5
1 A JUSTIFICAÇÃO DO DIREITO DE PUNIR NA OBRA DE LUIGI FERRAJOLI: ALGUMAS OBSERVAÇÕES CRÍTICAS Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 27 | p. 143 | Jul / 1999 DTR\1999\282 Paulo Queiroz Área do Direito: Geral Sumário: "O abolicionismo penal, muito além de suas intenções libertárias e humanitárias, se configura, por tudo isso, como uma utopia regressiva que, sob pressupostos ilusórios de uma sociedade boa e de um Estado bom, apresenta modelos em realidade desregulados ou autorregulados de vigilâncias e/ou castigos face aos quais é o direito penal - com seu complexo, difícil e precário sistema de garantias - é ele que constitui, histórica e axiologicamente, uma alternativa progressista" (Ferrajoli, Derecho y razón, p. 341). SUMÁRIO: 1. Fundamento do direito de punir - 2. O modelo de direito penal mínimo e garantista - 3. Crítica - Anexo. Resumo: Crítica à obra "Derecho y Razón" de Luigi Ferrajoli, questionando especialmente a eficácia preventiva do Direito Penal. Segue resposta do autor italiano às críticas feitas. Palavras-chave: Garantismo penal; Prevenção geral; Direito de punir; Repressão penal. 1. FUNDAMENTO DO DIREITO DE PUNIR Para Ferrajoli, que define o direito penal como uma técnica de definição, comprovação e repressão da desviação, 1 o único fim que pode e deve perseguir, legitimamente, o Estado, por meio da pena, é a prevenção geral negativa. Mas não apenas a prevenção de futuros delitos, como sói enfatizar as doutrinas utilitárias tradicionais. Em seu "utilitarismo reformado", com efeito, Ferrajoli dá especial ênfase à prevenção de penas informais, isto é, à prevenção de possíveis reações públicas ou privadas arbitrárias, que podem resultar da ausência ou omissão do sistema penal. 2 Assinala, assim, que a pena não serve só para prevenir os injustos delitos, senão também os castigos injustos; que não se ameaça com ela e se a impõe só ne peccetur, senão também ne punietur, que não tutela só a pessoa ofendida pelo delito, e sim também ao delinqüente, frente às reações informais, públicas ou privadas. 2 Confere-se-lhe (ao direito penal), portanto, uma dupla função preventiva, ambas de signo negativo: prevenção de futuros delitos e prevenção de reações arbitrárias, partam do particular ou do próprio Estado. Privilegia, porém, seu modelo de justificação do direito penal, essa segunda função, que considera como "fim fundamental" da pena. E isso porque, primeiro, Ferrajoli duvida, 3 por um lado, da efetiva idoneidade do direito penal para prevenir delitos futuros; duvida, enfim, da eficácia dissuasória da intervenção penal; e, por outro, acredita que seja a norma penal mais eficaz ou mais adequada para cumprir essa segunda tarefa (de prevenção de reações informais), "ainda quando com penas modestas ou pouco mais que simbólicas"; 4 segundo, porque só esse segundo fim é, ao seu ver, necessário e suficiente para fundamentar um modelo de direito penal mínimo e garantista; finalmente, porque só a tutela do inocente e a minimização da reação ao delito servem para distinguir o direito penal de outros sistemas de controle social - policial, disciplinário, terrorista etc. Considera, por outro lado, que enquanto a prevenção geral de delitos determina o "limite mínimo" das penas, a prevenção de penas arbitrárias ou desproporcionadas - vinganças, abusos de poder etc. - determina o "limite máximo" da pena. Com efeito, uma, a prevenção geral de crimes, reflete o interesse da maioria não-desviada; a outra, a prevenção de reações sem controle, o interesse do réu e de todo aquele que é suspeito ou acusado como tal. E esses fins e interesses, é certo, entram em conflito, e são seus portadores as partes no processo penal contraditório: a acusação, interessada na defesa social e, por conseguinte, em maximizar a prevenção e o castigo aos delitos; e a defesa, interessada na defesa individual e, portanto, em maximizar a prevenção das penas arbitrárias. 5 E o direito penal nasce, assim, da necessidade política e social de administrar esse conflito de interesse, objetivando controlar a violência (minimizá-la) e coibir o arbítrio. 6 Ferrajoli - que propugna pela abolição gradual das penas privativas de liberdade, por lhe parecerem excessiva e inutilmente aflitivas - se opõe, doutra parte, à idéia de ressocialização ou reeducação por meio da pena. Porque o Estado - afirma - que não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados, senão só o de impedir que se danem entre si, tampouco tem o

