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TRADUZINDO O ECONOMÊS para entender a economia brasileira na época da globalização

Paulo Sandroni - Traduzindo o Economês

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TRADUZINDO O ECONOMÊSpara entender a economia brasileira

na época da globalização

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Paulo Sandroni

TRADUZINDO O ECONOMÊSpara entender a economia brasileira

na época da globalização

2000

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Traduzindo o EconomêsCopyright © 2000 Paulo Sandroni

Todos os direitos reservados.Copyright © 2000 da edição em língua portuguesa

adquirido pela Editora Nova Cultural Ltda.

Editora ExecutivaJanice Flórido

EditorRoberto Pellegrino

Editora de ArteAna Suely S. Dobón

RevisoresFábio M. AlbertiLevon Yacubian

Editoração eletrônicaDany Editora Ltda.

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.Direitos exclusivos da edição em língua portuguesa no Brasil

adquiridos pela Editora Nova Cultural Ltda.,que se reserva a propriedade desta edição.

EDITORA BEST SELLERuma divisão da Editora Nova Cultural Ltda.

Rua Paes Leme, 524 - 10º andar - CEP 05424-010Caixa Postal 9442 - São Paulo, SP

2000

Impressão e acabamento: Gráfica Círculo

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Sumário

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Capítulo 1 – O Desequilíbrio do Setor Externo . . . . . 9

Capítulo 2 – Os Desequilíbrios das Contas Públicas 57

Capítulo 3 – O Dinheiro e Suas Transformações . . . 75

Capítulo 4 – O Padrão-Ouro e a Desvalorização do Dólar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

Capítulo 5 – A Crise dos Anos 80: a Dívida Externa e o Ajuste . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

Capítulo 6 – O Plano Real e a Âncora Cambial . 145Capítulo 7 – A Globalização e as Transformações

dos Anos 90 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

Capítulo 8 – A Crise Asiática e os Problemas doCrescimento Econômico . . . . . . . . . . . . . 191

Capítulo 9 – Controvérsias entre a Teoria e a Prática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211

Capítulo 10 – O Futuro de um Presente Mal Passado 237

Dicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271

Sobre o Autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295

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Introdução

Os economistas costumam dizer que todo problemaeconômico tem uma resposta simples e errada. Esperoque isso não tenha acontecido com este livro, em queeu faço uma tentativa de ajudar aqueles que se deses-peram diante da linguagem muitas vezes codificadados especialistas.

Para explicar por que a economia brasileira vai indodo jeito que vai, utilizei exemplos bem simples e ima-gens da vida cotidiana próximas de todos nós, espe-rando que essa abordagem facilite a leitura de jornais,revistas, ou a compreensão dos noticiários de televisão.

Como ajuda adicional coloquei, no final, dicas a res-peito de conceitos, termos ou expressões sobre econo-mia e finanças que com mais freqüência têm sido vei-culados pela mídia nos últimos tempos.

A análise do momento presente levou-me a darumas voltas pelo passado. Espero que o leitor desfruteessas viagens, especialmente a visita ao Mágico de Oz.

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Muitos livros foram consultados e serviram de apoiopara a redação deste. A relação segue no final, comouma resumida bibliografia. Agradeço aos respectivosautores, e também àqueles meus colegas da Faculdadede Economia e Administração da Pontifícia Universi-dade Católica e da Escola de Administração de Em-presas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, queem conversas nos corredores, nos intervalos de aula,e especialmente nas lanchonetes, responderam às mi-nhas perguntas e esclareceram certas dúvidas sem tor-cer o nariz. A responsabilidade sobre o texto final, noentanto, cabe unicamente a mim.

Um agradecimento especial dirijo a minha mulher,Vera, a meus filhos, Lalo e Isaura, e a minha mãe,Alzira, não só pela paciência e carinho com que atu-raram o aumento das desatenções, como por terem setransformado, de certa forma, em personagens do pró-prio livro.

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CAPÍTULO 1

O DESEQUILÍBRIO DOSETOR EXTERNO

1. O Gato da Vizinha, Kosovo e a Diagonal Endógena

Minha vizinha tem um gato. Um gato aliás muitosimpático e, importante, silencioso. Não ultrapassa aporta de vidro de nossa varanda, a não ser que sintao cheiro de carne sendo preparada. Às vezes o gatosome e a vizinha vem procurá-lo aqui. Embora infru-tíferas, as buscas são feitas em todos os cantos, poisalguém pode ter fechado a porta de vidro com o gatodentro.

Outro dia cheguei em casa à noite e encontrei ofilho da vizinha — jovem de uns quinze ou dezesseisanos — sentado na sala, à espera de mais uma buscade seu volátil animal.

A televisão estava ligada mesmo sem ter ninguém“da casa” assistindo — o que não é novidade —, eum noticiário desses que costumam causar impacto

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mostrava cenas dos bombardeios na Iugoslávia e damarcha dos refugiados de Kosovo: crianças chorando,e pessoas feridas gemendo tendo como pano de fundogrande destruição.

Por um instante as atenções do jovem se desviaramdo gato e se fixaram na televisão. Notei que ele estavaimpressionado. Eu mesmo parei para ver o final danotícia. Virou-se para mim — ele sabia que eu era“professor” —, esqueceu por um instante seu animalde estimação e perguntou o porquê da guerra emKosovo.

Invadiu-me um ligeiro pânico e dei uma desculpaqualquer do tipo “primeiro preciso lavar as mãos parajantar” e logo “te explico”.

É claro que demorei o suficiente para que o boletimde ocorrência sobre o gato tivesse sido lavrado nostermos de um cristalino “o gato não está aqui” e omenino fosse embora. Só então voltei à sala.

Ufa! pensei, me livrei de boa. A última coisa quegostaria de fazer era explicar as razões daquela guerra,mesmo porque não tinha a menor idéia de por ondecomeçar e muito menos de como terminar. Em suma,eu não sabia a resposta.

Ao voltar para a sala o noticiário já havia se deslo-cado da guerra na Iugoslávia para os últimos aconte-cimentos econômicos e financeiros no Brasil. Um en-trevistado tentava explicar o que acontecera nos tu-

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multuados dias de janeiro de 1999, quando a moedabrasileira fora fortemente desvalorizada.

Ao referir-se ao ex-presidente do Banco Central,Francisco Lopes, o entrevistado explicou que a flutua-ção da taxa de câmbio seria determinada por uma“banda diagonal endógena”. Assaltou-me uma sensa-ção de desespero ao pensar que meu vizinho curiosopudesse estar ali outra vez à procura de seu gato eme perguntasse o que significava aquilo...

Agora tratava-se de economia, ou melhor, de “eco-nomês”, e eu não poderia dizer que não tinha lavadobem as mãos...

Como consolo lembrei-me de um amigo que diziaser necessário falar o javanês para entender as por-tarias do Banco Central. Reconheci que os aconte-cimentos econômicos no Brasil, embora muito maispróximos, deviam ser tão ou mais indecifráveis parao comum dos mortais do que as causas da guerrana distante Iugoslávia. Mas poderiam também cau-sar dor e sofrimento não apenas em crianças e ido-sos, mesmo que aqui não estivéssemos em guerra.

Comecei então a “ensaiar” explicações para que meuvizinho não me pegasse outra vez desprevenido. Afi-nal, a seus olhos eu era “professor de economia” edevia saber, quando não da guerra, pelo menos a res-peito dessa questão aparentemente tão complexa...pois seu gato continuava andarilho como nunca.

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2. Jornais Velhos Sempre Servem para Alguma Coisa

Tenho o costume, inútil, de separar notícias de jornalpara um dia lê-las com mais calma e ordená-las numtodo coerente. Nem sei se isso é possível. Os jornaisnão se destacam por manter uma linha de notíciascom encadeamento lógico. Mas as pilhas vão cres-cendo, os jornais vão tornando-se amarelados e que-bradiços, e de tempos em tempos não há mais espaçopara empilhá-los.

Uma decisão heróica tem de ser tomada: um mon-tinho novo só recebe autorização para surgir se ummais antigo for jogado fora. É exatamente o contráriodo just-in-time : estoques máximos e fluxos mínimos.

No entanto, depois que resolvi me preparar pararesponder às perguntas mesmo virtuais de meu curio-so vizinho, creio ter conseguido dar um destino a esseimenso acúmulo de papéis velhos, motivo de muitasdiscussões com minha mulher, assessorada (bem) pelaempregada.

Destaquei o monte mais recente de jornais empilha-dos e comecei a reexaminá-los. O primeiro que con-sultei era do final de novembro de 1998 e dizia emmanchete o seguinte: “Déficit externo vai a 4,4% doPIB, recorde no Real”.

No texto da notícia lia-se:

“O déficit em transações correntes chegou a 4,4% doProduto Interno Bruto na série de doze meses terminada

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em outubro. É o maior saldo negativo registrado desde oinício do Plano Real... Este dado reflete a crise financeirainternacional”.

As declarações eram de um graduado funcionáriodo Banco Central.

Em primeiro lugar vamos fazer uma conta bem sim-ples: quanto representam esses 4,4% do PIB (iniciaisde Produto Interno Bruto) em termos de dólares,pois ele, para efeito de comparação com outros paí-ses, é geralmente medido na moeda dos EstadosUnidos.

No momento em que essa notícia era divulgada,nosso PIB, isto é, o valor estimado de tudo o que seproduziu em bens e serviços no país durante um ano,alcançava cerca de US$ 750 bilhões. Portanto, esse dé-ficit era equivalente a 4,4% desse valor, ou cerca deUS$ 35 bilhões.

Mas a notícia referia-se ao déficit existente nas “tran-sações correntes”. O que significa isso?

Quando os jornais se referem ao déficit externoem “transações correntes” ou em “conta corrente”,eles estão indicando que gastamos cerca de US$ 33bilhões mais do que arrecadamos no comércio, nosserviços e nas transferências unilaterais. São contasque registram as relações econômicas e financeirasde um país, como dizem os ingleses, com o “restodo mundo”.

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Agregadas ao movimento de capitais, essas três con-tas das “transações correntes” completam os elementosessenciais do chamado Balanço de Pagamentos.

Um déficit nessas três contas significa que as receitasem dólares foram inferiores às despesas, embora possater havido uma receita maior do que a despesa numadelas em particular, mas superada pelo déficit regis-trado nas demais.

Na realidade, as declarações estampadas no jornaldaquele funcionário do Banco Central eram preocu-pantes. O déficit em transações correntes, além degrande, havia crescido em relação ao ano anterior. Acausa foi um forte desequilíbrio na balança comercialacompanhado por um belo e costumeiro déficit na con-ta de serviços. Embora as transferências unilaterais ti-vessem apresentado um bom superávit, o déficit finalnas transações correntes havia sido enorme.

Avaliei que, se meu jovem vizinho surgisse à pro-cura do gato, me perguntaria sobre o que são essascontas. Vejamos a mais simples e homogênea delas,que é a de comércio, e o porquê do déficit.

3. O Déficit Comercial Provocando uma Briga Conjugal

Um amigo disse certa vez que todo casal (normal)para manter a harmonia tem de brigar pelo menosuma vez por dia. Registrei isso na memória e ao chegarem casa uma noite, quando o Plano Real ainda ia de

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vento em popa, minha mulher me recebeu toda alegredizendo que havia comprado duas camisas para mim.

“Eis aí”, pensei, “um bom motivo para brigar hoje”,e fui logo dizendo que não precisava de camisas, queela sabia que eu não gostava de experimentar roupae que, além disso, existiam despesas mais prioritárias(não lembro bem se disse mais prioritárias ou menossupérfluas) etc... etc...

Ela deu uma leve risada como quem diz “sabia quevocê iria dizer isso”, mas pediu que eu experimentassepelo menos uma, porque se não ficasse boa ela trocariana loja.

Depois de certa relutância acedi e experimentei aprimeira camisa. Caiu como uma luva. Obviamentepassei para a defensiva. Não pude deixar de testar asegunda, que também ficou perfeita, embora de outropadrão, enquanto buscava novos argumentos parabrigar.

Pensei que encontraria o pomo de discórdia na for-ma de pagamento, e perguntei: “Como é que vocêpagou? Em quantas vezes? No cartão ou em chequespré-datados?”

Para minha surpresa, ela disse que havia pago àvista, em dinheiro, e antes da pergunta final, “quan-to?”, respondeu: “Cinco reais cada”.

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Vacilei diante da estocada, pois eram camisas quevaliam no mínimo quatro vezes mais. Então reagi. Co-loquei meu gorro de economista e dei a bronca: “Vocêdeveria ter comprado meia dúzia!” Mas enquanto adiscussão prosseguia — agora nem me lembro maiscomo e nem se o resultado final foi de confronto oude conciliação — olhei a etiqueta e ali estava a chavedo enigma: “Made in China”.

Os produtos estrangeiros — não apenas os chineses— haviam se tornado muito baratos e os nacionais,relativamente caros. O Brasil estava vendendo menose comprando mais no exterior ou, o que é o mesmo,as importações estavam superando as exportações,provocando um déficit na conta de comércio.

Mas por que isso acontecia se antes do Plano Realser lançado em 1/7/94 a situação era exatamente ainversa, isto é, vendíamos mais do que comprávamosdo exterior?

Vejamos a evolução de nossa balança comercial en-tre 1993 e 1997 para comprovar isso:

Quadro 1

1993 1994 1995 1996 1997

Exportações 38,5 43,5 46,5 47,7 52,9

Importações 25,2 33,0 49,6 53,2 61,2

Saldo +13,3 +10,5 –3,1 –5,5 –8,3

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

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É fácil perceber que até o lançamento do Plano Realtínhamos saldos positivos ou superávits na conta decomércio. Depois, embora as exportações também ti-vessem crescido, as importações mais do que dupli-caram, passando de US$ 25,2 bilhões para US$ 61,2bilhões!

A razão mais importante dessa virada está relacio-nada com a taxa de câmbio. Vamos dar portanto umaespiada nessa questão antes de passarmos para a contade serviços.

4. A Gangorra da Balança Comercial e as Taxas deCâmbio

Se meu jovem vizinho estivesse por perto, certamen-te perguntaria o que vinha a ser uma taxa de câmbio,pois a única coisa que sabia sobre taxas eram as es-colares, e o câmbio resumia-se àquela alavanca do car-ro do pai que ele estava proibido de manipular mesmocom o veículo parado.

Bem, uma taxa de câmbio é a relação de valor entreduas moedas. Por exemplo, o real do Brasil e umamoeda estrangeira como o dólar dos Estados Unidos.O euro, emitido pelos países que constituem a UniãoMonetária Européia, pode servir como referência tam-bém, pois é considerado, assim como o dólar, uma moeda“forte”, embora ainda não plenamente consolidada.

Quais as características dessas moedas que servemcomo dinheiro internacional?

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A primeira delas é a confiabilidade, pois são emi-tidas por governos idem, idem. No caso do dólar, ape-sar das estripulias do presidente Clinton, a confiançaestá alicerçada numa poderosa economia, embora asforças política, militar e diplomática também ajudem.

Em termos bem simples, podemos dizer que, se umdólar for trocado por um real, a taxa de câmbio noBrasil será: R$ 1,00 = US$ 1,00.

Esta taxa estará em equilíbrio quando o poder decompra de R$ 1,00 no Brasil for o mesmo que o deUS$ 1,00 nos Estados Unidos.

A revista londrina The Economist, de grande influên-cia nos meios financeiros internacionais, criou um ín-dice para medir esse poder de compra: o Índice BigMac. Parte-se do princípio de que os ingredientes dessetipo de sanduíche são os mesmos em qualquer país,e se ele custar no Brasil R$ 1,00 e nos Estados UnidosUS$ 1,00, haveria equilíbrio da taxa de câmbio ou oque os economistas chamam de “paridade do poderde compra” entre o real e o dólar. O economês, mes-mo quando traduzido do javanês, não é assim tãoimpenetrável...

O problema é que depois do lançamento do PlanoReal a taxa de câmbio ficou desequilibrada no Brasil.No início a intenção foi fixar uma taxa de câmbio de1 para 1, ou R$ 1,00 = US$ 1,00.

Mas um acordo tranqüilizador sobre a dívida ex-terna e as generosas taxas de juros pagas por aqui

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foram motivos suficientes para que os dólares, haviamuitos anos esperando na beira da porteira, voltassempara o Brasil com grande intensidade.

Além disso, a drástica redução da inflação no Brasile a relativa segurança política, proporcionada pela vi-tória eleitoral de Fernando Henrique Cardoso nas elei-ções presidenciais de 1994, deram um empurrão adi-cional nesses investimentos.

Os dados abaixo mostram essa evolução entre 1993e 1997. É fácil verificar como, a partir de 1994, houveum extraordinário crescimento do fluxo de capital es-trangeiro para o Brasil em suas diferentes formas:

O problema é que, para serem aplicados no mercadobrasileiro, esses dólares precisavam ser trocados porreais, e só então investidos. Houve uma superofertada moeda norte-americana no país e a taxa se dese-quilibrou em favor do real.

Ou melhor, nossa moeda ficou valorizada em rela-ção ao dólar. Em vez de US$ 1,00 ser trocado por R$

Quadro 2

1993 1994 1995 1996 1997

Entradas Líquidas deCapital Estrangeiro 10,1 14,2 29,8 32,3 26,7(*)

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.(*) A queda em 1997 refletiu a fuga de capitais decorrente dacrise no Sudeste Asiático.

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1,00, com apenas 90 centavos de real, ou até menos,se podia adquirir 1 dólar. O dólar ficou “barato”, omesmo acontecendo com tudo o que se poderia com-prar com ele no resto do mundo.

As importações, obviamente, cresceram, pois os pro-dutos que compramos no exterior são cotados em dó-lares. As exportações, embora tivessem crescidotambém, acusaram uma expansão modesta porqueo exportador brasileiro recebia uma quantidade me-nor de reais para cada dólar que obtinha no mercadoexterno.

Os exportadores perderam em certa medida o estí-mulo, pois a rentabilidade de suas exportações dimi-nuiu. Visto de outro ângulo, nossos exportadores per-deram competitividade, e foram desalojados de mer-cados por competidores que haviam desvalorizadosuas moedas em relação ao dólar com antecedência,como foi o caso do México e da China em 1994, eaceitavam vender seus produtos por um preço menorem dólares.

O resultado inevitável: déficits na balança comer-cial. As importações começaram a superar asexportações.

Pensei que esta explicação seria suficiente para es-clarecer meu vizinho, mas, por via das dúvidas, re-forcei-a com outro interessante acontecimento da vidacotidiana.

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5. As Diferenças entre um Salmão e um Bagre (ouHistórias Verdadeiras de Pescador)

O que me convenceu de que havia realmente umdesequilíbrio na taxa de câmbio — além do episódiodas camisas — foi uma visita à feira.

Quando recebo a missão do alto comando domésticode comprar frutas, legumes e verduras, coincidênciaou não, compareço à feira naquele horário que, dizemas más-línguas, é próprio dos economistas: entre meio-dia e meio-dia e meia.

A chamada hora das “xepas”, quando não compensaao feirante voltar para casa com seus produtos, poiseles já estão se dissolvendo... Mas ainda se encontraalguma coisa boa e a um preço bem razoável; bastater um pouco de paciência e selecionar.

Num sábado de agosto de 1995 eu ia chegando, eencontrei já voltando o seu Waldemar, um aposentadoque mora perto da minha casa e que, assim como eu,é doido por pescarias. Sua luta para sobreviver como pouco que ganha é heróica, e o obriga a fazer grandesmalabarismos comprando sempre os alimentos maisbaratos. Igualzinho a uns 160 milhões de compatriotas...

Disse-me que havia comprado um peixe muito bom(importado) e barato, não muito mais caro do que obagre. E indicou a barraquinha que vendia o produto.Mas que eu fosse rápido porque aquele “peixe de carneavermelhada” já estava acabando. Embora pescador

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de muitas histórias, ele não conhecia aquela iguariade urso.

De fato, o preço do salmão tinha caído muito, e issonão se devia apenas a uma supersafra no Chile, mastambém à valorização do real, isto é, ao desequilíbriona taxa de câmbio em favor do real. O que estavabarato não era apenas o peixe, cotado no mercadointernacional em dólares, mas o dólar com o qual secomprava o produto quando comparado com o real.

Com poucos reais se compravam os dólares neces-sários para a importação do peixe, de tal forma queele aparecia na feira competindo com produção na-cional de segunda ou terceira linha. E, de fato, permitiaa quem antes estava acostumado a comer bagres fazeruma boquinha ou mesmo uma extravagância com umpeixe importado.

Em resumo, o que aconteceu depois do lançamentodo Plano Real foi uma valorização da moeda brasileiraem relação ao dólar, tornando baratas as importaçõese caras as exportações, provocando um saldo negativoou um déficit crescente na balança comercial entre 1995e 1997, como já vimos anteriormente.

Se nos treze anos anteriores ao Plano Real estávamosacostumados a ter superávits ou vender mais do quecomprar no exterior, a partir de 1995 a situação seinverteu. Como numa gangorra, as importações queestavam embaixo passaram para cima superando comfolga as exportações.

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O lado positivo dessa inversão foi encontrar pro-dutos de consumo de massa como roupas e alimentos,por exemplo, a preços muito baixos, o que ajudou amanter a inflação em níveis de Primeiro Mundo du-rante quase quatro anos. Portanto, os déficits na ba-lança comercial ajudaram a manter os preços internosestáveis, ou o custo de vida sob controle.

Mas, como veremos mais adiante, esses déficits fo-ram comprometendo a situação externa como um todoe se tornaram uma das principais causas da crise cam-bial de 1999. Enquanto o déficit durou, no entanto,foi gostoso...

Vejamos agora a conta de serviços.

6. Para Tirar uma Foto na Torre Eiffel, Só Mesmo Indoa Paris

Da mesma maneira que os produtos importados fi-caram baratos, os “serviços” vendidos pelos estran-geiros também tornaram-se mais acessíveis.

Talvez o sintoma mais evidente tenham sido as via-gens internacionais, mais conhecidas como turismo declasse média.

Embora haja uma cidade no interior de Goiás comuma torre semelhante à Torre Eiffel, se alguém quiservisitar a original terá de ir até Paris. Ou seja, deverá“comprar” esse serviço na França. Será inevitável que

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troque reais por dólares e estes por francos (ou euros)para viajar, hospedar-se, alimentar-se, e mesmo com-prar souvenirs como as inesquecíveis miniaturas daTorre Eiffel vendidas nos quiosques parisienses.

Houve um déficit muito grande nesse item da contade Serviços do Balanço de Pagamentos. Isto é, brasi-leiros gastaram muito mais no exterior do que turistasestrangeiros gastaram no Brasil. Estes últimos, espe-cialmente argentinos, chilenos e uruguaios, que cos-tumavam inundar as praias de Santa Catarina, do Riode Janeiro e do Nordeste no verão, começaram a ra-rear, e foi a vez de os brasileiros tomarem de assaltoPunta del Este, a Disneylândia, Aspen, Nova York,Flórida e Cancún, no México.

Os números são impressionantes:

O saldo negativo foi multiplicado por quatro; pas-sou de um déficit de US$ 1,2 bilhão em 1994 paraquase US$ 4,5 bilhões em 1997.

Outra manifestação interessante foram as bandas demúsica internacionais. Apesar dos altos cachês em dó-lar, toda semana um show de primeira linha rolavanas casas noturnas de São Paulo ou do Rio.

Quadro 3

1994 1995 1996 1997

Viagens Internacionais –1,2 –2,4 –3,6 –4,4

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

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Os empresários atuavam assim: mesmo não cobran-do entradas a preços elevados em reais, era possívelpagar os artistas estrangeiros porque os dólares queeles cobravam para se apresentar estavam relativa-mente baratos, isto é, podiam ser comprados com“poucos” reais.

Mas, certamente, o que mais pesou no déficit daconta de serviços foram as despesas com o pagamentode juros da dívida externa e as remessas de lucros edividendos do capital estrangeiro aqui investido, pa-gamentos que correspondem aos “serviços” prestadospor esses capitais.

Essas saídas de dinheiro não dependem tanto dataxa de câmbio. No caso dos juros, os montantesdependem das taxas incidentes sobre a dívida ex-terna e o valor dela. No caso dos lucros e dividen-dos, a quantia enviada depende do desempenho dasempresas multinacionais e do estoque de capital es-trangeiro aqui registrado, isto é, investido na indús-tria, no comércio, no setor financeiro e nos serviçosem geral.

Como esses montantes cresceram bastante, ou seja,tanto a dívida externa como o estoque de capital es-trangeiro se ampliaram, as despesas com juros, lucrose dividendos também aumentaram, contribuindo paraampliar o déficit na conta de serviços, e portanto nastransações correntes. Os dados seguintes mostram essaevolução com clareza:

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Entre 1994 e 1997 estas despesas somadas quase do-braram: juros e lucros causaram um rombo de quaseUS$ 16 bilhões na conta de serviços em 1997, contracerca de 9 bilhões em 1994.

Vejamos agora a conta de transferências unilaterais.

7. Os Dekasseguis, a Turma de Governador Valadares eos Turcos Alemães

Fazia alguns dias que eu não recebia informaçõessobre o gato da vizinha. Ou melhor, ninguém tinhaido procurá-lo lá em casa. Era sinal — pela lei dosgrandes números — de que a qualquer momento al-guém poderia aparecer.

Comecei a preparar uma explicação sobre um outroitem do Balanço de Pagamentos que havia surgido deforma dramática num noticiário de televisão: um de-kassegui, desempregado e doente no Japão, retornaraao Brasil depois de muitos sofrimentos.

Quadro 4

1994 1995 1996 1997

Pagamento de Juros 6,3 18,2 19,8 10,3

Remessa de Lucros 2,5 12,6 12,4 15,6

Total 8,8 10,8 12,2 15,9

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

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Vamos examinar o item do Balanço de Pagamentosdenominado “transferências unilaterais”, no qual essesdramas aparecem registrados em cifras.

A partir do final dos anos 80 e especialmente depoisdo Plano Collor em 1990, essas transferências passa-ram a ser expressivas. Agora, atenção! Nesse caso osaldo é positivo: entra mais dinheiro do que sai.

Mas em que consistem? Num conjunto bem diversode atividades tendo uma coisa em comum: não pro-porcionam nenhuma contrapartida, como acontece nocaso da compra ou da venda de uma mercadoria oude um serviço. Por exemplo, as despesas que um paísrealiza para a manutenção de embaixadas e consula-dos em todo o mundo, ou as doações em caso de ca-lamidades etc.

É interessante assinalar que os jornais de fevereirode 2000 trouxeram uma notícia curiosa: o governo ar-gentino, com grandes dificuldades orçamentárias, es-taria propondo ao brasileiro uma parceria na utilizaçãode consulados para reduzir suas despesas com trans-ferências unilaterais. Assim, por exemplo, o consuladobrasileiro em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, po-deria atender também aos interesses argentinos, en-quanto o consulado argentino faria o mesmo em re-lação ao Brasil em Puerto Montt, no Chile.

A vantagem: cada governo poderia fechar um deseus consulados e poupar os respectivos gastos de ma-nutenção. O governo brasileiro, que também enfrenta

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dificuldades orçamentárias, acolheu muito bem a idéiae é provável que ela prospere se as desavenças co-merciais no Mercosul não atrapalharem.

O movimento de recursos mais significativo, no en-tanto, é o envio de dinheiro que brasileiros trabalhan-do nos Estados Unidos, no Japão ou em Portugal fazempara suas famílias residentes no Brasil.

Governador Valadares é uma cidade de Minas Ge-rais que tem sido um “celeiro” de emigrantes para osEstados Unidos. Assim como o Estado de São Pauloe o Paraná são os maiores “exportadores” de descen-dentes de japoneses, os dekasseguis, para o Japão.

Os períodos recessivos que vivemos durante os anos80 e 90 foram a principal razão dessa saída maciça debrasileiros que iam tentar a sorte no exterior.

Mas a economia japonesa também andou mal daspernas durante os anos 90, e esses fluxos emigratóriosdiminuíram um pouco para aquele país. Muitos quehaviam atravessado o Pacífico em busca de bons sa-lários (embora fossem maus empregos) voltaram de-siludidos para o Brasil.

Mas estima-se que quase 300 mil brasileiros vivame trabalhem nessas condições no Japão. E que cercade 1,5 milhão vivam e trabalhem no exterior, a maioriaenviando recursos para seus familiares no Brasil, cons-

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tituindo um verdadeiro exército de operários dastransferências unilaterais.

É claro que existem também estrangeiros vivendoe trabalhando no Brasil e enviando recursos para fora.Mas o saldo é amplamente favorável ao Brasil. Nosúltimos tempos mais de US$ 2 bilhões têm reforçadonosso caixa todos os anos, como mostram os dadosabaixo:

Percebe-se que depois de alcançar um máximo de qua-se US$ 4 bilhões em 1995, essas receitas caíram para umpatamar de 2,5 em média a partir de 1996. Mas o Brasilnão está sozinho nesse tipo de “exportação”.

Outros países também “expulsam” muitos de seusnacionais, como a Colômbia (Nova York é a terceiraou quarta maior cidade colombiana) ou a Turquia. Odestino mais freqüente dos turcos é a Alemanha.

Durante os anos 90, quando o desemprego aumen-tou neste último país e a disputa por empregos —mesmo os mais mal pagos — cresceu, uma onda deódio aos estrangeiros (que estariam “roubando”

Quadro 5

1994 1995 1996 1997

Transferências Unilaterais 2,6 3,9 2,9 2,2

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

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postos de trabalho dos alemães) causou a morte demuitos trabalhadores turcos, geralmente mediante in-cêndios criminosos em suas moradias ou por meio deespancamentos.

Um jornalista e escritor alemão disfarçou-se de tra-balhador turco e descreveu em livro — Cabeça de Turco— como era maltratado nos locais de trabalho.

Esse relato revelou as violências e humilhações so-fridas por esse tipo de trabalhador na Alemanha, dan-do também uma idéia de como a questão do desem-prego agravou-se por lá durante os anos 90. Mesmopostos de trabalho considerados mal pagos, perigosos,sujos e pesados são objeto de acirrada disputa.

No caso brasileiro, o saldo positivo nessa conta ajudapelo menos a reduzir o déficit das contas de comércioe de serviços. E, portanto, contribui para amenizar odéficit em transações correntes. O triste é que tal com-pensação tenha se originado no desemprego no Brasil,o que obrigou milhares de nacionais a viver longe desuas famílias, trabalhando em condições bastante du-ras, ou em ambientes muitas vezes discriminatórios.

Resumindo, podemos concluir que as três contas dastransações correntes apresentaram a seguinte evoluçãonos últimos anos: o comércio e os serviços, grandes dé-ficits; as transferências unilaterais, um razoável superávit.

A síntese das três contas é a seguinte:

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Podemos observar como esses déficits em transaçõescorrentes aumentaram extraordinariamente depois dolançamento do Plano Real até 1997. Em 1998 a situaçãopiorou com aqueles 4,4% do PIB: lembram-se da man-chete de novembro daquele ano com a qual iniciamosnossa discussão?

O problema é que esses déficits necessitam ser co-bertos e, dependendo da forma com que se resolveesse problema, a situação pode se agravar ainda maisa médio prazo.

8. Cobrindo o Déficit com o Manto dos Empréstimos

Ao tratarmos, no tópico 6, dos empréstimos a longo,médio ou curto prazos, e investimentos estrangeiros— que geram remessas de juros, lucros e dividendos—, dizíamos que a partir de 1994 eles começaram aentrar maciçamente no Brasil.

Só estavam esperando o grito de “tá limpo” emitidopelos grandes credores para entrar em larga escala. E

Quadro 6

1994 1995 1996 1997

Balança Comercial +10,5 3–3,1 3–5,5 3–8,4

Balança de Serviços –14,7 –17,8 –21,7 –27,2

Transferências Unilaterais 3+2,6 3+3,9 3+2,9 3+2,2

Transações Correntes 3–1,6 –17,9 –24,3 –33,4

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

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essa manifestação veio em conjunto com o lançamentodo Plano Real, na metade de 1994.

A partir de 1982, quando o país “quebrou” porexaustão das reservas, até 1992, com o impeachment deCollor, os investidores estavam ressabiados: em 1986houve um Plano (o Cruzado) que trouxe um desas-trado congelamento de preços; logo em seguida, em1987, uma moratória da dívida externa, e em 1990 ou-tro Plano (o Collor), com congelamento atrelado à“garfada” nas aplicações financeiras e contas correntes.Todas essas medidas foram consideradas estapafúr-dias pelos investidores internacionais.

De fato, em 1987, durante o governo Sarney, o ex-ministro Dílson Funaro, diante de reservas mínimase desprestígio máximo, e enormes contas para pagarno exterior, declarou uma moratória. A redução dosfluxos de capital estrangeiro para o Brasil foi dramá-tica, mesmo porque logo em seguida, nas eleições pre-sidenciais de 1989, havia, aos olhos dos credores, aameaça de vitória de um candidato de esquerda — oLula.

Os investimentos diretos encolheram para míserosUS$ 130 milhões em 1989. Além disso, logo depois damoratória, as possibilidades de rolagem da dívida ex-terna tornaram-se ainda mais remotas: os recursos ex-ternos novos eram insuficientes para pagar as amor-tizações da dívida que venciam a cada ano.

Escaldados com o que havia acontecido no passado,os investidores só queriam voltar “na boa”, isto é, se

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as condições mudassem. E essas condições começarama se organizar a partir do governo de Itamar Franco,embora pessoalmente o ex-presidente também tivessealgumas esquisitices econômicas (para os homensacostumados com as regras do mercado), tais comose insurgir contra o preço dos remédios, congelar osaltos salários pagos nas estatais e ressuscitar o velhoFusca para espanto dos dirigentes da Volkswagen.

Mas o que talvez tenha sido decisivo para a mu-dança de atitude dos investidores foi a renegociaçãoda dívida externa brasileira.

De fato, em 1989 o Plano Brady (assim denominadopor ter sido arquitetado pelo antigo secretário do Te-souro dos Estados Unidos Nicholas Brady, e do qualtrataremos em detalhe mais adiante) foi elaborado demaneira a reduzir um pouco as taxas de juros e alongaro perfil da dívida externa dos países que haviam entradoem crise em função de seu endividamento externo.

Esse acerto com os credores foi se configurando apartir de 1993, e os dólares voltaram para a economiabrasileira com grande intensidade.

As novas condições estimularam a vinda de capitalestrangeiro, como já foi mostrado no Quadro 2.

Antes de prosseguir, convém esclarecer uma ques-tão importante sobre os prazos de vencimento das dí-vidas. Ou melhor, é importante explicar o que signi-ficou “alongar o perfil da dívida externa”.

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Preparemo-nos para uma eventual visita de meu vi-zinho atrás de seu gato, examinando essa questão maisdetalhadamente.

9. Abastecendo o Carro e Aprendendo um Pouco sobreDívidas

Tenho um carro a álcool já bem antigo (alguns pre-ferem chamá-lo de velho), mas apesar da pressão fa-miliar, reluto em me desfazer dele. O carro é muitobom, quando não está na oficina, e além disso, em1999, durante alguns meses o preço do álcool caiu bas-tante em relação ao da gasolina, dando um novo ím-peto ao meu instinto de conservação...

Sempre abasteço na bomba “de pagamento à vista”,pois não é necessário fazer as contas na ponta do lápispara concluir que é mau negócio pagar a prazo. Alémdisso, não gosto muito de surpresas desagradáveis,isto é, de cheques caindo inesperadamente na contasem terem sido convidados...

Certa vez, por comodidade, parei o carro na bombaque estava desocupada e mandei encher o tanque. Erauma bomba de pagamento a prazo, com o preço porlitro um pouco maior, mas era tarde: o valor total jáhavia sido registrado. Quando fui pagar, o frentistame informou que o cheque poderia ser para dali asetenta dias.

Assinei o cheque, fascinado pela idéia de que teriaum prazo tão “longo” para pagar uma quantia rela-tivamente pequena.

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Embora as dívidas devam ser pagas em determina-do momento, é muito diferente se elas vencerem nocurtíssimo, no curto, no médio ou no longo prazo.Quanto mais longo o prazo, costuma ser mais fácilpagar uma dívida, supondo, é claro, que as taxas dejuros sejam idênticas.

Quando saí do posto fiquei brincando com umaidéia: e se em vez de setenta dias fossem setenta meses,ou, e aqui trata-se de um verdadeiro delírio, setentaanos? Se dentro de alguns dias essa “dívida” já teriasido esquecida, imaginem se ela fosse paga só depoisde setenta meses!

Suponhamos, no entanto, que esses setenta dias fos-sem transformados em dez semanas e eu pudesse pa-gar a conta em parcelas semanais. Nesse caso as amor-tizações — isto é, a devolução do principal em dezparcelas — seriam muito pequenas e poderiam serfeitas sem traumatizar minhas receitas mesmo que es-tas fossem baixas. Amortizada em setenta anos, essadívida talvez nem incomodasse os filhos de meusbisnetos...

O Brasil vinha arrastando uma enorme dívida desdeos anos 80, e a adesão ao Plano Brady (do qual jáfalamos e entraremos em detalhe mais adiante) per-mitiu que seus prazos de vencimento fossem alonga-dos e as taxas de juros rebaixadas. Seria o mesmo quepagar um tanque de álcool em várias parcelas sema-nais, em vez de fazê-lo à vista.

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A conseqüência imediata foi, como já vimos, o re-torno maciço de recursos externos para o Brasil: o“acerto” com os credores sinalizou aos investidorespotenciais que o Brasil voltava a ser um lugar seguropara receber investimentos. Essa renegociação permi-tiu também que as amortizações pesassem menos noconjunto de pagamentos que fazíamos anualmenteao exterior, e isso aliviou também nosso Balanço dePagamentos.

Mas nem sempre as coisas tiveram esse desfecho.

10. Uma Mordida do Dragão de Comodo

O dragão de Comodo é um lagarto enorme que ha-bita ilhas do mesmo nome na Indonésia. Sua formade caçar é um primor de estratégia mesclada com enor-me paciência. Num ataque sorrateiro ele morde suavítima, e quando se trata de um animal grande, comoum búfalo, por exemplo, a presa não é abatida ime-diatamente.

A saliva do dragão de Comodo possui uma infernalcolônia de bactérias que infeccionam o animal mordi-do. O dragão segue a vítima durante alguns dias atéque a infecção se encarrega de prostrá-la, quando en-tão é calmamente devorada.

Durante os anos 70 nossa economia foi mordida poruma espécie de dragão de Comodo. Pouco a pouco,desde a segunda metade dos anos 70 até o início da

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década seguinte, os prazos de vencimento de nossadívida externa foram se tornando cada vez mais curtose, para completar a desgraça, as taxas de juros foramficando cada vez maiores.

Ou melhor, as amortizações e os juros foram one-rando cada vez mais nossas despesas, ao contrário doque aconteceu no início dos anos 90, depois de nossaadesão ao Plano Brady.

E é fácil perceber que, se as taxas de juros foremaumentando e os prazos de pagamento de uma dívidadiminuindo, em pouco tempo o devedor “quebrará”,isto é, não poderá honrar mais tais compromissos.

As taxas de juros de fato dependem da solvênciaque os devedores apresentam diante dos olhos doscredores. A palavra “crédito” ou a expressão “fulanotem crédito” significam que quem lhe empresta di-nheiro acredita que receberá o mesmo valor de voltaacrescido de juros na data combinada.

As taxas de juros dão a medida desse crédito: quantomaior o crédito ou a confiança que o credor tem nodevedor, menor será a taxa de juros e maiores os pra-zos para o pagamento de uma dívida, e vice-versa.

11. Cabarés Colombianos e Travestis Paraguaios: umaBreve Reflexão sobre a Segurança

Quando um devedor goza de boa reputação, ou éconhecido como bom pagador, obterá do credor uma

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taxa de juros baixa pelo dinheiro que este último lheemprestar. O credor age assim porque o risco de nãoser pago é pequeno.

Ou, dito de outra forma, quando um título de dívidaé muito seguro, as taxas de juros pagas por quem oemitiu (o devedor) em geral são muito pequenas. Oinvestidor (credor) que adquire esses títulos prefereinvestir seu dinheiro em papéis de baixo risco, emborade pequena remuneração. Ele prefere alta segurançacom baixa rentabilidade. No jargão do mercado finan-ceiro, esse tipo de investidor é classificado como aqueleque “prefere dançar com a irmã!” Quem não quisercorrer riscos que “vá dançar com a irmã!”, dizem aque-les investidores mais ousados diante de alguém maiscauteloso.

A situação oposta é aquela em que o risco é bemmaior, mas em compensação a remuneração ou a taxade juros prometida é bastante mais elevada. O devedornesse caso não possui bons antecedentes, e para quealguém decida lhe emprestar necessita oferecer umataxa de juros bem maior.

A compensação pelo maior risco é uma remuneraçãomais elevada prometida ao credor. Seria o caso dosujeito que depois de ter conseguido entrar numa re-gião produtora de esmeraldas na Colômbia dirige-sea um cabaré e começa a dançar com uma corista ar-gentina... Tudo pode acontecer, inclusive ele constatarque tem nos braços um travesti paraguaio...

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Embora alguns até gostem, a maioria dos investi-dores, quando percebem uma situação semelhante,voltam rapidinho a dançar com a irmã. Ou melhor,transferem seus recursos rapidamente de áreas de riscoelevado para investimentos seguros, como, por exem-plo, a compra de títulos do Tesouro norte-americano,talvez o investimento financeiro mais garantido naatualidade.

Durante a crise asiática em 1997, algo parecido acon-teceu. Alguns investidores, percebendo que, ao con-trário das aparências, algumas economias daquela re-gião, especialmente a da Tailândia, iriam quebrar, des-locaram seus investimentos financeiros para NovaYork, o que talvez tenha contribuído para precipitara crise.

O Brasil sempre esteve mais para cabaré colombianodo que para respeitosos salões familiares onde irmãose irmãs aprendem a dançar em saraus vespertinos.

É por essa razão que as taxas de juros pagas pelostítulos de nossa dívida externa são em geral bem maiselevadas do que aquelas pagas por países que gozamde maior confiança no mercado e que também têmdívida externa.

O fato de pagar juros mais elevados sobre uma dí-vida crescente pode representar uma despesa vultosa.Tal despesa é a causadora, como já vimos anterior-mente, dos elevados desequilíbrios na conta de servi-ços, o que contribui para aumentar o déficit em tran-sações correntes.

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Lembre-se o leitor que foi esse o nosso ponto departida, ou seja, as declarações de um graduado fun-cionário do Banco Central de que o déficit externohavia alcançado um nível recorde durante o Plano Real.

Como a cobertura de tal déficit depende de recursosvindos do exterior, em boa medida na forma de em-préstimos e/ou financiamentos, ocorre um crescimen-to adicional da dívida externa, um maior pagamentode juros no próximo ano e assim por diante.

É difícil sair desse círculo vicioso!

Ou melhor, quando um país tem elevados déficitsem transações correntes e para cobri-los vai se endi-vidando e os juros daí decorrentes passam a ser oprincipal causador do déficit, e em conseqüência dopróprio aumento da dívida, as coisas se complicam.É como naquela propaganda de biscoitos: não se sabese o déficit é fresquinho porque a dívida cresce muito,ou se o déficit é descomunal porque os títulos da dí-vida vendem muito...

A situação pode chegar a tal ponto que a políticaeconômica de um governo é elaborada em função dopagamento dos juros da dívida, e isso pode causarproblemas sérios para o bem-estar da população.

Em geral, o governo aposta numa política de incen-tivo às exportações e desestímulo às importações paraque a diferença — ou o superávit comercial — sejautilizada para cobrir o déficit causado pelos juros epor outros itens da conta de serviços. Isto é, utiliza o

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veneno do sapo para matar a cobra: o superávit nocomércio para neutralizar o déficit dos serviços.

Se não for possível neutralizar esse déficit e os in-vestidores estrangeiros ficarem meio vacilantes e re-duzirem suas aplicações, as contas podem não fechare a estabilidade da taxa de câmbio correrá perigo.

Se um Plano Econômico estiver apoiado no câmbio,poderá naufragar. Não foi por outra razão que o au-mento do déficit externo em 1998 foi notícia de des-taque no final daquele ano.

Mas estamos nos antecipando. Logo em seguida ve-remos mais em detalhe as conseqüências e condiçõesdesse tipo de “solução” ou da falta dela.

De qualquer forma, devo reconhecer que o gato dovizinho há muito não aparece em casa. Ou pelo menosnão o tenho visto.

Notei apenas que depois das fortes chuvas de janeirodo ano 2000 apareceram algumas inconfundíveis mar-cas de patas na parede da varanda. Visitas de meujovem vizinho em busca de seu gato não estão com-pletamente descartadas. Portanto, preparemo-nos paraoutras explicações.

