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PEARL S. BUCK

UMA PONTE PARA PASSAR

Tradução de CONSTANTINO PALEÓLOGO

2.a Edição

EDIÇÕES MELHORAMENTOS

Título do original norte-americano: A BRIDGE FOR PASSING © 1961, 1962, by Pearl S. Buck

1964

Da Autora, nas Edições Melhoramentos:

MULHER IMPERIAL

A PRIMEIRA ESPOSA O AMOR ACIMA DE TUDO

VENTO LESTE, VENTO OESTE A BORBOLETA DE PRATA A ESTIRPE DO DRAGÃO

A PROMESSA A EXILADA

RETRATO DE UM CASAMENTO

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É COMO É Moto de EDUARDO III, 1340 da Era Crista

QUE FAZER, ENTÃO? BUSCO REFÚGIO EM MEU CORAÇÃO, ONDE O AMO COMO QUERO. PAUL VALÉRY

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I

LEMBRO-ME DO DIA em que decidi fazer o filme no Japão, um dia de

abril, há um ano, um dia como este no qual começo a história de meu

regresso à Ásia. Sempre soube que o regresso era inevitável, não um

regresso permanente, pois me sinto demasiado feliz em minha terra para

pensar em viver noutro lugar, mas, apesar de tudo, um regresso. Não se vive

metade da vida na Ásia, sem um regresso. Quanto à época, à causa, ou à

concretização, mesmo, do regresso, eram coisas que eu não sabia. Neste

nosso mutável mundo, o que mais muda é a geografia. A terra amiga da

China, berço de minha infância e juventude, é, por enquanto, terra proibida.

Recuso-me a chamá-la país inimigo. Em minha memória, o povo é

extremamente bom e o país extremamente belo.

A China, porém, não é toda a Ásia, embora seja a maior parte dela. Há

outros países aos quais eu poderia regressar — Japão, índia, Coréia e todos

os demais. O Japão, creio, é o que melhor conheço depois da China.

Logicamente, regressaria a ele, mas quando? Não sou turista. Não sinto

prazer em visitar um país apenas para ver a paisagem. Nem tampouco visitá-

lo na qualidade de pessoa importante. Quando regressar ao Japão, disse a

mim mesma, será para a realização de um projeto, um trabalho, algo

interessante a fazer, algo que explique a não aceitação de todos os convites

para jantar, para fins de semana, entretenimentos que as pessoas

hospitaleiras oferecem aos amigos. Mas que projeto? Uma nova pergunta foi

acrescentada às minhas "onde" e "quando".

Inesperadamente, um dia, propuseram-me ir ao Japão trabalhar, em

companhia de outros, na filmagem de meu livro A Grande Onda. O trabalho

seria algo de novo e, por conseguinte, de excitante. Já estou longe do

conservadorismo e da prudência da juventude. Cheguei à idade aventureira e

A Grande Onda é um livro aventuroso. Envolve uma longínqua aldeia de

pescadores, maremotos, um vulcão, coisas que eu não via há décadas e que

ansiava rever. As perguntas estavam respondidas. "Onde", era o Japão; #

"quando", era agora.

Não, não inteiramente respondidas, pois ainda havia minha família a

considerar. Alguns de seus membros eram velhos, outros muito jovens, uma

grande família que se espraiava sobre gerações e se bifurcava em

ramificações. Podia eu, devia eu, deixá-los a todos em semelhante momento?

Realizamos um conselho de família. A resposta foi que eu podia e devia. O

médico da família assegurou-me não haver motivo para adiar a partida. As

crianças, pequenas e grandes, achavam-se alegres e sadias. E ele? Ele estava

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como sempre estaria agora. Se eu esperasse pela possibilidade final, talvez

tivesse de esperar anos. Seis meses antes, não teria podido deixá-lo. Mas, no

breve intervalo, a diferença, para mim, foi como entre o dia e a noite. Ele

mergulhara num mundo somente seu. Eu não havia aprendido ainda a

suportar o que era e sempre teria de ser.

— Vá, disse o médico. — Você precisa mudar de ares. Tem um longo

caminho pela frente.

— Vá, disse minha filha responsável. — Eu cuidarei de tudo.

Assim encorajada, foram assinados os contratos e adquiridas as

passagens.

O livro, naturalmente, tinha de receber um tratamento novo. A Grande

Onda é uma história simples, mas seu tema é vasto. Trata da vida e da morte

e novamente da vida, através de um punhado de seres humanos numa remota

aldeia de pescadores, no extremo sul da adorável ilha de Kyushu, no Japão

meridional. O livro sempre tivera vigorosa vida própria. Conquistara alguns

prêmios em seu gênero, fora traduzido para várias línguas, mas nunca para a

estranha e maravilhosa linguagem do cinema. Usar essa linguagem era, por

si só, uma aventura. Não mais palavras, agora, porém seres humanos,

movendo-se, falando, morrendo corajosamente, vivendo e amando com uma

coragem ainda maior. Estou habituada às artes usuais. Familiarizei-me com a

tela e o pincel, o barro e a pedra, os instrumentos musicais, mas o cinema é

diferente de todas. Também é, contudo, uma grande arte. Mesmo quando

profanado por gente vulgar e material barato, a potencialidade do processo é

inspiradora. Quando os artistas são suficientemente grandes, temos muitos

grandes filmes. Não me achava dominada pela ilusão de grandeza, mas

esperava que pudéssemos fazer um filme fiel à gente sobre a qual eu

escrevera.

Partimos em certa manhã de maio. O Japão fora um vizinho próximo

durante todos os meus anos na China. Quando criança, se viajávamos de

Vancouver ou São Francisco, o Japão era a última parada antes de Xangai,

porta de entrada do meu lar chinês. Se partíamos de Xangai, então o Japão

era a primeira parada na rota para o meu lar americano. Fora, também, o

nosso refúgio, quando as guerras revolucionárias nos expulsaram da China.

Certa vez passei vários meses numa pequena casa japonesa, nas montanhas

próximas de Unzen, perto da região sul da ilha de Kyushu, nas imediações

de Obama. Nesse mesmo ano, passeara em lancha ao redor de Kyushu e

parará rapidamente em Obama, a fim de banhar-me em suas fontes de água

quente. Vejo agora, na imaginação, minha aldeia de pescadores naquela

região de litoral esplêndido, montanhas verdes e seu vulcão fumegante.

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— Eu a reconhecerei no momento em que a vir, disse à minha família.

— Será uma pequena aldeia, espremida numa praia rochosa, enseada arenosa

entre montanhas, algumas casas de pedra atrás da alta muralha do mar. Vejo-

a como se me lembrasse dela, embora não saiba seu nome.

Se o Japão me fora próximo e familiar no passado, agora parecia-me

situar-se do outro lado do portão de minha casa, na Pensilvânia. Tomamos

um jacto em Nova York, mais ou menos a duas horas de distância da casa de

pedra de minha fazenda, e decolamos em questão de minutos. Meditei na

incrível dimensão de minha vida. Embora, Deus querendo, eu tenha mais

décadas a viver neste belo globo, foi só na idade adulta que comecei minha

experiência da vida e dos homens. Menina, viajei em carro, de mão, liteira,

carroça de mula ou em barco puxado ao longo de um preguiçoso canal por

homens andando no caminho da sirga. Fiz doze anos antes de ver um trem,

na China, e só depois dos quinze foi que viajei nele. Conhecia navios, pois

os havia no Rio Iã-tsé para conduzir-nos a Xangai e, de lá, através do

Pacífico, ou, rio acima, a Kiukiang e às montanhas de Lu, onde nos

refugiávamos do tórrido calor do verão da planície. Só vi ou andei em

automóvel quando entrei no colégio e depois disso passei anos sem voltar a

vê-lo, até à época em que fui viver em meu próprio país. Tornei-me, então,

uma mulher moderna e, naturalmente, passei a viajar pelo ar. Não, esperem

— tomei, certa vez, um pequeno avião desengonçado para encurtar uma

viagem a Rangoon. Se o não fizesse, levaria oito dias a bordo de um barco

vagaroso. E noutra ocasião voei da Suécia a Copenhagen. Sim, e ainda outra

vez voei do Ceilão a Java, descendo, em certo momento, no calor úmido da

selva de Sumatra. Anos mais tarde, minha primeira viagem a jacto foi na

Europa, a bordo dos incrivelmente rápidos e silenciosos aviões que voam

entre Copenhagen e Roma. Meu interesse pela ciência manteve aguçada a

minha curiosidade no que se refere ao progresso dos jatos e dos foguetes, e

agora me impaciento com tudo quanto seja menos veloz que o jacto — eu,

que comecei a vida a uma velocidade não superior a cinco quilômetros por

hora, numa liteira!

Mas quando o jacto me ergueu da terra ao céu, naquela manhã de maio

em Nova York, confesso que experimentei uma exaltação quase única. O

enorme pássaro metálico aprestou-se para o vôo, seus motores roncaram, a

criatura tremeu com a sua própria força interior. Parte da exaltação era,

talvez, a inquieta consciência de minha completa impotência, ao ganharmos

altura. Eu me havia entregue à máquina. Não podia fugir, não podia descer.

Não tinha decisões a tomar, pois o único caminho era subir. Um velho

provérbio chinês diz que, dos trinta e seis caminhos de fuga, o melhor é

correr. Não sei quais são os outros trinta e cinco — é curioso que, durante

tantos anos na China, nunca pensei em perguntar, talvez porque a resposta

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óbvia seria a de que os outros caminhos eram desnecessários, pois sempre se

pode correr. Mas em nossa época moderna isto já não é verdade. Quando nos

entregamos a um avião e a porta se fecha, separando-nos da terra e do lar,

não há mais fuga, mesmo correndo. O resultado é uma estranha sensação de

paz — desesperada, talvez, porém paz.

Tais pensamentos fortuitos esvoaçavam através de minha mente, naquela

manhã, enquanto observava, pela pequena janela, o globo afastar-se,

rodopiando, de mim. Quando — e se — eu regressasse a ele horas depois, o

vasto continente da minha terra natal e a faixa, azul do Oceano Pacífico

estariam entre mim e o meu lar, embora na minha infância nosso navio

levasse semanas para atravessar o mesmo oceano e nosso trem mais outra

semana para atravessar o continente. Contudo, este mundo novo nunca me

parecera estranho. A velocidade tornara-se coisa tão natural quanto

necessária. Flutuávamos sobre um mar de nuvens prateadas e eu me recostei

na poltrona para trabalhar no script de meu filme.