Paulo Queiroz - A Justificação Do Direito de Punir Na Obra de Luigi Ferrajoli Algumas Observações Críticas

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo de Paulo Queiroz, crítica a justificação do direito de punir de Luigi Ferrajoli

Citation preview

  • 1

    A JUSTIFICAO DO DIREITO DE PUNIR NA OBRA DE LUIGI

    FERRAJOLI: ALGUMAS OBSERVAES CRTICAS

    Revista Brasileira de Cincias Criminais | vol. 27 | p. 143 | Jul / 1999

    DTR\1999\282

    Paulo Queiroz

    rea do Direito: Geral

    Sumrio:

    "O abolicionismo penal, muito alm de suas intenes libertrias e humanitrias, se configura, por

    tudo isso, como uma utopia regressiva que, sob pressupostos ilusrios de uma sociedade boa e de

    um Estado bom, apresenta modelos em realidade desregulados ou autorregulados de vigilncias

    e/ou castigos face aos quais o direito penal - com seu complexo, difcil e precrio sistema de

    garantias - ele que constitui, histrica e axiologicamente, uma alternativa progressista" (Ferrajoli,

    Derecho y razn, p. 341).

    SUMRIO: 1. Fundamento do direito de punir - 2. O modelo de direito penal mnimo e garantista -

    3. Crtica - Anexo.

    Resumo: Crtica obra "Derecho y Razn" de Luigi Ferrajoli, questionando especialmente a

    eficcia preventiva do Direito Penal. Segue resposta do autor italiano s crticas feitas.

    Palavras-chave: Garantismo penal; Preveno geral; Direito de punir; Represso penal.

    1. FUNDAMENTO DO DIREITO DE PUNIR

    Para Ferrajoli, que define o direito penal como uma tcnica de definio, comprovao

    e represso da desviao, 1o nico fim que pode e deve perseguir, legitimamente, o Estado, por

    meio da pena, a preveno geral negativa. Mas no apenas a preveno de futuros delitos, como

    si enfatizar as doutrinas utilitrias tradicionais. Em seu "utilitarismo reformado", com efeito,

    Ferrajoli d especial nfase preveno de penas informais, isto , preveno de possveis reaes

    pblicas ou privadas arbitrrias, que podem resultar da ausncia ou omisso do sistema penal.

    2

    Assinala, assim, que a pena no serve s para prevenir os injustos delitos, seno tambm

    os castigos injustos; que no se ameaa com ela e se a impe s ne peccetur, seno tambm ne

    punietur, que no tutela s a pessoa ofendida pelo delito, e sim tambm ao delinqente, frente s

    reaes informais, pblicas ou privadas. 2

    Confere-se-lhe (ao direito penal), portanto, uma dupla funo preventiva, ambas de

    signo negativo: preveno de futuros delitos e preveno de reaes arbitrrias, partam do particular

    ou do prprio Estado. Privilegia, porm, seu modelo de justificao do direito penal, essa segunda

    funo, que considera como "fim fundamental" da pena. E isso porque, primeiro, Ferrajoli duvida, 3por um lado, da efetiva idoneidade do direito penal para prevenir delitos futuros; duvida, enfim, da

    eficcia dissuasria da interveno penal; e, por outro, acredita que seja a norma penal mais eficaz

    ou mais adequada para cumprir essa segunda tarefa (de preveno de reaes informais), "ainda

    quando com penas modestas ou pouco mais que simblicas"; 4segundo, porque s esse segundo fim

    , ao seu ver, necessrio e suficiente para fundamentar um modelo de direito penal mnimo e

    garantista; finalmente, porque s a tutela do inocente e a minimizao da reao ao delito servem

    para distinguir o direito penal de outros sistemas de controle social - policial, disciplinrio, terrorista

    etc.