12. O Amor ao Dinheiro e o Movimento de Capitais

Voltemos agora à notícia inicial sobre o déficit em“transações correntes”, que foi a manchete de jornal

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que tanto nos preocupou. Se a soma do resultado docomércio exterior, da compra e venda de serviços edas transferências unilaterais for negativa, isto é, seocorrer um déficit, este terá de ser compensado comempréstimos e financiamentos ou outras entradas noitem denominado “movimento de capitais”.

Mas nesse movimento de capitais, ou na conta decapital, existe um item denominado “amortizações”.Ao contrário do que o nome possa sugerir, não estárelacionado com amor ao dinheiro, mas apenas como apego a sua devolução. Isto é, amor ao retorno doque foi emprestado mediante pagamentos periódicos.

Se um país tiver uma dívida externa grande, comoé o nosso caso, além do déficit em transações correntesele terá mais uma diferença a ser coberta. Deverá rea-lizar também as amortizações de sua dívida externa.Essas amortizações somam-se ao déficit em transaçõescorrentes, e o resultado dará a medida de quanto seránecessário para equilibrar as contas do Balanço de Pa-gamentos em determinado ano.

Convém, no entanto, não confundir tais pagamentoscom os juros cobrados pelos empréstimos ou pela dí-vida externa existente. Se por exemplo um país deveUS$ 100 milhões a uma taxa de juros de 10% ao ano,só de juros deverá desembolsar 10 milhões no finaldo primeiro ano.

Mas ao final do primeiro ano ele deverá tambémdevolver ou amortizar parte do empréstimo, a não ser

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que o empréstimo tenha sido contraído com algumprazo de carência, isto é, quando o principal só começaa ser pago passados alguns anos.

Mas supondo que o devedor tenha de amortizarparte da dívida logo no primeiro ano, além dos jurosdeverá também devolver parte do principal.

Se a dívida tiver de ser paga em dez parcelas anuaisde 10 milhões cada, no primeiro ano, além dos juros,o devedor deverá desembolsar mais dez milhões a tí-tulo de amortização.

Acontece freqüentemente que o devedor não temrecursos suficientes para fazer ambas as coisas: pagaros juros e efetuar a amortização daquele ano. Quandoisso acontece — e é muito comum acontecer —, ge-ralmente propõe ao credor refinanciar, ou como se dizno jargão financeiro, “rolar” a dívida. Se houver con-cordância, o credor embolsará os 10 milhões de jurose “emprestará” 10 milhões ao devedor com os quaisa amortização será “paga”, permanecendo a dívidatotal igual aos 100 milhões iniciais.

Mas, nesse caso, como o devedor demonstrou certafragilidade ou vacilo, o credor pode exigir taxas dejuros mais elevadas e/ou encurtar os prazos de ven-cimento da dívida.

Veremos mais adiante como o Brasil foi levado aisso durante os anos 80.

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O leitor já deve ter percebido que, se o devedorconseguir amortizar a primeira parcela da dívida nofinal do primeiro ano, esta será reduzida, de acordocom o nosso exemplo, para 90 milhões. No ano se-guinte os juros de 10% serão cobrados sobre essa dí-vida reduzida, isto é, serão 10% sobre 90 milhões, oequivalente a 9 milhões, e assim por diante, até quea dívida desapareça. Esses casos são raros, mas podemacontecer. O mais freqüente é que as dívidas sejam“roladas”, o que é considerado normal nos mercadosfinanceiros.

O importante é lembrar que, se um país tem umdéficit em “transações correntes”, suas necessidadesde financiamento para cobri-lo não se reduzem apenasa esse déficit: a ele deverão ser somadas as amortiza-ções. E estas serão tão maiores quanto maior for adívida e menor seu prazo de vencimento. Por isso éimportante “alongar o perfil da dívida” para pagaramortizações menores a cada ano durante o períodode vigência da dívida.

A soma de ambos (déficit em transações correntes+ amortizações) dará a medida de quanto um paísdeverá tomar emprestado e/ou receber de investimen-tos para chegar ao fim do ano “zerado”, isto é, semdéficit.

Caso contrário, terá de recorrer às reservas, e se estasnão forem suficientes, o país “quebrará” e permane-cerá numa espécie de “lista negra” do mercado finan-ceiro internacional, como aconteceu com o Brasil de-pois de 1982. Naquele ano a nossa situação era a seguinte:

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Esses números indicam que necessitávamos de US$23,3 bilhões para fechar nossas contas do Balanço dePagamentos naquele ano. Mas só conseguimos 15 bi-lhões. Ficamos portanto com um rombo de 8,3 bilhões.Tínhamos cerca da metade dessa soma em reservasque, mesmo destinadas totalmente ao fechamento dadiferença, foram insuficientes, e o Brasil “quebrou”.

Eu estava preparando explicações adicionais sobreas formas de financiar o déficit em transações correntes+ amortizações, quando uma corrente de vento espa-lhou uma pilha de jornais velhos que eu examinava.

Notei que a porta da varanda encontrava-se semi-aberta, e, ao fechá-la, dei de cara adivinhe com quem?Com o nosso amigo gato. Mas foi num relance, poiso animal deu um salto espetacular e, mesmo correndoo risco de cair do décimo andar, desapareceu.

O aspecto positivo disso tudo foi que os jornais seabriram no chão e um deles mostrava exatamente a

Quadro 7

1982

Balança Comercial (a) +0,7

Balança de Serviços (b) –17,1

Transferências Unilaterais (c) —

Transações Correntes (d)(a + b + c = d) –16,4

Amortizações (e) –6,9

Total (d + e) –23,3

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notícia que eu procurava: o crescimento vertiginosodos investimentos estrangeiros no Brasil — informaçãoassociada à decisão da Ford de transferir-se do RioGrande do Sul para a Bahia. A notícia trazia tambémdados sobre o crescimento da dívida externa, impul-sionada por novos empréstimos e financiamentos aosetor privado brasileiro.

De que maneira esse déficit em transações correntes,somado às amortizações, pode ser coberto ou com-pensado por investimentos diretos e empréstimos efinanciamentos?

13. Os Investimentos Diretos e a Guerra entreGovernadores

Encontrei meu jovem vizinho no elevador, indo parao colégio. Como ele estava atrasado (lembrei do meutempo de estudante: igualzinho), mal teve tempo deme cumprimentar. Mas se acontecesse o pior, isto é,se ele parasse para perguntar alguma coisa, eu já es-taria preparado. O caso da transferência da Ford, doRio Grande do Sul para a Bahia, estava ainda sendonoticiado pelos jornais e inclusive reforçado pelos no-ticiários da televisão. Seria uma barbada.

Mas comecemos do começo.

Se investidores estrangeiros resolverem aplicar seudinheiro no setor produtivo de determinado país, es-tarão fazendo investimentos diretos ou de risco. Via

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de regra, isso significa a entrada de dólares, seja paracustear as instalações de uma nova empresa, seja paraa aquisição de uma já existente, como acontece noscasos das privatizações.

A vantagem de um investimento novo, quando umaempresa faz novas instalações, constrói uma plantaetc. é que, além de proporcionar uma determinadaquantidade de empregos, o capital se imobiliza, e nãofica saindo ao menor sinal de crise cambial.

É verdade que no caso de uma privatização não há,pelo menos inicialmente, nenhum investimento em no-vas instalações etc. O que acontece é uma simples mu-dança de donos. Se os vendedores utilizarem os re-cursos obtidos para novos investimentos, então os efei-tos no crescimento econômico serão sentidos.

Mas como o produto das privatizações é embolsadopelo governo, que se comprometeu a utilizá-lo no aba-timento da dívida interna, os efeitos sobre o cresci-mento econômico nesses casos somente aparecerão nomédio prazo, quando as empresas compradoras co-meçarem a realizar investimentos adicionais.

Mas, em qualquer caso, é necessário que algumascondições consideradas vantajosas existam para queesses investimentos ocorram.

Entre essas condições destacam-se o tamanho domercado interno e suas perspectivas, a estabilidadepolítica, a ausência de inflação ou uma bem pequena,

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estabilidade cambial, recursos naturais abundantes evantagens tributárias e/ou isenções fiscais etc.

Estas últimas às vezes chegam a provocar uma ver-dadeira guerra entre governadores de Estados brasi-leiros e prefeitos de municípios de um mesmo Estadopara saber em que território a empresa vai ser instalada.

Num país onde um dos problemas sociais mais gra-ves e sensíveis politicamente falando é o desemprego,os governadores são capazes de entregar mundos efundos a fim de atrair grandes empresas para os seusEstados.

Nessa luta, quem sai ganhando em geral são as mul-tinacionais, pois embora esses investimentos tragama criação de empregos, os benefícios recebidos pelasempresas são mais do que compensadores: além deisenções fiscais por vários anos, governos estaduais emunicipais providenciam terrenos, empréstimos comjuros irrisórios, instalação de infra-estrutura etc.

Se esses recursos saírem dos cofres públicos — fe-derais, estaduais ou municipais —, vão reduzir a ca-pacidade de investimentos públicos em outras áreas,como a educação e a saúde, e podem até contribuirpara aumentar o déficit público.

Embora a vinda de uma empresa estrangeira possatrazer alguns dólares, o que sempre ajuda a fechar orombo das transações correntes, o custo interno podeser muito elevado e nem sempre compensador.

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Contribui para resolver um problema no curto pra-zo, mas pode agravá-lo no médio e no longo prazo.

De qualquer forma, depois da instauração do PlanoReal, esses investimentos cresceram consideravelmen-te, como pode ser avaliado pelos dados abaixo:

Podemos observar que a entrada de investimentosdiretos aumentou significativamente, ajudando a fe-char o déficit em transações correntes. Mas é impor-tante constatar também que essa entrada vultosa deinvestimentos diretos contribuiu para aumentar o dé-ficit na conta de serviços via remessa de lucros e di-videndos e, portanto, o déficit em transações correntes,como mostram os dados abaixo:

Esses investimentos diretos lembram um pouco ahistória do cobertor curto: se cobre a cabeça, deixa os

Quadro 8

1994 1995 1996 1997

Investimentos Diretos 2,2 3,2 9,9 17,1

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

Quadro 9

1994 1995 1996 1997

Remessa de Lucros eDividendos –2,5 –2,6 –2,3 –5,7

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

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pés ao relento. Mas se servir de consolo, a China re-cebeu mais investimentos diretos nos últimos anos doque o Brasil. Nesse campeonato fomos apenas vice-campeões.

Vejamos agora os empréstimos e financiamentos.

14. Empréstimos e Financiamentos, e OutraEsclarecedora Cena da Vida Cotidiana

A principal diferença entre um empréstimo e umfinanciamento reside na maior ou menor liberdade dodevedor em utilizar os recursos obtidos.

Por exemplo, quando minha filha me pede dinheiro,eu exijo que ela preencha uma planilha (em duas lín-guas, para já ir treinando...) dizendo como vai gastá-lo.

E não libero tudo de uma vez: vou soltando aospoucos, em tranches ou parcelas; um tanto na segun-da-feira, outro na quarta, e o restante na manhã desábado. Isso se durante a semana ela tiver cumpridocom suas obrigações, especialmente as relacionadascom os estudos.

Como é fácil imaginar, ela não gosta muito de mepedir dinheiro. Existe no entanto uma alternativa: aavó.

Minha mãe vive em outro ponto da cidade e paraatrair os netos de vez em quando telefona e diz que

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tem uma “lembrancinha”. É o código que significa“tem uma graninha rolando no pedaço”. O único “cus-to” é dar um pulo até lá, fazer um agrado na avó ereceber uma soma, sem nenhuma condição e geral-mente a fundo perdido.

Forçando um pouco a barra, podemos dizer que eu“financio” minha filha, e minha mãe “empresta” paraela. Com a diferença, é claro, de que num financia-mento ou empréstimo verdadeiro ambos deverão serdevolvidos, acrescidos dos respectivos juros.

Ou melhor, um financiamento geralmente está presoa um projeto e trata-se de dinheiro “carimbado”. Umempréstimo oferece mais flexibilidade ao tomador pararealizar as despesas que desejar.

No caso dos financiamentos, as grandes entidadesinternacionais (como o Bird, também denominado BancoMundial, ou o BID — Banco Interamericano de De-senvolvimento) além disso exigem uma contrapartida,isto é, uma parte do projeto aprovado deve ser cus-teada com dinheiro próprio, com fundos do própriodevedor, em geral o governo federal ou os governosestaduais, e em alguns casos os municipais.

Às vezes um governo consegue um financiamentono exterior, mas, não contando com recursos para acontrapartida, acaba não os utilizando, embora pa-gue taxas pelo tempo em que os recursos ficaram“à disposição”.

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Além disso, se o cronograma de obras não estiverem dia, a liberação dos recursos pode ser interrompi-da, ou mesmo o próprio financiamento ser cancelado.

Embora as exigências para a concessão de um fi-nanciamento sejam maiores, as taxas de juros são ge-ralmente mais baixas e os prazos de pagamento maislongos. Os financiamentos podem ter também os cha-mados períodos de carência, constituídos por certo nú-mero de anos (cinco anos, por exemplo), durante osquais o devedor só paga os juros e não tem de amor-tizar parte da dívida, ou seja, não necessita pagar asparcelas do principal.

Os empréstimos, ao contrário, não exigem tantascondições. Isto é, a aplicação do dinheiro é mais fle-xível, não sendo necessários projetos tão detalhadose consistentes. Em compensação, as taxas de juros sãomais elevadas e os prazos de pagamento mais curtos(nesse caso o exemplo entre minha mãe e minha filhanão vale... E já que estamos falando nisso, devo con-fessar: submeti minha filha a esse regime só até elacompletar 38 anos...).

Geralmente os empréstimos são mais comuns embancos privados, e os financiamentos em bancos ofi-ciais como o Banco Mundial ou o BID.

Mas, à diferença do que aconteceu na minha famíliaentre avó e neta, o dinheiro emprestado tem de serdevolvido e com juros. Se o financiamento for de longoprazo e, além disso, os juros forem civilizados, ficamais fácil honrar os compromissos da dívida.

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Um país, uma empresa ou até mesmo uma pessoa,se não gozarem de crédito ou perderem aquele quetinham, deixam de receber essas condições dos credo-res. Nesse caso os financiamentos vão rareando e en-tram em cena os empréstimos em cuja ponta semprese encontra alguém que, sem muita injustiça, podería-mos chamar de agiota.

Quando isso ocorre, o pagamento da dívida (nessecaso a externa) torna-se cada vez mais difícil. Não sóos prazos começam a encolher, como as taxas de jurosa aumentar e o chamado “serviço” da dívida vai setransformando num verdadeiro tormento.

É bom lembrar, no entanto, que o crescimento doendividamento foi a solução para cobrir os déficits emtransações correntes. O remédio tomado com freqüên-cia acabou não apenas viciando, como debilitando odoente, e este passou a exigir doses cada vez maisfortes. Em outras palavras, o endividamento, que noinício era solução, em pouco tempo transformou-seem problema.

Com os investidores de médio e longo prazos tor-nando-se arredios, a cobertura do déficit externo pas-sou a depender cada vez mais dos chamados capitaisde curto prazo.

Esses capitais, como o próprio nome diz, são aquelesque permanecem pouco tempo em cada aplicação.Chamados também de hot money, ou de smart money,ou literalmente de dinheiro “quente” e “esperto”, são

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aplicados na Bolsa de Valores ou em títulos da dívidainterna de curto prazo, e ao menor sinal de perigosaem com a mesma agilidade com a qual entraram.

Embora sua chegada possa ser saudada com rojões,pois ajuda a cobrir o déficit em transações correntese, eventualmente, até a engrossar as reservas (quandoentra em grande escala), sua saída repentina e maciçapode causar crises cambiais de grande envergadura.São recursos pouco confiáveis, pois podem sair a qual-quer momento. E se um país dispõe de grande partede suas reservas nesse tipo de dinheiro, serão reservasquase virtuais, pois podem desaparecer em poucas se-manas. Não servem portanto para lastrear a estabili-dade da taxa de câmbio de forma duradoura.

Em resumo, um país que tem déficits em transaçõescorrentes grandes e crescentes depende muito da en-trada de recursos externos. Essa dependência faz comque não possa fazer muitas exigências quanto à qua-lidade desses recursos. É como um construtor irres-ponsável que depende muito do fornecimento deareia para construir e aceita até aquela obtida naspraias do Rio de Janeiro. Seus edifícios serão bas-tante inseguros.

Como necessita conceder vantagens para quem vier,será prisioneiro da manutenção de elevadas taxas dejuros e da manutenção de outros benefícios para essesinvestidores. E rezará para que não aconteça o pior:a recusa dos investidores mesmo diante de todas essasbenesses e vantagens.

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Já vimos como isso aconteceu em 1982, e o Brasilnão pôde pagar seus compromissos externos. Coisaparecida se repetiu no final de 1998 e início de 1999,quando ficou claro que não teríamos condições parafechar nossas contas externas sem a intervenção deorganismos internacionais como o FMI e sem desva-lorizarmos a nossa moeda, apesar de termos lançadoa taxa de juros para estratosféricos 49,75% ao ano. Ve-remos isso em detalhes mais adiante.

Agora é importante reter a noção de que uma eco-nomia pode começar a deslizar pelo plano inclinadoda crise se toda a sua política econômica for condi-cionada por esse desajuste externo.

Mas o desequilíbrio do setor externo não é o únicoque leva a economia de um país a uma crise, carac-terizada pela recessão, ou ausência de crescimento eco-nômico, que pode ser acompanhada de inflação pro-vocada por desvalorizações cambiais.

O setor interno, ou mais precisamente um forte de-sequilíbrio nas contas do governo, também pode ori-ginar e/ou agravar uma crise econômica.

Como dizem os mineiros, “desgraça pouca é boba-gem”, ou, traduzido para o caipirês: uma desgraçasempre vem acompanhada de outra. E o desequilíbriodo setor externo geralmente vem acompanhado deuma crise no setor interno, caracterizada por um au-mento do déficit nas contas do governo.

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O leitor deve estar lembrado de que, ao abrir a portada varanda para enxotar o gato da vizinha que amea-çava com suas andanças minha roça de janela, o ventoespalhou os jornais velhos que estavam sobre a mesa,jogando-os no chão. Uma outra manchete me chamoua atenção.

Coincidência ou não, ela se referia exatamente aoproblema mencionado no parágrafo anterior. Dizia oseguinte: “Déficit público eleva dívida interna a 38%do PIB: recorde no Real”. O jornal era de meados de1998.

Vejamos como as carícias mútuas entre o déficit pú-blico e a dívida interna podem levar o organismo eco-nômico a momentos de pura tensão...

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CAPÍTULO 2

OS DESEQUILÍBRIOS DASCONTAS PÚBLICAS

1. O Déficit Público, a Dívida Interna e a Caça dePassarinho com Visgo de Jaca

Quando um governo gasta mais do que arrecada,provocando um déficit, ele tem dois caminhos no curtoprazo para cobri-lo: tapar o buraco emitindo moedae/ou lançar títulos da dívida pública, vendê-los no mer-cado e com o dinheiro arrecadado fechar a diferença.

No primeiro caso resolve o problema pela via rápi-da. Mas cria inflação. Ao obrigar as pessoas a aceitaros papéis coloridos emitidos, está na verdade criandouma dívida compulsória “não resgatável”. Como nãohá data de “vencimento”, nem promessa de pagamen-to de juros, os portadores dessas notas só poderãotrocá-las por outras iguais.

Como isso não tem sentido, a não ser quando a notapossuída está muito velha e deteriorada, o prejuízo

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acaba sendo assumido por quem faz seus negóciosutilizando esse tipo de dinheiro que se desvaloriza.

Se por ventura quiser trocar uma nota por outraigual, quando o fizer receberá uma novinha em fo-lha, mas com um valor inferior, pois nesse intervalode tempo a inflação já devorou parte do seu poderaquisitivo.

Isto é, emitir moeda e colocá-la em circulação pro-voca inflação, pois o aumento da quantidade de di-nheiro geralmente é maior do que o crescimento dosbens e serviços produzidos numa economia.

No segundo caso, ou seja, quando o governo emitetítulos da dívida pública, a pressão inflacionária nãosurge imediatamente, e pode ser que nem venha aacontecer, pois o governo captura dinheiro que já estáem circulação, de posse das pessoas que compraramesses títulos, e com tais recursos cobre a diferença entredespesas e receitas.

Mas para convencer alguém a comprar um títulode dívida, o emissor (o governo) tem de prometer pa-gar juros e também devolver o dinheiro emprestadona data do vencimento. Nesse caso trata-se de umadívida resgatável: além dos juros o credor recebe oseu dinheiro de volta.

Para o governo, isso é mais oneroso do que a simplesemissão de dinheiro, pois exige o pagamento de jurose implica devolução do dinheiro emprestado. A van-

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tagem é que não produz um efeito inflacionário ime-diato, embora uma futura elevação dos juros possatrazer outra desgraça: o despertar do bicho-preguiçada recessão.

O público, diga-se de passagem, não adquire essestítulos diretamente. Quem compra em primeira mãosão geralmente os bancos, que os revendem a seusclientes dividindo com eles a taxa de juros paga pelogoverno. Os bancos têm diversos menus para essa fi-nalidade, que são os fundos de investimento, os cer-tificados de depósitos bancários etc.

Mas o problema é que esses recursos obtidos porintermédio da venda de títulos têm de ser devolvidos.Enquanto aguardam, deságuam num imenso reserva-tório denominado dívida interna. Se no momento dovencimento de parte dessa dívida e do pagamento dosrespectivos juros o governo não arrecadar impostossuficientes (o que tem sido o nosso caso nas últimasdécadas), terá de apelar outra vez para a emissão demais títulos, pois apresentará novamente um déficitem suas contas.

A partir de certo ponto a dívida interna terá crescidotanto que os credores, desconfiados e temerosos, sófarão novos empréstimos ao governo se a taxa de jurosaumentar e os prazos de vencimento tornarem-se maiscurtos.

É o mesmo princípio que já vimos quando tratamosda dívida externa.

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Na cabeça do credor a coisa funciona mais ou menosassim: se alguém deve somas crescentes, é provávelque não tenha condições de me pagar; se ele pedirmais dinheiro emprestado, eu só concordarei se a taxade juros for mais elevada, para compensar o riscocrescente.

Se a taxa de juros aumentar muito, todos sabemoso que acontecerá: um banho de água fria nos negócios:como grande parte das compras nas economias mo-dernas é feita a prazo, ou seja, mediante vendas nocrediário, uma taxa elevada de juros inibirá o cresci-mento das vendas e, portanto, da produção.

Além disso, as empresas não sentirão muito estí-mulo em investir tomando empréstimos nos bancos,pois o pagamento de juros elevados poderá comer todaa sua lucratividade.

Se, no limiar do desespero, o devedor prometer pa-gar uma taxa exageradamente elevada (para “tentar”os investidores e atrair empréstimos), o negócio tor-na-se tão suspeito e difícil de ser honrado que os cre-dores atentos se recusarão a continuar emprestando.

Se os credores se negarem a continuar emprestandopara o governo, porque este, como devedor, perdeutotalmente a credibilidade, só há uma saída: a emissãodesenfreada de papel colorido para cobrir os déficitsgovernamentais.

Nesse caso a inflação tende a disparar.

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E a história nos ensina que, se os preços se elevaremmuito rapidamente e com grande intensidade, as pes-soas se recusarão a usar a moeda nacional, aceitandoapenas moedas estrangeiras (o dólar, por exemplo)para realizar suas transações. Portanto, nem o recursoàs emissões de papel-moeda resolve em certos casosextremos.

Quando ocorre uma hiperinflação, é possível obser-var a prática do escambo, isto é, a troca de mercadoriapor mercadoria, ou produto por produto. Quando sealcança uma situação semelhante, o dinheiro, que jáhavia perdido a função de reserva de valor, perde tam-bém a de ser intermediário de trocas. Isso significaum retrocesso, e o organismo econômico tende ao ra-quitismo: os negócios ficam semiparalisados.

Em resumo, como o governo não consegue mantersuas contas equilibradas, mas ao mesmo tempo nãodeseja provocar inflação emitindo moeda para cobriro déficit, apela para a dívida interna. Escolhe o menordos dois males, ou como dizia um velho economista,entre o desagradável e o desastroso, escolhe o primeiro.

Mas ao repetir a dose, pois os juros crescentes aserem pagos passam a ser no momento seguinte a cau-sa do novo déficit, a dívida interna tende a aumentar.O governo termina como prisioneiro da dívida, sendoobrigado a manter as taxas de juros nas nuvens.

A situação se assemelha à caça de passarinhos comvisgo de jaca. A incauta ave pode até pensar que se

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trata de um delicioso manjar, mas se pisar, mesmolevemente, naquela gosma pegajosa estará perdida,pois, ao tentar se livrar com a outra pata, termina seprendendo mais ainda; e se a substância atingir suaspenas, a pobre ave ficará totalmente imobilizada...

Confesso que vacilei em utilizar um exemplo tãodramático, ofensivo ao equilíbrio ecológico e à paz domeio ambiente para explicar a situação de nossas con-tas públicas a um adolescente. Mas um trauma às ve-zes traz resultados mais positivos do que a mera re-petição de números. Mesmo porque em São Paulo seriamuito pouco provável que o meu jovem vizinho ten-tasse repetir a experiência pela absoluta falta de ja-queiras e, pelo andar da carruagem, até mesmo depassarinhos...

Lembra-se o leitor de que a notícia comentada tinhapor manchete o fato de as taxas de juros terem elevadoa dívida interna para 38% do PIB em meados de 1998?Seis meses depois ela já havia superado os 41%, e em1999 ultrapassara levemente a casa dos 46%! E dívidade curto prazo!

Quadro 10

Resultado Primário(sem juros)

Resultado Nominal(com juros)

(em bilhões de reais)

1999 +31 -96

Em % do PIB 3,1% (superávit) 10,0% (déficit)

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É interessante notar que as despesas com juros sãotão relevantes que as informações sobre o déficit pú-blico aparecem em dois conceitos, como pode ser ob-servado no quadro anterior: o déficit primário e o ope-racional ou nominal. O primeiro não inclui as despesascom juros; o segundo as considera. Em 1999, comomostra o quadro 10, o governo gastou menos do quearrecadou. Ou seja, teve um superávit primário de3,1% do PIB. Mas incluídos os juros, o superávit setransforma num imenso déficit, de 10% do PIB.

A conclusão é que a existência de sucessivos déficitsleva ao aumento da dívida interna. Os juros que elaimplica podem ser o fator decisivo para um novo dé-ficit, uma dívida maior ainda e assim por diante.

É necessário esclarecer que parte dos juros que ogoverno paga e que aparecem registrados em suas con-tas desequilibrando-as corresponde àqueles pagos pelaparte da dívida externa do setor público, pois esta écompartida com o setor privado.

Mas a participação fundamental nas despesas dogoverno com juros é relativa à dívida interna, porqueesta é integralmente de sua responsabilidade.

Em outras palavras, os juros da dívida externa sãopagos pelo governo e pelo setor privado na proporçãodo endividamento de cada um. Hoje o setor públicoé responsável por cerca de 45% dessa dívida, e os res-tantes 55% correspondem ao setor privado.

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Mas esse círculo vicioso entre déficit e dívida tornaa situação de um governo muito complicada, pois elenão pode reduzir a taxa de juros: depende dela paraque continuem a existir interessados em comprar ostítulos da dívida, ou seja, para que esta seja “rolada”.

Taxas de juros elevadas, como já vimos, bloqueiamo crescimento econômico. Em casos extremos podemlançar o país numa recessão.

Quando a taxa de juros se eleva, consumidores einvestidores do setor produtivo tomam um banho deágua fria: consumo e investimento se contraem.

Se a demanda encolhe, os preços ficam bem-com-portados, pois os empresários maneram nas remarca-ções para não perder clientes, especialmente quandoa concorrência se acirra. A inflação leva um susto edá uma paradinha.

Mas, embora isso ajude a conter a inflação (e o preçoque se paga, sempre é bom lembrar, é o desaqueci-mento da economia), existe uma outra ameaça quevem do setor externo, via desvalorização do câmbio,que precisamos examinar.

2. Os Déficits Gêmeos e o Perigo de um AtaqueEspeculativo

Já vimos que, se os déficits em transações correntesdo Balanço de Pagamentos se repetirem, o país precisa

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cobrir o rombo atraindo capitais estrangeiros, ofere-cendo vantagens, entre as quais uma das mais impor-tantes é uma taxa de juros elevada.

Ora, a manutenção de uma elevada taxa de juroscorrói as contas públicas. As despesas com o paga-mento de juros levam as contas do governo para o ca-minho do déficit público, e este pode tornar-se crônico.

Em “economês” a existência de déficits no setor ex-terno (déficit em transações correntes) e no setor in-terno (déficit público nas contas do governo) denomi-na-se “déficits gêmeos”. Trata-se de uma situação mui-to vulnerável e perigosa.

É o caldo de cultivo dos denominados ataques es-peculativos.

Mas o que vem a ser um ataque especulativo?

Bem, antes de mais nada, um consolo: qualquer eco-nomia pode sofrer um ataque especulativo. A econo-mia norte-americana já sofreu um e foi obrigada a des-valorizar o dólar, o mesmo acontecendo com a inglesa,quando a libra esterlina teve o mesmo destino, isto é,foi também desvalorizada.

A partir da adoção do Plano Real, a economia bra-sileira, ou mais diretamente sua moeda, o real, já so-freu três ataques. Os dois primeiros foram repelidos,mas o terceiro teve êxito e a moeda brasileira sofreuforte desvalorização em janeiro de 1999.

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Um ataque especulativo ocorre quando existe umadesconfiança dos investidores sobre a solidez dos fun-damentos que sustentam a estabilidade de uma moe-da. E esses fundamentos, como sabemos, são as contasexternas de um país ou seu Balanço de Pagamentos,e as contas do governo.

Quando esses fundamentos, ou vigas de sustentaçãoda estabilidade, começam a apresentar rachaduras —representadas pelos déficits gêmeos —, as pessoas quepercebem que eles não mais agüentarão o peso doedifício tratam de abandoná-lo o mais rapidamentepossível.

No caso concreto de prédios com ameaça de desa-bamento (ou incêndio), a recomendação é que seusmoradores saiam sem cair na tentação de retirar algunspertences, mesmo os mais valiosos. Algumas pessoasmorrem ao fazer essas tentativas.

Com o ataque especulativo acontece o mesmo: osretardatários, isto é, aqueles que não acreditam que oedifício vai desabar e só se convencem quando é tardedemais, são os perdedores.

No caso de uma economia, existe no entanto umapequena diferença em comparação com essas tragédiasque de vez em quando acontecem nas cidades brasi-leiras: a saída dos ocupantes acelera o desabamentodo prédio!

A explicação desse curioso fenômeno pode ser en-tendida se imaginarmos uma situação na qual cada

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morador ao sair levasse consigo parte das colunas quedão sustentação a um edifício. Ao contrário de aliviarpeso e salvar a construção, a saída (no caso, dos in-vestidores) aceleraria o desmoronamento.

Esses “pedaços de colunas” não são outra coisa doque parte das reservas que o país acumulou em pe-ríodos anteriores, constituídas por moedas fortes comoo dólar dos Estados Unidos. E tais reservas só foramacumuladas porque o Balanço de Pagamentos acusousuperávits em lugar de déficits.

Vejamos essa questão um pouco mais de perto.

3. A Formação das Reservas e Sua UtilizaçãoDescontrolada como Prelúdio das Crises Cambiais

Quando um país não consegue cobrir o déficit emtransações correntes do Balanço de Pagamentos coma entrada de capitais (empréstimos e financiamentos,investimentos diretos etc.), ele geralmente recorre àssuas reservas para realizar esse equilíbrio. A perguntanatural é saber de onde vêm tais reservas.

Normalmente, como já assinalamos, elas têm origemem superávits do Balanço de Pagamentos obtidos emanos anteriores. No caso brasileiro, esses superávitsocorreram porque, embora tivéssemos déficits emtransações correntes, entravam mais dólares pela contade capital do que o necessário para cobrir esse déficitpelo menos até 1996. Depois, com a crise asiática em

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1997, seguida da crise russa em 1998, esses fluxos seinverteram.

Esse saldo positivo é canalizado para um piscinãodenominado “reservas”, acumulando-se ali. É comose uma grande barragem fosse recebendo água paraenfrentar um período de estiagem. Quanto maioresforem as reservas em moeda forte, maiores serão asgarantias para uma economia enfrentar eventuais dé-ficits futuros.

A existência de grandes reservas garante também aestabilidade da taxa de câmbio. Por quê? A respostaé que, se o déficit em transações correntes não forcoberto pela conta de capital, o governo poderá lançarmão de suas reservas para fazê-lo, sem ter de desva-lorizar o câmbio.

Por quê?, perguntaria meu vizinho. Ou: qual é arelação entre o esgotamento das reservas e a desva-lorização do câmbio? A resposta é bastante simples.Quando as reservas não são suficientes para cobrir umdéficit, ocorre uma crise cambial. Há escassez de moe-das fortes no país, e além de ter de renegociar as dívidascom os credores, será imperioso que o déficit em tran-sações correntes seja reduzido no futuro imediato.

A única forma de obter esse resultado é transformarum déficit na balança comercial em um megassupe-rávit; a ferramenta própria para isso é a desvalorizaçãocambial, para que as exportações sejam estimuladas eas importações, reduzidas.

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Um expressivo superávit na balança comercial, so-mado ao saldo positivo das transferências unilaterais,poderá compensar o déficit da conta de serviços detal forma a eliminar ou reduzir o que causou todo oproblema: o déficit em transações correntes.

Foi o que aconteceu, como já vimos, em 1982. Nossasreservas não foram suficientes para cobrir o déficitfinal do Balanço de Pagamentos, inclusive tornando-se“negativas”, e o remédio foi uma forte desvalorizaçãoda moeda brasileira no início de 1983. Em 1984 o su-perávit comercial foi suficiente para zerar o déficit eaté gerar um pequeno superávit em transações cor-rentes, coisa rara de acontecer.

O centro da questão é que a balança comercial sómuda de sinal no curto prazo — passando de umdéficit para um superávit — se ocorrer uma desvalo-rização cambial que estimule as exportações e dificulteas importações, tornando-as mais caras.

É claro que, se o país for obrigado a conseguir ummegassuperávit comercial dessa forma, os preços detodos os produtos importados se elevarão e uma ondainflacionária arrebentará na praia dos consumidores.

Além disso, a confiança na estabilidade de preçosserá abalada. Se o combate à inflação for a principalmeta de um governo, seu desgaste será inevitável.

O problema é que a simples ameaça de uma des-valorização, pois as reservas de um país são insufi-

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cientes ou pouco confiáveis, pode iniciar uma deban-dada de investidores, antes que o edifício desmorone.Se ao sair cada um levar consigo um pedaço da vigade sustentação, o edifício inevitavelmente desabará.

4. Senta que o Leão É Manso!

Não pode haver situação mais danosa do que essapara uma economia. Mesmo quando o ataque espe-culativo fracassa, isto é, não resulta na desvalorizaçãoda moeda atacada, como nos aconteceu em 1995 coma crise mexicana e em 1997 durante a crise asiática, aeconomia sofre ferimentos profundos que a fazem per-der sangue e ter o seu crescimento comprometido.

O mecanismo de defesa se estabelece mais ou menosassim: quando um governo percebe que os investido-res financeiros começam a “pedir o boné”, isto é, asair maciçamente, tentam conter a debandada ofere-cendo mais vantagens para quem ficar.

O leitor provavelmente se lembra daquela imagemdos inquilinos saindo do edifício e levando partes dascolunas de sustentação, o que aumentava o perigo dedesabamento.

No desespero, para evitar a ruína imediata, o síndicopoderia oferecer para quem ficasse, por exemplo, aisenção de pagamento do condomínio por um deter-minado prazo, maior ou menor, dependendo da imi-nência da tragédia.

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Mesmo supondo que alguns moradores resolvamficar, pois é tentador permanecer sem pagar condo-mínio durante digamos um ano, e o edifício não des-morone, o síndico não terá meios para mantê-lo nosdoze meses seguintes.

A qualidade de vida dos moradores certamente cai-rá, especialmente para aqueles que, não tendo paraonde ir, não receberam proposta de isenção de con-domínio. Esses, que acabam arcando com grande partedo sacrifício, representam a grande maioria da popu-lação de um país.

Mas, se as promessas do síndico não convenceremvários moradores e estes resolverem sair, o edifíciodesabará. Perderão aqueles que tiverem permanecidoe caberá ao síndico — se ainda permanecer no cargo— remover os escombros. Os que saíram antes da que-da ganharão, pois terão vendido seus apartamentos etodos os seus pertences, e conservarão seus valoresintactos, podendo comprar o terreno do edifício sinis-trado por preço de banana, sempre observando, é cla-ro, se ainda resta alguma coisa por desabar, só vol-tando depois disso.

Nos casos concretos de ataques especulativos é maisou menos isso o que acontece. O investidor que saiuum pouco antes da desvalorização cambial pode ga-nhar duplamente. Ou melhor, se sair no momento cer-to pode surfar duas ondas de uma só vez: sai quandoo dólar está “barato”, trocando seus reais, prenhes dejuros (ou de outros ganhos, como na Bolsa de Valores,

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por exemplo), pela moeda norte-americana, e voltaquando esses dólares estão “caros” e compram muitosreais, pois estes se desvalorizaram.

É o momento das pechinchas. É hora de arremataro patrimônio dos que ficaram e que estão com a cordano pescoço. Não é por outra razão que geralmenteesses capitais que saíram voltam até incrementadosalgum tempo depois, dando a impressão de que estátudo bem e que agora os alicerces estão sólidos.

Depois do ataque especulativo de janeiro de 1999,quando o real acabou sendo desvalorizado, os capitaisestrangeiros voltaram em grande escala comprandotudo que estivesse pela frente e participando ativa-mente do processo de privatizações. Muitas empresasbrasileiras foram vendidas por verdadeiras bagatelaspara quem tinha dólares, os quais chegaram a valermais de R$ 2,00 durante algum tempo em 1999!

Mesmo depois da estabilização da taxa de câmbioentre R$ 1,75 e 1,80 por dólar, no início de 2000, asentradas de investimentos diretos prosseguem a todovapor. Em janeiro de 2000 entraram US$ 3 bilhões eminvestimentos diretos, o que é recorde para um mêsde janeiro. E muitas previsões estão sendo revistas paracima: o Banco Central já está contando com US$ 30 bi-lhões em investimentos diretos até o final do ano 2000,em lugar dos US$ 25 bilhões inicialmente esperados.

Mas o importante é reconhecer que as ameaças deataques especulativos, que podem resultar em verda-

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deiros desastres financeiros e econômicos, decorremnão só da incúria dos governos mas também do fatode vivermos uma época de grandes incertezas.

Essa insegurança se reflete na instabilidade das moe-das. Hoje, o valor das moedas, isto é, as taxas de câm-bio, tanto as de boas famílias como as bastardas, variamdiariamente. E essas flutuações podem ser muito pro-nunciadas em curtos períodos de tempo, dando grandeinstabilidade ao mercado financeiro internacional.

Notem que a crise brasileira foi precedida da me-xicana no final de 1994, da asiática em 1997 e da russaem 1998. E todas elas resultaram em fortes desvalo-rizações das respectivas moedas e provocaram abalosem todos os mercados financeiros internacionais, mes-mo nos mais sólidos.

Mas já vivemos épocas mais tranqüilas. Depois daSegunda Guerra Mundial e até meados dos anos 70do século XX, as incertezas econômicas eram bem me-nores, e até que se viviam momentos relativamentecalmos, pelo menos em relação às flutuações cambiais.É claro que o perigo de uma nova guerra mundial,devastadora e final, era uma acompanhante soturnae indesejável. Em 1962, a chamada crise dos foguetesem Cuba nos levou ao limiar de um confronto entreos Estados Unidos e a então União Soviética. Mas nocampo econômico as coisas marchavam bem.

O que aconteceu nestes últimos trinta anos? Quaisforam as causas de tanta instabilidade econômica efinanceira depois dos anos 70?

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Bem, para examinarmos esta questão um poucomais de perto teremos de usar aquela bota de seteléguas que em questão de linhas pode nos deslocarno tempo e no espaço. Visitemos outras épocas e re-giões onde coisas dramáticas ocorreram no campo daeconomia e das finanças e que podem nos ajudar aentender por que desembocamos numa situação detanta incerteza e instabilidade.

Examinemos em primeiro lugar e com mais detalhesa questão do dinheiro.

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CAPÍTULO 3

O DINHEIRO E SUASTRANSFORMAÇÕES

1. O vil (enquanto não é nosso) metal e suatransformação em papel colorido

No início do desenvolvimento do capitalismo co-mercial no século XVI, quando as mercadorias come-çavam a ser vendidas e compradas no Velho e no NovoMundo, as trocas eram realizadas mediante moedascujo valor coincidia aproximadamente com o seu con-teúdo metálico. Comprar e vender consistia numa realtroca de valores equivalentes: uma mercadoria como,por exemplo, uma jarra de azeite, era comprada poruma moeda de prata.

Quem vendia o azeite adquiria um valor equiva-lente representado pela prata da moeda recebidacomo pagamento.

Metais como o ouro e a prata eram cunhados nosquatro cantos do mundo como moeda, pois suas ca-

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racterísticas faziam com que servissem bem comoequivalentes de valor de todas as demais mercadorias.

Eram duráveis, homogêneos, divisíveis, obtidos emestado quase puro (como é o caso do ouro), maleáveis,conhecidos em todo o mundo e uma pequena porçãopodia representar um valor relativamente grande deoutras mercadorias como tecidos, azeite, trigo ou ce-râmicas, por exemplo.

Preenchiam três funções essenciais ao comércio: a)eram eficientes intermediários de trocas; b) serviamcomo reserva de valor, pois eram duráveis; c) a práticade utilizá-los deu a eles certa estabilidade como uni-dade de cálculo de valor, ou unidade de conta. Por-tanto, eram ótimas ferramentas para medir os preços.

A utilização do ouro e da prata para a cunhagemde moeda tornou-se uma prática tão generalizada quea palavra dinheiro em português tem origem na pa-lavra latina denarius, moeda de prata equivalente adez asses.

Esses “asses” por sua vez eram moedas de cobrede uso corrente na Roma Antiga, indicando que o co-bre também foi utilizado como metal para a cunhagemde moedas, especialmente as de menor valor.

A expressão “ganhar uns cobres” até recentementeera usada entre nós para dizer “ganhar algum dinhei-ro”. A utilização dos metais preciosos para a cunha-gem de moedas, ou a correspondência do valor da

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moeda ao ouro ou à prata, faz com que em algunspaíses ainda hoje esses metais nobres sejam sinônimosde dinheiro, como na Alemanha (Geld, da palavra Gold,que significa ouro em alemão) e na França (argent, queem francês significa o metal prata).

Na Argentina o dinheiro é designado pela palavraplata (prata em espanhol) e o nome do próprio paísprovém da palavra argentum (prata em latim). É inte-ressante observar também como certas palavras indi-cativas de alguma relação com o dinheiro revelam pe-ríodos ainda mais remotos de sua história.

Os termos “pecúnia” e “pecuniário”, por exemplo,originam-se da palavra latina pecus, que significa gado,o que indica a utilização que se fazia antigamente debois e outros animais como meio de troca e pagamento.Nas chamadas sociedades primitivas ou em estágioainda muito próximo de uma economia natural, osmais variados objetos serviram também como meiode troca: conchas, colares, ossos, peles, sementes etc.

Essas referências históricas ao nascimento do dinhei-ro são úteis para mostrar que ele não tem nada demisterioso. E o fato de se considerar o ouro uma ex-pressão de riqueza tem origem nas dezenas de séculosdurante os quais esse metal serviu para a cunhagemde moedas. Sua existência metálica confundiu-se comsua existência como valor ou riqueza. E muitos podematé acreditar que ele já nasceu assim, mas se trata deuma ilusão: foi o seu uso secular como moeda, ou aprática social de servir como dinheiro, que lhe deu

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essa aparência mística de ser riqueza pela próprianatureza.

O fascínio que o ouro exerceu e exerce sobre as pes-soas tem origem nesse processo histórico: durante sé-culos ele foi utilizado como dinheiro e, portanto, comoriqueza em geral, pois com ele se poderia adquirirqualquer coisa.

Mas na época em que os metais preciosos eram uti-lizados para a cunhagem de moedas, havia uma cor-respondência entre o valor representado pela moeda— seu valor de face — e o seu conteúdo material, istoé, a quantidade de metal que ela continha. O portadorde uma moeda de ouro carregava consigo o própriovalor do ouro expresso na face daquela moeda. Nãose tratava de um “representante” de um valor que seencontrasse guardado em outro lugar.