As Ilhas do Havaí são trampolins entre a Ásia e os Estados Unidos.

Lembro-me delas como ilhas de esperança, quando eu era menina e viajava

em navios. Dez dias de São Francisco a Honolulu, ou oito dias de Yokohama

a Honolulu, era a previsão. Mas, rumando para o oriente ou para o ocidente,

estava sempre ansiosa por alcançar as ilhas do verde eterno, onde se podia

colher cocos à vontade e as grinaldas de flores fragrantes eram o

cumprimento de todos os dias. A velocidade do avião privara-nos um pouco

da excitação do grande navio atracando suavemente no cais, depois da longa

viagem, e da vista de grupos de amigos esperando, ou mesmo da tristeza dos

últimos momentos de adeus, amigos acenando do cais enquanto o grande

navio içava as âncoras para iniciar a longa viagem.

A bordo de nosso avião a jacto, aterrissamos hábil e precisamente em

Honolulu, sem o menor atraso, e fomos recebidos por pessoas eficientes que

nos levaram ao hotel para passarmos a noite. Eu decidira por essa parada,

não apenas porque queria rever Honolulu, mas particularmente porque

desejava rodar uma vez mais ao longo das sinuosas montanhas, atrás da

cidade. Queria ver os esquiadores aquáticos cavalgando as suas pranchas na

crista das ondas. Desejava, acima de tudo, sentir a atmosfera do Havaí, agora

como Estado livre de uma nação livre. Eu imaginava que, pertencer a uma

nação, como parte integrante, devia significar o abrandamento dos

descontentes e resmungões da ilha — não que houvesse muitos resmungos

no Havaí, onde o ar é sempre tépido e a chuva e o sol caem diariamente tanto

sobre justos como injustos, em geral ao mesmo tempo. Não — seria uma

questão de estado de espírito.

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Era noite quando chegamos e a lua brilhava sobre a alvura da

arrebentação e o mar escuro. O hotel era palaciano e ao atravessarmos o

imenso vestíbulo para reclamar nossos quartos a fim de nos instalarmos para

dormir, homens e mulheres ainda iam e vinham, gente de várias raças e

costumes. Ninguém me era estranho, a não ser as turistas, em "Mãe

Hubbards", aqueles trajes legados por missionários sensíveis nos dias

primitivos em que, como Adão e Eva no seu Éden, os havaianos não sabiam

que estavam nus. Os missionários sabiam, naturalmente, e, gozando as

fantasias e caprichos do coração humano, pensei algumas vezes se teriam

sido os primitivos missionários que ordenaram às adoráveis mulheres nuas

que se cobrissem, não fosse o santo ceder ao diabo que há dentro de todos

nós, ou se teriam sido as missionárias, de saias e mangas compridas, de golas

altas, as quais sabiam jamais poder competir com os macios corpos morenos

que nada mais vestiam além de um alegre pedaço de pano ou um punhado de

folhas nos quadris e uma flor vermelha nos seus ondulados cabelos negros.

Só Deus sabe, e Ele guarda tais segredos para Si mesmo — com um sorriso,

talvez! Hoje, graças aos caprichos da moda, as moças do Havaí trajam

elegantes vestidos ocidentais e as turistas vestem esvoaçantes "Mãe

Hubbards" e mais uma vez são as havaianas que levam a melhor.

O ar do Havaí é divino, nada menos. Deitei-me em minha confortável

cama, dormi e acordei para respirar a suave e pura atmosfera soprada para

dentro do aposento por um vento gentil do mar, e tornei a dormir até que o

sol inundou o quarto. Levantei-me, tomei banho, vesti-me e fiz sozinha a

primeira refeição, no terraço contíguo ao aposento. O ar, lá fora, era

exatamente da temperatura do meu corpo. Não senti choque de frio nem de

calor. É assim que uma criança não nascida deve sentir as águas acolhedoras

de seu primeiro lar. Suave fluidez indescritível, e o resultado é o bem-estar,

ausência total de conflito com o meio circundante.

Já havia esquiadores aquáticos desfrutando a expansão matinal das

ondas, e homens e mulheres quase despidos vadiavam na praia. E eu tinha

toda a razão quanto à mudança de estado de espírito. O garção, que trouxera

meu café, movimentava-se com uma calma e uma confiança que

significavam satisfação íntima. Conversamos brevemente sobre o assunto,

após ter eu observado que, quando lá estivera antes, Honolulu não era capital

de um Estado.

— Tudo agora é melhor, disse-me ele.

— Melhor como? perguntei. Ergueu os ombros, expressivamente.

— Não é questão de comida, de roupas ou de coisas que se possa pegar

com as mãos. É, apenas, melhor... Agora existimos. Agora podemos falar...

Madame, a marmelada está muito boa — laranja fresca, abacaxi fresco.

Recomendo-lhe!

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— Obrigada, tornei eu, e acho que tem razão. Tudo está melhor.

Refleti sobre essa sabedoria depois que ele partiu o meu ovo na xícara,

serviu-me café e se foi. A exclusão é sempre perigosa. A integração é a

única segurança, se vamos ter um mundo pacífico, integração numa

comunidade nacional, inclusão numa comunidade internacional de nações.

Creio que todas as nações devem pertencer às Nações Unidas, tão inevitável

e irrevogavelmente quanto uma criança tem de nascer numa família. A

renúncia deve ser impossível. Se, num arroubo de impertinência, a criança se

retira ou mesmo foge, ainda continua sendo um membro da família. A

relação básica se aplica, numa escala mundial, à família das nações. Todas as

coisas básicas são simples e compreensivas. Só as coisas simples podem ser

suficientemente grandes para conter todas as confusões.

Não gosto de praticar esqui aquático. O mar e eu não somos inimigos,

mas somos, digamos, amigos cautelosos. Tenho tido encontros com o mar

colérico, e até mesmo com o mar cordial, dessa cordialidade que o leão

também possui, quando derruba um homem com uma patada brincalhona.

Certa vez, num dia de agosto, no Vinhedo de Martha, ele e eu estávamos

nadando na arrebentação. Alguns dias antes houvera uma tempestade e,

embora o céu estivesse azul naquela manhã, o mar se agitava em ondas

magníficas.

— Segure minha mão, disse ele. — Juntos seremos bastante fortes.

Não nos tornamos bastante fortes, mesmo juntos. O mar apanhou-nos em

suas enormes garras, quebrou-se o equilíbrio, sacudiu-nos violentamente até

deixar-nos sufocados, cegos e quase afogados. Ainda de mãos dadas, fomos

afinal atirados à praia e assim escapamos. O que recordo era a nossa total

impotência, naqueles momentos, dentro da onda, quando ficamos à mercê de

uma força insensata e impiedosa. Caminhamos em silêncio pela praia, ele e

eu, gratos pela vida e não querendo saber mais do mar naquele dia.

Não tinha vontade alguma, por conseguinte, de esquiar sozinha em

Honolulu.

Tampouco adianta imaginar que posso me divertir numa multidão. Há

caçadores de autógrafos em toda parte do mundo e, não gostando de parecer

descortês, o melhor para mim é permanecer solitária. Sozinha, portanto,

apreciei meu terraço, a vista do mar e da montanha. Li os jornais locais,

sempre uma ajuda à compreensão, e deixei o dia fluir até o almoço com

amigos e um passeio ao redor > das ilhas num jipe aberto. Waikiki é para

turistas e só quando saímos dela é que vemos as outras praias, abrigadas em

enseadas, onde as pessoas que vivem em Honolulu, ou nas proximidades,

reúnem suas famílias para se divertirem e fazer piqueniques. A estrada é

excelente e percorre um litoral deslumbrante. Paramos várias vezes para

observar o estouro das pesadas ondas contra as negras rochas de lava antiga.

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Novamente, como tantas vezes em minha vida, demorei-me a admirar,

maravilhada, os estranhos e íngremes penhascos daquelas montanhas negras

e abruptas, encarando o mar. É incrível que seres humanos possam galgar

aqueles altos pilares de rocha vulcânica, ou que existam cavernas e fendas

entre elas. Contudo, em outras épocas, homens as galgaram levando para

dentro das cavernas e fendas canoas e botes, transformando-os em túmulos

de seus famosos capitães do mar. Hoje, outros homens as galgam para trazer

de volta as embarcações, limpá-las da poeira antiga e colocá-las em museus.

Lembrei-me da Noruega e,dos grandes navios em museus, os quais lá

também eram túmulos dos homens do mar. Aqui no Havaí a façanha parece

incrível em virtude da formação íngreme das montanhas semelhantes a

recifes.

Estava escuro quando voltamos ao hotel e as manchetes do jornal da

tarde noticiavam um vasto terremoto no Chile. Li o relato do desastre e me

afligi por aqueles que haviam perdido a vida.

Chile! Recordei que a Expedição Downwind, do recente Ano Geofísico

Internacional, levara em navio, na sua exploração suboceânica do Pacífico,

um aparelho que, posto no chão marinho, podia medir o fluxo de calor

proveniente do centro da Terra para o solo do Pacífico. Na elevação da Ilha

de Páscoa o fluxo de calor aumentou acentuadamente. A Ilha de Páscoa e

Sala y Gomez, ambas chilenas, são o resultado desse aumento. E logo depois

da costa ocidental do próprio Chile há uma longa e profunda vala, de base

muito estreita, uma compensação dos Andes, mas produzida provavelmente

por um rio serpeante de elemento frio, fluindo do centro do oceano e abrindo

caminho sob a rochosa massa continental. Um estranho e silente mundo

subterrâneo, este leito oceânico, mundo violento quando sobrevém a

catástrofe, no conflito entre o fogo e a água, o calor e o frio.

O Chile parecia muito distante das aprazíveis ilhas do Havaí e eu me

voltei para as exigências da noite. Jantaríamos no night club do outro lado da

rua e fomos, portanto, apreciar as comidas, a música e as danças havaianas.

