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Paz

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Poesia

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PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Col. Logos. Traduo de Olga Savary (p.15-31)

INTRODUO

Poesia e Poema

A poesia conhecimento, salvao, poder, abandono. Operao capaz de transformar o mundo, a atividade potica revolucionria por natureza; exerccio espiritual, um mtodo de libertao interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Po dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite viagem; regresso terra natal. Inspirao, respirao, exerccio muscular. Splica ao vazio, dilogo com a ausncia, alimentada pelo tdio, pela angstia e pelo desespero. Orao, litania, epifania, presena. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimao, compensao, condensao do inconsciente. Expresso histrica de raas, naes, classes. Nega a histria, em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a conscincia de ser algo mais que passagem. Experincia, sentimento, emoo, intuio, pensamento no-dirigido. Filha do acaso; fruto do clculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obedincia s regras; criao de outras. Imitao dos antigos, cpia do real, cpia de uma cpia da Idia. Loucura, xtase, logos. Regresso infncia, coito, nostalgia do paraso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade asctica. Confisso. Experincia inata. Viso, msica, smbolo. Analogia: o poema um caracol onde ressoa a msica do mundo, e mtricas e rimas so apenas correspondncias, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelao, dana, dilogo, monlogo. Voz do povo, lngua dos escolhidos, palavra do solitrio. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritria, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que no tem nenhuma: o poema uma mscara que oculta o vazio, bela prova da suprflua grandeza de toda obra humana!

Como no reconhecer em cada uma dessas frmulas o poeta que as justifica e que, ao encarn-las, lhes d vida? Expresses do algo vivido e padecido, no temos outro remdio seno aderirmos a elas - condenados a abandonar a primeira pela segunda e esta pela seguinte. Sua prpria autenticidade mostra que a experincia que justifica cada um desses conceitos os transcende. Ser preciso, portanto, interrogar os testemunhos diretos da experincia potica. A unidade da poesia s pode ser apreendida atravs do trato desnudo com o poema.

Perguntando ao poema pelo ser da poesia, no confundimos arbitrariamente poesia e poema? J Aristteles dizia que "nada h de comum, exceto a mtrica, entre Homero o Empdocles; e por isso com justia se chama de poeta o primeiro e de filsofo o segundo". E assim : nem todo poema - ou, para sermos exatos, nem toda obra construda sob as leis da mtrica - contm poesia. No entanto, essas obras mtricas so verdadeiros poemas ou artefatos artsticos, didticos ou retricos? Um soneto no um poema mas uma forma literria, exceto quando esse mecanismo retrico - estrofes, metros e rimas - foi tocado pela poesia. H mquinas de rimar, mas no de poetizar. Por outro lado, h poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poticos: so poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensao do acaso ou uma cristalizao de poderes e circunstncias alheios vontade criadora do poeta, estamos diante do potico. Quando passivo ou ativo, acordado ou sonmbulo o poeta o fio condutor e transformador da corrente potica, estamos na presena de algo radicalmente distinto: uma obra. Um poema uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, cano, tragdia. O potico poesia em estado amorfo; o poema criao, poesia que se ergue. S no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. lcito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixamos de conceb-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer contedo. O poema no uma forma literria, mas o lugar do encontro entre a poesia e o homem. O poema um organismo verbal que contm, suscita ou omite poesia. Forma e substncia so a mesma coisa.

Mal desviamos os olhos do potico para fix-los no poema, aparece-nos a multiplicidade de formas que assume esse ser que pensvamos nico. Como nos apoderarmos da poesia se cada poema se mostra como algo diferente e irredutvel? A cincia da literatura pretende reduzir a gneros a vertiginosa pluralidade do poema. Por sua prpria natureza, a pretenso padece de uma dupla insuficincia. Se reduzirmos a poesia a umas tantas formas - picas, lricas, dramticas -, o que faremos com os romances, os poemas em prosa e esses livros estranhos que se chamam Aurlia, Os cantos de Maldoror ou Nadja? Se aceitarmos todas as excees e as formas intermedirias - decadentes, incultas ou profticas -, a classificao se converter num catlogo infinito. Todas as atividades verbais, para no abandonar o mbito da linguagem, so susceptveis de mudar de signo e se transformar em poemas: desde a interjeio at o discurso lgico. No essa a nica limitao, nem a mais grave, das classificaes da retrica. Classificar no entender. E menos ainda compreender. Como todas as classificaes, as nomenclaturas so instrumentos de trabalho. No entanto, so instrumentos que se tornam inteis quando queremos empreg-los para tarefas mais sutis do que a simples ordenao externa. Grande parte da crtica consiste apenas nessa ingnua e abusiva aplicao das nomenclaturas tradicionais.