Moedas de ouro significavam diretamente riqueza.Quem as possuísse não precisava temer sua desvalo-rização. A única forma de sair prejudicado era quandoalgum príncipe malvado (para financiar suas despesasperdulárias ou promover guerras, o que era muito fre-qüente) ordenava o recolhimento de todas as moedasexistentes e realizava a “recunhagem”.

O príncipe mantinha o mesmo valor de face da moe-da (1 ducado, 1 florim etc.), mas retirava parte do metalque a constituía. Desvalorizava a moeda. Quem resis-tisse e fosse pilhado com as moedas antigas corria orisco de ser enforcado. Era a forma primitiva do atual

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“imposto inflacionário”, do qual trataremos maisadiante.

O resultado era uma onda inflacionária, e as novasmoedas recunhadas passavam a valer menos, tornan-do-se portanto menos confiáveis.

Mas existiram moedas (como o florim, por exemplo)que por vários séculos mantiveram seu valor mais oumenos constante, pois a quantidade de ouro que con-tinham não foi alterada. Eram as moedas “fortes” deseu tempo. Todos confiavam no seu valor.

Mas assim como o vestuário, que a partir da funçãobásica de proporcionar proteção foi desempenhandooutras no decorrer da história, o dinheiro foi ganhandotambém novas formas e funções com o desenvolvi-mento do capitalismo.

Hoje existem formas muito sofisticadas de roupa —basta apreciar qualquer desfile de moda — que nemremotamente lembram as primeiras peles de animaiscom as quais o homem primitivo se protegeu do frio;ou formas de dinheiro que aparentemente nada têma ver com os velhos florins ou ducados da épocarenascentista.

Certo dia de rodízio na cidade de São Paulo tomeium ônibus na região de Pinheiros e já ia passandopela catraca quando retrocedi. Os bancos situados de-pois dela estavam ocupados por um grupo de punksem atitude desafiadora. Um deles vestia-se com um

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tipo de roupa que lhe dava uma aparência semelhanteao resultado do cruzamento de Dercy Gonçalves comRambo.

Por precaução resolvi esperar que eles descessempara então ultrapassar a catraca. Enquanto isso fuibrincando com a idéia de que aquela roupa já nãoguardava nenhuma relação com a função primária defornecer ao homem proteção contra um ambiente hos-til. Ao contrário, era a forma de se comportar e vestirdaquele grupo que transformava o entorno — a meuver — em algo hostil ou desagradável. A roupa da-quele sujeito tinha mais a intenção de assustar do queoutra coisa. E, creio, conseguiu seu objetivo...

Hoje o dinheiro assume formas bem diferentes dasexistentes nos primórdios do capitalismo. Basta lem-brar as diferenças entre uma moeda de ouro ou prata,um cheque ou um cartão de crédito.

Mas qualquer que seja a aparência que o dinheiroassuma, uma coisa é certa: todos nós gostamos de lidarcom uma moeda “confiável”. A razão é simples e jáanunciada de outra forma nos parágrafos anteriores:em nossa sociedade esta é a forma mais comum emque a riqueza aparece. E ninguém gosta — por maisrico que seja — de perder parte dos valores que possui.

Se “o dinheiro não traz felicidade”, quando vai em-bora (ou diminui) leva consigo a felicidade eventual-mente existente...

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Se por alguma razão a moeda perde valor (compramenos a cada dia), o que acontece é que seus porta-dores estão na realidade perdendo riqueza, ficandomenos ricos ou mais pobres. Todos nós procuramosevitar que tal coisa aconteça.

Mas não existe maneira de viver numa economiade mercado sem lidar de uma forma ou outra comcerta quantidade de dinheiro. E como é muito difícilque uma moeda mantenha seu valor eternamente, to-dos nós corremos o risco de perder, se nossa moedafor instável ou pouco confiável.

No entanto, a confiança numa moeda tem muito aver com a forma pela qual ela se apresenta aos nossossentidos. As pessoas geralmente confiam mais numamoeda de ouro que possa ser trocada por US$ 100,00do que numa nota de US$ 100,00 que possa ser trocadapor essa mesma moeda de ouro. E veja que o dólar(papel-moeda) é considerado uma moeda forte, e oouro anda meio desacreditado no mercado internacional.

Não é por outra razão que nos momentos de inse-gurança crescente as pessoas voltam-se para as formasmais antigas de dinheiro, especialmente aquelas rela-cionadas com os metais preciosos. É como se para en-frentar uma nevasca ninguém ligasse se um casacofosse assinado por um grande estilista, bastando queproporcionasse calor.

Mas examinemos esta questão mais de perto.

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2. O que Torna uma Moeda Confiável ou o DinheiroSeguro?

Nos países desenvolvidos e até 1971, era uma rela-ção mais ou menos fixa entre o papel-moeda emitidoe uma certa quantidade de ouro que todo governodevia ter guardado como lastro, ou reserva metálica.Esta reserva metálica permitia a conversibilidade, oua transformação de notas de papel em ouro monetário.

Se alguém se sentisse inseguro, ou mesmo preferisseo metal precioso ao papel pintado, poderia fazer aconversão e se tranqüilizar. É claro que deveria terum lugar apropriado para guardar o ouro e evitar serroubado. Como essa operação tinha um custo, só emmomentos de incerteza e desconfiança crescente essaconversão era feita.

Esse ouro monetário era conservado em lingotes ouamoedado no Tesouro Nacional ou nos Bancos Cen-trais desses países. As notas emitidas pelo governo —o papel-moeda — constituíam uma espécie de “recibo”assegurando que o portador poderia convertê-las, aqualquer momento, na correspondente quantidade deouro monetário.

Ou seja, o papel-moeda emitido era lastreado emmetais preciosos. Os portadores dessas notas confia-vam na moeda, pois se quisessem poderiam trocá-lapor ouro de acordo com a lei. E esta lei dava aos por-tadores dessas notas garantias estabelecendo um certo

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peso fixo de metal pelo qual as notas de cada valorpoderiam ser trocadas. Era como se as pessoas tives-sem o próprio ouro, o qual, por razões práticas e desegurança, permanecia guardado nos cofres do governo.

Além disso, esse mecanismo ou sistema monetáriodenominado padrão-ouro (e posteriormente padrão-câmbio-ouro) proporcionava outra garantia aos por-tadores das notas: se o governo quisesse emitir maismoeda, teria de aumentar seus estoques de ouro. Issofuncionava como um freio; criava sérias limitaçõespara que um governo emitisse mais dinheiro e des-valorizasse o papel-moeda já em circulação. Em lin-guagem mais clara, tornava mais difícil que um go-verno apelasse para a inflação.

Nos períodos históricos em que esse sistema mone-tário funcionou, a inflação sempre foi pequena. A moe-da de um país não se desvalorizava, e quando issoocorria em função do aumento da oferta de ouro, eranecessário algum tempo para que se pudessem sentiralterações mais expressivas nos preços.

Quando por alguma razão as regras básicas dessesistema não foram respeitadas, surtos inflacionáriosmuito intensos aconteceram. Basta lembrar de JohnLaw, um senhor de origem escocesa que no início doséculo XVIII quase levou a França à bancarrota coma tese de que a escassez de ouro e de prata poderiaser sanada com a emissão de papel-moeda por umBanco Central controlado pelo governo.

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A especulação desenfreada, a inflação e o pânico naeconomia francesa em 1720 resultaram da prática deconcepções contidas no livro de Law publicado em1705, isto é, quinze anos antes, cujo título era sinto-mático: Considerações sobre a Moeda e o Comércio, comuma Proposta para Suprir a Nação de Dinheiro.

Depois da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha,espoliada de suas reservas e outras riquezas e oneradacom uma descomunal dívida de guerra pelo Tratadode Versalhes, não teve outra saída a não ser emitirpapel-moeda sem lastro metálico. A inflação foi às nu-vens. O marco alemão, o Reichsmark, somente se esta-bilizou quando um empréstimo em dólares permitiuque as emissões fossem outra vez lastreadas, e os pre-ços se estabilizaram. No momento em que isso ocorreu,US$ 1,00 equivalia a 4,2 trilhões de marcos-papel.

Embora o fantasma da inflação e as fortes oscilaçõesde preços fossem afastados durante os períodos nosquais o sistema monetário esteve associado ao lastrometálico e à conversibilidade, nem tudo corria às milmaravilhas.

Havia o perigo contrário: o da deflação. Um sistemamonetário baseado no padrão-ouro deveria ampliarsuas reservas metálicas para lastrear emissões adicio-nais de papel-moeda. Se a economia estivesse em ex-pansão demandando mais moeda para movimentaros negócios e ela não pudesse ser emitida, poderiahaver uma deflação. A falta de meio circulante poderiaalém disso bloquear o crescimento econômico.

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Quando a quantidade de dinheiro em circulação épequena, os preços tendem a cair. Acontece uma de-flação, o contrário da inflação. E não pode haver coisamais desestimulante para os negócios do que preçosem queda. E para piorar as coisas, se o dinheiro éescasso, difícil de ser obtido, o mesmo acontecerá como crédito, e as taxas de juros tenderão a situar-se emníveis elevados.

Quem depende de dinheiro dos bancos para movi-mentar seus negócios poderá enfrentar uma situaçãocomplicada: os preços de seus produtos em queda eos custos financeiros em elevação.

“Não compre hoje o que você pode comprar maisbarato amanhã!” é o estribilho da moda em momentoscomo esses. Se amanhã os preços estiverem mais bai-xos do que hoje, eu espero para fazer minhas comprasdepois de amanhã, se tiver dinheiro...

As empresas vendem menos, lucram menos, e al-gumas, ao terem prejuízos, fecham suas portas desem-pregando trabalhadores. A recessão se estabelece comtoda a força. Não pode haver maior desestímulo àprodução.

Moral da história: um país que tiver sua moeda atre-lada ao padrão-ouro pode acabar preso numa cami-sa-de-força que impeça sua economia de crescer; faltameio circulante para azeitar a máquina dos negócios,e esta começa a emperrar.

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Pensei no meu jovem vizinho que havia muito nãoaparecia em busca de seu gato. Talvez fosse interes-sante preparar uma explicação calcada em algum casoconcreto para facilitar o entendimento da deflação.

Um dos melhores exemplos talvez seja a crise eco-nômica vivida pelos Estados Unidos durante a últimadécada do século XIX. Especialmente porque essa si-tuação foi retratada como sátira numa das históriasmais conhecidas no mundo ocidental.

Usaremos outra vez a bota de sete léguas para exa-minar o que aconteceu por lá há mais de um século,fazendo uma visita ao Mágico de Oz e à Cidade dasEsmeraldas.

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CAPÍTULO 4

O PADRÃO-OURO E ADESVALORIZAÇÃO DO DÓLAR

1. O Mágico de Oz e o Perigo da Deflação

O Mágico de Oz talvez seja uma história tão conhe-cida quanto a Bíblia. E embora seu autor, Frank Baum,não tenha deixado nenhuma indicação explícita a res-peito, é muito provável que ao escrevê-la ele tomassecomo pano de fundo a luta travada nos Estados Uni-dos, de 1894 a 1900, entre os defensores do padrão-ouro e os adeptos do bimetalismo (padrão-ouro eprata).

Dorothy é a personagem central de O Mágico de Oz.Morava no interior do Kansas com seus tios fazendei-ros empobrecidos. A ação tem início quando um ci-clone arremessa a casa, Dorothy e seu cachorrinhoTotó até o mágico Reino de Oz.

Honesta e plena de virtudes, Dorothy representa opovo norte-americano. O ciclone é o movimento po-

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pulista que em poucos anos cresce de pequenas reu-niões de fazendeiros endividados e semi-arruinadosaté se tornar um vasto movimento que desafiou ospoderosos de Washington e Nova York.

O Reino de Oz representa os interesses dos ban-queiros e financistas defensores do padrão-ouro, ondeo dinheiro prevalece sobre tudo. A Bruxa Malvada doLeste é a sua mais legítima expressão: a casa de Do-rothy cai justamente sobre ela. Do impacto sobramapenas os sapatos de prata (no filme os sapatos sãode rubi) da bruxa, ou melhor, sua porção boa: a basedo bimetalismo.

Para retornar ao Kansas, Dorothy sai em busca doMágico de Oz, que impera na Cidade das Esmeraldas.No caminho, Dorothy vai superando obstáculos atéchegar à estrada dos tijolos amarelos, ante-sala da Ci-dade das Esmeraldas.

No trajeto da estrada dos tijolos amarelos, isto é,do padrão-ouro, ela vai encontrando manifestações dacrise econômica, do desemprego e da deflação.

O primeiro é o Espantalho, que representa os agri-cultores arruinados. Preso à terra por uma estaca, en-contra-se à mercê dos corvos que devoram até a palhado seu próprio corpo. Não pode haver melhor refe-rência aos produtores dilacerados por taxas de jurosescorchantes.

Dorothy liberta o Espantalho e este torna-se seu pri-meiro companheiro. Em seguida ela encontra o Ho-

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mem de Lata. Paralisado pela ferrugem, ele espelhao desemprego existente na época na indústria meta-lúrgica. Dorothy recupera seus movimentos e ganhamais um seguidor.

O último a integrar-se à caravana é o Leão Covarde.Representa William Jennings Bryan (1860-1925), umgrande orador populista que aos 36 anos consegue aindicação como candidato à Presidência da Repúblicanas eleições de 1896 pelos partidos Democrata, Popu-lista e da Prata Nacional.

Sua principal bandeira de luta nas eleições de 1896era a adoção de um sistema monetário bimetálico noqual, além do ouro, a prata servisse também para las-trear as emissões de moeda.

A idéia é que, se houvesse mais emissão de moeda,os preços tenderiam a se recuperar e a maior ofertamonetária poderia exercer uma pressão para baixo nataxa de juros. Os Estados Unidos produziam boa quan-tidade de prata, e esta poderia ser utilizada tambémpara lastrear as emissões.

Depois de muitas peripécias, o grupo chega à Ci-dade das Esmeraldas (Washington D.C.). Ali tudo eraverde, isto é, da mesma cor do papel-moeda até hojeconservada pelo dólar.

Dorothy encontra o Mágico de Oz. Sempre miste-rioso e ameaçador, este representa o poder político ouo governo. Ele impõe uma condição para mandar Do-

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rothy de volta ao Kansas: que ela destruísse a BruxaMalvada do Oeste. Esta representaria as forças adver-sas da natureza (especialmente a falta de chuvas, mor-tal para as colheitas).

Dorothy a destrói de forma bastante simples: a bruxatenta incendiar o Espantalho, e, ao salvá-lo, Dorothylança um balde de água que atinge a bruxa e a derrete,afastando-a do caminho.

A arma utilizada representa a redenção dos agri-cultores num duplo sentido: indispensável para umaboa colheita, a água é também sinônimo de “liquidez”na economia; se a prata pudesse ser cunhada, os meiosde pagamento se ampliariam, os preços reagiriam ti-rando o país da deflação e as taxas de juros tenderiama diminuir. Era o que os agricultores e industriais de-sejavam ardentemente.

Dorothy retorna à Cidade das Esmeraldas para co-brar a promessa do Mágico de Oz. Ao encontrá-lo per-cebe que não se trata de um homem todo-poderoso,e sim de um ser comum. O padrão-ouro é desmisti-ficado. Nada tem de mágico: não consegue tirar o paísda crise.

Em síntese, o padrão-ouro como sistema monetáriopode significar uma camisa-de-força que impede o de-senvolvimento da economia. É sintomático que a his-tória termine com o Mágico de Oz voando em seubalão que deveria levar Dorothy para o Kansas, e di-zendo que ele não poderia fazê-lo retornar porque nãosabia muito bem “como aquela coisa funcionava”...

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Imagino que o meu jovem vizinho, se estivesse es-cutando esta interpretação, com certeza perguntariapor que o Leão era covarde. E, emendando, se eletinha alguma coisa a ver com o Imposto de Renda.

De fato, o Leão aparece durante toda a história comoalguém covarde e medroso. O autor resolveu dar-lheesta característica aparentemente porque, como outrosseguidores de Bryan na campanha de 1896, o consi-derou um “traidor” por ter abandonado sua platafor-ma na campanha de 1900 contra o mesmo Mackinley.

O problema é que, depois da vitória apertada sobreBryan, Mackinley promove uma certa emissão de di-nheiro com base na prata, e outros acontecimentos con-tribuem para melhorar a situação monetária e econô-mica dos Estados Unidos.

Em primeiro lugar, a própria vitória eleitoral fazcom que parte do ouro que havia migrado para a In-glaterra — cujos possuidores temiam uma desvalori-zação do metal caso Bryan vencesse — retorne paraos Estados Unidos.

Três químicos escoceses descobrem, mediante a apli-cação do cianureto, um método para extrair ouro deminérios de baixo teor, aumentando a produção dessemetal e barateando seus custos. É interessante que,mais de um século depois, essa descoberta redentorado padrão-ouro tenha provocado um grande desastreecológico: em fevereiro de 2000, um vazamento de vá-rias toneladas de cianureto de uma mina de ouro na

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Romênia contamina o rio Danúbio, matando enormequantidade de peixes.

As minas de ouro do Alasca, território adquiridoda Rússia pelo governo norte-americano alguns anosantes, começam a produzir, e do outro lado do oceanoa África do Sul torna-se em pouco tempo a maior pro-dutora mundial, abastecendo o mercado de forma cres-cente. Esses fatores barateiam o ouro, ampliam suaoferta e melhoram a situação monetária dos EstadosUnidos.

No âmbito econômico, a agricultura recupera seubom desempenho: chove adequadamente no Meio-Oeste, as colheitas são satisfatórias, acontecendo o con-trário na Europa. O preço dos grãos aumenta no mer-cado internacional e os agricultores norte-americanossaem do sufoco.

A partir de 1897 os Estados Unidos começam a mos-trar ao mundo sua musculatura imperialista e derro-tam a Espanha numa guerra em torno do predomíniosobre Cuba e Porto Rico, no Caribe, e as Filipinas, noPacífico.

Como voltaria a acontecer por mais de uma vez noséculo XX, a guerra exerce um efeito expansionista naeconomia norte-americana. Quem está em guerra nãopergunta quanto custa uma bomba: manda construí-lapara vencer seu inimigo. Depois lambe as feridas epergunta quanto teve de pagar pelos remédios, se foro caso. Essa demanda de material de guerra, especial-

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mente para a Marinha, provoca um estímulo fulminanteno setor siderúrgico e metalúrgico em geral. O “Homemde Lata” recupera o emprego e os movimentos...

A urgência por essa produção de armas e de naviosde guerra tirou do anonimato um obscuro engenhei-ro-inventor que a situação de recessão nos EstadosUnidos havia obrigado a aceitar uma função de sim-ples mestre.

Frederick Wislow Taylor introduz, na BettelheimSteel Co., um método mais eficaz de carregamento devagões com lingotes que estavam amontoados nos pá-tios da empresa à espera de compradores. A guerracom a Espanha substituiu o consumidor negado pelarecessão que o país atravessava. As empresas siderúr-gicas norte-americanas comemoraram.

Todas essas mudanças na economia recomendavamque o candidato Bryan mudasse seu discurso, pois osproblemas de 1896 não eram os mesmos de 1900. Aoperceber isso, Bryan muda o foco de suas propostasnas eleições seguintes e por tal razão é consideradopor seus seguidores mais fanáticos um “covarde” ouum “traidor”. Pela segunda vez é derrotado, agorapor uma margem bem maior de votos: a economianorte-americana havia superado a recessão e entravanuma fase expansionista.

Os preços se recuperam e uma suave inflação tomao lugar da deflação. Esse novo ciclo dura até 1907.

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A proposta de Bryan, mesmo sem propor o aban-dono de um lastro metálico e da conversibilidade, ti-nha como principal objetivo alargar o que hoje se de-nomina “base monetária”, ampliando o meio circu-lante mediante a cunhagem da prata. O fato de a eco-nomia norte-americana ter superado a crise pelo de-senrolar dos acontecimentos não significa que a pro-posta de Bryan fosse desnecessária.

Como já assinalamos, acontecimentos internacionaisse encarregaram de ampliar a oferta monetária e aeconomia livrou-se da deflação. Mas talvez a recupe-ração tivesse sido mais rápida se as propostas defen-didas por Bryan fossem postas em prática.

2. O Padrão-Ouro e a Conversibilidade da Moeda noBrasil Durante o Século XX

Durante o século XX, somente em dois períodos cur-tos tivemos no Brasil moeda lastreada e conversívelem metal: entre 1906 e 1914, e entre 1926 e 1930.

O organismo que se encarregava de garantir a con-versão do papel-moeda em ouro no início do séculodenominava-se Caixa de Conversão. Criada em 1906pelo governo do presidente Rodrigues Alves, tinhacomo principal finalidade a execução de uma políticade estabilidade cambial.

No mesmo ano, o Convênio de Taubaté, celebradoentre representantes de São Paulo, Minas Gerais e Rio

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de Janeiro, ao equilibrar os preços internacionais docafé — na época nosso principal produto de exporta-ção —, constituiu um dos esteios dessa política, quesobreviveu até o início da Primeira Guerra Mundial.

A Caixa de Estabilização, criada em 1926, repre-sentou um papel parecido, embora estivesse mais vol-tada para a estabilização da própria moeda, o mil-réis.

Com esse organismo o Brasil voltou ao padrão-ouro,ou ao padrão-câmbio-ouro, pois o dólar e a libra es-terlina, vinculados diretamente ao ouro, valiam tam-bém como reservas internacionais.

Para muitos, a taxa de câmbio, apelidada de “TaxaVil”, foi excessivamente desvalorizada quando do es-tabelecimento da Caixa de Estabilização. O câmbio be-neficiava bastante os cafeicultores, sobretudo os ex-portadores do produto, pois os preços do café estavamrazoavelmente altos no mercado internacional, e te-mia-se que ela pudesse trazer pressões inflacionárias,via importações.

Preocupações justificadas pela experiência dos agu-dos processos inflacionários que a Alemanha, a Áus-tria, a França e a Itália sofreram depois da PrimeiraGuerra Mundial.

Para que não houvesse nenhum perigo de pressõesinflacionárias, e portanto ameaças à estabilidade cam-bial, adotava-se uma política rígida de equilíbrio or-çamentário que evitasse os déficits. Buscava-se, em sín-

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tese, o equilíbrio entre receitas e despesas, para quenão houvesse necessidade de emitir moeda para cobriras diferenças, causando pressões inflacionárias.

De fato, entre 1926 e 1929 consegue-se esse equilí-brio, como mostram os dados abaixo:

Mas, apesar de todos os esforços, não se conseguiulastrear todas as emissões de moeda, isto é, tornar to-das as emissões conversíveis antes de 1929. No mo-mento da crise apenas 1/3 do total do meio circulanteera constituído de emissões conversíveis.

A excessiva desvalorização do mil-réis em face dalibra esterlina e do dólar provocou o crescimento dofluxo de capitais estrangeiros para o Brasil: proprie-dades e ativos em geral, cotados em mil-réis, haviamse tornado “baratos” devido a essa desvalorização.

Quadro 11

Receitas Despesas (em milhões de contos de réis)

1924 15,1 16,3 1–1,2

1925 17,3 17,6 1–0,3

1926 16,4 18,2 1–1,8

1927 19,9 20,0 1–0,1

1928 22,0 20,2 1+1,8

1929 23,9 22,2 1+1,7

1930 16,7 25,1 1–8,4

1931 17,5 20,5 1–3,0

1932 16,9 28,6 –11,7

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Já vimos que o mesmo aconteceu também há cercade setenta anos depois com a forte desvalorização doreal em 1999; mas comentaremos isso mais adiante.

Esses fluxos de capitais estrangeiros permitiram su-perávits no Balanço de Pagamentos e o aumento dasreservas, o que ajudou a estabelecer a conversibilidadee mantê-la até o início da crise de 1929.

De fato, as reservas cambiais do Brasil entre 1925 e1929 cresceram de US$ 69 milhões (54 em ouro e 15em moedas estrangeiras) para US$ 177 milhões (sendo150 em ouro e 27 em moedas estrangeiras).

Além dessas condições favoráveis, é interessantelembrar que a boa situação do café no mercado inter-nacional dava um grande dinamismo ao mercado in-terno, pois o café demanda muitos produtos industriaiscomo a sacaria, máquinas e ferramentas para os tratosculturais e o benefício, e especialmente o transporte.

As primeiras ferrovias instaladas no Rio de Janeiroe em Minas Gerais tinham a missão primordial detransportar o café para os portos. O traçado da malhaferroviária paulista obedeceu também à evolução daocupação do Interior pelo cultivo do café.

E mesmo o crescimento vertiginoso da cidade deSão Paulo entre 1880 e 1930 deve-se em grande medidaa essa expansão. Obras de grande vulto tiveram deser realizadas para viabilizar a exportação do produto,

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como dotar a cidade de São Paulo de infra-estruturacorrespondente.

Talvez a mais importante tenha sido a batalha pelaprodução de energia elétrica para uma cidade em ex-pansão que necessitava não apenas de iluminação, mastambém de um sistema de transportes adequado. Masisso já é uma outra história...

O importante é que a crise econômica iniciada emoutubro de 1929 destrói o fundamento da Caixa deEstabilização: as reservas em ouro e moedas fortes de-finham e quase desaparecem em poucos meses.

Os preços internacionais do café despencam, os dó-lares e libras esterlinas, que antes entravam, começama sair em grande escala: todos aqueles que possuíampapel-moeda conversível efetuam a troca: o governoperde dólares, libras e ouro, e enche seus cofres denotas coloridas denominadas mil-réis.

Para agravar ainda mais as coisas, o governo, acre-ditando que a crise seria passageira, mantém não ape-nas a conversibilidade, mas também a mesma taxa decâmbio até o final de 1930, facilitando a vida daquelesque possuíam mil-réis conversíveis.

Nossas reservas quase desaparecem. Em 1931, oouro monetário havia praticamente se esgotado. E emmoedas estrangeiras, o Brasil mantinha apenas US$14 milhões em caixa, montante insuficiente para pre-tender continuar com a conversibilidade.

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Durante esses dois períodos, especialmente no últi-mo, a situação externa da economia ia bem, o mesmoacontecendo com o “resto do mundo”. De 1925 até acrise de 1929, o preço do café, nosso principal produtode exportação, encontrava-se num patamar bom e ascontas do governo, como já vimos anteriormente, equi-libradas.

Durante esse período, nas notas emitidas estava es-crito “Se pagará ao portador no Tesouro no Rio deJaneiro de acordo com a lei 5.108 de 18 de dezembrode 1926 em ouro monetário etc...” O portador, se qui-sesse, poderia trocá-las por ouro monetário, emborapara fazê-lo tivesse de ir até o Rio de Janeiro, ondese encontrava na época o Tesouro Nacional.

O importante é que o governo não precisava emitirmoeda para cobrir seus déficits. A razão fundamentalé que as receitas governamentais eram iguais ou su-periores às despesas. Seus orçamentos eram equilibra-dos. Caso contrário, teria de apelar para as emissões,o que provocaria um surto inflacionário, e a moedaperderia credibilidade.

O governo podia se dar ao luxo até de esterilizarcerta quantidade do meio circulante, incinerando partedas sobras em papel-moeda arrecadadas, reduzindoem vez de aumentar a quantidade de moeda emcirculação.

Mesmo que isso acontecesse de forma simbólica, umclaro telegrama era enviado ao prezado público: o go-

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verno encontrava-se em situação tão sólida que nãosó cessava de emitir moeda como reduzia a quantidadeem circulação.

Portanto os possuidores daquelas notas sabiam queelas não eram mero papel colorido. Eram notas con-fiáveis não apenas porque poderiam ser trocadas porouro a qualquer momento, como também porque ogoverno que garantia aquela situação gastava menosdo que arrecadava e, dessa forma, não colocaria o valorda moeda em perigo apelando para novas emissões.

3. A Crise de 1929 e as Crises Políticas: o Retorno doDéficit Público

Depois de 1929, quando a crise econômica envolveupraticamente todo o mundo capitalista, o Brasil jamaisvoltou a ter moeda lastreada, entendendo-se tal lastrocomo uma relação de conversibilidade entre as notasemitidas e o ouro monetário mantido em reserva.

As reservas existentes até a crise praticamente seevaporaram entre 1930 e 1931. Como já assinalamos,todos os que puderam trocaram seus mil-réis por ou-tras moedas (que também estavam cambaleando, maseram consideradas mais fortes) ou pelo ouro monetá-rio ao qual tinham direito.

Apesar da crise, o governo brasileiro manteve du-rante algum tempo a conversibilidade do mil-réis emouro monetário à taxa de câmbio existente antes dela.

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Ou melhor, não desvalorizou o mil-réis imediatamentenem suspendeu a conversibilidade. O resultado foi aperda quase total das reservas.

Sem reservas não poderia mais lastrear suas emis-sões. Mas a dificuldade não se resumia apenas a isso.O problema é que durante os anos 30 as despesasgovernamentais cresceram, enquanto as receitas caíamem função da própria depressão mundial e da con-tração da economia que ela provocava no Brasil.

Isto é, à semelhança de uma sanfona, a economiaencolhera e portanto a arrecadação de impostos tam-bém: para a saída de mais som seria necessário enchero instrumento de ar outra vez...

Os anos 30 foram também uma década de grandescrises políticas no Brasil, e não há nada que custe maisaos cofres públicos do que revoltas, movimentos mi-litares e até uma guerra civil de curta duração, comofoi o Movimento Constitucionalista de 1932. E alémdeste ocorreram movimentos armados contra o gover-no em 1935 (a assim chamada Intentona Comunista),e logo em seguida a tentativa de golpe integralista em1937, e, em 1939, o início da Segunda Guerra Mundial.

Do ponto de vista econômico e financeiro, os anos20 foram totalmente diferentes da década seguinte. Sedurante os primeiros o país conseguiu equilibrar suascontas externas e internas, depois da crise de 1929 ocor-reu exatamente o contrário.

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Foi uma época inflacionária (depois de um curtoperíodo inicial de deflação) e, nos primeiros anos, deforte desemprego. Meu avô Fabrício, um notável con-tador de “causos”, lembrava, quando alguém recla-mava da vida, das “pensões de corda”. Um sorrisoenigmático e matreiro jamais esclarecia se ele tinhasido um mero hóspede ou dono da referida pensão,ou mesmo se tinha simplesmente inventado a história.

Segundo ele, era um casarão no centro de São Pauloonde as pessoas desempregadas “dormiam” semipen-duradas numa corda debaixo do braço, e de manhãbem cedo o gerente da pensão desamarrava uma daspontas e todo mundo acordava ligeirinho para ir pro-curar emprego...

Mas a proteção dos cafeicultores através da desva-lorização cambial viabilizou indiretamente a expansãoindustrial.

A dificuldade de importar produtos estrangeiros,pois eles haviam se tornado muito caros em funçãoda escassez de divisas e da desvalorização cambial,entregou de bandeja o mercado interno para as em-presas nacionais.

Sobretudo a indústria acusou um enorme crescimen-to, e embora com inflação, o nível de emprego au-mentou, o mesmo acontecendo com a expansão doProduto Interno Bruto, o chamado PIB, já nosso co-nhecido desde o Capítulo 1.

Mas, para que um sistema de moeda conversível elastreada em ouro monetário (ou em prata) funcione,

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é necessário que o front externo se encontre razoavel-mente favorável, isto é, que o preço das exportaçõesseja bom e exista equilíbrio na balança comercial. Alémdisso o front interno necessita também apresentar umequilíbrio entre receitas e despesas. Se uma dessas co-lunas fraquejar, não será possível permanecer com osistema de conversibilidade.

Depois da crise econômica iniciada em 1929, essascondições deixaram de existir no Brasil. Perdemos ascondições para manter o lastro metálico e o mil-réisdeixou de ser conversível. A partir daquela data asemissões de papel-moeda no Brasil tornaram-se nãoconversíveis e foram acompanhadas por um processoinflacionário considerável que se intensificou no iníciodos anos 60 e também no final dos anos 70 até o sur-gimento do Plano Real, em 1994.

Mas e no “resto do mundo”, o que aconteceu?

Deveremos voltar outra vez aos Estados Unidos.Agora visitaremos um lugarejo aprazível chamadoBretton Woods, em New Hampshire.

4. Uma Reunião em Bretton Woods

No final de 1944, quando os Aliados já estavam se-guros de que a derrota da Alemanha e do Japão naSegunda Guerra Mundial era uma questão de tempo,reuniram-se em New Hampshire, num lugar chamadoBretton Woods, nos Estados Unidos. A finalidade era

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reorganizar o sistema econômico e financeiro interna-cional dilacerado durante o conflito armado.

Nessa reunião foram criados organismos como oFundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Inter-nacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento(Bird). A questão que despertou maior controvérsiafoi o estabelecimento das regras para o funcionamentodo sistema financeiro internacional.

O padrão-ouro foi restabelecido, tendo o dólar dosEstados Unidos como espinha dorsal do sistema, istoé, como principal meio de pagamento internacional,na base de US$ 35,00 = 1 onça troy de ouro fino.

Os ingleses, liderados pelo grande economista JohnMaynard Keynes, preferiam que em vez do dólar fossecriada uma moeda internacional denominada “ban-cor”, cuja emissão não dependesse de nenhum gover-no em particular, mas de todos os países que forma-vam o FMI.

O receio — plenamente justificado — era que a es-colha do dólar pudesse dar lugar a muitos abusos eproduzir enormes vantagens para o governo emissor,pondo em perigo a estabilidade do sistema como umtodo.

Mas os norte-americanos, hegemônicos econômica,política e militarmente, impuseram sua alternativa, eassim ficou estabelecido.

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Nos primeiros tempos as coisas funcionaram maisou menos bem. Mas durante os anos 60 já se tornaraclaro que os Estados Unidos emitiam uma quantidadede dólares superior aos seus estoques de ouro.

O dólar estava se enfraquecendo e muita gente forados Estados Unidos começava a ter pesadelos.

Para explicar essa questão devemos examinar porque produzir dinheiro é uma das atividades mais ren-táveis que existem.

5. O Melhor Negócio do Mundo: a Emissão de Moeda

Pode haver maior tentação do que emitir dinheiropara pagar contas? Veja como emitir dinheiro (semlastro) é um excelente negócio: a Casa da Moeda, queemite a maior parte do dinheiro em circulação no Bra-sil, gasta cerca de 10 centavos para produzir uma moe-da que vale 100 centavos (1 real).

O governo ganha portanto 90 centavos ao emitircada unidade de um real. Suponhamos que o governoencomende à Casa da Moeda a fabricação de 1 milhãode moedas de R$ 1,00. Ele pagará R$ 100 mil peloserviço, mas obterá 1 milhão em dinheiro para realizarsuas despesas. Seu ganho será equivalente a R$ 900 mil!

Parece até aquela história do sujeito que dizia nãoganhar tanto assim, pois seu lucro era apenas três porcento, isto é, custava-lhe três e ele vendia por cem...

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Esse dinheiro poderá ser utilizado para pagar qual-quer despesa que um governo tenha: desde o queijocom marmelada para a sobremesa nas refeições doPalácio da Alvorada, salários dos servidores, combus-tível para os carros oficiais e até juros da dívida pública.

Melhor negócio do que esse só a emissão de umamoeda de R$ 2,00... Como esta não existe, pensemosna nota de maior valor que o governo brasileiro emitee indaguemos quanto ela custa para ser produzida,pois o mesmo raciocínio pode ser aplicado tambémao papel-moeda.

No Brasil, a nota de maior valor, por enquanto, éa de R$ 100,00. Quanto custa imprimi-la? Não deveser mais do que 10 centavos. Quando um governoemite uma dessas notas, gasta muito pouco. Ganhaportanto R$ 99,90 para cada notinha dessas que colocaem circulação. Este é o ganho máximo por unidadeemitida que o governo brasileiro pode obter.

No jargão dos economistas, esse ganho denomina-se“senhoriagem”. Este termo tem origem na Idade Mé-dia, quando um senhor feudal, para obter o direitode cunhar moeda, devia pagar determinada soma aosuserano ou ao rei.

Se a moeda for emitida sem lastro metálico, o go-verno obtém esse ganho extraordinário logo depoisque a coloca em circulação. Mas a repetição desse de-licioso gesto acabará provocando inflação.

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Isto é, o dinheiro perderá valor na mesma medidaem que vai inundando toda a economia. Os preçosdisparam e essa moeda perderá cada vez mais valore deixará de ser confiável.

O governo continuará ganhando, mas nessa alturado campeonato a senhoriagem se transformará em“imposto inflacionário”. É como se o governo lançasseum imposto arrecadado toda vez que uma nova notaentrasse em circulação.

O que o governo ganha, alguém perde. E esse “al-guém” somos nós, o público, que não tem outra saídasenão usar essas notas de papel colorido para sobre-viver numa economia de mercado.

Por ser um imposto bastante fácil e barato de sercobrado, tem sido muito utilizado pelos governos bra-sileiros (e de outros países também). Embora silencio-so, ele acaba criando um clima de exasperação entretodos, desanimando investidores e consumidores, pre-judicando portanto o crescimento econômico.

Em casos extremos a perda de confiança pode sertão grande que as operações comerciais deixam de serrealizadas com a moeda nacional, quando entram emcena as moedas fortes internacionais.

Se a população perder a confiança na moeda nacio-nal e se recusar a usá-la, o governo, além de não maiscontar com os ganhos de senhoriagem, pode perdera própria governabilidade e entrar no torvelinho deuma crise política.

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6. A Desvalorização do Dólar: Resistindo a Tudo,Menos à Tentação

O governo dos Estados Unidos trilhou esse deliciosomas perigoso caminho quando as emissões de dólarescomeçaram a superar as reservas de ouro depositadasem Fort Knox.

Um dos filmes da série James Bond, dos anos 60,Goldfinger Contra 007, contava a história de um vilãocujo plano era desfechar um ataque nuclear contra asreservas de ouro norte-americanas, tornando-as radio-ativas e, portanto, não utilizáveis.

É claro que antes ele separava e mantinha intactauma boa quantidade de ouro, que se valorizaria ex-traordinariamente, tornando-o o homem mais rico domundo. O agente secreto Bond não deixa que issoaconteça, evidentemente, mas uma outra “bomba nu-clear” — a emissão descontrolada de dólares — acabaprovocando a mesma valorização do ouro alguns anosdepois do lançamento do filme.

No caso norte-americano essa prática é mais tenta-dora ainda porque, como o dólar é aceito em todo omundo, os ganhos de senhoriagem, ou o imposto in-flacionário, são exercidos em escala global e não ape-nas internamente, como no caso da moeda brasileira.

A pergunta que certamente o meu jovem vizinhofaria é: “Mas por que os norte-americanos emitirammais dinheiro do que podiam?”

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Vamos fazer uma pequena recapitulação.

Na reunião de Bretton Woods o dólar foi atreladoao ouro numa relação de US$ 35,00 para cada onçatroy (31,104 g) de ouro monetário. Esta relação de valorentre o dólar e o ouro passaria a ser a viga de sus-tentação do sistema monetário internacional.

Como o dólar estava atrelado ao ouro de acordocom uma taxa fixa, qualquer um que tivesse a moedanorte-americana indiretamente possuía ouro. O dólarera, portanto, uma espécie de porto seguro no qualtodos gostavam de ancorar seus navios.

O calcanhar de Aquiles desse sistema é que apenaso governo norte-americano pode emitir dólares. E ocompromisso de só fazê-lo aumentando os estoquesde ouro em Fort Knox infelizmente não satisfazia asnecessidades da política externa e interna dos própriosEstados Unidos.

Ou melhor, se todos aceitavam a moeda emitidapelos norte-americanos (como se fosse ouro), era muitotentador emitir mais papel-moeda do que o ouro quelhe servia de lastro, e obter enormes ganhos de se-nhoriagem. Uma nota de US$ 100,00 custa apenas 10centavos para ser produzida. Quem a emite ganha US$99,90. A diferença com uma nota de R$ 100,00, comojá vimos, é que esta só vale no território nacional eem algumas fronteiras (conheci um camelô em Frank-furt, Alemanha, que também aceitava reais com de-ságio), mas o dólar é aceito em todo o mundo.

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O resultado dessa prática, como sabemos, é a infla-ção. E foi isso o que acabou acontecendo durante osanos 70 até o começo da década seguinte. Houve umainflação expressiva nos Estados Unidos, como os dadosabaixo mostram, e o dólar sofreu forte desvalorização.

Entre 1973 e 1982, em quatro anos a inflação superouum dígito, e o dólar perdeu quase 60% do seu valorno período!

Mas a pergunta permanece: por que os Estados Uni-dos emitiram mais dólares do que poderiam, de acordocom o estabelecido na Conferência de Bretton Woodsem 1944?

Quadro 12

Índice de Preços ao Consumidor nos EUA entre 1973 e 1982

1973 6,2%

1974 11,0%

1975 9,1%

1976 5,8%

1977 6,5%

1978 7,6%

1979 11,3%

1980 13,5%

1981 10,4%

1982 6,2%

Fonte: relatórios do Fundo Monetário Internacional.

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São várias as razões, mas três delas têm especialdestaque: a Guerra do Vietnã, a corrida armamentistainsuflada pela Guerra Fria, e a corrida espacial, tra-duzida pelo objetivo de chegar à Lua antes dos soviéticos.

Os norte-americanos passaram cerca de dez anosno Vietnã até sofrer, em 1975, uma das maiores der-rotas de sua história. Durante esse período, mais de500 mil soldados foram mantidos no exterior. É fácilperceber que um exército desse tamanho, utilizandoequipamentos caros e armamentos sofisticados, de-mandou despesas vultosas.

Na verdade, essa aventura desastrada, além de tercustado a vida de centenas de milhares de vietnamitase também de norte-americanos — para não falar dosdanos ecológicos de destruição de florestas, rios, terrasagricultáveis, inclusive nos vizinhos Laos e Camboja,que tiveram milhares de mortos —, demandou tone-ladas de dinheiro aos cofres públicos.

E foram despesas inúteis do ponto de vista econô-mico, beneficiando unicamente os fabricantes de ar-mas, de medicamentos e de caixões.

O segundo foco de despesas foi a corrida armamen-tista exigida pela Guerra Fria. Um dos maiores golpesque os norte-americanos sofreram durante toda a suaexistência não passou de um insistente sinal de rádio,um bip-bip mostrando que os soviéticos haviam co-locado um satélite na órbita terrestre, em 1957.

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Esta façanha mostrava que, se eles dispunham defoguetes capazes de lançar um satélite, poderiam tam-bém alcançar qualquer parte do mundo com ogivasnucleares. E para agravar a angústia dos dirigentesnorte-americanos, logo depois a cadelinha Laika cir-cundava a Terra e morria em nome da ciência; nãocontentes, os soviéticos possibilitaram que Yuri Gagá-rin pronunciasse uma das frases mais famosas da hu-manidade: “A Terra é azul!”

A segurança ameaçada foi razão mais do que sufi-ciente para arrancar do Congresso orçamentos desco-munais para a aventura espacial e a defesa. Arma-mentos cada vez mais poderosos, sobretudo foguetespropulsores, eram construídos com orçamentos emaberto.

A terceira fonte de despesas foi a corrida espaciale a promessa do presidente Kennedy de colocar umhomem na Lua antes do final da década de 60, e, ob-viamente, antes dos soviéticos. Para que se tenha umaidéia de como se gastou dinheiro com esse objetivo,basta citar dois episódios.

O primeiro deles está relacionado com a tentativade instalar o centro de controle espacial em Cambrid-ge, Massachusetts. Como este era o distrito eleitoralpelo qual o presidente Kennedy havia sido eleito se-nador, nada mais justo que fosse para lá o centro decontrole do projeto norte-americano mais ambicioso ede confronto direto com a União Soviética.

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De fato a Nasa comprou um imenso terreno naquelacidade da Costa Leste dos Estados Unidos, para asinstalações necessárias. Mas, logo depois desse anún-cio, o presidente Kennedy foi baleado e morto em Dal-las, assumindo a presidência o vice Lyndon Johnson.

O novo presidente, no entanto, havia sido eleito re-presentante pelo Texas. Nada mais adequado do queremover o centro de controle de Cambridge e levá-lopara Houston, onde, aliás, se encontra até hoje.

Se o meu jovem vizinho estivesse ouvindo esta his-tória, com certeza perguntaria se a base brasileira delançamento de satélites de Alcântara, no Maranhão,tem alguma coisa a ver com o ilustre ex-presidenteSarney...

Mas a chegada do homem à Lua custou muito maisdo que isso. Uma interessante série de televisão, senão me engano Da Terra à Lua, mostrava em um deseus capítulos a epopéia da construção do primeiromódulo lunar.