As danças fizeram-me rir repetidas vezes. Não eram apenas belas — também

sutis e alegres, sátiras da vida. Uma dança, ostensivamente em memória dos

primeiros missionários, era particularmente cômica. Entrou no palco uma

encantadora e esbelta morena. Trajava um vestido ocidental branco e fora de

moda, de musselina bordada, não uma "Mãe Hubbard" mas a espécie do

vestido que uma mulher de missionário deve ter usado há uma centena de

anos, gola alta, mangas compridas, estreito no colo, saia arrastando no chão,

de cauda franzida. A moça era a imagem da doce inocência, seus longos

cabelos negros suavemente penteados formando um coque na nuca. O único

toque colorido, com exceção de seus polpudos lábios vermelhos, era uma

flor escarlate de hibisco atrás da orelha esquerda, e essa flor me tornou

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desconfiada. Em poucos minutos minhas suspeitas foram confirmadas e não

pude conter o riso. Pois essa moça, essa inocente donzela da ilha, envolta em

branco da cabeça aos pés, executou uma dança tão carregada de todos os

ardis que a mulher usa para seduzir o homem que a própria Eva, se a tivesse

visto, ter-lhe-ia pedido algumas lições. Dentro de sua branca embalagem o

bonito corpo moreno se arqueava e estremecia em alegria sensual, não

primitiva pois essa alegria é eterna, renovando-se em cada geração de

homem e mulher, uma dança de amor.

A luz amortecida das lanternas caía sobre o círculo de faces atentas, cada

qual absorta em seu próprio sonho, sua lembrança pessoal ou desejo

insatisfeito. Quando terminou, houve um silêncio, um longo suspiro, depois

aplausos estrondosos. A encantadora jovem sorriu, agradeceu e se foi.

Embora continuássemos aplaudindo até nos arderem as palmas da mão, ela

não voltou à cena.

O mestre de cerimônias prefaciava cada número com uma agradável e

animada conversa. Por diversas vezes, durante a noite, mencionara uma

ressaca. Dissera, atirando a palavra como se fosse uma piada, que talvez

apreciássemos a excitação de uma ressaca e que, por conseguinte,

encomendara uma como atração adicional para a noite. Nenhum de nós o

levou a sério até o momento em que, agora, ao despertarmos novamente para

a realidade, ele começou de novo a tagarelar sobre a ressaca. Súbito, ouvi de

maneira aguda e clara o que ele dizia. Não estava nos anunciando uma

ressaca — advertia-nos de sua aproximação.

Levantei-me imediatamente, com minha companheira, saí da sala e

atravessei a rua em direção ao hotel. Lá tudo era confusão. Hóspedes

estavam sendo transferidos para os pavimentos superiores e havia barricadas

nas ruas que davam para o mar. Que fazer? olhamos uma para a outra,

consternadas. A partida de nosso jacto estava programada para a uma hora

da madrugada. Agora, eram quase onze horas. Se a vida e suas crises me

ensinaram alguma coisa, foi continuar com o plano traçado até que a sua

execução se torne impossível. Corremos, pois, aos nossos quartos,

arrumamos as malas e tomamos o último táxi disponível para o aeroporto.

O aeroporto, em Honolulu, como todos sabem, fica numa estreita

península exatamente acima do nível do mar. Quando chegamos, estava

alarmantemente vazio. Uns poucos empregados olhavam o horizonte e o

chofer mostrava-se apressado em receber o seu dinheiro e ir embora.

Minutos depois encontramo-nos sozinhos na grande sala de espera e fomos

escoltados por um soturno funcionário até o pavimento superior, entrando

numa confortável sala de clube, na qual havia apenas uma assustada

garçonete atrás do balcão de refeições. Recebeu-nos sem entusiasmo, serviu-

nos o café e em seguida dirigiu-se para a grande janela, de onde ficou

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olhando a escuridão sobre o mar. Sentamo-nos no sofá e ficamos ouvindo,

obrigatoriamente, o clangor do rádio, instalado no teto, sobre nossas cabeças.

Estava transmitindo jazz, mas de quando em quando a música era

interrompida e uma voz inexorável anunciava que a ressaca atingira outra

ilha e que a sua altura estava aumentando. Em poucos minutos golpearia

Hilo, com uma altura calculada em mais de dezoito metros. Aprendemos,

também, que a ressaca era conseqüência do terremoto no Chile. Havia uma

conexão continental, sob o oceano, entre aquela profunda vala, na costa

chilena, e as ilhas do Pacífico. Estranho simbolismo, esse, pelo qual um

terremoto, num hemisfério, produz uma ressaca no outro!

Minha meditação foi interrompida pelo súbito desaparecimento da

garçonete. Ela voltara ao balcão, murmurando algo sobre seu marido e seus

três filhos. Ficariam alarmados quando não chegasse em casa à meia noite,

como de costume? Não podíamos responder à sua pergunta, nem ela

tampouco, e sem outra palavra, nem ao menos adeus ou boa noite, deixou-

nos e não tornamos a vê-la.

Permanecemos sentados na vasta sala. A música de jazz extinguiu-se à

meia noite e ficou apenas a voz, anunciando a investida da ressaca.

Consideramos nosso destino, fosse ele qual fosse, e a conversa cessou. Os

aviões tinham sido removidos do campo, disse-nos a voz, e todos os vôos

foram cancelados. As estradas para o hotel estavam interditadas. O silêncio

sobre a cidade era ominoso. Tornamo-nos parte do silêncio. Nada havia a

fazer, exceto esperar.

Súbito, à uma hora da madrugada, em ponto, a porta se abriu. Um rapaz

ofegante gritou-nos que descêssemos imediatamente ao campo. Nosso jacto

decolaria nos próximos minutos. Sim, a bagagem estava a bordo. Pegamos

nossas maletas de mão e corremos atrás dele. Lá estava o jacto. Fomos

empurrados para o seu bojo, e mais depressa do que jamais vi um jacto

decolar, subimos ao céu. No momento exato em que deixamos a terra, o

rádio anunciou a chegada da ressaca.

Subindo ao céu, lembrei-me da morte. As precedentes horas de

ansiedade, o instante final da partida, a inevitável separação da terra e tudo

quanto havíamos aprendido, a ascensão ao espaço desconhecido — não é

esta a experiência da morte? Há uma diferença. Do vôo final não se regressa.

Para nós havia a esperança de regressar ao belo Japão.

Contudo, antes que pudéssemos chegar de novo à terra, a ressaca havia

golpeado. Cortando velozmente o ar, a grande altitude, soubemos pelo rádio

que, viajando em direção ao ocidente, ela já havia alcançado o Japão. Viajara

mais depressa que o nosso jacto para atacar, com cruel violência, as praias

nordestinas. O povo da região fora advertido pelo governo, mas não podia

compreender. A experiência lhes ensinara que terremoto e ressaca vinham

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sempre juntos. Não podiam compreender que um terremoto no Chile

significasse uma ressaca em suas praias. Que estranha coincidência, a de

estarmos chegando ao Japão, naquele exato momento, para fazer um filme

intitulado A Grande Onda!

— Como foi que o conseguiu? perguntaram os repórteres, no aeroporto,

em Tóquio. — Quem é o seu agente de publicidade?

Estavam brincando, naturalmente. Não tínhamos agente de publicidade,

mas era certo que viéramos montados na publicidade da gigantesca ressaca.

Afligia-me que o meu regresso à Ásia se verificasse junto com uma

tempestade. Sentia-me impotente para outra coisa que não fosse exprimir

minha simpatia pelos que haviam sofrido.

Quanto ao mais, esperara uma chegada tranqüila a Tóquio. Era entre

duas e três horas da madrugada e eu não imaginei que houvesse alguém no

aeroporto para receber-me. Pensei que um ou dois sócios em negócios,

alguns amigos, talvez, depois uma rápida corrida através das ruas escuras até

o velho Imperial Hotel, um banho e cama. Fora um longo vôo, afinal de

contas. Em determinado momento, durante a noite, pousamos na Ilha Wake

para reabastecer o avião, mas isto não parecera importante. Vi, pela janela,

apenas um amontoado de prédios e homens movimentando-se aqui e acolá,

tratando de seus negócios. Poderia ter sido em qualquer lugar, no meio da

noite. Tóquio era outra coisa.

— Alegra-me que tenhamos chegado a uma hora tão macabra, dissera

eu. — Não pode haver ninguém à nossa espera.

— Não tenha tanta certeza, redargüiu minha companheira.

O grande avião estremeceu ao baixar e as luzes de Tóquio brilharam

entre as trevas.

— Eu estava certa, disse. — Não há ninguém aqui. Um homem em _

uniforme branco avançou para mim.

— A senhora é...

— Sim, somos nós, respondi.

— Então seja bem-vinda ao Japão, tomou ele. — Pertenço à aviação

japonesa. Por aqui, por favor... Um momento, por favor... fotógrafos e

repórteres.

Paramos. Luzes nos focalizaram nas trevas e câmaras dispararam.

Repórteres aglomeraram-se à nossa volta, com perguntas e exclamações

sobre a ressaca.

— Obrigado, disse o homem quando demonstramos sinais de exaustão.

— Seus amigos estão à sua espera.

Esperando por nós? Passamos rapidamente pela alfândega e nossos

amigos nos esmagaram, literalmente, com saudações e flores.

Como me senti? De certa maneira, também, como se tivesse chegado à

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pátria após longa ausência. De certa maneira, também, como se tivesse

chegado a um país novo e estranho. As faces sorridentes, as vozes cálidas, às

vezes os olhos marejados de lágrimas, reclamavam-me como a um dos seus.

Homens e mulheres que eu conhecera jovens durante minha própria

juventude lá estavam, tão mudados quanto eu, tendo a seu lado filhos e netos

como os que eu deixara em casa, os meninos em roupas ocidentais, as

meninas em seus quimonos formais.

— Minhas filhas levantaram-se à uma hora da madrugada a fim de que

pudessem vestir o quimono para recebê-la, disse com orgulho uma amiga.