Uma censura semelhante deve ser feita s outras disciplinas que a crtica utiliza, da estilstica psicanlise. A primeira pretende dizer o que um poema pelo estudo dos hbitos verbais do poeta. A segunda, pela interpretao de seus smbolos. O mtodo estilstico tanto pode ser aplicado a Mallarm como a uma poro de versos de almanaque. Isso tambm ocorre com as interpretaes dos psiclogos, as biografias e outros estudos com que se tenta, e s vezes se consegue, explicar por que, como e para que se escreveu um poema. A retrica, a estilstica, a sociologia, a psicologia e o resto das disciplinas literrias so imprescindveis se queremos estudar uma obra, porm nada podem dizer acerca de sua natureza ntima.

A disperso da poesia em mil formas heterogneas poderia nos levar a construir um tipo ideal de poema. O resultado seria um monstro ou um fantasma. A poesia no a soma de todos os poemas. Por si mesma, cada criao potica uma unidade auto-suficiente. A parte o todo. Cada poema nico, irredutvel e irrepetvel. Assim, nos sentimos inclinados a concordar com Ortega y Gasset: nada nos autoriza a designar com o mesmo nome objetos to diversos como os sonetos de Quevedo, as fbulas de La Fontaine e o Cntico espiritual.

primeira vista, essa diversidade se oferece, como filha da histria. Cada lngua e cada nao engendram a poesia que o momento e o sou gnio particular lhes ditam. O critrio histrico, porm, no resolve, antes multiplica os problemas. No seio de cada perodo e de cada sociedade reina a mesma diversidade: Nerval e Hugo so contemporneos, como o so Volzquez e Rubens, Valry e Apollinaire. Se s por um abuso de linguagem aplicamos o mesmo nome aos poemas vdicos e ao haiku japons, no ser tambm um abuso utilizarmos o mesmo substantivo para designar experincias to diferentes como as de San Juan de la Cruz e seu indireto modelo profano, Garcilaso? A perspectiva histrica conseqncia de nosso fatal distanciamento nos leva a uniformizar paisagens ricas em antagonismos e contrastes. A distncia nos faz esquecer as diferenas que separam Sfocles de Eurpedes, Tirso de Lope. E essas diferenas no so fruto das variaes histricas, mas de algo muito mais sutil e impalpvel: a pessoa humana. Assim, no tanto a cincia histrica mas a biografia que poderia fornecer a chave da compreenso do poema. Aqui intervm novo obstculo: dentro da produo de cada poeta, cada obra tambm nica, isolada e irredutvel. A Galatia ou A viagem de Parnaso no explicam o Dom Quixote; Ifignia substancialmente distinta de Fausto; Fuenteovejuna, da Dorotia. Cada obra tem vida prpria e as clogas no so a Eneida. s vezes uma obra nega a outra: o "Prefcio" das poesias nunca publicadas de Lautramont jorra uma luz equvoca sobre Os cantos de Maldoror; Uma temporada no inferno proclama loucura a alquimia do verbo de As iluminaes. A histria e a biografia podem dar a tonalidade de um perodo ou de uma vida, esboar as fronteiras de uma obra e descrever, do exterior, a configurao de um estilo; tambm so capazes de esclarecer o sentido geral de uma tendncia e at desentranhar o porqu e o como de um poema. No podem, contudo, dizer e o que um poema.