Notável obra de engenharia, o módulo lunar demo-rou cerca de cinco anos para ser concluído. Começouorçado em US$ 500 milhões, e acabou exigindo catorzevezes mais quando o primeiro artefato, com NeilArmstrong a bordo, alunissou finalmente na memo-rável noite de 20 de julho de 1969, e permitiu que ahumanidade ouvisse outra frase célebre: “Um pequenopasso para o homem, mas um grande passo para ahumanidade”!

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Todas essas despesas superando as receitas e ge-rando déficits foram enfraquecendo o dólar. No finaldos anos 60, aqueles que mantinham a moeda norte-americana como reservas pensando que era ouro co-meçaram a ficar inquietos.

Os franceses, com De Gaulle no comando, demons-traram abertamente suas apreensões, e o preço do ourofoi se movimentando para cima, ultrapassando os US$35,00 a onça no mercado internacional do metal, em-bora os bancos — em suas operações interbancárias— continuassem a respeitar a cotação fixada em Bret-ton Woods.

Entre 1968 e 1971 as despesas norte-americanas con-tinuaram crescendo e o dólar permaneceu em sua tra-jetória de enfraquecimento. As desconfianças aumen-tavam sobre a capacidade de um governo atolado naGuerra do Vietnã, patrocinando passeios de jipe naLua, e prosseguindo na disputa armamentista com aURSS, de manter a estabilidade do dólar.

No final de 1971, e diante de pressões crescentes, ogoverno Nixon anunciou algo impensável dez anos an-tes: a desvalorização do dólar e o abandono do sistemade livre conversibilidade com o ouro. Embora a desva-lorização inicial não tivesse sido muito grande — de US$35,00 para US$ 38,00 a onça —, foi a pequena rachadurapor onde a água da barragem começou a escapar.

Em pouco tempo um enorme rombo havia deixadopassar uma verdadeira enxurrada, inundando as re-dondezas com um preocupante processo inflacionário.

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No final da década de 70, o prestígio do dólar haviacaído tanto que no mercado livre a onça de ouro che-gou a ser cotada em US$ 580,00! Veja bem: no inícioda década a cotação era US$ 35,00 a onça troy; cercade dez anos depois alcançava mais de US$ 500,00, qua-se o preço de uma onça de verdade, animal sob riscode extinção no Brasil.

O ex-presidente Nixon certamente não foi avisado,mas o fato é que a desvalorização do dólar acaboume beneficiando. No momento em que a cotação doouro atingiu seu ponto mais alto, no final dos anos70, tive de fazer um prolongado tratamento dentário.

Um dentista me examinou, e tenho a certeza de queouvi uma exclamação parecida com: “Que bom queeu não sou você!”, tamanho era o estrago que haviaem meus dentes.

Pedi que ele fizesse um orçamento, mas já fui mepreparando para o pior, ou seja, adiar o tratamentopor falta de recursos. De fato, quando ele me apre-sentou o que precisava ser feito e o respectivo custo,não me surpreendi muito, embora uma coisa tivesse mechamado a atenção: era necessário construir uma pontequase do tamanho da Rio–Niterói. Detalhe: de ouro.

Disse a ele que não seria possível. Sensibilizado coma minha penúria e talvez por compartilhar as mesmasidéias, arriscadas para uns, esdrúxulas para outros,que eu tinha naquela época, ele disse que tentaria darum jeito.

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E realmente deu. Ele era professor numa universi-dade pública e propôs que eu fosse tratado por seusalunos do último semestre, os quais precisavam fazerum trabalho de conclusão do curso. Mas me assegurouque eu não seria uma cobaia, pois ele estaria super-visionando pessoalmente o serviço.

Como era tudo “na faixa”, não tive outra saída eaceitei. E não me arrependi, pois o serviço saiu muitobem-feito. Colocaram ouro por todos os lados, masde forma discreta e hábil. Era o uso do metal queestava encarecendo os serviços odontológicos, tornan-do-os proibitivos.

E por que o preço do ouro estava nas nuvens? Por-que a demanda pelo metal havia crescido de formaintensa em função da desconfiança de todo mundoem relação ao dólar. O ouro tornara-se uma espéciede último refúgio dos investidores, inseguros com ofuturo do dólar. O padrão-ouro havia se desintegrado.

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CAPÍTULO 5

A CRISE DOS ANOS 80:A DÍVIDA EXTERNA E O AJUSTE

1. Um Terremoto Ajudando a Entender a Crise dosAnos 80

Não sei se o leitor já teve a oportunidade de pre-senciar um terremoto. Posso garantir que é uma ex-periência inesquecível. Morei durante alguns anos noChile, e nos primeiros meses não estava “antenado”para esse perigo, tanto é que nos cinemas — para meudeleite — sempre encontrava vazios os melhores lu-gares, isto é, aqueles situados na parte da frente e nocentro da platéia.

Eu não sabia por que os chilenos gostavam de assistiraos filmes longe da tela e na diagonal, bem junto doscorredores... Achava que sofriam de algum problema navista ou talvez que a tela grande os assustasse...

Encontrei a explicação certo dia quando, recebendouns amigos em minha casa em Santiago, começamos

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a ouvir a cachorrada latindo ao mesmo tempo e fa-zendo uma barulheira danada. Os cães não latem dessejeito; em geral, e por alguma razão insondável, umlate num canto, outro responde, um terceiro se entu-siasma e entra na conversa, mas não todos ao mesmotempo.

A explicação é que os cachorros “ouvem” e portantopercebem o terremoto segundos antes que ele seja sen-tido pelo comum dos mortais. Meus amigos chilenossabiam disso, e saíram em disparada para a rua, re-comendando que eu ficasse embaixo da soleira da por-ta — o lugar mais seguro dentro de uma casa duranteum terremoto —, diziam. Foi o que fiz.

Permaneci embaixo da porta de entrada da casaolhando o que estava acontecendo na rua, onde muitagente gritava e corria em várias direções.

A rua começou a ondular. Um espetáculo e tanto!Fiquei maravilhado e não tive tempo de me assustar.Quando as ondulações cessaram, tentei abandonarmeu posto de observação, mas meus amigos diziampara permanecer no mesmo lugar, porque o terremotonão havia terminado. As ondas “batiam” em certo obs-táculo mais à frente e voltavam! De fato, em poucossegundos lá estava a rua movimentando-se outra vez,só que de forma mais suave.

Passado o susto, todos davam graças a Deus pornão ter acontecido nada de mais grave; segundo osespecialistas em terremotos — os chilenos em geral

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—, o que provoca ondulações é o menos destrutivo;são os mais devastadores aqueles nos quais a terra,em vez de ondular, realmente “treme”.

Em todo caso, fiquei pensando no seguinte: o únicoponto de referência seguro que temos é o próprio chão.“Do chão não passa”, reza o ditado popular. Mas numterremoto isso deixa de ser verdade. O chão não ape-nas se move como pode de uma hora para outra seabrir em descomunais fendas, engolindo tudo o quese encontra na superfície.

Creio não ser exagero comparar a desvalorizaçãodo dólar em 1971 com um grande terremoto econô-mico-financeiro. Todos estavam acostumados a operarcom o dólar, pois tinham confiança em sua estabili-dade. A moeda norte-americana atuava como um pon-to de referência seguro.

Os produtos transacionados no mercado internacio-nal (as commodities) costumavam ter seus preços cota-dos em dólares; os contratos de dívidas, em sua maio-ria, também. Essa era a estrela polar de empresários,governantes, agentes financeiros etc.

Se esse ponto de referência mostrava-se inseguro,não apenas o mercado internacional, mas também osmercados nacionais entravam em pânico. A manifes-tação mais clara e evidente foi a elevação de preçosde todos os produtos cotados em dólar, isto é, as mer-cadorias consumidas em todo o mundo como o pe-tróleo, o trigo, o minério de ferro, a carne e o... ouro.

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Essas matérias-primas e alimentos transacionadosno mercado internacional sofreram fortes majorações,e a inflação nos Estados Unidos, como já vimos noQuadro 12, entrou perigosamente na casa dos doisdígitos.

O preço do petróleo, que havia muitos anos se en-contrava estável, deu um pulo, alavancado tambémpela guerra entre Israel e Egito em 1973. Essa intensaelevação do preço do produto, também chamada de“crise do petróleo”, atingiu todos os países importa-dores, especialmente o Brasil, que se tornara “viciado”em seus derivados como a gasolina, o diesel e o óleocombustível.

A fase do assim denominado “milagre econômico”brasileiro (1968-1973), quando nossa economia cresceuem média acima dos 10% ao ano, coincidiu com umperíodo no qual os preços do petróleo e o de outrasmatérias-primas eram relativamente baixos.

A indústria automobilística nadou de braçada. Com-bustível barato, ambiciosos investimentos públicos emrodovias e grandes avenidas nas principais cidadesdo país proporcionavam as bases para uma rápidaexpansão do setor.

Até mesmo a matriz energética brasileira começoua sofrer alterações: muitas indústrias utilizavam óleocombustível para gerar aquecimento no lugar de ener-gia elétrica, pois em muitos lugares a substituição eraeconomicamente compensadora.

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A situação brasileira tornou-se ainda mais compli-cada em 1979, quando o preço do petróleo sofreu outrabrusca elevação. A solução encontrada pelo governofoi intensificar o programa nacional do álcool comocombustível para os automóveis, e também abandonarou desativar projetos de termelétricas (energia elétricaproduzida por turbinas movidas a óleo combustível),substituindo-as por hidrelétricas.

O caso talvez mais interessante foi o do reservatóriode Sobradinho, situado no rio São Francisco, entre osEstados da Bahia e de Pernambuco, mais precisamenteentre as cidades de Petrolina e Juazeiro.

Essa barragem começou a ser construída antes dacrise do petróleo, com a finalidade de armazenar águae garantir o fornecimento durante todo o ano para ahidrelétrica de Paulo Afonso, situada a uns 400 kmrio abaixo.

Com a elevação do preço do petróleo, ao mesmotempo que se desativava uma termelétrica que deveriaser instalada para abastecer Recife, Sobradinho trans-formou-se de uma simples barragem numa usina hi-drelétrica dotada de várias turbinas geradoras.

A energia termelétrica havia se tornado muito carae os investimentos em usinas desse tipo haviam seinviabilizado.

Mas as conseqüências sobre a economia brasileiranão foram apenas a criação do programa nacional doálcool, que recebia fortes subsídios governamentais e,

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Page 122: Paulo Sandroni - Traduzindo o Economês

portanto, exercia pressões sobre o déficit público. Enem a transformação improvisada de uma simplesbarragem numa usina hidrelétrica.

O golpe mais contundente ocorreu em nossa balançacomercial. A elevação brusca do preço do petróleo qua-se dobrou nossas despesas com importações, pois aeconomia brasileira consumia fartamente seus deriva-dos. A produção nacional na época mal alcançava os20% do consumo interno (hoje supera os 70%).

O quadro abaixo mostra bem como a balança co-mercial se desequilibrou depois da chamada crise dopetróleo:

Quadro 13

Balança Comercial (em milhões de dólares)

Superávit Déficit

1973 7

1974 14.690

1975 13.540

1976 12.254

1977 96

1978 11.024

1979 12.839

1980 12.822

1981 1.202

1982 780

Total 2.085 17.169

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Resultado líquido dos dez anos: 17.169 – 2.085 =15.084.

Em síntese, tivemos um déficit comercial acumuladode mais de US$ 15 bilhões entre 1973 e 1982!

Esses saldos negativos na balança comercial foramos principais responsáveis pelo crescimento dos défi-cits em transações correntes nos primeiros anos dadécada de 70. A partir de 1978, os juros, que cresciammais rapidamente do que capim depois da chuva, ti-veram a honra de arcar com esta embaraçosa respon-sabilidade: em 1982 representavam cerca de 70% dodéficit em transações correntes!

Quadro 14

Serviços(Déficit) (juros)

Transações Correntes(Déficit)

1973 11.722 11.514 11.688

1974 12.432 11.652 17.122

1975 13.162 11.498 16.700

1976 13.763 11.809 16.017

1977 14.134 12.103 14.037

1978 16.037 12.696 16.690

1979 17.920 14.185 10.741

1980 10.152 16.311 12.807

1981 13.135 19.161 11.734

1982 17.082 11.353 16.310

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Estes números mostram que, impulsionado pelos ju-ros, o déficit nos serviços cresceu dez vezes nesse pe-ríodo. O déficit em transações correntes subiu de 1,7bilhão para 16,3 bilhões, apesar de já termos obtidosuperávits comerciais em 1981 e 1982. Acabávamos denos meter numa bela crise: apesar dos superávits nabalança comercial, o déficit nos serviços era tão grandeque o rombo nas transações correntes tornava-se quaseimpossível de ser coberto. Mas antes de conhecermoso desfecho dessa crise, convém examinar por que elase armou.

2. As Soluções Imediatistas: o Esporte Nacional

Coloquemos o leitor diante de um dilema: o que épreferível, uma morte suave agora ou uma violentadentro de doze meses? A maioria das pessoas con-sultadas prefere a segunda alternativa e, provavelmen-te, o leitor terá feito o mesmo.

Qual é o raciocínio de quem faz essa escolha?

“Tanto faz a forma de morrer, desde que eu tenhamais um ano de vida. Inclusive durante este ano desobrevida poderei arranjar um jeito de conseguir maisuma prorrogação e, quem sabe, no fim das contas con-seguirei transformar essa inapelável sentença numperdão ou numa decisão jurídica menos drástica! Afi-nal a Justiça é cega, mas pode fazer um transplantede retina...”.

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Diante de uma situação difícil, nossos governantestambém tendem a protelar ou empurrar com a barrigaalgo que exija uma decisão desgastante do ponto devista político.

O raciocínio é o mesmo do condenado à morte: ga-nhar tempo para ver se é possível uma saída menostraumática. O problema é que nesse caso a protelaçãoe a demora em tomar decisões amargas podem agravarinsuportavelmente a situação.

E foi o que nos aconteceu depois da crise do petróleo.

Já vimos que a brusca elevação dos preços do pro-duto a partir de 1973 não ocorreu como um raio emcéu sereno. Foi precedida pela desvalorização do dólara partir de 1971 e pela crise financeira correspondente.Os preços de todas as commodities se elevaram, poiseram cotadas numa moeda que se desvalorizou, o dólar.

Nossa economia estava “viciada” no consumo e,portanto, na importação de petróleo: nos anos 60 seupreço se encontrava em níveis baixos e estáveis. Quan-do estes se elevaram bruscamente, no final de 1973,provocaram um grande déficit na nossa balança co-mercial, pois o volume importado se manteve. A al-ternativa seria diminuir o volume das importaçõespara reduzir, ou mesmo evitar, o déficit no comércio.

Mas isso significaria quebrar uma das pernas docrescimento econômico, já que o petróleo e seus deri-vados encontravam-se na base de todo o sistema pro-

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dutivo, sobretudo no setor automotivo, que era umaespécie de puxador do desenvolvimento industrialbrasileiro.

Havia também uma questão política: o governo dogeneral Emílio Garrastazu Médici terminara e outrogeneral, Ernesto Geisel, ocupava o Alvorada. As am-bições de desenvolvimento do novo presidente eramaté maiores do que as de seu antecessor.

Não seria razoável que logo no início desse governohouvesse uma forte pisada no freio do crescimentoeconômico.

Uma política econômica recessiva, mas necessáriapara absorver a crise externa, que desestimulasse aatividade econômica interna elevando as taxas de ju-ros, desvalorizando o câmbio e desencorajando os em-presários a continuar investindo nos mesmos níveisanteriores, seria politicamente inviável.

É necessário lembrar que para importar menos pe-tróleo o governo não poderia estabelecer volumes má-ximos de compras no exterior. Ou seja, não poderiaestabelecer metas quantitativas muito restritivas, poisos países clientes de nossos produtos poderiam fazero mesmo, prejudicando nossas exportações.

O déficit poderia permanecer, pois a redução dasdespesas com importações seria acompanhada da que-da das receitas com as exportações. Seria trocar, como

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se diz, seis por meia dúzia, ou no caso três por umatrinca.

Se o Brasil continuasse importando os mesmos vo-lumes de petróleo — como de fato aconteceu — e evi-tando a desaceleração do crescimento, não poderia im-pedir que fôssemos atingidos por uma onda inflacio-nária vinda do exterior.

Mesmo que a taxa de câmbio permanecesse a mes-ma, como o preço em dólares da maioria das impor-tações havia aumentado seria inevitável que o preçodos combustíveis e de outros derivados se elevasseno mercado interno.

A conseqüência imediata foi o salto da inflação deum patamar de 15% em 1973 para 35% no ano se-guinte, e uma queda no ritmo de crescimento de im-pressionantes 14% na primeira data para ainda con-sideráveis 9,0% em 1974.

A partir de 1974, no entanto, as taxas de crescimentoeconômico, que haviam sido superiores a 10% nos seisanos anteriores, foram caindo na mesma medida emque a inflação ia aumentando.

Mas o setor externo sofreu um verdadeiro estran-gulamento, porque os déficits comerciais somados aodéficit dos serviços — em que pontificavam as des-pesas com juros — iam exigindo somas crescentes deempréstimos e financiamentos (e também de investi-mentos diretos) para serem compensados.

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No início de 1974 nossa dívida externa bruta equi-valia a uns US$ 12 bilhões e nossas reservas a unsUS$ 6 bilhões. Portanto nossa dívida líquida era exa-tamente igual à diferença (12 – 6 = 6), o que repre-sentava uma situação razoavelmente confortável.

Com os sucessivos déficits em transações correntese a necessidade de cobri-los com empréstimos e finan-ciamentos e/ou capitais de curto prazo, o que acon-teceu foi o crescimento da dívida externa bruta e aredução das reservas.

O crescimento da dívida externa provocava um au-mento da conta de juros a serem pagos e, portanto, odéficit na conta de serviços ia crescendo: em 1973 adívida externa gerou um pagamento líquido de jurosde US$ 514 milhões; dez anos depois esta despesa ha-via aumentado para mais de US$ 11 bilhões, como jáfoi registrado no Quadro 14.

Na feliz imagem de um economista, o rabo em vezde equilibrar o cachorro tornara-se tão grande e pesadoque o impedia até de andar. Depois de um certo mo-mento o endividamento era feito apenas para cobriro déficit causado pelos juros da dívida já existente,fechando um círculo infernal.

A dívida externa bruta alcançou a considerávelsoma de US$ 70 bilhões em 1982. Como as reservashaviam se tornado negativas em cerca de US$ 4 bilhões,o Brasil devia efetivamente quase US$ 75 bilhões.

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3. O Estouro do México em 1982

Dizem os homens da roça que, se o joão-de-barroconstruir sua casa com a entrada virada para o ladode onde chegam os ventos, é sinal de que vai haverestiagem. A “explicação” é que os ventos trazem aschuvas e, se o laborioso pássaro constrói a entradanessa direção, é porque não irá se molhar, e portantochoverá pouco. Se a entrada estiver voltada para ooutro lado, no entanto, as águas serão generosas. Se,além desse indicador, as formigas construírem seusformigueiros em lugares muito altos é porque haveráinundações.

Não me perguntem como esses pássaros e insetos“sabem” o que vai acontecer, mas os agricultores quedependem das chuvas para suas colheitas conseguemacertar algumas previsões baseando-se nesses sinais.

As economias têm também seu joão-de-barro e suasformigas. Bastaria examinar as contas mexicanas oubrasileiras no início de 1982 para verificar que seriadifícil terminar o ano sem uma crise cambial.

É claro que alguém poderia alegar que estaríamosapelando para a “fácil sabedoria ex-post”. Isto é, depoisque a coisa acontece, todo mundo “sabia” que iriaacontecer; e que estava na cara que a casa iria desabaretc...

É verdade que na maioria dos casos essas “previ-sões” são feitas depois que as coisas aconteceram,

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como as de mãe Dinah, por exemplo. Mas em algunscasos os fundamentos que sustentam uma economiaestão tão comprometidos que as previsões do que vaiacontecer tornam-se extremamente fáceis.

E, talvez por ironia do destino, doze anos depois,em 1994, os fundamentos da economia mexicana co-meçaram a se enfraquecer outra vez, e o México sofreuoutra também previsível e violenta crise cambial.

No caso brasileiro, essa segunda dose ocorreu noinício de 1999, como já assinalamos em capítulos an-teriores. Como em 1982, a crise que se avizinhava foicantada em prosa e verso por muitos analistas bemantes de acontecer.

Em 1982 o Brasil tinha duas “certezas” desde o iníciodo ano: necessitaria pagar cerca de US$ 11 bilhões dejuros, pois eram juros sobre uma dívida cujo montanteera conhecido; e deveria fazer amortizações de cercade US$ 7 bilhões.

Portanto, somente esses dois itens demandariamUS$ 18 bilhões. Tornava-se indispensável a obtençãode um megassuperávit comercial, e em março essameta já havia se mostrado inviável. Os números dosempréstimos, dos financiamentos e dos investimentosdiretos eram raquíticos. Aqueles correspondentes aoscapitais de curto prazo mostravam um sintoma alar-mante: as saídas eram superiores às entradas.

Somando outras despesas da conta de serviços, osUS$ 18 bilhões subiam para cerca de US$ 23 bilhões.

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Mas foram conseguidos somente US$ 12,5 bilhões deempréstimos e financiamentos, e US$ 2,5 bilhões deinvestimentos diretos, perfazendo um total de apro-ximadamente US$ 15 bilhões, insuficientes para cobriro déficit.

O rombo final alcançou US$ 8 bilhões, e as reservasforam mobilizadas. Como só dispúnhamos de cercade US$ 4 bilhões (3 em divisas e 1 em ouro monetário),entregamos esses valores aos credores — inclusive oouro físico em lingotes —, e os restantes US$ 4 bilhõesresultaram de operações compensatórias com os ban-cos credores, tendo o FMI, que gentilmente nos em-prestou US$ 300 milhões, como avalista.

As medidas impostas pelo Fundo Monetário Inter-nacional foram as tradicionais nesses casos: a desva-lorização cambial e a tentativa desesperada de obten-ção de um megassuperávit comercial. Como esse ob-jetivo não poderia ser alcançado apenas com a fortedesvalorização do câmbio, tornou-se indispensáveluma alavancada na taxa de juros, um corte profundonos salários e um crescimento da tributação, que agra-vou a fase recessiva que o país já vinha atravessando.

O ano de 1983 foi um dos piores que a economiabrasileira já viveu. A terapia recessiva foi tão forteque o saldo da balança comercial bateu recordes noano seguinte — 1984 — pelo efeito combinado da que-da drástica das importações e o aumento moderadodas exportações.

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O superávit alcançou mais de US$ 13 bilhões, e astransações correntes, que sempre apresentavam défi-cit, pela primeira vez em mais de vinte anos registra-ram um pequeno superávit de cerca de US$ 44 milhões.

Apesar desse “êxito” na balança comercial, a situa-ção financeira piorou bastante a partir de 1982, poisos credores, além de não aportarem dinheiro novo,recusavam-se também a realizar a rolagem integral dadívida que ia vencendo a cada ano.

O leitor deve estar lembrado do que acontece comum devedor quando tem dificuldades em pagar suadívida e solicita ao credor uma prorrogação dos pra-zos. Nos casos em que este último aceita fazer a “ro-lagem” da dívida, impõe ao devedor condições cadavez mais desvantajosas, agravando o problema aindamais.

Como exemplo citaremos apenas duas dessas des-vantagens: os prazos de pagamento foram ficandomais curtos e os juros contratados, mais elevados. Defixos, passaram a ser flutuantes. Ou melhor, antes asdívidas eram contratadas e os juros a serem pagoseram conhecidos de antemão pelo devedor.

Com a adoção dos juros flutuantes, o montante aser pago só era conhecido no momento do vencimento.Pagava-se de acordo com a taxa de juros vigente, enão com a do momento da contratação da dívida.

Meu jovem vizinho poderia argumentar que issoseria favorável se as taxas de juros estivessem caindo.

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E estaria certo. Mas essa alteração nos contratos foifeita exatamente porque os juros eram ascendentes,como pode ser visto no quadro abaixo:

Como não poderia deixar de ser, os estragos na contade serviços provocados pelo pagamento dos juros fo-ram se tornando cada vez maiores.

É o passarinho pisando no visgo da jaca. E quandoos credores percebem que algo parecido está aconte-cendo com o devedor, como já vimos, as condiçõespara emprestar mais dinheiro ou fazer a simples ro-lagem da dívida vão se tornando cada vez mais duras.No limite, os credores podem se recusar a continuaremprestando.

Nesse caso, o devedor tem três caminhos: a) esperarque os credores avisem ao mercado que não estão sen-

Quadro 15

Taxa de Juros Nominal

1976 16,8

1977 16,8

1978 19,1

1979 12,7

1980 15,2

1981 18,8

1982 10,8

Fonte: Fundo Monetário Internacional.

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do pagos; b) declarar-se incapacitado de fazer os pa-gamentos devidos; c) partir para uma moratória.

Qualquer uma das modalidades provoca grande in-quietação no mercado financeiro, pois a quebra de umdos elos da corrente pode provocar o enfraquecimentoou a ruptura de todo o sistema. O problema é saberem que mercados essa corrente está conectada, parase avaliar o impacto que a crise financeira terá.

É o que acontece quando vemos um grande desastrenuma estrada: primeiro os motoristas diminuem amarcha para ver o que aconteceu, mas depois, temen-do a mesma sorte, diminuem durante algum tempoa velocidade média com a qual costumam viajar.

Colocando as barbas de molho, os credores resol-veram reduzir seus empréstimos e em alguns casosinterrompê-los totalmente até que a poeira assentasse.

Como já vimos, em setembro de 1982 o México de-clarou-se impossibilitado de fazer os pagamentos desua dívida externa, provocando uma imediata retraçãodos credores. Países como o Brasil, que dependiamdesses recursos para fechar suas contas, ficaram chu-pando o dedo. Ou melhor, “quebraram”.

Foi o chamado “setembro negro”, quando todos oscredores, alarmados com o que acabava de acontecercom o México, retiraram seu time de campo e já nãomais emprestavam dinheiro para países altamente en-dividados como o Brasil.

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A declaração da quebra do setor externo brasileiroesperou a passagem das eleições de novembro de 1982(realizavam-se as primeiras eleições diretas para go-vernador depois de cerca de quinze anos).

O surpreendente não foi o governo militar ter sidoderrotado na maioria dos Estados importantes: o inu-sitado foi ter ganho em alguns deles. Com a inflaçãose acelerando e corroendo os salários, com o setor ex-terno em frangalhos, e a oposição ascendente, as vi-tórias situacionistas no Rio Grande do Sul e em muitosEstados do Nordeste foram verdadeiras façanhas quemuitos até hoje creditam a práticas situacionistas pou-co recomendáveis.

A situação externa brasileira se agravou durante osanos 80, assim como a de países como a Argentina eo próprio México. Especialmente no que se refere àinflação. De certa forma, esta última foi o instrumentoutilizado para “socializar” as perdas provocadaspela crise cambial e pelos constrangimentos do ajus-te externo.

As dívidas externas desses países cresciam sem ne-nhuma perspectiva de que poderiam ser pagas deacordo com os contratos originais. Mesmo que os paí-ses endividados realizassem esforços sobre-humanospara ajustar suas economias às necessidades dos cre-dores, o desequilíbrio era muito grande.

Para que se tenha uma idéia do esforço de ajusterealizado pelo Brasil a partir do início dos anos 80,

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basta dizer o seguinte: logo depois da crise de 1982,o governo brasileiro desvalorizou o câmbio em 30%para estimular as exportações e desestimular as im-portações. Esta medida foi acompanhada pela elevaçãodas taxas de juros e por uma redução dos saláriosreais. A combinação dessas medidas provocou umasenhora recessão no país, acompanhada de uma in-flação de 200% ao ano!

As importações caíram drasticamente: se em 1980haviam atingido US$ 22,5 bilhões, em 1985 caíram paraUS$ 13,1 bilhões. Os preços internos dessas importa-ções aumentaram, o que contribuiu para alavancar ainflação.

Mas ao mesmo tempo era necessário aumentar asexportações. A taxa de câmbio estimulou os exporta-dores, mas não foi a única responsável pela obtençãode um megassuperávit em 1984: US$ 13 bilhões. Ataxa de juros de um lado e o desemprego do outro,jogando os salários para baixo, se encarregaram decompletar o serviço, pois a retração do consumo in-terno impeliu os empresários a vender no exterioraquilo que não conseguiam colocar dentro das fron-teiras nacionais.

O encolhimento do consumo interno pode ser ava-liado pelos seguintes indicadores: em média, o brasi-leiro passou entre outras restrições a comer menos car-ne bovina, a fumar menos e a se vestir pior.

Em 1980 o consumo per capita de carne era equiva-lente a 16,3 kg anuais; em 1984 este consumo havia

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caído para menos de 12 kg; ao mesmo tempo, as ex-portações do produto aumentaram no período em qua-se US$ 300 milhões.

Como é fácil perceber, o Brasil encontrava-se emuma enrascada. Penalizava internamente sua popula-ção, cujo nível de vida retrocedia, e não recuperavaseu crédito externo. O endividamento externo estavapouco a pouco nos asfixiando.

4. A Crise da Dívida: Primeiro Tempo

Depois que, em 1982, o México suspendeu o paga-mento do serviço de sua dívida externa junto aos ban-cos credores, iniciou-se o que veio a ser conhecidocomo a crise da dívida do Terceiro Mundo.

Depois da declaração mexicana, os bancos credo-res entraram em pânico. Temiam que moratórias emsérie provocassem o colapso do sistema financeirointernacional.

Sensibilizados, os governos dos maiores países cre-dores fizeram o possível para evitar uma catástrofefinanceira, sobretudo com o incentivo à concessão debridge loans, expressão em inglês que significa “em-préstimo-ponte”. É um empréstimo de curto prazopara que um país em dificuldades faça uma “traves-sia”, geralmente no final do ano, para não declarar-seinadimplente, isto é, para não estragar o Natal dosbem-nascidos credores anunciando um calote.

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A intenção era evitar que um dos elos da correntese rompesse, pondo em perigo a estabilidade de todoo sistema.

Ou seja, o objetivo primordial dos “empréstimos-ponte” era assegurar que os países devedores perma-necessem com seus pagamentos em dia. Para todosos efeitos, a situação encontrava-se sob controle, nãohavendo nenhum motivo para inquietação. Se pergun-tados, os banqueiros poderiam dizer sem pestanejar:“Está tudo sob controle”. Mas não era bem assim.

Essa “solução” do problema baseava-se numa falsacrença: a de que os países devedores estavam passandopor uma crise temporária de falta de dólares. E quetal escassez devia-se a uma combinação de fatores ad-versos mas passageiros: a recessão dos países indus-trializados e uma queda do preço dos produtos queos países endividados exportavam.

A recessão nos países credores reduzia as quanti-dades exportadas pelos devedores, e a queda dos res-pectivos preços resultava numa receita de exportaçõesmenor.

Esse diagnóstico levou a uma escolha óbvia: umavez que o desequilíbrio externo seria revertido em bre-ve em função do término da recessão nos países cre-dores, o importante era manter sem interrupção osfluxos financeiros entre estes e os devedores. Daí ainsistência nos empréstimos-ponte.

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Na prática, isso significava que os países devedoresdeveriam apertar o cinto e os bancos dos países cre-dores abrir um pouco seus cofres.

O Tesouro dos Estados Unidos e a Reserva Federal(que é o Banco Central daquele país) seguiram essapolítica em comum acordo com o FMI.

Os países devedores continuariam executando po-líticas de austeridade, de forma a reduzir suas neces-sidades de recursos externos e prosseguir pagando emdia os juros aos bancos comerciais.

O FMI, o Banco Mundial e os bancos regionais dedesenvolvimento (como o BID — Banco Interamerica-no de Desenvolvimento) deveriam prover emprésti-mos para o equilíbrio dos balanços de pagamento, eos governos de países credores ofereceriam recursosadicionais, inclusive bridge loans, enquanto se estudavaum reescalonamento da própria dívida externa.

Este último ponto era importante, pois os prazosde pagamento das dívidas dos países do Terceiro Mun-do eram muito curtos, e seria muito difícil pagá-lasem dia.

Ironicamente, com a recuperação da economia nor-te-americana e da maior parte dos países industriali-zados, alguns países devedores foram capazes de in-crementar suas exportações e dessa forma transferir,a partir de 1984, aos credores, uma quantidade de re-

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cursos até maior do que antes, levando à ilusão deque a crise da dívida havia terminado.

Em meados de 1985, no entanto, era reconhecidoabertamente que embora a estratégia adotada tivessesalvo os bancos credores, os países devedores haviamaprofundado suas crises.

Com o pessimismo se generalizando e a dívida ex-terna dos países em desenvolvimento se agravando,os bancos ficaram bastante relutantes em conceder no-vos empréstimos, tornando a solução do problema ain-da mais distante.

Em outubro de 1985, o então secretário do Tesouronorte-americano, James A. Baker III, apresentou umaproposta destinada a equacionar o problema da dívidaexterna dos países em desenvolvimento, imediatamen-te batizada de Plano Baker.

Ela era dirigida sobretudo aos países latino-ameri-canos, como o Brasil, a Argentina e o México, masincluía também países de outros continentes, como aNigéria, as Filipinas e a Iugoslávia.

A proposta continha três medidas articuladas: a)adotar políticas para promover o crescimento; b) rea-lizar ajustes no Balanço de Pagamentos (leia-se reduziros déficits em transações correntes mediante superá-vits comerciais); c) reduzir a inflação.

Eram medidas que colidiam com o objetivo de ummegassuperávit na balança comercial: em outras pa-

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lavras, recomendava-se que se chupasse cana, mas seexigia que se assoviasse ao mesmo tempo...

Embora o Plano Baker colocasse grande ênfase nocrescimento econômico como via para a solução doproblema da dívida, não proporcionava os meios ne-cessários para alcançá-lo.

Ao contrário, à medida que o tempo passava, a si-tuação econômica dos países devedores se deteriorava:a inflação aumentou, a renda per capita declinou ouestagnou e os investimentos minguaram.

Diante desse quadro, os bancos relutavam em em-prestar dinheiro novo aos países do Terceiro Mundo.Por sua vez o FMI, em vez de representar um esteio,acabava transformando-se em acelerador da crise: co-brava dos devedores as dívidas contraídas nos anosanteriores com a instituição e que estes não tinhamcondições de pagar, mesmo impondo um regime dra-coniano de penúria a seus habitantes.

Outros acontecimentos ameaçavam também os fun-damentos do Plano Baker. Em fevereiro de 1987, de-pois do desarranjo provocado pelo Plano Cruzado, oBrasil declarou a suspensão unilateral dos pagamentosde sua dívida. Ou, em linguagem mais clara, declaroua moratória de sua dívida externa.

Mais um passo foi dado nesse sentido quando oMéxico e o Morgan Guaranty Trust Co., uma grandecorporação financeira norte-americana, concordaram

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em leiloar parte da dívida mexicana com um desconto.Ou seja, credores e devedores reconheciam que as dí-vidas deveriam ser recontratadas por meio de meca-nismos do próprio mercado.

O Tesouro norte-americano saudou a idéia, decre-tando assim a falência do Plano Baker.

5. A Crise da Dívida: Segundo Tempo

Diante do fracasso do Plano Baker, os credores seconvenceram de que não seria possível ou viável re-ceber a dívida de acordo com os contratos assinadospelos países devedores. As condições eram leoninas,para não dizer escorchantes.

Em 1989, o novo secretário do Tesouro dos EstadosUnidos, Nicholas Brady, com uma simples frase apre-sentou o ponto central de uma nova estratégia: “...ocaminho para a valorização dos créditos e o retornoao mercado de muitos países devedores passa por umaredução da dívida” (grifo meu).

Era finalmente o reconhecimento de que o cumpri-mento dos contratos exigiria dos países devedores po-líticas econômicas tão duras que a própria governa-bilidade corria grandes riscos. E nada garantia que oproblema da dívida seria solucionado.

É interessante lembrar que em 1985 Fidel Castro ini-ciara uma campanha pelo não pagamento da dívida,

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cuja repercussão, embora limitada, poderia ser o es-topim de uma rebelião de devedores. Ao mesmo tem-po Alan García, na época presidente do Peru, dianteda absoluta falta de recursos para pagar seus compro-missos externos, vinculou as parcelas e os juros dadívida a uma certa porcentagem das exportações pe-ruanas, rompendo na prática com o que estava escritonos contratos.

Não existe coisa mais temível para a estabilidadedo sistema financeiro internacional do que uma açãocoordenada de devedores renegando uma dívida.Mesmo que não passem de bravatas, declarações comesse teor são suficientes para perturbar as coisas du-rante um bom tempo.

Mas, com ou sem bravatas, o fato concreto é queos países endividados não podiam pagar suas dívidas.

Para um sistema financeiro que a cada dia se glo-balizava exigindo fluidez de recursos em todos os seusporos, a continuidade dessa situação era intolerável.

Não é, portanto, coincidência que a iniciativa tenhapartido de outro secretário do Tesouro do país maispoderoso do mundo e mais interessado na estabilidadedo mercado financeiro internacional.

A “adesão” do FMI, do Banco Mundial e dos japo-neses com suas imensas reservas financeiras, emboraprevisível e lógica, deu à proposta de Nicholas Bradymaior consistência e viabilidade.

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As diretrizes do Plano Brady, embora insistindo empolíticas orientadas para o crescimento econômico, to-cavam em dois pontos cruciais: alongavam os prazosde pagamento das dívidas e propunham uma discretabaixa nas taxas de juros.

Essas medidas permitiriam que pelo menos 39 paí-ses devedores reduzissem seu débito bancário em 20%em três anos se aderissem ao plano. Embora tal redu-ção não fosse muito significativa, abriu o caminho paraque banqueiros e devedores redefinissem os termosde suas dívidas diretamente na mesa de negociações.

Essa flexibilidade permitiu que ocorressem reduçõesadicionais significativas nas taxas de juros e uma am-pliação considerável dos prazos de pagamento.

Para que se tenha uma idéia da importância dessenovo tratamento da dívida externa, basta dizer que oMéxico (em 1989), a Argentina (em 1991) e o Brasil(em 1994) somente conseguiram lançar seus planos deestabilização — Plano Azteca, Plano Cavallo e PlanoReal — depois que as respectivas renegociações dasdívidas fossem coroadas de êxito.

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CAPÍTULO 6

O PLANO REAL E AÂNCORA CAMBIAL

1. A Crise da Dívida: a Prorrogação e a Vitória nosPênaltis. Ou o Plano Brady e o Lançamento do PlanoReal

Se uma pessoa deve para um fornecedor e no finaldo mês não tem como pagar a dívida — nem os jurose muito menos o principal —, pode dar uma de cara-de-pau: no dia do vencimento, além de pedir umaprorrogação da dívida já existente, solicitará um em-préstimo adicional para fazer frente “a novas dificul-dades que foram surgindo”.

O grande sambista Bezerra da Silva tem uma letraque é mais ou menos assim: fulano emprestou dinheiroa sicrano e, quando foi receber, o devedor havia fale-cido. A solução foi cobrar dos familiares do morto.Mas estes disseram que não tinham nada com isso eque era melhor ele ir cobrar de quem realmente devia.Sem outra saída, o credor se dirigiu ao caixão, e jura

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de pés juntos ter ouvido o defunto mover os lábiospara pedir mais algum...

Diante de semelhante situação, o credor pode se re-cusar a continuar emprestando, e sujar o nome dodevedor na praça. Qualquer um que tiver negócios afazer com este último e pedir referências receberá docredor informações desabonadoras. Se, no entanto,o devedor conseguir acertar suas contas, “limpará”seu nome e poderá voltar a negociar com outrosfornecedores.

A adesão do Brasil ao Plano Brady foi mais ou me-nos essa “limpada de barra” em relação ao mercadofinanceiro internacional. Cerca de US$ 50 bilhões desua dívida externa foram renegociados: seus prazosde vencimento foram alongados em até 30 anos e astaxas de juros, reduzidas.

Somente depois desse acerto com os bancos credoresnos moldes do Plano Brady é que os fluxos de capitaisfinanceiros e investimentos estrangeiros começaram avoltar para o Brasil em grande escala.

De fato, a partir de 1992, quando essas negociaçõescomeçaram a avançar, as entradas maciças de emprés-timos e financiamentos, investimentos diretos e capi-tais de curto prazo permitiram ao governo brasileiroa formação de reservas, como mostra o Quadro 16.

Podemos observar que, se em 1990 entraram apenasUS$ 3,9 bilhões por essas três janelas da conta de ca-

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pital, cinco anos depois, em 1995, essa cifra alcançavaUS$ 34,0 bilhões.

O déficit em transações correntes em 1994 atingiuapenas US$ 1,6 bilhão que, somado a amortizações deaproximadamente US$ 8,0 bilhões, resultou em US$9,6 bilhões a serem cobertos pelos demais itens da con-ta de capital. Como naquele ano, via investimentosdiretos, empréstimos e financiamento e capitais de cur-to prazo, entraram cerca de US$ 23,4 bilhões, o resul-tado final foi um superávit de aproximadamente US$14 bilhões.

Esse saldo positivo obtido no decorrer de 1994 ele-vou as reservas para mais de US$ 35 bilhões, o quepermitiu lançar a âncora cambial, a peça mais impor-tante do Plano Real.

Ou melhor, a segurança de que os preços não se-guiriam em louca disparada residia no fato de que ogoverno possuía dólares suficientes para agüentaruma taxa de câmbio estável, e esta, por sua vez, erauma garantia de preços estáveis das importações.

Quadro 16 — Em bilhões de US$

1990 1991 1992 1993 1994 1995

Invest. Direto 0,2 0,5 13,1 16,2 18,2 14,5

Empres. x Finan. 5,0 6,0 19,3 11,5 12,5 16,3

Capit. Curto Prazo –1,3 –4,1 11,7 13,2 12,7 13,2

Total 3,9 2,4 14,1 20,9 23,4 24,0

Reservas 10,0 9,4 23,8 32,2 38,8 51,8

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Se algum produto faltasse no mercado interno, asreservas permitiriam a imediata ampliação das impor-tações, evitando choques de preços por insuficiênciade oferta interna.

Essa âncora cambial é fundamental quando um paísrealiza um plano para acabar com uma inflação galo-pante como a que vivemos até 1994. É como se alguémviesse caindo no meio de um arvoredo e conseguisseagarrar-se a um galho suficientemente grosso paraagüentar o seu peso. Esse “galho” eram as reservascambiais que davam estabilidade à taxa de câmbio.

É por isso que para muitos a base do Plano Realfoi a “âncora cambial”, ou seja, a existência de reservassuficientes para manter uma taxa de câmbio estável.

Já vimos anteriormente que uma enxurrada de dó-lares só estava esperando a conclusão dos acordos doPlano Brady para cruzar as fronteiras brasileiras. Coma elevação das taxas de juros depois da crise do Méxicono final de 1994 e a convicção de que o Brasil nãoteria o mesmo destino, essa enxurrada se transformounuma avalanche: o capital especulativo invadiu o Bra-sil em 1995, inflou as reservas e esse excesso de ofertade moeda norte-americana valorizou ainda mais o real,tornando o dólar mais “barato”.

Entraram em 1995 mais de US$ 13 bilhões de capitalde curto prazo. E essa era a debilidade da âncora:apoiava-se num capital gelatinoso e movediço que po-deria sair com a mesma velocidade com que entrara.

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Ou, voltando ao nosso exemplo das colunas quesustentam o edifício da estabilidade de preços, é comose as pessoas que garantissem que não sairiam reti-rando pedaços das colunas não merecessem confiança:se achassem vantajoso, fariam-no sem nenhum pro-blema de consciência.

2. A Taxa de Câmbio e a Âncora dos Preços

Talvez ninguém tenha visto até hoje um navio atra-cando e seu capitão ordenando que fossem lançadasao mar tantas toneladas de taxas de câmbio para se-gurar a embarcação no porto.

E muito menos um engenheiro calculando as vigasde sustentação de um edifício e concluindo que elasdeveriam ter uma circunferência de tantas taxas decâmbio.

Quando os economistas falam em âncoras ou vigasde sustentação, estão tomando emprestado conceitosde outras áreas do conhecimento para designar a mes-ma coisa: a estabilidade de preços.

Ou melhor, de que maneira a taxa de câmbio podecontribuir para que os preços permaneçam estáveisno interior de uma economia?

A primeira condição é que a própria taxa de câmbiose mantenha estável. Se ela estiver em equilíbrio e per-manecer assim durante algum tempo, todos os pro-

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dutos que um país importar terão também preços es-táveis.

