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ano 2 | edição 2 | dez 2014 ISSN 2357‑7266 Esta segunda edição traz os artigos apresentados du‑ rante o IX Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, realizado em setembro de 2014, em Turim, Itália. Estão publicados também textos de autores que participaram de diferentes momentos desse encontro, como Moacir Gadotti, Paulo Roberto Padilha e Ângela Antunes, do Brasil; e Silvia Manfredi, da Itália.

PAULO FREIRE E A CULTURA CAIÇARA: a amorosidade no “cerco de saberes”

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O projeto “Cerco de saberes: construindo a Escola da Praia de Martim de Sá”é destinado à promoção de atividades diversificadas que contribuam com oprocesso de alfabetização e de letramento de crianças e adolescentes caiçaras.A comunidade escolhida é a que habita, há várias gerações, o território correspondenteà Reserva Ecológica da Juatinga, localizada em Paraty (RJ), Brasil.Apresentamos o relato da experiência num projeto de extensão universitáriaque busca valorizar os saberes caiçaras e promover a emancipação ante a movimentosexcludentes diferenciados que tornam essas comunidades tradicionaisbrasileiras vulneráveis e excluídas do atual modelo de desenvolvimento social.Tem‑sea preocupação de atender à demanda apresentada pela comunidadecaiçara para o desenvolvimento de um currículo diferenciado, que inclui círculosde cultura de processos alfabetizadores e de letramento. As atividades da Escolada Praia de Martin de Sá envolvem interação dialógica entre educadores e educandoscaiçaras, o que inclui atividades de Leitura do Mundo, produção escritae pesquisas em campo. O processo de alfabetização apoia‑sena valorização daidentidade caiçara, a começar pela reflexão sobre o nome das crianças e de suasfamílias e pelo reconhecimento da diversidade ecológica do lugar que habitamhá gerações; o letramento desenvolve‑secom base no fortalecimento da Leitura do Mundo caiçara, estimulando a escrita com referência aos saberes sobre o mare a natureza apresentados pelas crianças. Entre outros elementos, destacamos aamorosidade entre caiçaras, educadores e educandos como fator essencial paraa mobilização da equipe e colaboradores no enfrentamento das adversidadesque vêm impedindo a instalação de uma escola oficial.

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  • ano 2 | edio 2 | dez 2014

    ISSN 2357 7266

    Esta segunda edio traz os artigos apresentados durante o IX Encontro Internacional do Frum Paulo Freire, realizado em setembro de 2014, em Turim, Itlia. Esto publicados tambm textos de autores que participaram de diferentes momentos desse encontro, como Moacir Gadotti, Paulo Roberto Padilha e ngela Antunes, do Brasil; e Silvia Manfredi, da Itlia.

  • EXPEDIENTE

    Instituto Paulo FreirePaulo Freire

    Patrono

    Moacir Gadotti

    Presidente de Honra

    Alexandre Munck

    Diretor Administrativo Financeiro

    ngela Antunes,

    Francisca Pini e

    Paulo Roberto Padilha

    Diretores Pedaggicos

    Sheila Ceccon

    Coordenadora da UniFreire

    Editora e Livraria Instituto Paulo FreireJanaina Abreu

    Coordenadora Grfico EditorialAline Inforsato

    Identidade Visual, Projeto Grfico, Diagramao e Arte FinalJulio Talhari

    Revisor

    Emlia Silva

    Assistente Grfico EditorialAlmeck Lima

    Web Designer

    Participaram desta edioMoacir Gadotti

    Adriana Regina Sanceverino Losso

    Adriano Salmar Nogueira e Taveira

    Alice Akemi Yamasaki

    Amanda Motta Castro

    Ana Brbara da Silva Nascimento

    Ana Luiza de Frana S

    Ana Luiza Salgado Cunha

    Anderson dos Santos Romualdo

    ngela Antunes

    Anglica de Almeida Merli

    Antonina Ardito

    Aparecida Arrais Padilha

    Carlos Renato Carola

    Cezar Luiz De Mari

    Cristiani Freitas Ferreira

    der Jofre Marinho Arajo

    Edgar Pereira Coelho

    Eduardo Antonio Bonzatto

    Eduardo Santos

    Emillyn Rosa

    Francisca Eleodora Santos Severino

    Francisca Pini

    Geraldo M. Alves dos Santos

    Jaciara Carvalho

    Janaina Melques Fernandes

  • Janine Moreira

    Jhony Lucas Cavalcante da Silva

    Jos Genivaldo da Silva

    Leandro GaffoLigia de Carvalho Abes Vercelli

    Luana Manzione Ribeiro

    Luciana Pacheco Marques

    Luciana Souza Santos

    Marcelo Eusebio Mota

    Marcelo Loures dos Santos

    Mrcia Natlia Motta Mello

    Marisa de S. Thiago Rosa

    Maurcio Silva

    Paulo Arajo Neto

    Paulo Roberto Padilha

    Reinaldo Vicente da Costa Jnior

    Ricardo Papu Martins Monge

    Risomar Alves dos Santos

    Rita Diana de Freitas Gurgel

    Roberta Stangherlim

    Roseane Cunha

    Srgio Loureno Simes

    Sheila Ceccon

    Slvia Ester Orr

    Silvia Maria Manfredi

    Sonia Couto Souza Feitosa

    Vanessa Marcondes de Souza

    Virgnia Silva

    Willer Araujo Barbosa

  • IX Encontro Internacional do Frum Paulo Freire

    Esta edio da Revista UniFreire compartilha artigos cujos contedos inspiraram conferncias, minicursos e Crculos de Cultura do IX Encontro Internacional do Frum Paulo Freire, realizado de 17 a 20 de setembro de 2014, em Turim, Itlia.

    O I Encontro Internacional do Frum Paulo Freire foi realizado no final da dcada de 1990, e os demais vm se realizando em intervalos bienais. O Frum constitui um espao de encontro para todos aqueles que se identificam com o pensamento freiriano: a rede de institutos (atualmente radicada nos cinco continentes, a UniFreire, os centros de estudo e pesquisa e as ctedras que compem a rede freiriana no mundo. A Itlia havia hospedado o II Encontro Internacional, em Bolonha, no ano 2000, e o fez pela segunda vez, organizando o na cidade de Turim, por meio do Instituto Paulo Freire Itlia. O legado do educador brasileiro Paulo Freire (1921 1997) est sendo atualizado e reinventado em diferentes pases, de modo a ampliar e dar continuidade a muitas das contribuies que ele construiu ao longo de sua vida. O movimento educacional freiriano hoje muito diversificado, mas continua vinculado aos movimentos sociais que tm por objetivo lutar contra a opresso, pela busca da justia social e pela construo dos direitos civis e democrticos. Na Itlia, como em outros pases, so numerosas e significativas as experincias educacionais e de animao sociocultural que expressam posies crticas diante dos problemas da atualidade e que, compartilhando dos princpios da pedagogia freiriana, procuram reinvent la, recriando a. Por essa razo, o Encontro Internacional do Frum Paulo Freire de 2014 foi pensado e planejado por organizaes, grupos e indivduos que atuam em situaes e contextos em que as formas de injustia e excluso, geradas pelos processos de globalizao neoliberal, so mantidas e reforadas, ainda que escamoteadas.

    O Instituto Paulo Freire Itlia se props a construir com associaes, grupos, movimentos e indivduos da sociedade civil, caminhos de reflexo para a busca de novas alternativas terico prticas orientadas para o desenvolvimento social, econmico, cultural, educacional e sustentvel. A organizao do IX Encontro Internacional refletiu essa inteno, estimulando a reflexo, o dilogo e o compartilhamento de experincias e prticas comuns, orientadas por uma perspectiva de emancipao e de construo de alternativas.

  • SUMRIO

    A MEDIAO NA PRTICA PEDAGGICA DA EDUCAO

    DE JOVENS E ADULTOS: CAMINHOS DE EMANCIPAO

    Adriana Regina Sanceverino Losso

    PAULO FREIRE E A CULTURA CAIARA: A AMOROSIDADE

    NO CERCO DE SABERES

    Alice Akemi Yamasaki, Vanessa Marcondes de Souza e Ricardo Papu Martins Monge

    EDUCAO POPULAR E ESTUDOS FEMINISTAS:

    PROBLEMATIZANDO A PRODUO DE TECELS

    Amanda Motta Castro

    TEORIA DA DIALOGICIDADE DE PAULO FREIRE: A EDUCAO

    BANCRIA NA ERA DOS TRANSTORNOS DE APRENDIZAGEM

    Ana Luiza de Frana S, Slvia Ester Orr, Ana Brbara da Silva Nascimento, Roseane Paulo Cunha, Virgnia Silva

    LER E RELER O MUNDO: CONSTRUIR UM OUTRO MUNDO POSSVEL

    ngela Antunes

    FORMAO CONTINUADA EM SERVIO DE PROFESSORAS DA

    EDUCAO INFANTIL: UMA PESQUISA INTERVENO EM ESCOLA DO MUNICPIO DE SO PAULO

    Anglica de Almeida Merli e Roberta Stangherlim

    PAULO FREIRE EDUCATORE INTERCULTURALE

    Antonina Ardito

    A BONITEZA DO OLHAR INFANTIL NA PERSPECTIVA EMANCIPADORA:

    ENSINAR E APRENDER EM DILOGO COM OS SABERES DAS CRIANAS

    Aparecida Arrais Padilha

    9

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    23

    29

    36

    48

    54

    62

  • PEDAGOGIA ANTROPOCNTRICA VERSUS ECOPEDAGOGIA:

    A RUPTURA NECESSRIA PARA UMA EDUCAO LIBERTADORA

    Carlos Renato Carola

    PRTICAS DE EDUCAO POPULAR NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIOSA

    Cezar Luiz De Mari, Edgar Pereira Coelho, Geraldo M. Alves dos Santos, Marcelo Loures dos Santos, Ana Luiza Salgado Cunha e Willer Araujo Barbosa

    A IMPORTNCIA DE VIVNCIAS NA FORMAO CONTINUADA PARA O

    PROCESSO DE CONSCIENTIZAO DE PROFESSORES QUE DESENVOLVEM

    A EDUCAO PARA A SUSTENTABILIDADE NA ESCOLA

    Cristiani Freitas Ferreira

    O USO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAO E COMUNICAO

    (TICS) NO PROCESSO DE ALFABETIZAO DE JOVENS E ADULTOS PARA A INCLUSO SOCIAL

    der Jofre Marinho Arajo, Rita Diana de Freitas Gurgel, Jhony Lucas Cavalcante da Silva, Marcelo Eusebio Mota

    PROJETO ESTAES ORQUDEA: UNIDADES PERMACULTURAIS

    BIODINMICAS APRENDIZADO, PESQUISA, TRANSDISCIPLINARIDADEEduardo Antonio Bonzatto, Leandro Gaffo e Luana Manzione Ribeiro

    PLANEJAMENTO DEMOCRTICO COM CRIANAS 0 A 3 ANOS

    Emillyn Rosa, Francisca Eleodora Santos e Adriano Salmar Nogueira e Taveira

    A EDUCAO POPULAR EM DIREITOS HUMANOS NO PROCESSO

    DE ALFABETIZAO DE JOVENS, ADULTOS E IDOSOS: UMA

    EXPERINCIA DO PROJETO MOVA BRASILFrancisca Pini, Jos Genivaldo da Silva e Paulo Arajo Neto