    Considera, por outro lado, que enquanto a preveno geral de delitos determina o

    "limite mnimo" das penas, a preveno de penas arbitrrias ou desproporcionadas - vinganas,

    abusos de poder etc. - determina o "limite mximo" da pena. Com efeito, uma, a preveno geral de

    crimes, reflete o interesse da maioria no-desviada; a outra, a preveno de reaes sem controle, o

    interesse do ru e de todo aquele que suspeito ou acusado como tal. E esses fins e interesses,

    certo, entram em conflito, e so seus portadores as partes no processo penal contraditrio: a

    acusao, interessada na defesa social e, por conseguinte, em maximizar a preveno e o castigo aos

    delitos; e a defesa, interessada na defesa individual e, portanto, em maximizar a preveno das

    penas arbitrrias. 5E o direito penal nasce, assim, da necessidade poltica e social de administrar

    esse conflito de interesse, objetivando controlar a violncia (minimiz-la) e coibir o arbtrio. 6

    Ferrajoli - que propugna pela abolio gradual das penas privativas de liberdade, por lhe

    parecerem excessiva e inutilmente aflitivas - se ope, doutra parte, idia de ressocializao ou

    reeducao por meio da pena. Porque o Estado - afirma - que no tem o direito de forar os

    cidados a no serem malvados, seno s o de impedir que se danem entre si, tampouco tem o

  • 3

    direito de alterar - reeducar, redimir, recuperar, ressocializar ou outras idias semelhantes - a

    personalidade dos rus. E o cidado, embora tenha o dever jurdico de no cometer fatos delitivos,

    tem, no entanto, o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que . As penas, por

    conseguinte, conclui ele, no devem perseguir fins pedaggicos ou correcionais, seno que devem

    consistir em sanes taxativamente predeterminadas, e no agravveis com tratamentos

    diferenciados e personalizados do tipo tico ou teraputico. 7

    Em concluso: a lei penal representa, no seu sentir, a "lei do mais dbil (ou mais fraco)"

    - dbil, quando ofendido ou ameaado pelo delito, assim como dbil, quando ofendido ou ameaado

    pela vingana -, lei do mais dbil que se dirige, assim, proteo dos direitos fundamentais destes

    contra a violncia arbitrria do mais forte. Portanto, fim geral do direito penal , segundo Ferrajoli,

    impedir que os indivduos faam justia por suas prprias mos, ou, ainda, minimizar ou controlar a

    violncia.

    Dito mais claramente: ao monopolizar a fora, delimitar seus pressupostos e

    modalidades e excluir seu exerccio arbitrrio por parte dos sujeitos no autorizados, a proibio e a

    ameaa penais protegem as possveis partes ofendidas contra os delitos, enquanto que a imposio

    da pena protege os rus e inocentes suspeitos de crime, contra vinganas ou reaes arbitrrias

    pblicas ou privadas. As duas finalidades preventivas - preveno de delitos e de penas arbitrrias -

    esto assim conectadas entre si sobre esta base: legitimam conjuntamente a "necessidade poltica"

    do direito penal como instrumento de tutela dos direitos fundamentais. 8

    2. O MODELO DE DIREITO PENAL MNIMO E GARANTISTA

    No entanto, semelhante discurso no capaz de impedir, por si s, um modelo mximo

    de direito penal.

