era melhorar a qualidade do rebanho através da importação de touros reprodutores, baseando-

se na experiência dos criadores do Uruguai e da Argentina.7

Os banheiros carrapaticidas do Rio Grande do Sul sornavam 166 em 1916, 374

em 1917, 400 em 1918 e 470 em 1919. Esses banheiros, porém, localizavam-se todos na

zona sul do Estado (Bagé, Santana do Livramento...).8

Apesar de algum esforço isolado no sentido de melhoria do rebanho quanto à sua

raça, em 1917 o quadro pecuário informa que a raça crioula, considerada tradicional e

rudimentar, continuava com larga participação no total do rebanho. É o que nos informa

uma publicação de 1917 elaborada para a exposição nacional de pecuária do Rio de Janeiro:

Page 83: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

83

TABELA N" 8 — RAÇAS DE GADO NO RIO GRANDE DO SUL EM 191 7

RAÇAS CABEÇAS %

Crioula 6.604.790 82Hereford 644.565 aDurham 402.863 5Outras 404.854 5TOTAL 8.057.062 100

Fonte: Repartição Estatística do Estado do Rio Grande do Sul. Trabalho executado para a Exposição Nacional dePecuária do Rio de Janeiro — 13 de maio de 1917. Porto Alegre, Globo, 1917. P.37.

Como se pode observar, a maior parte do gado gaúcho (82%) era de raça crioula, ou

seja, o gado tradicional e considerado de qualidade inferior. Essa situação é perfeitamente

compreensível se considerarmos que a pecuária sulina era produzida em grandes

propriedades com pastagens nativas, onde o baixo rendimento do gado comum em relação

a outras raças mais nobres era compensado pelo simples aumento do plantel ou pelo

maior tempo de engorda, não compensando investir capital em importação de touros e

matrizes e mesmo investir em cuidados sanitários que exigissem despesas com insumos e

mão-de-obra.

O Auto-Abastecimento da Estância

Embora uma estância do século XIX fosse um estabelecimento hegemonicamente

pastoril, seus proprietários procuravam manter auto-suficiência alimentar. Peões ou

escravos eram utilizados para roças e criação de pequenos animais domésticos. Com esse

propósito, o Conde de Piratini instruía seu capataz da Estância da Música corri as seguintes

recomendações:

"Artigo 11. Fará plantar bastante milho, feijão, abóboras, e hortaliças e algum trigo,

para que haja de tudo fartura afim de poupar-se muitas carniações.

"Artigo 30. Os escravos podem plantar e criar galinhas, tendo milho para as

sustentar.

"Artigo 37. Criar alguns porcos fazendo-se para isso pequeno curral com coberta

para agasalhar e mesmo para evitar que haja lama no mesmo curral.

Page 84: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

84

"Artigo 38. Criarem-se galinhas, perus e marrecos, fazendo-se um galinheiro para

que estejam agasalhadas as ditas aves.9

No artigo 8 de suas instruções, o conde propõe ainda que o posteiro deve ter o

auxílio de um escravo e que "deve plantar" nesses postos.

O viajante francês Saint-Hilaire, por seu turno, define uma estância como "uma

propriedade onde podem existir algumas culturas porém ocupando-se principalmente à criação

de gado".'10

Afora essa produção interna, através de escravos, as estâncias eram abastecidas

por lavradores independentes residentes na própria estância ou nas suas vizinhanças-. O

proprietário da Fazenda Estrela, falecido em 1866, contava entre seus devedores alguns

lavradores nessas condições. Por exemplo: "Custódio Aires Martins, lavrador, morador da

estância deve 49$000 réis e Clarimundo José Pereira, lavrador, vizinho da estância

deve 54$260 réis.11 Esse proprietário, apesar de ter uma enorme área e cerca de 3,6 mil

cabeças de gado, contava com apenas três escravos, o que supõe que utilizava

trabalhadores livres para abastecer a estância bem como para os serviços pastoris.

No interior da estância a produção agrícola livre era conduzida pelos peões

posteiros, agregados que cuidavam do gado em pontos estratégicos longe da sede da

propriedade, em troca do direito de plantar e de alguma remuneração. Quanto aos lavrado-

res vizinhos das estâncias, eram freqüentes os conflitos entre estes e os estancieiros. Os

lavradores pobres normalmente não tinham títulos de terras e sofriam constantes

investidas dos seus vizinhos mais poderosos com a intenção de aumentar ainda mais seus

domínios.

Por outro lado, embora extremamente fraco, o mercado de produtos agrícolas existiu

através de agricultores pobres da região. Mais tarde, já no final do século, esse

mercado intensificou-se fortemente com a instalação de núcleos coloniais e a conseqüente

expansão da produção agrícola.

O auto-abastecimento das estâncias possibilitava enfrentar, sem grandes

transtornos, as adversidades do mercado pecuário.

Essa auto-suficiência permitia que, durante uma baixa de preços do gado, fosse

possível reter os animais no campo por certo tempo ou ainda a venda reduzida de

cabeças, conforme as necessidades imediatas. E mesmo que o estancieiro vendesse seus

animais por preços relativamente baixos, não correria o risco de ir à falência.

Page 85: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

85

Por outro lado, a agricultura não era alvo de preocupação quanto à produtividade,

pois não ia ao mercado e tampouco interessava como era produzida a subsistência. O

importante era que fosse suficiente para o abastecimento interno.

O auto-abastecimento das estâncias perdeu sua importância no final do século. A

libertação dos escravos fez com que muitos cativos que nas fazendas cuidavam das roças

migrassem para as cidades. "Ficavam nas estâncias somente os negros campeiros,

laçadores, peleadores e domadores que preferiam continuar naquela lida ativa..."12 Ao

mesmo tempo, a partir da década de 1890 assiste-se a uma grande expansão da agricultura

regional ocasionada pelo súbito aumento de trabalhadores agrícolas imigrados da Europa

e das colônias velhas:

"As estâncias deixaram de auto abastecer-se. A agricultura era absorvida pelos

colonos que tomavam conta das terras de mato das serras onde os estancieiros faziam

suas roças. A agricultura nas estâncias passou a ser em pequenas lavouras caseiras

(...). Passou assim o ruralismo a adquirir produtos das colônias, de onde vinham suas

carretas carregadas de milho, alfafa, etc...13

A Erva-Mate

A erveira, a Ilex paraguaiensis, é uma árvore nativa do sul da América: no Planalto

gaúcho os ervais nativos eram abundantes, principalmente nas matas do Alto Uruguai. O

extrativismo da erva-mate nessa região vem desde a época das reduções jesuíticas do

século XVII. A expulsão dos padres da Companhia de Jesus e a destruição dos povos

indígenas desorganizaram a exploração do produto. Na década de 1830, quando o território

consolidou-se como patrimônio brasileiro ao mesmo tempo e que o governo paraguaio

suspendeu a exportação de mate, houve uma corrida ao ervais da região. Muitos desses

ervais precisaram ser descobertos no interior da floresta onde os extrativistas deveriam

bater-se com os indígenas.

Em 1850, a coleta de erva-mate já tinha grande importância econômica, empregando

milhares de pessoas, e era o principal item de arrecadação tributária municipal do

município de Cruz Alta, em cujo território encontravam-se os ervais. Na década de 1870,

o índice de participação do imposto sobre exportação do mate atingia mais de 50% da

arrecadação dos municípios da região ervateira.14

A produção do mate ao longo do período 1850-1920, que estamos examinando,

Page 86: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

86

assentou-se fundamentalmente na oferta dos ervais nativos. O cultivo só mereceu iniciativas

importantes no começo do século XX.

As câmaras municipais criaram regulamento para disciplinar o extrativismo dos

ervais púbicos, com o objetivo de evitar a depredação das plantas, as falsificações do produto

e manter sob controle a tributação. Pelos artigos 41 e 42 do código de posturas do

município de Santo Antônio da Palmeira eram considerados corno públicos os ervais deste

município e os coletores deveriam requerer licença para extrair o mate: "Pela licença de que

trata o presente artigo, pagará o requerente dois mil réis". Na ocasião, o requerente era

"obrigado a declarar no ato de tirar a licença o número de trabalhadores de que se

compõem a comitiva com indicação do lugar onde tem de fabricar erva, sob pena de pagar

a multa de cinco mil réis."

Outros artigos expressam a política municipal de controle do extrativismo:

"Art. 47 – É proibido colher erva mate em erva! público que pelo seu estado de

ruína tenha a Câmara interdito sua colheita...

"Art. 48 – É proibido fabricar erva mate de outra folha que não seja a legítima ou

misturada com a legítima, outra qualidade de folha. (A erva falsa será queimada e o

contraventor incorrerá em multa e cadeia).

"Art. 49 – É proibido expor à venda ou exportar erva mate podre ou corrompida (a

erva será queimada).

"Art. 50 – Toda pessoa que tiver e possa conservar limpo ervais nos matos

devolutos tem especial preferência no fabrico da erva mate, de conformidade com o

disposto nos artigos 42, 43, 44, 45 e seus parágrafos do presente código."15

O artigo 41 indica o caráter comum da exploração dos ervais. Qualquer indivíduo

poderia se habilitar para o extrativismo do mate, respeitando as normas da câmara e

pagando a devida taxa para concessão de licença. O artigo 42 expressa o controle político

e econômico do extrativismo, o que significa certo atrelamento dos extrativistas ao comando

dos chefes políticos locais.

No mesmo regulamento fica implícita a condição de camponês do extrativista. O

artigo 46 chama a atenção e estabelece punições ao coletor de mate que não observar as

regras de prevenção de incêndios cujas causas geralmente tinham origem nas tradicionais

queimadas nas roças dos lavradores descuidados. O artigo 50, por outro lado, oferece

Page 87: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

87

vantagens ao coletor que cuidar do erva], mantendo-o limpo.

O período de recesso do extrativismo previsto no artigo 43 coincide com as estações

próprias para o cultivo de verão, quandoa população dedicava-se à agricultura de

subsistência plantando milho e feijão – os principais produtos agrícolas consumidos na

região.

Apesar do código disciplinador, as fraudes na qualidade do produto e o desrespeito ao

intervalo de quatro anos entre uma poda e outra , eram comuns. A fa ls i f icação do

produto, que desprestigiava a erva brasileira no mercado externo, bem como sua

péssima qualidade, por má-elaboração e descuidos, eram uma preocupação bastante antiga

no Rio Grande do Sul. Já em 1823, Antônio José Gonçalves Chaves, um charqueador

progressista de Pelotas, alertava em suas Memórias Ecônomo-Políticas sobre este problema:

"A erva que se conhecer proveniente de caúna ou outra planta nociva à saúde, ou que

tem alguma mistura perigosa, a que foi molhada no paiol ou por algum outro princípio tem

podridão, será declarada sem valor e lançada ao mar e tudo isto com as cautelas

necessárias.16

Ilemetério José Velloso da Silveira, recordando sua atuação na câmara municipal

de Cruz Alta, como vereador e presidente, escreveu em 1909:

"Tendo de organizar o código de posturas estabelecemos penas muito severas

para a colheita e preparação espontânea e até sobre a falsificação da erva mate.

"Pouco adiantamos com isso, pois mudando de domicílio, continuou o comunismo e

então já não se guardava o interstício de quatro anos de uma colheita à outra o que fez

definhar e morrer muitas árvores, tendo sido preciso as câmaras dos novos municípios de

Palmeira e Santo Ângelo, declarar interditos por três ou quatro anos os importantes ervais

de Campo Novo, Nuncorá, Galpões, Santa Rosa e outros, embora com uma tal medida

vissem diminuir o mais importante ramo de sua receita.17

Nos cartórios de Cruz Alta e Palmeira das Missões não são raros os processos

contra os contraventores. O acesso relativamente fácil aos ervais estimulava os

coletores a se arriscarem a colher o produto nos meses proibidos.

Na era republicana, os ervais públicos que escaparam ao processo de privatização

passaram a ser arrendados pelo governo estadual a grandes industrialistas do mate, que

exploravam o erval com trabalhadores assalariados. Em 1908, os arrendatários pagavam

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88

ao governo trezentos réis por arroba de mate.'18

No início deste século começaram as plantações de ervais. O cultivo da erveira,

embora fosse conhecido desde o período jesuítico, praticamente não se desenvolveu no

século XIX. Havia, é certo, problemas em dominar a técnica de germinação da semente,

o que limitava as iniciativas nesse sentido. Em 1918, em Erechim, por exemplo, Oscar

Oliveira César plantou 56 mil mudas de erveiras que lhe custaram 10:000$000 réis, prevendo

urna produção de oitenta mil arrobas por safra, que lhe renderiam 240:000$000 réis ao

preço daquele ano. 19

A Produção e o Comércio da Erva-MateA produção rio-grandense do mate além de abastecer o mercado interno regional era

exportada aos países platinos. Em 1851, no inventário do proprietário de engenho Luiz

Perié, constam vários nomes de devedores seus de Montevidéu, Buenos Aires e da província

de Paraná (Argentina).

Temístocles Linhares afirma, na sua História Econômica do Mate:

"De 1° de julho de 1857 a 30 de junho de 1858 pelo porto de Itaqui, pequena

cidade às margens do rio Uruguai, saíram por via fluvial, com destino à Argentina,

1324593 kg de mate."20

O mate exportado pelo porto de Itaqui era procedente dos ervais de Cruz Alta. O

relatório do presidente da província de 1854 nos diz:

"A erva-mate da Cruz Alta vende-se em diversos mercados, conforme a vizinhança do

lugar em que é fabricada. De todos porém o mais importante é o de Itaqui, donde se distri-

bui pelo Uruguai abaixo para os estados vizinhos e para Buenos Aires."21

As estatísticas sobre a produção e a exportação de erva-mate são muito frágeis,

pois muito produto era contrabandeado para os países vizinhos que eram de acesso

relativamente fácil para os produtos sulinos. Da mesma forma, certamente muito produto

vendido no mercado interno era comercializado à margem dos levantamentos estatísticos e

sem pagar impostos.

Do Rio Grande do Sul, existe uma estatística das exportações' organizada por

Florêncio de Abreu para o período 18561920,22 mas são dados que apresentam

distorções, se compararmos com outras fontes. No quadro do autor, o ano de 1871, por

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89

exemplo, apresenta uma forte queda nas exportações ao mesmo tempo em que ocorre

uma forte elevação dos preços: o que é oposto aos dados recolhidos nos relatórios

municipais da região onde consta um aumento de produção, a preços estáveis; o que

parece lógico, se considerarmos que nesse ano a guerra do Paraguai (que atingiu diretamente

a região) já havia terminado.

Enfim, as estatísticas prontas, sem a citação de fontes como no caso acima, devem

ser analisadas com cuidado. No nosso caso, preferimos elaborar um quadro a partir de

fontes basicamente locais, o qual, apesar das dificuldades inerentes, tem bastante con-

cordância com a conjuntura política e econômica do período.

TABELA N° 9 – ALGUNS INDICADORES SOBRE PRODUÇÃO DE ERVA-MATE NO PLANALTO

Fonte:

1 Cf. DICTIONNAIRE UNIVERSSEL, Theorique et pratique du comrnerce et de la navegation. Paris, v.II. p.594. Apud. LINHARES, Ternístoles. Op. Cit. P. 105.

2 Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta. AHRS. Cx. 110.

3. CAMARGO, A . E. Quadro estatístico da província de S. Pedro do RGS. Porto Alegre. 1868. P.112.

4. CASTRO, Evaristo A . Op. 'it. P. 38.

O volume de mate na região dependia da disponibilidade de mão-obra, da

conservação dos ervais; eventualmente alguma intempérie poderia prejudicar a safra.

Durante a guerra do Paraguai foi notória a diminuição da produção pela falta de braços, já

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90

que os trabalhadores foram recrutados para o conflito pelos coronéis locais. O descuido

com a erveira poderia levar à sua ruína. Esse problema esteve marcado pelas constantes

queixas e medidas repressivas das câmaras municipais contra os coletores do mate que

burlavam as normas e não respeitavam o tempo entre uma e outra poda, além de colherem

fora da época. O prazo entre uma e outra poda é de quatro anos; a colheita em tempo menor

prejudica sensivelmente a planta. Alguma geada fora dos meses normais de ocorrência ou

alguma seca prolongada poderiam determinar queda da produção.

Quanto aos preços não há como atribuir-lhes grande influência na produção da

erva-mate. Sendo a ervateira nativa e permanente, urna baixa de preços não era

suficiente para impedir a coleta, pois essa operação não implicava em investimentos. De

qualquer forma, o trabalhador dos ervais desde o início recebia um salário muito baixo,

mas era uma das poucas formas de se obter algum ingresso de dinheiro.

Em relação à qualidade do produto, embora não se tenha registrado diminuição na

produção, foi um fator de grande importância no que se refere à exportação e aos preços

obtidos. Na década de 1870, a produção do mate no Paraná foi alvo de grande melhoria

técnica, que lhe permitiu grande competitividade no mercado:

"O terceiro ciclo é o que inaugura entre 1875 e 1880, com o deslocamento dos

engenhos para o planalto curitibano e as novas técnicas de industrialização introduzidas

pelo engenheiro inventor Francisco de Camargo Pinto, que permitiram à indústria

paranaense suplantar de todo os seus congêneres do Rio Grande do Sul e do Paraguai,

tomando o nosso mate preferido nos mercados uruguaio, argentino e chileno.23

A invenção tecnológica dos paranaenses consistia em eliminar a ação da fumaça

na erva, que a deixava com gosto desagradável; na substituição do Burrão de couro pela

barrica de pinho e na utilização dediversos aparelhos mecânicos que tornavam mais eficientes

a produção, como o moedor mecânico e o misturador mecânico.

A má qualidade do mate rio-grandense e as suas conseqüências são

expressas pelo jornalista cruz-altense Evaristo Affonso de Castro na sua publicação de

1887:

"...a erva-mate foi e ainda é o ramo de maior exportação do município e chegou

atingir uma cifra enorme, de milhares de arrobas anualmente, mas a imperfeição no

fabrico e o mau acondicionamento fez decair este produto.24

O "termo de arremate de impostos" da câmara de Cruz Alta confirma a prática de

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91

fraude no fabrico do produto:

"...nos casos em que a erva-mate exportada seja apreendida como falsificada e

como tal destruída será pago, a ele arrematante, pelo condutor ou exportador a taxa

correspondente ao mesmo de arrobas apreendidas."25

Um observador contemporâneo deixou uma detalhada descrição do modo como

era produzido o mate nos carijos da região no último quartel do século XIX. Inácio

Capistrano Cardoso, o autor, narra com minúcias a tecnologia do fabrico da erva bem

como aspectos referentes ao trabalho e ao comércio.26 A descrição do autor deixa

claro o baixíssimo nível tecnológico do extrativismo, assim como o baixo índice de capital

investido. Essa forma rudimentar de exploração da erva-mate foi hegemônica até o início do

século atual. Os carijos eram marca característica do extrativismo.