    UMA ABORDAGEM FREIRIANA PARA A EDUCAO A DISTNCIA

    Jaciara Carvalho

    AS RELAES DEMOCRTICAS NO RECREIO:

    PROCESSOS DE TRANSFORMAO DO COTIDIANO

    Janaina Melques Fernandes e Francisca Eleodora Santos Severino

    69

    78

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    98

    105

    111

    125

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  • EDUCAO LIBERTADORA E LIBERDADE EXISTENCIALISTA: UM ENCONTRO ENTRE JEAN PAUL SARTRE E PAULO FREIREJanine Moreira e Marisa de S. Thiago Rosa

    FORMAO DO ALUNO PESQUISADOR POR MEIO DA

    EXTENSO UNIVERSITRIA: UMA EXPERINCIA

    EMANCIPADORA E TRANSFORMADORA

    Ligia de Carvalho Abes Vercelli e Amanda Maria Franco Liberato

    PAULO FREIRE E A EDUCAO INCLUSIVA

    Luciana Pacheco Marques e Anderson dos Santos Romualdo

    A UTOPIA EM PAULO FREIRE E O PARADIGMA DA INCLUSO

    Luciana Pacheco Marques e Anderson dos Santos Romualdo

    A TRANSPOSIO DIDTICA E O BOM ENSINO DE HISTRIA:

    POSSIBILIDADE DE AUTONOMIA DOS DOCENTES E DISCENTES

    Luciana Souza Santos e Mrcia Natlia Motta Mello

    AS QUESTES TNICO RACIAIS E A UNIVERSIDADE BRASILEIRA: UMA PROPOSTA DE ESTUDO DAS AES AFIRMATIVAS LUZ DA REFLEXO

    FREIRIANA ACERCA DA EDUCAO POPULAR

    Maurcio Silva

    50 ANOS DEPOIS COMO REVERTER O GOLPE NA EDUCAO POPULAR

    Moacir Gadotti

    MSICA E EDUCAO: EDUCANDO EM TODOS OS CANTOS

    Paulo Roberto Padilha

    CONTEXTURA DE CRISES E DIALOGAO: O LEGADO DA

    RADICALIDADE CRTICA DE PAULO FREIRE PARA O DEBATE

    EM EDUCAO SUPERIOR POPULAR

    Reinaldo Vicente da Costa Jnior

    140

    147

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    160

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  • PAULO FREIRE E A FORMAO DOCENTE: DESPERTANDO A CRITICIDADE

    Risomar Alves dos Santos

    AES EMPREENDIDAS NA EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS

    EM ANGICOS: 50 ANOS DEPOIS DAS 40 HORAS

    Rita Diana de Freitas Gurgel e der Jofre Marinho Arajo

    EDUCAO DAS CRIANAS PEQUENAS:

    A FORMAO DOS PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA

    Roberta Stangherlim, Ligia de Carvalho Abes Vercelli e Eduardo Santos

    O DISCURSO POLTICO IDEOLGICO DE FREIRE E SUA RELAO COM O OPRIMIDO

    Srgio Loureno Simes

    A EDUCAO AMBIENTAL EM DILOGO COM OS

    PRINCPIOS DE PAULO FREIRE

    Sheila Ceccon

    A MATRIZ FREIRIANA DE EDUCAO PROBLEMATIZADORA

    RECRIADA NAS PRTICAS DE EDUCAO SINDICAL

    Silvia Maria Manfredi

    DAS GRADES S MATRIZES CURRICULARES PARTICIPATIVAS

    DA EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS

    Sonia Couto Souza Feitosa

    ROMPENDO COM A MASSIFICAO DAS PRTICAS DE ENSINO

    UM OLHAR ESPERANOSO PARA OS EDUCANDOS COM AUTISMOVirgnia Silva, Roseane Cunha, Ana Brbara da Silva Nascimento, Slvia Ester Orr e Ana Luiza de Frana S

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  • 9A MEDIAO NA PRTICA PEDAGGICA DA EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS: caminhos de emancipao

    ADRIANA REGINA SANCEVERINO LOSSO1

    RESUMO

    Este trabalho resulta das reflexes empreendidas em projeto de iniciao cientfica acerca da categoria mediao na prtica pedaggica da Educao de Jovens e Adultos (EJA), com destaque para o processo de ensino e aprendizagem dessa modalidade de ensino. Estabelece como substrato da reflexo a proposio da categoria mediao para o papel do conhecimento, tendo como situao limite o pensar da EJA para a educao inclusiva. O projeto, em fase inicial, continuidade de pesquisa de doutorado, defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos RS). Problematiza a relao ensino e aprendizagem e o carter mediador presente na relao que se estabelece entre o conhecimento sistematizado pelas cincias naturais e sociais e aquele desenvolvido pelo aluno no seu cotidiano. Trata se de um estudo de abordagem qualitativa, no qual se desenvolve uma reviso terica, contingenciada por observaes empricas em escolas de EJA, em rede pblica municipal de Erechim (RS), Brasil, com recorte para o ensino fundamental. Para a anlise e interpretao dos dados, recupera se a perspectiva hermenutico dialtica por considerar que sob essa perspectiva possvel apreender a dimenso prtica e as dimenses histricas em que se elaboram as mediaes. Como aporte terico, emprega se leituras iniciais que demarcaram a compreenso histrica e metodolgica da categoria mediao, que tiveram como base a dialtica marxista tangenciadas por referenciais que aproximam tal categoria com o campo da Educao. Sobretudo, na obra de Freire que se busca a sustentao do trabalho.

    1. Possui graduao em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (1991), mestrado em Educao e Cultura pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2004) e doutorado em Educao pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2012). Atualmente professora adjunta da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), atuando nas seguintes frentes de trabalho: membro do comit de laboratrios de docncia, membro integrante do Ncleo Docente Estruturante (NDE), coordenadora de estgios do curso de Pedagogia, membro integrante da comisso domnio conexo, coordenadora adjunta do Projeto de Extenso da Ao 20RJ MEC/FNDE. Tem experincia na rea de Educao, com nfase em educao superior, ensino fundamental, educao infantil e Educao de Jovens e Adultos (EJA), atuando principalmente nos seguintes temas: Educao Popular, didtica, teorias da educao, prtica de ensino e mediao pedaggica. Contato: [email protected].

  • 10

    PALAVRAS CHAVE:

    EJA, mediaes pedaggicas, processos de ensino, aprendizagem.

    ABSTRACT

    This essay is the result of reflections over a scientific introduction project about mediation on the pedagogical practice to the Youth and Adults Education (Educao de Jovens e Adultos EJA), with emphasis to the teaching and learning process of this tool. It is established as a basis to reflection on the proposal of the category mediation to the role it plays on knowledge, having as a limit situation the EJA vision to the inclusive education. The project, which is in its first phase, aims to continue the doctors project presented at Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos RS). It concerns to teaching and learning issues and the mediation nature found in the relation between systematic learning in the natural and social sciences and the one developed by the students in their daily routine. This is a qualitative research in which a theoretical revision is developed through empirical observations in EJA schools that belongs to a municipal public schools network in Erechim (RS), Brazil, focused on Elementary School. For data analysis and interpretation a hermeneutic dialectic perspective is recovered for considering that, under this perspective, it is possible to comprehend the practical and historical dimensions in which the mediations are developed. As theoretical framework, is employed initial readings that have marked the historical and methodological understanding of mediation category, which were based on Marxist dialectics related to frameworks that approaches this category in the Education field. Above all, the Freires oeuvre support this project.

    KEYWORDS

    EJA, pedagogical mediation, teaching processes, learning.

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    JUSTIFICATIVA

    Na atualidade, os(as) professores(as) convivem com uma srie de dilemas e indagaes quanto sua funo de ensinar. H uma grande e expressiva quantidade de produes e propostas educacionais apontando para a necessidade de um redimensionamento das prticas desenvolvidas nas instituies educacionais.

    Porm, o processo no bem como alguns tericos e tcnicos propagam; no basta a elaborao de propostas bem fundamentadas para mudar os paradigmas presentes na educao. H toda uma cultura docente construda para lidar com as situaes que o cotidiano suscita e que deve ser considerada. Essa constatao corroborada por pesquisas atuais sobre a formao e atuao docente, nas quais se destaca a funo e participao dos professores como fundamental.

    Na Educao de Jovens e Adultos (EJA) tambm se tem buscado amparo em novos paradigmas tericos e pedaggicos. Dentre eles, destacam se as propostas baseadas num processo didtico no qual o professor no se reduz a um mero repassador de conhecimentos, mas se coloca como um mediador, instigador e problematizador. As atividades compartilhadas so enfatizadas, e a avaliao considerada no mais como uma constatao e classificao, mas, sim, uma possibilidade de redimensionamento constante da aprendizagem e do ensino.

    As questes que podem permear essas propostas que legitimam uma didtica para a EJA com base numa prxis educativa como prxis poltica (FREIRE, 1987) e que, num determinado tempo e espao, estabelecem os vnculos necessrios dentro de um quadro cultural de problematizao dessa mesma cultura ganham fora porque essa problematizao no neutra, envolve todos os homens e mulheres que produzem cultura e, dialeticamente, a tm introjetada.

    A prtica docente, caracterizada pelas mediaes pedaggicas na modalidade EJA, realizada pelos professores para lidar com as exigncias e urgncias do cotidiano, constitui o foco deste estudo. A caracterizao da multiplicidade conceitual de mediao complexa (simblica, cultural, social, epistemolgica e pedaggica). Suas tipologias mediativas constituem um campo que heterogneo, uma vez que a cultura humana multifacetada. Envolve a transmisso de cdigos culturais, valores e normas e tambm constitui uma dimenso educativa porque atua sobre as habilidades cognitivas dos sujeitos. Vai alm de uma simples interao porque movimento transformador, modificador e construtor da pessoa. H, portanto, uma abrangncia genrica e especfica. Isso posto, a mediao caracteriza se como possuidora tanto de uma axiologia quanto de uma dimenso afetiva.

    Assim, esta pesquisa procura identificar os princpios que esto, predominantemente, configurando o carter mediador que sustenta o modo como os professores da EJA explicam a realidade e fundamentam as prticas que desenvolvem com os alunos nessa modalidade de ensino. Nesse percurso, destacam se, com base em seus surgimentos, os construtos de mediao, trazendo os para o centro da discusso. Por esse caminho, a hiptese central com a qual temos trabalhado a de que havendo uma compreenso reducionista da categoria

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    mediao a prtica pedaggica perde em complexidade, uma vez que se no h mediao no sentido pleno, a aprendizagem no se realiza. E na EJA, esse quadro se agrava, na medida em que o contingente que constitui a EJA se define pela histria de privao e de cerceamento do acesso aos bens culturais, sociais e econmicos que poderiam garantir lhes os benefcios decorrentes de sua pertena a uma sociedade afluente. Privados dos conhecimentos aplicados e atualizaes requeridas, esses sujeitos tornam se ainda mais vulnerveis s novas formas de excluso.