    No isso que pretende o "minimalista" Ferrajoli, evidentemente; antes, se insurge

    enfaticamente contra tal tendncia. Para ele, o direito penal ideal, por assim dizer, em face da

    exigncia de certeza e razo que devem presidir a interveno do Estado, necessariamente um

    modelo de direito penal que represente a um tempo o mximo de bem-estar possvel para os no-

    desviados (os no-delinqentes) e o mnimo de mal-estar para os desviados (os delinqentes), 9modelo que corresponde, assim, a um meio termo entre um modelo mximo de direito penal e o

    abolicionismo penal: um modelo de direito penal mnimo, enfim.

    4

    Por "direito penal mnimo" considera um direito penal maximamente condicionado e

    maximamente limitado, isto , limitado s situaes de absoluta necessidade - "pena mnima

    necessria" -, que corresponda, assim, no s ao mximo grau de tutela de liberdade dos cidados

    frente potestade punitiva do Estado, seno tambm a um ideal de racionalidade e de certeza, razo

    pela qual no ter lugar a interveno penal sempre que sejam incertos ou indeterminados os seus

    pressupostos. 10E, por "garantismo", a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais cuja

    satisfao, ainda que contra interesses da maioria, o fim justificador do direito penal: a imunidade

    dos cidados contra a arbitrariedade, das proibies e dos castigos, a defesa dos dbeis mediante

    regras iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e, por conseguinte, garantia de sua

    liberdade mediante o respeito de sua verdade. 11Esse sistema assim mnimo de garantias do cidado

    frente ao poder punitivo do Estado representado pela adoo (ou manuteno ou aperfeioamento)

    de 10 garantias - garantias clssicas - penais fundamentais.

    Ei-las: 1. princpio de retributividade ou da sucessividade da pena frente ao delito; 2.

    princpio da legalidade; 3. princpio da necessidade ou de economia do direito penal; 4. princpio da

    lesividade ou da ofensividade do ato; 5. princpio da materialidade ou da exterioridade da ao; 6.

    princpio de culpabilidade ou de responsabilidade pessoal; 7. princpio da jurisdio; 8. princpio

    acusatrio; 9. princpio de verificao; 10. princpio do contraditrio ou ampla defesa. 12Por esse

    modelo garantista, exige-se, como pressuposto necessrio de toda e qualquer punio, o prvio

    cometimento de um delito, sua previso por lei como tal, necessidade estrita de sua proibio e

    punio, efeitos lesivos para terceiros, o carter exterior ou material da ao criminosa, a

    imputabilidade e culpabilidade do autor, e, ainda, sua prova emprica levada por uma acusao ante

    um juiz imparcial em processo pblico e contraditria com a defesa e mediante um procedimento

    preestabelecido. 13

    Importa consignar, finalmente, que se, de um lado, o modelo garantista de Ferrajoli se

    presta, como se v, relegitimao do direito penal, certo que, de outro, presta-se, tambm,

    deslegitimao de sistemas penais concretos que, total ou parcialmente, violem o modelo de direito

    penal mnimo proposto. E, seguramente, todos os sistemas penais o violam, ainda quando

    consagrem, em linhas gerais, tais princpios. No sem razo, alis, a sua "confisso" no sentido de

    que talvez a verdadeira utopia no seja hoje a alternativa ao direito penal, seno o direito penal

    mesmo e suas garantias; no o abolicionismo penal, por ele combatido, seno o garantismo mesmo,

    que ele prprio prega, de fato inevitavelmente parcial e imperfeito. 14

  • 5

    3. CRTICA

    Em que pese a coerncia lgica do pensamento de Ferrajoli, pode-se fazer algumas

    objees sua formulao terica.