A simplicidade do carijo e dos investimentos de trabalho permitiam que o extrati vista

pudesse produzir sem despender recursos financeiros com aquisição de equipamentos

melhores. Ou seja, todo o processo de coleta e preparo da erva, antes de chegar ao

engenho, era realizado numa instalação construída com material recolhido diretamente da

floresta, da mesma forma que todos os equipamentos de trabalho. Apenas o machado e o

facão eram comprados. Assim, para construir o carijo eram necessários apenas troncos e

capim amarrados com cipós. Os cestos para carregar o produto do carijo ao engenho eram

feitos de taquara durante o processo de secagem da erva.

A coleta da erva-mate, desse modo, não exigia praticamente nenhum investimento:

dependia apenas do trabalho. Essa situação permitia a produção do mate a custos muito

baixos conforme comenta e denuncia o relato. Isso é possível se lembrarmos que a

subsistência do trabalhador era produzida por ele próprio na entressafra, quando

assumia a sua condição de camponês.

O barbaquá, um sistema que elimina o contato das folhas de mate com a fumaça

e que substituiu o carijo, somente passou a ser utilizado com certa regularidade no século

XX, apesar de ser conhecido no Paraná desde a década de 1860.27 Esse melhoramento

técnico foi fruto de comerciantes e proprietários de engenho que passaram a comprar o mate

na sua forma natural. O coletor, nesse novo sistema, apenas cortava os galhos da ervateira

e os conduzia ao barbaquá, dispensando o tratamento no carijo. Ou seja, o barbaquá

exige que o coletor leve a erva até o local em que está instalado, ao passo que o carijo vai até

o erval. Dada a sua simplicidade, os ervateiros construíram vários carijos nas proximidades

dos arvais. O barbaquá, uma instalação mais sofisticada, exige certo capital, não pode

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92

ser construído nas mesmas proporções. Esse processo de preparo da erva-mate exige

melhoria no sistema de transportes para permitir acesso da erva colhida ao barbaquá, pois

o mate não pode permanecer por muito tempo sem o tratamento do carijo ou do barbaquá.

A introdução do barbaquá ocorreu no mesmo momento em que a expansão da

comercialização das terras e a instalação de colônias agrícolas oportunizavam a abertura

de novas estradas e intensificavam o uso de carroças.

Os engenhos de beneficiamento da erva-mate também constituíam-se ao longo do

século num equipamento bastante simples. Consistiam em uma série de pilões movidos por

força hidráulica aproveitando-se os cursos d'água. Tomamos uma descrição de um viajante em

1867:

"Tosco bastante é ainda o sistema pelo qual remoem a erva, servindo-se de engenhos

de dez a doze pilões com enormes rodas de moinhos e eixos, movidos pelas águas dos

lageados, os quais conduzem com muito desperdício. Servem-se também de monjolo, o

qual é um pilão com um braço em forma de colher, a qual enchendo o faz levantar recaindo

o pilão logo que o receptáculo derrama a água. Creio que não alcançam moer duas

arrobas de erva por dia por esse modo.28

A relativa rudimentaridade da produção gaúcha mereceu o seguinte comentário de

Temístocles Linhares:

"O que não se compreende é o descaso ali reinante quanto à forma primitiva por que

se fazem as operações de preparo do mate, quer na parte da produção propriamente dita

(...) como na parte do beneficiamento, em monjolos e soques que até há bem pouco

tempo deixaram muito a desejar...29

Os engenhos de mate eram urna espécie de monjolo melhorado. Mas esses

estabelecimentos movidos a água eram numerosos; em Campo Novo, em 1860, existiam

dezoito engenhos de "socar erva" numa área relativamente pequena. Evidentemente que

apesar de rudimentares esses estabelecimentos exigiam capital suficiente para excluir os

coletores pobres de mate.30

Um "engenho" de moer erva bem-equipado, o do francês Luís Perié, falecido em

1851, foi avaliado em seiscentos mil réis. Outros engenhos, avaliados entre 1851 e 1882,

ficavam entre quatrocentos mil e 450 mil réis.31

Esse quadro tecnológico da produção e do beneficiamento do mate parece ter

Page 93: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

93

perdurado até o início do século XX. Além das referências ao "barbaquá", não existem

outras que dêem notícias de alguma inovação substancial no setor. Por outro lado, a

depredação dos ervais nativos foi compensada pelo cultivo de novos ervais pela iniciativa

privada, conforme já referimos anteriormente.

A Agricultura

A produção agrícola regional pode ser dividida em duas etapas básicas. O período

que se estende até 1890 é marcado pela produção estritamente local. Nos dois setores

básicos da economia - pecuária e extrativismo — havia quase auto-suficiência agrícola; as

estâncias mantinham roças para auto-abastecimento, e os extrativistas de mate eram ao

mesmo tempo agricultores. Dessa forma, o mercado para produtos agrícolas era, sem

dúvida, bastante diminuto para impulsionar qualquer intensificação no setor. As vilas eram

pequenas, e a possibilidade de colocar cereais em mercados importantes como Porto Alegre,

por exemplo, era praticamente inexistente em decorrência sobretudo das dificuldades de

transporte.

Num segundo momento, a partir dos últimos anos do século passado, a agricultura

recebeu significativo impulso e passou a conquistar lugar de grande importância na

economia local. Uma das forças que permitiu esse impulso foi a construção da ferrovia que

possibilitou o acesso aos mercados agrícolas importantes do sul do Brasil.

Paralelamente, a existência de grandes áreas agricultáveis devolutas ou passíveis de

compra por preços módicos trouxe à região um forte contingente de agricultores estran-

geiros e provenientes das áreas agrícolas antigas do Estado. Esses dois fatores — o

aumento populacional e o acesso ao mercado —permitiram grande expansão da produção

agrícola regional, sobretudo em termos quantitativos, pela incorporação de florestas

virgens e pelo maior número de trabalhadores na agricultura.

Numa publicação de 1887, Evaristo Affonso de Castro, uni jornalista cruz,-altense,

descrevia assim a agricultura serrana, do ponto de vista técnico:

"O nosso agricultor, depois de derrubar a machado e foice o mato, deixam-no secar e

então prendem-lhe fogo, logo que caem as primeiras chuvas, fazem a plantação, cavando a

terra com um pau chamado saraquá, depositam nesse buraco a semente que trazem consigo

no embornal a tiracolo, que chamam samblará, feito isso a roça não demanda mais tra-

balho senão no tempo da colheita...32

Page 94: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

94

Na década de 1880, a agricultura e suas técnicas foram amplamente discutidas

através da imprensa da região serrana. A prática agrícola utilizada pelos caboclos,

conforme descrição acima, era condenada energicamente como atrasada e inferior a dos imi-

grantes alemães e italianos que cultivavam em outras áreas da província.

O periódico Aurora da Serra, de Cruz Alta, publicou um artigo muito significativo,

nesse sentido, do vereador H. Uflacker, onde se faz uma análise da agricultura regional.

Transcrevemos em anexo (n° 3), o artigo, datado em 1884, para termos urna idéia do que

pensava a elite local sobre a agricultura cabocla do século XIX.33

O artigo de Uflacker aborda enfaticamente a questão da ignorância da população

lavradora nacional, que não conhecia ou não queria conhecer as técnicas agrícolas

desenvolvidas pelo universo agronômico. E essa ignorância teria origem na qualidade do

lavrador nacional, taxado pelo autor de "indolente" e "vagabundo". Esse discurso é

harmonioso com a orquestra de apologistas do trabalho imigrante – alemão e italiano do

norte, principalmente – que soava rotineiramente nas páginas da imprensa.

A segunda abordagem do autor é a questão dos transportes. Mesmo sem se

aprofundar sobre o assunto, a ferrovia é apresentada como de fundamental importância

para a expansão agrícola. Esse deveria ser o item principal de qualquer análise, pois evi-

dentemente era mais decisivo do que o autor imaginava. O terceiro aspecto observado pelo

autor é de ordem ecológica. Uflacker denuncia a derrubada de matos de forma

indiscriminada; ele previu, com bastante precisão, que em cinqüenta anos a floresta estaria

totalmente liquidada, o que de fato aconteceu.

"Qual é a razão desse fenômeno?", perguntou o autor do artigo sobre o atraso

da agricultura serrana. Ele mesmo respondeu à pergunta, atribuindo-o à ignorância dos

lavradores em relação à tecnologia agrícola. No entanto, mesmo os imigrantes, em seus

primeiros anos de agricultura, não iam além do tradicional lavrador nacional. Isso desautoriza

atribuir apenas a questões culturais o sucesso ou insucesso técnico da agricultura.

A produção nos moldes rudimentares, tão condenada por todos, obedecia a uma

racionalidade própria, diversa do moderno saber agronômico. Ver a agricultura regional com

óculos das modernas técnicas agronômicas significa ter uma visão anacrônica, diferente do

que enxergam os próprios lavradores. Essa disparidade é que leva os inadvertidos a

escandalizarem-se com o tradicional cultivo indígena.

Anos mais tarde, após a publicação do artigo de Uflacker, o geógrafo alemão Leo

Waibel, em viagem de estudos, ficaria escandalizado quando observara que os laboriosos

Page 95: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

95

germânicos praticavam, em vários locais, uma agricultura tipicamente cabocla, tornando-se

alemães "caboclizados", na expressão do autor:

"Especialmente nas áreas montanhosas, de povoamento antigo, e nas regiões

remotas, muitos colonos alemães, italianos e polacos e ucranianos tornaram-se

verdadeiros caboclos, gente extremamente pobre, com muito pouca ou nenhuma

educação...34

Condenar técnicas agrícolas ou sistemas agrícolas rudimentares não era difícil para

qualquer pessoa razoavelmente instruída no século XIX, quando a agronomia já ia longe em

seus avanços tecnológicos. Não tão simples é explicar por que os lavradores persistiam

nesses sistemas; e, não se pode concordar com as explicações de cunho culturalista.

Ester Boserup, em sua importante obra Evolução Agrária e Pressão Demográfica, nos

ajuda a entender a lógica da agricultura tradicional dos agricultores locais. Para a autora, o

uso do fogo e o cultivo com bastão é uma técnica que requer muito pouco trabalho em

relação aos métodos intensivos de cultivo; e, por outro lado, o acréscimo de tempo de

trabalho necessário para novas técnicas pode não trazer resultados compensadores.

Referindo-se às tentativas de introdução de métodos intensivos entre algumas comunidades

africanas, a autora conclui que:

"Assim, pode ser um sólido raciocínio econômico, e não a indolência, o que induz a

comunidade de cultivadores que utiliza o sistema de pousio longo a recusar o abandono

do fogo e do machado quando se lhes oferece ajuda para que adotem o cultivo com arado..."35

A agricultura rudimentar, baseada no fogo, praticada pelos lavradores serranos era,

portanto, uma atitude lógica, se considerarmos a grande disponibilidade de terras virgens

que permitiam um cultivo com pousio longo ou arbustivo, analisados por Ester Boserup.

Esse sistema de cultivo somente tornou-se inviável na região, à medida que as terras

foram sendo privatizadas – impedindo o acesso fácil costumeiro – e a densidade demográfica

foi crescendo, principalmente após a forte imigração no final do século.

Embora os lavradores fossem expulsos da terra, já a partir da década de 1860, por

muito tempo houve a possibilidade de utilizarem florestas virgens para sua agricultura de

subsistência, na condição de "invasores" de matos nacionais, ou como agregados de

estancieiros proprietários de grandes áreas de mato.

Quanto ao saraquá, o bastão primitivo, seu uso era decorrente da impossibilidade

de arar terras recobertas de troncos ainda não-apodrecidos. Não se tratava de

Page 96: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

96

desconhecimento do arado, pois esse era utilizado na região sempre que fosse possível, da

mesma forma que a enxada. O saraquá, em roças novas, era o instrumento agrícola

apropriado para plantar entre os troncos na terra fértil, virgem e fofa. Boserup analisa nesse

sentido:

"Trabalhar com um arado primitivo é trabalho árduo para o camponês e para o animal;

além do trabalho de arar, o camponês terá de cuidar dos animais. A menos que ele mante-

nha um rebanho grande de animais domésticos e empenhe muito trabalho na coleta,

preparação e distribuição do esterco sobre os campos, é provável que a produção por hec-

tare seja menor nos sistemas de pousio curto e cultivo anual do que no de pousio florestal.36

O rendimento da produção nas áreas virgens era, logicamente, bastante

elevado. Os imigrantes do início do século XX ficavam maravilhados com os enormes pés de

milho que cresciam nas roças novas conquistadas à floresta.

Jean Roche, baseado em informações de viajantes e em alguns dados estatísticos

oficiais informa que o milho rendia entre oitenta e duzentos grãos por cada grão plantado,

numa média de 120; o feijão rendia entre trinta e cinqüenta; o trigo entre vinte e oitenta; a

cevada entre dez e vinte e a batata rendia de dez a vinte por cada batata plantada.37

Uma estatística oficial sobre a produção de Passo Fundo em 1858-59 nos

fornece os seguintes resultados (em alqueires colhidos por alqueires plantados).38

Milho = 100; Feijão = 22,8; Trigo = 12 ; Batata = 12; Amendoim = 7

Pode parecer paradoxal que, numa região centrada economicamente na pecuária, não

se tenha usado o esterco animal para adubar as plantações e, dessa forma, empreender um

sistema mais moderno de cultivo. Para compreendermos esse fenômeno, devemos levar ern

consideração alguns aspectos fundamentais: Primeiramente, embora houvesse grande

quantidade de animais para uso de adubo orgânico, ainda assim o sistema de cultivo em

pousio longo era mais rentável, por utilizar a fertilidade natural da floresta virgem e

demandar muito menos trabalho. Também nesse caso, não se trata de desconhecimento

ou ignorância dos lavradores, pois essa técnica de cultivo era conhecida e utilizada em

áreas de campo nativo do sul da província.

Em segundo lugar, as estâncias tinham como prioridade a criação de gado e não

utilizavam, salvo exceções, o seu gado para auxiliar a agricultura, praticamente inexistente

nesses estabelecimentos. Os agricultores cultivavam nas áreas de mato às quais tinham

acesso ocorrendo uma dissociação muito nítida entre pecuária e agricultura. De um lado

Page 97: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

97

os pecuaristas e seus campos povoados de gado, exclusivamente; de outro, os

lavradores, pobres, sem gado, produzindo cereais nas áreas florestais. Não se trata de

um problema unicamente estrutural, pois a agricultura, por questões de mercado, era

desprezível para os estancieiros, sendo a pecuária, indubitavelmente, o melhor

negócio. Os pecuaristas preferiam comprar os cereais dos lavradores pobres, ou cultivá-

los em pequenas roças com escravos ou agregados.

A sugestão do articulista do Aurora da Serra de ocupar os campos para a agricultura,

usando adubos e arados, como sugeria a moderna agronomia da época, não tinha muitas

razões para ser acatada. A utilização dos campos nativos pela agricultura significava retirar

o espaço do principal produto regional, o gado, em benefício de urna atividade

economicamente secundária e sem mercado ou sem competitividade. Da mesma forma, não

teria muito sentido econômico despender grande quantidade de trabalho em desmatar a

floresta para introduzir pastagens e gado, havendo campos com pastagens nativas. Eis

porque o que pode parecer um problema estrutural é, na verdade, uma situação

determinada por circunstâncias econômicas e políticas pró-pecuária. Nessa situação, fica

clara a postura dos estancieiros e dos lavradores pobres ao procederem de forma lógica,

respeitando as circunstâncias regionais e dessa forma ignorando as técnicas agrícolas

consideradas mais racionais e modernas pela agronomia contemporânea.

O geógrafo Raymond Pebayle fez uma análise desse fenômeno em Os Difíceis

Encontros de Duas Sociedades Rurais, atribuindo a dissociação entre a agricultura e a

pecuária a aspectos culturais:

"...essas duas sociedades rurais são opostas por suas origens étnicas, por suas

tradições culturais e suas mentalidades. A aristocracia local foi sempre constituída pelos

estancieiros. Esses homens rudes e fatigados das violentas técnicas de pecuária de uma

outra época, afeitos a deslocamentos e já curiosos a respeito das novidades técnicas de seus

vizinhos da Prata, rejeitaram maciçamente o arado, a inovação agrícola e as terras de

floresta.39

Mesmo considerando as vantagens que a maior integração entre agricultura e

pecuária poderia propiciar, Raymond Pebayle atribui essa atitude à mentalidade do

fazendeiro:

"Em verdade, essa lacuna se explica simplesmente por uma atitude característica dos

grandes criadores, que nunca sonharam entender-se com seus humildes vizinhos agriculto-

res com o fim de limitar uma mortalidade hibernal nos rebanhos, o qual lhes parece, aliás,

Page 98: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

98

bastante normal."40

Nesse último caso, o autor francês refere-se à possibilidade do pecuarista utilizar a

resteva dos cultivos agrícolas como alimentação do gado nos meses de inverno quando os

pastos nativos são prejudicados pelas geadas e pelo frio. A perda de algumas cabeças de

gado e o emagrecimento dos animais poderiam ser contornados com um menor número de

cabeças por área de pastos. A engorda dos animais recupera essa situação nos meses das

estações mais favoráveis, sem maiores dispêndios.

Para o estancieiro dedicar-se à agricultura, deveria necessariamente contratar mão-

de-obra, que inviabilizaria a atividade, pois a produção agrícola do Rio Grande do Sul ao

longo do século XIX e deste – em todo o período que estamos examinando neste trabalho –

era realizada por pequenos proprietários baseados no trabalho familiar. A produção agrícola

gaúcha era voltada para o mercado interno, produção de subsistência, sem as mínimas

condições de concorrer comercialmente com as vantagens da cafeicultura paulista, por

exemplo, cujos rendimentos da exportação permitiam comprar escravos ou, mais tarde, pagar

salários aos trabalhadores. Mesmo para os pequenos proprietários, a realização da

produção no mercado era bastante difícil e instável.