    OBJETIVOS

    Esta pesquisa problematiza o sentido de mediao que responde mais adequadamente complexidade da EJA e como tais mediaes criam condies de desenvolver o pensamento crtico dos estudantes e a prxis educativa nessa modalidade de ensino. E, nesse sentido, objetiva investigar as circunstncias e condies necessrias para que se processem as mediaes nas situaes de ensino (processo de ensino) que potencializam, para o aluno, a aprendizagem do contedo trabalhado (processo de aprendizagem).

    PROCEDIMENTOS

    O conceito de mediao compreende tanto as apropriaes e interseces entre cultura, poltica e fenmeno educacional quanto as apropriaes, recodificaes e ressignificaes particulares dos receptores. Entretanto, h os que a definem como tudo aquilo que interfere na forma como percebemos e entendemos o mundo. A lente pela qual lanamos nosso foco de ateno a mediao articulada com o campo educativo da EJA, como uma atividade especificamente humana, constituda na complexidade das relaes sociais. O argumento central sustentase no entendimento de que a mediao pedaggica no qualquer atividade, uma prxis desenvolvida com finalidade uma postura ante o mundo.

    Trata se de um estudo de abordagem qualitativa, no qual se desenvolve uma reviso terica baseada em observaes empricas nas escolas de EJA do ensino fundamental da rede pblica municipal do estado do Rio Grande do Sul, na anlise de documentos, na aplicao de questionrio, na realizao de entrevistas semiestruturadas e na participao em reunies. Para anlise e interpretao dos dados, recupera se a perspectiva hermenutico dialtica por se considerar que por essa perspectiva possvel apreender a dimenso prtica e as dimenses histricas em que se elaboram as mediaes. Utiliza se a anlise de contedo numa perspectiva crtica e qualitativa.

    Nesse sentido, para pensar a mediao, recorreremos a alguns estudiosos do tema que, cada um a seu modo, podem contribuir para o nosso objetivo. Emprega se leituras que demarcaram a compreenso histrica da categoria mediao com base na dialtica marxista: Lefebvre, Heller, Mszros, Lukcs, Vygotsky, entre outros.

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    Utiliza se, tambm, referenciais que aproximam essa categoria com o campo da Educao, como Almeida e Duarte, entre outros. E uma (re)leitura mais atenta da obra de Boaventura de Sousa Santos e, sobretudo, de Paulo Freire. O reencontro com a Pedagogia do oprimido, a Pedagogia da esperana e, principalmente, a Pedagogia da autonomia, e o encontro de Freire com Ira Shor, demarcou uma outra compreenso de suas ideias e fortaleceu a ousadia de buscar em Paulo Freire a sustentao desta pesquisa.

    RESULTADOS PARCIAIS

    Compreender essa realidade, isto , como o ser social se articula nesse contexto, condio importante para entender as mediaes nas atividades humanas. Isso possibilitar, talvez, pensar e projetar uma educao de jovens e adultos mais coerente com as verdadeiras condies de existncia dos sujeitos que convivem nesses espaos educativos. Embora a temtica tenha surgido com referncia nas diversas manifestaes das atividades presentes na prtica pedaggica, o enfoque aqui busca ampli lo, admitindo que o seu desvelamento, dada a sua extrema complexidade, operao das mais difceis.

    Outrossim, os resultados parciais da pesquisa, em fase inicial, apontam para o alcance de algumas demandas que se pretende, como: oportunizar o contato esclarecedor e reflexivo sobre o tema por meio do envolvimento e aprofundamento em termos de estudos e pesquisas; aprofundar os conhecimentos da categoria mediao para servirem de base na direo de discusses e debates que propiciem o avano e a socializao de tal categoria para a prtica pedaggica da EJA; levar ao conhecimento escolar os conceitos sobre mediao como categoria central, e insuprimvel nas demandas da EJA, a ser analisada e refletida; despertar a sensibilidade de profissionais da educao e alunos para a temtica da mediao no intento de contribuir para o desenvolvimento de uma prtica pedaggica que se constitui de uma complexidade e especificidade pedaggica.

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    REFERNCIAS

    ALMEIDA, Jos Luiz Vieira de. A mediao como fundamento da didtica. In: REUNIO ANUAL DA ANPED, 25, Caxambu, 2002. Anais...Caxambu: Associao Nacional de Ps Graduao e Pesquisa em Educao, 2002.

    CURY, C. R. J. Diretrizes curriculares nacionais para a educao de jovens e adultos. Conselho Nacional de Educao. Cmara de Educao Bsica. Parecer n.11/2000. Braslia, 2000. Disponvel em: . Acesso em: 24 fev. 2009.

    DUARTE, Newton. A individualidade para si: contribuio a uma teoria histrico social da formao do indivduo. Campinas: Autores Associados, 1993.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

    ______. Pedagogia da esperana: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio Janeiro: Paz e Terra, 1992.

    ______. Educao de adultos: algumas reflexes. In: GADOTTI, Moacir; ROMO, Jos E. (orgs.). Educao de Jovens e Adultos: teoria, prtica e proposta. So Paulo: Cortez, 1995.

    ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo: Paz e Terra, 1996.

    ______; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Trad. de Adriana Lopez. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1986.

    HADDAD, S. O estado da arte das pesquisas em educao de jovens e adultos no Brasil (1986 1998). So Paulo: Ao educativa, 2000.

    HELLER, Agnnes. O cotidiano e a histria. Trad. de Carlos N. Coutinho e Leandro Konder. So Paulo: Paz e Terra, 2008.

    KOSIK, K. Dialtica do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

    LEFEBVRE, Henri. Sociologia de Marx. Trad. de Carlos Roberto Alves Dias. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1979.

    LOSSO, Adriana R. S. Os sentidos da mediao na prtica pedaggica da Educao de Jovens e Adultos. 369f. Tese (Doutorado em Educao) Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), So Leopoldo, 2012.

  • 15

    LUDKE, H.; ANDR, M. Pesquisa em educao: abordagens qualitativas. So Paulo: EPU, 1986.

    MSZROS, Istvn. A crise estrutural do capital, Outubro, n. 4, So Paulo, 2000.SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as cincias revisitado. 2 ed. So Paulo: Cortez, 2006.

    VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. 7 ed. So Paulo: cone, 2001.

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    PAULO FREIRE E A CULTURA CAIARA: a amorosidade no cerco de saberes

    ALICE AKEMI YAMASAKI2

    VANESSA MARCONDES DE SOUZA3

    RICARDO PAPU MARTINS MONGE4

    RESUMO

    O projeto Cerco de saberes: construindo a Escola da Praia de Martim de S destinado promoo de atividades diversificadas que contribuam com o processo de alfabetizao e de letramento de crianas e adolescentes caiaras. A comunidade escolhida a que habita, h vrias geraes, o territrio correspondente Reserva Ecolgica da Juatinga, localizada em Paraty (RJ), Brasil. Apresentamos o relato da experincia num projeto de extenso universitria que busca valorizar os saberes caiaras e promover a emancipao ante a movimentos excludentes diferenciados que tornam essas comunidades tradicionais brasileiras vulnerveis e excludas do atual modelo de desenvolvimento social. Tem se a preocupao de atender demanda apresentada pela comunidade caiara para o desenvolvimento de um currculo diferenciado, que inclui crculos de cultura de processos alfabetizadores e de letramento. As atividades da Escola da Praia de Martin de S envolvem interao dialgica entre educadores e educandos caiaras, o que inclui atividades de Leitura do Mundo, produo escrita e pesquisas em campo. O processo de alfabetizao apoia se na valorizao da identidade caiara, a comear pela reflexo sobre o nome das crianas e de suas famlias e pelo reconhecimento da diversidade ecolgica do lugar que habitam h geraes; o letramento desenvolve se com base no fortalecimento da Leitura

    2. Docente da Faculdade de Educao da Universidade Federal Fluminense (UFF Niteri, Rio de Janeiro, Brasil) e coordenadora do projeto de extenso Cerco de saberes: construindo a Escola da Praia de Martim de S. Contato: [email protected].

    3. Doutoranda no Programa de Ps Graduao em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Eicos), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ Rio de Janeiro, Brasil) e coordenadora adjunta do projeto de extenso Cerco de saberes: construindo a Escola da Praia de Martim de S. Contato: [email protected].

    4. Doutorando no Programa de Ps Graduao em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF Niteri, Rio de Janeiro, Brasil) e coordenador adjunto do projeto de extenso Cerco de saberes: construindo a Escola da Praia de Martim de S. Contato: [email protected].

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    do Mundo caiara, estimulando a escrita com referncia aos saberes sobre o mar e a natureza apresentados pelas crianas. Entre outros elementos, destacamos a amorosidade entre caiaras, educadores e educandos como fator essencial para a mobilizao da equipe e colaboradores no enfrentamento das adversidades que vm impedindo a instalao de uma escola oficial.

    PALAVRAS CHAVE

    Educao caiara, educao emancipatria, saberes caiaras.

    ABSTRACTThe project Cerco de Saberes: building the School of Martim de S Beach was designed to promote diversified activities that can contribute to the process of literacy of caiaras children and adolescents. The traditional community chosen is the one that inhabits, for generations, the territory corresponding to the protected area Reserva Ecolgica da Juatinga (REJ), situated in Paraty (RJ), Brazil. This article presents a report about the experience of a university extension project that seeks to enhance the caiaras knowledge and promote the empowerment of that traditional community facing different exclusionary movements that make them vulnerable and excluded from the current Brazilian model of social development. It has the concern to attend the demand presented by the caiara community to develop a differentiated curriculum that includes culture circles with the development of literacy activities. The activities of the School of Martim de S Beach involve dialogic interaction between educators and caiaras learners, including the world reading, writing production and field research activities. The literacy process relies on the enhancement of the caiara identity, starting with the reflection about the children and their families names, and also on the recognition of the ecological diversity of the place that they inhabit for generations. The literacy was developed based on the strengthening of the caiara world reading, stimulating a writing based on the knowledge about the sea and the nature presented by the children. Among other things, we highlight the amorousness among caiaras, educators and students as an essential factor to mobilize the team and all collaborators to face the adversities that have been impeding the installation of an official school in the community.

    KEYWORDSCaiara education, emancipatory education, caiara knowledge.

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    E porque lido com gente, no posso, por mais que, inclusive, me d prazer entregar me reflexo terica e crtica em torno da prpria

    prtica docente e discente, recusar a minha ateno dedicada e amorosa problemtica mais pessoal deste ou daquele aluno ou aluna. Desde

    que no prejudique o tempo normal da docncia, no posso fecharme a seu sofrimento ou sua inquietao porque no sou terapeuta

    ou assistente social. Mas sou gente (FREIRE, 1996, p. 91).

    A regio atendida pelo projeto de extenso universitria Cerco de saberes: construindo a Escola da Praia de Martim de S faz parte da pennsula da Juatinga, no municpio de Paraty(RJ), e abriga diversos ncleos de moradores caiaras. Seu lugar so as comunidades de Martim de S, Rombuda, Saco das Anchovas e Cairuu das Pedras e localizam se na poro sul da pennsula.