Eu sei quanto tempo leva vestir apropriadamente um quimono e fazer o

penteado adequado. As meninas eram belas e me alegrei por haverem elas e

as outras vestido quimono para fazerem sentir-me em casa, pelo menos

quando chegasse. No tempo em que morei no Japão, antes da guerra, todas

as minhas amigas usavam quimono. As mais modernas e liberais possuíam,

talvez, um costume ou vestido ocidental, mas isto era incomum e não muito

aprovado. Agora as japonesas usavam vestidos ocidentais todos os dias e

sempre, exceto nas poucas ocasiões formais da vida, quando punham seu

quimono. Muitas delas têm só um quimono e algumas nenhum. Há exceções,

naturalmente. As velhas usam quimono e certas mulheres distintas, mesmo

em seus negócios, o usam sempre. Minha especial amiga usa quimono

porque lhe assenta bem. Ela alcançou a posição e a idade em que pode usar o

que lhe apraz.

Naquela noite, atrás da multidão amiga com suas flores e fotógrafos, eu

estava consciente da própria cidade de Tóquio. Sabia quão severamente fora

bombardeada durante a guerra e que agora se achava reconstruída, nova e

próspera, talvez um símbolo do Japão que me era estranho. Contudo, pensei,

mesmo as pessoas que foram receber-me pareciam mudadas para melhor. O

velho formalismo rígido havia, de certo modo, desaparecido. Ouvi risadas

prontas, não o velho riso polido, mas espontâneo e real. Todos falavam

livremente e sem medo. Isto era novo. Perdurava a doce cortesia, mas

impregnada de vida e bom humor, como se uma antiga inibição tivesse sido

removida. Esta foi a minha primeira impressão, naquela noite, e tornarei a

falar nisso muitas e muitas vezes porque a encontrei expressa em toda parte e

de várias maneiras.

Entrementes, os fotógrafos acompanhavam pacientemente nossos passos.

Os fotógrafos japoneses são infatigáveis, filosóficos e incrivelmente ágeis.

Não pedem sorrisos ou poses agradáveis. Suas câmaras disparam

incessantemente, onde quer que a pessoa esteja e faça o que fizer.

Voam dentro da noite como vaga-lumes. Fomos fotografados

continuamente, cobertos de flores e cercados de amigos. Movemo-nos em

massa, afinal, para os carros que nos esperavam e fomos conduzidos, a toda

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velocidade, para o Imperial Hotel. Não sei por que nunca tive medo dos

motoristas japoneses. Arremetem através de ruas sem sinais e de multidões

compactas, gritando e advertindo, contudo não sofrem acidentes; eu, pelo

menos, nunca vi algum. Tudo isso me parecia bastante natural, recordando-

me outros dias, anos antes, quando fui conduzida exatamente do mesmo

modo, através de ruas ou ao longo da beira de penhascos, montanhas acima e

abaixo, ou sobre o mar e a estrondosa arrebentação. A falta de medo talvez

se deva simplesmente ao fato de que, na Ásia, eu me descontraio adotando a

aceitação oriental e compreendo que nada há, praticamente, que eu possa

fazer a respeito de nada.

Afinal chegamos, e vivos, ao Imperial Hotel, esse paraíso onde o Japão

recebe o mundo com a sua própria graça e estilo, combinados com um

espantoso acervo de conforto e bom serviço. Uma hora depois, estávamos

dormindo em aposentos refrigerados, cercados de flores em cestas japonesas.

Não obstante, demorei muito a adormecer. A memória se pôs a trabalhar

e imagens desfilaram pela minha mente. A primeira foi a face vivida de

minha mãe, cabelos castanhos, pele morena, olhos castanhos. Estávamos

sentadas na ampla varanda de nossa casa, na China. Eu tinha, talvez, sete

anos, garota descalça de compridos cabelos louros, sentada no chão diante

dela, apertando os joelhos e escutando. Ela me contava a história de minha

irmã, que morrera antes de eu nascer.

— No Mar Amarelo, dizia minha mãe, entre o Japão e a China.

Tínhamos ido passar o verão no Japão, nas montanhas que ficam atrás de

Nagasaki. Foi antes de descobrirmos Kuling, nas montanhas de Lu, em

Kiangsi, aqui na China. Fazia tanto calor no Vale do Iã-tsé, que receei pela

saúde das duas crianças. Passamos um ótimo verão no Japão — o ar era

fresco e saudável no alto daquelas montanhas. Eu queria ficar até outubro,

mas seu pai disse que precisava voltar em setembro. Não deveria ter-lhe

dado ouvidos, mas sempre o fiz. Voltamos num vapor japonês — o

Hiroshima Maru — o bebê adoeceu. Não sei o que era — febre alta e

disenteria. Tinha apenas seis meses de idade e não era forte. E eu sempre

sofro de enjôo, no mar — não podia nem mesmo segurá-lo. Seu pai tentou

cuidar de mim. E o velho Dr. Martin começou a passear no convés com o

bebê nos braços. Nunca esquecerei o seu aspecto — tão alto e ereto, com o

pequenino bebê no colo.

Aqui seus olhos sempre se enchiam de lágrimas e eu também soluçava

por vê-la chorar, e me aproximava dela. Estendeu a mão para mim e eu a

agarrei com as minhas.

— E então? supliquei.

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— Bem, você sabe, querida. Ela morreu em meus braços. Eu estava

deitada numa espreguiçadeira, tão doente! Era uma noite parada e quente, a

velha Lua mergulhando no mar. E súbito o vi deter-se e examinar o rosto do

bebê. E eu... compreendi.

Senti a mão dela em minha face, ansiei por confortá-la e de fato a

confortei, suponho, à minha maneira infantil. Pois a história usualmente

terminava com ela enxugando os olhos e dizendo vivazmente:

— Agora vamos ouvir um pouco de música, antes de irmos para a cama.

Ou talvez sugerisse uma laranja, manga ou um pedaço de toranja.

Que coisa volátil a memória! Quando pensei na toranja, lembrei a delícia

dessa fruta suculenta e doce, parenta da grape-fruit mas infinitamente

melhor sob todos os aspectos, a casca fácil de destacar, os gomos soltos uns

dos outros e o sabor soberbo. Comparada com ela, a grape-fruit é uma

pequena bolsa de caldo azedo que só se extrai com muito esforço. Resolvi

procurar toranjas novamente, no Japão, pois não as tinha visto em meu país.

Dos lábios de minha mãe, portanto, ouvi pela primeira vez os nomes de

cidades japonesas, e vi, com os olhos do espírito, paisagens de montanha e

litoral. E minha pequenina irmã morta fora enterrada num cemitério cristão

de Xangai, como eu sabia, pois vi seu nome com os de três outras crianças

de nossa família, que nasceriam mais tarde na China, e lá morreriam. Isto foi

antes de eu nascer na casa colonial de minha avó, em West Virgínia.

Contava nove anos quando vi pela primeira vez o Japão, o que se deu

quando visitei também pela primeira vez a minha própria terra. Nosso navio

parou em Nagasaki. Era um barco canadense, pois meu pai estava

convencido de que somente os ingleses sabiam de fato fazer navios e pô-los

a navegar, e só em um capitão inglês se poderia ter confiança de que

controlaria adequadamente a sua tripulação. A cidade de Nagasaki é um

porto marítimo, naquela época bem pequeno, um punhado de casas plantadas

na praia e empurradas, por trás, pelas altas montanhas. O povo falava um

dialeto e meu pai não me deixou aprender uma palavra sequer, porque,

explicou, não se tratava de japonês puro e era importante que as primeiras

palavras de uma língua fossem aprendidas com a sua pronúncia perfeita. Ele

próprio era um lingüista consumado e eu sempre lhe obedeci. De outra

maneira, isto não me haveria ocorrido. Quanto ao nome de Hiroshima,

permaneceu para mim como o nome do navio japonês no qual minha irmã

morreu, até anos, décadas mais tarde, quando se tornou a cidade da morte,

depois que a bomba caiu.

O vestíbulo do Imperial Hotel é o lugar onde qualquer um encontra

qualquer um, de qualquer parte do mundo. Desci a ele na manhã seguinte

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num elevador cujo cabineiro era uma bela japonesa em quimono. Quando

entrei no vestíbulo fui abordada por uma americana de fisionomia agradável.

— Você me parece familiar, disse ela. — Sou de Ohio. Não a conheço?

Sorri e sacudi a cabeça. Ela sorriu e continuou seu caminho. No instante

seguinte minhas mãos foram calorosamente agarradas e vi, à minha frente,

um velho amigo da índia.

— Imagine, encontrá-la aqui, gritou ele. — Por que não está em Nova

Delhi? Nosso quarto de hóspedes a aguarda.

Sentamo-nos e trocamos promessas. Deu-me notícias de sua família, de

sua bonita e jovem esposa, muito mais moça que ele e que contrariara a

vontade dos seus para desposá-lo, pois ele tem idade suficiente para ser seu

pai. Mas ela é uma jovem decidida, eram felizes juntos e, para seu imenso

orgulho, dera-lhe dois filhos. Tirou fotografias da carteira, enquanto me

falava deles. Vi a família reunida em seu belo jardim tropical. Ismaya estava

encantadora em seu sari, uma jovem mulher tranqüila e bem organizada,

seus dois meninos segurando-lhe as mãos e, atrás deles, meu amigo, alto,

elegante e de cabelos grisalhos.

— Pareço o avô, não é? observou orgulhosamente. — Mas deixe-me

dizer-lhe: aconselho aos pais a que tenham filhos quando forem velhos.

Minha casa nunca estará vazia. Deixá-la-ei antes de meus filhos e, quando eu

me for, eles confortarão sua mãe.

Minha secretária japonesa achava-se a meu lado. Curvou-se, sorriu

conciliadoramente e lembrou:

— Por favor, agora está na hora da entrevista coletiva. Todos estão

esperando.

Entrevista coletiva! No Japão este é um acontecimento formal,

formidável mesmo, e disso tivemos a prova. O dia era quente, maio em

Tóquio é sempre quente. Reunimo-nos numa vasta sala, na extremidade da

qual havia uma comprida mesa e, atrás desta, uma fila de cadeiras. Tomamos

nossos lugares, não ao acaso, mas de acordo com meticuloso protocolo.

Discutimos, primeiro, quem sentaria à mesa. Depois discutimos a ordem em

que nos sentaríamos.