    Em primeiro lugar, a idia da preveno geral de delitos por meio do direito penal parte

    de um pressuposto emprico indemonstrado - e dificilmente demonstrvel - do qual o prprio

    Ferrajoli muito desconfia: a idoneidade da ameaa penal para dissuadir comportamentos delituosos;

    no se podendo desconhecer, como ele prprio reconhece, as complexas causas sociais,

    psicolgicas e culturais dos delitos, certamente no neutralizveis mediante o mero temor das

    penas. 15E, se inexiste relao de adequao lgica entre meio (pena) e fim (prevenir crimes),

    faltam, evidentemente, os pressupostos de certeza e razo pretendidos.

    Por outro lado, no faz muito sentido proclamar-se que o direito penal seja mais eficaz

    para prevenir reaes informais arbitrrias. Porque, como se sabe, tais reaes - vinganas,

    execues sem processo (execues sumrias), abusos de poder etc. - no so seno crimes tambm

    (genocdio, homicdio, leses corporais, abuso de autoridade, violao de domiclio etc.) ou, no

    mnimo, exerccio arbitrrio das prprias razes, fato definido na maioria das legislaes penais

    tambm como crime (entre ns, o art. 345 do CP (LGL\1940\2)). Prevenir reaes arbitrrias e

    prevenir delitos so, em ltima anlise, pois, uma s e mesma coisa. Seja como for, se o direito

    penal no til preveno de delitos - ou muito se desconfia da sua capacidade dissuasria -, no

    h por que se acreditar que, diferentemente, seja idneo para essa segunda tarefa que se lhe credita

    pronunciadamente: prevenir reaes informais. Nada justifica, enfim, essa crena de que um mesmo

    remdio - comprovadamente ineficaz - possa funcionar para um mal e no para o outro, embora

    idnticas as suas causas.

    certo, doutra parte, que semelhante fim de preveno de reaes informais violentas

    no uma exclusividade do direito penal. Em verdade, essa uma funo declarada, no do direito

    penal propriamente, mas do prprio Direito. Ao pretender justificar o direito penal, Ferrajoli acaba

    por justificar o Direito mesmo, absolutizando, na pena, o Direito como um todo. E, se assim , no

    se compreende por que no se possa alcanar tais fins por meio de uma interveno jurdica no-

    penal: civil, administrativa, trabalhista, processual. Ou por que se deva apelar ao direito penal

    necessariamente.

    6

    A par disso, ordinariamente reaes informais arbitrrias esto relacionados a fatos dos

    quais no se ocupa, em princpio, o direito penal: suspeitas de infidelidade conjugal, cobrana de

    dvidas, disputas possessrias, atos de prostituio etc.

    Convm tambm redargir que, no mundo dos fatos, inexiste esta equao inexorvel:

    crime + falta de represso penal = reao arbitrria. Pois, de um lado, a vtima ou pessoas de

    alguma forma atingidas pelo crime buscam as formas mais dspares de superao da agresso

    sofrida - resignao, esquecimento, perdo, crena na implacabilidade da "justia divina",

    reparao, composio, terapia etc. -, de outro, mesmo ocorrendo a efetiva incidncia da

    interveno penal, por vezes se consumam reaes informais arbitrrias, casos, por exemplo, em

    que, mesmo preso, processado ou sentenciado (condenado ou absolvido), ocorrem atos de

    linchamento ao ru ou se perpetram atos de represlia sua pessoa ou a pessoas ligadas a ele. Vale

    dizer, reaes arbitrrias podem ocorrer, "a despeito de", ou mesmo "a pretexto da" interveno do

    sistema de justia penal (prises ilegais, tortura, execues etc.).

    No poucas vezes, ainda, reaes informais arbitrrias, paradoxalmente, resultam

    exatamente da "ingerncia crimingena" do sistema penal em domnios comprovadamente rebeldes

    a este modo cirrgico de interveno estatal. o que ocorre, por exemplo, em relao represso

    arbitrria ao trfico ilcito de entorpecentes, em que a "guerra" pelo monoplio do comrcio

    clandestino - e clandestino precisamente por fora da atuao (criminalizao) do sistema penal -

    tem sistematicamente dizimado vidas humanas. Como observa Hassemer, a preveno tambm se

    realiza quando o direito penal deixa, em certas circunstncias, de intervir. 16Enfim, em muitos

    casos, diferentemente, prevenir significa descriminalizar (ou despenalizar), isto , abolir o direito

    penal.