A nica caracterstica comum a todos os poemas consiste em serem obras, produtos humanos, como os quadros dos pintores e as cadeiras dos carpinteiros. No entanto, os poemas so obras de um feitio muito estranho: no h entre um e outro a relao de parentesco que de modo to palpvel se verifica com os instrumentos de trabalho. Tcnica e criao, utenslio e poema so realidades distintas. A tcnica procedimento e vale na medida de sua eficcia, isto , na medida em que um procedimento susceptvel de aplicao repetida: seu valor dura at que surja um novo processo. A tcnica repetio que se aperfeioa ou se degrada: herana e mudana o fuzil substitui o arco. A Eneida no substitui a Odissia. Cada poema um objeto nico, criado por uma "tcnica" que morre no instante mesmo da criao. A chamada "tcnica potica" no transmissvel porque no feita de receitas, mas de investigaes que s servem para seu criador. verdade que o estilo - compreendido como maneira comum de um grupo de artistas ou de uma poca - confina com a tcnica, tanto no sentido de herana e transformao, quanto na questo de ser procedimento coletivo. O estilo o ponto de partida de todo projeto criador; por isso mesmo, todo artista aspira a transcender esse estilo comum ou histrico. Quando um poeta adquire um estilo, uma maneira, deixa de ser um poeta e se converte em construtor de artefatos literrios. Chamar Gngora de poeta barroco pode ser verdadeiro sob o ponto de vista da histria literria, mas no o se queremos penetrar em sua poesia, que sempre alguma coisa mais. certo que os poemas de cordobs constituem o mais alto exemplo do estilo barroco, mas no ser demasiado esquecer que as formas expressivas caractersticas de Gngora - isso que agora chamamos de seu estilo de incio foram apenas invenes, criaes verbais inditas, que s depois se converteram em comportamentos, hbitos e receitas? O poeta utiliza, adapta ou imita o fundo comum de sua poca - isto , o estilo de seu tempo -, porm modifica todos esses materiais e realiza uma obra nica. As melhores imagens de Gngora como foi admiravelmente mostrado por Dmaso Alonso - provm justamente de sua capacidade de transfigurar a linguagem literria de seus antecessores e contemporneos. s vezes, claro, o poeta vencido pelo estilo. (Um estilo que nunca seu mas de seu tempo o poeta no tem estilo.) Ento a imagem fracassada se torna bem comum, despojo para os futuros historiadores e fillogos. Com tais pedras e outras semelhantes constroem-se esses edifcios que a histria chama de estilos artsticos.

No quero negar a existncia dos estilos. Tampouco afirmo que o poeta cria a partir do nada. Como todos os poetas, Gngora se apia numa linguagem. Essa linguagem era algo mais preciso e radical do que a fala uma linguagem literria, um estilo. Contudo, o poeta cordobs transcende essa linguagem. Melhor dizendo, transforma-a em atos poticos sem repetio: imagens, cores, ritmos, vises poemas. Gngora transcende o estilo barroco; Garcilaso, o toscano; Rubn Daro, o modernista. O poeta se alimenta de estilos. Sem eles no haveria poemas. Os estilos nascem, crescem e morrem. Os poemas permanecem, e cada um deles constitui uma unidade auto-suficiente, um exemplar isolado, que no se repetir jamais.

O carter irrepetvel e nico do poema compartilhado por outras obras: quadros, esculturas, sonatas, danas, monumentos. A todas elas aplicvel a distino entre poema e utenslio, estilo e criao. Para Aristteles a pintura, a escultura, a msica e a dana tambm so formas poticas, tal como a tragdia e a pica. Da que, ao falar da ausncia de caracteres morais na poesia de seus contemporneos, cite como exemplo dessa omisso o pintor Zuxis e no um poeta trgico. Com efeito, acima das diferenas que separam um quadro de um hino, uma sinfonia de uma tragdia, h neles um elemento criador que os faz girar no mesmo universo. Uma tela, uma escultura, uma dana so, sua maneira, poemas. E essa maneira no muito diferente da do poema feito de palavras. A diversidade das artes no impede sua unidade. Ao contrrio, destaca-a.

As diferenas entre palavra, som e cor fizeram duvidar da unidade essencial das artes. O poema feito de palavras, seres equvocos que, se so cor e som, tambm so significado; o quadro e a sonata so compostos de elementos mais simples formas, notas e cores que em si nada significam. As artes plsticas e sonoras partem da no-significao; o poema, organismo anfbio, parte da palavra, ser significante. Essa distino me parece mais sutil do que verdadeira. Cores e sons tambm possuem sentido. No sem razo que os crticos falam de linguagens plsticas e musicais. E antes que essas expresses fossem usadas pelos entendidos, o povo conheceu e praticou a linguagem das cores, dos sons e dos sinais. desnecessrio, por conseguinte, nos determos nas insgnias, emblemas, toques, chamadas e outras formas de comunicao no verbal empregadas por certos grupos. Em todas elas o significado inseparvel de suas qualidades plsticas ou sonoras.