Tenho comparecido a muitas entrevistas coletivas, mas a respeito desta

havia uma excitação peculiar. A grande sala estava apinhada de repórteres de

todos os jornais e revistas — mais de setenta. Os fotógrafos eram

numerosos, porém permaneciam esperando, tranqüilos, com as câmaras em

repouso.

Como é habitual no Japão, a entrevista começou com discursos de

pessoas selecionadas. Em nosso caso, fora combinado que eu faria algumas

breves observações a título de introdução. O que eu disse foi, simplesmente,

que me sentia feliz por estar de novo no Japão, grata pela bondade com que

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me receberam em minha última visita e pronta a informar sobre o avanço de

nosso projeto, A Grande Onda, uma história japonesa. Falei que estávamos

contentes por poder dizer-lhes que uma de suas próprias companhias era co-

produtora do filme e que havia solicitado ao diretor dessa companhia que

fizesse a comunicação formal.

Enquanto isto ocorria, as costumeiras moças bonitas serviam-nos copos

de chá gelado. Grande inovação, essa do chá gelado, influência do Ocidente,

sem dúvida, pois eu só me lembrava de haver tomado chá quente no meu

tempo. Naquele calor úmido o chá gelado era uma bênção. A imprensa

permanecia submissamente sentada, sem chá, ouvindo com atenção. Não

eram permitidas perguntas enquanto não terminassem as discussões.

O discurso, neste caso, foi notável. O diretor da companhia

cinematográfica era muito conhecido e altamente respeitado. Homem do

lado jovem da meia-idade, temperamento calmo, completa segurança e

agradável calor. Não compreendo japonês, mas o discurso continuou durante

algum tempo. Fiquei a imaginar o que estaria dizendo, pois habitualmente é

homem de poucas palavras. Nosso tradutor contou-nos depois, em particular,

o que fora dito. Como podia deixar de emocionar-me? Havia sido um bonito

discurso, no qual dissera que sua companhia se sentia honrada por tomar

parte na filmagem de A Grande Onda. Disse que certa vez ele próprio

pensara, alguns anos antes, em fazer um filme do livro, pois o lera numa

época de profunda depressão espiritual, quando o Japão se achava diante do

mundo, pela primeira vez em sua altiva história, como nação derrotada. Ele

próprio não sabia como recuperar a confiança mental. Um dia encontrou esse

livrinho e o leu. Sentiu que o autor desejara transmitir, através dele, uma

mensagem de esperança ao povo japonês, uma crença em que, se eles

haviam vivido através dos séculos com a constante possibilidade de

destruição por maremotos e terremotos, e na verdade sofreram várias vezes,

tragicamente, os efeitos de tais catástrofes naturais, apenas para

sobreviverem com renovada força e coragem, assim também tornariam a

sobreviver mesmo à derrota. Agora, por uma coincidência peculiar, tinha a

oportunidade de tomar parte, por intermédio de sua companhia, no preparo

da versão cinematográfica da história. Anunciava, portanto, naquela

entrevista coletiva, que sua companhia se reunira aos americanos como co-

produtora de A Grande Onda.

Ouvi, com gratidão à vida. Para uma escritora constitui a mais alta

recompensa saber que um livro, escrito em dúvida e solidão, atingiu um

coração humano com uma significação ainda mais profunda que aquela de

que a escritora tinha consciência ao escrevê-lo. É algo extra, a compensação

inesperada. Muitas perguntas seguiram-se ao discurso. Referiam-se à

produção, ao local da filmagem, aos nomes dos atores, pois tínhamos que ver

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e ouvir muitos candidatos. Vinham se processando negociações, havia

semanas, com certos astros, e somente um ficara decidido. Mostrávamo-nos

resolutos, esgrimíamos com bom humor todos os esforços feitos para extrair

informações sobre o elenco. Súbito, quando nos achávamos prestes a

dispersar, recebemos notícia de que haviam chegado a bom termo as

negociações relativas a um astro. Pudemos, então, anunciar que o conhecido

ator japonês Sessue Hayakawa faria o papel do Velho Cavalheiro em A

Grande Onda.

Com isto os jornalistas partiram, exceto uma repórter inglesa que não

entendia japonês. Gastei alguns minutos com ela e com mais um ou dois que

desejavam algumas informações especiais.

Todos então se foram e fiquei novamente só. Este era o esquema

imutável de meus dias desde que ele cessara de ser ele mesmo — uma

multidão, depois ninguém. Sentia saudades, agora, especialmente porque ele

teria gostado dessa entrevista coletiva. Presidira muitas delas, para mim, em

várias partes do mundo, a primeira das quais quando voltei da China, tímida

e bastante assustada para determinar, no segredo do meu espírito, que, fosse

o que fosse que estivesse à minha espera, eu não permitiria modificação

alguma em minha vida. Foi modificada, naturalmente, no momento em que

nos conhecemos em Montreal. Eu chegara de Xangai por mar e por trem e

embora o conhecesse um pouco através de suas cartas — escrevia as cartas

mais encantadoras e bem compostas que jamais li — vi-o pela primeira vez,

queimado pelo sol e com olhos de um azul surpreendente. Fiquei sem fala,

com a minha habitual timidez, mas ele estava perfeitamente à vontade, como

sempre estivera em qualquer parte e com qualquer um, feliz atributo para

mim quando tive de enfrentar, no dia seguinte, a formidável imprensa em

Nova York. Mas ele conhecia os repórteres e eles o conheciam e o

apreciavam, pois começara sua vida profissional como jornalista. Colocou-

nos todos à vontade e me surpreendi respondendo francamente às perguntas

que me faziam. Demasiado francamente, disse-me ele depois, divertido, pois

quando indagaram minha idade não me ocorreu escondê-la, porquanto na

China cada ano era considerado uma honra a mais.

Seu desembaraço natural fazia dele um excelente presidente, e de fato

presidia uma espantosa variedade de organizações. Quantas vezes tomei

assento nessas reuniões e fiquei a observar enquanto ele, aparentemente sem

esforço, permitia a expressão de cada voz dissidente, a apresentação de todos

os argumentos, — e depois, tranqüilamente, em poucas palavras, sintetizava

o consenso de opiniões numa lúcida resolução! Possuía o raro dom de, da

desordem, criar a ordem, um dom editorial. Mas, além disso, possuía o dom

da compreensão humana que o capacitava a selecionar o essencial do

supérfluo e descobrir pontos de acordo entre aqueles que discordavam.

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A pequena secretária apareceu de novo a meu lado. — Temos tempo de

ir ao velho templo Meiji antes de passar no escritório e quero que a senhora

o visite primeiro, por favor, disse-me ela. — Tóquio está nova demais, por

causa dos bombardeios, mas o templo é antigo e a senhora se sentirá melhor

depois de vê-lo.

Chamou um táxi e disparamos através da cidade, tão mudada que eu não

a teria reconhecido, nova, agitada, mas não bonita. O palácio, porém,

continuava como era, intocado. Vi os seus tetos arqueados elevando-se,

como antigamente, atrás das altas muralhas de pedra, circundadas de fossos.

Entramos então no templo Meiji e na velha paz. Vaguei pelos caminhos,

Sumiko discretamente quieta a meu lado, e descansamos à margem do lago.

Está como no meu tempo de menina, quando eu ali ficava com a minha

governanta japonesa. As mesmas carpas gordas, enormes, movendo-se

preguiçosamente entre os nenúfares... Foi o que eu disse a Sumiko.

— As mesmas não, por favor, replicou ela. — Na guerra muita gente

faminta vinha aqui apanhar carpas e come' Ias.

Sustentei, porém, que algumas delas eram as mesmas. Pois não

poderiam, de outro modo, ter crescido tanto, mesmo no decurso de muitos

anos.

— Talvez, tornou ela polidamente. — De qualquer maneira, é tempo de

irmos andando, o escritório espera, sem dúvida.

Atravessamos o portão, tomamos outro táxi alucinado e fomos

transportadas como um raio aos escritórios da grande companhia

cinematográfica japonesa.

Aqui, pausa para um breve interlúdio.

O aspecto mais surpreendente do novo Japão é a mulher japonesa. Minha

primeira amiga japonesa era esposa de um inglês, que vivia numa grande

casa em encosta de montanha, perto do lar de minha infância, na China.

Devo ter conhecido outras japonesas em minhas idas e vindas do Japão, mas

nenhuma me causara impressão tão profunda quanto a senhora da casa

inglesa, e isto porque eu só a via quando passava em sua liteira, transportada

por carregadores uniformizados. Ela sempre usava quimono e os cabelos no

alto penteado lustroso das damas do Japão antigo. O rosto empoado de

branco e os olhos de ônix fitando, vagos, um ponto à sua frente, até divisar-

me, de pé, na poeira da estrada. No verão levava um pequeno pára-sol de

seda branca pintada com flores de cerejeira, e no inverno usava sobre o

quimono um casaco de brocado. Trocávamos olhares, os dela tristes e

inexpressivos até sorrir-me, e os meus abertos de maravilhamento e

admiração pela sua beleza. Uma bela mulher, um homem elegante, uma

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criança bonita, são fontes de alegria, mesmo que o sejam apenas para os

olhos, se o não são para nada mais. Era assim que eu me lembrava dela,

minha amiga de certo modo, por causa do sorriso.

Anos depois, conheci mais intimamente, como amigas, outras japonesas

ocasionais. Elas pareciam, fossem quem fossem, sempre remotas, um tanto

tristes, esmagadas pelo dever, e isto era verdade quer se tratasse da esposa de

um lavrador, quer de um homem rico e de posição. Era preciso sempre

atravessar uma barreira, a do desapontamento com a vida, talvez, se não uma

mágoa pessoal, antes que se pudesse atingir a mulher interior. Talvez ela

nunca pudesse ser alcançada. Sua voz suave e gentil, suas maneiras modestas

e plenas de consideração para com os outros, vestia o silêncio como a um

traje, e a menos que fosse diretamente interpelada, parecia apagada no

segundo plano.

Nada disto é verdade, agora. A mulher antiquada simplesmente

desapareceu do Japão, ou pelo menos é o que me parece. Os homens

mudaram pouco, tanto na aparência como no comportamento. Mas as

mulheres? Não posso descrever as diferenças que, num dia ou num lugar,

encontrei nas japonesas. Permitam-me abordar o tema gradativamente,

através de mulheres particulares que vim a conhecer enquanto fazíamos o

filme.