    No se pode, ademais, perder de vista que a efetiva interveno do sistema penal

    excepcional, j que a maior parte dos comportamentos erigidos categoria de delituosos como regra

    passa ao largo do conhecimento ou da atuao do sistema penal, 17razo por que muito

    questionvel, tambm por isso, a necessidade do direito penal para realizar tais cometimentos.

    Como assinala Zaffaroni, no plano real ou social, a experincia j indicaria que j parece estar bem

    demonstrada a desnecessidade do exerccio do poder do sistema penal para evitar a generalizao da

    vingana, porque o sistema penal s atua num reduzidssimo nmero de casos e por onde a imensa

    maioria dos supostos impunes no generaliza vinganas ilimitadas. Ademais, na Amrica Latina se

  • 7

    tem cometido cruis genocdios que tm ficado praticamente impunes, sem que tenham havido

    episdios de vingana massiva. 18

    conhecida, finalmente, a sistemtica violao das garantias do direito e processo

    penais, apesar de formalmente consagradas, como reconhece o prprio Ferrajoli, pela realidade

    operativa do sistema penal, um sistema de dificlimo e delicadssimo controle. Se bem, que com um

    certo exagero, tem razo, no particular, Steinert, quando afirma que a lei penal conflita com sua

    funo liberal e resulta, assim, irreal, posto que, ao invs de restringir a interveno do Estado, se

    converte, em realidade, em uma autorizao para que essa interveno se legitime. 19

    Em face disso, pois, o direito penal passa a atuar ordinariamente margem da

    legalidade - prises provisrias foradas e sem amparo legal, prises alm do prazo legal, tortura,

    execues sumrias -, a revelar que, em boa parte, o poder real do sistema penal no repressivo

    propriamente, mas "configurador disciplinrio" (positivo e no negativo), arbitrrio e seletivo. 20O

    garantismo jurdico-penal sistematicamente negado.

    Por tudo isso, resulta que, sem negar o brilho da extraordinria obra de Ferrajoli

    (Derecho y rzon), o problema da legitimao e/ou deslegitimao do sistema penal segue sendo

    um questionamento aberto e carente de uma melhor e mais convincente fundamentao, a exigir o

    aprofundamento das investigaes criminolgicas e poltico-criminais, bem como o

    aprofundamento e considerao das mltiplas variveis que envolvem semelhante questionamento.

    ANEXO

    Roma, 04 de janeiro de 1999.

    Egrgio Dr. Queiroz:

    Desculpe-me se somente agora respondo a sua gentil carta de 30 de junho de 1998. Por

    um desagradvel extravio, sua carta perdeu-se entre outras cartas minhas e s agora eu a reencontro.

    Agradeo tambm pelo ensaio que voc me enviou sobre meu modelo de justificao do

    direito penal. E lhe agradeo tambm pelas crticas.

    8

    Sua primeira crtica - aquela segundo a qual no verificvel empiricamente a

    capacidade do direito penal de prevenir os delitos e as reaes informais aos delitos - pode ser assim

    rebatida: no tampouco verificvel a incapacidade do direito penal de prevenir os delitos e as

    reaes informais aos delitos. Obviamente, delitos e reaes informais aos delitos existem tambm

    na presena do direito penal. Mas podemos facilmente imaginar a sociedade selvagem - governada

    pela lei do mais forte - que se produziria na ausncia do direito penal. Um exemplo da ausncia ou,

    se se prefere, da pesada inefetividade ( ineffettivit) do direito penal infelizmente oferecido

    exatamente pela prpria impunidade da criminalidade do poder (em particular atravs das formas de

    justia sumria e de reaes informais arbitrrias aos delitos praticadas pela polcia) nas grandes

    metrpoles do Brasil e em vrios outros pases da Amrica Latina, aos quais voc mesmo faz

    referncia.