Por outro lado, a agricultura cabocla era muito frágil. Na ausência de

armazenamento, as adversidades climáticas colocavam em difícil situação os lavradores:

"A câmara não tem meios de socorrer à pobreza que está morrendo de fome neste

município, não há sementes para novas plantações de cereais; pedimos providências à

V. Excelência bem como solução do ofício da câmara de 13 de setembro findo. Paço da

câmara municipal da Palmeira 2 de novembro de 1888."41

A câmara de Cruz Alta também enviou ofício com o mesmo teor, informando que já

haviam ocorrido algumas mortes em conseqüência da fome decorrente da seca que assolou

toda a região.42

As secas não são comuns nessa região, mas quando ocorrem, causam sérios

problemas à agricultura e aos lavradores, como aconteceu nas fortes secas de 1877 e 1888,

por exemplo. Essas adversidades climáticas atingiam menos os fazendeiros, que possuíam

lagoas e riachos perenes em suas terras, o que amenizava os efeitos da seca sobre o

gado. Além de alimentar-se com o gado, o estancieiro comprava o pouco cereal existente

nas mãos de algum lavrador pobre.

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99

A Expansão Agrícola

Na década de 1890 os tão esperados imigrantes começaram a se instalar nas zonas

florestais do planalto. As ofertas do governo, os preços baixos das terras e a construção

da ferrovia eram bons motivos para os colonos abrirem suas roças nas matas virgens.

Mas no que se refere às técnicas agrícolas, os colonos adotaram, em princípio, as

mesmas técnicas dos desprestigiados agricultores nacionais precedentes. Os colonos

imigrantes que povoaram as colônias serranas, assim como seus colegas das demais

colônias gaúchas e os caboclos, pouco utilizaram-se das modernas técnicas agrícolas

ditadas pela ciência agronômica.

Na colônia Ijuí, seis anos após sua instalação, os colonos possuíam 29 arados para

as 1088 explorações agrícolas e 1350 cabeças de gado vacum (1,2 por exploração), 964

cavalos (menos de uni animal por unidade), e não usavam adubos de forma sistemática.43 A

agricultura dos colonos-imigrantes, assim como a dos seus precedentes caboclos, tinha

como característica a queimada e a rotação de terras, aproveitando a fertilidade natural

do solo virgem.

O tradicional sistema de cultivo dos colonos é comentado e analisado em diversas

obras que tratam da agricultura colonial sulina. Jean Roche, escreveu, nesse sentido:

"A necessidade de dobrar-se à técnica do desflorestamento forçou o europeu a cair ao

nível do índio ou do caboclo. Era certamente uma regressão, mas sem ela não podia haver so-

brevivência na frente florestal."44

Leo Waibel, geógrafo alemão, em seu estudo sobre as colônias alemãs do sul do

Brasil, não escondeu seu espanto quando constatou que seus compatriotas praticavam uma

agricultura rudimentar:

"A maioria das colônias do planalto do Rio Grande do Sul está em estado

deplorável. A primeira geração de colonos que devastou as matas no decênio de 1890 e

que, depois de alguns anos de pioneirismo, estabeleceu o sistema de rotação de terras

melhorada, tornou-se logo próspera e constitui boas propriedades. A segunda geração

aplicou as mesmas práticas agrícolas, daí resultando que os seus padrões econômicos

baixaram consideravelmente, e a terceira geração, ou teve que se mudar para outro

lugar ou se tornou cabocla. O número de caboclos europeus é surpreendentemente

elevado, mesmo em colônias que há 25 anos eram consideradas como colônias modelo.45

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100

Não se tratava, portanto, apenas de urna questão cultural o uso ou não de

tecnologias agronômicas modernas na agricultura local, e sim das circunstâncias oferecidas

pelos condicionantes da produção. Da mesma maneira que os caboclos, os imigrantes uti-

lizaram largamente a fertilidade natural das florestas virgens enquanto isso foi possível.

Waibel, em sua observação minuciosa sobre os sistemas agrícolas dos colonos

imigrantes, classificou-os em três sistemas fundamentais. Ao primeiro estágio do

desenvolvimento da agricultura nas terras florestais da fronteira ele dominou estágio de

rotação de terras primitivo. Nesse estágio o agricultor plantou produtos de subsistência e

criou porcos de modo muito parecido com o dos indígenas; as trocas mercantis foram poucas e

realizaram-se através de um único comerciante local.46 No segundo estágio, do sistema de

rotação de terras melhorado, o comércio foi mais ativo e a produção aumentou e especializou-

se, mas não ocorreu a adubação das terras, o que levou ao esgotamento do solo em poucos

anos. A terra esgotada ou em via de esgotamento é deixada em pousio até recuperar a

fertilidade natural. O terceiro estágio, do sistema de rotação de cultura combinada com

criação de gado, foi pouco utilizado, devido aos limites impostos pelo pequeno tamanho

dos lotes rurais. Os poucos produtores que atingiram esse estágio "tornaram-se prósperos

colonos.47 As suas simpatias pelos colonos alemães e a comparação com o Middle West

norte-americano levaram-no a indignar-se com o estado "deplorável" dos seus

compatriotas quanto às suas condições de vida e quanto aos sistemas agrícolas utilizados.

Sugeriu a ocupação dos campos naturais do sul como única forma de melhorar as condi-

ções de produção agrícola, através de um consórcio lavoura / pecuária que permitisse a

adubação do solo. Uma proposta ingênua, pois os pecuaristas jamais entregariam seus

campos aos colonos. Os pecuaristas, tradicionais donos do poder, já no início da imi-

gração levaram os imigrantes a ocuparem as florestas, que não lhes interessava explorar

diretamente. A reprodução dos camponeses se daria pela incorporação de novas terras

florestais até esgotarem-se todas as reservas, e, posteriormente, pela emigração para os

outros estados.

Da mesma forma, o geógrafo francês Raimond Pebayle analisa a agricultura do Rio

Grande do Sul e os seus sistemas agrícolas, apontando os seus defeitos e as suas possíveis

causas. Os problemas básicos seriam o reduzido tamanho dos lotes rurais, as dificuldades de

transporte e a espoliação pelos comerciantes, além da existência da fronteira agrícola

aberta que permitia a reprodução dos sistemas agrícolas através da incorporação de

novas terras virgens e baratas. Pebayle insiste no dualismo campo/floresta como responsável

pela impossibilidade de adotar a tradicional combinação pecuária-lavoura praticada nos

Estados Unidos com resultados eficientes. Entretanto, ele reconhece que se trata de um

Page 101: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

101

problema estrutural, historicamente formado e de difícil solução.48

Jean Roche, ao estudar a presença dos alemães no Rio Grande do Sul nos

forneceu rico e detalhado material sobre os sistemas agrícolas. Roche procurou situar os

sistemas de cultivo dentro das condições a que foram submetidos os agricultores ale-

mães. Daí que a agricultura praticamente idêntica à dos caboclos, desenvolvida nos primeiros

anos, era a única forma viável, dadas as condições impostas. Roche viu também a iminência

do esgotamento dos solos, decorrente dos sistemas agrícolas utilizados, como inevitável

na maior parte das áreas rurais, pela existência da fronteira aberta e pela inviabilidade de

inversão de capital na terra.

Roche classificou a agricultura rio-grandense em fases de desenvolvimento. Partindo

da subsistência, no início da ocupação da colônia, na segunda fase os colonos já

exportavam produtos, e na terceira fase especializavam-se em algum produto de boa acei-

tação no mercado. Na última fase, a colônia entra em declínio pelo esgotamento do solo

resultante dos sistemas depredatórios de cultivo empregados. A inversão de capital na

terra seria inexistente, pois o agricultor preferia comprar terras na fronteira. Além disso, a

acumulação de capital (primitiva) ocorria nas mãos dos comerciantes, através de

mecanismo de preços. Tanto Roche como Pebayle argumentam que a agricultura

mecanizada, que exige capitais, teria origem na iniciativa urbana: comerciantes, profis-

sionais liberais e industriais teriam investido capital no cultivo do arroz e do trigo. Isso

supõe que a mudança do sistema agrícola teria de vir da iniciativa de inverter capital na terra.

Na verdade, a modernização da agricultura foi um fenômeno conjuntural e bastante complexo,

pois envolveu mudanças na política agrícola do Estado, e, em nível local, envolveu também

condições peculiares como topografia, estrutura fundiária e acesso ao mercado.

Em relação aos sistemas agrícolas apontadas por Leo Waibel, Jean Roche é enfático

ao afirmar que "não existem senão apenas dois estágios agrícolas – um é a depredação e o

outro é através da adubação."49 A adubação com estrume de gado era inviável nas pequenas

propriedades agrícolas, pois o adubo fornecido pelos animais dificilmente superaria a

própria área por eles ocupada.

Não há dúvidas que o problema crucial que atinge a agricultura rudimentar é o

esgotamento do solo. Nesse particular, os camponeses europeus do século XVIII, com suas

terras esgotadas pelo cultivo milenar, enfrentavam o problema com adubação feita com

estrume de gado, principalmente, e pela introdução de novas plantas – os tubérculos, por

exemplo. Mais tarde, na segunda metade do século XIX, a agricultura européia

praticamente aboliu o pousio da terra através dos adubos químicos.

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102

Mas, no planalto do Rio Grande do Sul, no período que se estende até 1920, o

esgotamento do solo, apesar de iminente, não havia ainda colocado em xeque a

produção local. A colônia Erechim produziu em 1920 quatro vezes mais milho que em 1916,

aumentando esse índice ainda mais nos anos posteriores. A colônia Ijuí teve

comportamento semelhante; a produção de milho, a principal da agricultura sulina, cresceu,

nessa colônia, de 1174 toneladas em 1896 para 48180 toneladas em 1920. Em ambas as

colônias, outros produtos tiveram comportamento semelhante.50

Esse crescimento foi possível pela incorporação de novas áreas de cultivo

conquistadas à mata virgem.

Quanto à expansão da produção agrícola regional na virada do século, as

estatísticas a demonstram largamente. Tomemos alguns dados como exemplo: as

estatísticas de 1917 apontam o município de Passo Fundo como o primeiro na produção de

batata-inglesa, feijão preto e milho. Esse município era atravessado pela ferrovia São

Paulo-Rio Grande, e muitos núcleos coloniais já estavam aí instalados (Erechim, por

exemplo).

TABELA N° 10 - PRODUÇÃO AGRÍCOLA DE PASSO FUNDO EM 1917

Fonte: ROCHE, Jean. Op. Cit. p. 303-305

A tabela abaixo nos fornece outras indicações sobre o volume da produção agrícola

regional.

Page 103: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

103

TABELA N° 11 - PRINCIPAIS PRODUTOS AGRÍCOLAS EM ALGUNS MUNICÍPIOS

DO PLANALTO - 1920 (em toneladas)

Fonte: RECENSEAMENTO do.Brasti - 1920: Agricultura. Rio de Janeiro, IBGE, 1927. p. 86-89 e 312-317. Apud.FEE. Op. Cit. p. 203

Esses números equivalem, em termos comparativos, acerca de 20% da produção

de milho de todo os Estado; 15% do feijão; 5% da mandioca; 4% da batata-inglesa e 15%

da cana-de-açúcar, no ano 1920.

A produção de suínos, associada à produção de milho, o principal produto agrícola

do Sul durante as décadas que imediatamente antecederam e as que sucederam o início do

século XX, garantia grande participação ao Planalto nas estatísticas de 1 920 (Ver tabela

12).

TABELA N" 12 - REBANHO DE SUÍNOS NO PLANALTO - 1921

Fonte: Anuário Estatísticos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Secretaria dos Negócios doInterior e Exterior, 1922. p. 348

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104

Esses números eqüivalem a 17,8% do total do rebanho gaúcho, que era de

6.038.800 cabeças.

Essa expansão da produção agrícola, a partir da virada do século, coincidindo com

a fundação de inúmeras colônias de imigrantes, serviu aos apologistas da imigração para

confirmar as hipóteses em torno da superioridade dos imigrantes em relação aos

lavradores nacionais. O sucesso da agricultura regional deve, no entanto, ser atribuído a

outros fatores que não os aspectos culturais dos agricultores. Não há dúvidas que à ferrovia

deve-se em grande parte esse sucesso, pois colocou os produtores em contato com o

mercado agrícola nacional. Nesse particular, a rápida ascensão econômica dos núcleos

coloniais de Ijuí e Erechim é bom exemplo. Por outro lado, o grande contingente

demográfico que se instalou na região permitiu a expansão da produção em função do

aumento do número de agricultores em atividade.

Acrescenta-se a esses aspectos o sólido apoio oficial, que se fazia através da

administração colonial que dirigia os núcleos agrícolas formados por imigrantes, propiciando a

construção de estradas, pontes e até mesmo alimentando os colonos recém-chegados.

Podemos observar na obra de Jean Roche sobre as colônias alemãs do planalto que

a expansão agrícola está ligada à expansão demográfica e à melhoria dos transportes.

Sobre o volume de produção o autor informa:

"...o aumento, porém, das colheitas corresponde ao da superfície cultivada. Entre

1910 e 1911, a população passou de 7600 para 25000 habitantes; a área cultivada, de

51000 para 170000 hectares; a produção de 1800 para 5000 contos.51

É nítida a expansão agrícola em termos quantitativos, ou seja, pela incorporação

de novas áreas à agricultura. A forma como essas áreas eram incorporadas, do ponto de

vista técnico, era através da tradicional técnica de queimadas dos caboclos e pelas mesmas

razões que abordamos anteriormente.

Quanto aos transportes, Jean Roche enfatiza a sua grande importância para o

desenvolvimento dos núcleos coloniais e da agricultura. Sobre a colônia Ijuí, o autor descreve

que

...os lotes foram ligados por 205 quilômetros de estradas, 39 quilômetros de

rodovias e uma ponte que permitia a saída dos produtos agrícolas até a estação de

estrada de ferro mais próxima: Cruz Alta. A abertura da via férrea em 1911, fez dobrar a

produção e triplicar a exportação. O desenvolvimento da agricultura, favorecido pela Guerra

Page 105: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

105

Mundial continuou até 1924."52

A respeito da colônia Erechim, o autor atribui seu sucesso à ferrovia: "Erechim ficará,

pelo menos, como um dos exemplos mais significativos de impulso demográfico que se deve

à colonização. É verdade que esta se realizou ao longo da via férrea Santa Maria – São Paulo,

o que lhe permitia escoar imediatamente os produtos agrícolas com facilidade excepcional

na história das colônias rio-grandenses."53

A fertilidade natural dos solos virgens, associada à expansão demográfica – via

imigração – e ao acesso ao mercado – via ferrovia –, foram os fatores responsáveis pelo

grande incremento agrícola regional a partir da virada do século.

Até a década de 1920, o aumento do volume de produção agrícola regional deve-se à

expansão quantitativa da agricultura. O uso de adubos era inexistente e a iminência do

esgotamento do solo era previsível. Por outro lado, se a fertilidade natural do solo dispensava

o uso de adubos, a expansão quantitativa da produção para atender às possibilidades do

mercado exigia mais trabalho. Nesse sentido, os agricultores recorriam a inovações

tecnológicas para melhorar o desempenho do trabalho, tão logo o apodrecimento dos

troncos e das raízes de árvores derrubadas permitisse a utilização de implementos agrícolas.

O censo de 1920 demonstra a utilização de inúmeros implementos agrícolas

que multiplicavam a capacidade de trabalho dos lavradores.

TABELA N" 13 – INSTRUMENTOS AGRÍCOLAS NA AGRICULTURA DE ALGUNS

MUNICÍPIOS DO PLANALTO – 1920

Fonte: RECENSEAMENTO do Brasil 1920. Agricultura. Rio de Janeiro. IBGE, 1927. PP. 82-83. Apud. FEE.Op. Cit. P. 198.

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106

Na última tabela notam-se os números menores do município de Palmeira, cuja

colonização em 1920 estava apenas em seu início: daí o menor número de implementos

utilizados em relação aos demais municípios que iniciaram a colonização alguns anos

antes. O mesmo município de Palmeira era também, na data do censo, o mais afastado da

ferrovia e, portanto, encontrava maior dificuldade em escoar a produção, o que

desestimulava a compra de implementos.

Por outro lado, o uso de implementos agrícolas e o conseqüente aumento de

rendimento do trabalho em cada unidade produtiva permitia suprir ou amenizar a queda

do rendimento dos grãos, diante da ausência de adubos.

Conclusão

A agricultura regional pode ser dividida em duas fases importantes. A primeira inicia-se

juntamente com o extrativismo de erva-mate e com a pecuária, e se estende até o final do

século XIX. Outra fase tem início na última década do século XIX com o surto demográfico

decorrente da imigração de colonos da Europa e das colônias velhas gaúchas, ao mesmo

tempo em que a ferrovia alcança a região, ligando-a aos principais centros econômicos do

país.

A primeira fase caracteriza-se por uma agricultura voltada exclusivamente para a

subsistência dos extrativistas e das estâncias de gado, além de abastecer o pequeno

mercado local.

O tradicional expediente de queimar a mata e a ausência de adubos, características

dessa fase, consiste numa forma natural de desenvolver a agricultura em áreas

florestais, à medida que exige menos trabalho e menos capital, dois elementos escassos

nos limites do espaço e do tempo que estamos abordando. Nesse sentido, as observações de

Ester Boserup em Evolução Agrária e Pressão Demográfica estão corretas e muito nos

contribuíram para ver por outro ângulo a suposta irracionalidade da agricultura dita

tradicional. Ou seja, a alegação da ignorância dos lavradores locais diante de modernas

técnicas agronômicas tem um propósito ideológico e político, à medida que serve para

justificar a expulsão dos caboclos e a comercialização de terras com os imigrantes; ou

então, na obra de diversos autores, trata-se de uma visão distorcida do fenômeno que

procura analisar a agricultura em condições determinadas através de uma concepção ideal

e inadequada de agronomia e economia rural: a agricultura tradicional dos lavradores só é

irracional se a olharmos com os óculos da moderna agronomia desenvolvida em locais de

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107

grande intensificação do uso do solo, geralmente estimulada por um sólido mercado agrí-

cola.