Mal entramos nos escritórios da grande companhia cinematográfica

japonesa, espantei-me com o que vi. Noutros tempos eu teria sido recebida

por um jovem, secretário e assistente dos diretores. O escritório seria

composto de rapazes. Agora, porém, era composto de moças, todas em

elegantes trajes ocidentais, muitas delas falando inglês fluentemente. Tive a

impressão, também, de que todas eram eficientes e bonitas. Uma delas

avançou para nós, quando aparecemos, e era certamente muito bonita. Tinha

os cabelos curtos e ondulados — deixem-me dizer aqui e agora, e tornar a

repeti-lo, provavelmente quanto deploro a ondulação permanente, no Japão.

Os macios cabelos negros e lisos, que eram, outrora, a glória da mulher

japonesa, são atualmente cortados curtos e torturados em compactos caracóis

em forma de perucas. Pior que tudo, está na moda, especialmente para

atrizes, como vim a descobrir, tingir os cabelos negros de um ferrugento

castanho. O brilho natural se perde e a cor barrenta embaça a leve tonalidade

creme da pele, tão bonita anteriormente. Por algum motivo, esse castanho

ferrugento também tirou o efeito dos olhos negros, embora as japonesas

disponham das últimas novidades para make-up de olhos, maquilagem do

rosto, em forma líquida, seca ou pastosa.

Essa aparência moderna, contudo, nada é, comparada ao comportamento

atual. Desapareceram os modestos olhos baixados, a delicada reserva, a

aproximação indireta dos homens. Em vez disso, olhares ousados, palavras

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francas, ataque sexual aberto a qualquer homem disponível, com preferência

pelos demasiado suscetíveis americanos, é a regra do dia.

Estou me adiantando à minha história. Não aprendi imediatamente tudo

isto, ao entrar nos escritórios da grande companhia cinematográfica

japonesa. O que vi foi um bando de mulheres bonitas, esmeradas, serenas,

eficientes, vistosas e como que indestrutivelmente jovens. Uma delas

conduziu-nos ao gabinete interno. Confesso que foi tranqüilizador ver a

minha especial amiga sentada atrás de uma escrivaninha muito moderna,

sem dúvida, mas vestindo um quimono de seda cinza prateada e um cinto

vermelho pálido. Levantou-se para receber-nos, curvando-se profundamente,

com toda a antiquada graça. Seu inglês é perfeito, e eu sabia que fala

igualmente bem francês, alemão e italiano, pois parte de seu trabalho

consiste em viajar por países europeus, tratando de filmes japoneses. Nada

há, nela, realmente, de antiquado, a não ser seu vestido. É sócia no negócio,

em pé de igualdade, com seu marido e dois outros homens. Eles se rendem à

sua sabedoria, eficiência e julgamento, embora eu tenha ouvido subterrâneos

resmungos ocasionais do gerente de produção, quanto ao fato de que ela

estava "tomando muita altura ultimamente". Mas como se tratasse de um

celibatário, coisa repreensível, por si mesma, num homem de mais de

cinqüenta anos, no Japão, não o levei a sério.

O gabinete era elegante, moderno até à última cadeira, mas da parede

pendiam uma fina pintura antiga e alguma excelente caligrafia. Minha amiga

convidou-nos a sentar, e duas ou três das bonitas moças trouxeram-nos chá

verde em xícaras japonesas. Sorvemo-lo, conversando amenidades. Ela

convidou-me a passar o fim de semana em sua casa de campo de Kamakura.

Aceitei, e disso falarei mais, depois. Não demoramos, pois nunca é de boa

educação, no Japão, prolongar uma primeira visita. Passados cerca de quinze

minutos, a bonita jovem levou-nos ao gabinete do diretor da companhia,

homem alto e elegante, nem jovem nem velho.

Estava sentado atrás de sua escrivaninha e, quando entramos, levantou-

se, curvou-se e convidou-nos a sentar ao redor de uma comprida e ampla

mesa. Não falava muito inglês, e sua secretária, outra moça bonita, servia de

intérprete para nós ambos. Era um homem inteligente, como se podia ver de

suas finas feições civilizadas, e homem do mundo, seguro, autoconfiante,

cortês. A sala, como a maioria dos escritórios e gabinetes no Japão, tinha

atmosfera calma, era bem decorada e parca mas excelentemente mobiliada

com móveis modernos. Sentamo-nos à mesa em confortáveis cadeiras de

couro e outra moça bonita, ou duas delas, trouxe-nos chá fresco. Enquanto os

homens conversavam através da bonita intérprete, eu examinava a sala. Da

parede próxima a nós, no extremo do aposento, pendiam três impressivos

retratos a óleo, dos fundadores da companhia, como me disseram. Esses

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eram os únicos quadros, além de, na parede oposta, como observei a seguir,

um grande calendário, no qual estava impressa, em estilo de cartão postal, a

forma vivaz de uma bela banhista, em plenas cores, fascinante objeto sobre o

qual pareciam ainda estar fixos os olhos dos três solenes cavalheiros, apesar

de mortos. Fiquei a imaginar, rindo interiormente, se uma daquelas

esmeradas e bonitas pequenas não teria pendurado ali a sua duplicata, com

intenção humorística.

Entrementes a conversa prosseguia, animada. Era óbvio que o nosso

anfitrião compreendia perfeitamente o inglês, mas a bonita moça

interpretava para ele de igual maneira, com uma digna vivacidade. Ele,

obviamente, confiava no bom senso e na competência da intérprete. Que

pensa o homem japonês desse novo tipo de mulher? Resolvi tratar de

descobri-lo, algum dia. Quanto a ela, parecia ser extremamente útil, além de

ornamental, e, acima de tudo, parecia feliz. Desaparecera sua antiga tristeza.

A tragédia a abandonara, e se o que a substituíra não fora exatamente a

comédia, fora algo de vivaz e encantador.

Os detalhes de nossa cooperação foram fixados num espaço de tempo

espantosamente curto — se é que se pode fixar a fluidez e as exigências de

uma filmagem. Concluídas, pelo menos, as preliminares, aquele chefe da

grande companhia triangular convidou-nos a nos reunirmos com o terceiro

restante, o gerente de produção. Sabíamos, então, que havíamos chegado ao

definitivo, ao prático, ao homem com o qual teríamos de tratar muitas e

muitas vezes. Mas somente seria possível encontrá-lo depois do domingo,

pois estávamos no fim do dia e aquele era o último dia útil da semana. O fim

de semana, na sociedade japonesa, tornou-se acontecimento tão importante

como na maioria dos países ocidentais. Nada podia ser feito enquanto não

terminasse. Era o momento ideal para aceitar o convite de minha amiga.

Não muito longe da grande e moderna Tóquio fica a tranqüila cidade de

Kamakura. É famosa na História japonesa, mas famosa também agora

porque nela residem alguns dos mais renomados escritores japoneses. O

marido de minha amiga achava-se na Europa, mas ela própria veio buscar-

me em seu confortável automóvel com chofer.

Rodamos através da populosa cidade e dos subúrbios que se estendiam

até o campo. Era uma ensolarada tarde de agosto, mas só vimos que fazia sol

depois de sair da cidade, em virtude do smog, que é o mesmo em toda parte,

e em Tóquio às vezes pode ser forte e denso, como era naquele dia.

Desfrutei grandemente o passeio, não apenas porque me dava

oportunidade de ver os delineamentos gerais da nova e espantosa Tóquio,

pelo menos numa direção, mas também porque descobri que eu realmente

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podia conversar com a igualmente espantosa nova mulher japonesa, que se

achava a meu lado. Ela continuava formosamente japonesa, em seu quimono

de seda cinza, cabelos lisos, feições amáveis e serenas, mas seu espírito era

cosmopolita e sofisticado, no verdadeiro sentido da palavra. Ela podia ser, e

era, ela mesma em qualquer parte do mundo, à vontade em qualquer capital.

Estou acostumada às mulheres cosmopolitas e sofisticadas de muitos países,

porém minha amiga tem uma qualidade individual e fora do comum. Não

pode ser tomada por outra coisa senão por japonesa, e no entanto essa

cristalização natural do nascimento e da educação é apenas o meio através

do qual ela comunica uma experiência universal, com sabedoria e encanto.

Uma rosa é uma rosa em qualquer parte do mundo, mas num aposento

japonês, arranjada num vaso japonês, numa tokonoma japonesa, a rosa se

torna de certo modo japonesa. Assim é minha amiga.

Receio ter-lhe feito uma centena de perguntas, e fiquei deliciada com as

suas respostas francas e informadas. Duas horas se escoaram como se

fossem minutos.

— Convidei alguns de nossos escritores para vê-la, disse-me afinal. —

Jantaremos numa hospedaria famosa.

Quando chegamos a Kamakura o Sol já se havia posto e fomos

diretamente para a hospedaria. O carro parou a alguma distância e

caminhamos ao longo de uma trilha estreita, longe da rua principal de

Kamakura. No fim do caminho atravessamos um portão de madeira e

degraus de pedra nos conduziram através de um jardim até um amplo

gramado, iluminado por lanternas de pedra. Os tetos baixos dos prédios se

aninhavam sob grandes árvores, galgando as encostas abruptas de uma

montanha, atrás da hospedaria.

Estávamos atrasados e os hóspedes, alguns dos mais queridos escritores

japoneses, já esperavam por nós. Todos vestiam quimonos japoneses escuros

e se achavam sentados num comprido banco de pedra, tomando chá. Fui

apresentada a eles, um a um, e reconheci especialmente o Sr. Kawabata e

Jiro Osaragi. O Sr. Kawabata é presidente do P. E. N. Clube do Japão e tinha

acabado de voltar, no mesmo jacto que eu, de uma visita à América do Norte

e do Sul. Como eu nunca o havia encontrado, não sabia quem era, a bordo do

avião. Ele estava sentado do outro lado do corredor, em frente a mim, e de

quando em quando eu o olhava.

— Deve ser um grande homem do Japão, murmurei à minha

companheira de assento.