    Sua segunda crtica, segundo a qual a preveno das reaes informais uma funo de

    todo o direito e no s do direito penal, que ademais eu considerei, por outro lado, "como um todo",

    parece-me no corresponda ao quanto eu tenho repetidamente escrito: antes de tudo, que o direito

    penal s um meio e, por certo, no o nico meio, de preveno dos delitos, justificvel s se

    "mnimo", ou seja, como extrema ratio, com base nos princpios de economia e de necessidade,

    onde no so suficientes os meios civis ou administrativos e, sobretudo, medidas sociais; em

    segundo lugar, aquilo que proponho um modelo de justificao e, conjuntamente, de

    deslegitimao no do direito penal enquanto tal, mas deste ou daquele setor singular ou norma ou

    pena ou instituto especfico de cada direito penal concreto.

    Serei grato se me enviar cpia do seu texto quando for publicado. Autorizo, se lhe

    interessar, a publicao em margem, inclusive, desta minha brevssima rplica. Luigi Ferrajoli.

    (1) Derecho y razn. Trad. Perfecto Ibez e outros. Madrid : Trotta, 1995, p. 209.

    (2) Idem, p. 332.

    (3) Escreve, com efeito, textualmente: "Em rigor, qualquer delito cometido demonstra

    que a pena prevista para ele no foi suficiente para preveni-lo e que para tal fim seria necessrio

    uma maior" (...). duvidosa a idoneidade do direito penal para satisfazer eficazmente a primeira (a

    preveno geral de delitos) - no se podendo ignorar as complexas razes sociais, psicolgicas e

    culturais dos delitos, certamente no neutralizveis mediante o mero temor das penas". Ibidem, p.

    332-334.

    (4) Ibidem, p. 334.

    (5) Ibidem, p. 334.

  • 9

    (6) O direito penal, ressalta Ferrajoli, nasce precisamente no momento em que a relao

    bilateral parte ofendida/ofensor substituda por uma relao trilateral em que se situa numa

    posio de terceiro e imparcial uma autoridade judicial. Ibidem, p. 332-333.

    (7) Ibidem, p. 223-224.

    (8) Ibidem, p. 335.

    (9) Ibidem, p. 332.

    (10) Ibidem, p. 104.

    (11) Ibidem, p. 336.

    (12) Ibidem, p. 93. Respectivamente: 1. Nulla poena sine crimine; 2. Nullum crimen

    sine lege; 3. Nulla lex (poenalis) sine necessitate; 4. Nulla necessitas sine iniuria; 5. Nulla iniuria

    sine actione; 6. Nulla actio sine culpa; 7. Nulla culpa sine iudicio; 8. Nullum indicium sine

    accusatione; 9. Nulla accusatio sine probatione; 10. Nulla probatio sine defensione. Ibidem.

    (13) Ibidem, p. 103-104.

    (14) Ibidem, p. 342.

    (15) Ibidem, p. 332-334.

    (16) Fundamentos del derecho penal. Trad. Muoz Conde y Zapatero. Barcelona :

    Temis, 1984, p. 396.

    (17) Alm das "cifras negras" da criminalidade, que prefere denominar "cifras da

    ineficcia", o prprio Ferrajoli que destaca o que chama de "cifras da injustia", que

    correspondem ao nmero de inocentes processados e s vezes condenados. Ibidem, p. 210.

    (18) En busca de las penas perdidas. Bogota : Temis, 1990, p. 83.

    (19) Mas alla del delito y de la pena. In: Abolicionismo penal. Trad. Mariano Ciafardini

    e outros. Buenos Aires : Ediar, 1989, p. 45.

    (20) ZAFFARONI, op. cit., p. 12-13.