A segunda fase caracteriza-se justamente pela expansão agrícola. É uma

expansão sobretudo quantitativa, possibilitada pelo aumento demográfico decorrente da

imigração e pelo acesso ao mercado garantido pela ferrovia. Nessa fase, as lavouras são

preparadas pelo sistema de queimadas, tal qual o faziam os caboclos. No entanto, os

limites estreitos dos lotes rurais e o estímulo do mercado levam esses produtores a

intensificarem o uso do solo de forma gradativa. Depois de quatro ou cinco anos da

derrubada da floresta, os colonos passam a utilizar implementos como arados, ceifadores

e grades que lhes permitem produzir mais para o mercado. Mas o adubo, elemento principal

da agricultura intensiva que permite a eliminação do pousio, não é utilizado, o que de certa

forma seria antieconômico, pois tornaria mais caros os produtos em relação aos que eram

produzidos com a utilização da fertilidade natural das terras virgens, cuja incorporação

ocorria de forma gradativa e, portanto, concomitantemente com o esgotamento de solos de

áreas próximas. Isto é, ao mesmo tempo em que alguns agricultores esgotam seus solos,

outros abrem novas roças em terras virgens. Desse modo, os solos esgotados são

deixados em pousio ao mesmo tempo em que se faz rotação de culturas para amenizar

os efeitos do esgotamento: o milho é substituído pela mandioca, um tubérculo com

grande capacidade de produção em solos pobres e que serve para alimentar o porco.

Nessa fase, a banha de porco se constitui no principal produto de comercialização dos

agricultores locais.

Em relação à produção de erva-mate, é uru extrativismo principalmente organizado em

uma fase de pouquíssima utilização de capital, na qual os produtores eram antes de tudo

camponeses que produziam a própria subsistência e os ervais eram públicos, mas com

tendência de privatização no decorrer do período.

A condição de camponeses dos coletores de erva-mate permitia que a

remuneração do trabalho fosse muito baixa. Ao mesmo tempo, todo o processo de

extrativismo e transformação parcial do produto era realizado de forma rudimentar, que não

exigia praticamente nenhum capital invertido. Os engenhos, que davam o acabamento final

ao produto, eram também muito simples, mas exigiam certo investimento, o que excluiu os

lavradores pobres e os submeteu às condições impostas pelos proprietários de engenho e

pelos comerciantes.

As estâncias pastoris, por sua vez, mantiveram-se fiéis às suas origens, ao longo

do período. Tendo como característica o uso extensivo das pastagens nativas, esses

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108

estabelecimentos eram de baixo índice de capitalização e muito conservadores em rela-

ção às inovações tecnológicas. Tanto que, atualmente, são exatamente estâncias

pastoris as principais áreas improdutivas reivindicadas pelos agricultores sem-terras do

Rio Grande do Sul.

Notas

1 Cf. GOULART, José Alípio. Tropas e tropeiros na formação do Brasil. Rio de Janeiro :

Conquista, 1961. P.14I.

2 Cf. CASTRO, E. A . Op. Cit. P.76.

3 Cf. Relatório do Presidente da Província de São Pedro do RGS. J.L .Cansansão de Sinimbú.

Porto Alegre, 6 de outubro de 1853. P.51 (B.N).

4 Cf. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Rio

Grande do Sul pela Câmara Municipal da Vila de Cruz Alta. Porto Alegre, Tipografia do

Comercial, 1862. P.12 (B.N).

5 Cf. Idem. P. 12

6 Cf. CASTRO, E. A . Op. Cit. P281.

7 Cf. ABREU, Florêncio, Retrospecto econômico e financeiro do estado do Rio Grande do Sul –

1822-1922. In: Revista do Arquivo Público do RS. Dezembro de 1922, n° 8. P.227.

8 Cf. Idem. P. 228

9 Cf. Instruções do Conde de Piratini ao capataz da Estância da Música. In: CÉSAR,

Guilhermino. O conde de Piratini e a estância da música. Porto Alegre e Caxias do Sul.

UCS/EST, 1978. PP. 33/47.

10 Cf. SAINT-HILAIRE, A .Op. Cit. R139.

11 Cf. Inventário de Germano Rodrigues da Silva. Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz Alta.

Março 4, n° 101, APRS.

12 Cf. GOMES, Aristides de Moraes. Fundação e evolução das estâncias serranas. Cruz Alta : A.

Dal Forno, 1966. P.344.

13 Cf. Idem. P. 167

14 Ver capítulo 3 deste trabalho.

15 Cf. Código de Posturas do Município de Santo Antônio da Palmeira. 1875. Esse código é

cópia do Código de Cruz Alta que regulamenta esses ervais antes da criação do município

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109

da Palmeira. AHRS. Lata 124.

16 Cf. Gonçalves Chaves, A. J. Op. Cit. P199.

17 Cf. VELLOSO DA SILVEIRA, H. J. Op. Cit. P.141.

18 Cf. CUNHA, Ernesto A. L. Rio Grande do Sul: contribuição para o estado de suas condições

econômicas. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1908. P. 199 (BN).

19 Cf. Correio Serrano. 21/06/1918. R5.

20 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 105.

21 Cf. Relatório do Presidente da Província de São Pedro do RGS, J. L. Cansansão de Sinimbú.

2 de outubro de 1854. Porto Alegre.

22 Cf. ABREU, Florêncio de. Op. Cit. PP. 310-311.

23 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 172.

24 Cf. CASTRO, E. A . Op. Cit. P.76.

25 Cf. Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta 17 de abril de 1866. AHRS. Cx. 159.

Doc. 474.

26 Cf. Descrição de Inácio Capistrano Cardoso. Transcrito por VELLOSO DA SILVEIRA,

H. J. Op. Cit. PR 139-141.

27 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 130 e VELLOSO DA SILVEIRA, Op. Cit. P.142.

28 Cf. SCHUTEL, Henrique Ambauer. Itinerário de Cruz Alta ao Campo Novo. Citado por BINDÉ,

Wilmar C. Op. Cit. P. 133.

29 Cf. LINHARES, T. Op. Cit. P. 108.

30 Cf. Relatório de José Maria P. de Campos ao presidente da província do Rio Grande do Sul.

Cruz Alta, 13 de julho de 1860. AHRS. Cód. 285.

31 Cf. Inventários Post-Mortem de Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões. APRS.

32 Cf. CASTRO. E. A. Op. Cit. P. 280.

33 Cf. Aurora da Serra. Cruz Alta. Dezembro 1884. PP. 99/100. (Ver Anexo n° 3)

34 Cf. WAIBEL, L. Op. Cit. P. 246

35 Cf. BOSERUP, Ester. Evolução agrária e pressão demográfica. São Paulo : Hucitec/ Polis,

1987. P. 77.

36 Cf. Idem. P. 34

37 Cf. ROCHE, J. Op. Cit. P. 265.

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110

38 Cf. FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA (FEE). Op. Cit. P65.

39 Cf. PEBAYLE, Raymond. Os difíceis encontros entre duas sociedades Rurais. Boletim

Geográfico do RS. Porto Alegre, 1975. N° 18. P.3.

40 Idem. P. 7.

41 Cf. Of'ício da Câmara Municipal da Vila da Palmeira ao governo da província. 2 de

novembro de 1888. AHRS. Cx. 116.

42 Cf. Correspondência da Câmara Municipal da Cruz Alta. 7 de novembro de 1888. AHRS.

Cx. 110.

43 Cf. Relatório da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas. Porto Alegre, julho de 1897.

P. 15 - MALRS.

44 Cf. ROCHE, J. Op. Cit. P. 53.

45 Cf. WAIBEL, L. Op. Cd. P. 252.

46 Cf. WAIBEL, L. Op. Cit. p 253.

47 Cf. WAIBEL, L. Op. Cit. PP. 253-254.

48 Cf. PEBAYLE, R. Op. Cit. P. 3.

49 Cf. ROCHE, J. Op. Cit. P. 291.

50 Idem. P. 291.

51 Idem. P. 280.

52 Idem. PP. 279-280:

53 Idem. P. 281.

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111

IV

Os Trabalhadores

Neste capítulo examinamos as diversas categorias de trabalhadores rurais que

atuaram na sociedade regional, bem como suas relações com as classes dominantes.

Iniciamos com os escravos, fazendo algumas considerações críticas necessárias diante

da existência de uma vasta bibliografia regional que aborda o tema com grandes distorções

em favor de teses extremamente ideologizadas, principalmente no que diz respeito à

condição de vida do escravo gaúcho. Ao mesmo tempo examinamos algumas suposições que

versam sobre a questão da irracionalidade da escravidão. Tratamos também de caracterizar

as atividades dos cativos.

Além dos escravos, havia um contingente de trabalhadores livres, dedicados ao

extrativismo e à agricultura de subsistência, que aos poucos foram submetidos aos

estancieiros, tomando o lugar dos cativos.

Por fim, tratamos dos colonos europeus, que imigraram no final do século e deram

nova configuração à estrutura social e política da região.

Os Escravos

Quando se trata da escravidão negra no sul do Brasil, o primeiro aspecto que

chama atenção é forma extremamente ideológica como a historiografia regional tem

abordado a questão. De um lado, muitos autores praticamente ignoram o escravo negro,

em suas considerações sobre a sociedade gaúcha, como se fosse ele insignificante na

formação social do Rio Grande do Sul, a qual estaria, para esses autores, formada apenas

por homens brancos e por indígenas. De outro lado, algumas obras tratam de apresentar o

escravo gaúcho como um indivíduo que vivia em quase liberdade, de forma bastante

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112

diferente dos cativos do Nordeste açucareiro ou dos cafezais paulistas; e isto seria

decorrente, supostamente, da atividade pastoril que predominou no Sul durante o período

escravista.¹

As obras de divulgação dessas teses altamente ideológicas são abundantes na

bibliografia regional. Mas ultimamente novas publicações vêm tratando de desmistificar

aquilo que foi amplamente divulgado por aquela historiografia tradicional. Uma das

primeiras e bem-construídas, obras críticas a essa suposta democracia racial e rural sulina

é a de Fernando Henrique Cardoso, em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional,

publicada em 1962.²

Mas mesmo com a divulgação de novos textos sobre a escravidão sulina, os

quais criticam as teses tradicionais, ainda aparecem publicações que voltam a insistir na

velha apologia de uma pretensa democracia racial. Numa tese de mestrado, publicada

recentemente, em 1985, a autora, querendo demonstrar o espírito democrático dos gaúchos

em relação à escravidão, escreveu esta máxima na conclusão do trabalho: "sobressai o

Rio Grande do Sul, assim, também no final da batalha pelos direitos humanos do negro,

ratificando mais uma vez, as tradições tão consagradas de justiça e liberdade do povo gaúcho.³

A escravidão em si mesma já é uma terrível arbitrariedade contra a liberdade dos

homens e, sendo assim, é difícil conciliar democracia e escravidão. Tanto no Rio Grande do

Sul, como em qualquer outra região escravista, os senhores não só mantinham pessoas

cativas, como iam além dos estreitos limites de respeito ao escravo. Nos arquivos da

justiça gaúcha não é difícil encontrarmos processos-crime que denunciam as atrocidades

que muitos senhores de escravos cometiam contra os cativos.

No caso do planalto gaúcho, a situação não poderia ser diferente. Para ilustrar as

arbitrariedades, situadas além da própria escravidão, recolhemos um processo, de 1877,

contra um estancieiro cruz-altense, que chega a ser comovente pelo barbarismo praticado

contra os cativos: morte de criança por espancamento; impedimento de amamentar recém-

nascido, com morte conseqüente, são algumas das denúncias contidas no processo

conduzido por um promotor visivelmente engajado na luta contra a instituição escravista4

(Ver no anexo n° 4 o texto na íntegra).

Por sua vez, o escravo à medida do possível procurava reagir contra a servidão

imposta. Embora não se tenha notícias de grandes rebeliões na região, como ocorreram

em outras regiões do país, é comum encontrarmos atos de rebeldia individual nos

cartórios da justiça gaúcha. Aliás, um observador alemão da década de 1850, referindo-se

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113

ao escravo gaúcho, comentou:

"Castigo duros não são convenientes diante da obstinação dos negros, porque

então eles se tornam muitas vezes incorrigíveis, sendo o dono obrigado a vendê-lo

rapidamente e com prejuízos, para que a ovelha sarnosa não contamine todo o rebanho..."5

No planalto gaúcho, casos de "ovelhas sarnosas", na expressão do autor alemão,

são encontrados nas páginas dos processos-crime da justiça local. Sem querer inventariar

esses casos, o que não é o propósito deste texto, citamos, a título de exemplo, o caso do

escravo Salvador, do distrito de Campo Novo, no município de Palmeira das Missões. Ao

morrer seu proprietário, em 1866, alguns credores exigiram que a justiça leiloasse o único bem

disponível do falecido, em mãos da viúva: o escravo Salvador, pardo, 25 anos, avaliado em

oitocentos mil réis. Salvador insurgiu-se contra a medida afirmando publicamente, segundo

as palavras de um indignado credor, que "...no caso de ter que servir alguém; que fugirá

para o Estado Oriental...". A viúva tentou alforriá-lo, pois assim poderia contar com seus

serviços, já que não se negava a ficar com ela, mas não teve sucesso. Salvador foi a

leilão em Cruz Alta, mas somente apareceu um comprador do décimo pregão, meses

depois do primeiro edital.6

Recentemente, a historiografia brasileira, e a regional de modo particular, têm

produzido várias obras denunciando as atrocidades da escravidão, mostrando as lutas dos

cativos e fazendo um verdadeiro levantamento das rebeliões coletivas e individuais isto é,

revelando a resistência do escravo à servidão. É urna historiografia que, em muitos

casos, tem um objetivo imediatista, no sentido de instrumentalizar a população para a luta

contra a discriminação racial e social, o que do ponto de vista da análise histórica é

questionável.7

Neste texto, sem querer fazer a apologia do escravo oprimido, apenas tratamos de

evidenciar, com alguns exemplos, que a escravidão local foi idêntica ao que tem sido

apontado pela historiografia recente, no que se refere às relações senhor-escravo.8 No

nosso caso, estes comentários se fazem necessários diante de uma historiografia regional

bastante difundida que ignora o negro e divulga a falsa idéia de uma democracia racial e de

um bem-estar do cativo sulino.

Mas, demonstrar as arbitrariedades da escravidão ou a insubmissão do negro

escravo não é suficiente para compreendermos a sociedade escravista. Trataremos,

portanto, a seguir, de examinar o papel do escravo no trabalho das estâncias e as condi-

ções em que ocorreu a transição para o trabalho livre na região.

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114

A População Escrava

A população escrava regional era significativa ainda na década de 1860,

considerando que há vários anos o Brasil não recebia novos escravos do continente

africano, por força da repressão ao tráfico negreiro. Por outro lado, neste contexto, a

escassez de braços nas plantações de café em São Paulo e Rio de Janeiro atraíam com

muita força os cativos da regiões periféricas do país. Considere-se ainda que o Rio Grande do

Sul há muito tempo estabelecera uma política de imigração com amplos incentivos aos

colonos europeus, através da concessão de terras em condições vantajosas.

No caso específico do planalto, o índice de participação de escravos no conjunto

populacional estava abaixo da média da província, conforme observa-se na tabela 14. Este

fenômeno deve ser atribuído às características da economia regional, baseada na pe-

cuária extensiva, ao contrário de outras áreas onde havia charqueada com grande

número de trabalhadores cativos. É o caso do município de Jaguarão, centro charqueador

que contava com um percentual de 38,89% de escravos em sua população no ano de

1858. Pelotas, outro importante centro produtor de charque, registrava, no mesmo ano, um

índice de 37,13%.9

TABELA N° 14 - POPULAÇÃO ESCRAVA REGIONAL E PARTICIPAÇÃO NO TOTAL DAPOPULAÇÃO

Fonte:1.Relatório do Presidente da Província: Joaquim A . F. Leão. Porto Alegre, novembro 1859.2.CAMARGO, A .E. Quadro estatístico da província de São Pedro do RGS. Porto Alegre, Tipografia do

Comercial, 1868.3.Censo Geral do Brasil. IBGE, Rio de Janeiro. Biblioteca do IBGE (Microfilme 3A0/ 81 – BICEN 003 -- 81).

A queda da participação relativa dos cativos no total da população gaúcha e regional,

nos anos seguintes, insere-se na conjuntura nacional favorável a essa diminuição, seja

pelo fim do tráfico, seja pela imigração da população livre européia. Também se deve

considerar que, no decorrer do século, houve uma oferta cada vez maior de mão-de-obra

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115

livre proveniente do processo de comercialização da terra, ao mesmo tempo em que as

estâncias, pelas suas características, não aumentavam a demanda de trabalhadores.

Assim, com o cessamento do tráfico de escravos africanos, o Rio Grande passou a exportar

cativos para São Paulo.10

A diminuição da população absoluta na região, em 1872, pode ser vista, além das

possíveis distorções da estatística, como resultado da guerra contra o Paraguai, na qual

participaram ativamente os estancieiros da região com vários batalhões de soldados

recrutados entre o povo.11 Quanto à diminuição do número de escravos, ela pode ser

atribuída à sua exportação para outras regiões, já que não eram imprescindíveis nessa

data; e também é possível que muitos homens cativos tenham marchado para a guerra,

com seus proprietários; além disso, outros fatores de menor importância podem ter

contribuído para isso: mortes sem reposição (as crianças nascidas nessa época eram

livres pela lei de 1871); alforrias, fugas... ou uma distorção na estatística.

As Atividades dos Escravos

Os escravos de urna estância típica regional podem ser classificados, em relação ao

trabalho, em "roceiros", "campeiros" e "domésticos". Os primeiros eram os lavradores da

subsistência do pessoal da estância, além de prestarem outros serviços. Os campeiros

tratavam do trabalho pastoril propriamente dito e eram considerados mais habilidosos e

melhores qualitativamente. A última categoria, os domésticos, da qual a maior parte

eram mulheres, cuidava dos serviços rotineiros das casas e adjacências.

Os escravos roceiros aparecem com muita freqüência nos inventários post-morrem dos

estancieiros locais, quando trazem informações sobre a profissão dos cativos. Um exame

dos inventários de 1876 nos indica que dos 42 escravos de diversos estancieiros, três eram

campeiros; treze eram roceiros; dez eram domésticos e dezesseis não tinham suas

profissões indicadas. Os domésticos eram todos mulheres e os sem profissão eram na

maioria crianças. O censo oficial de 1872 indica para o município de Passo Fundo 299

escravos lavradores (roceiros), entre os quais dezoito mulheres, sete criadores e 225

domésticos; destes, 163 mulheres; 472 não tinham profissão indicada.12

Os escravos roceiros eram, provavelmente, a maioria entre a população cativa.