Mas duas coisas podem perturbar essa situaçãoideal:

a) o preço em dólar do produto pode variar, comovem acontecendo desde 1997 com o petróleo. Se o bar-ril de US$ 15,00 passar a custar US$ 30,00, mesmoque a taxa de câmbio permaneça estável, como cadabarril custa mais dólares o preço dos derivados seráinevitavelmente elevado no mercado interno, causan-do uma pressão inflacionária;

b) os preços externos podem permanecer constantes,mas o país pode sofrer uma inflação provocada poroutras causas que não a desvalorização do câmbio.Nesse caso, os custos dos produtores nacionais au-mentarão em reais. Se não houver uma desvalorizaçãocambial (mais reais para cada dólar) que compenseos aumentos de custos, os produtores perderão o in-teresse pelas exportações.

Se a taxa de câmbio não for alterada para acompa-nhar a inflação interna, as importações serão estimu-ladas, pois o dólar ficará “barato”, como já vimos an-teriormente. Foi o que nos aconteceu depois do lan-çamento do Plano Real, em 1994 e até 1998.

Além disso, a estabilidade cambial é importantetambém para os movimentos do capital financeiro.Com a chamada globalização, os mercados financeiros

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internacionais passaram a operar on-line 24 horas pordia. Quando é noite em Tóquio, seus operadores po-dem estar investindo na Bolsa de São Paulo e vice-versa.

Isso significa que os investimentos financeiros semovimentam com grande agilidade e em grandes vo-lumes a todo momento. Mesmo porque com o extra-ordinário desenvolvimento das comunicações, oscustos dessas operações a longa distância se redu-ziram drasticamente.

Como qualquer investimento, o de origem financei-ra também gosta de segurança e estabilidade cambial.A razão é simples: em grande parte dos países a moedaestrangeira necessita transformar-se em moeda nacio-nal para ser aplicada internamente e obter a desejadarentabilidade.

Quem utiliza moeda forte e aplica em países de moe-da fraca e duvidosa realiza um salto perigoso: trocaseu dinheiro “bom” por outro que pode se desvalo-rizar. Por exemplo, se alguém investe US$ 100,00 noBrasil, terá de trocar esses dólares por reais. Se a taxade câmbio for, digamos, 1 dólar = 1 real, ele obteráR$ 100,00.

Suponhamos que ele aplique esses R$ 100,00 no mer-cado financeiro e consiga 10% de ganho em seis meses.Obterá, no final das contas, R$ 110,00. Se a taxa decâmbio não se alterar, trocará esses R$ 110,00 por US$110,00 e terá abocanhado 10% de lucro em moeda forte

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(sua origem) em seis meses, o que pode ser conside-rado bem satisfatório.

Mas — e agora vamos jogar um pouco de areia navida desse investidor — suponhamos que minutos an-tes da troca dos reais por dólares o governo brasileirodecida desvalorizar sua moeda em exatos 10%. Nessecaso, ao realizar a troca, o investidor terminará coma mesma soma inicial: os US$ 100,00; pois, embora oinvestidor tenha ganho 10% em reais, ao comprar osdólares 10% mais caros essa vantagem foi neutraliza-da. Uma mão lavou a outra.

É como se esses dólares tivessem ficado paradosdurante seis meses. E no mercado financeiro isso re-presenta uma perda, pois não ganhar é uma formade perder. É o mesmo quando a Seleção Brasileira defutebol empata: é como se tivesse perdido...

Além disso, embora o dólar seja uma moeda con-fiável, também sofre uma leve corrosão, pois nos Es-tados Unidos existe uma pequena inflação.

Mas o investidor certamente perderia — e não seriauma simples sensação — se a desvalorização da moedanacional fosse superior aos 10%. Nesse caso ele sairiado Brasil com uma quantidade de dólares menor doque a inicial.

A desconfiança do investidor de que um governoestá prestes a desvalorizar a moeda na qual ele temsuas aplicações pode levá-lo, para não sofrer perdas,

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a trocá-la por dólares e sair rapidamente antes que taldesvalorização aconteça, isto é, antes que os dólaresestejam custando mais caro.

O grande problema é que essa desconfiança podese basear tanto em razões concretas e objetivas comoem imaginárias e subjetivas. E mesmo na ausência derazões concretas para uma debandada, a retirada rá-pida e maciça de aplicações financeiras em determi-nado país pode levá-lo a desvalorizar sua moeda.

É por essa razão que a mera discussão sobre umafutura desvalorização deixa o mercado tão inquieto. De-pendendo da importância da pessoa que levanta o as-sunto, pode causar uma fuga em massa dos investidores.

Ao contrário, mesmo que todos os porta-vozes dogoverno — tanto os mais como os menos eloqüentes— afirmem de pés juntos que o governo não irá des-valorizar a moeda, se os dois fundamentos que já exa-minamos, quais sejam, o déficit público (interno) e odéficit em transações correntes (externo) aumentaremsem controle, não haverá perdão: ninguém conseguiráevitar a fuga.

Cedo ou tarde o ataque especulativo virá e poderálevar o país a uma desvalorização cambial. Efetuá-la“aos poucos”, como se tentou em janeiro de 1999, émais difícil do que esvaziar uma bolha de sabão len-tamente. Ela quase sempre explode...

Mas trataremos dessa questão do ataque especula-tivo um pouco mais adiante.

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Antes é necessário esclarecer de que forma a entradade dólares para investimentos financeiros pode esti-mular a expansão da dívida interna.

3. As Iscas do Mercado Internacional

É da própria natureza do mercado financeiro inter-nacional globalizado a existência de grande liberdadede movimentação de investimentos de um país paraoutro, sejam esses investimentos produtivos, financei-ros ou especulativos.

Se um país depende muito da entrada de recursosexternos, deverá tanto incentivar a vinda como facilitara volta. Entradas e saídas azeitadas fazem parte dojogo.

Suponhamos que um sujeito convide um amigo parauma festa em sua casa dizendo que vai ter do bom edo melhor, que o convidado poderá chegar só e sairacompanhado, que rolarão música ao vivo, bebidasimportadas etc. Se o convidado tiver outras propostasmenos atraentes, ou mesmo encontrar-se desprogra-mado, esperando pintar alguma coisa, certamenteaceitará.

Mas suponhamos que no momento de sair da festa,um grupo de seguranças o impeça de fazê-lo, dizendoque antes ele (e a eventual acompanhante) têm de lavarpratos, arrumar a sala e dar um trato no carro dodono da casa etc. A reação de espanto e indignação

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será seguida certamente de um telefonema avisandoeventuais retardatários para que desistam, pois trata-se de uma roubada.

Com certeza, esse azarado cidadão jamais voltará aaceitar convites do mesmo anfitrião. Se algum dia ofizer, será porque as vantagens foram multiplicadas eas garantias, idem, e um amigo comum assegurar queas coisas agora vão acontecer conforme o figurino.

No mercado financeiro internacional acontece algosemelhante. Se o país anfitrião atrair investidores, edepois da entrada destes criar dificuldades para a res-pectiva saída, via de regra ficará “marcado” e classi-ficado como região insegura ou instável, pouco con-fiável. Ou, como teria dito um famoso general, chefedo governo francês, sobre o Brasil: “Não é um paíssério!”.

Mas quanto maiores as facilidades para a saída deinvestimentos financeiros, maior a insegurança do paísanfitrião em relação à solidez da âncora formada pelasreservas: elas podem minguar muito rapidamente e opaís perderá uma viga de sustentação da estabilidadede sua própria moeda.

De qualquer forma, existe uma regra no mercadofinanceiro estabelecendo mais ou menos o seguinte:quanto maior a necessidade desses investimentos,maiores serão os atrativos para a sua entrada e maioresas facilidades para a respectiva saída.

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O Brasil foi, e continua sendo, um dos países quemelhores condições de entrada e saída oferecem nomercado internacional entre os anfitriões. Isso em fun-ção da “ficha corrida” que inclui, entre outras coisas,como já vimos, um congelamento em 1986, uma mo-ratória mal executada em 1987, durante o governo Sar-ney, e um bloqueio-confisco das aplicações financeirasdurante o Plano Collor, em 1990.

Entre os atrativos, um dos mais importantes ofere-cidos ao capital financeiro é uma taxa de juros bemelevada. As coisas funcionam mais ou menos assim:os dólares que entram são transformados em reais, ecom estes os investidores compram títulos da dívidainterna brasileira, os chamados investimentos finan-ceiros em renda fixa, pois a remuneração é conhecidade antemão.

Esses investimentos poderão se dirigir também paraas Bolsas de Valores em aplicações de renda variável,pois a cotação de uma ação, depois de comprada, tantopode subir como baixar.

Se meu vizinho aparecesse em busca de seu gato,certamente perguntaria se, ao entregar tantos reais nasmãos dos investidores em troca de seus dólares, o go-verno não estaria causando pressões inflacionárias.

A resposta seria negativa, pois esse dinheiro sai dasmãos do governo, mas volta imediatamente ao seupoder mediante a venda de títulos de sua dívida in-terna. O investidor estrangeiro fez a troca com o ob-

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jetivo de ganhar juros, o que só acontece por meio dacompra de títulos da dívida pública.

Mas, na medida em que o governo retira esses reaisde circulação (ou enxuga a liquidez, segundo o eco-nomês) vendendo títulos e proporcionando aos credoresgenerosos juros, a dívida interna vai se expandindo.

Eis aí outra fonte de crescimento da dívida interna.Não são apenas os déficits decorrentes de gastos go-vernamentais com pessoal, consumo e investimentosque alimentam o endividamento interno, mas tambéma conversão dessa enxurrada de dólares que entracomo investimento financeiro de curto prazo.

Lembremos que é a necessidade de cobrir os dé-ficits em transações correntes do Balanço de Paga-mentos que obriga o governo a atrair esses investi-mentos oportunistas.

Como essa cobertura do déficit externo contribuipara aumentar a dívida interna, e esta, com seus juros,provoca um déficit público, um país pode acabar tendodéficits em ambos os setores. E alguém já dizia quebasta acariciar um círculo para que ele se torne umcírculo vicioso...

A “vantagem” é que o governo pode canalizaresses dólares comprados do investidor para as re-servas, fortalecendo-as.

Fazendo um pequeno resumo, podemos dizer quea dívida interna brasileira tem crescido impulsionada

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por duas fontes: o déficit público e as entradas deinvestimentos estrangeiros de curto prazo.

Portanto, uma parte das reservas é formada à custado crescimento da dívida interna. E, de fato, esta úl-tima inchou consideravelmente depois do lançamentodo Plano Real, como pode ser observado pelo seguintequadro:

Outro aspecto importante a ressaltar é que, se a dí-vida interna se expande, o mesmo tende a acontecercom a taxa de juros. E esta última, incidindo sobreum estoque em expansão de dívida, passa a provocardéficits crescentes nas contas do governo.

A conseqüência é um aumento adicional da dívida,utilizado para cobrir o déficit, e assim por diante. Éa cobra devorando o próprio rabo.

Quadro 17

Dívida Interna em bilhões de reais

ano valor

1994 80

1995 150

1996 270

1997 308

1998 390

1999 510

Fonte: Banco Central do Brasil.

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A taxa de juros elevada provoca geralmente umadesaceleração dos negócios: o portal da recessão. Ocrescimento econômico, objetivo de qualquer políticaeconômica, entra em rota de colisão com uma taxa dejuros elevada.

A viga de sustentação representada pelas contas pú-blicas não suporta nesse caso o peso do déficit e aeconomia sofre uma desaceleração.

Mas o interessante é que essa retração da economiapode ser acompanhada por pressões inflacionáriasconsideráveis. Ou melhor, o fato de que a economiase encontre deprimida e os consumidores fugindo doslojistas não é garantia para que os preços se mante-nham bem-comportados.

Existe uma fonte inflacionária que vem do exterior,seja mediante a elevação dos preços das importaçõesde bens e serviços cotados em dólar, seja pela desva-lorização do câmbio. Ou melhor, é necessário que exa-minemos uma vez mais a outra viga de sustentaçãoda estabilidade que é a taxa de câmbio.

4. A Taxa de Câmbio: a Alavanca de Transformação dosPreços Externos em Internos e Vice-versa

Há muito tempo que meu jovem vizinho não apa-recia em busca de seu gato. Vez por outra eu percebiaa imagem fugidia do animal se esgueirando quandome aproximava da varanda. Não sei o que ele encontra

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de tão excitante ali, pois tenho apenas algumas ino-centes plantas. Talvez sejam as lagartixas... Os gatossão exímios caçadores desses pequenos répteis.

Enfim, outro dia, ao chegar em casa na hora donoticiário, um canal de televisão estava transmitindonotícias de outra guerra... Dessa vez na Chechênia.

Os russos, depois de devastar a capital, Grozny, ha-viam tomado a cidade. Muitos civis e soldados tinhammorrido, mas as cenas mostravam um deles sentadonum sofá no meio de escombros, fumando e aparen-temente lendo um gibi.

Lembrei-me do meu vizinho: se chegasse naquelemomento e me perguntasse o porquê daquela guerra,outra vez eu passaria pelo mesmo embaraço.

As coisas ficariam até mais complicadas porque, emrelação à Iugoslávia, pelo menos eu tinha uma idéiade onde ficava. Quanto à Chechênia, a consulta a umatlas moderno seria indispensável...

Mas, para variar, depois das cenas de destruição, onoticiário tratava das questões econômicas. Mera coin-cidência? Talvez. O comentário versava sobre a ele-vação do custo de vida, puxado pelos transportes epelos remédios. O “bode explicatório” era outra veza desvalorização cambial.

Se a taxa de câmbio se mantiver estável, o preçodos produtos importados também permanecerá está-

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vel. Por exemplo, se importarmos arroz, o preço in-terno desse alimento será equivalente ao seu preçoem dólares convertidos em reais pela taxa de câmbiovigente.

Se esta última não apresentar alterações, o mesmoacontecerá com o preço interno do arroz, e com o custode vida, na exata proporção em que o preço do arrozo influencia.

O mesmo raciocínio vale para uma matéria-primacomo o petróleo, cujos derivados, como o óleo dieselou o óleo combustível e os lubrificantes, entram nacadeia de formação de preços internos, isto é, sãocustos de outros produtos.

Se o preço de um barril de petróleo equivale a US$20,00 no mercado internacional e a taxa de câmbio forR$ 1,50 por dólar, o preço do barril no mercado internobrasileiro será equivalente a 20 x 1,50 = R$ 30. Se ataxa de câmbio permanecer constante e o mesmo acon-tecer com o preço em dólares do barril de petróleo,os preços internos em reais permanecerão estáveis enão haverá pressão inflacionária provocada pelos au-mentos dos combustíveis ou dos fretes. O mesmo ra-ciocínio vale para os remédios cujas matérias-primassão importadas.

Os preços internos dos derivados só poderão au-mentar se a taxa de câmbio sofrer uma alteração e/ouo preço em dólares do barril de petróleo se elevar nomercado internacional.

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Taxa de câmbio estável é sinônimo de ausência depressões inflacionárias via importações.

Não é por outra razão que o governo, querendoevitar a volta da inflação, depois de 1994 fugiu dadesvalorização cambial mais do que o diabo da cruz.Até que no início de 1999 a coisa desandou...

Manter estável a taxa de câmbio é portanto umadas condições para ter preços internos estáveis.

Mas pode acontecer que a taxa de câmbio deixe deser a bruxa malvada e se torne a vítima de uma inflaçãoque ocorre por outras causas.

Vejamos um caso mais simples:

Se a taxa de câmbio permanecer estável por um bomperíodo, o exportador sabe quanto vai receber em reaispelos produtos que exportar. Por exemplo, um par decalçados vendido aos norte-americanos por US$ 30,00renderá ao exportador R$ 45,00 se a taxa de câmbiofor R$ 1,50 = US$ 1,00.

Esses R$ 45,00 são o resultado da multiplicação deUS$ 30,00 por R$ 1,50 (que é quanto vale cada dólar).

Se o par de calçados custar ao exportador R$ 40,00para ser produzido, ele obterá um lucro de R$ 5,00para cada par exportado. Se os custos internos dessefabricante aumentarem mesmo que a taxa de câmbiopermaneça inalterada, as coisas podem se complicar.

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Se o preço do couro, da cola ou da energia elétricaaumentar e esses custos somados superarem os R$45,00, o exportador passará a ter prejuízos se teimarem continuar exportando.

Sua receita continuará sendo R$ 45,00, equivalentesaos US$ 30,00 convertidos em reais pela taxa de câmbioinalterada, menos do que o produto lhe custa. Nenhumempresário opera dessa forma.

Só em casos excepcionais e transitórios, quando in-teressa manter um cliente na perspectiva de ganhosfuturos, é que tal “desatino” pode acontecer. Na maio-ria das vezes o que ocorre é a interrupção das expor-tações. Em casos semelhantes, quando os custos inter-nos dos exportadores crescem e a taxa de câmbio nãoacompanha seu ritmo, as exportações tendem a diminuire as importações a aumentar, e nesse caso o que erasuperávit na balança comercial se transforma em déficit.

Foi o que aconteceu no Brasil entre 1995 e 1998, atéa desvalorização de janeiro de 1999: os superávits co-merciais existentes até 1994 desapareceram, dando lu-gar a expressivos déficits, como já vimos no Quadro 1.

Mas voltaremos a esse período mais adiante.

O importante é salientar que só existem dois cami-nhos para que o superávit comercial seja recuperadoou pelo menos reduzido:

a) ou o preço em dólares do produto exportado au-menta (no nosso caso, o preço em dólares dos nossos

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calçados poderia aumentar, digamos, de US$ 30,00para US$ 40,00, quando a receita do exportador subiriapara R$ 60,00 (US$ 40,00 x R$ 1,5 por dólar), apare-cendo outra vez o lucro do exportador e estimulandoas vendas ao exterior;

b) ou o governo desvaloriza a moeda nacional, mu-dando a taxa de R$ 1,50 para R$ 2,00 por dólar. Nestecaso a receita do exportador aumentaria, pois emborao preço dos calçados permanecesse o mesmo — US$30,00 —, estes agora seriam multiplicados por umataxa de R$ 2,00 reais por dólar e proporcionariam aoexportador R$ 60,00 por par de calçados exportado,preço superior ao custo de produção.

O exportador recuperaria seus lucros e retomariaas exportações. Não é por outra razão que os expor-tadores estão sempre pressionando o governo para quedesvalorize o câmbio. Há quem diga inclusive quequalquer que seja a taxa de câmbio, para os exporta-dores ela estaria sempre defasada em 30%...

Mas a maioria dos mercados dos produtos que ex-portamos são muito competitivos e não ocorrem ele-vações freqüentes de preços em dólares. A não serquando fatores climáticos, como geadas ou estiagensprolongadas, afetam as colheitas tanto no Brasil comonos Estados Unidos ou na Europa.

Mas é difícil que isso aconteça com produtos semi-industrializados ou industrializados, que constituemhoje grande parte do valor de nossas exportações.

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Isto é, se os exportadores brasileiros quiserem au-mentar seus preços para obter uma compensação emface de uma taxa de câmbio defasada, certamente per-derão clientes, pois o mesmo produto poderá ser ofe-recido por um preço (em dólares) mais baixo poroutros fornecedores.

A desvalorização cambial, no entanto, apresenta umproblema: se favorece e estimula as exportações, tornatodos os produtos importados mais caros em reais.

Por exemplo, se o preço do barril de petróleo forde US$ 20,00 e a taxa de câmbio passar de R$ 1,5 paraR$ 2,00 por dólar, o preço desse produto em nossomercado interno saltará de R$ 30,00 para R$ 40,00.

Os preços dos derivados do petróleo como a gaso-lina, o diesel, o óleo combustível tenderão a aumentar.Embora esse aumento não se dê na mesma proporçãoda majoração do preço do petróleo, pois no refino en-tram outros elementos cujos preços não necessaria-mente se elevaram, haverá um impacto inflacionário:ou no custo de vida, ou nos custos de produção dasempresas que utilizam tais derivados, ou, o que é maiscomum, em ambos.

O aumento do óleo diesel provocará um aumentodos fretes. No caso do transporte de passageiros, issopoderá induzir a uma elevação das tarifas dos ônibusurbanos, o que por sua vez suscitará uma luta porreajustes salariais para o pagamento de passagens ma-joradas e assim por diante...

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Nessa altura do campeonato inicia-se de forma maisou menos aberta a ciranda dos repasses. Se meus custosaumentaram, eu remarcarei os preços do produto quevendo, e os compradores de meus produtos se com-portarão da mesma maneira e assim por diante...

Um poema de Carlos Drummond de Andrade, cujotema são os desencontros da vida, sobre fulano queamava beltrana, que amava sicrano, que amava me-rengana, até chegar a um tal de José, que não amavaninguém, parece ter sido criado durante uma épocainflacionária...

Nesse repasse de preços majorados alguém sempreacaba ficando com o mico na mão. Por estar no fimda linha ou não ter força suficiente, não tem a quemrepassar os aumentos de preços que é obrigado a pagar.

O leitor já deve ter percebido, ou sentido por expe-riência própria, quem é esse personagem: o assalaria-do. Por incrível que pareça, ele é também um acionista:possui ações preferenciais para os prejuízos. Duranteuma crise econômica ou uma inflação galopante, osprejuízos são socializados; são enfiados goela abaixoda grande maioria da população formada por assala-riados, empregados ou não.

Os economistas chamam esse fenômeno de sociali-zação das perdas. E o mecanismo que realiza essa de-sagradável redistribuição da renda chama-se inflação.

Se os aumentos de preços forem muito elevados efreqüentes, todos buscarão repassá-los com idênticas

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(ou maiores) velocidade e intensidade. É desencadeadauma luta cotidiana por reajustes cujo desenlace finalé sempre uma inflação muito alta e descontrolada, ouuma hiperinflação.

O grande perigo de uma desvalorização cambial éexatamente esse: ela pode iniciar uma onda de au-mentos de preços que arrebente na praia de uma belainflação. Para não perder o controle sobre os preços,os governos geralmente esfriam a demanda aumen-tando os juros e arrochando os salários.

Examinemos agora alguns fatores que têm tornadoos mercados financeiros mais interligados e depen-dentes, e ao mesmo tempo causado uma expansão docomércio internacional.

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CAPÍTULO 7

A GLOBALIZAÇÃO E ASTRANSFORMAÇÕES DOS ANOS 90

1. A Globalização e as Comunicações

Em 1997, um rico empresário estava conversandocom a mulher pelo telefone — ele em sua mansãopaulista, ela passando férias em Miami —, quandoquatro assaltantes invadiram sua casa. O empresáriofoi imobilizado, mas deixou o telefone celular ligado.

A milhares de quilômetros de distância, a mulher“ouviu” o assalto e telefonou para uma amiga avisan-do. Esta chamou a polícia e, como se tratava de umaregião de gente importante, os policiais chegaram emquestão de minutos, prendendo os assaltantes. Em ou-tro assalto que terminou na morte de um delegadonas cercanias da avenida Paulista, em fevereiro de2000, um dos assaltantes foi preso porque na fuga dei-xou cair seu telefone celular, e por intermédio delefoi identificado e localizado (endereço, CPF, RG etc.).

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Moral da história: na era da globalização, até os de-linqüentes precisam ser mais cuidadosos com o poderdas comunicações...

Hoje, com a disseminação das comunicações e o seubarateamento, o mundo todo está conectado e é fácilperceber a importância que isso tem para o funciona-mento dos mercados financeiros.

No século XIX, antes da instalação do cabo telegrá-fico oceânico entre Nova York e Londres, em 1867,uma cotação cambial demorava cerca de dez dias parair de uma cidade à outra.

Com a inauguração do cabo, as cotações poderiamser conhecidas no mesmo dia nas duas cidades, masainda estávamos longe de um mundo todo conectadoon-line como acontece hoje.

O assassinato de Lincoln, em 1865, só foi noticiadoem Londres mais de uma semana depois de ocorrido;a notícia do assassinato do presidente Kennedy, em1963, foi escutada por um cidadão nos Estados Unidosque estava por acaso ouvindo a BBC de Londres. E atentativa de assassinato do presidente Reagan foi vistaon-line em todo o mundo, pois sua caminhada pelacalçada estava sendo mostrada pela televisão no mo-mento em que recebeu os tiros.

Essa facilidade de acesso pode estimular a concor-rência e contribuir para baixar o preço de certos pro-dutos. O raciocínio é o seguinte: se os consumidores

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têm acesso às informações — em escala global — e ocomércio eletrônico se generaliza, as vantagens decor-rentes da ignorância dos consumidores, que permitiano passado que alguns empresários fossem beneficia-dos, tendem a desaparecer.

A concorrência tende a se ampliar e os preços, na-turalmente, diminuem. Além disso, os custos de co-mercialização se reduzem dramaticamente: um livrocomprado via Internet tem um custo de transação con-sideravelmente mais baixo do que se fosse compradonuma livraria.

A velocidade das comunicações, a facilidade de aces-so às informações e o baixo custo das operações trans-formaram o mundo num amplo e unificado mercado,e os movimentos dos investimentos financeiros se tor-naram muito mais rápidos, maciços e baratos.

2. A Derrocada dos Países Socialistas, a Expansão doDragão Chinês no Mercado Internacional e a SegundaCrise Mexicana

Além dessa verdadeira revolução nas comunicaçõese nos transportes, que entre outras coisas transformouo turismo numa das maiores e mais lucrativas ativi-dades econômicas do mundo, outra grande mudançatambém ocorreu durante os anos 80.

Mais de um terço da humanidade, que se encontravaseparado do restante — refiro-me aos países socialis-tas, especialmente à União Soviética e à China —, se

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reintegrou plenamente aos mercados capitalistas tantode mercadorias como de capitais, provocando uma au-têntica “reglobalização”.

Embora sem abandonar seu regime político centra-lizado, a China retornou ao mercado internacional cominusitada força. Por exemplo, se no início dos anos 80ocupava a décima colocação como exportadora de cal-çados, hoje está em primeiro lugar.

Os tecidos e confecções chineses e eletrodomésti-cos de baixa tecnologia (os famosos ventiladores, porexemplo) invadiram os mercados com preços imbatíveis.

Lembram-se das camisas que quase provocaram umabriga conjugal no Capítulo 1? Eram camisas Made inChina.

Os chineses adotaram uma política mais agressivano comércio exterior a partir de 1994, quando desva-lorizaram sua moeda, o iuan, em cerca de 40%. E comojá vimos, as desvalorizações cambiais estimulam asexportações.

Os chineses aumentaram suas vendas especialmentepara os Estados Unidos. Além disso, outro país co-meçou a ampliar suas exportações para o mercado nor-te-americano por razões semelhantes: no final de 1994o México sofreu um violento ataque especulativo e foiobrigado a desvalorizar sua moeda, o peso, em cercade 80%.

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Situado do “outro lado do rio Grande”, o México,ao mesmo tempo que entrava no Nafta, ganhava com-petitividade não apenas em função da desvalorizaçãode sua moeda, mas também pela proximidade físicado mercado norte-americano. Basta cruzar o rio Grande...

E o que vem a ser esse Nafta?, perguntaria certa-mente meu jovem vizinho se aparecesse procurandoseu gato. Nome que lembra mais um derivado do pe-tróleo, ou inseticida, o Nafta é uma associação comer-cial entre os Estados Unidos, o Canadá e o México.

A sigla Nafta corresponde às iniciais de North Ame-rican Free Trade Agreement (Tratado Norte-Americanode Livre-Comércio), uma ampliação do acordo de li-vre-comércio que já existia entre os Estados Unidos eo Canadá desde 1989, e que passava a incluir o México.

O acordo entrou em vigor em janeiro de 1994, por-tanto um pouco antes da crise mexicana ou da des-valorização do peso, e previa a eliminação de tarifasalfandegárias entre os três países num período dequinze anos, embora cinqüenta das barreiras existentesfossem eliminadas logo no início de 1994.

A integração dos mercados somando um PIB dequase US$ 8 trilhões e aproximadamente 400 milhõesde habitantes passou a constituir o maior mercado in-tegrado do mundo.

México e China começaram a inundar o mercadonorte-americano com suas exportações baratas. O peso

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mexicano e o iuan chinês estavam desvalorizados emface do dólar, que ia se fortalecendo em relação aoiene e às moedas européias como o franco e o marco.

A Tailândia, as Filipinas, a Indonésia e a Malásiacomeçaram a perder mercados externos para esses doisconcorrentes: além de não acompanharem essas des-valorizações, mantinham suas moedas atreladas ao dólar.

Não é por outra razão que os déficits em transaçõescorrentes desses países começaram a crescer. Comosabemos, nos primeiros anos isso pode constituir umdoce elixir da vida próspera, com produtos baratos,ausência de inflação e juros baixos. Mas é indispen-sável que alguém financie esses déficits.

Esse “alguém” foi prontamente encontrado. O leitordeve estar lembrado de que, entre os emergentes, essespaíses do Sudeste Asiático eram considerados estáveis,confiáveis e de elevada rentabilidade para os investi-mentos em geral, especialmente os financeiros.

E, como se diz no interior de Minas Gerais, “jun-tou-se a fome com a vontade de comer”, pois ban-queiros de um país vizinho poderoso e com muitodinheiro em caixa estavam procurando melhores con-dições de remuneração para os seus investimentos.

Na verdade, os banqueiros japoneses estavam fu-gindo de seu próprio mercado interno, no qual as taxasde juros se encontravam em níveis assustadoramente

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baixos. E nem sempre uma política de juros baixos,de alta liquidez, provoca o efeito desejado, isto é, es-timula os investimentos e o consumo.

No caso japonês, isso não tem funcionado. Desde oinício dos anos 90, a economia tem estado meio de-primida, andando de lado, e a redução dos juros nãofoi suficiente para reverter a situação.

Os banqueiros japoneses deslocaram suas aten-ções para o Sudeste Asiático, onde se encontravampaíses necessitando de dinheiro para fechar seus dé-ficits em transações correntes, mas aparentando boarentabilidade.

Quando a crise estourou na Tailândia e sua moeda,o baht, sofreu forte desvalorização, os outros três paí-ses responderam quase ao mesmo tempo desvalori-zando também suas moedas: a rúpia indonésia, o ring-git malaio e o peso filipino foram desvalorizados ini-cialmente em relação ao dólar em cerca de 30%.

Foi um forte tremor de terra, mas não ainda umterremoto. Na verdade, esses quatro países, por maisemergentes e dependentes do mercado internacionalque fossem, não tinham peso econômico e financeiropara desestabilizar o mercado financeiro internacional.Embora essa crise colocasse os emprestadores japone-ses em situação delicada, não havia ainda a massacrítica para uma reação em cadeia, como diriam osinventores da bomba atômica.

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3. Entram em Cena Tigres, Tiranossauros e Dragões

No dia 1º de julho de 1997, Hong Kong, depois dequase um século de domínio inglês, voltou ao controleda China. Embora ainda mantenha parte de seu estilode vida e sistema econômico, não resta dúvida queessa incorporação não tem volta.

Esse acontecimento político, da maior importânciapara o equilíbrio de poderes no nordeste da Ásia, coin-cidiu com a crise econômica e financeira entre os qua-tro países mencionados do sudeste.

A incorporação de Hong Kong ao controle chinêsnão apenas significou a passagem de um dos maiorescentros financeiros para um novo e agressivo concor-rente nos mercados internacionais (mais do que umtigre, mas ainda filhote de dragão), como também re-colocou na ordem do dia a situação de Taiwan.

Taiwan, ou Formosa, pertencia à China até a Se-gunda Guerra Mundial. Era uma de suas províncias.A invasão japonesa em 1937 e o desfecho da guerracivil em 1949 mudaram essa situação. À frente de umexército poderoso, as forças comunistas de Mao Tsé-tung vencem Chiang Kai-shek, que até então domina-va a China.

Acompanhado de seu exército perdedor formadopor milhões de soldados, este último abandona o con-tinente e “invade” a ilha de Taiwan, criando nela, como apoio dos Estados Unidos, um Estado independente.

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A China jamais aceitou essa situação. Isto é, jamaisaceitou a existência de duas Chinas. E tem desenvol-vido uma luta intensa pela recuperação de sua pro-víncia. Depois da reintegração de Hong Kong, Taiwanse transformou na bola da vez.

No momento em que Hong Kong era transferido,em julho de 1997, o governo de Taiwan realizava ma-nobras militares com seu Exército e sua Marinha deguerra no mar que separa as “duas” Chinas.

O recado era claro: Taiwan não aceitaria uma “ane-xação” e se defenderia militarmente se fosse necessá-rio. Mas havia também um problema econômico a serresolvido. E a reação do governo de Taiwan a esta últimaquestão é objeto de controvérsia entre os especialistas.

Alguns preferem interpretar a desvalorização do dó-lar de Taiwan como uma medida necessária para oequilíbrio das taxas de câmbio na região, embora Tai-wan dispusesse de grandes reservas e gozasse de umasituação cambial até certo ponto confortável.

Outros se inclinam por uma análise em que preva-lecem razões políticas.

Taiwan teria desvalorizado sua moeda para deses-tabilizar Hong Kong, passando um recado ao mundo:vejam o que acontece quando uma economia cai sobo domínio do dragão chinês!

De fato, temendo desvalorizações em cadeia na re-gião e uma possível desvalorização do dólar de Hong

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Kong, os investidores começaram a retirar seus recur-sos daquele importante mercado financeiro.

A Coréia foi pelo mesmo caminho, sendo obrigadaa desvalorizar sua moeda, pois suas reservas não eramtão folgadas como as de Taiwan. Para defender a es-tabilidade de sua taxa de câmbio, Hong Kong elevoubruscamente as taxas de juros, não sem antes declararque usaria todas as suas reservas (entre as maioresque estão do mundo) para defender-se do ataque es-peculativo que se iniciara.

A mensagem era clara: “Nós temos munição pararepelir o ataque. Quem permanecer será recompensa-do; quem sair perderá”. Além disso, o primeiro-mi-nistro chinês, em visita aos Estados Unidos para acer-tar questões relacionadas com o comércio, também fezdeclarações em defesa da moeda de Hong Kong. Estase manteve inalterada à custa de uma forte elevaçãodas taxas de juros.

A etapa asiática da crise financeira havia sido com-pletada. Mas as conseqüências no resto do mundo co-meçavam a se aprofundar.

4. O Pêndulo entre Renda Fixa e Renda Variável

Já vimos anteriormente que o coração de todo in-vestidor financeiro balança entre um ganho seguro emenor e um ganho maior, porém mais arriscado. É a

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mesma diferença existente entre comprar um peixe eadquirir a isca para pescá-lo.

No primeiro caso paga-se um preço determinado eleva-se o peixe. No segundo, gasta-se para comprar aisca que pode ser perdida, ou ser utilizada para fisgarum peixe muito maior e obter um ganho recompen-sador.

Embora eu conheça pessoas que pescam bagres comcamarões, se o preço da isca começar a subir ou su-perar em tamanho ou em valor o peixe que pode serpescado, o pescador certamente vacilará.

Quando o ganho de um título de renda fixa, isto é,título cujo rendimento é previamente conhecido, au-menta, muitos investidores em renda variável (açõesem Bolsa que podem subir ou baixar, por exemplo)efetuam uma migração. Pousam nos mercados ondeo ganho, além de previsível, é maior do que antes.Quando as dúvidas sobre o desempenho da renda va-riável se avolumam, essa migração se intensifica.

Foi exatamente isso o que aconteceu quando as au-toridades monetárias de Hong Kong elevaram brus-camente as taxas de juros assegurando maiores ganhosna renda fixa.

Receosos de uma crise de grandes proporções, osinvestidores em renda variável (na Bolsa de Valoresde Hong Kong) iniciaram um deslocamento maciçopara a renda fixa. Foram “dançar com a irmã” no pró-

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prio mercado de Hong Kong ou comprando títulosdo Tesouro norte-americano, de rendimento baixo,mas os mais seguros do mundo.

Com o deslocamento desses capitais antes investidosem ações, as cotações despencaram na Bolsa de Valoresde Hong Kong. Como os mercados financeiros se en-contram interligados, essa queda atingiu as Bolsas deValores dos principais centros financeiros mundiais.Perdas em Hong Kong teriam de ser compensadascom ganhos ou com a realização de lucros em outrasBolsas mundiais, como na de São Paulo, por exemplo.

Mas o que vem a ser essa “realização de lucros”?

A realização de lucros significa a venda maciça deações depois que suas cotações se elevam. Era o queestava acontecendo com a Bolsa de Valores de SãoPaulo em 1997. Vendas em massa de ações provocamum movimento de baixa em suas cotações e, portanto,nos índices da Bolsa de Valores. Esse pode ser o sinalda debandada de investimentos financeiros em geral.

Da mesma forma que Hong Kong elevou suas taxasde juros para reter os investimentos financeiros, o go-verno brasileiro foi obrigado a fazer a mesma coisaquando, no segundo semestre de 1997, os capitais co-meçaram a sair a granel do nosso mercado.

As taxas de juros foram bruscamente elevadas: pas-saram de cerca de 20% ao ano para 39%. Essa manobra,realizada na esperança de manter os investimentos fi-nanceiros e evitar a dilapidação das reservas, teve um

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relativo êxito: o governo não foi forçado a mexer nataxa de câmbio desvalorizando o real, mas os jurosestratosféricos incidiram violentamente sobre sua dí-vida interna.

O Brasil conseguiu neutralizar o ataque especulativode 1997, porém teve de pagar um elevado preço: suadívida interna aumentou e os juros pagos por ela tam-bém cresceram, tornando a dívida mais difícil de “car-regar” e provocando o aumento do déficit público.

A política econômica tentava ganhar tempo acredi-tando que, se o mercado se acalmasse, o real poderiaser gradativamente desvalorizado, aliviando as ten-sões existentes sobre o Balanço de Pagamentos e es-pecialmente na balança comercial, onde o déficit per-manecia elevado.

A forma escolhida foi anunciar que as desvaloriza-ções cambiais ocorreriam de forma suave mas de qual-quer maneira acima da inflação.

O governo acreditava que os exportadores se entu-siasmariam e todos aqueles que se encontravam pró-ximos do caldeirão prestes a explodir se sentiriam maisseguros sabendo da existência dessa válvula de des-compressão.

5. O Urso Siberiano não Bebe Petróleo

Diante de um destino inexorável, os russos costu-mam dizer que “tudo seria tão bom se não fosse tão

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mau”. Ocorre que a crise asiática e a recessão japonesaagravada por ela haviam provocado outros estragos.Depois do Sudeste Asiático, a Coréia e Taiwan tambémentraram na ciranda das desvalorizações cambiais eda recessão. O crescimento econômico que ia de ventoem popa na região sofreu um sério abalo.

Esses países, com a exceção da Indonésia, são alta-mente dependentes da importação de petróleo. E oconsumo deste produto é um dos primeiros a sofrerredução quando uma economia se contrai.

Como o petróleo é um dos poucos produtos que aRússia vende em condições competitivas no mercadointernacional, a queda da demanda internacional de-primiu os preços, causando um grande estrago nasreceitas cambiais daquele país.

Uma peça de dominó derrubou outra, que arrastouuma terceira e assim por diante. Sem as receitas es-peradas das exportações, os russos acusaram um gran-de déficit em transações correntes, e no segundo se-mestre de 1998 o então presidente Boris Iéltsin decla-rou que não pagaria, no vencimento, os títulos de suadívida externa.

É público e notório que o ex-presidente russo BorisIéltsin gosta de beber. Vodca, evidentemente. Aliás,quem agüenta mais de cinqüenta invernos naquelaslatitudes — onde quando se tem sorte o verão cai numdomingo — recebe uma medalha pelo simples méritode ter sobrevivido.

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A vodca ajuda a alcançar esse objetivo. Dizem quepelo jeito Iéltsin chegará aos cem anos apesar dosfreqüentes internamentos e operações a que tem sidosubmetido.

Apesar desses antecedentes, todos acreditaram quenão se tratava de um delírio, e a jovem Bolsa de Mos-cou sofreu um sério abalo. Os capitais fugiam comosalmões na desova tentando escapar dos ursos.

As Bolsas de Frankfurt e de Nova York sofreramtambém fortes quedas, que repercutiram em todo omundo, pois sabia-se que alemães e norte-americanos,interessados em manter o presidente russo — que pelomenos evitava a volta dos sempre temíveis comunistas—, haviam emprestado muito dinheiro ao país. E cor-riam rumores de que esse dinheiro teria sido desviadopara os cofres das máfias. Ou seja, a situação russaera desastrosa e não apenas pela queda dos preços dopetróleo...

6. O Roto Falando (Bem) do Esfarrapado

A crise na Rússia coincidiu com o auge das atribu-lações do presidente Clinton, acusado de ter induzidouma estagiária a um prazeroso desvio de função. Taisfolguedos vespertinos, que quase lhe custaram o cargo,provocaram uma certa paralisia em sua administração,a ponto de muita gente acreditar que a sorte do mundodependia de três baixas: das Bolsas asiáticas, da vodcado ex-presidente Iéltsin e do zíper do presidente Clinton...

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Apesar disso, o presidente dos Estados Unidos teveforças para fazer uma longa viagem à Rússia e “am-parar” seu cambaleante colega Iéltsin, que do bunker-hospital onde estava internado não conseguia que aDuma (o Parlamento russo) aprovasse os nomes queele indicava para primeiro-ministro.

Também teve disposição para reforçar as declara-ções do seu então secretário do Tesouro, Robert Rubin,de que, se o Brasil — a bola da vez — sofresse umataque especulativo, receberia ajuda dos Estados Unidos.

Essas declarações foram adicionalmente respalda-das pelo então secretário-geral do FMI, o francês Mi-chel Camdessus, que talvez com remorso pelos humi-lhantes 3 x 0 na final da Copa de 1998, declarou queo Brasil já havia feito tudo que podia para defendero real (leia-se: colocado a taxa de juros em patamaresmais altos do que o Júnior Baiano dando um chutãona bola) e que, se precisasse, seria respaldado peloFundo.

7. O Efeito Manada

Entre os economistas, assim como entre os físicos,é muito comum que a identificação de um comporta-mento determinado de agentes econômicos que se re-pete com certa regularidade seja batizado de “efeito”.

Os que estiveram mais em voga ultimamente foramo “efeito Ponzi” e o “efeito tequila”. O primeiro refe-

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re-se à situação de um devedor que só pode pagardívidas passadas contraindo mais dívidas no presente.O nome refere-se a Carlo ou Charles Ponzi, um este-lionatário ítalo-americano que, entre 1921 e 1927, pro-metia pagar uma remuneração extraordinariamente ele-vada para quem lhe emprestasse dinheiro, e pagavaessas dívidas com novos endividamentos, até quebrar.Ponzi foi preso e sua empresa, fechada.

A partir dessa experiência, se uma situação seme-lhante ocorrer com as finanças de um país, este terásido vítima do efeito Ponzi. Não é difícil perceber queisso já nos aconteceu várias vezes.

O segundo, o efeito tequila, refere-se à crise cambialsofrida pelo México no final de 1994, em função defortes déficits em transações correntes de seu Balançode Pagamentos. A crise representou uma enorme fugade capitais e o peso mexicano sofreu uma intensa des-valorização, representando uma quebra na estabilida-de de preços que vinha sendo sustentada desde 1989,e lançando o país numa forte recessão.

O nome tem origem na bebida homônima cujos efei-tos de ressaca podem ser comparados ao que aconte-ceu com a crise cambial mexicana.

O Brasil vivenciou em 1999 um efeito denominado“manada” ou “bandwagon” em inglês, que os mexi-canos preferiram chamar, como vingança, de “efeitocaipirinha”.

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A denominação vem do peculiar comportamentodos animais que vivem em bandos: quando um delesou um grupo sai em disparada numa direção, os de-mais fazem o mesmo, provocando o chamado “estouroda boiada”.

Muitas vezes não existe um motivo aparente, comoa presença de um predador, por exemplo.

Mas o resultado é que a manada se desloca numasó direção, esvaziando uma área e ocupando outra.No caminho, muitos animais morrem porque acabamsendo pisoteados pelos demais na louca disparada.

Um recente filme premiado, Forrest Gump, o Contadorde Histórias, estrelado por Tom Hanks, mostra umacena na qual o “herói” começa a correr sem uma metade chegada determinada e logo uma série de pessoascomeça a segui-lo ou a acompanhá-lo, mesmo sem sa-ber para onde ele estava indo...

Com os mercados financeiros às vezes acontece umacoisa parecida. Mercados que parecem calmos, está-veis, de repente sofrem a ação de um grupo de inves-tidores ou mesmo de um só investidor (desde que sejagrande), e os demais, vendo aquele deslocamento,agem automaticamente provocando uma debandada.