Em muitos casos, cores e sons possuem maior capacidade evocativa do que a fala. Entre os astecas a cor negra estava associada obscuridade, ao frio, seca, guerra e morte. Tambm se relacionava com certos deuses: Tezcatlipoca, Mixcatl; a um espao: o norte; a um tempo: Tcpatl; ao slex; lua; guia. Pintar alguma coisa de negro era como dizer ou invocar todas essas representaes. Cada uma das quatro cores significava um espao, um tempo, uns deuses, uns astros e um destino. Nascia-se sob e signo de uma cor, como os cristos nascem sob a proteo de um santo padroeiro. Talvez no seja desnecessrio acrescentar outro exemplo: a funo dual de ritmo na antiga civilizao chinesa. Cada vez que se tenta explicar as noes de Yin e Yang os dois ritmos alternativos que formam o Tao -, recorre-se a termos musicais. Concepo rtmica do cosmo, o par Yin e Yang filosofia e religio, dana e msica, movimento rtmico impregnado de sentido. Do mesmo modo, no abuso da linguagem figurada, mas aluso ao poder significante do som, o emprego de expresses como harmonia, ritmo ou contraponto para qualificar as aes humanas. Todo mundo usa esses vocbulos, sabendo que possuem sentido, difusa intencionalidade. No h cores nem sons em si, desprovidos de significao: tocados pela mo do homem, mudam de natureza e penetram no mundo das obras. E todas as obras desembocam na significao; aquilo que o homem toca se tinge de intencionalidade: um ir em direo a... O mundo do homem o mundo do sentido. Tolera a ambigidade, a contradio, a loucura ou a confuso, no a carncia de sentido. O prprio silncio est povoado de signos. Assim, a disposio dos edifcios e suas propores obedecem a uma certa inteno. No carecem de sentido pode-se dizer, com mais preciso, o contrrio o impulso vertical de gtico, o equilbrio tenso do templo grego, a redondeza da estupa budista ou a vegetao ertica que cobre os muros dos santurios de Orissa. Tudo linguagem.

As diferenas entre o idioma falado ou escrito e os outros - plsticos ou musicais - so muito profundas; no tanto, porm, que nos faam esquecer que todos so, essencialmente, linguagem: sistemas expressivos dotados de poder significativo e comunicativo. Pintores, msicos, arquitetos, escultores e outros artistas no usam como materiais de composio elementos radicalmente distintos dos que emprega o poeta. Suas linguagens so diferentes, mas so linguagem. E mais fcil traduzir os poemas astecas em seus equivalentes arquitetnicos e escultricos do que na lngua espanhola. Os textos do tantrismo ou a poesia ertica Kavya falam o mesmo idioma das esculturas de Konarak. A linguagem do Primero sueo de Sor Juana no muito diferente da linguagem do Sagrario Metropolitano da Cidade do Mxico. A pintura surrealista est mais prxima da poesia desse movimento que da pintura cubista.

Afirmar que impossvel escapar do sentido equivale a encerrar todas as obras artsticas ou tcnicas no universo nivelador da histria. Como encontrar um sentido que no seja histrico? Nem por seus materiais nem por seus significados as obras transcendem o homem. Todas so "um para" e "um em direo a" que desembocam num homem concreto, que por sua vez s alcana significao dentro de uma histria precisa. Moral, filosofia, costumes, artes, tudo, enfim, que constitui a expresso de um determinado perodo, participa do que chamamos estilo. Todo estilo histrico e todos os produtos de uma poca, desde seus utenslios mais simples at suas obras mais desinteressadas, esto impregnados de histria, isto , de estilo. No entanto, essas afinidades e parentescos cobram diferenas especficas. No interior de um estilo possvel descobrir o que separa um poema de um tratado em verso, um quadro de uma estampa didtica, um mvel de uma escultura. Esse elemento distintivo a poesia. S ela pode mostrar a diferena entre criao e estilo, obra de arte e utenslio.

Qualquer que seja sua atividade e profisso, artista ou arteso, o homem transforma a matria-prima: cores, pedras, metais, palavras. A operao transmutadora consiste no seguinte: os materiais abandonam o mundo cego da natureza para ingressar no das obras, isto , no mundo das significaes. O que ocorre ento com a matria pedra empregada pelo homem para esculpir uma esttua e construir uma escada? Ainda que a pedra da esttua no seja diferente da pedra da escada, e ambas sejam referentes a um mesmo sistema de significaes (por exemplo: as duas fazem parte de uma igreja medieval), a transformao que a pedra sofreu na escultura de natureza diversa da que a converteu em escada. O destino da linguagem nas mos de prosadores e poetas nos faz vislumbrar e sentido dessa diferena.