Nota-se a presença forte de escravos em estâncias com atividades agrícolas importantes

ao lado da pecuária: um grande estancieiro, falecido em 1856, era proprietário de dezoito

escravos — um número relativamente alto para a região —, possuía milhares de hectares de

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116

campo e produzia farinha de mandioca. O seu inventário aponta "urna data de terras lavradias

com mandioca, canaviais, plantações e capoeiras", no valor de 550 mil réis.13 Além disso, a

estância mantinha urna atafona para fabricar farinha de mandioca, produto bastante consumido

na região. Esse estancieiro desenvolvia atividades agrícolas paralelas à pecuária, produzindo

farinha para o pequeno mercado local, utilizando escravos. Outros estancieiros, que

possuíam atafonas para produção de farinha de mandioca, também contavam com um

número relativamente significativo de escravos, o que reforça a idéia da utilização destes nas

atividades agrícolas da estância.

O estancieiro Aristides de Moraes Gomes, em seu livro a respeito das estâncias

serranas — uma espécie de memórias da família do autor - comenta que "os negros cativos

faziam cercas, trabalhavam em olarias, no campo, e nas lavouras"14. O autor lembra ainda

que, quando correu a abolição, somente os negros campeiros ficaram nas estâncias,

faltando então braços para as roças e os demais serviços braçais.15

A presença de escravos nas atividades agrícolas como ocupação principal pode ser

notada nesta observação do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, referindo-se a uma

estância próxima ao povoado de Santa Maria: "...o dono da casa e seus filhos cuidam do

gado e os negros tratam da plantação.16

Num estudo recente sobre o escravo gaúcho, Mario Maestri Filho faz afirmação que

coincide com o exposto anteriormente, referindo-se à presença de cativos nas estâncias, ele

escreveu:

"Se era uma fazenda mista – agropecuária – possivelmente o negro trabalharia na

terra. Ainda que fosse uma estância dedicada à criação, ela geralmente não dispensava

uma pequena exploração agrícola subsidiária. Nela seria ocupado, com prioridade, o

escravo.17

Quanto aos campeiros, estes eram encarregados do pastoreio do gado e das

demais atividades ligadas à criação, as quais exigiam bastantes habilidade e resistência.

Um bom trabalhador de campo deveria ter bastante prática no trabalho e um bom conheci-

mento dos detalhes que cercam a atividade pastoril. Os cativos campeiros eram, portanto,

muito valorizados e considerados os melhores da estância. Aristides de Moraes Gomes

lembra que somente estes ficaram nas fazendas após a abolição, conforme já mencionamos.

Um exemplo da importância desse tipo de escravo nos é dado pelo arrendatário da

Estância da Música, confiscada pelo governo revolucionário farrapo em 1840:

"De novo tenho a rogar eu a estância da Música por 3.450$ réis anuais me

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117

reservaram de dita fazenda na comissão de Alegrete quatro escravos tendo ela

unicamente seis campeiros e quatro roceiros, e deram ordem ao comandante de polícia o

capitão Antônio Garcêz de Morais para apartar os quatro escravos reservados sendo estes

dos mais moços e por conseqüência dos campeiros, vindo-me a ficar unicamente os quatro

roceiros e dois campeiros; e V. Exc. não ignora a dificuldade que hoje se encontra em ter

peões nas estâncias e a falta que eles fazem...18

Os escravos campeiros eram "os mais moços" e, então, os mais importantes, por

substituírem os peões, os quais era impossível de encontrar devido à guerra civil da

província. Os inventários confirmam essa tendência; os escravos classificados como

"campeiros" não ultrapassavam os 36 anos de idade, enquanto os roceiros, embora tivessem

entre eles também jovens, avançavam até sessenta anos e mais.

A distinção entre os escravos a partir de suas funções e habilidades individuais fica

explícita nesta recomendação do Conde de Piratini ao capataz:

"Artigo 45 – Dará uma muda de roupa de algodão a cada um dos escravos que lá

estão, advertindo que as três mudas das mais pequenas que vão são para os moleques

Claudino, Evaristo e Moisés, e vão também quatro ponches para serem dados aos

negros Domingos Pernc2.; José Bolieiro, Manuel Aguiar e Mathias Campeiro, sendo o

deste forrado de baeta.19

A recomendação indica ao melhor o melhor, o que está de acordo com a atividade

principal da fazenda: a pecuária. Ao escravo campeiro, portanto, um privilégio de usar o

ponche forrado de breta.

Além dessas duas atividades dos escravos negros – pecuária e agricultura muitos

davam conta dos serviços domésticos; mulheres, geralmente. O Barão do Ibicuhy, em sua

residência na vila da Cruz Alta, mantinha cinco escravos para os serviços da casa, sendo

quatro mulheres, entre 29 e 37 anos, e um menino de treze anos. Nas suas estâncias

possuía mais 29 escravos.20

Afora as atividades agropastoris e domésticas, os escravos do planalto eram

utilizados para outras atividades: José Manoel Lucas Annes, falecido em 1881, empregava

quatro escravos "oleiros" em sua olaria de Cruz Alta conforme consta em seu inventário

post-mortem.21 Outro caso de escravos trabalhando em olarias aparece no inventário de

Cristiano Uflacker, proprietário de uma olaria de fabrico de tijolos, também em Cruz Alta.

Embora não conste nominalmente a profissão de seus escravos, como no caso anterior, esse

proprietário possuía um plantei de onze escravos.22

Page 118: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

118

Fica difícil precisar com segurança em que atividades os cativos eram mais

usados. As informações estatísticas são escassas e muito vagas, quando encontradas.

No censo de 1872, a maioria dos escravos aparece classificada como "sem profissão", o

que se deve antes a uma falta de informação do que à falta de profissão propriamente dita.

Mas, de qualquer forma, numa estância pastoril que, além da criação, plantava para

subsistência, os cativos poderiam trabalhar tanto no pastoreio como na agricultura.

Convém lembrar que as atividades de lavrador e campeiro não eram exclusividade dos

escravos; ao lado destes, havia os peões livres.

Outro aspecto difícil de verificar, nas fontes consultadas, é o caráter das roças

cultivadas pelos cativos. Sabe-se que, em todo o Brasil, os escravos tinham tempo livre para

dedicarem-se às suas roças particulares, cujos resultados poderiam ser objeto de livre

utilização, dependendo do acordo estabelecido entre os senhores e os escravos.23 É certo,

no entanto, que grande parte dos cativos locais trabalhavam em lavouras de subsistência.

Para o Rio Grande do Sul, como um todo, temos uma referência nas instruções do Conde de

Piratini para o capataz da Estância da Música – um documento raro entre os estancieiros

gaúchos, ao que tudo indica, pouco afeitos à contabilidade e à regras escritas. No artigo

oitavo das instruções, o conde recomenda ao posteiro e ao escravo que plantem nos

postos da estância sob sua responsabilidade:

"...em cada um dos ditos postos haverá uma manada de éguas mansas para o

serviço necessário; quatro vacas para leite, um escravo para ajudar o pastoreio, e o mais

que possam por conta da Estância, dando-se-lhes para isso o mantimento necessário, além

do que devem plantar!24

A recomendação do conde, no sentido de plantar, está relacionada com a intenção de

poupar a matança de animais para alimentação dos trabalhadores, conforme recomenda

explicitamente em seu artigo n° 11:

"Fará plantar bastante milho, feijão, abóboras e hortaliças e algum trigo, para que

haja de tudo fartura afim de poupar-se as muitas carniações.25

O artigo n° 30, é bastante claro em relação à oportunidade dos escravos em

manter plantações e criar animais domésticos: "Os escravos podem plantar, e criar galinhas,

tendo milho para ás sustentar.26

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119

A Transição

A transição do escravismo a outras formas de trabalho, no Brasil, tem sido abordada de

duas formas básicas. Urna vertente teórica é a que trata de explicar a irracionalidade

econômica do escravismo. Desse modo de analisar a escravidão, o seu fim teve êxito quando

setores progressistas da sociedade brasileira – principalmente os fazendeiros paulistas –

aderiam à campanha abolicionista no sentido de fazer avançar as relações capitalistas de

produção, as quais seriam mais lucrativas. Essa postura estaria, segundo os argumentos

desta tese, circunscrita ao fim do tráfico de escravos africanos e ao advento da imigração de

trabalhadores livres.

No Rio Grande do Sul, Fernando Henrique Cardoso, um dos principais

estudiosos do tema, seguindo essa linha historiográfica, apontou a ineficácia das

charqueadas gaúchas escravistas em relação às suas concorrentes platinas, sob

trabalho livre. No mesmo sentido o autor afirmou que a imigração seria uma proposta

que ultrapassava a problemática da falta de braços decorrente do fim do tráfico.

"A atitude pró-imigração, portanto, era engendrada por um conjunto de

motivos que, se incluíam a escassez de escravos disponíveis, não se restringia a

essa questão; abrangendo tanto a vontade consciente de progresso, quanto o que

nela já está implícito, a crítica às condições sociais e econômicas da produção

escravocrata." (Grifo meu)27

E s s a p o s t u r a é c r i t i c a d a p o r u m a n o v a v e r t e n t e historiográfica: Ciro

Flamarion Santana Cardoso demonstra que a suposta irracionalidade da empresa

escravista apregoada por autores como Fernando Henrique Cardoso, para o

caso das charqueadas gaúchas, não tem procedência. Sobre esse caso, argumenta

aquele:

"Em circunstâncias determinadas uma produção levada a cabo com mão-

de-obra escrava pode competir por muito tempo, com êxito, com a produção

similar realizada com assalariados.28

Em apoio a essa afirmativa, o autor lembra uma série de exemplos sobre a

questão da concorrência entre escravismo e trabalho livre – o açúcar cubano

produzido por escravos competiu com o açúcar de beterraba europeu, por exemplo.

E sobre a incapacidade de racionalização da produção escravista também lembra

alguns casos no sentido contrário. A produção de café do Rio de Janeiro, quando do

Page 120: Paulo Afonso Zarth - Historia Agraria Do Planalto Gaucho 1850-1920l-1

120

cessamento do tráfico de escravos em 1850, por exemplo, sofreu consideráveis inovações

tecnológicas.29

Jacob Gorender também se alinha a essa visão historiográfica crítica, dando

exemplos da capacidade das empresas escravistas inovar tecnologicamente quando

necessário. Enfatiza, ainda, de modo particular, que a idéia da modernidade dos

fazendeiros paulistas, defendida por vários autores, não tem consistência.30

Não se pretende avançar nessa discussão; aliás, nesse sentido há um bom

trabalho de Vi lma Paraíso Ferreira Almada –Escravismo e Transição: o Espírito

Santo, 1850/1888 – onde essas duas correntes explicativas sobre a transição são

muito bem abordadas, e no qual baseamos este texto.31

Para o nosso propósito neste trabalho, queremos lembrar apenas que a

abolição da escravidão no Rio Grande do Sul e de modo especial no planalto não

foi decorrência de uma suposta irracionalidade empresarial e tampouco a

imigração deve-se à vontade consciente de progresso de alguns i luminados

riograndenses, imbuídos supostamente de espírito capitalista. Conforme

examinamos no capítulo três deste trabalho, a imigração solicitada pela câmara de

Cruz Alta tinha como um dos seus propósitos a comercialização de terras. Quanto ao

trabalho escravo, a oferta de mão-de-obra livre na região permitiu substituir o es-

cravo na década de 1880 sem grandes traumas.

Por outro lado, o fim do escravismo nas estâncias da região não levou a uma

maior racionalidade ou eficiência em função do trabalho livre. A estância serrana,

com o trabalho livre, não sofreu alterações tecnológicas signif icativas em

decorrência das novas relações de trabalho. Aliás, as estâncias no decorrer do pe-

ríodo escravista utilizaram tanto o trabalho escravo como o trabalho livre

concomitantemente. A estância, antes de tudo, é um lati fúndio com baixo índice de

capitalização e pouco afeito a inovações tecnológicas, independentemente da forma como

explora seus trabalhadores.

A questão da abolição da escravatura foi levantada, em nível local, na década de

1870, acompanhando o comportamento da política nacional. Assim, no início dos anos 70

foram fundadas sociedades abolicionistas em Cruz Alta e Passo Fundo. Os defensores da

emancipação dos cativos eram profissionais liberais, intelectuais, comerciantes e políticos

ligados ao partido liberal, que defendia a abolição em seu programa. As sociedades

abolicionistas tiveram uma atuação relativamente apática naquela década, quando a Lei do

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121

Ventre Livre esfriou o debate em torno da questão.

Na década de 1880, o problema da escravidão voltou a ser discutido com bastante

vigor; em Cruz Alta, uma nova sociedade engajou-se na campanha abolicionista – o clube

literário Aurora da Serra. Diante da inexorável abolição que se desenhava para um futuro

próximo e diante das medidas oficiais contra a instituição escravista, os estancieiros

libertavam seus cativos mas mantinham-nos sob cláusula de serviços e, dessa forma,

conseguiam ganhar tempo numa batalha na qual a derrota anunciava-se iminente. Era

mais uma alternativa, entre as muitas utilizadas pelos escravocratas, para manter o

trabalho compulsório. Margaret Marchiori Bakos, em sua obra sobre abolição no Rio

Grande do Sul, comenta nesse sentido:

"As libertações, no biênio de 1883-1885 satisfazem os escravocratas, pois respeitam

o direito de propriedade, libertando o escravo, porém mantendo o trabalho servil por

prazos variáveis de um até cinco anos. O liberto retorna ao trabalho compulsório e o senhor, se

tinha alforriado muitos escravos, além da fama de generoso, recebe um título

nobiliárquico ou uma condecoração do Império.32

Nos inventários post-rnortem os libertos são computados entre os bens

semoventes dos estancieiros falecidos sob o título de "serviços dos libertos"; ou seja, no

caso do estancieiro Francisco Modesto Franco, falecido em 1886, o auto de avaliação indica

"os serviços dos libertos: João, de 21 anos, por 4, 3 anos, calculado à base de 8$000 réis

mensais, totalizando 510$000 réis Anita, com 19 anos, pelo mesmo período foi avaliada em

48$000 réis.33

Esse expediente, de arrolar os serviços de libertos entre os bens do inventariado

nos autos de avaliação, era utilizado também para o caso das crianças libertas pela Lei do

Ventre Livre de 1871. Entre os bens de Carolina do Prado Terra, falecida em 1881,

encontramos avaliados sob expressão "os serviços do", o escravo José, de oito anos (liberto

pela lei de 1871, portanto), por 500$000 réis; João, de seis anos, por 500$000 réis; Roberto,

quatro anos, por 400$000 réis, e Maurícia, com menos de um ano, por 100$000 réis.34 Nota-

se que os preços ficam um pouco aquém ao de um escravo jovem, avaliados naquele ano

em torno de 800$000 réis. Tomemos outro inventário, mais explícito nesse sentido. Entre os

escravos de Christiano Uflacker, falecido em 1872, foram avaliados alguns libertos do

seguinte modo: "Salvador, filho de Joana, liberto segundo a lei, de três meses de idade,

avaliarão os serviços por cinqüenta mil réis; os serviços do escravo Veríssimo, filho da

escrava Maria, segundo a lei liberto, avaliarão pela quantia de cinqüenta mil réis."35

Observa-se que os avaliadores citam o liberto como escravo, no caso de Veríssimo: uma

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122

sutileza que demonstra o futuro da criança que, embora liberta, por muito tempo estaria

sujeita ao trabalho compulsório, o que aliás, a própria lei de 1871 permitia através de seus

mecanismos. Quanto aos preços, eram muito próximos aos indicados para as crianças

nascidas antes da lei.

Por outro lado, no que se refere à ligação entre fim da escravidão e imigração de

homens livres, houve bastante discussão no Rio Grande do Sul, assim como nas demais

regiões do país. A preocupação de povoar o país com imigrantes brancos, europeus de

preferência, nasceu junto com o Império brasileiro, senão antes; já em 1824, no que se

refere ao sul do Brasil, foi fundada uma colônia de imigrantes alemães, aos quais se

seguiriam tantos outros europeus ao longo do século. No planalto gaúcho, de modo

particular, os imigrantes eram solicitados pelos vereadores cruzaltenses na década de

1860, mas a reivindicação somente seria concretizada em 1890, conforme analisamos nos

capítulos anteriores.

Entretanto, a imigração na região não deve ser entendida simplesmente como uma

alternativa para substituir os escravos africanos, como o era para os cafezais paulistas,

onde faltavam braços, diante do cessamento do tráfico negreiro. No sul, os europeus vieram

para trabalhar de forma autônoma, em pequenas propriedades, produzindo para o mercado

interno, ao contrário dos que chegavam aos cafezais, onde a preocupação era a de

expandir as grandes plantações para exportação.

De forma específica, no planalto não havia charqueadas que dependessem fortemente

de escravos, como em Pelotas, por exemplo. Também não havia necessidade premente de

mudar um sistema de produção atrasado para um moderno, como sugerem os partidários de

uma possível irracionalidade do escravismo no século XIX. Nunca se discutiu a

possibilidade, ou melhor, a necessidade de trabalhadores livres nas estâncias para poder

desenvolvê-las, mesmo porque esses estabelecimentos desde sua formação já contavam

com esse tipo de trabalhador ao lado dos escravos. Ou seja, não havia reivindicações de

imigrantes para trabalhar nas estâncias, a principal un idade produtiva regional.

Os imigrantes eram solicitados para serem agricultores nas áreas de mata virgem,

de forma paralela às estâncias pastoris. E esse pedido das elites locais tinha entre seus

objetivos a venda e a valorização das terras florestais da região em posse de estancieiros

mesmo. Além desse objetivo imediatista, não há dúvidas de que a expansão agrícola da

região traria maior dinamização do mercado regional e, dessa forma, beneficiaria os

comerciantes e o próprio município enquanto tal.

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123

No entanto, a migração só poderia se efetivar através de circunstâncias concretas

que a permitissem. No caso, o apoio imigrantista contava com a possibilidade de

comercialização de terras, como de fato ocorreu, e pela expansão da ferrovia até a

região, que permitiu o acesso ao mercado e, portanto, oportunizou a comercialização das

terras com os colonos. Essa mesma tentativa de trazer colonos não foi concretizada

anteriormente, exatamente pelo desinteresse destes em plantar numa região sem con-

dições de escoamento da produção.