    Essas comunidades caiaras so as mais isoladas do centro urbano mais prximo, a cidade de Paraty, com acesso exclusivo por via martima e/ou trilhas acidentadas e ngremes em meio floresta, pois no h acesso por rodovias. A justificativa para o desenvolvimento da presente experincia decorre do fato de que, h quase dez anos, parte da equipe (MONGE, 2008, 2012 e 2013) vem interagido diretamente com o lugar onde vivem os caiaras: inicialmente, reconheceu se a relao de amorosidade dos sujeitos caiaras com a natureza, sua interao respeitosa com a ambincia do mar e das matas; posteriormente, em estudo sistemtico sobre a pesca com o cerco flutuante (MONGE, 2008) e sobre a ocupao da Famlia dos Remdios na Reserva Ecolgica da Juatinga (REJ) (MONGE, 2012), identificaram se diversos saberes e fazeres caiaras. Na interao intensa de pesquisa participante, a Famlia dos Remdios expressou a preocupao com o futuro das novas geraes diante dos mecanismos excludentes que estavam cada vez mais evidentes na relao dos caiaras com o poder econmico estabelecido na cidade de Paraty. Uma das alternativas que poderia proteger as novas geraes estava na promoo de uma educao que respeitasse e valorizasse a cultura caiara. Sem apoio formal do poder pblico local, foi um estudo acadmico prvio (MONGE, 2013) sobre um sistema de complexo curricular (PISTRAK, 1981) que justificou a apresentao deste projeto de extenso universitria. O estudo esteve apoiado no trabalho caiara, mediante vrios encontros e dilogos realizados com a comunidade de adultos e de crianas, sempre recheados de um profundo respeito e de uma amorosidade por Martim de S.

    Outro aspecto que justifica a realizao do projeto de extenso relaciona se ao fato de, nas ltimas dcadas, os moradores terem encontrado uma srie de dificuldades e conflitos que ameaam a sua permanncia no local e a preservao da cultura caiara, especialmente problemas relacionados especulao imobiliria e promoo de atividades tursticas depredatrias e desrespeitosas aos moradores e preservao do ambiente local. Apesar de no ter alcanado diretamente os ncleos de moradores da REJ, a construo da estrada Rio Santos, na dcada de 1970, e as transformaes socioeconmicas na regio passaram a impactar de modo acelerado as tradies caiaras com a chegada do turismo ecolgico, da urbanizao do litoral de Paraty, da especulao imobiliria, da grilagem de terras e

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    das novas regras das unidades de conservao ambientais. Os caiaras dessa regio sul da pennsula da Juatinga enfrentam tambm a falta de servios essenciais, como escolas, postos de sade, coleta de lixo e acesso energia eltrica. As comunidades do Sono, da Praia Grande e de Martim de S, por exemplo, passaram a sofrer com aes judiciais de despejo. Durante a dcada de 1950, na Praia Grande, havia mais de 200 habitantes. Atualmente, em 2014, vivem duas famlias. A maioria da comunidade adulta caiara remanescente , ainda hoje, no letrada; nunca tiveram acesso educao formal, portanto, so pessoas no alfabetizadas.

    A reivindicao de ser caiara usada pelo prprio habitante do litoral, numa atitude de reconstruo e de fortalecimento de sua identidade cultural (VIANNA, 2008). O ser caiara refere se ao fato de ser nascido e criado no lugar: tem relao com as atividades que realizam, o modo de falar, a alimentao e ainda a descendncia indgena e a conservao da natureza (MONGE, 2012). A Famlia dos Remdios, cujo patriarca o sr. Maneco, um grupo tradicional e est no seu lugar h pelo menos seis geraes (h quatro delas ainda vivas). Como ressaltado por Luiz Silva (2004), mar e terra constituem um referencial nico, indivisvel para o caiara, base sobre a qual se assenta seu modo de vida, sua tradio cultural. A Famlia dos Remdios consorcia diversas atividades e estratgias, como prticas de coleta de baixo impacto ambiental no mar e em terra, e possuem uma vasta gama de conhecimentos associados s atividades que realizam intimamente ligados biodiversidade. Dentre os conhecimentos sobre a floresta, possvel identificar saberes sobre o uso de ervas medicinais, cascas de rvores teis para a impermeabilizao das redes de pesca e o manejo de cips para o artesanato. Possuem tambm conhecimentos relacionados tradio da roa, que num passado no muito distante era a principal atividade de subsistncia (MONGE, 2012). No que se refere ao mar, possuem diversos saberes sobre a pesca, a construo de embarcaes e seu deslocamento em alto mar. Com relao pesca, dominam seus vrios tipos, reconhecem o comportamento dos peixes e identificam os pesqueiros mais adequados para cada tipo de coleta. Com respeito construo de embarcaes, acumulam saberes sobre a confeco da canoa retirada de tronco nico, tpica na regio; alm disso, manuseiam motores de barco e fazem sua manuteno. Quanto ao deslocamento em alto mar, reconhecem as condies de navegabilidade, sua relao com as fases da lua e com as condies climticas. Finalmente, apropriaram se da confeco do cerco flutuante, uma arte de pesca de baixo impacto ambiental, na qual toda a famlia participa: homens, mulheres e crianas. Considerando que a pesca com o cerco flutuante uma das principais atividades dessa regio e que os saberes exigidos para a sua construo e manuseio, entre os vrios membros da famlia, alcanaram hoje um significativo papel na construo da identidade caiara da Juatinga, nomeou se o presente projeto de extenso universitria de Cerco de saberes. Reconhece se, assim, a existncia de saberes das comunidades tradicionais caiaras sobre o mar e sobre a floresta e, como objetivo geral, busca se a valorizao de tais conhecimentos mediante a promoo de uma educao emancipatria, que permita o enfrentamento dos diferentes movimentos excludentes que tornam essas comunidades tradicionais brasileiras vulnerveis e marginalizadas no atual modelo de desenvolvimento

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    social. Os objetivos especficos do projeto de extenso buscam contribuir com a comunidade caiara da pennsula da Juatinga no fortalecimento e afirmao de seus saberes e de sua cultura local, ao promover um processo alfabetizador que considere a diversidade humana e ambiental, por meio da introduo do universo de letramento em sintonia com os saberes da cultura caiara. possvel tambm afirmar que o sistema de complexos caiara (PISTRAK, 1981) aborda temas sobre conhecimentos cientficos e scio histrico ambientais que, com o apoio da leitura e da escrita, evidenciam a leitura e os saberes caiaras sobre a roa, o pescar, o caar, o uso e o conserto de barco e de motor de barco, a construo e o uso de canoa. Diante tambm da realidade conflituosa em que esses caiaras vivem para garantir a permanncia no seu lugar, importante que a educao e o processo alfabetizador contemplem conhecimentos sobre as questes socioambientais e as questes fundirias do pas.

    Entre os princpios e procedimentos adotados para a formulao do projeto de extenso, encontra se a realizao de encontros dialgicos entre educadores, pais e outros membros da Famlia dos Remdios. Tais dilogos, alm de operacionalizar a escola, torna vivel construir um outro mundo possvel, encorajando caiaras a buscar e a exigir seus direitos e desejos de acesso ao conjunto de bens e servios disponveis na sociedade, bem como exercer seus deveres de forma consciente. Ainda como parte dos procedimentos para materializar a Escola da Praia de Martim de S, diferentes sujeitos que circulam pela REJ foram envolvidos, o que mobilizou e viabilizou a produo da arte de camisetas e de materiais didticos, alm de garantir a arrecadao de livros e de materiais necessrios ao trabalho pedaggico da escola diferenciada. Da parte dos caiaras adultos, contou se com o transporte dos educadores e com o apoio logstico para alojamento e alimentao.

    Os resultados alcanados trazem uma escola instalada na Casa de Farinha de Martin de S, construda pelo sr. Maneco e seus familiares caiaras. O incio das atividades de alfabetizao e de letramento demonstrou a rede solidria existente com a REJ e com a Famlia dos Remdios e a amorosidade afirmada por Paulo Freire (1996, p. 75):

    preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerncia, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade mudana, persistncia na luta, recusa aos fatalismos, identificao com a esperana, abertura justia, no possvel a prtica pedaggico progressista, que no se faz apenas com cincia e tcnica.

    As atividades da Escola da Praia de Martin de S ocorrem em Crculos de Cultura, com interao dialgica entre educadores e educandos caiaras, com pesquisas em campo como parte das atividades curriculares. O processo de alfabetizao apoia se na valorizao da identidade caiara, a comear pela reflexo sobre o nome das crianas e da prpria famlia e sobre o lugar que habitam h geraes; o letramento desenvolve se com base no fortalecimento da Leitura do Mundo caiara, com estmulo na escrita baseada nos saberes apresentados pelas crianas.

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    Ainda apoiado nos saberes caiaras sobre a pesca, confeccionamos um varal com o alfabeto caiara: por exemplo, na letra Z do abecedrio temos o zangareio, que um anzol/isca utilizado para a pesca de lula. A inspirao para enfrentar as adversidades na instalao de uma escola em Martim de S apoia se em Paulo Freire (1996, p. 4), que afirma:

    a convivncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca os a se assumirem enquanto sujeitos scios histricos culturais do ato de conhecer, que ele pode falar do respeito dignidade e autonomia do educando. Pressupe romper com concepes e prticas que negam a compreenso da educao como uma situao gnoseolgica.

    Por meio de uma educao amorosamente progressista, que leva em considerao a cultura caiara e os conflitos existentes na regio, o processo de educao libertadora freiriana pode vir a contribuir para o desenvolvimento territorial e a incluso social, uma vez que a comunidade fortalecida em seus saberes com os novos conhecimentos adquiridos sobre a escrita e a leitura.

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    REFERNCIAS

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

    MONGE. Ricardo Papu Martins. Pesca com rede de cerco flutuante na Reserva Ecolgica da Juatinga (REJ), municpio de Paraty/RJ. 92f. Monografia (Bacharelado em Cincias Biolgicas) Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2008.

    ______. Nascido e criado: a ocupao tradicional da Famlia dos Remdios, uma comunidade caiara Pennsula da Juatinga, municpio de Paraty/RJ. 176f. Dissertao (Mestrado em Cincia Ambiental) Instituto de Geocincias, Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2012.

    ______. Pensando a escola na comunidade caiara de Martim de S, Pennsula da Juatinga, municpio de Paraty/RJ. 2013. 63f. Monografia (Licenciatura em Cincias Biolgicas), Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2013.

    PISTRAK, Moisey Mikhaylovich. Fundamentos da Escola do Trabalho. So Paulo: Brasiliense, 1981.

    SILVA, Luiz Geraldo. Da terra ao mar: por uma etnografia histrica do mundo caiara. In: DIEGUES, Antnio Carlos (org.). Enciclopdia caiara: o olhar do pesquisador. (Vol. 1). So Paulo: Hucitec/NUPAUB/CEC/USP, 2004, p. 49 69.

    VIANNA, Lucila Pinsard. De invisveis a protagonistas: populaes tradicionais e unidades de conservao. So Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.