A forma mais alta da prosa o discurso, no sentido estrito dessa palavra. No discurso as palavras aspiram a se constituir em significado unvoco. Esse trabalho implica reflexo e anlise. Ao mesmo tempo introduz um ideal inatingvel, j que a palavra se nega a ser mero conceito, significado sem outra coisa mais. Cada palavra parte suas propriedades fsicas encerra uma pluralidade de sentidos. Assim, a atividade do prosador se exerce contra a natureza prpria da palavra. No certo, portanto, que Monsieur Jourdan falasse em prosa sem o saber. Alfonso Reyes observa com exatido que no se pode falar em prosa sem que se tenha conscincia do que se diz. Inclusive, pode-se acrescentar que no se fala a prosa: escreve-se. A linguagem falada est mais perto da poesia que da prosa; menos reflexiva e mais natural, e da ser mais fcil ser poeta sem o saber do que prosador. Na prosa a palavra tende a se identificar com um dos seus possveis significados, custa dos outros: ao po, po; e ao vinho, vinho. Essa operao de carter analtico e no se realiza sem violncia, j que a palavra possui vrios significados latentes, tem uma certa potencialidade de direes e sentidos. O poeta, em contrapartida, jamais atenta contra a ambigidade do vocbulo. No poema a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela reduo que lhe impem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza total e afeta os valores sonoros e plsticos tanto como os valores significativos. A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e aluses, como um fruto maduro ou como um foguete no momento de explodir no cu. O poeta pe em liberdade sua matria. O prosador aprisiona-a.

Assim tambm ocorre com formas, sons e cores. A pedra triunfa na escultura, humilha-se na escada. A cor resplandece no quadro; o movimento, no corpo, na dana. A matria, vencida ou deformada no utenslio, recupera seu esplendor na obra de arte. A operao potica de signo contrrio a manipulao tcnica. Graas primeira, a matria reconquista sua natureza: a cor mais cor, o som plenamente som. Na criao potica no h vitria sobre a matria ou sobre os instrumentos, como quer uma v esttica de artesos, mas um colocar em liberdade a matria. Palavras, sons, cores a outros materiais sofrem uma transmutao mal ingressam no crculo da poesia. Sem deixarem de ser instrumentos de significao e de comunicao, convertem-se em outra coisa. Essa mudana ao contrrio do que ocorre na tcnica no consiste em abandonar sua natureza original, mas em voltar a ela. Ser outra coisa quer dizer ser a mesma coisa: a coisa mesma, aquilo que real e primitivamente so.

Por outro lado, a pedra da esttua, o vermelho do quadro, a palavra do poema, no so pura e simplesmente pedra, cor, palavra: encarnam algo que os transcende e ultrapassa. Sem perder seus valores primrios, seu peso original, so tambm como pontes que nos levam outra margem, portas que se abrem para outro mundo de significados impossveis de serem ditos pela mera linguagem. Ser ambivalente, a palavra potica plenamente o que ritmo, cor, significado e, ainda assim, outra coisa: imagem. A poesia converte a pedra, a cor, a palavra e o som em imagens. E essa segunda caracterstica, o fato de serem imagens, e o estranho poder de suscitarem no ouvinte ou no espectador constelaes de imagens, transforma em poemas todas as obras de arte.

Nada impede que sejam consideradas poemas as obras plsticas e musicais, desde que satisfaam as duas caractersticas assinaladas: de um lado, fazerem regressar seus materiais ao que so matria resplandecente ou opaca e assim se negarem ao mundo da utilidade; de outro, transformarem-se em imagens e desse modo se converterem numa forma peculiar de comunicao. Sem deixar de ser linguagem - sentido e transmisso de sentido o poema algo que est mais alm da linguagem. Mas isso que est mais alm da linguagem s pode ser conseguido atravs da linguagem. Um quadro ser poema se for algo mais que linguagem pictrica. Piero de la Francesca, Masaccio, Leonardo ou Ucello no merecem, nem so compatveis com outro qualificativo seno com o de poetas. Neles a preocupao com os meios expressivos da pintura, isto , com a linguagem pictrica, se transforma em obras que transcendem essa mesma linguagem. As investigaes de Masaccio e Ucello foram aproveitadas por seus herdeiros; suas obras, porm, so algo mais que achados tcnicos: so imagens, poemas impossveis de serem repetidos. Ser um grande pintor quer dizer ser um grande poeta: algum que transcende os limites de sua linguagem.

Em suma, o artista no se serve de seus instrumentos pedra, som, cor ou palavra como o arteso; ao contrrio, serve-se deles para que recuperem sua natureza original. Servo da linguagem, qualquer que esta seja, transcende-a. Essa operao paradoxal e contraditria que ser analisada mais adiante produz a imagem. O artista criador de imagens: poeta. E sua qualidade de imagens que permite chamar de poema o Cntico espiritual e os hinos vdicos, o haiku e os sonetos de Quevedo. O fato de serem imagens leva as palavras, sem que deixem de ser elas mesmas, a transcenderem a linguagem, enquanto sistema dado de significaes histricas. O poema, sem deixar de ser palavra e histria, transcende a histria. Sob condio de examinar com mais ateno em que consiste esse ultrapassar a histria, podemos concluir que a pluralidade de poemas no nega, antes afirma, a unidade da poesia.