Não era alto e tinha as feições delicadas e finas. Os olhos, contudo,

revelavam o homem. Grandes, negros, e tão luminosos de inteligência que

eram, de fato, janelas através das quais se podia vislumbrar um espírito

sensível e brilhante.

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Agora eu tornava a vê-lo, reconhecendo-o instantaneamente.

— Era o senhor... no jacto! exclamei. Ele sorriu:

— Eu a conhecia, mas a senhora, a mim, não.

— Conheço-o agora, declarei. — Li seus livros. Sei que foi à América

do Sul. E — perdoe-me — sabia, quando o vi naquele dia, que o senhor era...

alguém.

Riu da minha tolice e eu admirei, intimamente, suas feições

delicadamente esculpidas, a pele ebúrnea e firme e a massa de cabelos

brancos. Tem sessenta e dois anos de idade. O pesado quimono de seda

completava seu ar de aristocrata. Contudo, também é muito vivaz e

moderno. Quando elogiei, mais tarde naquela noite, o excelente serviço da

Japan Airlines, assumiu uma expressão travessa e sacudiu a cabeça.

— Mas eu tenho uma queixa, disse ele. Nem sempre a aeromoça é muito

bonita!

Rimos e minha amiga explicou cordialmente que o famoso escritor

exerce atração sobre as jovens e é, por conseguinte, um connoisseur.

Permanecemos sentados durante uma hora, admirando a Lua e

saboreando suco de frutas gelado. A conversa era em inglês, ou em japonês

traduzido em meu benefício. A maioria dos escritores não falava inglês.

Fomos, então, chamados e passamos ao restaurante, tiramos os sapatos à

entrada e ingressamos numa ampla sala, aberta dos dois lados para o jardim.

Aí, no frescor produzido por um grande ventilador elétrico, conversamos ou

descansamos, de quando em quando, em pacífico silêncio. Eu me sentara ao

lado de Jiro Osaragi e minha amiga nos servia de intérprete. Tinha acabado

de ler, pela segunda vez, sua terna novela, Homecoming, livro quase

feminino, em sua graça e sutileza. Era difícil imaginá-lo escrito por aquele

homem de meia idade, alto, forte e elegante. Ele, certamente, nada tinha de

feminino. Mas a combinação de delicadeza e força, de ternura e crueldade, é

habitual na obra de escritores japoneses, e talvez seja inerente à natureza

nipônica.

Enquanto conversávamos, era servido um prato após outro. Estávamos

na época da truta marinha, a primeira boa estação depois de muito tempo,

segundo me contaram, pois a truta do mar fora destruída nos últimos anos,

de um modo que não compreendi bem, talvez pela radiação atômica. De

qualquer maneira, agora evidentemente, era uma iguaria. Serviam a truta

individualmente, assada, em pedras quentes em vez de pratos, cada peixe

colocado como se estivesse nadando no leito oceânico. Uma linha de sal

simbolizava a praia, um pedaço de galho de cedro as algas marinhas. Era

demasiado refinado para ser comido, mas o comemos e o achamos delicioso.

Retirado esse prato, trouxeram a seguir um pedaço de bambu verde, aberto

ao meio, e recheado com fumegante carne fresca de codorniz jovem. E assim

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continuamos até o fim da refeição, voltando depois para o jardim. Aqui, num

caramanchão aberto, comemos genghis khan, prato mongol de finas fatias de

carne e vegetais cozidos num fogareiro de carvão, precursor, atrevo-me a

dizer, do moderno sukiyaki. Devia, adequadamente, ser preparado e comido

ao ar livre, como fizemos, em homenagem à nômade vida mongol. Mas não

entrarei nesse assunto de iguarias, pois não há limites para a engenhosidade e

imaginação dos japoneses em questões culinárias. A noite passava,

demasiado rápida chegou a hora da separação. Dissemos nossos adeuses e

seguimos nosso caminho.

A casa de minha amiga é grande, uma combinação de arquitetura

japonesa antiga e moderna, situada num amplo jardim e cercada por um

muro de pedra. Ao entrar, vislumbrei uma ampla sala de estar, mobiliada

com cadeiras e sofás ocidentais, e ao lado dela um aposento em estilo

japonês. Mas já era muito tarde e fui levada a um quarto do sobrado, onde se

colocou um colchão, um lençol imaculado e um travesseiro sobre o tatami,

no soalho. Ela indicou-me o banheiro particular, tateou uma garrafa térmica

de chá para verificar se estava quente, e desejou-me uma bondosa boa noite.

Quando ela se foi, afastei o shoji e descobri atrás dele uma ampla

varanda que dava para um belo jardim, inundado, naquele momento, pela

dourada luz da Lua, uma luz tão brilhante que embaçava as lâmpadas das

lanternas de pedra. A paisagem era de uma paz inefável e eterna, a Lua

deslizando muito alto, por cima da copa das árvores, como vinha fazendo há

inumeráveis anos. Permita Deus que possamos vê-la deslizar pelo mesmo

caminho, através do céu, por muitos séculos vindouros! Lembrei, contudo,

que fora aquela mesma Lua que apenas recentemente quase levara o nosso

mundo à catástrofe final.

Um grande radar, instalado para captar a menor explosão de energia fora

do comum, em qualquer parte do mundo, registrou certa noite que uma

explosão desse tipo estava ocorrendo. O sinal de alerta voou ao redor do

globo. Distância não é problema para a transmissão, e em dois segundos as

ordens de revide podiam ter sido enviadas e recebidas. Exatamente a tempo

chegou uma frenética mensagem de adiamento. Que acontecera? A Lua

cheia se havia erguido e, em alguma parte, um jovem perturbai negligenciara

de registrar o seu surgimento e explicar, assim, a conseqüente explosão de

energia. As ordens foram sustadas exatamente a tempo e a raça humana foi

salva.

Desviei-me da Lua e fui para a cama. As velhas lanternas ardiam nos

jardins a noite inteira e os grilos cantavam enquanto eu adormecia.

Pela manhã minha amiga declarou que eu devia ver o famoso templo

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Kamakura. Saímos de casa após um tardio des jejum e fomos em automóvel

até esse antigo templo, construído no período de Meiji, há cerca de cento e

cinqüenta anos. Era domingo e lá se encontrava uma multidão de pessoas,

passeando. Jovens japoneses perambulavam por ali, moças e rapazes, de

mãos dadas, para espanto meu — sombras do velho Japão! — ou lado a

lado, levando cestas de merenda. Gente do campo tinha vindo à cidade e os

mais velhos caminhavam lentamente, a mulher alguns passos atrás do

homem.

Mas quando nos aproximamos do grande pavilhão de entrada, de fina

madeira de cedro, encontramos autêntica agitação. Estavam realizando um

filme para televisão. Homens em trajes do velho garbo, de xógum* e

daimyo, esgrimiam e combatiam, numa peça histórica. Reunimo-nos à

multidão de espectadores. No momento em que o diretor, irrequieto jovem

de óculos escuros, no melhor estilo de Hollywood, gritou "Ação!" — no

momento em que as câmaras estavam prestes a disparar — a ação cessou.

Um rapaz, montado numa bicicleta, entrou pedalando no meio da cena

medieval, descendo da colina do templo. Ouviram-se altos brados do diretor,

frenéticos, também no melhor estilo de Hollywood, a advertir o moço

ciclista que fosse pedalar no bosque. O rapaz obedeceu, alarmado, e os

guerreiros tomaram de novo seus lugares, mergulhando na batalha. Mas

nesse momento um bando de colegiais apareceu ao longe. Novos gritos, as

crianças foram impelidas para o bosque e uma vez mais voltamos ao

passado. E assim continuou a coisa. Havia algo de simbólico em tudo aquilo,

velho e novo, combinação que se sentia em toda parte no Japão — vinho

novo em frascos velhos. * xógum — antigo governador militar do Japão (N. do T.).

A grande sala de estar, na bela casa japonesa, mobiliada em estilo

ocidental, é para a família, como descobri quando regressamos. A sala de

estar japonesa era para a mãe de minha amiga, agora com oitenta anos de

idade. Ela sentava-se sobre uma almofada, no chão, com as pernas cruzadas

debaixo do corpo. Sobre uma mesa baixa, à sua frente, achavam-se as suas

preciosidades, seus livros, vim vaso de flores, seu pequeno papagaio verde,

numa gaiola. Ela poderia ter saído dos séculos passados. Contudo sentia-se

inteiramente feliz na moderna e confortável casa japonesa. Estava na família,

no centro dela, bem-vinda e cálida, mas ela própria era o velho Japão. Algo

novo e algo velho, mais uma vez!

O dia decorreu em agradável paz, em conversa e explicação do jardim e

da biblioteca. Voltei para Tóquio sozinha, à noite no carro made-in-Japan,

confortável, provido de ar condicionado, e meditei sobre aquele fim de

semana. Um pequeno incidente sobrepunha-se, em meu espírito, a todos os

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demais. Havia, na tranqüila e luxuosa casa, uma irmã mais moça, gentil e

discreta, e que já não era jovem. Eu me refreara de fazer perguntas a seu

respeito. Não era de minha conta a razão por que se encontrava lá. Mostrava-

se útil, estava contente. Mas a minha inveterada, incontrolável, insaciável

curiosidade de romancista acabou levando a melhor, antes que eu me fosse.

Estou, realmente, em termos de boa amizade com essa família japonesa, mas

senti-me compelida a começar desculpando-me.

— Envergonho-me de fazer tantas perguntas, disse à minha amiga. —

Mas, se não perguntar, como ficarei sabendo?

— Pergunte o que lhe aprouver, respondeu bondosamente.

E eu:

— Por favor, sua irmã mais moça nunca se casou? É tão fora do comum!

Houve um instante de hesitação na fisionomia serena da irmã mais velha.

Então respondeu:

— Casou-se uma vez, há vinte anos. Era um bom homem, um velho

amigo... Quatro dias depois do casamento, ela voltou para casa.

Aguardei, esperando não fazer outra pergunta. Mas não, ela veio

correndo aos meus lábios:

— Por que voltou ela para casa?

A irmã mais velha respondeu com inteira simplicidade:

— Não sabemos. Não gostamos nunca de perguntar. Não fiz mais

perguntas. Vinte anos e eles não gostavam de perguntar! A resposta revelou

a delicada reticência de todo um povo... Não, vinho novo em velhos frascos,

não. Invertam a metáfora — vinho velho em frascos novos. A diferença é

sutil mas profunda.