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    EDUCAO POPULAR E ESTUDOS FEMINISTAS: problematizando a produo de tecels

    AMANDA MOTTA CASTRO5

    RESUMO

    Este texto traz algumas reflexes tendo como base nossa pesquisa de doutorado, que est em andamento. Nosso olhar sobre Educao Popular, feminismo, artesanato e a invisibilidade da produo das mulheres. Buscamos compreender como ocorre o processo pedaggico invisvel da tecelagem manual na cidade de Resende Costa, em Minas Gerais. O artesanato uma atividade desenvolvida pelas pessoas mais pobres do mundo. Entre essas pessoas, encontramos as mulheres, que so a maioria no artesanato, sobretudo quando esse artesanato est ligado ao fio, renda, bordado, costura, croch, tric e tecelagem. Nesses fios, encontramos uma produo predominantemente feminina, que rica em tcnica, conhecimento e arte. Para Richard Sennett (2009), a habilidade artesanal requer um alto grau de aprendizagem. Com base nessa afirmao, compreendemos que na produo artesanal existe pedagogia. O feminismo aponta que a tecelagem realizada, sobretudo, pelas mulheres e, por esse motivo, perde muito de seu valor social e reconhecimento. A Educao Popular aponta que as pedagogias desenvolvidas s margens das instituies formais de ensino so socialmente menos reconhecidas e, segundo Danilo Streck (2010), tarefa da Educao Popular o trabalho de desvelamento dessas pedagogias. Neste texto, propomo nos a travar um dilogo entre o feminismo e a Educao Popular, pois entendemos que tal dilogo abre caminho para o (re)conhecimento de uma produo que tem conhecimento, mas que est socialmente invisvel.

    PALAVRAS CHAVE

    Educao Popular, feminismo, gnero, artesanato.

    5. Mestra em Educao pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutoranda em Educao pela mesma instituio. Bolsista CAPES. Assistente de pesquisa do Programa Gnero e Religio da Faculdades EST. Tem se ocupado em pesquisar os processos de produo do conhecimento realizados por mulheres tecels, a fim de analisar a complexidade da aprendizagem nesse contexto em articulao com a Educao Popular e os estudos feministas. Contato: [email protected].

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    ABSTRACT

    This text brings some reflections based on our doctorate research, which is still being carried out. Our perspective relies on Popular Education, feminism, handcraft and the invisibility of womens production, and we seek to comprehend how the invisible pedagogical process of manual weaving happens in the city of Resende da Costa in Minas Gerais. Handcraft according to is an activity developed by the poorest people in the world, among these people we find women who are the majority in handcraft, especially when this handcraft is related to thread, lace, embroidery, crochet, knitting and weaving. On those threads, we find a production predominantly feminine, which is rich in technique, knowledge and art. To Richard Sennett (2010), the handcraft ability requires a high level of learning, based on that statement we understand that in the handcraft production there is pedagogy. Feminism points out that weaving is done mostly by women and for this reason it loses much of its social value and acknowledgement. Popular education points out that pedagogies developed on the margins of formal teaching institutions are socially less acknowledged and, according to Danilo Streck (2010), it is the task of Popular Education the unveiling of these pedagogies. In this text, we prompt to engage in dialogue with feminism and Popular Education, since we understand that this dialogue opens a way to the (re)acknowledgement of a production which has knowledge, but that is socially invisible.

    KEYWORDS

    Popular Education, feminism, fender, handcraft.

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    A TECELAGEM MANUAL E OS LUGARES DESTA PESQUISA

    Este texto apresenta a pesquisa de doutorado, j qualificada, intitulada Fios, tramas, cores, repassos e inventabilidade: a formao de tecels mineiras. A pesquisa est em andamento e realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS). O objetivo principal da pesquisa compreender e discutir como ocorre o processo de ensinar e aprender da tecelagem manual no municpio de Resende Costa, no estado de Minas Gerais.

    De acordo com dados do Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), no Brasil existe cerca de cinco milhes de pessoas trabalhando com o artesanato, o que representa 0,5% do PIB.

    A cidade de Resende Costa pertence Regio das Vertentes, no interior do estado de Minas Gerais, sudeste do Brasil. Tem rea total de 631.561 km e est localizada a 186 km de Belo Horizonte, a capital mineira. Criada em 30 de agosto de 1911, a cidade, assim como a maior parte de Minas Gerais, foi colonizada por portugueses. No local, h uma biblioteca municipal, que empresta livros para a comunidade, mas no h cinema nem teatro. A cidade conta com um semforo, dois postos de gasolina, trs pousadas, uma praa, duas farmcias e 98 lojas de artesanato. Como fica evidente nessas informaes, Resende Costa vive do artesanato. a tecelagem manual que fornece trabalho para os habitantes, tanto de forma direta como indiretamente. Os pequenos restaurantes, postos de gasolina e bares da cidade sobrevivem por conta dos turistas, que vo cidade para comprar peas de tecelagem nas lojas e tambm nas casas.

    O artesanato txtil desenvolvido nessa pequena cidade mineira vem de longa data. A princpio, essa produo era feita a fim de garantir o suprimento de utenslios para casa. Segundo relato das tecels mais velhas da cidade, a tecelagem comeou a ser feita para a venda por volta de 1950. Essa foi a forma que as mulheres encontraram para terem dinheiro e, ao mesmo tempo, ficarem em casa para cuidar da famlia e dar conta do trabalho domstico. Desse modo, passaram a ensinar o trabalho de tecer a suas filhas, netas, bisnetas, para que estas tambm tivessem um dinheirinho e pudessem ficar cuidando da casa.

    Na cidade, onde se acorda com o barulho dos teares, o emprego para os homens estava cada vez mais difcil. Em decorrncia disso, as mulheres resolveram ensinar a atividade para os homens. Hoje, temos uma cidade em que a produo da tecelagem manual envolve homens e mulheres de todas as idades. Entretanto, as mulheres so as que mais tecem, e em suas mos encontra se o processo de ensino e aprendizagem da tecelagem manual.

    CONTRIBUIES DA EDUCAO POPULAR PARA PENSAR A PRODUO ARTESANAL

    Brando (2007) afirma que ningum escapa da educao. Em diversos lugares e espaos, ela est presente na vida de mulheres e homens e nos acompanha durante toda a vida. Por muito tempo, a educao foi pensada segundo a lgica tradicional.

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    Paulo Freire denuncia essa lgica e busca romper com ela. Para ele, a educao sempre um ato poltico. Freire defende que o ato educativo seja pautado na formao crtica dos educandos(as), o que ocorre por meio da problematizao, da Leitura do Mundo, com o objetivo de lev los ao que ele denomina de processo de conscientizao. Uma educao que acontece na relao de homens e mulheres entre si, mediada pelo mundo.

    Segundo Jos Romo (2008), no existe a educao na concepo de Freire, mas educaes, ou seja, formas diferentes de homens e mulheres partilharem seus saberes, partilharem o que so. Por esse princpio, podemos pensar a educao em diversos espaos, como o processo de ensino e aprendizagem desenvolvido em Alvorada e em Resende Costa.

    Sem dvida, Freire abre no Brasil e na Amrica Latina a discusso e a possibilidade sobre a educao no formal. Logo, a discusso entre educao formal e no formal est posta no bojo das discusses acadmicas, talvez porque as fronteiras entre elas sejam tnues (CUNHA, 2010).

    A educao formal inclui as prticas educativas realizadas em ambientes de ensino com a devida certificao. Ela desenvolvida em escolas, universidades, com contedos demarcados, currculo e avaliao. Na educao formal, os espaos so os do territrio das instituies regulamentadas por lei, certificadoras, organizadas segundo diretrizes nacionais do Ministrio da Educao.

    A educao no formal entendida como aquela em que os indivduos aprendem durante seu processo de socializao e desenvolvida por meio de valores e culturas prprios, de pertencimento e sentimentos. Essa educao ensinada e aprendida ao longo da vida. Seu aprendizado diferente daquele que ocorre na escola formal, pois acontece no mundo da vida, mediante processos de compartilhamento de experincias, principalmente em espaos e aes coletivas cotidianas. Nessa perspectiva, os espaos educativos localizam se em territrios que acompanham as trajetrias de vida dos grupos e indivduos, fora das escolas, em locais no formais de ensino. Essa educao constituda por todas as possibilidades educativas no decurso da vida do indivduo, de forma permanente e no organizada (TORRES, 1992).

    CONCLUSES PARCIAIS

    Em seu livro O artfice, Richard Sennett (2009) aponta que devemos desconfiar dos supostos talentos inatos. O autor afirma que a habilidade artesanal requer um alto grau de aprendizagem. Logo, ao olharmos um trabalho de tecelagem, como uma colcha bem tramada com suas diversas cores e formatos, podemos afirmar que a artes aprendeu a tcnica e a arte dos teares.

    Para Sennett (2009), so necessrias 10 mil horas de experincia para termos uma artes qualificada. Portanto, quando falamos em artesanato, estamos falando de horas de estudo, mesmo que esse processo no seja formalmente reconhecido.

    Na cidade onde acordamos com os barulhos dos teares e olhamos as lojas cheias de turistas comprando os produtos, os quais so feitos, muitas vezes, no quintal

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    das casas, pode passar despercebido o fato de que existe um processo de ensino e aprendizagem da tcnica de tecer.

    O processo de ensino e aprendizagem desenvolvido pelas mulheres tecels nos lugares dessa pesquisa ocorre por meio de uma pedagogia no formal e se d, sobretudo, no cotidiano. Em Resende Costa, esse processo desenvolvido em casa: as mulheres mais velhas ensinam suas filhas, filhos, netas, durante as atividades do dia a dia.

    De acordo com Sennet, a cabea e a mo no so separadas apenas intelectualmente, mas tambm socialmente (2009, p. 57). Essa separao histrica levou os homens a ficarem com o trabalho da cabea e as mulheres com o trabalho das mos, pois no imaginrio popular o trabalho com as mos menos complexo e exige menos qualificao (KERGOAT, 2011).

    Compreendemos que para o (re)conhecimento da produo artesanal, realizada pelas mos de pessoas que aprenderam a tcnica dos fios, pertinente o dilogo entre Educao Popular e feminismo. A pertinncia vem do fato de a Educao Popular trabalhar para o desvelamento das pedagogias desenvolvidas s margens das instituies formais de ensino e que, por esse motivo, so socialmente menos reconhecidas (STRECK, 2010). O feminismo, por sua vez, trabalha para politizar o privado e o cotidiano (GEBARA, 2008; DORLIN, 2009) e, com base nesse contexto, afirma que no cotidiano existe conhecimento.

    Baseado nesse dilogo entre Educao Popular e feminismo , nossa pesquisa busca visibilizar o invisvel. Por meio da denncia de que a sociedade patriarcal inferioriza o conhecimento das mulheres, buscamos o reconhecimento de que entre os fios existe conhecimento. Com base nisso, queremos tornar compreensvel, na prtica, que no existe saberes maiores, mais importantes ou mais significativos, mas saberes diferentes (FREIRE, 2001 e 2003), cuja hierarquizao foi construda socialmente.

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    REFERNCIAS

    BRANDO, Carlos Rodrigues. O que educao. So Paulo: Brasiliense, 2007.

    CUNHA, Aline Lemos. Histrias em mltiplos fios: o ensino de manualidades entre mulheres negras em Rio Grande (RS Brasil) e Capitn Bermdez (Sta. Fe Argentina) (re)inventando pedagogias da no formalidade ou das tramas complexas. Tese (Doutorado em Educao) Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), So Leopoldo, 2010.

    DORLIN, Elsa. Sexo, gnero y sexualidades: introduccin a la teora feminista. Buenos Aires: Claves, 2009.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 45 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

    ______. Pedagogia da Esperana. Um reencontro com a pedagogia do oprimido. So Paulo: Paz e Terra, 2003.

    GEBARA. Ivone. As epistemologias teolgicas e suas consequncias. In: NEUENFELDT, Eliane; BERGSCH, Karen; PARLOW, Mara (orgs.). Epistemologia, violncia, sexualidade: olhares do II Congresso Latino Americano de Gnero e Religio. So Leopoldo: Sinodal, 2008.