Cada poesia nica. Em cada obra lateja, com maior ou menor intensidade, toda a poesia. Portanto, a leitura de um s poema nos revelar, com maior certeza do que qualquer investigao histrica ou filolgica, o que a poesia. Mas a experincia do poema sua recriao atravs da leitura ou da recitao tambm ostenta uma desconcertante pluralidade e hotorogenia. Quase sempre a leitura se apresenta como a revelao de algo alheio a poesia propriamente dita. Os poucos contemporneos de San Juan de la Cruz que leram seus poemas observaram melhor seu valor exemplar do que sua fascinante beleza. Muitas das passagens que admiramos em Quevedo deixavam frios os leitores do sculo XVII, ao passo que outras coisas que nos repugnam ou aborrecem constituam para eles os encantos da obra. S com um esforo de compreenso histrica adivinhamos a funo potica das enumeraes histricas nas Coplas de Manrique. Ao mesmo tempo nos comovem, talvez mais do que a seus contemporneos, as aluses a seu tempo e ao passado imediato. E no apenas a histria nos faz ver com olhos diferentes um mesmo texto. Para alguns o poema a experincia do abandono; para outros, do rigor. Os rapazes lem versos para se ajudarem a expressar ou conhecer seus sentimentos, como se somente nos poemas as arriscadas, pressentidas batalhas de amor, de herosmo ou da sensualidade pudessem ser contempladas com nitidez. Cada leitor procura algo no poema. E no inslito que o encontre: j o trazia dentro de si.

No impossvel que depois desse primeiro e enganoso contato e leitor atinja o centro do poema. Imaginemos esse encontro. No fluxo e refluxo de nossas paixes e afazeres (cindidos sempre, sempre eu e meu duplo e o duplo de meu outro eu), h um momento em que tudo se ajusta. Os opostos no desaparecem, mas se fundem por um instante. algo como uma suspenso do nimo: o tempo no pesa. Os upanixades ensinam que essa reconciliao "ananda" ou deleite com o Uno. Em verdade, poucos so capazes de alcanar tal estado. Porm, todos ns, alguma vez, nem que tenha sido por uma frao de segundo, vislumbramos algo semelhante. No necessrio ser um mstico para roar essa certeza. Todos j fomos crianas. Todos j amamos. O amor um estado de reunio e participao aberto aos homens: no ato amoroso a conscincia como a onda que, vencido o obstculo, antes de se desmanchar, ergue-se numa plenitude na qual tudo forma e movimento, impulso para cima e fora da gravidade alcana um equilbrio sem apoio, sustentado em si mesmo. Quietude do movimento. E do mesmo modo que atravs de um corpo amado entrevemos uma vida mais plena, mais vida que a vida, atravs do poema vislumbramos e raio fixo da poesia. Esse instante contm todos os instantes. Sem deixar de fluir, e tempo se detm, repleto de si.

Objeto magntico, secreto lugar de encontro de foras contrrias, graas ao poema podemos chegar experincia potica. O poema uma possibilidade aberta a todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu nimo ou sua disposio. No entanto, e poema no seno isto: possibilidade, algo que s se anima ao contato de um leitor ou de um ouvinte. H uma caracterstica comum a todos os poemas, sem a qual nunca seriam poesia: a participao. Cada vez que o leitor revive realmente o poema, atinge um estado que podemos, na verdade, chamar de potico. A experincia pode adotar esta ou aquela forma, mas sempre um ir alm de si, um romper os muros temporais, para ser outro. Tal como a criao potica, a experincia do poema se d na histria, histria e, ao mesmo tempo, nega a histria. O leitor luta e morre com Heitor, duvida e mata com Arjuna, reconhece as rochas natais com Odisseu. Revive uma imagem, nega a sucesso, retorna no tempo. O poema mediao: graas a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num momento. A sucesso se converte em presente puro, manancial que se alimenta a si prprio e transmuta o homem. A leitura do poema mostra grande semelhana com a criao potica. O poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor imagem, poesia.