O apoio à imigração na região era, portanto, uma postura cujos objetivos partiam

do princípio da necessidade de povoar a região com novos contingentes demográficos, os

quais tivessem possibilidade real de comprar terras, ou de receber apoio oficial para tanto

e, ainda, que tivessem condições de produzir excedentes em curto espaço de tempo através

da exploração agrícola.

A imigração e o fim da escravidão não têm, na região, uma ligação estreita. A questão

da mão-de-obra para as estâncias foi resolvida pela ampliação do uso de trabalhadores

livres que já existiam. Com a imigração e o súbito aumento da população regional

associado à população cabocla, foi possível o surgimento de um mercado regional de mão-

de-obra. Os caboclos, despossuídos de terras, sujeitavam-se a trabalhar como peões nas

estâncias por salários relativamente baixos ou, ainda, como agregados, com a

possibilidade de plantar para subsistência no interior da fazenda.

A pecuária, como se sabe, não era urna atividade que precisa-se de grandes

contingentes de trabalhadores fixos. Dessa forma, não era difícil recrutar nas horas de

maior volume de trabalho, alguns lavradores livres das vizinhanças em troca de alguma

remuneração baixa, inclusive a troco somente de carne.

Por outro lado, a colonização permitiu aliviar a estância da produção de subsistência ao

estabelecer trocas entre os colonos.

Estes forneciam alimentos em troca de animais; ou seja, embora muito frágil, a

expansão da agricultura com os imigrantes permitiu o surgimento de um mercado

agropecuário local.

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Os PeõesDesde o começo da formação das estâncias do planalto, aparece a figura do peão,

homem que trabalhava ao lado de escravos. Os peões eram os homens livres que

trabalhavam sob salários e dividiam-se em várias categorias, conforme a atividades desem-

penhadas. Os peões campeiros eram geralmente solteiros e viviam nos galpões das

estâncias; recebiam salário fixo, tinham grande habilidade para lidar com o gado e mantinham

certo espírito de independência, embora submetidos ao comando dos estancieiros que os

recrutavam para as batalhas em conflitos civis ou guerras externas. No entanto, esses homens

tinham grande mobilidade: mudavam de emprego por desentendimento com o patrão; por

brigas nos povoados; por acompanharem uma tropeada etc. Os primeiros peões campeiros

do planalto procediam dos campos da fronteira sudoeste do Rio Grande de onde vinham

acompanhando tropas de gado rumo a São Paulo, ou fugindo por motivos particulares, ou

mesmo fugindo das guerras civis e externas que atingiam com mais intensidade aquela

região: a guerra contra o Uruguai na década de 1820; a guerra dos farrapos; a guerra contra

Rosas, em 1851. A função do peão campeiro não raro era desempenhada por algum escravo

habilidoso.

O trabalhador livre serrano encontrava emprego ainda com os tropeiros que

conduziam tropas de gado para as charqueadas de Pelotas ou para as feiras de Sorocaba

em São Paulo. Esse era um emprego instável, pois as tropeadas eram realizadas poucas

vezes no ano. Os carreteiros, que se dedicavam ao transporte de mercadorias em carretas,

também empregavam peões. Na própria estância havia possibilidades de emprego em outras

atividades consideradas menos nobres como o do peão caseiro, que cuidava dos serviços

cotidianos ligados à casa e ao galpão do estabelecimento.

Um tipo de trabalhador dos grandes estabelecimentos era o "peão posteiro",

encarregado de vigiar o gado em pontos estratégicos da estância: os "postos". Esse

trabalhador, na descrição do estancieiro Aristides de Moraes Gomes, era "um peão bom que

constituía família ou caboclo de fora com boa recomendação.36 Esse homem de confiança

cultivava pequenas lavouras; criava alguns animais domésticos; fazia queijo com leite de

vacas mansas que o estancieiro cedia e, conforme sua habilidade, fazia utensílios de uso

cotidiano como laços de couro, cangalhas etc. Dependendo do acordo com o estancieiro,

esse peão recebia salário regular ou, o que era mais comum, sua remuneração era o direito

de fazer sua roça na estância, o que lhe permitia prestar serviços esporádicos sob

pagamento de diárias, receber carne para sua alimentação e, se tivesse filhos, estes

tinham a oportunidade de trabalhar na estância de forma temporária ou permanente.

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125

Como domador de potros poderia obter algum cavalo em retribuição.

Uma das principais categorias de trabalhadores rurais era a dos que se dedicavam

às roças. Embora a agricultura das estâncias utilizasse o trabalho escravo, os peões roceiros

formavam um contigente de trabalhadores muito pobres e estreitamente atrelados ao

estancieiro. O estancieiro Aristides de Moraes Gomes em suas memórias sobre as

estâncias serranas nos dá uma boa descrição desses homens:

"Houve outra categoria de peões, também saídos das estâncias. Quando os

estancieiros faziam plantações nas roças das serras, deixavam lá escoivarando roças

para trigo e feijão e cuidando o paiol caboclos geralmente casados e que não dariam bons

campeiros. Lá eles caçavam, melavam, tinham uma vaca para tirar leite, um matungo, o

sustento e o ordenado da estância. Como eram muitos os estancieiros que procediam

assim, foi aumentando o número de roceiros. Na maioria não voltavam para a estância,

preferiam ficar por lá trabalhando por conta própria, empreitando roçadas, tirando

madeira, falquejando ou serrando em estaleiro tabuinhas para cobrir a casa etc...

"Os patrões cediam-lhes uma ou duas quartas de terra para plantarem. Mas isto eles

só faziam depois de terminarem as empreitadas do contrato (...). Aquela gente foi aumentando

formando-se uma espécie de casta, os serranos. Criavam os filhos na miséria (...) quando a

miséria era muita iam na velha estância pedir vaca para tirar leite (...) um matungo para

ir na venda ou uma rêzinha aleijada para carnear. As patroas davam-lhes roupas para as

crianças; queijo, uma lata de marmelada, um pouco de açúcar ou farinha. Eles levavam-

lhes uns favos de mel, de tabuna que era remédio, ou de oropa, ou um bichinho que

pegavam no mato...37

Como se pode observar, o autor-estancieiro conseguiu descrever com muitos

detalhes significativos a situação desse tipo de trabalhador, que formava uma legião de

despossuídos numa região onde havia abundância de terras. É notória a dependência do

caboclo para com o estancieiro, o qual o atrela com favores como a doação de uma vaca,

roupas, carnes, etc. que consistem numa forma de endividamento que, além de sua

natureza econômica, cria uma dívida moral. Afora esses favores alienantes, o caboclo

tinha possibilidade de prestar serviços nas horas de maior demanda do trabalho

pastoril em troca de algum dinheiro ou de produtos.

Para o estancieiro, esses homens formavam uma vasta reserva de mão-de-obra

barata, além de abastecerem a estância de cereais. Também eram esses homens que

formavam os exércitos dos estancieiros para suas batalhas em conflitos civis ou

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externos:

"Quando iam para uma revolução, era lá na costa da serra que revolucionários e

mais precisamente os capitães provisórios iam reunir a caboclada para organizar seus

esquadrões."38

Os principais conflitos armados nos quais os estancieiros e seus exércitos

participaram foram: a guerra contra o Paraguai –1865 a 1870; a revolução de 1893-95; a

revolução de 1923. Afora essas guerras que envolveram grande número de homens, houve

vários conflitos isolados entre os próprios coronéis locais, que mantinham em atividade as

forças militares particulares recrutadas entre a população pobre.

Até o final do século, a hegemonia dos estancieiros era indiscutível. A pecuária e os

pecuaristas detinham um inquestionável poder sobre a população local: peões de estância,

extrativistas de erva-mate ou agricultores independentes, todos estavam sujeitos às

determinações dos coronéis. Esse atrelamento é compreensível se observamos que,

apesar da relativa abundância de terras virgens, os lavradores tinham poucas condições

de realizar sua produção agrícola no mercado. Os poucos núcleos urbanos da imensa

região rural não davam para sustentar um mercado agrícola significativo. A exportação era

inviável pelas precárias condições de transporte.

A agricultura, nessa situação, não oferecia condições para que uma família de

lavradores pudesse manter-se em nível de vida razoável. Para o ingresso de recursos para

consumo de produtos não-agrícolas – instrumentos de trabalho; vestimenta... –, dependia

do extrativismo da erva-mate ou das estâncias de gado, ou seja, todos os caminhos

levavam ao coronel-estancieiro, caminhos que começaram a ser construídos juntamente com a

instalação das primeiras estâncias.

Os Trabalhadores dos Ervais

A atividade extrativista baseou-se fundamentalmente no trabalhador l ivre com

assalariamento temporário sujeito ao endividamento. Esse trabalhador temporário vivia

nos meses de entressafra como camponês típico e desse modo não dependia exclusivamente

do extrativismo do mate para sua alimentação.

As evidências do assalariamento dos trabalhadores dos ervais são muitas:

Temístocles Linhares, em sua História Econômica do Mate, comenta que:

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"Em meados do século passado, no Rio Grande do Sul, havia muita gente

trabalhando com mate. Só nas Missões brasileiras, no ano de 1856, o número de pessoas

chegam à 6000, ganhando em média dois patacões por dia, ou seja, um salário de

4$000... 39

Um relatório oficial de 1860 informa que alguns ervateiros paraguaios pagavam aos

trabalhadores "dois e meio patacões por dia e este pouco trabalhavam levando muitos

dias sem fazerem nada no mato...”40 O preço, considerado elevado, pelo comentário e

a referência ao pouco trabalho, foi usado como argumento para acusar os paraguaios

de espiões que se acobertavam no extrativismo.

Nessa mesma década, a de 1860, um fiscal do mate autuou quatro peões de um

ervateiro por colher erva-mate sem devida licença:

"...declarando-se os mesmos multados que a erva assim fabricada pertencia a

Pedro Paggi, de quem são peões assalariados, e nesse ato comparecendo o dito Paggi,

declarou pertencer-lhe a dita erva assim como os peões encontrados em seu carijo..."41

Para os lavradores pobres, o trabalho nos ervais representava uma das poucas

oportunidades de adquirir algum dinheiro para compra de instrumentos de trabalho e bens de

consumo. As compras, provavelmente, eram realizadas na casa comercial do próprio

negociante do mate e, dessa forma, os peões ficavam atrelados aos negociantes por um

mecanismo de endividamento.

No inventário do francês Luiz Perié, falecido em 1851, dono de um engenho no erval

do Santo Cristo, estão anotados cerca de uma centena de nomes de devedores. As

dívidas estão anotadas em produto. Joaquim Manoel da Silva, por exemplo, devia-lhe

"40 arrobas e 16 libras de erva-mate...". Outros devedores, de Buenos Aires, Montevidéu

e São Borja, deviam-lhe em dinheiro. Estes eram os compradores do mercado platino.42

O mate, nessa época, chegou a ser utilizado como padrão de referência para contas

nas áreas ervateiras. Um carpinteiro cobrava em produto sua dívida referente ao caixão de

defunto que fizera para o falecido Luiz Perié, referido anteriormente: "João Cazes, mestre

carpinteiro... possui entre os bens do finado Perié a quantia de vinte e quatro arrobas de

erva-mate ensurrada, importe do caixão que lhe fez para sepultar o falecido."43

Em outros inventários, como no de Antônio Pereira Borges, estancieiro e proprietário

de um engenho de erva-mate em Campo Novo, o número de devedores também é significativo.

Nesse inventário, de 1864, as dívidas estão anotadas em dinheiro.44

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Durante o Império, as câmaras municipais concediam licenças para a colheita da

erva-mate sob o pagamento de certa quantia em dinheiro — 2$000 réis em 1874. O

requerente, de posse da licença, contratava outros lavradores para ajudá-lo em troca de pa-

gamento de salários, ou em regime de parceria. O código de Posturas de Palmeira das

Missões, nesse sentido, exigia: "O requerente é obrigado a declarar no ato de tirar a licença

o número de trabalhadores de que se compõe a comitiva.45

Esses requerentes portadores de licença eram uma espécie de intermediários

entre o dono do engenho e os trabalhadores, sendo eles mesmos coletores de mate,

pois trabalhavam diretamente com seus parceiros ou empregados no extrativismo.

Nos ervais privados, o extrativismo seguia o mesmo sistema: o proprietário

pagava salários para a coleta ou arrendava o erval para algum ervateiro, que se

encarregava de agenciar os trabalhadores necessários.

Mais tarde, com o advento da República, os ervais públicos passaram a ser

controlados pelo governo estadual. Este os arrendava a empresários, que contratavam

trabalhadores da mesma forma. Nessa época, o número de peões disponíveis no mercado de

trabalho já era bastante numeroso devido ao aumento populacional e à privatização de grande

parte dos ervais públicos.

No início do século XX, os jornais anunciavam em suas páginas a oferta de

empregos a salários de 2$000 réis e 2$500 réis por dia.46

Além do extrativismo, os coletores de erva-mate eram agricultores independentes. A

coleta do mate é uma atividade de inverno, permitindo que o lavrador tivesse

disponibilidade de tempo para as plantações de verão, as principais. Essa atividade agrí-

cola era executada sob a forma de mutirão, expediente tradicional em todo o Brasil rural.

Affonso Evaristo de Castro, escritor e jornalista de Cruz Alta, descreveu o preparo de uma

roça em 1887:

"...o que quer fazer uma roça e derrubada de matos convida a todos seus vizinhos e

amigos para um putchirão, em dia determinado para cujo efeito, pelo hábito transmitido a eles

pelos guaranis, todos se prestam voluntariamente no dia aprazado e se apresentam

todos munidos de suas foices de roça e machados, e no dia seguinte de madrugada

começam o trabalho com afam, trabalhando todos em comum cada um no seu eito,

durante todo o dia, cada qual empenhando-se em distinguir-se dos outros no trabalho; ao

por do sol concluem com o putchirão e se dirigem ao paiol, onde os espera uma lauta ceia com

bebidas alcoólicas e um carramanchão ornado de muitas moças, para o fandango,

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acompanhado de canto em dueto de melodias melancólicas usadas pelos sertanejos.47

O mutirão ou "putchirão" utilizado pelos lavradores – extrativistas é um

expediente largamente utilizado pelos lavradores de todo o Brasil. Desse modo, um

agricultor individual resolve o problema da execução de trabalhos que exigem muita mão-de-

obra – como uma derrubada ou uma colheita – trocando serviços com seus vizinhos. O

beneficiado do mutirão, naturalmente, ajuda outro vizinho nas mesmas condições.48

Os Colonos

Os colonos que se instalaram nas colônias oficiais e particulares praticavam uma

agricultura fundada no trabalho familiar. Da mesma forma que os trabalhadores caboclos, o

mutirão era largamente utilizado por esses novos agricultores da região.

No entanto, os colonos estavam sujeitos a novas formas de relações sociais, diversas

daquelas a que estavam sujeitos os agricultores caboclos. Novas formas de organização do

sistema produtivo iniciaram-se com a expansão agrícola do final do século. Enquanto o

lavrador caboclo estava estreitamente ligado ao estancieiro ou comerciante de mate – os

quais poderiam ser as mesmas pessoas – o colono imigrante foi submetido ao controle eco-

nômico dos comerciantes de produto agrícolas que tinham interesses distintos dos

interesses dos estancieiros.

O colono escapava ao tradicional controle dos estancieiros e chefes políticos locais,

que impunham ao lavrador caboclo urna sólida dominação política e econômica. Essa situação

é nítida quando examinamos a arregimentação militar que arrastava os caboclos para as

guerras entre as oligarquias gaúchas que assolavam periodicamente o Rio Grande do Sul.

Os colonos, nesses conflitos, mantinham neutralidade e, não raro, a defendiam com armas

na mão. Por outro lado, não interessava aos comerciantes locais e mesmo aos administradores

oficiais, ou particulares, da colônia a desarticulação da produção agrícola, sobre a qual

estavam depositados os interesses econômicos do processo de "colonização" da região. Uma

desorganização na produção agrícola regional poderia comprometer seriamente o próprio

pagamento dos lotes rurais vendidos aos agricultores imigrantes, além de infligir prejuízos

ao comércio de produtos agrícolas.

Na revolução de 1923 – urna guerra civil entre as oligarquias gaúchas – a colônia

de Neu-Württemberg ilustra muito bem a postura dos colonos diante desse tipo de conflito:

"Em íntima colaboração com as autoridades civis e militares, organizou-se

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130

imediatamente o Selbstschutz (serviço de defesa própria) que em breve atingiu oitocentos e

noventa e três homens em força ativa, havendo ainda uma reserva de 110 homens mais

velhos. Contava portanto ao todo 1000 homens. De 26 de agosto de 1923 até 23 de

dezembro do mesmo ano vigiavam-se diariamente 20 estradas de acesso ao interior da

colônia. Cavavam-se trincheiras e ergueram-se obstáculos junto às pontes; autos e

caminhões faziam o transporte rápido das tropas, estafetas e tiros de rojões alarmavam a

população e grupos de cavaleiros formavam patrulhas ligeiras. Colonos novos e antigos,

brasileiros de origem germânica e de origem lusa e estrangeiros participaram com igual

entusiasmo na nobre cruzada...49

A nova organização econômica local rompeu com a estrutura social em que os

lavradores caboclos estavam fortemente atrelados aos coronéis-estancieiros. Com a expansão

da agricultura e a importância do comércio de produtos coloniais, tendeu a impor-se um

novo padrão de relações sociais, no qual a exploração do trabalho do agricultor se fazia

através do comércio. Um padre polonês que trabalhou na colônia Ijuí escrevia a esse

respeito, em 1898:

"Pode-se afirmar abertamente que o colono nos seus primeiros três anos

trabalhava exclusivamente para o negociante e até hoje é obrigado a carrear os seus

míseros vinténs para os bolsos de outros europeus que nos são absolutamente estranhos

pela nacionalidade e idioma. Além disso, estes gatunos zombam dos poloneses,

arrancando-lhes antecipadamente todo o dinheiro possível, fixando os preços dos

produtos agrícolas e não lhes pagando em espécie, deixando ao colono apenas a

seguinte alternativa, receber qualquer coisa pelos seus produtos; ou deixá-los

simplesmente em troca de outras mercadorias.50

A opinião do padre Antônio Cuber é dada com muito rigor. Refere-se aos

comerciantes alemães com os quais o pároco não tinha nenhuma simpatia; uma antipatia

vinda da Europa e reforçada, no caso da colônia de Ijuí, pelos motivos aludidos pelo religio-

so. Mas, apesar da paixão no discurso do padre polonês, é certo que havia a exploração

do comércio, independentemente da origem étnica dos comerciantes.