A idéia é mais ou menos a seguinte: se um megain-vestidor está saindo de um lugar considerado seguroé porque este deixou de sê-lo. Então é melhor sairtambém antes que seja tarde. Se outros investidores

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tomarem atitudes parecidas, pois a ação de um se-gundo influencia um terceiro, no final teremos umadebandada geral.

O país que sofre esse ataque especulativo não temcomo defender sua taxa de câmbio e acaba desva-lorizando-a. Foi o que aconteceu com a Tailândia(onde o estouro começou), as Filipinas, a Malásia ea Indonésia na crise asiática de 1997, como já vimosanteriormente.

Mas por que razão mercados que eram consideradostão seguros deixam de sê-lo de uma hora para outra?

Vamos ver se essa questão fica mais clara com umaexperiência que o leitor pode fazer. Ofereça a umgrupo de pessoas duas alternativas: ganhar US$ 5milhões (ofereça dólares para evitar o nhenhenhémde gente dizendo que não confia nos reais...) com100% de certeza, ou então US$ 7 milhões, com 99%de probabilidade de ganhar e 1% de probabilidade denão ganhar.

Em geral um grupo maior prefere a certeza de ga-nhar os US$ 5 milhões, enquanto outro grupo menor“arrisca” a segunda alternativa e aposta nos US$ 7milhões, mesmo tendo 1% de probabilidade de nãoganhar (observe o leitor que o jogador não perde, ape-nas deixa de ganhar).

Os que elegem a primeira alternativa pensam maisou menos assim: “Com US$ 5 milhões eu resolvo mi-

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nha vida, e se o ganho é certo não vou arriscar. Mesmoque os 7 milhões representem 40% a mais, há umapossibilidade de eu não ganhar nada”.

Entre os pessimistas que preferem a primeira alter-nativa, o raciocínio vai mais além. Eles pensam maisou menos assim: “Eu sempre fui um azarado. Quandodeixo o carro debaixo de uma árvore, o pardal nuncase esquece de depositar seu tributo pastoso à naturezabem no ponto de visão do pára-brisa... Se escolher asegunda alternativa, aquela bolinha vermelha entre as99 brancas estará certamente reservada para mim; por-tanto, ficarei com o 100% de segurança”.

Os que preferem a segunda alternativa pensam quea probabilidade de não ganhar é muito pequena emface do aumento do “prêmio” em 40%. Isto é, o au-mento do ganho compensa, e a existência de risco emtodo caso é mínimo.

O leitor pode fazer a experiência: coloque cem pe-daços de papel numa cesta numerados de um a cem,imagine um número e retire um dos papéis; repita aexperiência (com os cem papelotes dentro da cesta)até que o número imaginado seja escolhido. É possívelque mesmo fazendo essa experiência durante 24 horaspor dia o leitor leve anos até obter um resultado “po-sitivo”... No entanto, a bolinha vermelha pode sairlogo na primeira escolha, pois embora com pouquís-simas probabilidades de ocorrer, é um resultadopossível.

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Já fiz esse teste centenas de vezes e jamais ocorreua coincidência dos dois números... Agora, se me per-guntassem o que eu faria se me oferecessem realmenteos US$ 5 milhões, creio que aceitaria a primeira alter-nativa, pois “Yo no creo en brujas, pero que las haylas hay!”.

Mas os mercados financeiros e as Bolsas de Valoressó funcionam porque as pessoas agem de forma dife-rente mesmo diante de um teste em que os riscos sãotão claros como no anterior. Um grupo de pessoas émais propenso a assumir riscos do que outro.

Quem não gosta de correr riscos paga para que al-guém os assuma em seu lugar. É por esta razão queuns compram ações quando os seus preços estão su-bindo e outros vendem quando estão baixando, e por-tanto alguém está fazendo a operação exatamente in-versa. Até aqui nenhuma novidade. Os mercados fi-nanceiros funcionam dessa forma. Mas nós estamossupondo que os riscos, ou as probabilidades de algumacoisa acontecer, são mais ou menos conhecidos e pas-síveis de serem calculados.

As coisas se complicam quando os fatores que de-terminam um acontecimento econômico mudam emgrande velocidade, ou não são bem conhecidos poraqueles que dependem deles. Ou melhor, nos merca-dos financeiros modernos, as condições de risco mu-dam com enorme rapidez e os que estão fazendo asapostas muitas vezes não se dão conta disso.

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Quando um investidor percebe que em vez do riscode 99% contra 1%, a situação é 85% a 15%, pode sertarde para mudar de canoa. Se soubesse que os riscoseram diferentes, provavelmente não faria o investi-mento, mas o dinheiro está aplicado e muitas vezesé tarde para defendê-lo.

O investidor que percebe a alteração dos riscos esai rapidamente de um mercado pode dar início ao“efeito manada” mencionado anteriormente.

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CAPÍTULO 8

A CRISE ASIÁTICA EOS PROBLEMAS DO

CRESCIMENTO ECONÔMICO

1. A Crise das Jaguatiricas Asiáticas

Se a maioria dos investidores em determinado paísse desloca em curto espaço de tempo para outros mer-cados nos quais a rentabilidade é menor mas o riscoé quase inexistente, deixam atrás de si uma crise cam-bial de bom tamanho. O país que sofre essa debandadaperde suas reservas e é obrigado a desvalorizar suataxa de câmbio.

Na realidade, quando alguns investidores percebe-ram que a Tailândia não era mais 99% a 1%, e simuns 80% a 20%, retiraram seus investimentos daquelemercado e voaram para a segurança representada pe-los títulos emitidos pelo Tesouro dos Estados Unidos.

O interessante é que as grandes empresas de ava-liação de risco, como a Moody’s Investors Service e a

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Standard & Poors, isto é, empresas que estudam asituação de países, empresas e governos e informama seus clientes o maior ou menor risco que estariamcorrendo se aplicassem nesses mercados, davam uma“nota” razoavelmente elevada para essas quatro ja-guatiricas asiáticas.

A Tailândia, as Filipinas, a Malásia e em menor es-cala a Indonésia entre 1992 e 1995 apresentavam umarentabilidade para quem aplicasse em seu mercadode ações entre 3 e 4% ao mês, e eram consideradoslugares mais seguros do que países como a Argentina,o Brasil e o México (este último antes da crise do finalde 1994), onde a rentabilidade era bem inferior.

Esses países do Sudeste Asiático vinham apresen-tando déficits em transações correntes (lembra-se desseproblema que também enfraqueceu a situação no Bra-sil?) e tornavam-se cada vez mais dependentes de fi-nanciamentos externos.

Quando esses credores externos se convenceram deque aqueles países representavam um risco maior doque o que eles estavam dispostos a assumir, recusa-ram-se a continuar financiando o déficit, fato que ge-rou a crise cambial nesses quatro países e os obrigou,como já vimos, a desvalorizar fortemente suas moedas.

Essa crise do Sudeste Asiático foi se espalhando,envolvendo a Coréia, Taiwan, Hong Kong até alcançara Rússia. E esta última foi afetada pela queda dos pre-ços do petróleo que a redução da demanda dos paísesem crise ocasionou.

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O Brasil foi afetado não apenas no plano financeiro,com a fuga de capitais enfraquecendo suas reservas,mas também no comércio de mercadorias. A crise localprovocou uma baixa em nossas exportações para todaa Ásia, o Japão incluído, e as desvalorizações cambiaisderam a esses países condições muito melhores paracompetir com nossos produtos no mercado interna-cional e inclusive no nosso mercado interno.

Em síntese, fomos afetados duplamente: as expor-tações ficaram andando de lado e as importações au-mentaram. Nossas importações só não explodiramporque a elevação da taxa de juros se encarregou deprovocar um desaquecimento da economia em 1998.Mesmo assim, o déficit na balança comercial foi muitoelevado. A bandeira do crescimento econômico foi ar-riada e em seu lugar foi hasteada a da salvação daestabilidade do real.

Vejamos agora um pouco mais de perto a questãodo crescimento econômico.

2. O Progresso na Ordem do Dia

Além de estar incrustada no centro da bandeira bra-sileira, a palavra “progresso” encontra-se presente emtodos os programas de governo de qualquer candidatoa qualquer cargo que se preze em nosso país.

É uma palavra forte que reflete uma realidade coma qual nos acostumamos durante quase um século. O

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crescimento da economia brasileira foi um dos maiselevados do mundo durante o século XX. Só não fi-camos em primeiro lugar no ranking por causa da crisedos anos 80, que se prolongou durante a década seguinte.

O crescimento da riqueza, expressão do progressoeconômico, sofreu uma dramática interrupção nos úl-timos vinte anos. Inclusive em alguns anos andamospara trás, como em 1999, quando a população cresceucerca de 1,5% e o PIB, apenas 0,8%.

Mas basta que as coisas comecem a melhorar umpouco — ou deixar de piorar —, como no início de2000, e a confiança na retomada do crescimento res-surge na linha do horizonte com toda a força.

Fazer a economia crescer ou desenvolver o país doponto de vista econômico é uma intenção que vemosrepetida todos os dias nos discursos oficiais.

Dizem que toda unanimidade é burra, mas nessecaso ela se justifica plenamente. Todos são favoráveis.A proposta soa como música aos ouvidos de pobrese ricos: para os primeiros significa a ampliação da ofer-ta de empregos e, portanto, a redução do desemprego,talvez uma das maiores chagas sociais da atualidade;para os últimos é sinônimo de aumento dos lucros, eportanto de que eles se tornarão ainda mais ricos...

No entanto, uma coisa são as promessas de campa-nha ou os desejos das pessoas bem-intencionadas eoutra bem diferente é a capacidade de realizá-las.

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O crescimento econômico significa uma coisa atébem trivial: basicamente, o aumento da produção debens e serviços. E a soma do valor de todos esses bense serviços é o que se denomina PIB, ou Produto InternoBruto. E o leitor deve estar lembrado que esse termovem nos acompanhando desde o Capítulo 1, e talveznão haja um só dia em que ele não apareça estampadonas manchetes dos jornais.

Se compararmos esse crescimento, isto é, o cresci-mento do PIB, com o da população, poderemos tertrês situações diferentes: ele pode ser maior, igual oumenor do que a expansão demográfica.

No primeiro caso haverá aumento do produto percapita (ou por pessoa); no segundo o produto per capitapermanecerá o mesmo, e no terceiro haverá uma re-dução. Neste último caso, em média, cada habitantedisporá de uma quantidade de bens e serviços menordo que no ano anterior.

No início de cada ano os governos sempre fazemprevisões otimistas a respeito do crescimento do PIB;é um dever de ofício. Se essas previsões se mostraremilusórias ao final do primeiro semestre, então o cres-cimento anunciado terá início no “segundo semestre”.E se próximo do Natal as previsões daquele ano semostrarem totalmente furadas, o remédio é recomeçarcom as previsões otimistas para o ano seguinte...

Com a crise das últimas duas décadas na economiabrasileira, os economistas começaram a ficar mais to-

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lerantes com os índices de crescimento econômico. Sedurante os anos 70 um crescimento de 2 ou 3% doPIB era considerado uma catástrofe, pois estávamosacostumados com um crescimento de 10% ou mais,hoje as pretensões são bem mais modestas.

Um crescimento de 3%, embora raquítico, está debom tamanho, pois em muitos anos, como ocorreu em1999, o crescimento foi inferior ao da população. Evejam que o crescimento populacional caiu bastantenos últimos quarenta anos: de uns 3% ao ano nos anos60 para uns 1,5% atualmente.

Volta e meia os jornais anunciam que o crescimentodo PIB vai ser de 3 ou 4%, ou mesmo que vai ser“negativo”, ou melhor, a quantidade de bens e serviçosproduzidos em determinado ano é menor do que aproduzida no ano anterior. Nesse caso, o país estáandando para trás, feito caranguejo, e geralmente sediz que há recessão.

Na verdade, pode estar havendo recessão mesmoquando o produto não está diminuindo. Basta que oseu crescimento seja muito pequeno, 1 ou 2%, o quenão compensa o crescimento da população. Nesse casoo PIB per capita, ou a renda per capita, está encolhendo,o que também significa uma coisa a ser evitada: em-bora a riqueza esteja crescendo, como a população au-menta num ritmo maior, a riqueza por cada habitanteestará diminuindo, o que é um dado muito preocupante.

Até o final da década de 70, a média de crescimentodo PIB brasileiro situava-se entre 6,5 e 7,0% ao ano.

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A partir dos anos 80 este crescimento caiu para menosda metade. A situação piorou tanto que muitos eco-nomistas batizaram os anos 80 (e também os anos 90)de década perdida: entre 1979 e 1999, o crescimentodo PIB apenas compensou o crescimento da popula-ção, de tal forma que, passados vinte anos, as pessoasmantinham a mesma riqueza per capita.

Mas, quais foram os problemas que inverteram acurva de crescimento do PIB de mais de 10% ao anodurante a década de 70 para menos de 3% duranteas duas décadas seguintes?

3. Quais São as Condições para o CrescimentoEconômico?

Se meu vizinho chegasse procurando seu gato e mefizesse esta pergunta, creio que o melhor seria começardizendo o seguinte:

Quais são as condições para produzir qualquer coisa?

Se olharmos a nossa volta e examinarmos os pro-dutos mais familiares que conhecemos e sem os quaisnossa vida seria impossível, verificaremos uma coisabem simples: são necessários três fatores para produzira maioria deles.

Tomemos por exemplo o vestuário. Podemos per-ceber que a produção de uma camisa exigiu matérias-primas — tecido, botões, linha —, uma máquina decostura e pelo menos uma costureira.

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A combinação desses três elementos básicos resultouna produção da camisa. Mas, pensando bem, o tecidoteve também de ser produzido, o mesmo acontecendocom a máquina de costura; e os trabalhadores tiveramde ser alimentados, vestidos, transportados etc., istoé, eles também tiveram de ser “reproduzidos”; semesses meios de vida, não estariam em condições detrabalhar.

Se em vez de uma, alguém desejar produzir duascamisas, deverá inevitavelmente aumentar a quanti-dade de matérias-primas, de máquinas e de trabalha-dores. Mas não apenas as camisas necessitam dessesfatores para ser produzidas. Produtos como os móveis,as moradias, os carros etc. fazem idêntica exigência.

Portanto, se todos os produtores de bens e serviçosresolverem produzir mais, a demanda de matérias-primas, máquinas, equipamentos e mão-de-obra tam-bém aumentará.

Existe uma regra em economia muito fácil de en-tender, pois faz parte de nosso dia-a-dia, que diz oseguinte: se a demanda por um bem ou serviço cresce,a menos que a oferta também aumente, o resultadoserá quase sempre uma elevação de preços.

Se a demanda de todos esses fatores estiver cres-cendo, é sinal de que a economia estará atravessandouma fase de expansão. Mas se a oferta desses fatoresnão acompanhar o aumento da demanda, logo ocor-rerão pressões inflacionárias.

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A existência de inflação, especialmente nas econo-mias desenvolvidas, indica que o crescimento econô-mico atingiu seu ponto máximo. Isto é, que a expansãoda demanda de fatores de produção esbarrou na in-capacidade da oferta de atendê-la. Essa situação corres-ponde aos últimos momentos da fase de prosperidadedo ciclo econômico. Assemelha-se ao sinal amarelo: ocarro tem de desacelerar porque o semáforo vai fechar.

4. Os Ciclos Econômicos

As economias de mercado atravessam fases de ex-pansão alternadas com períodos de contração, que oseconomistas denominam “ciclos”. Estes ciclos são devários tipos, longos, médios e curtos, e cada um delespode ter fases mais longas ou mais curtas, dependendode uma série de fatores.

Em geral, um ciclo é composto de várias fases, comomostra a figura abaixo:

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econ

ômic

a

Prosperidade

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Recessão

Depressão

Recuperação

Tempo (anos, meses)

As Fases do Ciclo Econômico

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Essas fases são denominadas “recuperação”, “pros-peridade”, “desaquecimento”, “contração”, “recessão”.

Quando a economia está atravessando um períodode desaquecimento ou de recessão, época em que emgeral existe muito desemprego não apenas de pessoas,mas também de matérias-primas encalhadas e de má-quinas idem, seus preços caem. Muitos empresários, parafazer caixa, queimam seus estoques com liquidações.

Os preços podem cair tanto que alguns empresários— compradores desses produtos — vislumbram opor-tunidades de ganhar dinheiro comprando fatores apreços tão reduzidos. Os preços de venda de seus pro-dutos são também baixos, mas sua lucratividade poderetornar em função de custos mais baixos ainda.

A produção pode começar a crescer. No início, len-tamente. Mas se essas decisões forem acompanhadaspor outras no mesmo sentido, uma onda de otimismose inicia entre os empresários e a produção pode co-meçar a aumentar de forma consistente, e não espas-módica.

Se meu jovem vizinho estivesse ouvindo essa expli-cação, poderia perguntar com sagacidade: se os em-presários começarem a demandar mais fatores de pro-dução (matérias-primas, máquinas, mão-de-obra etc.),os preços não vão aumentar, elevando os custos e aca-bando com a festa rapidamente?

A resposta é: não necessariamente, porque se esti-vermos saindo de uma fase de recessão, existirão mui-

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tos estoques de matérias-primas, muita mão-de-obradesempregada, e as empresas terão parte de sua ca-pacidade instalada (máquinas, equipamentos etc.) comcerta ociosidade. E o que significa “capacidade ocio-sa”? Se uma empresa possui máquinas com capacida-de para processar cem unidades/mês, mas só produzsetenta unidades, pois essa é a quantidade máximaque pode ser vendida a cada trinta dias, dizemos queexiste uma capacidade ociosa de trinta, que é a dife-rença entre a capacidade instalada e a efetivamenteutilizada.

A oferta poderá responder ao aumento da demanda,pelo menos na fase inicial, sem aumento de preços, eportanto sem pressões inflacionárias.

Ou melhor, a existência de matérias-primas em es-toques, máquinas e equipamentos parados parte dotempo e muito desemprego entre os trabalhadores atuacomo uma fonte que atende prontamente ao aumentoda demanda.

Nesse caso a produção pode aumentar sem impactonos custos, garantindo ao empresário sua margem delucro. Além disso, num mercado cada vez mais glo-balizado, com fornecedores espalhados por todo omundo, se um produtor local não encontrar a maté-ria-prima desejada em seu país, poderá recorrer a ou-tras partes do mundo e importar o que necessita.

Os empresários têm também uma outra vantagemdurante os períodos de recessão. Temendo perder seus

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empregos, os trabalhadores, além de aceitarem saláriosmais baixos, trabalham com mais “afinco”.

Os operários industriais de São Paulo costumam di-zer que basta uma ameaça de “passar o facão” (gran-des cortes de trabalhadores nas empresas) para que a“peãozada comece a trabalhar mais rápido”.

Em outras palavras, nos períodos de desemprego,o grau de exploração sobre a força de trabalho au-menta, o que em termos monetários significa reduçãode custos e aumento da “produtividade”. Nos am-bientes onde a concorrência entre empresários é muitointensa, essa redução de custos com a mão-de-obrapode permitir rebaixamento de preços e sobrevivênciano mercado até que “as coisas voltem ao normal”.

O importante é que durante algum tempo a deman-da pode crescer sem que os preços se elevem, pois seo fornecedor nacional quiser aumentar seus preços,o comprador pode obter o mesmo produto medianteimportações.

Se os empresários vendem a produção adicional ob-tendo lucros satisfatórios, haverá crescimento econô-mico e o nível de emprego aumentará, criando-se umclima favorável para uma expansão ainda maior nomomento seguinte.

Um ciclo de expansão econômica pode estar se ini-ciando. O otimismo é contagiante e parte do cresci-mento pode ser creditada a ele. Quando essa trajetória

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mostra-se fortalecida e consistente, os bancos, que an-tes estavam meio ressabiados em relação ao futuro,começam a acreditar mais na capacidade dos empre-sários de ganhar dinheiro.

Na linguagem dos banqueiros (o javanês misturadocom o esperanto), isso significa: capacidade de pagarjuros e devolver o principal. A lingüiça começa a correratrás do cachorro... Os banqueiros passam a procurarclientes. Seu dinheiro, que se encontrava esperandomelhores oportunidades, entra em cena em grande estilo.

De fato, os empresários raramente desenvolvem suaprodução exclusivamente com capital próprio. Em ge-ral recorrem ao crédito, tomando certa quantia de di-nheiro emprestado dos bancos. Além disso, muitaspessoas têm apenas boas idéias, conhecimento do mer-cado e capacidade administrativa para gerir um ne-gócio, e não o dinheiro para fazer os investimentosnecessários.

Em 1907, um senhor chamado Owen inventou nosEstados Unidos uma máquina revolucionária paraproduzir garrafas. Como não possuía os fundos sufi-cientes para explorar seu invento em grande escala,associou-se a um capitalista que levantou junto a umbanco os recursos indispensáveis e fundou uma em-presa, a Owen Illinois Glass Co., que posteriormentese transformou numa grande multinacional.

Mas se a criação de novas empresas e/ou a expansãodas já existentes prosseguir, a demanda de crédito será

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cada vez maior. Se a “capacidade ociosa” dos bancosem matéria de empréstimos se aproximar do esgota-mento, a possibilidade de fornecer crédito à praça che-gará ao seu limite.

A mesma regra vale para as matérias-primas, má-quinas, e mesmo para a mão-de-obra: se os estoquesse aproximam da exaustão, isto é, se a oferta não con-segue dar uma resposta imediata ao crescimento dademanda, o preço do fator tende a aumentar.

No caso do capital financeiro, este preço denomi-na-se taxa de juros. Ou melhor, para que um bancoforneça crédito adicional além de certos limites, quan-do os empresários disputam a tapas um melhor lugarna fila para conversar com o gerente do banco, o re-sultado quase sempre é a cobrança de uma taxa dejuros maior.

É verdade que, da mesma forma que acontece quan-do há escassez de matérias-primas, os empresários po-dem apelar para as importações: em lugar de tomaremdinheiro emprestado no mercado interno, apelam parainstituições de crédito internacional para garantir aexpansão dos seus negócios.

Nesse caso existem dois problemas quando se tratade um país em desenvolvimento como o Brasil:

a) se a conjuntura internacional for de expansão dasprincipais economias mundiais, especialmente dos Es-tados Unidos, estas atuarão como bombas de sucção

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dos empréstimos, pois trata-se de lugares muito maisseguros. Haverá então certa dificuldade em atrair re-cursos para cá;

b) se a situação nacional estiver se deteriorando emrelação a seus fundamentos, como o déficit público eo déficit em transações correntes, o número de credo-res dispostos a emprestar diminuirá e as taxas de jurosinternas terão de subir para compensar o aumento dorisco.

Mas suponhamos que os credores internos e exter-nos estejam dispostos a emprestar para os empresáriosbrasileiros. Neste caso e durante certo tempo estes úl-timos contarão também com esta condição básica parao aumento da produção.

Enquanto existirem fontes de financiamento a jurosbaixos, oferta elástica de matérias-primas e máquinase equipamentos, mão-de-obra brigando por empregos,além de mercado consumidor, a produção pode con-tinuar crescendo indefinidamente.

Mas nós sabemos que isso não acontece. Em deter-minado ponto do crescimento, um desses fatores co-meça a escassear e seus preços iniciam uma escalada.

Às vezes é a oferta de matérias-primas que nãoacompanha mais o ritmo de crescimento da demanda;às vezes são as máquinas, equipamentos e até a mão-de-obra que começam a faltar; são momentos raros efugazes. São os empregadores que correm atrás dosempregados.

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Mas, em geral, quem começa a refletir primeiro essastensões é o mercado financeiro: os credores podemconsiderar que o ciclo de expansão da economia che-gou ao fim e que é o momento de começar a retiraro time de campo, só emprestando para clientes muitoespeciais, e mesmo assim cobrando uma taxa de jurosmais elevada.

Se, além dos custos financeiros, o preço das maté-rias-primas e da mão-de-obra começa a crescer, certosempresários podem concluir que dessa forma suasmargens de lucro estarão ameaçadas e tendem a re-duzir seus investimentos.

Isso pode iniciar uma reação em cadeia, pois os for-necedores desses empresários que estão cortando in-vestimentos venderão menos do que esperavam, terãoseus lucros reduzidos ou eliminados, e investirão me-nos também no momento seguinte.

Se a redução dos investimentos se generalizar, a eco-nomia sofrerá um desaquecimento que poderá resultarnuma recessão ou mesmo, se esta se aprofundar, numadepressão, como aconteceu em 1929.

Os camponeses das terras altas da Colômbia costu-mam dizer nos dias de chuva que “está batendo sol”,e quando o sol é abrasador, que “está chovendo”. Essaaparente incongruência se explica, pois quando faz sol,a seca ameaça as colheitas, o que significa desgraça efome; ao contrário, quando chove, embora o ambiente

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fique meio tristonho, é a garantia de boas colheitas eprosperidade para todos.

Depois da crise de 1929, os empresários, e especial-mente os governos, escaldados com uma depressãoque durou quase uma década e que veio depois deum período de euforia e prosperidade, ficam muitopreocupados quando os negócios começam a se ex-pandir de maneira muito acentuada, pois é sinal deque a queda poderá ser proporcional à euforia anterior.

De fato, durante a depressão dos anos 30, o desem-prego atingiu quase a metade da população trabalha-dora norte-americana, e foram necessários alguns anose importantes acontecimentos internacionais para tiraros Estados Unidos do fundo do poço, além da acei-tação de um intervencionismo estatal impensável du-rante o liberalismo reinante nos anos 20.

Os governos aprenderam também a lidar com a cri-se, desenvolvendo ferramentas para impedir que elase pronunciasse muito, abortando a fase de prosperi-dade e provocando uma desaceleração mais suave.

Ou melhor, nos momentos em que a fase de pros-peridade se prolongava e ameaçava uma nova quedano abismo da depressão, os governos abortavam ocrescimento antes que ele alcançasse seu ponto máxi-mo. Como? Elevando a taxa de juros e, por meio disso,jogando um balde de água fria nos investimentos eno consumo, provocando um desaquecimento na eco-nomia. Evitava-se a depressão, ou seja, uma queda

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muito brusca e descontrolada, embora a economia en-trasse num período de desaquecimento.

Se o desânimo se prolongasse além da conta, o go-verno além de baixar os juros estimularia a economiainvestindo por sua própria conta em obras públicas.Essa política intervencionista de expansão e contraçãocomandada pelo governo ao mexer nas alavancas dastaxas de juros e do investimento passou a ser deno-minada stop-go, ou seja, brecar e soltar.

Este mecanismo pode ser entendido se examinarmoso que aconteceu com nossa própria economia.

Se a economia inicia uma fase de desânimo, quandoo produto encolhe e nenhuma empresa privada estádisposta a arriscar seu rico dinheirinho na produção,pois a possibilidade de não vender o produzido é mui-to grande, cabe ao Estado fazer investimentos queatuem como o motor de arranque da recuperação.

Se aparecerem sinais de que a depressão alcançouseu ponto máximo e uma discreta recuperação teminício, esse arranque pode colocar em movimento omotor maior dos investimentos, que são aqueles dosetor privado.

Se um governo resolve fazer investimentos, comofoi o nosso caso quando construímos Brasília (mas nãopor estarmos numa depressão), empresas situadas a

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centenas de quilômetros de distância acabam sendobeneficiadas.

As empreiteiras de São Paulo, Minas Gerais e Bahiaforam contratadas para a construção da própria cida-de, das estradas ligando a nova capital aos grandescentros etc. A demanda de mão-de-obra atraiu migran-tes do Nordeste — os candangos —, mas também deoutras regiões do país. Os salários recebidos por essestrabalhadores eram enviados em parte para seus fa-miliares, que permaneciam nos lugares de origem, eem parte irrigavam o comércio local, estimulando osinvestimentos e o emprego também em regiões muitoafastadas da nova capital.

Os investimentos em Brasília multiplicavam tam-bém o emprego em outros pontos do país, onde eramproduzidos as matérias-primas, as máquinas e os equi-pamentos ali utilizados. O aumento da demanda decimento exigiu maiores investimentos em sua produ-ção, e o nível de emprego cresceu, por exemplo, emSanta Catarina.

Centenas de outros exemplos poderiam ser lembra-dos. Mas o importante é que esse megaprojeto esti-mulou a economia brasileira como um todo, contri-buindo para o seu intenso crescimento nos últimosanos da década de 50, embora um humorista tenhadito com razão que Brasília é uma desnecessidade quese tornou irreversível.

O grande problema desses investimentos públicosé que em geral eles são feitos sem que o governo conte

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com os devidos recursos orçamentários. Ou melhor,para realizar esses investimentos os governos acabamgastando mais do que arrecadam, e o resultado é umdéficit público de bom tamanho, que deverá ser co-berto por emissões ou financiado pelo crescimento dadívida interna.

As conseqüências disso nós já vimos em capítulosanteriores: ou a inflação cresce — foi o que aconteceunos últimos anos do governo Juscelino Kubitschek noBrasil —, ou a taxa de juros tende a aumentar pelocrescimento da dívida interna, provocando uma pres-são recessiva na economia.

Depois da tempestade... vem a inundação. É comose os investimentos governamentais representassemuma imensa bomba de sucção de recursos e não sim-plesmente o motor de arranque que põe em movi-mento a grande máquina da economia.

Embora inicialmente a construção de Brasília tivesseexercido um importante papel de estímulo à economia,a conta acabou sendo paga com uma forte inflação, eno início dos anos 60 a recessão bateu a nossa porta.

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CAPÍTULO 9

CONTROVÉRSIAS ENTRE ATEORIA E A PRÁTICA

1. As Teorias Existem para Serem Contrariadas pelaPrática

Essa política intervencionista, também denominada“anticíclica” ou “keynesiana”, isto é, aplicada quandoo ritmo da economia está muito acelerado, ou paraanimá-la quando está quase parando — ou andandoa ré —, foi aplicada com relativo êxito durante os anos30, e especialmente depois da Segunda Guerra Mun-dial, nos países mais desenvolvidos.

No entanto, durante os anos 90 as coisas têm sidosurpreendentes. Se considerarmos as duas maiores po-tências econômicas mundiais, os Estados Unidos e oJapão, essas políticas anticíclicas não têm surtido oefeito esperado. Ou então a dosagem não encontrouseu ponto certo.

O Japão, depois de atravessar um período de ex-pansão econômica extraordinário entre 1950 e 1980,

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sofreu um processo de desaceleração no início dosanos 90 que se transformou numa recessão que se pro-longa até hoje, no ano 2000.

A redução das taxas de juros de curto prazo prati-camente a zero não foi suficiente para retirar o paísda recessão. O consumo e os investimentos não res-ponderam como se esperava: continuaram apáticos.E, como já vimos anteriormente, os banqueiros japo-neses, com capitais ociosos, lançaram-se a financiar osdéficits em transações correntes das jaguatiricas asiá-ticas, com os desastrosos resultados conhecidos.

As políticas de investimentos públicos ensaiadas de-pois da crise asiática de 1997 trouxeram apenas umaligeira recuperação espasmódica, isto é, um pequenocrescimento durante dois trimestres em 1999.

Mas esses investimentos a fundo perdido não che-garam a ser o motor de arranque que coloca em mo-vimento o grande motor do investimento privado.

É como se o carro fosse ligado engrenado e desseaquele pequeno salto brusco para a frente, mas o motormorresse logo depois.

Os economistas chamam essa situação de “armadi-lha da liquidez”, isto é, mesmo que as taxas de jurosse aproximem de zero (ao ano, pessoal!), o públicocontinua preferindo a liquidez do dinheiro em vez deutilizá-lo no consumo ou no investimento.

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Diante desse quadro desalentador, alguns economis-tas apregoam que a única saída é provocar uma in-flação para que o público gaste o dinheiro, no consumoou no investimento, com medo de que ele se desva-lorize. Se essa medida extrema não der certo, a únicacoisa que resta é pedir ao paciente que diga “trinta etrês”...

Enquanto a economia japonesa não dá sinais de re-cuperação, o fluxo de dekasseguis brasileiros para oJapão diminuiu e muitos que foram para lá na épocadas vacas gordas estão voltando, cansados, doentes edesiludidos.

Nos Estados Unidos acontece o fenômeno contrário.Depois da forte baixa da Bolsa de Valores de NovaYork em 1987, quando a queda num só pregão foicomparável à ocorrida na quinta-feira negra de 24 deoutubro de 1929, muitos achavam que os anos 90 se-riam muito difíceis para a economia norte-americana.

Em 1989, um autor chamado Ravi Batra escreveuum livro que se transformou num campeão de vendasnos Estados Unidos, vaticinando uma grande depres-são naquele país durante os anos 90.

O equívoco só perde para aquele de um proprietáriode gravadora que teria recusado as músicas dos Beatlesafirmando que o conjunto era desafinado e não tinhanenhum futuro comercial.

O fato é que a economia norte-americana vem cres-cendo continuamente há quase dez anos, reduzindo

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o desemprego, expandindo o consumo, atraindo so-mas crescentes de investimentos (internos e externos)e batendo recordes nos índices das Bolsas de Valores.

A Bolsa de Valores de Nova York transformou-seno templo de adoração da expansão da riqueza, equando o índice Dow Jones ultrapassa marcas místicascomo os 10 mil pontos, chama mais a atenção do quenoite de estréia de peça de sucesso na Broadway.

As comparações com a época de prosperidade queantecedeu a crise de 29, preocupantes no início, co-meçaram a ser neutralizadas depois que inúmeros va-ticínios prevendo o início da crise “para segunda-feira”foram derrubados pelos fatos na terça.

Para adicionar maior otimismo ainda, nem as ele-vações das taxas de juros pela Reserva Federal (o Ban-co Central dos EUA), anunciadas e efetuadas por seupresidente, o poderoso e cauteloso Alan Greenspan,têm causado o efeito esperado. Depois de um momen-to de vacilação, consumo e investimento continuarama pleno vapor, como se nada tivesse acontecido.

Inclusive o chamado “efeito Greenspan”, isto é, aqueda nas cotações das ações nas Bolsas logo depoisde um discurso do defensor da moeda avisando sobreuma provável elevação das taxas de juros básicas nosEstados Unidos (a chamada prime rate), já deixou deser um “efeito”. As Bolsas de Valores tornaram-se apa-rentemente indiferentes: depois de uma pequena que-da, como se fosse uma reverência ao dr. Greenspan,

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o frenesi retoma seu lugar e o índice Dow Jones pros-segue em níveis elevados, embora tenha caído abaixoda marca mística dos 10 mil pontos em fevereiro de2000.

O próprio Greenspan tem insistido que grande partedesse crescimento deve-se a um notável ganho de pro-dutividade que se espalhou por toda a economia nor-te-americana durante os anos 90.

De fato, um aumento contínuo de produtividade,isto é, cada trabalhador produzindo em média cadavez mais, pode resultar numa demanda moderada demão-de-obra mesmo nos momentos de prosperidade.

Em outras palavras, a elevação de salários — a gran-de preocupação do dr. Greenspan —, que normalmen-te surge com o crescimento do nível de emprego eanuncia o esgotamento dos fatores de produção, nãose faz sentir com tanta força; o aumento da produti-vidade neutraliza um pouco esse crescimento da de-manda de mão-de-obra. A demanda cresce, mas emproporção menor, retardando os efeitos inflacionáriosde eventuais aumentos salariais.

Mas, se a demanda prosseguir se expandindo, po-derá ocorrer uma elevação de salários que inicie umapressão inflacionária indesejável. Provavelmente o dr.Greenspan atuará com maior severidade alavancandoainda mais os juros, para que a inflação não aumente.

Outro fator favorável aos Estados Unidos é que otérmino da Guerra Fria, com a desagregação da União

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Soviética e a transformação do urso siberiano numpanda que adora bebidas alcoólicas, liberou o governonorte-americano de muitos gastos com o armamentis-mo e a manutenção de tropas. Isso contribuiu tambémpara o equilíbrio orçamentário, feito que os EstadosUnidos não conseguiam havia mais de trinta anos.

As despesas governamentais diminuíram e as recei-tas tributárias aumentaram com o próprio crescimentoeconômico. O déficit público foi zerado, o que forta-leceu bastante a confiança no dólar. Ou melhor, a se-gurança, aliada ao aumento da rentabilidade propor-cionada por uma taxa de juros mais alta, valorizou amoeda norte-americana em relação às demais moedasfortes como o marco, o franco, o iene e a libra esterlina.

Esse fortalecimento do dólar e a intensificação docomércio internacional, com a integração da China ede todo o antigo bloco socialista, vêm propiciando tam-bém aos norte-americanos uma fonte externa de abas-tecimento de matérias-primas e de produtos de con-sumo final a preços baixos aparentemente inesgotável.

Uma clara demonstração disso são os megadéficitscomerciais norte-americanos, que embora ajudem a se-gurar a inflação internamente, talvez constituam umoutro ponto vulnerável de sua fase de expansão.

Mas a economia dos Estados Unidos pode ser com-parada a um tipo de avião que, mesmo lotado de pas-sageiros e bagagens, continua voando muito bem, ape-sar de um dos seus dois motores (o enorme déficit

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comercial) se encontrar em pane. O outro, que estáem boas condições — o déficit público zerado —, ésuficiente para conduzi-lo ao seu destino sem maioresturbulências.

Mas é sempre bom colocar as barbas de molho: noinício de 2000 os jornais brasileiros repercutiam notí-cias vindas dos Estados Unidos sobre os efeitos queum excelente desempenho da economia no final de1999 havia produzido nos mercados financeiros. Amanchete era a seguinte:

“Economia dos EUA cresce 5,8% e abala mercados”

E a notícia trazia a seguinte informação:

“O PIB norte-americano cresceu 5,8% no último tri-mestre de 99 (taxa anual), reforçando os temores deque uma alta inflação obrigue os EUA a elevar os jurosacima do previsto (0,25 ponto percentual). A expansãoda soma das riquezas produzidas nos EUA e a altade 1% no custo do trabalho no país, a maior em seismeses, derrubaram as Bolsas; a de Nova York recuou2,68% e a de São Paulo teve queda de 2,03%. A pro-vável alta dos juros norte-americanos, que será deci-dida na próxima semana (de fato os juros subiram,mas os exatos 0,25% previstos e não mais), afetará oBrasil porque tornará os títulos dos EUA mais atraen-tes para os investidores que hoje aplicam em paísesemergentes”.

Porém, apesar desses temores que de tempos emtempos aparecem nos noticiários prevendo que a festa

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acabou, o fôlego de expansão econômica norte-ame-ricana prossegue.

E talvez tenha sido a boa saúde da economia dosEUA, acompanhada da disciplina da política econô-mica dos onze países que lançaram uma moeda uni-ficada, o euro, criando outra área de estabilidade, queevitou a globalização da crise financeira iniciada naÁsia em 1997.

Apenas as economias periféricas desse sistema e de-bilitadas em função de seus problemas específicos,como a Rússia e o Brasil, foram vitimadas pela epidemia.

Além disso, o crescimento da economia norte-ame-ricana, com sua forte demanda de importações, con-tribuiu para a recuperação daqueles países da Ásiaque necessitavam a todo custo exportar para estimularsuas economias em recessão e precisavam que, do ou-tro lado do balcão, existissem clientes com dinheirona mão e vontade de comprar.

2. A Terrível Armadilha das Dívidas

Creio que já estamos preparados para dirigir nossasatenções outra vez para os fundamentos do desenvol-vimento recente da economia brasileira. Voltemos àquestão das dívidas.

Existem devedores que consideram suas dívidas sa-gradas. Quando devem a alguém, dizem com toda asolenidade: “Que Deus lhe pague!”.

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Embora na vida real algum devedor acuado possaapelar para essa solução mágica, nenhum credor queeu conheça aprecia mais os sons dos cânticos religiososdo que as maravilhosas harmonias do tilintar das moe-das, especialmente das de ouro.

Em outras palavras, os credores não costumam sermisericordiosos com os devedores, embora hoje emdia não arranquem mais pedaços de carne dos faltososno melhor estilo das peças de William Shakespeare.

De qualquer forma, o devedor insolvente sofre outrotipo de castigo. Tratando-se de um país, o respectivogoverno submete sua população a uma série de cons-trangimentos que em geral resultam na queda do cres-cimento econômico, no aumento do desemprego e dapobreza.

Quando um país encontra-se endividado, tanto in-terna como externamente, a adoção de políticas de es-tímulo ao crescimento sofre sérias restrições. Aindamais quando esse endividamento é de curtíssimo pra-zo e as taxas de juros são relativamente elevadas.

O leitor há de estar lembrado do episódio do tanquede álcool que eu poderia pagar em setenta dias. Oumelhor, uma dívida de longo prazo não cria grandespreocupações. Mas se ela tem de ser paga no dia se-guinte, o devedor provavelmente passará a noite emclaro procurando uma maneira de solucionar o pro-blema... ou de dar no pé.

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Para que a dívida seja rolada, ou seja, as datas devencimento empurradas um pouco mais para adiante,os credores exigirão taxas de juros mais elevadas, poisse o devedor não pagou na data combinada passa aser menos confiável.

Além disso, se intrometerão na vida deste último:como a fonte que alimenta uma dívida são os déficits,seja nas contas do governo seja nas contas externas— no Balanço de Pagamentos —, o credor exigiráque esses déficits sejam controlados, reduzidos ouaté eliminados.

Tal ajuste provoca fortes dores no organismo eco-nômico.

Esse mecanismo pode ser melhor entendido se con-siderarmos um exemplo.

Suponhamos um sujeito que tenha uma conta noarmazém da esquina, e todo mês pague a conta cor-retamente, sem problemas. Em determinado mês, noentanto, ele deu uma festa e suas despesas natural-mente aumentaram.

Como seu salário permaneceu o mesmo, na hora depagar a conta ele teve dificuldades e empurrou parteda dívida para o mês seguinte. O dono do armazémfez cara feia, mas, como o freguês tinha sido um bompagador até aquela data, concordou.

Durante o mês seguinte, além das despesas normaisocorreu um outro fato digno de comemoração: o time

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de futebol do nosso amigo foi campeão por antecipa-ção, e ele convidou uma grande “corriola” para assistirà partida final em sua casa, tendo alugado um telãoe detonado várias caixas de cerveja e pacotes de sal-gadinhos obtidos no mesmo fornecedor.

Por incrível que pareça, chamou até o próprio donodo armazém, que cortesmente recusou o convite (paranão criar nenhuma ilusão de que perdoaria parte dadívida). No final do mês, além da dívida anterior, asdespesas correntes tinham sido elevadas e nosso amigooutra vez não conseguiu liquidar a totalidade da conta.

Inclusive deu um cheque do tipo borracha, que foie voltou; o aluguel do telão tinha provocado tambémum rombo nas contas do nosso amigo.

Enfurecido, o dono do armazém se recusou a con-tinuar fornecendo mercadorias enquanto o devedornão acertasse suas contas, e, além disso, passou a co-brar juros sobre a dívida ainda não paga. Como ofornecimento do armazém era indispensável para amanutenção da família, o devedor não teve outra saídasenão tomar dinheiro emprestado para pagar o quedevia.

O problema foi obter o empréstimo. Como nenhumbanco queria fazê-lo e para não cair nas mãos de umagiota, muito a contragosto o nosso amigo aceitou di-nheiro de um cunhado que, além de torcer para umtime rival, impôs por intermédio da irmã (esposa dodevedor) duras condições: que o casal gastasse menos.

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Não apenas estavam proibidas festas, especialmenteas relacionadas com vitórias no futebol, como qualqueroutra comemoração, por exemplo do tipo aniversáriodos filhos. E quanto a estes últimos, nada de sorvetes,iogurtes e outras guloseimas.

Se o infeliz seguir essa receita de ajuste, de fato gas-tará menos a cada mês e poderá pagar a dívida dentrode algum tempo. Mas as desavenças domésticas virãocom certeza, pois vai ser difícil agüentar um regimetão duro.

Nosso infeliz herói poderá permanecer nesse regimede “ajuste” durante muito tempo só para pagar osjuros da dívida.

É a pior situação possível. O chefe da família impõeum regime draconiano aos seus em nome do paga-mento de uma dívida que em lugar de diminuir au-menta, por causa dos juros incidentes sobre ela.

É só mudar o nome dos personagens para que en-tendamos o que aconteceu com a economia brasileira,sobretudo depois do empréstimo pactuado com o FMIno final de 1998 e da megadesvalorização cambial dejaneiro de 1999.

3. A Dívida Interna e Seu Acompanhante Inseparável: oDéficit Público

Quem está com a casa pegando fogo não se importacom a qualidade da água que está lançando para apa-

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gá-lo. Se alguém, no meio da ação, disser que se tratade água contaminada e que vai arruinar as manguei-ras, o dono da casa em chamas dificilmente o escutará,mesmo que registre o fato. O problema urgente é apa-gar o fogo. O resto se resolve depois.