As trs partes em que foi dividido este livro se propem a responder estas perguntas: h um dizer potico o poema irredutvel a qualquer outro dizer? e que dizem os poemas? como se comunica o dizer potico? Talvez no seja necessrio repetir que nada do que se afirma aqui deva ser considerado como mera teoria ou especulao, pois constitui o testemunho do encontro com alguns poemas. Ainda que se trate de uma elaborao mais ou menos sistemtica, a natural desconfiana despertada por esse tipo de construes pode, com justia, se abrandar. Se certo que em toda tentativa de compreender a poesia se introduzem resduos alheios a ela filosficos, morais ou outros -, tambm aquilo que o carter suspeito de toda potica parece como que redimido quando se apia na revelao que, em certo momento, durante algumas horas, um poema nos proporcionou. E, embora tenhamos esquecido aquelas palavras e at seu sabor e significado tenham desaparecido, ainda guardamos viva a sensao de alguns minutos de tal maneira plenos que se transformaram em tempo transbordado, mar alta que rompeu os diques da sucesso temporal. Pois o poema via de acesso ao tempo puro, imerso nas guas originais da existncia. A poesia no nada seno tempo, ritmo perpetuamente criador.

(p. 82-87)

O POEMA

Verso e ProsaO ritmo no apenas o elemento mais antigo e permanente da linguagem, como tambm no difcil que seja anterior prpria fala. Em certo sentido, pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou, pelo menos, que todo ritmo implica ou prefigura uma linguagem. Assim, todas as expresses verbais so ritmo, sem excluso das formas mais abstratas ou didticas da prosa. Como ento distinguir prosa e poema? Deste modo: o ritmo se d espontaneamente em toda forma verbal, mas s no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo no h poema; s com ritmo no h prosa. O ritmo condio do poema, ao passo que inessencial para a prosa. Pela violncia da razo as palavras se desprendem do ritmo; essa violncia racional sustenta a prosa, impedindo-a de cair na corrente da fala onde no vigoram as leis do discurso e sim as de atrao e repulsa. Mas esse desenraizamento nunca total porque, do contrrio, a linguagem se extinguiria. E com ela o prprio pensamento. A linguagem, por inclinao natural, tende a ser ritmo. Como se obedecessem a uma misteriosa lei de gravidade, as palavras retornam espontaneamente poesia. No fundo de toda prosa circula, mais ou menos rarefeita pelas exigncias do discurso, a invisvel corrente rtmica. E o pensamento, na medida em que linguagem, sofre o mesmo fascnio. Deixar o pensamento em liberdade, divagar, regressar ao ritmo; as razes se transformam em correspondncias, os silogismos em analogias, e a marcha intelectual em fluir de imagens. O prosador, porm, busca a coerncia e a claridade conceptual. Por isso, resiste corrente rtmica que fatalmente tende a se manifestar em imagens e no em conceitos.

A prosa um gnero tardio, filho da desconfiana do pensamento ante as tendncias naturais do idioma. A poesia pertence a todas as pocas: a forma natural de expresso dos homens. No h povos sem poesia, mas existem os que no tm prosa. Portanto, pode-se dizer que a prosa no uma forma de expresso inerente sociedade, ao passo que inconcebvel a existncia de uma sociedade sem canes, mitos ou outras expresses poticas. A poesia ignora o progresso ou a evoluo, e suas origens e seu fim se confundem com os da linguagem. A prosa, que primordialmente um instrumento de crtica e anlise, exige uma lenta maturao e s se produz aps uma longa srie de esforos tendentes a dominar a fala. Seu avano se mede pelo grau de domnio do pensamento sobre as palavras. A prosa cresce em luta permanente contra as inclinaes naturais do idioma, e seus gneros mais perfeitos so o discurso e a demonstrao, nos quais o ritmo e seu incessante ir e vir cedem lugar marcha do pensamento.

Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a se manifestar como uma construo aberta e linear. Valry comparou a prosa com a marcha e a poesia com a dana. Narrativa ou discurso, histria ou demonstrao, a prosa um desfile, uma verdadeira teoria de idias ou fatos. A figura geomtrica que simboliza a prosa a linha: reta, sinuosa, espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diante e com uma meta precisa. Da que os arqutipos da prosa sejam o discurso e a narrativa, a especulao e a histria. O poema, pelo contrrio, apresenta-se como um crculo ou uma esfera algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente no qual o fim tambm um princpio que volta, se repete e se recria. E essa constante repetio e recriao no seno o ritmo, mar que vai e que vem, que cai e se levanta. O carter artificial da prosa se comprova cada vez que o prosador se abandona ao fluir do idioma. To logo se volta sobre seus passos, maneira do poeta ou do msico, e se deixa seduzir pelas foras de atrao e repulsa do idioma, viola as leis do pensamento racional e penetra no mbito de ecos e correspondncias do poema. Foi isso que ocorreu com boa parte do romance contemporneo. O mesmo se pode afirmar de certos romances orientais, como Os contos de Genji, da Senhora Murasaki, ou o clebre romance chins O sonho do aposento vermelho. A primeira lembra Proust, o autor que mais longe levou a ambigidade do romance, sempre oscilante entre a prosa e o ritmo, o conceito e a imagem; o segundo uma vasta alegoria que dificilmente se pode chamar de romance sem que a palavra perca seu sentido habitual. Na realidade, as nicas obras orientais que se aproximam do que chamamos de romance so livros que vacilam entre o aplogo, a pornografia e a descrio de costumes, como o Chin Ping Mei.