    KERGOAT, Prisca. Ofcio. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Franloise (orgs.). Dicionrio crtico do feminismo. So Paulo: Unesp, 2011.

    MACEDO, Concessa Vaz de. A indstria txtil, suas trabalhadoras e os censos da populao de Minas Gerais do sculo XIX: uma reavaliao. Varia Historia, vol. 22, n. 35, jan./jun., 2006.

    ROMO, Jos. Educao. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime Jos (orgs.). Dicionrio Paulo Freire. Belo Horizonte: Autntica, 2008.SENNETT, Richard. O artfice. Rio de Janeiro: Record, 2009.

    STRECK, Danilo. Entre emancipao e regulao: (des)encontros entre Educao Popular e movimentos sociais. Revista Brasileira de Educao, vol.15 n. 44, mai./ago., Rio de Janeiro, 2010.

    TORRES, Carlos Alberto. A poltica da educao no formal na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1992.

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    TEORIA DA DIALOGICIDADE DE PAULO FREIRE: a educao bancria na era dos transtornos de aprendizagem

    ANA LUIZA DE FRANA S6

    SLVIA ESTER ORR7

    ANA BRBARA DA SILVA NASCIMENTO8

    ROSEANE PAULO CUNHA9

    VIRGNIA SILVA10

    RESUMO

    Este trabalho um estudo inicial acerca da subjetividade social de professores de uma escola pblica de Braslia, Brasil. A recorrente emisso de laudos mdicos/psicolgicos de transtornos de aprendizagem suscitou uma reflexo terica para alm da culpabilizao da pessoa que aprende. Com base na problematizao da situao da escola contempornea, trazemos a hiptese de que a normatizao das estratgias de aprendizagem por parte dos alunos, caracterstica dos processos de institucionalizao, no contribui para a emergncia do sujeito que aprende. Para contribuir nessa discusso, trazemos os conceitos de dilogo e educao bancria com referncia na obra de Paulo Freire, que nos ajuda a compreender de que maneira a emisso de laudos mdicos de transtornos de aprendizagem faz parte de uma educao que no valoriza o dilogo, o que ressalta a condio bancria do espao escolar atual.

    6. Professora do Instituto Federal de Braslia. Estudante do Programa de Ps Graduao em Educao da Universidade de Braslia (UnB) na linha de pesquisa Ensino, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano. Contato: [email protected].

    7. Doutora em Educao. Docente do Programa de Ps graduao em Educao da Universidade de Braslia (UnB). Pesquisadora e autora de artigos cientficos, captulos e livros na rea da educao inclusiva e formao de professores. Contato: [email protected].

    8. Mestranda do Programa de Ps Graduao em Educao da Universidade de Braslia (UnB) e professora de filosofia do ensino fundamental e mdio. Investigadora e entusiasta do projeto de filosofia para crianas. Graduada pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Contato: [email protected].

    9. Possui graduao em Pedagogia pela Universidade de Braslia (UnB 1995). Tem experincia na rea de Educao, com nfase em Educao Especial, atuando principalmente no seguinte tema: classe especial, incluso, sujeito. Contato: [email protected].

    10. Professora da Secretaria de Educao do Distrito Federal (SEDF). Atua como docente em cursos de formao ofertados pela SEDF na rea de Educao Especial. Tem experincia na rea de Educao, com nfase em Educao Especial e formao de professores. Atualmente, mestranda em Educao pela Universidade de Braslia (UnB). Contato: [email protected].

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    PALAVRAS CHAVE

    Dilogo, educao bancria, transtornos de aprendizagem.

    ABSTRACT

    This work is an initial study on the social subjectivity of teachers at a public school in Brasilia, Brazil. The recurring issue of medical/psychological reports of learning disorders raised a theoretical reflection beyond the culpability of the person who learns. From the problematic situation of the contemporary school we bring the hypothesis that the regulation of learning strategies by students, characteristic of institutionalization processes, do not contribute to the emergence of subject who learns. To contribute to this discussion, we bring the concepts of dialogue and banking education from the work of Paulo Freire that helps us understand how the issue of medical reports of learning disabilities participate in an education that does not value dialogue, which underscores a current banking condition of the school space.

    KEYWORDS

    Dialogue, banking education, leaning disorders.

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    O espao do dilogo na sociedade ocidental atual tem sido deixado em lugar secundrio nas relaes humanas como um todo. A possibilidade de comunicao tem ocupado espaos em que no mais necessria a exposio de argumentos para a manuteno da relao. As redes sociais, por exemplo, tm desempenhado papel de relao, porm de forma quantitativa na maioria das vezes. O critrio utilizado para designar o quo socivel algum pode se considerar a quantidade de amigos que possui e no a qualidade do dilogo que se estabelece. Dessa forma, todas as possibilidades de dilogo so transmitidas para o meio virtual. A ferramenta primordial, no entanto, coisifica a relao humana, na qual, para alm do espao da comunicao, instaurada uma linearidade de transmisso sem sentido e sem espao de produo cultural, pois tudo aparentemente j est pronto.

    No diferente, nos espaos escolares, das estratgias de ensino que se baseiam nessa informatizao sem reflexo, o que recai em diversos entraves no s filosficos, mas principalmente tecnolgicos, e o dilogo mais uma vez transferido para a mquina. A presena da ferramenta como meio relacional nas prticas educativas escolares exerce um poder sobre a profisso docente como se sem ela no fosse possvel favorecer a aprendizagem. Ela interfere nas relaes de professores com seus alunos e entre os prprios professores e a equipe gestora.

    Na medida em que a mquina a nica forma de tecnologia utilizada na escola para o exerccio da prtica docente com intuito de produzir o material pedaggico, identifica se a coisificao das relaes estabelecidas nesse meio em que prevalece o dilogo com a mquina. Tal prtica minimiza a necessria reflexo do professor na produo de estratgias de ensino que considerem o sujeito que aprende, pois a relao com o objeto de conhecimento a ser apreendido mediada pela mquina. A quantidade de atividades copiadas, reproduzidas pela mquina, exerce fascnio sobre os professores de forma to exacerbada que a inoperncia dessa tecnologia impossibilita at mesmo a prtica docente, pois nesse espao o papel produzido pela mquina que exercer a funo de dilogo no processo ensino aprendizagem. No mais a explicao, mesmo que de forma hierrquica, que predomina nas prticas docentes. a reproduo de materiais que estabelece a relao no ambiente escolar, num contexto em que a predominncia da fala muitas vezes, apenas a fala do professor substituda pelo papel, pela imagem, pelo cdigo transferido no papel.

    Assim, a comunicao que se estabelece em espaos predominantemente de aprendizagem sempre mediada e nunca produzida, elaborada. No h espao para a reflexo porque a sociedade imediatista, h vrios mecanismos que facilitam que ela seja assim. Portanto, o dilogo, enquanto ferramenta, no pode ser usado, mas apenas utilizado como forma de informao. pela necessidade de informar que a palavra/fala utilizada nos espaos vrios de aprendizagem e informa como utilizar a mquina.

    Tal tecnologia, presente nos espaos de aprendizagem escolarizados, tambm passa por outras dimenses da vida em sociedade. No caso do

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    objeto da presente pesquisa, o diagnstico utilizado para corroborar a incompetncia apenas individual daquele que recebe o diagnstico tambm passa pelo aprimoramento de tecnologias cada vez mais respaldadas por um cientificismo pouco terico a fim de comprovar a existncia do suposto transtorno em que a pergunta que orienta o questionamento do no aprender no como, mas o qu. O diagnstico descreve um comportamento e informa ao professor que h um problema cientificamente avaliado e diagnosticado que impede o aluno de aprender, ou melhor, determinam quais as suas possibilidades na escola. O laudo mdico impossibilita o dilogo do professor com a criana, pois cala o sujeito que rotulado. A criana reflete e lembrada a todo tempo que seu nome um transtorno psiquitrico.

    As relaes no ambiente escolar tornam se profissionalizadas e funcionais, no havendo espao para o dilogo, para a construo do pensamento e do conhecimento. Os professores so aqueles que expem os conceitos duramente decorados para exercer o ofcio, enquanto os alunos, passivamente, assimilam os mesmos conceitos que pouco tempo mais tarde sero esquecidos porque no significam nada para a realidade concreta em que vivem.

    Nos anos iniciais do ensino fundamental, essa perversa relao se torna ainda mais grave quando a disciplina, o silncio e a normatizao do aprender passam a ser inseridas. O silncio permite a continuao da transferncia do conhecimento e cala as singularidades de cada um. Organiza se, desse modo, dentro do cotidiano escolar, uma cultura do no falar, do no expor. Consideram as crianas pessoas sem opinio, incapazes. Por essa tica castradora, passam os anos aprendendo a silenciar se cada vez mais e melhor at chegarem universidade, onde poucas vezes so incitados a expressar suas opinies. Contraditrio ou intencional, esse sistema j vem sendo discutido pela tica educacional como fator que invalida a aprendizagem em seu sentido amplo e a manuteno do ser humano no mundo, porque no se aprende, se assimila (GONZLEZ REY, 2009)

    A impossibilidade da fala, do direito palavra, se configura, na escola, como um privilgio de poucos, dos professores, dos diretores, sem a menor implicao das crianas que esto inseridas na escola. Paulo Freire ressalta que

    Dizer a palavra no privilgio de alguns homens, mas direito de todos os homens [...]. preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que esse assalto desumanizante continue (FREIRE, 2000, p. 90 91).

    A necessidade do silncio na sala de aula e a falta de sentido da educao escolar atual so fatores que cobem a atuao das pessoas em seus espaos, evitando se, assim, que digam a palavra e que possam se colocar diante do objeto do conhecimento. Essas caractersticas que encontramos no cotidiano da sala de aula nos remetem ao conceito de educao bancria trazido por Paulo Freire.

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    Como educao bancria Freire diz:

    Na viso bancria da educao, o saber uma doao dos que se julgam sbios aos que julgam nada saber. Doao que se funda numa das manifestaes instrumentais da ideologia da opresso a absolutizao da ignorncia, que constitui o que chamamos de alienao da ignorncia, segundo a qual esta se encontra sempre no outro (FREIRE, 2005, p. 67).

    Ao determinar a sabedoria instaurada em apenas um dos polos do fazer pedaggico, preconiza se a ignorncia das crianas e, ainda assim, as patologiza, pela sutil desobedincia advinda dos atos compreendidos, nessa perspectiva, como comportamentos oriundos de transtornos psiquitricos. A ordem da opresso se refina com os laudos mdicos e psicolgicos ao instaurar uma lgica medicalizante para justificar a no aprendizagem daquilo que se quer ensinar. O que se quer ensinar, na verdade, no refletido, no problematizado, apenas depositado, esperando se, assim, que as crianas dominem certos contedos, verbalizem as repeties do professor e considerem se incapazes sempre que o educador inicia sua explicao.