No mesmo sentido, Leo Waibel é enfático ao se referir ao papel do comerciante

nas colônias: "O seu contato principal (o colono) é com o vendista; o vendeiro da

vizinhança; que enriquece enquanto os laboriosos colonos vegetam numa existência mi-

serável.51

A biografia de um grande comerciante e chefe político de Ijuí nos traz muitas e

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131

preciosas informações sobre o papel das casas de comércio. Antônio Soares de Barros,

o coronel Dico, instalou-se na colônia de Ijuí em 1890, mesmo ano em que foi fundada. Dico

começou com uma pequena venda, em sociedade com um irmão residente em Cruz Alta, o

qual se encarregava dos negócios naquela praça.

Num trecho da obra, o biógrafo mostra com muita clareza o papel do comerciante na

dinâmica da produção agrícola regional:

"...ele não é exclusivamente o vendedor de mercadorias ou o comprador e

revendedor de gêneros coloniais. Ele é mais que isso, é o financiador das safras futuras. É

ele que provê o colono de gêneros alimentícios, de roupas, de remédios se necessário,

de ferramentas indispensáveis ao seu trabalho (...) quando a messe é farta, lucra o

negociante, o agricultor; e consumidor, e quando falha a colheita, por geada prematura ou

tardia, por chuva demais, ou seca, por gafanhoto, por praga ou doença do colono ou de

sua família, que acontece ao comerciante? Têm ele de "surtir" novamente o colono com

gêneros de primeira necessidade, financiar-lhe nova safra, adiantando-lhe até dinheiro...52

O biógrafo foi muito claro ao definir o papel do comerciante, embora faça a apologia

desse papel. É evidente a condição monopsônica da casa comercial que nessa condição

ditava os preços agrícolas como transparece na queixa do padre polonês. Ao colher a

safra, o agricultor já estava comprometido com o comerciante e obrigado a entregar-lhe a

produção nas condições impostas, para pagar-lhe o adiantamento dado em forma de

mercadorias. No caso de um desastre agrícola, o colono ficava sujeito por vários anos aos

empréstimos da casa comercial.

Tem procedência, também, a queixa do padre Cuber quanto ao pagamento das

safras. O agricultor deixava seu crédito em conta corrente na casa comercial, beneficiando

novamente o comerciante, que utilizava o dinheiro do colono.

Conclusão

A presença de escravos no planalto foi significativa, principalmente se considerarmos

que fixavam-se em estâncias pastoris, as quais demandavam relativamente pouco trabalho

em comparação com as plantations. A sua importância relativa decrescia à medida que

aumentava a oferta de mão-de-obra livre. Assim, na década de 1880, quando a instituição

escravista vivia seus últimos momentos, os estancieiros não tiveram maiores dificuldades

em substituir seus cativos por trabalhadores livres. Aliás, trabalhadores livres já eram

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132

utilizados concomitantemente com os escravos.

A imigração européia, que se iniciou justamente quando expirava a escravidão,

não tem relação direta com esse evento. O imigrante em nenhum momento substitui o

escravo no trabalho pastoril, e sim, dedicou-se à agricultura em pequenas propriedades,

numa atividade paralela à pecuária tradicional. Indiretamente, a imigração dos colonos

contribuiu para acelerar a ocupação das terras dos posseiros nacionais e, em

conseqüência, aumentar a oferta de trabalhadores livres para as estâncias.

Nessas condições, a transição do escravismo para o trabalho livre não significou

uma ruptura drástica na organização da produção pecuária. Tampouco, implicou inovações

tecnológicas ou uma racionalização econômica superior, como se poderia supor: a

estância continuou operando com pouco investimento de capital, mantendo certa

independência de aquisições externas através do aproveitamento dos recursos naturais e da

exploração de trabalhadores, quer fossem agregados ou peões assalariados.

Os colonos imigrantes que se estabeleceram como agricultores em pequenas

propriedades constituíram-se numa nova classe na estrutura sócio-política da região. Os

colonos consolidaram-se como classe desatrelada do tradicional coronelismo, o qual,

entretanto, continuou aliciando lavradores nacionais pobres para o trabalho pastoril e

para a formação de milícias particulares. Com esse controle militar e político, os

coronéis-estancieiros mantiveram-se no poder por muitos anos, apesar da expansão

da agricultura.

Notas

1 Um dos suportes básicos do argumento da suposta boa-vida do escravo gaúcho está neste

trecho do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, que percorreu o Rio Grande do Sul na

década de 1820:

"Tive já oportunidade de referir ao fato de serem vendidos aqui os negros imprestáveis dos

habitantes do Rio de Janeiro; quando querem intimidar um negro ameaçam-no de enviá-lo para

o Rio Grande, entretanto, não há, em todo o Brasil, lugar onde os escravos sejam mais felizes

que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos, mantém-se próximos

deles e tratam-os com menos desprezo. O escravo come carne à vontade, não é mal vestido,

não anda a pé e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos cousa mais sadia que

fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais que Os cercam uma superioridade consoladora de

sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos."

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133

Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul - 1820/1821. Belo Horizonte e

São Paulo : Itatiaia= USP, 1974. p. 47.

2 Ver: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. 2.ed.

Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1977.

No capítulo II, o autor comenta detalhadamente essa bibliografia tradicional, analisando o

caráter ideológico que a reveste. Assim, achamos desnecessário repetir aqui uma análise crítica

dessa bibliografia, o que, por outro lado, não é o propósito deste texto. No entanto, a crítica à

historiografia tradicional é importante, pois mesmo Jean Roche, um autor não engajado na

apologia aos estancieiros gaúchos, omite os escravos negros na sua volumosa obra sobre a

colonização alemã. Referindo-se à formação social do Rio Grande do Sul, o autor afirma:

"...haviam, portanto, duas classes sociais, a dos estancieiros e a dos peões" (Roche, Jean. Op.

Cit. P. 34).

3 Cf. MONTI, Verônica A. O abolicionismo: sua hora decisiva no RS - 1884. Porto Alegre :

Martins Livreiro, 1985. P.165.

4 Cf. Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Março 48. N° 1912.

5 Cf. HORMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850 -descrição da província do Rio

Grande do Sul no Brasil meridional. Porto Alegre : D. C Luzzatto e EduniSul, 1986. P. 78. (Obra

publicada pela primeira vez em 1854, na Alemanha)

6 Cf. Inventário post-mortem de Joaquim da Cruz Moreira. Cartório de Órfãos e Ausentes de

Cruz Alta, 1866. APRS. Março 3. N° 95.

7 Ver comentário crítico nesse sentido em CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou

camponês. São Paulo : Brasiliense, 1987. PP. 14-29.

8 Ver, por exemplo, o excelente trabalho de KÁTIA DE QUEIRÓS MATTOSO. Ser escravo no

Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1982.

9 Cf. Relatório do presidente da província do RS, Joaquim Antão Fernandes Leão. Porto Alegre :

Tipografia do Correio do Sul, Novembro de 1859.

10 Sobre o tráfico interno de escravos, há um importante trabalho de CONRAD, Robert Edgar.

Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1985. PP. 187-207.

11 Sobre a participação da população local na guerra contra o Paraguai, ver ROCHA, Prudêncio.

Op. Cit. PP. 74-83. (O autor transcreve naquelas páginas alguns documentos relativos ao

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134

recrutamento e à formação de pessoal e formação de batalhões de combatentes.).

12 Recenseamento geral do Brasil - 1872: IBGE. Rio de Janeiro - Biblioteca do IBGE - Rio.

(Microfilme 340/81 - BICEN 003-81)

13 Cf. Inventário do tenente coronel Joaquim Thomaz da Silva Prado. Cartório de Órfãos e

Ausentes de Cruz Alta, 1856. APRS. Março 3. N° 67.

14 Cf. GOMES, Aristides de Moraes. Fundação e evolução das estâncias serranas. Cruz Alta : A.

Dal Forno Editor, 1966, p. 247. (Essa obra é uma espécie de memória da família do estancieiro

que se estabeleceu na região no início do século XIX).

15 Idem, p. 133.

16 Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste, Op Cit., p. 179

17 Cf. MAESTRI F°, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre e Caxias do Sul :

EST/UCS, 1984. P. 50.

18 As Instruções do Conde de Piratini ao Capataz da Estância da Música foram escolhidas e

comentadas por CESÁR, Guilhermino, O Conde de Piratini e a Estância da Música. Porto

Alegre e Caxias do Sul, EST/UCS, 1978. P. 66.

19 Idem, p. 46.

20 Cf. Inventário post-rnortein do Barão do Ibicuhy (Francisco de Paula e Silva). Cartório de

Órfãos e Ausentes de Cruz Alta, 1879. APRS. Maço 9. N° 245.

21 Cf. Inventário post-mortem de José Manoel Luccas. Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz

Alta. 1881. APRS. Março 10. N° 269.

22 Cf. Inventário post-mortem de Christiano Uflaker. Idem. Maço 6. N° 159.

23 Ver o recente estudo de. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou camponês?

São Paulo :. Brasiliense, 1987.

24 Em, CESÁR, Guilhermino. Op. Cit., p. 41.

25 Idem, p. 40.

26 Idem, p. 43.

27 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. Op. Cit., p. 194.

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135

28 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A Afro-América: a escravidão no Novo Mundo. São

Paulo : Brasiliense, p. 85.

29 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis :

Vozes, 1979. P. 164.

30 Cf. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo • Ática, 1978. PP. 579580.

31 Cf. ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. RS: escravismo e transição - o Espírito Santo -

1850-1888. Rio de Janeiro : GRAAL, 1984. (Ver capítulo 1).

32 Cf. BAKOS, Margaret Marchiori Escravismo e abolição. Porto Alegre : Mercado Aberto,

1982. P. 39.

33 Cf. Inventário post-mortern do major Francisco Modesto Franco, 1886. Cartório de Órgãos e

Ausentes de Cruz Alta. APRS. Maço 9, N° 3.

34 Cf. Inventário post-rnortem de Carolina do Prado Terra, I 8 8 1 . Cartório da Provedoria de

Cruz Alta. APRS. Maço I . 1\1° 18.

35 Cf. Inventário post-mortem de Christiano Uflacker. Cartório de Órgãos e Ausentes de Cruz

Alta. Maço 6. N° 159. APRS.

36 Cf. GOMES, Aristides de Moraes. Op. Cit. P. 56.

37 Idem, pp. 249/250.

38 Idem, p. 250.

39 Cf. LINHARES, Temístocles. História econômica do mate. Rio de Janeiro : José Olympio,

1965. P. 105.

40 Cf. Cartório de José Maria Pereira Campos, Cruz Alta. 18 de setembro de 1860. AHRS.

Cód. 285.

41Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta, processo ri° 1016. Março 31. AHRS.

42 Cf. Inventário de Luiz Perié. Cartório de Órgãos e Ausentes de Cruz Alta. APRS. Maço n° 2,

n° 179. 1851.

43 Idem.

44 Cf. Inventário de Antônio Pereira Borges. Cartório Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Maço

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136

1, n° 42.

45 Cf. Código de postura do município de Palmeira. Artigo 42 § 2° AHRS. Cx. 110.

46 Cf. Correio Serrano. 4 de Junho de 1918.

47 Cf. CASTRO, Evaristo Affonso. Notícia descritiva da região missioneira. Cruz Alta :

Tipografia do Comercial, 1887. P. 278.

48 Um dos principais estudos sobre o mutirão brasileiro é o de CÂNDIDO, Antônio. Os

parceiros do Rio Bonito. São Paulo : Duas Cidades, 1977.

49 Cf. FAUSEL, Erich. De Elsenhau a Panambi. In: Cinqüentenário de Panambi. S/ Ed., 1949.

P. 35.

50 Cf. CUBER, Antônio. Nas margens do Uruguai. Ijuí : Museu Antropológico Diretor

Pestana, 1979. P. 16. (Tradução do original em polonês publicado no Kalendarz Polski,

Porto Alegre, 1898.

51 Cf. WAIBEL, Leo. Op. Cit. P. 247.

52 Cf. 60 anos dentro de uma empresa: 1890-1950, casa Dico. Porto Alegre : Globo, 1951. P.

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137

Conclusão Final

Para concluir faremos algumas observações de caráter geral sobre o trabalho, visto

que já elaboramos conclusões específicas em cada capítulo.

Um dos propósitos deste estudo é desvendar alguns aspectos da história regional

do Rio Grande do Sul que permanecem obscuros na historiografia local. A região do

planalto, a serra, é vista como atrasada e subpovoada ao longo do século XIX e essa imagem

baseia-se fundamentalmente nas opiniões dos tradicionais viajantes daquele século, os

quais, aliás, deram pouca atenção a ela. Nesse particular, a escolha de novas fontes foi

decisiva para conseguirmos construir uma imagem renovada do planalto no século XIX.

Essas fontes foram sobretudo os inventários post-mortem e as correspondências das câmaras

municipais.

Com base na mencionada documentação, confirmamos, de um modo geral, as

hipóteses que havíamos levantado no projeto da pesquisa. Conseguimos ricos detalhes

sobre a formação do latifúndio pastoril, bem como acerca do processo de apropriação da terra

e da produção agropecuária. Quanto ao processo de transição, também foi iluminado por

uma boa documentação, permitindo-nos observar as especificidades da região no que se

refere ao tema. Os senhores de escravo locais conseguiram, através de diversos

mecanismos, formar uma oferta de mão-de-obra livre para substituir seus cativos por

lavradores nacionais. Nesse sentido, a imigração que ocorreu após 1890 não teve relação

direta com o emancipacionismo.

Um dos pontos em que seria necessário avançar mais é o que se refere ao

caráter da agricultura dos escravos no interior das estâncias. As fontes dão conta que os

cativos eram responsáveis pela subsistência dos estabelecimentos, mas são pobres em

relação à existência da "brecha camponesa". Os dados disponíveis indicam, no entanto,

ser provável o caráter camponês da lavoura escrava. Vimos que isso fica claro nas

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138

recomendações do Conde de Piratini, por exemplo. Seria útil, no futuro, uma nova busca

de fontes e dados para enriquecer esse aspecto de nossa problemática.

Por fim, ficou evidente que as bases da atual estrutura agrária da região foram

lançadas no início do século XIX quando começou o processo de ocupação e

apropriação da terra. E essas bases são, atualmente, fator incidente na situação de uma

população rural pobre que luta pela modificação da distribuição das terras locais, onde

antigos estancieiros mantêm seus latifúndios.

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139

Referências Bibliográficase Documentais

1. Fontes primárias

1.1. Manuscritas

1 - Abaixo assinado ao Imperador D. Pedro II . 24 de maio de 1879. Santo Antonio da

Palmeira. AHRS. Lata 124.Maço 97.

2 - Correspondência da Justiça de Santo Antonio da Palmeira. AHRS. Lata 124.

3 - Correspondências das câmaras municipais de Cruz Alta, Palmeira das Missões e Passo

fundo . 1835/1889. AHRS

4 - Inventários Post-mortem . Cartórios dos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões e

Passo fundo . 1835/1921. AHRS

5 - Livro do registro paroquial de terras da paróquia do divino Espírito Santo da Cruz Alta.

1855/56. APRS.

6 - Processos-crime dos cartórios do civil e crime de Cruz Alta,

Santo Ângelo e Palmeira das Missões. APRS. 1850-1900

7 - Relatório do diretor geral dos índios, José Maria Pereira de Campos para o

presidente da província do RS. 13 de julho de 1860. AHRS. Cód. 285.

8 - Relatório de José Joaquim de Andrade Neves, diretor geral dos índios ao

ministro do império. Rio Pardo, abril de 1854. Biblioteca nacional. I 32.14.14

9 - Relatório de José Maria Pereira de Campos, chefe da comissão para as colônias

do Alto Uruguai. Cruz Alta. 18 de setembro de 1860. AHRS. Códice 285.

10 - Relatório de Lindolpho A. Rodrigues da Silva. 30 de junho de 1913. AHRS. códice

219.

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140

11 - Relatório do presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Ten.

Cel. Francisco José de Souza soares Andréa, na abertura da assembléia provincial

no dia 1 de junho de 1843. (Biblioteca Nacional)

1.2. Impressas

1 - Repartição de Estatística do Estado do RGS. Trabalho executado para a Exposição

Nacional de Pecuária do Rio de Janeiro. Porto Alegre : Globo, 1917. (Biblioteca Pública de

Porto Alegre).

2 - CAMARGO, Antônio Eleutherio de. Quadro estatístico da província de São Pedro do

Rio Grande do Sul - 1868. Porto Alegre : Tipografia do Jornal do Comércio, 1868.

(Biblioteca Pública de Porto Alegre).

3 - CASTRO, Evaristo Affonso de. Notícia descritiva da região missioneira. Cruz Alta :

Tipografia do Comercial. 1887.

4 - Relatório do presidente da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, João Lins Vieira

Cansansão de Sinimbu, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 2 de outubro de

1854. Porto Alegre : Tipografia do Mercantil. 1854.

5 - Relatório do vice-presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Luis Alves

Leite de Oliveira Bello, na abertura da Assembléia Provincial, em 1° de outubro de 1852. Porto

Alegre : Tipografia do Mercantil, 1852.

6 - Relatório do presidente da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, João Lins Vieira

Cansansão de Sinimbu, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 6 de outubro de

1853. Porto Alegre : Tipografia do Mercantil. 1853.

7 - Relatório com que abriu a primeira sessão ordinária da segunda legislatura da província de

São Pedro do Rio Grande do Sul, no dia 1° de março de 1846, o exm° sr. Conde de Caxias. Porto

Alegre : Tipografia I.J. Lopes, 1846.

8 - Relatório dos negócios das obras públicas, por João José Pereira Parobé. Porto

Alegre : Museu da Assembléia Legislativa (Relatórios de 1895 até 1902).

1.3. Jornais1 - Die Serra-Post, Cruz Alta, 1911.

2 - Correio Serrano, Ijuí, 1917-1920

3 - Aurora da Serra, Cruz Alta, 1884-1886.

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141

2. Fontes Secundárias

1 - ABREU, Florêncio. Retrospecto econômico e financeiro do estado do Rio Grande

do Sul. 1822-1922. Porto Alegre : Revista do Arquivo Público do RS, dezembro, 1922.

2 - ALMADA, Vilma Paraíso Pereira de. Escravismo e transição: o Espírito Santo

(1850/1888). Rio de Janeiro : GRAAL, 1984.