Foi isso mais ou menos o que aconteceu nos pri-meiros anos posteriores ao Plano Real, em 1994. Eranecessário atrair dólares sem perguntar sobre sua pro-cedência e intenções. Sobretudo depois da crise do Mé-xico no final de 1994, cujas repercussões chegaram aoBrasil no início de 1995: temerosos de que ocorresseuma crise também aqui, os investidores financeiroscomeçaram a sair em desabalada carreira.

Foi necessária uma brusca elevação das taxas de ju-ros, isto é, a garantia de um belo aumento da remu-neração para que esse dinheiro permanecesse, refor-çando nossas reservas, e até atraísse mais uma ondade novas aplicações.

Aliás, o ano de 1994 foi atípico, pois teve dois se-mestres completamente diferentes: no primeiro, a in-flação ainda se expandia com rapidez, e no segundojá havia estabilidade de preços.

A valorização do câmbio, isto é, o dólar barato, sóinverteu a situação de superávit para déficit na balançacomercial nos últimos meses do ano, de tal forma queainda tivemos, nos doze meses de 1994, um superávitcomercial de mais de US$ 10 bilhões.

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Somados aos dólares que entravam pela conta decapital, foram mais do que suficientes para cobrir odéficit de serviços mais as amortizações, e o resultadofinal foi superavitário! Isto é, o Balanço de Pagamentosfechou com um saldo positivo que serviu para engor-dar as reservas.

As contas do governo também estiveram em lua-de-mel com o superávit. O ano do lançamento do Pla-no Real — 1994 — foi um dos únicos da década emque em vez de déficit nominal tivemos superávit, istoé, as receitas superaram todas as despesas, inclusiveas realizadas com os juros. O outro ano de superávitfoi 1990, por ocasião do lançamento do Plano Collor.

Essa verdadeira mágica numa economia que atra-vessava tantas penúrias deveu-se a expedientes quegeralmente só podem ser aplicados de tempos em tem-pos, isto é, não podem ser repetidos todos os anos.São expedientes do tipo ounce and for all, que significa“de uma vez por todas” ou “onça e forró!”, como sediz no Nordeste.

No caso do Plano Collor, o que aconteceu foi umviolento bloqueio, durante dezoito meses, das aplica-ções financeiras, inclusive contas correntes, e sua de-volução posterior em doze parcelas sucessivas.

No fundo, o que o governo estava conseguindo eraalongar o perfil de sua dívida à força, pois essas apli-cações eram em geral em títulos da dívida pública decurtíssimo prazo. Durante um ano e meio o governo

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não se preocupou com o pagamento dos juros e coma rolagem da própria dívida.

É claro que fez isso sem consultar os credores, queaté hoje rangem os dentes quando ouvem o nome daex-ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, serpronunciado. Mas talvez ninguém se lembre da frasedo próprio Collor, “que deixaria a esquerda perplexae a direita indignada...”.

Além disso, lançou um congelamento de preços quesegurou a inflação por algum tempo. Aliás, a falta dedinheiro vivo — pois as contas correntes também fo-ram bloqueadas — era tamanha, ou melhor, a liquidezera tão baixa que os preços caíram por falta de con-sumidores com dinheiro vivo na mão.

Inclusive a taxa de câmbio ficou bem-comportadapor uns tempos, pois não havia cruzeiros — denomi-nação da unidade monetária brasileira na época —para trocar pelos dólares.

Uma cena pitoresca aconteceu com a corrida do cir-cuito da Fórmula 1, que havia sido transferida de Ja-carepaguá, no Rio, para o Autódromo de Interlagos,em São Paulo, em março de 1990, alguns dias depoisdo lançamento do Plano Collor.

Todos os estrangeiros que haviam chegado antespara instalar o circo, e estavam acostumados a trocarseus dólares no câmbio negro por montanhas crescen-tes de dinheiro nacional, viram-se numa situação di-

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fícil: ninguém tinha moeda local para trocar pelosdólares.

O resultado foi que mecânicos indignados chegarama ter de pagar US$ 10,00 por um reles sanduíche detilápia, e US$ 5,00 por uma água mineral do tipo “Bil-lings”, o dobro do valor de uma Perrier.

Além da redução dos encargos financeiros com umendividamento interno bloqueado, o governo teve ou-tra oportunidade de aumentar suas receitas não tri-butárias. Essa ampliação aconteceu por meio de ummecanismo que já explicamos anteriormente, chamadosenhoriagem. Ou melhor, mediante a oportunidade deemitir moeda e utilizá-la para pagar contas e... semcausar inflação.

Como isso é possível?

A própria inflação, quando cessa bruscamente, ofe-rece essa oportunidade. O truque está relacionado comuma coisa denominada “velocidade de circulação damoeda”.

Quando um governo emite e lança moeda em circu-lação, obtém um ganho correspondente à diferença entreo custo de produção e o valor de face da moeda. NoBrasil, como já vimos anteriormente, à exceção da moedade um centavo, essa diferença é positiva em todas asdemais, sejam moedas ou notas. É máxima na nota deR$ 100,00, cujo custo de produção é de aproximada-mente 10 centavos. O ganho nesse caso é extraordinário:

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R$ 99,90. O governo paga uma conta de R$ 100,00desembolsando apenas 10 centavos. Que maravilha!

Mas nós sabemos que se fizer isso repetidamenteamplia a quantidade de moeda em circulação e o re-sultado inevitável é a elevação geral de preços, fenô-meno também conhecido como inflação.

Quando esta última atinge níveis muito altos, ouquando uma inflação maneira transforma-se numa in-flação galopante, as pessoas procuram se livrar o maisrapidamente possível do dinheiro que se desvaloriza,aplicando-o ou realizando todas as compras necessá-rias antes que os preços subam mais ainda.

Na medida em que todos se comportam assim, avelocidade de circulação da moeda aumenta, e cadanota é utilizada para fazer um número de operaçõesmuito maior do que nos momentos de estabilidadede preços. Nesse caso, é como se houvesse mais moedaem circulação, pois cada uma de suas unidades trocade mãos ou gira um número de vezes maior do queantes.

Por intermédio de uma imagem isso pode ficar maisclaro.

Suponhamos que dez ônibus realizem uma viagempor dia transportando cinqüenta passageiros cada um.No total teremos quinhentos passageiros transporta-dos. No entanto, poderíamos obter o mesmo resultadodiminuindo a frota para um ônibus, desde que ele

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fizesse dez viagens durante o dia. O resultado é omesmo, pois aumentamos a velocidade de circulaçãodos ônibus de um para dez.

Com o dinheiro acontece a mesma coisa. Uma quan-tidade de notas pode realizar dez vezes mais transa-ções se sua velocidade de circulação aumentar de umpara dez. Ora, esse aumento de velocidade também éresponsável pelo aumento da própria inflação, e po-demos ter situações nas quais os preços crescem maispelo aumento da velocidade de circulação do dinheirodo que pelo aumento das emissões de novas notas!

É essa a brecha que permite a um governo emitire obter enormes ganhos de senhoriagem para pagarsuas contas. Se a inflação cresce em ritmo aceleradoe o mesmo acontece com a velocidade de circulaçãoda moeda, se houver uma brusca estabilização dospreços — via congelamento, por exemplo —, a veloci-dade com que o dinheiro circula baixará imediatamente.

Se isso acontecer, os preços tenderão a cair drasti-camente, isto é, haverá uma enorme deflação, pois fal-tará dinheiro vivo para realizar as transações. Alémdisso, se os negócios forem paralisados por falta dedinheiro, a economia terá de enfrentar uma senhorarecessão.

É nesse momento que o governo faz a “mágica”.

Abastece a economia com dinheiro vivo, recém-saí-do do forno, isto é, das rotativas da Casa da Moeda,

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ocupando apenas o espaço deixado pela drástica re-dução da velocidade de circulação da moeda. Comessa manobra o governo evita que os preços caiam,por falta de meio circulante para movimentar os negó-cios. Enche o seu cofre de dinheiro sem provocar inflação!

Como essas emissões representam receita para o go-verno, pois desde que saem da Casa da Moeda sãoutilizadas para pagar contas, pode-se evitar um déficit,e até, se outras condições forem satisfeitas, obter umsuperávit, como de fato aconteceu em 1990 e 1994.

Entre um pigarro e outro, ou talvez assustada como que estava dizendo, a ex-ministra da Economia, ZéliaCardoso de Mello, por ocasião do lançamento do PlanoReal, dizia que a meta do governo era sair de umdéficit de 8% do PIB em 1989 para um superávit de2% em 1990.

Ou melhor, o esforço de redução de despesas e au-mento de receitas deveria ser da ordem de extraordi-nários 10% do PIB!

O superávit alcançou 1,5% do PIB em 1990, um pou-co abaixo do previsto.

Embora à custa de uma senhora recessão e de umaarbitrariedade contra os poupadores, esse pilar da es-tabilização foi fincado.

Mas o Plano Collor fracassou. Entre outras coisas,em virtude da ausência de uma âncora cambial, istoé, de reservas que pudessem estabilizar a taxa de câmbio.

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Na época em que o Plano foi lançado nossas reservasnão alcançavam US$ 8 bilhões, quantia que mal dariapara sustentar três meses de importações.

Os investidores estrangeiros se assustaram sobretu-do com o bloqueio das aplicações financeiras, umamedida considerada extemporânea e ameaçadora. Écomo se tivessem cortado o oxigênio desses investi-dores, que amam tanto a rentabilidade quanto a mo-bilidade de seus capitais. Mas não foram só eles.

Fidel Castro, que viera para a solenidade de possedo novo presidente e esticara sua estadia no Brasil,perguntado sobre o Plano, considerou o bloqueio dosativos financeiros e contas correntes uma violência.Nem em Cuba uma medida semelhante havia sido to-mada nos primeiros tempos do governo revolucionário...

Apesar de todos os movimentos de abertura comer-cial, privatizações e desregulamentação do governoCollor, os temores dos investidores estrangeiros sobreo futuro da economia não foram dissipados.

Além disso, o acerto da dívida externa — nos moldesdo Plano Brady — ainda não havia começado: nãoera possível ainda estabilizar a taxa de câmbio, crucialno combate à inflação.

O Plano Collor naufragou, desembocando numaenorme recessão acompanhada da volta da inflação,e isso certamente contribuiu para que o processo deimpeachment tivesse êxito em 1992.

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A partir de 1991, o déficit retornou. Em setembro,a devolução do dinheiro bloqueado dezoito meses an-tes começou a ser feita, o que contribuiu não apenaspara elevar as despesas do governo mas também paraacelerar outra vez a inflação.

Como sabemos, os déficits deságuam no imenso re-servatório denominado dívida interna, e esta começoua crescer também. O problema do endividamento nãohavia sido resolvido; ele simplesmente se agravara.

4. O Plano Real e o Perigo da Hiperinflação

A inflação existente entre julho de 1993 e junho de1994 foi com certeza a maior que o Brasil já teve desdeabril de 1500. Os preços aumentaram mais de 5.000%no período.

Impedir que a inflação galopante se transformassenuma hiperinflação descontrolada, e a crise econômicadesaguasse numa crise política, foi a principal façanhado Plano Real.

O Plano teve esse mérito em função de três condi-ções que ocorreram no período imediatamente ante-rior. Em primeiro lugar, a renegociação da dívida ex-terna nos moldes do Plano Brady se acelerou e foipraticamente concluída antes do seu lançamento.

Em segundo, as reservas brasileiras começaram aaumentar, pois cada avanço conquistado nessa rene-

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gociação abria uma porta por onde os investidoresinternacionais retornavam ao Brasil. Quando o PlanoReal foi lançado, as reservas já superavam US$ 35 bilhões.

Em terceiro, e já como um dispositivo do próprioplano, foi criada a URV (Unidade Real de Valor), cujamissão principal foi dar visibilidade ao que se poderiachamar de alinhamento de preços, e preparar o terrenopara o lançamento ulterior do real.

Essa moeda de transição utilizada só para efeitosde cálculo, pois não tinha uma existência material —em papel ou metal (o governo não emitia URVs) —,serviu para que os preços, que cresciam alucinada-mente em cruzeiros reais, permanecessem estáveis emURVs.

Quando as pessoas já estivessem acostumadas coma operação de ambas, bastaria ficar com a unidadeestável chamando-a de real, e abandonando a que sedesvalorizava, para que a transição se completasse.

A concepção que levou à adoção da URV é que ainflação acelerada no Brasil tinha uma forte compo-nente “inercial”. Ou melhor, que a inflação de hoje édecorrente da de ontem, e determinará a de amanhã.A inflação se acelera porque todos os agentes econô-micos repassam para seus preços os aumentos quesofreram no momento anterior, de tal maneira quetodos os preços vão sendo remarcados ou indexados.

Se os preços estiverem alinhados ou reajustados nasmesmas proporções e ao mesmo tempo, e se em de-

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terminado momento esse processo for interrompido,as posições relativas serão mantidas.

Em seguida, com pequenos ajustes — de preços quenão puderam ser convenientemente alinhados antes— alcança-se uma relativa estabilidade.

Nos antigos parques de diversões existia um brin-quedo muito perigoso chamado carrossel, constituídode uma roda de onde pendiam umas correntes combarras de ferro na ponta para que as pessoas se agar-rassem. A idéia é que todas ao mesmo tempo come-çassem a correr e ganhar velocidade até que estivessemgirando no ar impulsionadas pela força centrífuga. En-quanto durava até que era gostoso.

O problema era o momento de terminar a brinca-deira. Todos tinham de largar as barras de ferro aomesmo tempo, ou então irem desacelerando aos pou-cos até que a roda parasse. Se alguém largasse pre-maturamente, a barra de ferro solta poderia atingirquem ainda estivesse na “linha de fogo”.

Nos planos de estabilização anteriores, como foi ocaso do Plano Cruzado e do Plano Collor, o conge-lamento havia ocorrido de forma abrupta, não dandotempo nem permitindo adaptação para o alinhamen-to gradual de preços. Muitos preços foram congela-dos no contrapé. Os participantes da brincadeira docarrossel não foram avisados de que a roda iria parar:alguns soltaram as barras de ferro no tempo devido,mas outros ainda permaneceram girando e foramatingidos.

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Os congelamentos atuaram como uma camisa-de-força dentro da qual os preços comprimidos ficaramesperando a primeira oportunidade para escapar oupara se vingar.

Com a adoção da URV antes do lançamento do Pla-no Real, esse problema foi superado, pois a economiateve cerca de quatro meses para se adaptar. É comose o carrossel fosse desacelerando até parar. A URVtornou-se a principal unidade de conta do sistema eco-nômico, e quando de sua transformação em reais (2.750cruzeiros reais = 1 URV = 1 real), a medida foi assi-milada naturalmente, e o mais importante, sem a ne-cessidade de congelamento de preços.

A grande ameaça eram as oscilações que poderiamvir da taxa de câmbio. Se isso ocorresse, a vida pacataque os preços internos estavam levando poderia sofrerfortes perturbações.

Quando o Plano Real foi lançado, a taxa de câmbiofoi fixada inicialmente em US$ 1,00 = R$ 1,00. Mas aenxurrada de dólares aumentando bastante a ofertada moeda norte-americana provocou um efeito curio-so: o real se valorizou consideravelmente, chegandoa ser cotado em inacreditáveis 85 centavos para cadadólar. A moeda norte-americana tornou-se muito ba-rata, abrindo a temporada de caça às importações.

A outra face dessa medalha foram os aumentos dasreservas (desaguadouro dessa enxurrada de dólares),que atuavam como verdadeira âncora da estabilidade

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de preços, pois permitia que a taxa de câmbio perma-necesse até valorizada.

Além disso, as safras agrícolas muito boas, especial-mente de grãos, também contribuíram para a estabi-lidade de preços. A oferta adequada de alimentos per-mitia que não ocorressem manobras especulativas deelevação de preços que molestassem o custo de vida.

Se meu vizinho aparecesse outra vez em busca doseu gato, talvez me fizesse uma pergunta cheia delógica: se as coisas iam tão bem, por que terminaramna crise de 1999? Por que o desemprego aumentou, amiséria apareceu com mais força e os preços, que es-tavam tão bem comportados, deram uma desagradá-vel pirueta em 1999?

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CAPÍTULO 10

O FUTURO DE UM PRESENTEMAL PASSADO

1. Por Que Deu no Que Deu?

O leitor deve estar lembrado, se teve a paciência dechegar até aqui, começando do começo, de que o pontode partida do nosso relato foram duas manchetes dejornal que prenunciavam a crise. Ambas relacionadascom déficits e dívidas.

O déficit em transações correntes — mostrando queo setor externo apresentava grande desequilíbrio — ea elevação dos juros, provocando um inchaço na dí-vida interna e causando déficits públicos crescentes.

Inicialmente, no entanto, esses dois problemas aindanão haviam surgido na linha do horizonte. Ao con-trário, quem olhasse os fundamentos da economia bra-sileira em 1994 como quem admira uma fotografia sóteria razões para se acalmar.

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No front externo as coisas marchavam bem. Já vimosque em 1994 o déficit em transações correntes do Ba-lanço de Pagamentos havia alcançado apenas US$ 1,6bilhão. Mesmo considerando as amortizações, o resul-tado final foi superavitário: o crescimento dos emprés-timos e financiamentos, dos investimentos diretos edos capitais de curto prazo permitiram que o governoengrossasse ainda mais as reservas.

No front interno, embora sem apelar para o conge-lamento, os preços se estabilizaram a partir de julhode 1994. O governo aplicou a mesma mágica dos ga-nhos de senhoriagem já esclarecida quando comenta-mos o Plano Collor de 1990, pois a velocidade de cir-culação da moeda caiu até mais violentamente, umavez que a inflação havia ultrapassado os 50% ao mês.

A emissão de moeda, no vazio deixado pela quedada velocidade de circulação, chegou a alcançar cercade 1,5% do PIB!

É como se o governo tivesse arrecadado R$ 14 bi-lhões em cerca de seis meses, sem criar impactos in-flacionários ou recessivos na economia.

Esse ganho de senhoriagem permitiu que o governoanunciasse um superávit nominal de cerca de 0,5%do PIB em 1994. É claro que outras coisas contribuíramtambém para um resultado tão promissor: como sem-pre acontece na passagem de um governo para outro,muitas despesas de um ano são empurradas para oseguinte.

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São os chamados “restos a pagar”, que às vezes re-presentam somas vultosas, as quais, se fossem com-putadas devidamente, talvez os resultados finaisfossem diferentes.

Se alguém tirasse uma segunda fotografia no come-ço de 1995 diria que as coisas haviam sido definitiva-mente acertadas no Brasil, embora uma olhada maisatenta com certeza vislumbraria a silhueta do Man-drake por trás desses números.

Mas lembra-se dos russos? Daquela frase “tudo seriatão bom se não fosse tão ruim...”? Pois então, o pro-blema é que havia um enorme ponto fraco em todaessa política de estabilização.

Embora os estrategistas digam que sempre é bomdeixar um ponto fraco, pois pelo menos se sabe poronde o inimigo vai atacar, em políticas de estabilizaçãoisso não tem cabimento. Na maioria dos casos esseponto vai se tornando cada vez mais frágil. Acabaenfraquecendo outros e por fim compromete toda aestratégia de defesa.

Qual era o ponto fraco?

O problema se resumia no seguinte: era imperiosoque o governo atraísse investimentos externos, seja parao setor produtivo seja para o especulativo-financeiro.

Tornara-se indispensável não apenas cobrir os dé-ficits em transações correntes, como obter um saldo

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positivo para reforçar as reservas. A taxa de juros,principal atrativo dos investimentos financeiros exter-nos, não poderia portanto ser fixada em níveis baixosmesmo que isso comprometesse o dinamismo da de-manda e o crescimento econômico.

Em outras palavras, aos olhos dos investidores aindaéramos vistos como um cabaré colombiano. A taxa dejuros deveria ser “compensadora”. Ou pelo menos adiferença entre a taxa de juros no Brasil e aquela pagapara quem estava “dançando com a irmã”, isto é, apli-cando nos títulos do Tesouro norte-americano, deveriaser suficientemente grande para compensar o risco quea economia brasileira representava.

Os problemas não terminavam aí, pois uma vez queentrassem em território nacional, esses dólares deve-riam ser trocados por reais. Só então poderiam seraplicados no mercado financeiro.

Ora, como já vimos, o governo estava atrás dessesdólares para fortalecer suas reservas. Para consegui-losdeveria entregar a seus possuidores os respectivosreais, que voltariam ao poder do governo, pois boaparte era aplicada na aquisição de títulos da própriadívida interna.

Ocorria então uma transferência interessante: o go-verno aumentava suas reservas em dólares, mas emcompensação sua dívida interna ia crescendo, pois nofundo esses dólares transformados em reais estavamaplicados nos títulos dessa mesma dívida.

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A estabilidade da taxa de câmbio, indispensávelpara a estabilidade de preços, passava então a depen-der do estoque de reservas, que por sua vez provocavao aumento da dívida interna, que ia se expandindo,pois as taxas de juros eram elevadas para atrair osinvestimentos estrangeiros, que alimentavam as reser-vas, e assim por diante... Uma ciranda infernal.

Essa dependência da entrada de capitais estrangei-ros aumentou a partir de 1995 por duas razões:

a) como a taxa de câmbio tornou-se valorizada (odólar barato), o superávit da balança comercial de US$10 bilhões em 1994 desapareceu em 1995, dando lugara um déficit de mais de US$ 3 bilhões. E em 1995 odéficit em transações correntes saltou de US$ 1,6 bilhãopara US$ 18 bilhões!

b) a crise do final de 1994 no México tornara o Brasiluma área de maior risco, e muitos investidores trans-feriram suas aplicações para outros mercados.

Portanto, nossa dependência da entrada de capitaisexternos (quaisquer que fossem) para fechar esse rom-bo aumentara. Se não viessem, teríamos de lançar mãode nossas reservas para fazê-lo, e se estas diminuíssemmuito, a taxa cambial não poderia ser mantida e adeusestabilidade de preços. O Plano Real morreria logodepois de ter nascido.

Para agravar ainda mais a situação, os déficits nabalança comercial foram crescendo durante os anos

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seguintes, o mesmo sucedendo com o déficit em tran-sações correntes, como pode ser observado no quadroabaixo:

É fácil observar como o déficit em transações cor-rentes disparou entre 1994 e 1997. Neste último anoalcançou mais de US$ 33 bilhões ou cerca de 4,2% doPIB.

O leitor deve estar lembrado de que iniciamos apresente tradução do economês com aquela notícia denovembro de 1998, alertando que o déficit em transa-ções correntes havia alcançado 4,4% do PIB. Isto é,havia crescido em relação a 1997.

Embora o crescimento tivesse sido pequeno, o preo-cupante era que contrariava as previsões e promessasdo governo de que ele seria reduzido para 3,0% doPIB. Em síntese, além de grande, o déficit estava emrota ascendente, e o governo passava um sintomáticorecibo: não tinha controle sobre ele.

Quadro 18

1994 1995 1996 1997

Transações Correntes –1,6 –17,9 –24,3 –33,4

Transações Correntes(% do PIB)

0,27 2,48 3,10 4,2

Balança Comercial 10,4 –3,1 –5,5 –8,7

Fonte: Banco Central do Brasil; valores em bilhões de dólares.

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Em outras palavras, apesar de promover pequenasdesvalorizações do real depois da crise asiática em1997, tentando estimular as exportações e frear umpouco as importações, a ligeira queda do déficit co-mercial em 1998 não foi suficiente para reverter a ten-dência ascendente do déficit em transações correntes.

Para atrair os capitais externos e impedir que aque-les já aplicados aqui se mandassem, as taxas de jurosforam elevadas bruscamente em dois períodos: entreoutubro e novembro de 1997 as taxas saltaram de 19,75para 39,75%; e em outubro do ano seguinte se eleva-ram primeiro de 19,50 para 29,75%, e em seguida paraos estratosféricos 49,75%.

No primeiro momento o governo elevou as taxaspara defender-se contra o ataque especulativo origi-nado na crise asiática, e um ano depois em decorrênciade um ataque semelhante cuja raiz foi a crise russa.

As taxas de juros chegaram a situar-se próximas dos50% ao ano no final de 1998, e mesmo assim isso nãofoi capaz de impedir a fuga maciça de capitais, o quetornou inescapável a megadesvalorização do real emjaneiro de 1999.

Mas a elevação dessas taxas de juros provocava umaverdadeira explosão na dívida interna. Imagine umataxa de 50% ao ano mesmo vigorando apenas algunsmeses, incidindo sobre uma dívida interna de R$ 400bilhões.

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Supondo que na média essa taxa fosse de 25%durante todo o ano, a conta juros devoraria cerca deR$ 100 bilhões, e seria muito difícil evitar um monu-mental déficit público.

Embora o governo tivesse cortado despesas que dei-xaram ao relento setores como a saúde, a educação eos transportes, e aumentado receitas por meio de maise maiores impostos, obtendo um superávit primáriode cerca de R$ 31 bilhões, este foi literalmente engolidopela estratosférica despesa de R$ 127 bilhões com juros.

Ou seja, o superávit primário foi devorado com cas-ca e tudo, e não aplacou a fome da taxa de juros: oresultado operacional ou nominal das contas públicasfoi um déficit de R$ 96 bilhões (127 – 31 = 96), o quesignifica cerca de 10% do PIB!

A grande vilã, a dívida interna, já vinha crescendotambém por outras razões. Nós já assinalamos quemuitas despesas de 1994 foram “empurradas” para1995 nos restos a pagar. Além disso, e embora o go-verno tivesse obtido ganhos expressivos de senhoria-gem logo depois de lançado o Plano Real, compen-sando o que deixou de ganhar com o “imposto infla-cionário”, o mesmo não aconteceu com os bancos, quetambém ficavam com uma fatia desse imposto.

O princípio básico, como já vimos, é: quem emitemoeda ou ganha a senhoriagem ou arrecada o impostoinflacionário. Ora, os bancos também emitem umamoeda denominada escritural, que não significa outra

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coisa que o crédito que fornecem à praça. Nesse sen-tido, os bancos também arrecadam parte desse impos-to inflacionário.

Na época de inflação galopante, os maiores ganhosdos bancos tinham essa origem. Esses ganhos eramtão grandes que os bancos não cobravam pelos servi-ços que prestavam a seus clientes, como o fornecimen-to de talões de cheques, consultas de saldos, envio dedinheiro etc. O que importava era ter mais clientespara ampliar a capacidade de emitir crédito e arreca-dar o imposto inflacionário.

Os bancos chegaram a instalar um amplo, sofistica-do e caro sistema informatizado, tecnologia indispen-sável para usufruir ganhos cada vez maiores numaconjuntura de forte inflação.

Com a brusca interrupção do processo inflacionário,esses ganhos desapareceram. A quebradeira de bancosque não conseguiam sobreviver sem tais ganhos co-locou em xeque a estabilidade do sistema financeiro.Bancos nacionais de pequeno e médio porte que iammal das pernas foram comprados por poderosas or-ganizações financeiras internacionais.

Mas os primeiros que realmente “quebraram” foramaqueles controlados pela União: o Banco do Brasil ea Caixa Econômica Federal. Sem o imposto inflacio-nário, essas entidades mostraram toda a fragilidadede suas carteiras, ou, como preferem chamar alguns,a quantidade de créditos podres que possuíam.

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Ao acabar com a inflação, o governo ganhou porum lado mas perdeu por outro. Foi obrigado a salvarsuas próprias entidades financeiras e o sistema comoum todo na medida em que essas operações de socorrose estenderam também ao setor privado. Boa partedos recursos necessários foi obtida graças ao cresci-mento da dívida interna.

Com os juros crescentes que incidiam sobre ela, aampliação do déficit público foi então inevitável. Deum superávit “mandrake” em 1994, passamos para asituação oposta: déficits sucessivos e crescentes a partirde 1995, como mostra o quadro abaixo:

O problema do déficit público foi não apenas a suamagnitude, mas a sua trajetória crescente a partir de1996.

O déficit público teve também uma outra força pro-pulsora representada pela Previdência Social. A co-bertura do seu déficit também contribuiu bastante paraa expansão do desequilíbrio entre receitas e despesas.E esse desequilíbrio em parte também deveu-se a fe-nômenos que ocorreram bem antes e cujas conseqüên-cias se fizeram sentir alguns anos depois. Como numaluta de boxe na qual um dos lutadores recebe um golpe

Quadro 19

1994 1995 1996 1997 1998

Saldo das Contas doGoverno (% do PIB) +1,5 –4,8 –3,7 –4,3 –7,5

Fonte: Banco Central do Brasil

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no primeiro assalto e apenas sentirá seus efeitos de-vastadores no quarto ou quinto.

A partir de 1997, o sistema se desequilibrou: os be-nefícios pagos pela Previdência no setor privado su-peraram as contribuições. Na verdade, a partir de 1994,receitas e despesas haviam emparelhado, mas a partirde 1997 a diferença tornou-se crescente. Qual a razãodesse desequilíbrio?

Uma das causas, e talvez a principal, apontadas porespecialistas é que o nível de emprego aumentou mui-to durante os anos 70, o mesmo acontecendo com ascontribuições previdenciárias. O sistema funcionavacom boa margem, isto é, as contribuições superavamos benefícios, e com essa diferença era possível finan-ciar parte do sistema de aposentadorias dos servidorespúblicos, este estruturalmente deficitário.

No entanto, o aumento do desemprego e o encolhi-mento relativo do setor formal da economia duranteos anos 90 fizeram com que as contribuições come-çassem a diminuir exatamente no momento em queamadureciam as aposentadorias daqueles que haviamingressado no sistema formal três décadas antes.

Além disso, como a expectativa de vida aumentouno Brasil, a permanência dos aposentados no sistemarecebendo seus benefícios também se prolongou. Aesperança de vida ao nascer aumentou de um patamarde 54 anos em 1950 para 66 anos em 1991, ou seja,uma expansão de doze anos, ou 22% num período dequarenta anos.

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A crise se acentuou com o dispositivo da Constitui-ção de 1988 concedendo a todos os servidores públicos,mediante o chamado regime jurídico único, aposen-tadoria com o salário integral mesmo que as contri-buições fossem insuficientes para custear tal benefício.

A cobertura do rombo da Previdência tornou-se umdos impactos mais importantes nas contas do governo,e, em conjunto com os juros, talvez seja o principalresponsável pelos déficits públicos a partir da segundametade dos anos 90.

Os números são eloqüentes:

Quadro 20

1997 1998 1999

Regime Geral INSS(setor privado)Contribuições

44 45 47

Benefícios 46 53 59

Déficit 32 38 12

Servidores PúblicosUnião, Estados e Munic.Contribuições

36 37 38

Benefícios 37 41 42

Déficit 31 34 34

Déficit Global 33 42 46

Fonte: Cálculos feitos a partir de dados do INSS e do OrçamentoFederal. Os dados estão arredondados.

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Embora os dados para 1999 sejam previsões, nãoresta dúvida de que a situação é explosiva porquea diferença entre contribuições e benefícios tende aaumentar.

Todas essas forças somadas exerceram enorme pres-são sobre as contas públicas, e o resultado foram enor-mes déficits, não apenas no setor externo como noâmbito interno.

São os chamados déficits gêmeos. Se apenas um jádá um enorme trabalho para evitar uma crise, imaginedois...

Qualquer analista econômico sabe, e mesmo qual-quer pessoa de bom senso percebe, que uma situaçãocomo essa não pode durar indefinidamente.

É como se as duas colunas que sustentam um edi-fício fossem se enfraquecendo, ao mesmo tempo queseus moradores colocassem mais peso dentro dos apar-tamentos... e o morador da cobertura insistisse emconstruir uma piscina em sua varanda.

Essa situação já havia surgido na linha do horizonteem 1996. Dois anos depois encontrava-se a pino, es-turricando o crânio de todos nós. Os jornais divulga-vam dados e análises que mostravam a economia bra-sileira prisioneira de uma descomunal inconsistência.As duas manchetes com as quais iniciamos este relatosão bons exemplos: se colocadas uma ao lado da outra,mostrariam que não faltava muito para a crise cambial.

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2. O Naufrágio do Wasa: na Suécia Tudo Acabou emSmorgasbord

Em 1626, o rei Gustavo, da Suécia, desejando obtera completa hegemonia militar sobre o mar Báltico,mandou construir os maiores navios de guerra até en-tão lançados ao mar.

Nos estaleiros próximos de Estocolmo iniciou-se afrenética construção do navio de guerra Wasa, comtrês andares de canhões, sendo o terceiro instaladonum nível bem elevado, próximo do convés superiorpara aumentar o alcance de seus tiros. Só de olhar, oWasa metia medo e impunha respeito.

No entanto, como havia sido construído sob ordensdiretas do rei Gustavo, ninguém se atreveu a dizerabertamente — embora corresse à boca pequena —que, por manter muito peso na parte de cima e sermais estreito do que o recomendável, o navio não tinhaestabilidade.

Lançado ao mar numa calma tarde de agosto de1628 para sua viagem inaugural, foi apanhado primei-ro por uma leve brisa, que já o fez balançar bastante,embora as velas não estivessem totalmente enfunadas.Um pouco mais adiante, ao ultrapassar a primeira ilha,foi colhido por um vento mais forte, e começou a adernar.

Estranhamente, não voltou ao prumo, e a água co-meçou a entrar pelas janelas dos canhões situados nosconveses inferiores. O navio afundou diante de mi-

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lhares de pessoas que tinham ido se despedir, levandopara o fundo do porto de Estocolmo todos os seuscanhões e afogando mais de duzentos marinheiros.

Foi um dos maiores naufrágios da história da na-vegação até o desastre do Titanic.

Furioso, o rei Gustavo mandou realizar uma inves-tigação para punir os culpados (uma espécie de CPIda época), mas da mesma forma que num certo paísque todos conhecemos, o caso também terminou empizza, ou melhor, em smorgasbord...

Todos os interrogados afirmaram que haviam seguidoas instruções dos armadores da época, que por sua vezteriam cumprido à risca as ordens do próprio rei.

Ninguém foi decapitado. Houve apenas a interrup-ção dos contratos com os armadores, e a ordem dodia foi tentar resgatar as peças mais valiosas do navio— os canhões —, pois este encontrava-se muito pró-ximo do porto e em águas pouco profundas.

Com o Plano Real aconteceu algo parecido. Aindano final de 1994, a crise do México mostrou a grandevulnerabilidade das linhas de defesa da política eco-nômica brasileira, e muitos comentaristas afirmavamque, se houvesse um vento mais forte, o navio afundaria.

A crise mexicana teria sido como aquela primeirabrisa que balançou o Wasa, pois teve como razão cen-tral os crescentes déficits em transações correntes de

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seu Balanço de Pagamentos, caminho que começavaa ser trilhado pelo Brasil pilotado pelo Plano Real.

No primeiro semestre de 1995, para enfrentar essasbrisas ameaçadoras, o que se fez foi criar um sistemachamado de “bandas cambiais”. A intenção era darmais estabilidade ao navio que começava a balançar.

Dentro dessas bandas, a taxa de câmbio poderia va-riar. O dólar poderia flutuar entre um piso (valor mí-nimo) e um teto (valor máximo) que constituíam ospontos extremos da banda cambial. Se atingisse o valormínimo, o Banco Central entraria comprando dólarespara erguer sua cotação; se atingisse o teto, ele entrariavendendo para fazer sua cotação cair.

A nau balançava, mas voltava sempre ao seu pontode equilíbrio. E ia singrando os mares ao encontro doseu grande destino: a inflação zero. No entanto, haviauma condição para que essa engenhoca funcionasse:o Banco Central deveria dispor de uma quantidadede dólares suficiente para vender no mercado se ataxa permanecesse muito tempo no “teto” da banda.

Mas embora o Banco Central inundasse o mercadocom dólares, vendendo-os a quem quisesse converterseus reais, e a taxa não desgrudasse do teto em direçãoao piso, as coisas se complicavam, pois as reservaspodiam se esvair e alcançar o perigoso ponto que an-tecede o esgotamento. Como de fato aconteceu algumtempo depois, nos primeiros dias de 1999.

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No momento foi uma forma de dar mais flexibili-dade à taxa de câmbio e margem de manobra para aembarcação. Mas, embora o sistema de bandas reajus-tasse pouco a pouco a taxa de câmbio, não resolveuo problema da falta de estímulo aos exportadores.

O governo preferiu estimular estes últimos com me-didas relacionadas com taxas de juros subvencionadaspara seus financiamentos e isenções tributárias via LeiKandir. Esta lei, cuja finalidade era incentivar as ex-portações retirando dos respectivos produtos tributoscomo o ICMS, provocou grande controvérsia desde oseu nascimento em 1996. Isso porque, embora os ex-portadores tenham sido beneficiados, os governos es-taduais sentiram suas finanças afetadas pela queda dearrecadação e buscaram compensações.

O déficit comercial diminuiu um pouco, mas aindapermaneceu num patamar muito elevado. Como me-xidas mais fortes na taxa de câmbio poderiam trazerpressões inflacionárias, e isso era o que o governo maistemia, o problema do déficit em transações correntesficava à espera de um milagre. Que não ocorreu...

3. Um Plano Marcado para Morrer: Réquiem para aÂncora Cambial

Dizia um grande escritor franco-argelino, Albert Ca-mus, que o que a gente mais teme acaba sempre acon-tecendo. Não estou bem certo se ele se referia à morte,mas um colega seu, latino-americano com alma cari-

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benha, Gabriel García Márquez, escreveu uma bela his-tória chamada Crônica de uma Morte Anunciada, na qualos personagens, embora conhecedores do que o futurolhes reserva, marcham estóicos para o trágico destino.No Brasil, a história transformada em filme, Cabra Mar-cado para Morrer, tem um fio condutor parecido.

Na verdade, a inescapável crise cambial brasileiraamadureceu rapidamente entre setembro e outubro de1998, depois do colapso da Rússia. Bastava fazer al-gumas contas simples para perceber que o Brasil, mes-mo alargando a banda cambial, não teria reservas su-ficientes para cobrir seu déficit no Balanço de Paga-mentos, a não ser que recebesse forte ajuda externa.E não era apenas isso.

Além do déficit no setor externo, o que agravouainda mais a situação foi a escalada do déficit público,que se aproximava dos 8% do PIB em 1998.

É certo que dois acontecimentos contribuíram paramelhorar, aos olhos dos credores, a situação brasileira.No plano político-eleitoral e graças à adesão anacrô-nica de um candidato à construção da bomba atômica,que reduziu a soma dos votos dos candidatos de opo-sição, o presidente Fernando Henrique Cardoso con-seguiu ser reeleito por uma estreita margem no pri-meiro turno, garantindo a continuidade da política eco-nômica e afastando a ameaça de vitória da oposição.

Ao mesmo tempo um esforço concentrado, que reu-niu o presidente Clinton, seu então secretário do Te-

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souro, Robert Rubin, o então diretor-geral do FMI, Mi-chel Camdessus, o governo japonês e a União Européia(até Portugal se comprometeu com uma graninha), re-sultou na reunião de US$ 41 bilhões para ajudar oBrasil a se defender da crise.

Embora esses fatos acalmassem um pouco o mer-cado, o enfraquecimento das colunas de sustentaçãodo edifício falou mais alto e as reservas continuaramem queda. Os investidores consideravam que a des-valorização do real era inevitável e queriam sair antesque isso ocorresse.

Foi nesse momento que o governo brasileiro tomouuma decisão desesperada, pois já havia elevado a taxade juros a um patamar máximo de quase 50% ao anoe não dava mais para continuar esticando esta corda:para tranqüilizar o mercado, emitiu títulos da dívidapública com correção cambial. O que significa isso?

Se alguém tivesse investido reais em títulos da dí-vida pública e, temendo uma desvalorização cambial,quisesse transformá-los em dólares e retirar-se do país,ao fazê-lo reduziria as reservas brasileiras, o que po-deria precipitar a crise cambial. O governo, então, ten-tou restaurar a confiança no real para aqueles inves-tidores que permanecessem, mas isso a um custo muitoalto. O governo oferecia uma alternativa: a aplicaçãolevaria em conta não a taxa de juros, mas sim a va-riação cambial.

Dessa forma, se alguém aplicasse R$ 100,00 e estesreais equivalessem a US$ 100,00 (vamos lembrar dos

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velhos tempos quando 1 real = 1 dólar), ou seja, quan-do essa taxa de câmbio fosse na base do 1 x 1, se oreal fosse desvalorizado em 50% e a taxa de câmbiofosse elevada para R$ 1,50 = US$ 1,00, o aplicadorreceberia uma correção de sua aplicação em reais, quepassaria de R$ 100,00 para R$ 150,00. Isto é, ele ga-nharia em poucos dias 50% sobre o investimento feito.

Se a desvalorização fosse de 30%, ele ganharia “ape-nas” 30% sobre o capital investido; e se o governoconseguisse manter a mesma taxa de câmbio, isto é,não desvalorizasse o real, o investidor não ganharianada.

O governo estava na realidade criando um “seguro”contra a eventualidade de uma desvalorização cam-bial. Como as colunas do edifício mostravam grandesrachaduras, muitos fizeram esse seguro, que no jargãofinanceiro denomina-se uma operação de hedge.

O mecanismo é mais ou menos parecido com o docomportamento do torcedor que aposta dinheiro con-tra o seu time, pois qualquer resultado lhe trará com-pensação: se ganhar, embora perca dinheiro, ficará sa-tisfeito pela vitória; se perder, terá a compensação mo-netária, apesar da tristeza da derrota...

Uma operação de hedge é precisamente uma mano-bra de salvaguarda diante do risco. E mais de R$ 150bilhões haviam migrado para aplicações “hedgeadas”,ou com garantias cambiais, quando, numa bela sexta-feira do início de janeiro de 1999, o governo ajoelhou.

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É claro que quanto mais garantias oferecia aos cre-dores, mais demonstrava que se encontrava debilitado.E depois de oferecer quase 50% de taxas de juros eoperações quase ilimitadas com correção cambial, ve-rificou com desânimo que o mercado não havia seacalmado e que os investidores continuavam saindocom seus dólares. Não havia mais salvação para a taxade câmbio: estava marcada para morrer.

Mas o governo ainda fez uma última tentativa parasalvá-la. Num gesto tão confuso quanto desesperado,decidiu alargar as bandas cambiais de flutuação e tro-car o presidente do Banco Central. Isto é, o teto e opiso da taxa de câmbio, que variavam numa faixa es-treita de uns 2%, passariam a oscilar numa faixa maisampla de 8%.

Ao ser anunciada a nova banda, a taxa de câmbiosaltou imediatamente para o teto e lá ficou grudada,enquanto o mercado entrava em pânico e as saídasde dólares se acentuavam. Para todos os efeitos, o realsofrera uma desvalorização de 8%: saltara de 1,22 para1,32 por dólar.

O então presidente do Banco Central tentava expli-car o conceito de “banda diagonal endógena”, o mer-cado não entendia e os números do paralelo sinaliza-vam uma desvalorização muito maior.

O alargamento das bandas funcionou como se hou-vessem aberto um pouco a porteira de um curral ondea pressão da boiada nervosa já era quase insustentável.

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E para manter a taxa de câmbio dentro da banda, ogoverno gastava suas preciosas reservas em dólares, por-que só havia compradores da moeda norte-americana.

Diante da alternativa de ter suas reservas esgotadasem poucos dias, pois a fuga de capitais se aceleravae a manada ameaçava derrubar todas as cercas, o go-verno resolveu abandonar o sistema de bandas e dei-xar a cotação do dólar flutuar livremente no mercado.

A vantagem do novo sistema era que o governonão necessitava mais intervir no mercado vendendodólares para manter uma determinada cotação. Oumelhor, não perdia reservas.

A desvantagem era que a taxa de câmbio disparavarapidamente rumo à mágica cotação de R$ 2,00 porUS$ 1,00, provocando uma forte elevação de preçosdos produtos importados e deixando todos na expec-tativa de um choque inflacionário.

Ninguém sabia até aonde iria tal disparada, e o climade incerteza provocou estragos em todos os setoresda economia brasileira. O único setor que se beneficioufoi o exportador: a desvalorização cambial restauravaa rentabilidade de muitas empresas cujos clientes eramestrangeiros.

Além disso, a agricultura não recebeu um golpe tãoforte, pois a boa safra de 1999 foi semeada antes dadesvalorização e, portanto, a agricultura acabou sendoduplamente beneficiada: pelas boas safras e pela des-

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valorização cambial, que estimulou a exportação deprodutos agrícolas, embora o preço em dólares destestivesse caído um pouco no mercado internacional.