    A tradio explicadora da educao institucionalizada vem de muitos anos, com a criao da era escolstica do saber cientfico. Algumas experincias na tentativa de trazer tona as qualidades perdidas pela era monstica, caracterizada pela busca do saber, foram realizadas por Illich em sua obra En el viedo del texto (1993). O autor nos revela como uma mudana cultural dos instrumentos utilizados pelos monges para a educao modificou tambm a maneira como se passou a tratar o saber, que foi traduzido depois como conhecimento. A diferena entre essas duas palavras, saber e conhecimento, nos remete reflexo acerca dos motivos do ensino na escola atual.

    Por um lado, a busca pelo saber tem, em sua essncia, sabor, enquanto o conhecimento, carregado de linearidade e acmulos, precisa ser assimilado, o que traz uma nova conotao s formas de ensino estabelecidas naquela poca com a inaugurao da escola. Datada h mais de 900 anos, a escola, em sua concepo, com base na centralidade dada ao mestre explicador, encerra nossas crianas nos muros da ignorncia alienada e alienante, como retrata Paulo Freire. Invalida a prpria instituio escolar como organizao histrica por isso mesmo passvel de mudanas estruturais e conceituais. A prpria concepo de educao marcadamente centrada na assimilao por parte dos alunos e na explicao por parte dos professores interfere na sua real proposio: a de possibilitar a aprendizagem.

    interessante perceber que mesmo que tenha acontecido h mais de 900 anos, a tradio escolar mudou muito pouco at os dias atuais, mesmo com diversos estudos que ressaltam a necessidade das prticas docentes dialgicas a fim de desenvolver a pessoa em sua plenitude. Trazer esse histrico para a compreenso do contexto no qual a escola foi produzida mostra nos a tendncia objetualizada da educao escolar. Se antes a mudana surgiu com a transformao tecnolgica no uso do livro texto, hoje a tecnologia mdica/diagnstica nos indica as prticas

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    necessrias para cada aluno, fazendo da escola cada vez mais um espao de especialistas e no um lugar de aprendizagem.

    A dependncia do instrumento impossibilita o dilogo, pois no espao deixado para a fala s cabe a informao e no a comunicao. Suscitar o dilogo como pea chave para a relao professor aluno numa era de transtornos psiquitricos admite a condio produtora de todas as pessoas enquanto seres humanos. Paulo Freire nos explica que:

    O dilogo no como uma tcnica apenas que podemos usar para obter alguns resultados. Tambm no podemos, no devemos, entender o dilogo como uma ttica que usamos para fazer dos alunos nossos amigos. Isso faria do dilogo uma tcnica para manipulao, em vez de iluminao. Ao contrrio, o dilogo deve ser entendido como algo que faz parte da prpria natureza histrica dos seres humanos (FREIRE, 1980, p. 122).

    Visto que a produo do conhecimento depende e realizada por meio do dilogo, a educao escolarizada deve se pautar principalmente por esse princpio. Mais uma vez percebe se que o ato educativo deve ser um ato de princpios e no de conhecimentos acumulados preparados para serem transmitidos. refletir sobre a prtica educativa. Pensar como faz la e refaz la novamente, em constante mudana, que surge com base no dilogo como ato comunicativo e reflexivo.

    Predominantemente, a escola tem sido marcada pela necessidade da informao, falta de dilogo e necessidade de disciplina. Essas trs caractersticas bsicas, que resumem a condio da escola enquanto espao institucional de produo do conhecimento, apresentam uma contradio conceitual. Como possvel produzir em silncio, sem dilogo? A principal consequncia advinda desse posicionamento da escola contempornea a necessidade do uso dos instrumentos mdicos/ psicolgicos. A condio do ser humano enquanto ser dialgico, como nos explica Paulo Freire, faz com que nos questionemos sobre o que pode acontecer com pessoas em desenvolvimento no caso, as crianas num espao onde no possvel o dilogo? H um sofrimento psicolgico dessas pessoas que relutam pela sua condio humana com comportamentos que so patologizados. Tais comportamentos que se colocam contra essa prtica domesticadora de educao recebem rtulos de doenas psiquitricas e contribuem para a massificao da sociedade.

    Podemos indicar que a construo social de transtornos de aprendizagem coincide com a prtica bancria da educao escolar atual. Se identificamos tais caractersticas da escola como danosas ao desenvolvimento das crianas, possvel afirmar que a forma como tem sido organizado o saber escolar impossibilita a afirmao das crianas como sujeitos que aprendem. E, nesse sentido, o dilogo implica responsabilidade, direcionamento, determinao, disciplina, objetivos (FREIRE, 1980, p. 127), tal como a aprendizagem numa perspectiva de desenvolvimento humano.

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    REFERNCIAS

    FREIRE, P. Conscientizao. Teoria e prtica da libertao. Uma introduo ao pensamento de Paulo Freire. Trad. de Ktia de Mello e Silva; reviso tcnica de Benedito Eliseu Leite Cintra. So Paulo: Cortez e Moraes, 1980.

    ______. Pedagogia da indignao: cartas pedaggicas e outros escritos. So Paulo: Unesp, 2000.

    ______. Pedagogia do oprimido. 40 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

    GONZLEZ REY, F. L. Questes tericas e metodolgicas nas pesquisas sobre aprendizagem: a aprendizagem no nvel superior. In: MITJNZ MARTNEZ, A.; TACCA, M. C. V. R. (orgs.). A complexidade da aprendizagem destaque ao ensino superior. Campinas: Alnea, 2009.

    ILLICH, I. En el viedo del texto: Etologa de la lectura: un comentario al Didascalicon de Hugo de San Vctor. Fondo de Cultura Econmica: Mxico, 1993.

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    LER E RELER O MUNDO: construir um outro mundo possvel

    NGELA ANTUNES11

    RESUMO

    Este artigo discute a atualidade do pensamento freiriano no contexto da globalizao. Destaca a importncia da Leitura do Mundo e do dilogo categorias fundantes da pedagogia de Paulo Freire para uma educao necessria construo de um outro mundo possvel.

    PALAVRAS CHAVE

    Globalizao, dilogo, Leitura do Mundo, Crculos de Cultura, Educao Emancipadora.

    ABSTRACT

    This article discusses the actuality of frieirian thought in the globalization context. Detaches the importance of reading the world and dialogue fundamental categories of Paulo Freires pedagogy for a necessary education in order to build another possible world.

    KEYWORDS

    Globalization, Dialogue, Reading the World, Cultural Circles, Emancipatory Education.

    11. Mestre e doutora em Educao pela Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. Diretora Pedaggica do Instituto Paulo Freire. autora do livro Aceita um Conselho? Como organizar o colegiado escolar (2002). Contato: [email protected].

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    O que que eu quero dizer com dicotomia entre ler as palavras e ler o mundo? Minha impresso que a escola est aumentando a distncia

    entre as palavras que lemos e o mundo em que vivemos. Nessa dicotomia, o mundo da leitura s o mundo do processo de escolarizao, um mundo fechado, isolado do mundo onde vivemos experincias sobre as quais no lemos. Ao ler palavras, a escola se torna um lugar especial que nos ensina

    a ler apenas as palavras da escola, e no as palavras da realidade. O outro mundo, o mundo dos fatos, o mundo da vida, o mundo no qual os

    eventos esto muito vivos, o mundo das lutas, o mundo da discriminao e da crise econmica (todas essas coisas esto a), no tem contato

    algum com os alunos na escola atravs das palavras que a escola exige que eles leiam. Voc pode pensar nessa dicotomia como uma espcie de

    cultura do silncio imposta aos estudantes. A leitura da escola mantm silncio a respeito do mundo da experincia, e o mundo da experincia

    silenciado sem seus textos crticos prprios (FREIRE, 1990, p. 164).

    Segundo Milton Santos (2000), no contexto em que vivemos, trs mundos se nos apresentam contidos num s: a) o mundo como fbula; b) como perversidade; e c) como uma outra globalizao.

    No primeiro, h um discurso hegemnico que tenta nos convencer de que o mundo vem se tornando uma grande comunidade, uma aldeia global, que tem sua disposio recursos necessrios para o crescimento econmico ilimitado (a difuso instantnea de informaes, o encurtamento das distncias, maior mobilidade das pessoas, processos produtivos geis, flexveis e altamente rentveis etc.) e que pode proporcionar uma vida melhor a toda a humanidade.

    Mas esse mundo apresentado como fbula, na verdade, est se impondo como uma fbrica de perversidade (SANTOS, 2000, p.19), cujos produtos principais so: o desemprego estrutural, o aumento da pobreza, a concentrao cada vez maior da riqueza, o individualismo, a competitividade, a imposio do mesmo padro cultural em escala planetria (as mesmas msicas, os mesmos filmes, as mesmas roupas, as mesmas comidas, os mesmos valores em diversas partes do mundo), a banalizao da violncia e, o que pior, a falta de esperana e de crena na possibilidade de mudana.

    Apesar da atual perversidade, possvel, necessrio e urgente pensar na construo de um outro mundo, mediante uma outra globalizao, orientada pela tica do ser humano. Portanto, uma globalizao humana, justa e solidria. As mesmas bases tcnicas, nas quais se apoia o grande capital para construir a globalizao perversa, podem, segundo Milton Santos, servir a outros fundamentos sociais e polticos. preciso, no entanto, mais do que nunca, ler o mundo para poder transform lo. Reconhecer os mundos que se nos apresentam, diferenci los e compreend los como construo histrica e social e no perder a esperana de que um outro mundo possvel.

    Paulo Freire nos alertava para a maior malvadez da globalizao capitalista: a sua ideologia fatalista, que tenta tirar do ser humano o que lhe mais imprescindvel para continuar a existir, o que o impulsiona para a vida, que a esperana,

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    o sonho, a utopia. O guardio da utopia conclamava a todos a denunciar essa ideologia que nos mostra o mundo como fbula e nos coloca na condio de simples expectadores. Da que uma das nossas brigas como seres humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razes objetivas para a desesperana que nos imobiliza (FREIRE, 1997, p. 81). Sua Pedagogia da autonomia (1997) pode ser considerada como uma resposta ao projeto poltico pedaggico neoliberal da globalizao capitalista:

    H um sinal dos tempos, entre outros, que me assusta: a insistncia com que, em nome da democracia, da liberdade e da eficcia, se vem asfixiando a prpria liberdade e, por extenso, a criatividade e o gosto da aventura do esprito. [...] Um estado refinado de estranheza, de autodemisso da mente, do corpo consciente, de conformismo do indivduo, da acomodao diante das situaes consideradas fatalisticamente como imutveis. [...] no h lugar para a escolha, mas para a acomodao bem comportada ao que est a ou ao que vir. Nada possvel de ser feito contra a globalizao, que, realizada porque tinha de ser realizada, tem de continuar seu destino, porque assim est misteriosamente escrito que deve ser. A globalizao, que refora o mando das minorias poderosas e esmigalha e pulveriza a presena impotente dos dependentes, fazendo os ainda mais impotentes, destino dado (idem, p. 129).

    Da a crtica permanentemente presente em mim malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexvel ao sonho e utopia (idem, p. 15).

    Paulo Freire costumava nos dizer, no Instituto Paulo Freire (IPF), que um outro mundo futuro no podia ser previsto, mas podia ser inventado. O mundo no , afirmava Paulo Freire, o mundo est sendo.

    Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo no s o de quem constata o que ocorre, mas tambm o de quem intervm como sujeito de ocorrncias. No sou apenas objeto da histria, mas seu sujeito igualmente. No mundo da histria, da cultura, da poltica, constato no para adaptar, mas para mudar (idem, p. 85).