Sustentar que o ritmo o ncleo do poema no quer dizer que este seja um conjunto de metros. A existncia de uma prosa carregada de poesia e a de muitas obras corretamente versificadas e absolutamente prosaicas revelam a falsidade dessa identificao. Metro e ritmo no so a mesma coisa. Os retricos antigos diziam que o ritmo o pai da mtrica. Quando um metro se esvazia de contedo e se converte em forma inerte, mera casca sonora, o ritmo continua engendrando novos metros. O ritmo inseparvel da frase, no composto s de palavras soltas nem s medida e quantidade silbica, acentos e pausas: imagem e sentido. Ritmo, imagem e significado apresentam-se simultaneamente numa unidade indivisvel e compacta: a frase potica, o verso. O metro, pelo contrrio, medida abstrata e independente da imagem. A nica exigncia do metro que cada verso tenha as slabas e os acentos requeridos. Tudo pode ser dito em hendecasslabos: uma frmula de matemtica, uma receita culinria, o cerco de Tria e uma sucesso de palavras desconexas. Pode-se inclusive prescindir da palavra; basta uma fileira de slabas ou letras. Em si mesmo, o metro medida vazia de sentido. O ritmo, pelo contrrio, jamais se apresenta sozinho; no medida mas contedo qualitativo e concreto. Todo ritmo verbal j contm em si a imagem e constitui, real ou potencialmente, uma frase potica completa.

O metro nasce do ritmo e a ele retorna. No princpio, as fronteiras entre um e outro so confusas. Posteriormente, o metro se cristaliza em formas fixas. Instante de esplendor, mas tambm de paralisia. Isolado do fluxo e do refluxo da linguagem, o verso se transforma em medida sonora. Ao momento de acordo segue-se outro de imobilidade; depois, sobrevm a discrdia e no seio do poema se estabelece uma luta: a medida oprime a imagem ou esta rompe o crcere e regressa fala a fim de se recriar em novos ritmos. O metro medida que tende a se separar da linguagem; o ritmo jamais se separa da fala porque a prpria fala. O metro procedimento, maneira; o ritmo temporalidade concreta. Um hendecasslabo de Garcilaso no idntico a um de Quevedo ou Gngora. A medida a mesma, mas o ritmo diferente. A razo dessa singularidade encontra-se, em castelhano, na existncia de perodos rtmicos no interior de cada metro, entre a primeira slaba acentuada e antes da ltima. O perodo rtmico forma o ncleo do verso e no obedece regularidade silbica, mas pancada dos acentos e combinao destes com as cesuras e as slabas fracas. Cada perodo, por sua vez, composto pelo menos de duas clusulas rtmicas, formadas tambm por acentos tnicos e cesuras. A representao formal do verso, diz Toms Navarro em seu tratado de Mtrica espaola, resulta de seus componentes mtricos e gramaticais; a funo do perodo essencialmente rtmica; de sua composio e dimenses depende que o movimento do verso seja lento ou rpido, grave ou leve, sereno ou conturbado. O ritmo infunde vida ao metro e outorga-lhe individualidade.

A distino entre metro e ritmo probe chamar de poemas um grande nmero de obras corretamente versificadas que, por pura inrcia, constam como tais nos manuais de literatura. Obras como Os cantos de Maldoror, Alice no Pas das Maravilhas ou El jardn de los senderos que se bifurcan so poemas. Nelas a prosa se nega a si mesma; as frases no se sucedem obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas so presididas pelas leis da imagem e do ritmo. H um fluxo e refluxo de imagens, acentos e pausas, sinal inequvoco da poesia. O mesmo se deve dizer do verso livre contemporneo: os elementos quantitativos do metro cederam lugar unidade rtmica.

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