3 - ANTUNES, Paulo Bessa. A propriedade rural do Brasil. Rio de Janeiro : OAB-RJ, 1985.

4 - BACK, Leon. A imigração judaica. In: Enciclopédia riograndense. Canoas :

Regional, 1958. V.5.

5 - BAKOS, Margarete Marchiori. RS: Escravismo e abolição. Porto Alegre : Mercado

Aberto, 1982.

6 -BERNARDES, Nilo. Bases geográf icas do povoamento do

Estado do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro : IBGE. Boletim

Geográfico n° 171, novembro-dezembro, 1962, e n° 172, ja-

neiro-fevereiro, 1963.

7 -BINDÉ, Wilmar Campos. Apontamentos para a história de Campo Novo. Santo Ângelo,

s/ed., 1985.

8 -BLOCK, Marc. Ur historia rural francesa. Barcelona : Crítica, 1978.

9 -BOSERUP, Ester. Evolução agrária e pressão demográfica. São Paulo : Hucitec e Polis,

1987.

10 - CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. 2.ed. São Paulo : Duas Cidades,

1982.

11 - CANO, Wilsorn. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo : T. A .

Queiroz, 1983.

12 - CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou camponês? O proto-

campesinato negro nas Américas. São Paulo : Brasiliense, 1987.

13 - ---------- . Agricultura, escravidão e capital ismo. Petrópolis : Vozes, 1979.

14 - CARDOSO, Ciro Flamarion Santana, BRIGNOLI, Hector Perez. Os métodos da

história. Rio de Janeiro : GRAAL, 1979

15 - ______ . A Afro-América: a escravidão no Novo Mundo. São Paulo : Brasiliense,

1982.

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16- CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2.ed.

Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1977.

17 - CASA, Dico. 60 anos dentro de uma empresa. Porto Alegre : Globo, 1951.

18 - CÉSAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música. Porto Alegre e Caxias

do Sul : EST e UCS, 1978.

19 - ______ . História do Rio Grande do Sul. São Paulo : Brasil, 1981.

20 - CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a

administração pública do Brasil. Porto Alegre : Cia. União de Seguros Gerais, Coleção

ERNS. 1978 (Edição Fac-Simile da Publicação da Tipografia Nacional, Rio de

Janeiro, 1923).

21 - CIRNE LIMA, Ruy. Pequena história territorial do Brasil. Porto Alegre : Sulina, 1954.

22 - CLAUSS, Romualdo. Evolução histórico-geográfica de Tucunduva. Prefeitura

Municipal de Tucunduva, 1982.

23 - COLETÂNEA da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre :

Secretaria da Agricultura, 1961.

24 - CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo

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25 - CUBER, Antônio. Nas rrzargens do Uruguai. Ijuí, Museu Antropológico Diretor Pestana,

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26 - CUNHA, Ernesto Antônio Lassance. Rio Grande do Sul: contribuição para o estudo

de suas condições econômicas. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1908.

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147

Anexo N 1

RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DE CRUZ ALTA INFORMANDO SOBRETERRAS DEVOLUTAS (1850)

"...informando quais os distritos deste município em que há terrenos devolutos e qual

a extensão aproximada destes terrenos, pediu informações aos juizes de paz dos distritos,

e tendo obtido com bastante morosidade...

" Existe neste primeiro distrito uma mata quase toda devoluta acompanhando o rio

Juhy pequeno e da Conceição desde o fundo da fazenda do Cadeado até unir-se com a

serra do Juhy Grande; cuja mata terá dez léguas de comprimento com três a cinco de

largo, distanciando desta vila quatro a seis léguas. Existe mais neste mesmo distrito outra

mata desde a Fazenda Dois Irmãos acompanhando o Jacuhy até a confluência deste rio

com o Gahy, com oito a dez léguas de comprimento e duas a três de largo. Existem muitas

posses cultivadas nestas matas; e o mais tudo devoluto. Existe entre o 1°, 5° e 6° Distritos a

mata intitulada a serra dos Juhys que se calcula ter mais ou menos cinqüenta léguas em

circunferência, unindo com a primeira mata nomeada, e é toda arrodiada de campos,

correndo pelo meio do rio Juhy Grande e seus confluentes; distante desta vila 6 a 10

léguas. Existe no 4° distrito urna mata entre os rios Juhy Pequeno e Guaçuhy com urna légua

de frente e outra de fundo, e outra desde o Juhy Pequeno até o rio Urubuçarú em frente ao

antigo passo de São João Babtista, que terá de frente légua e meia e de fundo até o rio

Juhy Grande uma légua, ambas devolutas. Existem nos fundos do 4°, 5° e 6° distritos a

grande mata que borda o Uruguai desde o Mato Português até a Foz do Juhy Grande com

grande número de léguas de comprimento e largura, e existe mais, dividindo o 4°, 3°, 2° e 8°

distritos a serra geral que divide este município com o de Santo Antônio de Patrulha,

Taquari, Rio Pardo, Cachoeira de São Borja com grande extensão de matas devolutas. Existe

mais o mato denominado Castelhano que une a serra geral com as matas do Uruguai, e

acompanha um dos confluentes do Juhy, dividindo o 4° do 3° distrito com grande número

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de léguas de terrenos devolutos. São estas as informações... (Paço da Câmara Municipal da

Vila do Espírito Santo de Cruz Alta, 17 de janeiro de 1850 – Ao presidente da Província)*"

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149

Anexo N 2

ABAIXO-ASSINADO AO IMPERADOR D. PEDRO II

"Ante o augusto Trono de V.M.I., sobem os abaixo-assinados habitantes e

moradores de novo município de Santo Antônio da Palmeira, (...). a presença de V.M.I.

solicitam remédio para os males que os oprimem como agricultores e fabricantes de erva-

mate, pelas razões que passam a expor.

"Senhor:

"V.M.I serviu-se por seu beneplácito e magnânima vontade fazer graça, pela Lei de 20

de março de 1861, ao povo fabricante de erva-mate as terras devolutas existentes naquele

ano de 1861, entre os rio Turvo, Uruguai e Várzea. Esta graça que tão liberal faz V.M.I.,

fez com que se conservassem os habitantes em paz pacífica cc :sse direito até o ano de

1877, em que foi nomeado o juiz comiss:irio para esse termo. Acontecendo que este juiz

comissário, que se acha investido do poder para medir e demarcar terras de posse,

nenhum respeito tem da lei de 1861, já medindo posses criminosas, por seus princípios

contra a disposição da Lei 601 de 18 de setembro de 1850, art° 1° que proibiu a aquisição de

terras devolutas, jamais podiam ser medidas posses de tais ordem, em vista da citada Lei

de 1850. Porém a cobiça do ouro e a ambição de o possuir faz com que seja desrespeitada

a lei a concessão feita por V.M.I. e estende suas medições em terras concedidas em

comum e que se achavam, no ano de 1861 em matas virgens, abrangendo os terrenos

que então ficaram pertencendo em comum ao povo existente dentro do perímetro dos

três rios citados.

"Têm os habitantes, que se têm visto prejudicados, e que para bem cultivar o

erval na Serra Geral, fazem suas pequenas moradas pelo favor da sábia Lei de 1861,

levando a presença do juiz comissário por certidão a citada Lei de 20 de maio; qual tem

sido a resposta do juiz comissário existente Tibúrcio Alvares de Siqueira Fortes? Tem sido que

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a Lei de 20 de maio de 1861 foi revogada! Já não regula mais e que por isso segue a medição

e que é um engano do governo!! Não contente assim, Senhor, em tomar do povo os ervais

que existiam em matas altas no ano de 1861 e ainda manda medir por seu agrimensor

Maximiniano Beschorner, uma sua posse; cuja foi principiada no ano de 1863 por José Joa-

quim Cordeiro, cuja posse foi vendida ao Juiz Comissário Fortes, cuja medição foi feita sem

assistência Juiz Comissário ad hoc, e sim do dito Juiz Fortes, se é possível assim se

proceder, nas terras por V.M.I. concedida em comum aos fabricantes de erva-mate, então

se verá os pobres subditos da dura necessidade de mendigar o pão para suas famílias no

país estranho, a pátria que os viu nascer por que único terreno que na valorosa província

de São Pedro do Rio Grande do Sul foi concedido para habitação do pobre povo

empregados no fabrico da erva-mate, esses mesmos são tornados.

"Senhor;

"Se este povo vive no emprego do fabrico da erva-mate, vê-se tão oprimido e

obrigado por semelhantes medições mal cabida em um terreno que lhes foi concedida por

uma graça Imperial, é tropelado; expulsos do pequeno torrão para se estender o domínio

dos ricos e poderosos do lugar tanto que o Juiz Comissário propala que não consente que

se derrube uma só árvore existente dentro do perímetro dos três rios Turvo, Uruguai e

Várzea e que fará gemer ao fabricante que assim praticar, com trazê-los à barra do tribunal

como um criminoso! V.M.I. como pai de um povo pobre e laborioso os abrigou com a Lei de

vinte de maio, por certo não deixará que este povo que abrigaste debaixo de vossas sábias e

energéticas leis dando um torrão onde possam obter o recurso necessário para suas pobres e

míseras famílias, fiquem expulsos e sem domicílio como está acontecendo, uns abandonando

suas habitações, outros chamados aos tribunais e outros ameaçados de tudo sofrer.

"Senhor;

"Os abaixo-assinados correm presurosos aos pés de V.M.I. como uma fonte pura de

onde esperam emanar o remédio para o mal que os aflige, para que seja suspensa as

medições dentro dos limites dos três rios citados -- rios Turvo, Uruguai e Varge – e que ali no

perímetro seja conservado o direito da lei de 20 de maio de 1861 e para que não seja mais

medidas posses que se acoberta com o pagar a multa por não ter registro, sendo que

jamais poderia obter por ser feito depois da lei que proibiu a aquisição de posse.

"Os abaixo-assinados, cônscio do zelo e amor que V.M.I. dedica ao seu povo,

descansam certo que seus reclames serão atendidos.

P a lm e i ra , 2 4 d e m a io d e 1 8 7 9 "

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151

(Seguem-se 73 nomes, com firma reconhecida)

(AHRS – Lata 124. Março 97. Doc 70 A)

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Anexo N 3

ARTIGO DO VEREADOR UFLACKER SOBRE A INDÚSTRIA AGRÍCOLA,PUBLICADO NO PERIÓDICO AURORA DA SERRA, DE CRUZ ALTA (18-84)

"Nossa população agrícola de cima da serra tem vegetado infelizmente em

um completo abandono e atraso, achando-se reduzida quase na sua totalidade à

mais vergonhosa miséria, devido mais à crassa ignorância das teorias da agricultura e

dos melhoramentos e aperfeiçoamento até hoje introduzidos na própria indústria

a que ela se dedica, de, que mesmo a qualquer outra cousa.

"A nossa região serrana é seguramente coberta em a sua quarta parte por

matas de feracíssimas terras próprias para a agricultura, regadas por inúmeras

vertentes e rios e que, devido à essas condições favoráveis tem atraído à si urna

enorme população de lavradores nacionais; mas, infelizmente, na sua maioria, é essa

população constituída de gente tão indolente e imprevidente, que, muitas vezes não

consegue colher em anos adversos, como o foram os deste último decênio, o

indispensável para a sua própria subsistência e muito menos para o abastecimento dos

vizinhos ou para exportação.

"Reconhecida pois, a incontestável fertilidade de nossas terras bem como o

clima, mais ou menos benigno e temperado desta região perguntamos: qual a razão

deste fenômeno?

"A principal causa deste fenômeno não pode ser outra senão a indolência e

ignorância em que vegeta essa classe industrial, da ignorância absoluta dos

princípios teóricos de agronomia, e dos melhoramentos e aperfeiçoamentos que tem

sido introduzidos até o presente nesta indústria.

"Com efeito, raríssimo é o homem inteligente ou abastado que nesta região

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153

se dedica exclusivamente a esse ramo de indústria aonde ainda está sendo

explorada com muitíssima vantagem a florescente indústria pastoril e outras.

"A indústria agrícola é por enquanto exercida aqui entre nós, em sua quase

totalidade, peio proletariado, e também pela escória das sociedades, que sendo

repelida por seus vícios e crimes, vai, como último refúgio, se estabelecer nos matos

e terras devolutas, onde tem a certeza de que ninguém o irá incomodar na posse de

terras nacionais, de que criminosamente se apropria.

"Este é o estado a que está reduzida a nossa agricultura. "Abençoado país este

nosso para os vagabundos.

"Mas já é tempo de cuidarmos em medidas sérias e apropriadas que elevem

a indústria agrícola nesta região a altura de que é condigna.

"Não será em época muito remota que ela ainda se constituirá em uma das

fontes mais ricas de engrandecimento e prosperidade desta região, e pode estar tão

próxima essa época que unicamente depende em conseguirmos os prolongamentos

das vias férreas do norte e do sul desta província até os pontos principais de nossa

região serrana.

"É pois chegado o tempo de cuidarmos do seu aperfeiçoa-- mento,

principiando por estudos experimentais, e pondo em prática todos os melhoramentos

nele introduzidos até hoje e usados pelas nações mais adiantadas neste ramo,

como por exemplo sucede nos Estados Unidos do Norte América aonde só a

agricultura constitui um manancial mais abundante de ouro do que todas as ricas e

inesgotáveis minas da Califórnia.

"Mas se quisermos atingir a tão almejado fim, devemos em primeiro lugar,

banir de nossa lavoura toda aquela antiquíssima e bárbara rotina que está ainda em

uso entre nós, rotina herdada em parte, dos nossos avoengos da colônia portuguesa;

e em parte dos nossos aborígenes da raça Tupi ou Guarani.

"Precisamos acabar com o pernicioso sistema das grandes derrubadas de

matos virgens, para o cultivo de milho e feijão por que a destruição dos matos pelo

machado e o fogo como é praticado aqui entre nós, não só reduz a campo esterilizando

a terra, como também com o decurso do tempo e o crescimento progressivo e

natural de nossa população e ainda mais, com a provável criação de alguns núcleos

coloniais de imigrantes estrangeiros, que virão se estabelecer aqui seduzidos pelas

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nossas ubérrimas terras com certeza matemática em menos de meio século terão

desaparecido desta rica região todas as florestas virgens que a ensoberbece.

"É esta uma imprevidência da geração presente, que jamais será perdoada, e

com justíssima razão pelas gerações futuras.

"Não cultive-se pois exclusivamente nas terras de mato conquanto não sejam

tão férteis como aquelas, pela razão de conterem menos humo, são todavia muito

produtivas, desde que sejam rnanhadas por meio dos processos mais modernos de

fertilização.

"Com este sistema, não só tornar-se-há o trabalho mais cômodo como também

mais econômico e seguro...

* Aurora da Serra. Cruz Alta. Dezembro 1884. PP. 99/100

.

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155

Anexo N 4

PROCESSO-CRIME CONTRA ESTANCIEIRO POR MORTE E MAUS-TRATOSDE ESCRAVOS

"0 Promotor interino da comarca usando do direito que lhe confere o art. 74 do

cód. do processo crime vem denunciar a Luis Antônio [...] natural desta província,

morador no 2° distrito deste termo, com a profissão de fazendeiro, preso na cadeia

civil desta vila, e à Irinea de Tal, mulher do mesmo Luis, pelos fatos que passo a

expor:

"Nos princípios do mês de maio próximo findo, estando Luis e sua mulher na

varanda de sua própria casa, castigando barbaramente uma sua escrava menor de

nome Maria, filha dos escravos Ignácio e Rosa, também de propriedade dos

acusados, munidos, Luis de um laço e Irinea de um pau, ambos deram tanta

pancada ria referida menor que não pode esta resistir a tão grande castigo, caindo

por terra sem sentido, nesta ocasião Irinea deu-lhe um pontapé reclamando: está

fingindo de morta, mas em seguida vendo que a menor Maria morria mesmo chamou por

Ignácio Antônio da Silva que viesse acudir a Maria e por ele foi dito depois de examiná-la que

ali nada mais tinha a fazer, como de fato poucos momentos depois faleceu Maria.

"Também mataram a fome a um outro menor livre de nome Francisco, irmão da

desventurada Maria, por que o denunciado Luis se prevalecendo de seu senhorio mandava

Rosa pastorear gado no campo todos os dias desde a manhã até a noite ficando o menor em

uma rede sem que Luis ou sua mulher lhe dessem ou mandassem dar alimento algum, que

só mamava de noite quando sua infeliz mãe voltava do campo, tantas vezes se repetiu este

fato de barbaridade que ultimamente secara o leite de Rosa. Francisco definhando aos

poucos, faleceu pela fome, sem que pudesse obter quer de seus pais, quer dos outros

escravos proteção alguma, pelo terror que tinham de seus senhores, tanto que as

escondidas foi o menor pouco antes de falecer batizado por uma escrava da casa para

não morrer pagão.

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"Todos os escravos dos denunciados são cruelmente tratados por seus senhores,

que os trás de baixo de pancadas e mortos de fome, sendo preciso de seus escravos

recorrerem aos vizinhos para matar sua fome.

"Há tempos Luis castigou um escravo de nome Adão de propriedade de seu irmão

Francisco, isto na própria casa deste, que o pôs num estado deplorável com as nádegas

toda retalhada e lançado sangue pela boca, depois atando-o sobre quatro estacas alto do

chão, cujo escravo foi socorrido por Leonardo Pitam, que o foi buscar para curá-lo em

casa o que não conseguiu levá-lo por que Adão se achava em estado tal que só pode

acompanhá-lo até a casa de Maximiano Rodrigues Gomes, vizinho mais perto, onde o deixou

e seu senhor depois o levou para casa.

"Ora, como os denunciados com tal procedimento tornaram-se criminosos para que

então sejam punidos o denunciado Luis com o máximo das penas do art. 193 do cód. crim.,

combinado com o art. 201 do mesmo cód. e Irenea com máximo do art. 193 do referido

cód. por terem corrido as circunstâncias agravantes do § 4°, 6° e 10°. 15° do art. 16 do

mesmo cód. O mesmo promotor vem dar a presente denuncia e oferece para testemunhas

Ignácio Antônio da Silva e Constança Rodrigues da Silva, Leonardo Pitam, Pedro

Schettert e como testemunha informante o escravo Ignácio dos denunciados e o escravo

Adão de Francisco dos Santos." Cruz Alta, 1° de junho de 1877. Promotor interino – Cícero

Melechiades de Figueiredo." (Cartório do Civil e Crime de Cruz Alta. APRS. Março 48. N°

1912)