    A EDUCAO COMO PRTICA DA LIBERDADE: LER E RELER O MUNDO, LER E REESCREVER A HISTRIA

    Ler o mundo na era da globalizao implica perceber sua complexidade. Mais do que em qualquer era anterior, existe hoje uma interpenetrao do todo com as partes, do local com o nacional, o regional e o global:

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    [...] o mundo fica mais perto de cada um, no importa onde esteja. O outro, isto , o resto da humanidade, parece estar prximo. Criam se para todos a certeza e, logo depois, a conscincia de ser mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda no o alcanamos em plenitude material ou intelectual. O prprio mundo se instala nos lugares, sobretudo as grandes cidades, pela presena macia de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretaes variadas e mltiplas, que ao mesmo tempo se chocam e colaboram na produo renovada do entendimento e da crtica da existncia. Assim, o cotidiano de cada um se enriquece, pela experincia prpria e pela do vizinho, tanto pelas realizaes atuais como pelas perspectivas de futuro. As dialticas da vida nos lugares, agora mais enriquecidas, so paralelamente o caldo de cultura necessrio proposio e ao exerccio de uma nova poltica. Funda se, de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos, o que, afinal, se cria o mundo como realidade histrica unitria, ainda que ele seja extremamente diversificado (SANTOS, 2000, p. 172 173).

    Os mesmos avanos cientficos e tecnolgicos que, hegemonicamente, vm servindo globalizao competitiva, tambm tm permitido o aprofundamento de relaes locais e internacionais e criado condies, ainda que incipientes, que nos permitem apontar o nascimento de uma outra globalizao. Aqueles avanos tm permitido a globalizao da luta pela defesa dos bens naturais, dos direitos humanos, da cidadania, da integrao cultural etc.

    Milton Santos (2000), afirma a importncia da leitura do complexo mundo de hoje, justamente para no cair na ideologia neoliberal que afirma que este mundo o nico possvel. H necessidade em ler o mundo de hoje porque preciso no se conformar com ele, preciso construir um outro mundo.

    A educao forma o cidado. Supostamente, ensina a viver em sociedade. Cidado aquele que pertence a uma nao e divide a responsabilidade com outros sujeitos no seu interior. Para exercer a cidadania ativa, necessrio reconhecer o seu papel na sociedade, inserir se criticamente na realidade. Portanto, na perspectiva de uma outra globalizao, faz se necessrio ler o mundo para desnaturalizar a malvadez da globalizao capitalista, para construir a conscincia coletiva sobre as ameaas que pesam sobre o planeta e sobre todos os seres humanos e para agir: na busca pelo fortalecimento do processo de planetarizao, de construo da cidadania planetria.

    Para isso, o educador Paulo Freire nos ofereceu um importante instrumento de trabalho, uma metodologia fundada na Leitura do Mundo e no dilogo.

    No ltimo livro que publicou em vida, Pedagogia da autonomia, Paulo Freire afirma:

    Como educador preciso ir lendo cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que este parte [...] no posso de maneira alguma, nas minhas relaes poltico pedaggicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experincia feito. Sua explicao do mundo

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    de que faz parte a compreenso de sua prpria presena no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo de leitura do mundo, que precede sempre a leitura da palavra (FREIRE, 1997, p. 90; grifo nosso).

    Paulo Freire, desde seus primeiros escritos, revelou o compromisso com uma nova maneira de educar, que contribusse para que as pessoas pudessem analisar melhor a realidade vivida e fossem capazes de agir sobre essa realidade, transformando a:

    Nessa poca (no Brasil), como hoje, eu no estava exclusivamente preocupado com a alfabetizao. Eu no sou, como muita gente pensa, um especialista na alfabetizao de adultos. Desde o incio de meus trabalhos eu procurava alguma coisa alm do que um mtodo mecnico que permitisse ensinar rapidamente a escrita e a leitura. certo que o mtodo devia possibilitar ao analfabeto aprender os mecanismos de sua prpria lngua. Mas, simultaneamente, esse mtodo devia lhe possibilitar a compreenso de seu papel no mundo e de sua insero na histria (Paulo Freire apud BEISIEGEL, 1982, p. 1912).

    Era preciso, segundo Paulo Freire, construir um conhecimento autntico (que partisse da realidade brasileira, que desse respostas aos problemas vividos pelo povo) e orgnico (em estreita relao com a realidade vivida, na busca de transform la). Defendia a tese de uma educao que desenvolvesse a conscincia crtica, que promovesse a mudana social. E no haveria mudana sem a compreenso crtica da realidade vivida, ou seja, sem a Leitura do Mundo.

    A Leitura do Mundo passa pela anlise da prtica social:

    O aprendizado da leitura e da escrita, associado ao necessrio desenvolvimento da expressividade, se faz com o exerccio de um mtodo dinmico, com o qual educandos e educadores buscam compreender, em termos crticos, a prtica social. O aprendizado da leitura e da escrita envolve o aprendizado da leitura da realidade atravs da anlise correta da prtica social. Na ps alfabetizao, a leitura da realidade social continua, de forma aprofundada, j agora, porm, associada a um saber fazer especializado, de natureza tcnica, a que se junta um maior domnio da linguagem, um conhecimento mais agudo da organizao econmica e social da histria, da geografia, da matemtica etc. (FREIRE, 2001, p. 110).

    Para Freire, refletir sobre educao refletir sobre o ser humano; educar promover a capacidade de interpretar o mundo e agir para transform lo.

    12. Entrevista concedida a Walter Jos Evangelista em 1972.

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    Fundamentado em estudos filosfico antropolgicos13, entendia o ser humano como ser de relao, caracterizado pela sua incompletude, inacabamento e pela sua condio de sujeito histrico.

    Enquanto ser de relaes, de relaes com outros seres humanos e com o contexto em que vive, capaz de apreender a realidade e agir sobre ela. O que diferencia o ser humano dos outros seres sua capacidade de dar respostas aos diversos desafios que a realidade impe. Mas essa apreenso da realidade e esse agir no mundo no se do de maneira isolada. na relao entre homens e mulheres e destes e destas com o mundo que uma nova realidade se constri e novos homens e mulheres se fazem. Criando cultura. Fazendo histria.

    A partir das relaes do homem com a realidade resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criao, recriao e deciso, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo o fazedor. Vai temporalizando os espaos geogrficos. Faz cultura (FREIRE, 1999, p. 51).

    A educao, na perspectiva freiriana, considera a historicidade dos seres humanos. So seres que esto sendo, seres inacabados, seres inconclusos. [...] seres situados em e com uma realidade que, sendo igualmente histrica, to inacabada quanto eles (BEISIEGEL, 1982, p. 204), por isso, passvel de mudana, de transformao. Porque os seres humanos so inconclusos e incompletos, e dessa condio tm conscincia, e porque a realidade dinmica, construda social e historicamente, a educao constitui se num processo contnuo, permanente, e tem como ponto de partida o ser humano em seu estar sendo aqui e agora, em busca de sua prpria transformao e a da realidade em que est inserido. De acordo com Freire, a conscincia do inacabamento tambm importante porque nos alimenta a esperana, leva nos utopia, ao projeto futuro, crena na possibilidade de mudana: S na convico permanente do inacabado pode encontrar o homem e as sociedades o sentido da esperana. Quem se julga acabado est morto (FREIRE, 1999, p. 61).

    Homens e mulheres, na sua incompletude e na sua relao com o mundo e com outros seres, ao buscar dar respostas aos desafios, s questes de seu contexto, constroem conhecimentos. Para Freire, o conhecimento resultado desse processo, dessa construo coletiva. Por isso, afirma que: Ningum educa ningum. Os homens se educam em comunho (FREIRE, 1981, p. 79). Educao, em Paulo Freire, a prtica de uma teoria do conhecimento. Ao se deparar com um problema, o ser humano se

    13. Em Pedagogia da luta, Carlos A. Torres (1997, p. 175) destaca algumas correntes filosficas que influenciaram o pensamento freiriano e determinaram a concepo de ser humano subjacente sua obra: o pensamento existencial (o homem como ser em construo), o pensamento da fenomenologia (o homem constri sua conscincia com intencionalidade), o pensamento marxista (o homem vive no dramatismo do condicionamento econmico da infraestrutura e no condicionamento ideolgico da superestrutura, ou, nas palavras do prprio Freire, para entender os nveis de conscincia preciso ver a realidade histrico cultural como uma superestrutura em relao a uma infraestrutura) e a filosofia hegeliana (o homem, como autoconscincia, parte da experincia comum para elevar se em direo Cincia, pela dialtica, aquilo que em si, passa a ser em si e para si).

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    questiona, questiona outros seres humanos, pesquisa, busca respostas possveis para solucionar o desafio que est sua frente, testa suas hipteses, confirma as, reformula as, nega as, abandona as, retoma as etc. Por meio desse movimento, realiza o esforo da aprendizagem para construir o seu saber, relacionando conhecimentos anteriores aos atuais, ampliando, construindo novos conhecimentos. A cada soluo, novos problemas se impem. Essas respostas, as experincias que vai acumulando ao busc las, constituem o conhecimento de um indivduo ou de um grupo. Nessa concepo, o conhecimento nasce da ao, da relao entre os seres humanos e destes com o mundo. Da sua interveno no mundo, novos conhecimentos vo sendo construdos. No h ser humano que no aja no mundo. Todos, de alguma forma, agem e buscam respostas para suas necessidades. Por isso, no h ser humano vazio de conhecimento, de cultura. H graus e nveis de conhecimento diferenciados, mas no h quem nada saiba. Segundo Carlos Alberto Torres,

    [...] a partir dessa perspectiva, Freire assume a concepo dialtica do conhecimento para a qual o pensamento uma etapa do processo de conformao da realidade objetiva e representa um retorno reflexivo que interioriza o objeto. A dicotomia sujeito objeto supera se no conceito que, apesar de prprio da subjetividade, tambm supe e inclui a objetividade: um concreto pensado.O processo de conhecimento obedece, ento, ao movimento de agir sobre a realidade e recompor, no plano do pensamento, a substantivao da realidade por meio da volta reflexiva. Assim, uma vez formulada uma srie de proposies sobre a realidade, estas orientam o sujeito na transformao dessa realidade por meio da prxis, terceiro momento do processo do conhecimento. [...] Ao dialogar sobre sua prpria realidade, ao revisar seu contexto existencial, o analfabeto no recebe contedos externos a si mesmo. O mtodo se faz conscincia de um mundo que o alfabetizando comea a ad mirar e no qual comea a ad mirar se. A recomposio da objetividade (o concreto pensado) sempre um reencontro do alfabetizando consigo mesmo (TORRES, 1981, p. 28 29).

    Com base em questes locais, no estudo da realidade mais prxima, Paulo Freire estabelece sempre a necessria relao entre o local e o global. Em Cartas Guin Bissau (1978), na carta no 3, ao refletir sobre o trabalho de alfabetizao que os educadores desenvolviam sob sua assessoria, destaca:

    Assim, a temtica implcita em cada palavra geradora deve proporcionar a possibilidade de uma anlise que, partindo do local, se v estendendo ao regional, ao nacional, ao continental e, finalmente, ao universal [...]. O primeiro aspecto que sublinharei a possibilidade que se tem, por exemplo, de, ao estudar se a geografia do ar