Se examinarmos o que aconteceu com o PIB brasi-leiro em 1999, veremos que o resultado teria sido real-mente desastroso não fosse o bom desempenho daagricultura. Esta acusou um crescimento de 8,0%, neu-tralizando o resultado negativo da indústria, que re-trocedeu quase 2% e possibilitou um crescimento po-sitivo do PIB de 0,85%, um dos menores de nossa história.

A crise cambial de janeiro de 1999 “matou” o anoem matéria de crescimento econômico. Infelizmente,algumas esperadas “compensações” não ocorreram.Por exemplo, acreditava-se que uma desvalorizaçãocambial tão forte provocasse um intenso crescimentodas exportações e um freio nas importações, resultan-do num megassuperávit comercial de cerca de US$11 bilhões.

Isso não aconteceu. Na medida em que o ano avan-çava, as previsões iam sendo revistas, e em dezembroos números mostravam que, ao contrário, o superávithavia se transformado num déficit de cerca de US$1,5 bilhão.

Mas não resta dúvida de que o déficit em transaçõescorrentes no Balanço de Pagamentos baixou e a ne-cessidade de atrair dólares diminuiu um pouco emfunção dessa queda.

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Na verdade, não apenas houve redução nas impor-tações devido à elevação cambial como também con-tração na compra de determinados serviços, comoaquele tópico que destacamos anteriormente: das via-gens internacionais ou do turismo de classe média.

O dólar, que chegou a estar quase duas vezes maiscaro, afugentou muita gente das viagens ao exteriordurante 1999. Houve um deslocamento para o turismointerno: nos hotéis das cidades litorâneas brasileirasouvia-se mais o português do que o inglês ou o cas-telhano.

Mas talvez o fluxo mais importante tenha sido odos investimentos diretos. Como já assinalamos ante-riormente, os capitais que saíram antes da desvalori-zação voltaram depois com um poder de compra emmédia 50% maior! O equivalente da desvalorizaçãocambial.

Essa violenta entrada de investimentos diretos deuao Balanço de Pagamentos do Brasil uma aparente con-sistência, pois o superávit final, e o conseqüente re-forço das reservas, não se deveu apenas aos voláteiscapitais de curto prazo.

O problema é que a entrada maciça em determinadoano desse tipo de capital dá lugar a uma saída cres-cente de lucros e dividendos nos anos seguintes. Eisso pode contribuir para um crescimento do déficitna conta de serviços e, portanto, das transações cor-rentes nos anos vindouros.

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Já vimos esse filme anteriormente e sabemos quepara não termos novas ameaças à taxa de câmbio, de-veremos obter um expressivo superávit na balança co-mercial. Se não for possível obter tal resultado aumen-tando exportações, as importações deverão ser sacri-ficadas, e isso representa um obstáculo ao crescimentoeconômico. Ou melhor, o crescimento do PIB está as-sociado ao aumento das exportações, mas também re-quer uma expansão das importações.

Além disso, é preciso ter sempre em mente a questãodos preços. Se os preços das importações aumentarem— como tem acontecido nos últimos meses de 1999 eprimeiros de 2000 com o petróleo —, o valor das im-portações pode crescer sem que o volume adquiridoaumente. E também haverá pressões inflacionáriasinternas.

A conta a pagar cresce pelo preço e não pela quan-tidade comprada. Se os preços de nossas exportaçõesaumentassem também, uma mão lavaria a outra.

Ou seja, se a “relação de trocas” permanecesse maisou menos a mesma, a desvantagem nas importaçõesseria anulada por vantagens nas exportações.

Mas é pouco provável que isso aconteça. O maisrealista seria considerar que a “relação de trocas”, ouseja, a relação entre os preços das exportações e dasimportações, piore um pouco, ou na melhor das hi-póteses se mantenha no mesmo patamar.

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É preciso lembrar também que o aumento das ex-portações, especialmente de produtos semimanufatu-rados e manufaturados, depende muito da situaçãode outros países exportadores. Praticamente todo oSudeste e Nordeste asiáticos, o México e a Rússia des-valorizaram suas moedas antes do Brasil.

A desvalorização do real apenas reequilibrou as coi-sas, sem que significasse uma vantagem cambial com-petitiva a ser desfrutada durante algum tempo. Por-tanto, o aumento das exportações dependerá da pro-dutividade alcançada pelos empresários brasileiros emface dos concorrentes.

Nesse ponto existem alguns dados animadores. Par-te considerável da farra das importações que o dólarbarato permitiu a partir de 1994 e que provocou dé-ficits na nossa balança comercial aconteceu em relaçãoa bens de capital.

A participação no valor das importações desses pro-dutos passou de 28 para 32% do total entre 1994 e1998. Em termos absolutos, passamos de US$ 9 bilhõesem 1994 para US$ 20 bilhões em 1998. No acumuladode cinco anos, foram quase US$ 80 bilhões em impor-tações de bens de capital, que permitiram ao setorprodutivo renovar e ampliar sua base tecnológica, au-mentando bastante sua produtividade.

Mas nossos concorrentes também avançaram em ter-mos de produtividade. E embora o custo de nossamão-de-obra se reduzisse mediante a queda nos salá-rios reais provocada pela recessão, a luta pela con-

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quista de mercados externos continuará sendo acirra-da. Não se pode esperar um megassuperávit a partirde 2000, como aconteceu em 1984 depois da maxides-valorização de 1983.

É verdade que o grande temor de que uma mega-desvalorização cambial causaria uma forte onda infla-cionária não se justificou. A inflação foi relativamentepequena, e isso requer uma explicação especial.

Vários fatores contribuíram para que a desvalorizaçãocambial de 1999, talvez a maior de nossa história, nãodesembocasse numa monumental onda inflacionária.

Em primeiro lugar, devemos destacar a safra agrí-cola de 1999, que garantiu uma oferta interna razoa-velmente boa de grãos. Caso fôssemos obrigados aimportar alimentos em grande escala, o impacto nocusto de vida seria bem maior.

Em segundo lugar, a taxa de juros mantida em níveismuito altos durante vários meses e as incertezas sobreo futuro dos negócios deram uma freada brusca noconsumo. A retração da demanda conteve os ímpetosremarcatórios de muitos empresários.

Em terceiro lugar, no momento em que a concor-rência se acirrou no mercado interno, até os mercadoscontrolados por oligopólios vacilaram em aumentarmuito seus preços para evitar perda de clientela.

Em quarto lugar, o governo atuou via Petrobráspara atenuar o repasse da elevação tanto da taxa

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de câmbio como do preço do petróleo em dólares paraos seus derivados, o que diluiu um impacto mais fortena inflação.

Em quinto lugar, os empresários reduziram seuscustos rebaixando salários. Ou melhor, numa conjun-tura recessiva, muitas categorias de trabalhadores con-tiveram suas reivindicações e até aceitaram saláriosmais baixos para manter seus empregos.

A elevação do custo de vida em cerca de 10% foicausada sobretudo pelas produtos vinculados às im-portações, como os remédios, os transportes e os ser-viços de saúde. Aparentemente, todos os aumentosde preços decorrentes da desvalorização cambial em1999 já foram assimilados. A própria taxa de câmbiose estabilizou nos últimos meses em torno de R$ 1,75por dólar.

A safra de grãos deverá aumentar no ano 2000, ese o preço do petróleo cotado em dólares no mercadointernacional não atrapalhar, a inflação medida pelocusto de vida deverá ser menor em 2000 do que foiem 1999.

Mas o crescimento econômico ficará sempre para oano que vem?

4. O Futuro do País do Futuro

Antes de iniciar este último tópico, devo dizer quefinalmente entendi por que o gato da vizinha gosta

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tanto da minha varanda. Pilhei outra vez o simpáticoanimal acompanhado de uma bela gata. Esta pareciaum filhote de jaguatirica, o que me fez lembrar dacrise asiática... O casal tinha uma postura de quemexaminava um apartamento recém-comprado. Esta-vam tão tranqüilos e à vontade que resolvi deixá-losem paz.

Espero que tudo corra bem entre os dois e que semantenham silenciosos como tem acontecido até ago-ra... Meu único temor é o que acontecerá com a pro-vável ninhada, pois há quem diga que o futuro é opresente malpassado.

Se isso estiver correto, nossa situação econômica nãodeverá melhorar muito: em 1999 o desempenho daeconomia brasileira foi um dos piores da década.

Convivemos com uma recessão e tudo o que elatraz de ruim: desemprego, baixos salários, queda naprodução industrial e desagregação social nas cidadese no campo.

Mas levando-se em conta um patamar tão baixo,será muito fácil termos um desempenho melhor setomarmos 1999 como referência. No entanto, mesmopara assegurar um crescimento econômico pequenocomo aquele que está sendo prometido pelo governo— entre 3 e 4% do PIB —, algumas condições têm deser satisfeitas.

Em primeiro lugar, é imperioso que o valor das ex-portações cresça. No momento, esta expansão não de-

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pende mais da desvalorização cambial, pois a que so-fremos em 1999 está de bom tamanho. Creio que ofator fundamental será a continuidade da expansãoeconômica dos Estados Unidos, associada com a re-cuperação do Japão e dos países da União MonetáriaEuropéia. E a própria capacidade competitiva em ter-mos de produtividade de nossos exportadores.

O que poderá atrapalhar?

Em primeiro lugar, se a fase de prosperidade dosEstados Unidos terminar, esse objetivo dificilmenteserá conseguido. Não apenas porque nossas exporta-ções diminuirão para lá, como também porque a Ásiae a Europa, dependentes do mercado norte-americano,reduzirão as importações de nossos produtos. De que-bra, se a Argentina promover algum tipo de desvalo-rização de sua moeda, nossas exportações acusarãomais um golpe.

A elevação dos preços dos produtos que importa-mos, como o petróleo, também poderá interferir comoutro objetivo associado ao aumento das exportações:a obtenção de um grande superávit comercial, parareduzir o déficit em transações correntes e a depen-dência da entrada de capitais, que torna menos ins-tável a taxa de câmbio.

A elevação da taxa de juros nos Estados Unidos,além de desaquecer a economia e por tabela afetarnossas exportações para aquele mercado, terá um efei-to negativo sobre a nossa balança de serviços em fun-

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ção da nossa dívida externa: a conta juros será maiselevada.

Além disso, como a maioria dos investidores tomadecisões em função das diferenças de taxas de jurosnos diversos mercados, se estes se elevarem em ummercado financeiro seguro como é o dos Estados Uni-dos, muitos preferirão investir lá a fazê-lo em áreasde grande risco como é o mercado brasileiro.

Nesse caso teremos que oferecer maiores vantagenspara atrair esses investidores, e uma das mais convin-centes é uma taxa de juros interna mais elevada. Ébom lembrar que, mesmo dependendo menos de re-cursos externos, as reservas não podem cair muito,pois isso colocaria outra vez em perigo a estabilidadedo câmbio. Em outras palavras, a elevação da taxa dejuros nos Estados Unidos retardará a redução da taxade juros no Brasil.

O nível dos juros no mercado interno brasileiro étambém um fator decisivo para a volta do crescimentoeconômico. Como a taxa de câmbio agora é mais fle-xível, isto é, pode flutuar sem que o Banco Centraltenha de intervir perdendo reservas, a pressão exer-cida sobre a taxa de juros é menor.

Em outras palavras, a equipe econômica tem maisliberdade para reduzir a taxa de juros do que tinhaantes da desvalorização cambial. E essa redução serábenéfica para reduzir os custos da própria dívida in-terna. É bom lembrar que em 1999 essa conta se elevou

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a R$ 127 bilhões, provocando não apenas um enormedéficit público, como também o crescimento da própriadívida pública, que ultrapassou os R$ 500 bilhões.

A redução da taxa de juros depende também dainflação interna. Quanto menor for esta última, maio-res serão as condições para reduzir a taxa de juros.

E os indicadores do primeiro bimestre mostram quea inflação será pequena em 2000.

Se as despesas do governo se reduzirem (sem con-siderar os juros) e as receitas aumentarem por contado êxito de reformas como a previdenciária, a admi-nistrativa e a tributária, é possível que o superávitprimário seja alcançado, conforme o prometido na cartade intenções enviada ao Fundo Monetário Internacional.

No entanto, o mais provável é que os avanços sejammuito pequenos nessas questões. E considerando queo governo já esticou a carga tributária ao máximo du-rante os últimos anos, não haverá muita sobra orça-mentária para investimentos públicos.

Todos esses elementos indicam que em 1999 atin-gimos o fundo do poço. Aliás, já vínhamos escorre-gando desde 1998. É provável portanto que haja umacerta recuperação a partir do ano 2000. Mas tudo indicatambém que ela será lenta e modesta, como um aviãoque decola raspando na copa das árvores.

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Encontrei minha vizinha no elevador. Pensei queela fosse fazer algum comentário sobre as bodas dogato. Engano. O filho está se preparando para o ves-tibular e ela me perguntou o que eu achava do cursode economia...

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Dicas

Se você ouvir falar em:

AFTER MARKET. Expressão em inglês que signi-fica, literalmente, “depois do mercado”, consiste nasoperações realizadas pela Bolsa de Valores de São Pau-lo (Bovespa) e as corretoras credenciadas, depois doencerramento do pregão normal (entre 11:00 e 18:00).Os negócios são realizados pela Internet e têm inícioàs 19:00, prosseguindo até as 22:00. Existem restriçõespara a operação no after market: os negócios não podemsuperar os R$ 50 mil por operador e as cotações nãopodem variar mais de 2% para mais ou para menosdaquelas registradas no fechamento do pregão regular.Para os dirigentes da Bolsa de Valores, o também cha-mado Pregão Noturno tem mais o efeito de iniciaçãoou de treinamento do que de uma fórmula que subs-titua o pregão normal.

AGÊNCIAS DE CRÉDITO (RATING). São agên-cias internacionais de avaliação de crédito que depoisde examinar a situação econômica e financeira de paí-ses, empresas, instituições etc. aconselham seus clien-tes a investir ou não nesses mercados, ou avisam sobre

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o risco existente nos investimentos. As empresas deavaliação de risco mais conhecidas são as norte-ame-ricanas Standard & Poor’s e a Moody’s Investors Ser-vice. Ambas rebaixaram os índices do Brasil depoisda crise asiática e da crise russa entre 1997 e 1998.

AGENDA 21. Denominação dada a um documentoassinado entre os governos de 170 países que se reu-niram na Conferência Mundial do Meio Ambiente, rea-lizada no Rio de Janeiro em 1992, com o objetivo depromover o desenvolvimento sustentável no mundoa partir do século XXI. Isso significa que cada um dosseus signatários, dentro dos prazos definidos, adotaráum conjunto de atitudes e procedimentos incorpora-dos às suas políticas visando melhorar a qualidade devida no planeta.

ÁGIO. De origem italiana, este termo foi usado an-tigamente em Veneza para designar a diferença natroca entre moedas depreciadas e o metal do qual eramconstituídas. Essas trocas eram efetuadas pelos bancosde Veneza, de Hamburgo, de Gênova, de Amsterdãe de outras cidades comerciais e financeiras; e essesbancos fixavam o ágio em cada caso. De forma gené-rica, o ágio significa um prêmio resultante da trocade um valor (moedas, ações, títulos etc.) por outro.No comércio internacional de moedas é a diferençaentre o valor nominal e o real da moeda negociada.O ágio pode surgir também quando o preço oficial deum produto (ou preço de tabela) está fixado num nívelmuito baixo e sua compra só se concretiza se o inte-ressado estiver disposto a pagar mais por essa tran-

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sação. A diferença entre o preço oficial e o que o com-prador realmente paga é considerada o ágio daquelatransação. Esse tipo de fenômeno ocorre quando hátabelamento ou congelamento de preços, como acon-teceu durante os planos econômicos de estabilizaçãono Brasil durante os anos 80 — sobretudo durante oPlano Cruzado, em 1986, e no início dos anos 90 como Plano Collor. O ágio pode aparecer nesse contextotambém quando, embora não haja congelamento, exis-te uma forte descompensação entre oferta e demanda,como aconteceu durante os primeiros meses do PlanoReal com a aquisição de automóveis populares. Quan-do em vez de um preço maior paga-se um preço menorpor um título, uma ação ou uma moeda, ocorre um“deságio”.

AJUSTE FISCAL. É a ação de governo voltada paraa criação de mecanismos e políticas que reduzam oueliminem o déficit público. O ajuste fiscal passa ne-cessariamente pelo aumento da receita (em geral peloaumento dos impostos e contribuições) e pela reduçãodas despesas, geralmente cortando recursos das ativi-dades governamentais como saúde, educação, trans-portes, pessoal etc.

BRADIES. São os títulos da dívida externa brasi-leira. Eles foram apelidados de bradies logo após a ade-são do Brasil ao Plano Brady em 1994 e o seu lança-mento no mercado. O Plano Brady foi idealizado porNicholas Brady, ex-secretário do Tesouro dos EUA.Ele conseguiu refinanciar vários países endividadosao propor aos bancos credores que abrissem mão de

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uma parte dos créditos a receber em troca de novostítulos lastreados por papéis do Tesouro dos EUA, con-siderados de risco zero pelo mercado. O Brasil emitiucerca de US$ 50 bilhões de bradies. No mercado inter-nacional da dívida externa brasileira há oito tipos depapéis conhecidos por nomes diferentes e que se di-videm em várias modalidades, sendo o mais conhecidoo C-BOND (Front-Loaded Interest Reduction with Ca-pitalization Bond).

CAPACIDADE OCIOSA. É a diferença existenteentre o volume efetivo da produção e o que seria pos-sível produzir com a capacidade instalada. Se, porexemplo, uma indústria de televisores possui equipa-mentos capazes de produzir mil aparelhos por mês,mas só fabrica oitocentos, sua capacidade ociosa é de20%. O conceito é geralmente aplicado nas atividadesindustriais, mas vale também para outros setores. Nospaíses altamente industrializados, o aumento da ca-pacidade ociosa é sintoma de recessão econômica ede desemprego. Nos países em desenvolvimento re-flete também um planejamento inadequado, um su-perdimensionamento da maquinaria, escassez de ma-térias-primas e estreiteza do mercado, ou ainda a exis-tência de outros tipos de gargalos; pode ainda fazerparte de manobras monopolistas visando aumentosde preços ou a manutenção de preços altos pela con-tração artificial da oferta.

CIMEIRA. Significa uma reunião de cúpula ou domais alto nível entre representantes de governos oude instituições políticas ou econômicas. O termo —

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de uso corrente em Portugal — passou a ser utilizadono Brasil a partir da Cimeira América Latina-Caribe-União Européia, realizada no Rio de Janeiro em junhode 1999, na qual foram discutidas várias questões re-lacionadas com uma maior integração entre o Merco-sul e a União Européia e uma ação conjunta dos 48países representados nessa reunião em face da OMC(Organização Mundial do Comércio).

COMMODITY (COMMODITIES). Em inglês, estetermo significa, literalmente, “mercadoria”. Nas rela-ções comerciais internacionais, o termo designa umtipo particular de mercadoria em estado bruto ou pro-duto primário de importância comercial, como é o casodo petróleo, da carne, do café, do chá, da lã, do algo-dão, da juta, do estanho, do cobre etc. Alguns centrosse notabilizaram como importantes mercados dessesprodutos (commodity exchange). Londres, pela tradiçãocolonial e comercial britânica, é um dos mais antigoscentros de compra e venda de commodities, grande par-te das quais nem sequer passa por seu porto.

CONSENSO DE WASHINGTON. Foi a denomi-nação dada ao conjunto de trabalhos e resultados dereuniões de economistas do FMI (Fundo MonetárioInternacional), do Bird (Banco Internacional para a Re-construção e o Desenvolvimento, também chamadode Banco Mundial) e do Tesouro dos Estados Unidosrealizadas em Washington no início dos anos 90. Des-sas reuniões surgiram recomendações dos países de-senvolvidos para que os demais, sobretudo aquelesem desenvolvimento, adotassem políticas de abertura

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de seus mercados e o Estado Mínimo, isto é, um Estadocom um mínimo de atribuições (privatizando as ati-vidades produtivas) e portanto com um mínimo dedespesas, como forma de solucionar os problemas re-lacionados com a crise fiscal: inflação intensa, déficitsem transações correntes no Balanço de Pagamentos,crescimento econômico insuficiente e distorções na dis-tribuição da renda funcional e regional. O resultadomais importante dessas políticas (pelo menos no quese refere aos países latino-americanos) tem sido o bem-sucedido combate à inflação durante os anos 90. Alémdisso, o livre funcionamento dos mercados, com a eli-minação de regulamentações e intervenções governa-mentais, também tem sido uma das molas mestras des-sas recomendações. Embora os países que seguiramtal receituário tenham tido sucesso no combate à in-flação, no plano social as conseqüências foram desa-lentadoras: um misto de desemprego, recessão e baixossalários revela a outra face dessa moeda. Na medidaem que alguns países como a China, por exemplo,têm combinado inflação baixa com crescimento eco-nômico acelerado, sem haver seguido a cartilha doConsenso de Washington, alguns autores vêm criti-cando ultimamente a rigidez dessas políticas e tentan-do encontrar alternativas de tal forma a combinar umvigoroso combate à inflação com o desenvolvimentoeconômico e social nos países emergentes. Esta últimatendência vem sendo denominada de Pós-Consensode Washington.

CORE INFLATION. Trata-se de uma expressão eminglês que significa “núcleo da inflação” e é utilizada

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quando os índices inflacionários são expurgados depreços de produtos ou serviços de elevada volatilida-de, isto é, que podem sofrer grandes variações devido,por exemplo, a fatores climáticos, como é o caso dasverduras e legumes. A core inflation tende a ser utili-zada quando um governo estabelece metas de inflação(target inflation) e deseja evitar que essas metas sejamultrapassadas por fatores acidentais relacionados comfortes oscilações de determinados preços. Por outrolado, essa forma de apuração da inflação permitiriaantever a inflação — sobretudo o custo de vida — amédio e longo prazo.

CRISE DE INSOLVÊNCIA. É uma situação na qualum país deixa de pagar suas dívidas. Isto é, encon-tra-se impossibilitado de pagar seus compromissos ex-ternos, tais como as amortizações da dívida externa,as remessas dos respectivos juros, os contratos de im-portações etc., por não dispor de moedas fortes (dó-lares, marcos, ienes etc.) para fazê-lo. Dessa maneira,a economia entra em crise, geralmente acompanhadade uma forte desvalorização cambial.

DÉFICIT. Em linguagem corrente, é um excesso dedespesas em relação às receitas. Em linguagem con-tábil, é um excesso de passivo em relação ao ativo,isto é, as despesas e pagamentos são maiores que ofaturamento e o total de crédito. Nas finanças públicas,fala-se em déficit orçamentário quando as despesassão superiores à arrecadação, e em déficit da balançacomercial quando o valor total das importações é su-perior ao total das exportações. Nas contas do governo,

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o déficit pode ser considerado déficit primário quandoinclui todas as receitas e todas as despesas do governomenos os juros, e déficit nominal (ou operacional)quando são incluídas as despesas com juros das dívi-das interna e externa do setor público.

DÉFICIT EM TRANSAÇÕES CORRENTES. Étambém denominado déficit em conta corrente, e cons-titui aquele que ocorre quando a soma das balançascomercial, de serviços e de transferências unilateraisdo Balanço de Pagamentos mostra um resultado ne-gativo, isto é, deficitário. Quando os jornais anunciamum déficit no Balanço de Pagamentos, estão se refe-rindo geralmente ao déficit em transações correntes,e não ao resultado final desse balanço.

DERIVATIVOS. São operações financeiras cujo va-lor de negociação deriva (daí o nome derivativos) deoutros ativos, denominados ativos-objeto, com a fina-lidade de assumir, limitar ou transferir riscos. Abran-gem um amplo leque de operações: a termo, futuros,opções e swaps, tanto de commodities quanto de ativosfinanceiros, como taxas de juros, cotações futuras deíndices etc. A utilização ampliada dos derivativos nomundo todo tem gerado uma preocupação crescentepor parte dos bancos centrais, autoridades monetáriase de supervisão bancária, dada a dificuldade de ava-liação de sua dimensão e suas conseqüências em ter-mos de riscos, na medida em que as atividades finan-ceiras tornam-se cada vez mais globalizadas.

DESCENTRALIZAÇÃO DE RECURSOS E FUN-ÇÕES. Esta expressão está ligada à divisão dos recur-

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sos e funções entre a União, os Estados e os municípios.A Constituição de 1967 foi centralizadora desses re-cursos e funções em favor da União e em detrimentode Estados e municípios, enquanto a de 1988 foi des-centralizadora, isto é, criou dispositivos restaurandoa situação anterior a 1967. Por exemplo, a partir de1988 algumas funções na esfera da educação e da saú-de foram descentralizadas. Ao mesmo tempo algunstributos antes apropriados pela União passaram à es-fera estadual e municipal, como, por exemplo, aquelessobre combustíveis, eletricidade, minérios e telecomu-nicações. A idéia que justificaria a descentralização éque o município ou o Estado administram melhor osrecursos destinados a serviços diretamente associadoscom a vida dos cidadãos, como é o caso da saúde eda educação.

DOW JONES. Denominação de um índice utilizadopara o acompanhamento da evolução dos negócios naBolsa de Valores de Nova York. Seu cálculo é feito apartir de uma média das cotações entre as trinta em-presas industriais de maior importância, as vinte com-panhias ferroviárias mais destacadas e as quinze maio-res empresas concessionárias de serviços públicos. Aelevação ou queda desse índice repercute em toda aeconomia norte-americana e, portanto, no mundo in-teiro, sinalizando um momento de prosperidade oude desaquecimento, e provocando movimentos seme-lhantes em outras Bolsas de Valores como, por exem-plo, a de São Paulo.

EFEITO GREENSPAN. Originado do sobrenomedo presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos

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(o Banco Central norte-americano), é o efeito de quedanas Bolsas de Valores quando Alan Greenspan anunciaelevações das taxas de juros para desaquecer a eco-nomia e segurar eventuais surtos inflacionários.

EFEITO RIQUEZA. Denominação dada ao compor-tamento dos consumidores nos Estados Unidos, osquais, verificando uma elevação contínua de suas açõesnas Bolsas de Valores causada pelo aumento da pro-dutividade e dos lucros, sentem-se mais ricos e ex-pandem seu nível de consumo, contribuindo para umulterior crescimento dos lucros, que sustenta a eleva-ção das cotações das ações nas Bolsas de Valores eassim sucessivamente.

FUNDO SOCIAL DE EMERGÊNCIA. É um fundoaprovado em 23/2/1994 pelo Congresso para vigorarinicialmente em 1994 e 1995. Em 1995 foi prorrogadopor mais 18 meses, vigorando portanto até junho de1997. Em 1997 foi prorrogado outra vez até o final de1998. Seu objetivo é financiar projetos da área socialconsiderados prioritários pelo governo. Os recursosdo fundo se originam na retenção de uma parcela dasseguintes receitas federais: a) 20% dos gastos consti-tucionais com educação; b) 20% da arrecadação daCPMF (Contribuição Provisória sobre MovimentaçõesFinanceiras), parcela esta destinada a programas dehabitação popular; c) adicional de 3% sobre o lucrodos bancos; d) PIS dos bancos, isto é, 0,75% sobre suareceita operacional bruta; e) Imposto de Renda do fun-cionalismo público (agora exclusivamente destinadoao FSE). Na realidade, a finalidade do FSE foi desblo-

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quear recursos que antes tinham destinação maisamarrada (dinheiro carimbado) do que atualmente.Com o FSE, o governo federal ganhou flexibilidadepara realizar suas despesas, tendo sido arrecadadosquase R$ 20 bilhões em 1998. Na ausência do FSE,pode ocorrer uma situação paradoxal: o governo temdinheiro em caixa, mas como se trata de dinheiro“carimbado” (com destinação predeterminada), nãopo-de utilizá-lo para outro fim, dificultando a exe-cução orçamentária e o desenvolvimento das funçõesgovernamentais.

GRUPO DE CAIRNS. É um grupo formado em1986, na cidade australiana do mesmo nome, por quin-ze países exportadores de produtos agrícolas, com oobjetivo de colocar na agenda de discussões do Gatt(General Agreement on Trade and Tariffs), e poste-riormente na OMC (Organização Mundial do Comér-cio), a liberalização do comércio multilateral de pro-dutos agrícolas. Esse grupo teve grande importânciana Rodada Uruguai do Gatt e posteriormente na OMCnas medidas adotadas de liberalização do comércio.Os países que fazem parte desse grupo são: Argentina,Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Ilhas Fiji,Indonésia, Malásia, Nova Zelândia, Paraguai, Filipi-nas, África do Sul, Tailândia e Uruguai.

GRUPO DOS SETE. Também conhecido pela abre-viatura G-7, é o grupo internacional formado pelosdirigentes das sete mais importantes potências econô-micas, e que se reúnem anualmente para coordenar apolítica econômica, monetária e financeira mundial.

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Compreende a Alemanha, Japão, Itália, França, Grã-Bretanha, Canadá e Estados Unidos. Devido à impor-tância política e militar da Rússia, esta vem sendo con-vidada a participar das reuniões, dando lugar à de-nominação G-7+1, que passou a denominar-se Grupodos Oito. Quando o Grupo dos Sete se reúne sem apresença da Itália e do Canadá, passa a denominar-seGrupo dos Cinco ou G-5.

GRUPO DOS VINTE. É a denominação dada aogrupo formado pelo G-7 (Estados Unidos, Alemanha,França, Japão, Canadá, Itália e Grã-Bretanha), maisBrasil, Argentina, Austrália, China, Índia, Indonésia,Coréia do Sul, México, Arábia Saudita, África do Sul,Turquia, Rússia e também o FMI. A primeira reuniãodo grupo ocorreu no final de 1999 em Berlim, na Ale-manha. Trata-se de um grupo informal criado paradiscutir a situação de países emergentes no sentidode estabelecer políticas para que as crises regionaisnão se alastrem atingindo o mundo como um todo.

ÍNDICE BIG MAC. É um indicador do poder decompra das principais moedas mundiais, baseadono preço do sanduíche produzido pelas lojas McDo-nald’s com as mesmas matérias-primas e vendido pra-ticamente em todo o mundo. Criado pela revista TheEconomist, de Londres, suas variações mensais podemrefletir alterações de custos e aumentos ou perdas deeficiência em cada economia na produção dos com-ponentes que entram na produção desse sanduíche.A União dos Bancos Suíços tem uma versão do índicerelacionada com o poder de compra, comparando

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quanto tempo de trabalho necessita o assalariado mé-dio para comprar um Big Mac. Em 1997 os pontosextremos eram: duas horas para o caso de um assa-lariado em Caracas (Venezuela), e nove minutos paraum trabalhador em Tóquio (Japão).

ÍNDICE BOVESPA. Também denominado Iboves-pa (Índice da Bolsa de Valores de São Paulo), é o nú-mero que exprime a variação média diária dos valoresdas negociações, na Bolsa de Valores de São Paulo,de uma carteira de ações de cerca de cem empresasselecionadas. O crescimento ou diminuição desse nú-mero — que é expresso em unidades chamadas “pon-tos” — representa a tendência geral dos preços dasações negociadas na Bolsa. Os critérios para a escolhadas ações que compõem a carteira se baseiam sobre-tudo na participação delas no volume de negócios eem sua presença nos pregões. Quando alcança núme-ros muito elevados (50 mil pontos), o índice é ajustadopara um número-base (cem pontos), para facilitar oscálculos.

JUROS SUBVENCIONADOS. É a denominaçãodada a uma taxa de juros cobrada por uma dívidaquando esta é inferior às taxas praticadas no mercado.Quando isso acontece, o credor está subvencionandoo devedor. Essa ajuda pode estar relacionada com vá-rias razões: ou porque o credor reconhece que o de-vedor encontra-se em situação difícil e essa é a únicaforma de a dívida ser paga, ou porque as taxas dejuros de mercado estão artificialmente e/ou tempora-riamente elevadas, ou mesmo porque interessa ao cre-

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dor que o devedor desenvolva atividades considera-das prioritárias mas de baixa lucratividade.

JUST IN TIME (JIT). É também denominado Sis-tema de Produção Toyota, ou Sistema Kanban, e tam-bém traduzido como “Produção Apenas-a-Tempo”.Trata-se de um sistema de controle de estoques de-senvolvido pela Toyota, no qual as partes e compo-nentes são produzidos e entregues nas diferentes se-ções um pouco antes de ser utilizadas. A definiçãomais sintética desse sistema seria “a peça certa, nolugar certo, no momento certo”. Esse sistema torna osestoques mínimos e os fluxos máximos dentro e foradas empresas.

LEI KANDIR. É uma lei que, desde o seu nasci-mento em 1996, provocou grande controvérsia. Levao nome do ex-ministro do Planejamento e atual de-putado federal pelo PSDB de S. Paulo, Antônio Kandir.Sua finalidade era incentivar as exportações retirandodos respectivos produtos tributos como o ICMS. Osexportadores foram incentivados, mas os governos es-taduais sentiram suas finanças afetadas e buscaramcompensações. Esta lei foi aprovada, entre outras coi-sas, para que o governo não precisasse desvalorizaro real naquele momento para estimular os exportado-res. Com a enorme desvalorização do real no iníciode janeiro de 1999, os exportadores não necessitammais de incentivos fiscais e, portanto, a Lei Kandirpoderá ser revista.

MOODY’S INVESTORS SERVICE. É uma empre-sa norte-americana especializada em avaliação de risco

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e em aconselhamento para investidores, subsidiária daDun & Bradstreet Inc., que pública informes financei-ros — Moody’s Bond Rating — analisando a situaçãode títulos vendidos ao público. As qualificações dasações e títulos emitidos por corporações variam deAaa (mais alta qualidade) a Caa (qualidade mais bai-xa); os títulos classificados como Baa para cima sãoaqueles considerados adequados para investimento.

MORATÓRIA. É uma declaração unilateral do de-vedor anunciando que não pagará uma dívida nosprazos, taxas de juros e demais condições estipuladasnos contratos. Trata-se de medida extrema que em ge-ral bloqueia novos empréstimos externos para o paísque toma atitude semelhante. Ou melhor, os fluxosfinanceiros internacionais se reduzem drasticamenteem relação ao país que declara a moratória. Logo de-pois do Plano Cruzado, em 1987, o governo Sarneydefrontou-se com a impossibilidade de honrar seuscompromissos externos (pagar sua dívida externa) edeclarou a moratória. O crédito externo brasileiro pra-ticamente desapareceu e a recuperação ocorreu apenasa partir de 1993.

NASDAQ. Iniciais de National Association for Se-curity Dealers Active Quotations, que é um sistemade informações computadorizadas que abastece cor-retores em todos os Estados Unidos com as cotaçõesde preços transformados em índice de um grande nú-mero de ações. Inclui tanto títulos negociados nas Bol-sas de Valores de Nova York como aqueles transacio-nados over-the-counter, isto é, títulos de empresas não

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listadas ou não registradas nas Bolsas de Valores. ONasdaq é o principal meio de transações over-the-coun-ter nos Estados Unidos. Como inclui ações de empresasque atuam via Internet, sua variação é bem maior doque o índice Dow Jones.

NEOLIBERALISMO. Doutrina político-econômicaque representa uma tentativa de adaptar os princípiosdo liberalismo econômico às condições do capitalismomoderno. Estruturou-se no final da década de 30 pormeio das obras do norte-americano Walter Lippmann,dos franceses Maurice Allais, Jacques Rueff e L. Baudine dos alemães Walter Eucken, W. Röpke, A. Rüstow.Como a escola liberal clássica, os neoliberais acreditamque a vida econômica é regida por uma ordem naturalformada a partir das livres decisões individuais e cujamola mestra é o mecanismo dos preços. Entretanto,defendem o disciplinamento da economia de mercado,não para asfixiá-la, mas para garantir-lhe sobrevivên-cia, pois, ao contrário dos antigos liberais, não acre-ditam na autodisciplina espontânea do sistema. Assim,por exemplo, para que o mecanismo de preços existaou se torne possível, é imprescindível assegurar a es-tabilidade financeira e monetária: sem isso, o movi-mento dos preços tornar-se-ia viciado. O disciplina-mento da ordem econômica seria feito pelo Estado,para combater os excessos da livre-concorrência, e pelacriação dos chamados mercados concorrenciais, dotipo do Mercado Comum Europeu. Alguns adeptosdo neoliberalismo pregam a defesa da pequena em-presa e o combate aos grandes monopólios, na linhadas leis antitrustes dos Estados Unidos. No plano so-

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cial, o neoliberalismo defende a limitação da herançae das grandes fortunas e o estabelecimento de condi-ções de igualdade que possibilitem a concorrência.Atualmente, o termo vem sendo aplicado àqueles quedefendem a livre atuação das forças de mercado, otérmino do intervencionismo do Estado, a privatizaçãodas empresas estatais e inclusive de alguns serviçospúblicos essenciais, a abertura da economia e sua in-tegração mais intensa no mercado mundial.

OMC. São as iniciais de Organização Mundial doComércio, organismo que substituiu o Gatt (GeneralAgreement on Trade and Tariffs, Acordo Geral sobreComércio e Tarifas), que esgotou suas atividades deacordo provisório na reunião de Marrakesh (Marro-cos), onde 97 países assinaram um acordo para a suaconstituição a partir de 1995. À diferença do Gatt, aOMC terá caráter permanente, tendo entrado em fun-cionamento em 1999. A OMC é o foro onde são tra-tados e decididos assuntos relacionados ao comérciode mercadorias e serviços entre os países que com-põem este organismo. Embora sejam partícipes apenasrepresentações de governos, países como os EstadosUnidos admitem a presença do setor produtivo pri-vado e de representantes dos trabalhadores em suasmissões oficiais. Nos dias 1º e 2 de dezembro de 1999realizou-se em Seattle, nos Estados Unidos, a Rodadado Milênio da OMC, que se estenderá até 2002, como objetivo de revisar o Gatt 95.

OPÇÃO. Significa um direito negociável de comprade mercadorias ou títulos, ações etc., com pagamento

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em data futura e preços predeterminados. A opção élargamente utilizada no mercado de commodities (café,açúcar, cacau, soja etc.) e no mercado futuro de ações.Nas operações de câmbio, a opção decorre do acordoentre as partes — operadores e banco ou financeiras—, em termos contratuais, pelo qual uma delas ficacom o direito de escolha do dia que mais lhe convierpara fazer a entrega e a liquidação do câmbio dentrodos dispositivos estabelecidos no contrato.

PIB. Sigla constituída pelas iniciais de Produto In-terno Bruto, é a soma dos valores de todos os bens eserviços produzidos num determinado país duranteum ano. É por meio do aumento ou diminuição doPIB que se conhece a situação de uma economia, istoé, se houve ou não crescimento em determinado ano.O resultado final é dado em termos absolutos (tantosbilhões de dólares, por exemplo) ou relativos, quandoaparece uma porcentagem de crescimento (ou de de-créscimo) em relação ao ano anterior.

PRIVATIZAÇÃO. Este termo tem origem no fatode tanto a União como Estados e municípios seremacionistas majoritários de empresas denominadas em-presas estatais. A partir de 1991 o governo federal ini-ciou um agressivo programa de venda das ações e docontrole acionário dessas empresas, passando para osetor privado da economia uma série delas, como, porexemplo, as siderúrgicas, a Vale do Rio Doce, as dosetor energético, as de telecomunicações e algumas em-presas do setor financeiro. A intenção era utilizar taisrecursos no abatimento da dívida interna. Mas não

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apenas esses recursos foram insuficientes, dado o in-tenso crescimento da dívida interna a partir daqueladata, como também não entraram nos cofres públicosno tempo certo para tal abatimento.

RECEITA FISCAL. Receita obtida por um governomediante a cobrança de impostos.

RENÚNCIA FISCAL. Iniciativa governamental derenúncia à cobrança de impostos de atividades que sedeseja estimular, proteger ou atrair durante um de-terminado período. A renúncia fiscal pode ser com-plementada pela concessão de juros subsidiados àsempresas ou atividades que se deseja atrair.

RODADA DO MILÊNIO. Denominação dada aoconjunto de sessões da OMC (Organização Mundialdo Comércio) levadas a cabo em dezembro de 1999em Seattle, nos Estados Unidos, visando obter acordossobre uma série de problemas pendentes do comérciointernacional. Existe uma impressão generalizada deque esta reunião não alcançou seu objetivo, tendo sidoconsiderada por muitos participantes um fracasso.

SECURITIZAÇÃO. Este termo origina-se da pala-vra inglesa security, que significa o processo de trans-formação de uma dívida com determinado banco cre-dor em dívida com compradores de títulos emitidospor esse banco. Na realidade, trata-se da conversãode empréstimos bancários e outros ativos em títulos(securities) para a venda a investidores que passam aser os novos credores dessa dívida. Tem sido a forma

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que países com elevadas dívidas externas encontrarampara renegociá-las. Por exemplo, a dívida externa bra-sileira com determinados bancos privados estrangeirosfoi securitizada, isto é, esses bancos venderam títulosbaseados nessa dívida para tomadores que compramestes títulos — evidentemente com deságio — e pas-saram a ser os novos credores dessa parte da dívidaexterna brasileira.

STANDARD & POOR’S. É uma empresa de con-sultoria de investimentos (classificação de créditos),subsidiária da McGraw Hill, controladora da revistaBusiness Week, que fornece indicadores, coeficientes etc.sobre ações, títulos, securities para os investidores porintermédio do Standard & Poor’s Bond Rating. A em-presa também realiza a compilação de índices do mer-cado, dos quais o mais importante é o Standard &Poor’s Index das quinhentas maiores empresas indus-triais dos Estados Unidos. Em conjunto com a Moody’sInvestors Service, é a mais importante empresa de con-sultoria para investidores dos Estados Unidos.

STOP-GO. Expressão em inglês que significa, lite-ralmente, “parar e prosseguir”, mas que consiste numapolítica econômica de fomento ao crescimento da eco-nomia sem que ela atravesse grandes turbulências decrises pronunciadas ou taxas de crescimento exagera-das. Isto é, busca-se o crescimento num ritmo maislento, mas com menores oscilações. O primeiro termo,stop, significa o momento em que o Banco Central oua Reserva Federal, nos EUA, provocam uma elevaçãodas taxas de juros, inibindo o investimento e o con-

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sumo e cortando o ritmo de crescimento da economia.O segundo termo, go, significa o momento em que oBanco Central ou a Reserva Federal fazem exatamenteo oposto, isto é, promovem uma redução das taxasde juros, estimulando os investimentos e o consumoe fazendo com que a economia retome seu ritmo decrescimento.

TAXA DE JUROS REAL. É a taxa de juros correnteou nominal da qual foi descontada a inflação.

TAXA DE JUROS SELIC. Selic são as iniciais deSistema Especial de Liquidação e Custódia e significaque as taxas de juros cobradas por esse organismosão as taxas básicas do sistema financeiro brasileiro,uma vez que são garantidas por títulos da dívida pú-blica federal.

TESOURO NACIONAL. Secretaria do Ministérioda Fazenda que centraliza a administração dos negó-cios financeiros da União, especialmente no que serefere às receitas e despesas públicas. Tem jurisdiçãoem todo o território nacional e é representado, emcada Estado, por uma delegacia fiscal que executa osserviços fazendários. Ao Tesouro Nacional competecentralizar as receitas e realizar as despesas governa-mentais. As relações financeiras de receitas e despesasentre a União e Estados e municípios são administra-das por intermédio do Tesouro Nacional.

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Sobre o Autor

Paulo Sandroni nasceu em 1939, em São Paulo, ca-pital. Formou-se em Economia pela Faculdade de Eco-nomia e Administração da Universidade de São Pauloem 1964. Entre 1965 e 1969 lecionou na Faculdade deEconomia da Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasde Rio Claro (SP). A partir de 1970 trabalhou na Uni-versidade do Chile e na Universidade de Los Andes,na Colômbia. É autor de Questão Agrária e Campesinato:a Funcionalidade da Pequena Produção Mercantil; Intro-dução à Economia: Mercantilistas, Smith, Ricardo e Marxem Sala de Aula; Balanço de Pagamentos e Dívida Externa;Novo Dicionário de Economia (Prêmio Jabuti 1995); No-víssimo Dicionário de Economia; e, em colaboração comLuís Alberto Marão Sandroni, de Karoshi: o Jogo da Qua-lidade. Participou da equipe de consultores da coleçãode livros Os Economistas, tendo traduzido para o por-tuguês a obra Princípios de Economia Política e Tributa-ção, de David Ricardo. Foi presidente da CMTC (Com-panhia Municipal de Transportes Coletivos) entre 1990e 1992, e secretário adjunto da SAF (Secretaria de Ad-ministração Federal), em 1993. É professor da Facul-dade de Economia e Administração da Pontifícia Uni-

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versidade Católica de São Paulo e da Escola de Ad-ministração de Empresas da Fundação Getúlio Vargasde São Paulo.

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