No dia seguinte comparecemos ao encontro marcado com o gerente de

produção. É uma figura importante em qualquer companhia cinematográfica,

mas na companhia japonesa ocupava o lugar de primeiro ministro. Tudo

dependia dele, esperava-se que fizesse milagres, e todos os "sins" e "nãos"

da cúpula vinham através dele.

Assim, na manhã de segunda-feira, muito quente, fomos introduzidos no

seu gabinete por uma bonita moça. Vimos um enorme japonês em mangas de

camisa, cabelos revoltos, olhos selvagens, queixo pesado, boca franzida, voz

alta. Estava berrando num telefone enquanto três moças bonitas, em várias

partes do aposento, falavam em outros três telefones, de acordo com o que

ele lhes ditava, mas em voz aveludada. Rolou seus grandes olhos ferozes em

nossa direção, mas não demonstrou reconhecer-nos de outra maneira a não

ser por um imperioso aceno de sua grande mão, convidando-nos a sentar.

Sentamo-nos em cadeiras baixas, ao redor de uma mesa baixa e uma bonita

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moça serviu-nos chá enquanto esperávamos. Ele interrompeu a conversação,

afinal, com um berro feroz e veio cumprimentar-nos, todo cordialidade,

bondade, impaciência e um certo ar de desespero, que mais tarde soubemos

ser a sua disposição habitual.

Pôs de lado as formalidades e falou com aparente franqueza —

certamente franqueza do momento. Faço esta qualificação, pois aprendi,

mesmo em meu próprio país, que a encantadora e desarmante franqueza dos

cidadãos permanentes do mundo teatral não transmite necessariamente o que

é, comumente, denominado verdade. Verdade, no teatro, pode ser

estritamente momentânea e confinada nos limites da esperança, expectativa,

ou mesmo, possivelmente, da intenção. O gerente de produção, portanto,

pertencia estritamente ao mundo teatral. Falava em japonês e sua intérprete

era uma das bonitas moças educadas nos Estados Unidos, que abrandava o

que ele dizia sem destruir-lhes a força. Ela era muito hábil. Mas nós ainda

não o conhecíamos de fato. Disse, apenas, naquele dia, com ar embaraçado,

que faria tudo quanto pudesse para ajudar-nos, pedindo-nos somente um

favor. Devíamos deixar a seu cargo o arranjo das questões financeiras com o

elenco. As companhias cinematográficas japonesas, disse-nos, não eram

muito favoráveis à co-produção de filmes americanos. Os americanos pagam

salários absurdos e tornam os atores descontentes e indisciplinados quando,

depois, vão tratar com suas próprias companhias japonesas. Bateu seu

grande punho na mesa. Vejam, trovejou, o que acontecera na Itália! Isto não

devia repetir-se no Japão. Concordamos e nos despedimos.

Agora que havíamos conhecido todas as pessoas importantes, a tarefa

seguinte era a programação. No preparo de um filme, a programação é tão

importante quanto a reunião de dados para alimentar uma máquina

computadora. Todos os ingredientes necessários devem ser providos

imediatamente e em tal ordem que assegurem o resultado adequado. Assim,

nós tínhamos não só de considerar os arranjos com a nossa companhia

cinematográfica japonesa cooperante, mas tínhamos, ao mesmo tempo, de

pensar em encontrar lugares para a filmagem bem como escolher atores,

montador, cameraman e tudo o mais que entra na vasta complexidade de um

filme. Agora que nossa película está terminada verifico que tenho muito

mais respeito por todos os filmes, até mesmo os maus, do que tinha antes.

Por mais insatisfatórios que possam ser do ponto de vista artístico, entram,

em sua preparação, sofrimento e esforço imensos, muitos desapontamentos e

muita agonia, para não falar no cansaço do corpo e do espírito. Fazer um

filme é um grande trabalho.

Enquanto o gerente de produção cumpria suas promessas de ajudar-nos a

encontrar nosso elenco, decidimos trabalhar na escolha dos cenários. Litoral,

casa de pescador, fazenda, mansão senhorial e um vulcão ativo eram os

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cenários de que necessitávamos. Paisagem e incidente enriqueceriam a

história que seria vivida nesses lugares. Havia também a ressaca, porém mais

tarde.

Entramos em consultas para estabelecer o que deveríamos fazer em

primeiro lugar, agora que estavam feitos os contatos preliminares, e

decidimos escolher os lugares, especialmente o vulcão. Esperávamos

encontrar tudo perto de Tóquio, se possível, pois lá é que ficam os estúdios.

Eu, pessoalmente, não alimentava essa esperança, porque via, na

imaginação, uma pequena aldeia situada numa ampla enseada ao lado do

mar, sobre ela o eirado de uma fazenda na encosta da colina, e em alguma

parte junto dela a casa do Velho Cavalheiro. Eu estava certa de que

semelhante paisagem não podia ser encontrada perto de Tóquio. O vulcão,

porém, era outro assunto. A estranha ilha negra de Oshima não fica longe da

cidade — apenas algumas horas em um pequeno e trôpego vapor costeiro, e

quarenta e cinco minutos por avião. Decidimos pelo barco, esperando, ainda,

que navegando ao longo das praias denteadas, descobríssemos uma aldeia de

pescadores à qual pudéssemos voltar. Era provável que o mar ficasse

agitado, como nos disseram, e o barco certamente era pequeno. Tratava-se

de um vaporzinho asseado e quando embarcamos nele já estava cheio de

colegiais e seus professores, em passeio.

Os colegiais são os bem-amados do Japão, como qualquer um pode ver.

Todos, atualmente, vestidos em roupas ocidentais. Nas menores aldeias e nas

mais antigas vêem-se às oito horas da manhã bandos de meninos e meninas,

elegantemente trajados, imaculadamente limpos, cada qual com mochila e

garrafa térmica, rumando em ziguezagues para a escola. Nas férias ou nos

dias feriados, dirigem-se, com a mesma aparência imaculada, a vários

lugares famosos, sempre em ordem e aparentemente muito felizes.

Nesse dia, o número de colegiais era espantosamente grande e o pequeno

vapor mergulhava muito abaixo da linha de água. Mas ninguém parecia ter

medo e como fizesse um bonito dia, o mar reluzindo com a espuma branca

da crista das ondas, decidi afastar o receio e gozar a breve viagem. Durante

toda a manhã costeamos o litoral soberbamente belo, sem ver uma só aldeia

que nos parecesse apropriada. Entramos, afinal, num amplo ancoradouro e

nos encontramos no porto. Fomos imediatamente para o hotel, pois lá

deveríamos passar a noite, voltando pelo vapor da manhã. O hotel de

veraneio era grande, um tanto maltratado, como é próprio desse tipo de

hotéis em toda parte, e para embaraço meu verifiquei que me tinham

reservado a suíte do Imperador. O cordial hoteleiro assegurou-me que o

Imperador e a Imperatriz a tinham ocupado havia apenas uma semana e a

acharam tão confortável que não quiseram levantar-se para o desjejum, o que

me deixou tão apavorada que pedi um aposento menos augusto. Contratamos

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então um carro e rodamos pela ilha, rumo ao vulcão.

Oshima é negra. Pensei nos versos que o Rei Salomão cantava para a sua

amada escura: "Tu és negra, mas graciosa". Assim é Oshima. A ilha inteira é

formada pelo transbordamento do vulcão e isto significa que o solo é lava,

comprimida pelo tempo e pelo clima. Não há terras cultivadas, mas os vales

e as colinas mais baixas são verdes de camélias silvestres. Quando

florescem, no começo da primavera, a ilha se transforma num jardim famoso

em todo o Japão. A subsistência dos habitantes depende, porém, não das

flores mas do óleo extraído das sementes de suas vagens. Óleo de camélia —

como isto soa refinado! É um líquido fino, claro como água e sem cheiro.

Serve para tudo, desde para cozinhar até passar nos cabelos.

Havia umas poucas aldeias de pescadores na costa da ilha, com pequena

população em virtude da pobreza da terra. A linha litorânea é selvagem e eu

parei freqüentemente o carro a fim de poder gozar a terrível beleza da alta e

alva arrebentação estourando contra os rochedos da negrura do ébano.

As estradas eram ásperas e nos alegramos ao desistir afinal de nossa

busca e rumar para o próprio vulcão. Vira-o, o dia inteiro, fumegando sobre

nós e expelindo suas nuvens de gás amarelo-sulfurino, uma visão terrífica.

Quando alcançamos sua base, ficamos realmente assustados. As montanhas

eram lisas, negras e totalmente despidas de capim, e até mesmo de pés de

camélia. A fumaça, o gás e o vapor tinham destruído tudo numa área de

centenas de quilômetros quadrados e as descarnadas montanhas que

circundavam o vulcão alçavam seus picos negros contra o céu. Assim deverá

parecer a Lua ao primeiro astronauta e eu me sentia como um astronauta, tão

inacreditável era que aquilo fosse a nossa Terra. Não pudemos aproximar-

nos da cratera, pelo menos naquele dia. Disseram-me que a sinuosa estrada

tinha de doze a dezesseis quilômetros de comprimento e era preciso vencê-la

a cavalo. Havia por ali grupos de cavalos selados à espera, com seus

ansiosos donos. Mas não nos era necessário subir ao vulcão para saber que

tínhamos encontrado o que procurávamos. Fiquei durante longo tempo no

topo de um monte negro e nu, ao pé do vulcão, e vi o Sol poente avermelhar

as espirais de vapor branco até se assemelharem às chamas de fogo vivo.

Aqui voltaríamos mais tarde com nossos atores, cinegrafistas e equipe.

Subiríamos ao topo da cratera e filmaríamos a cena do nosso pequeno herói,

Yukio, o filho do lavrador, quando ele se debruçara a fim de olhar para

dentro do centro do nosso globo.

E nunca esquecerei que, antes de voltarmos a Tóquio, vimos

inesperadamente, naquela tarde, o nevado cume do Monte Fuji, erguendo-se

acima das nuvens, a meio caminho do céu. Há visitantes que passam meses

no Japão sem ver o Fuji. É inteiramente por acaso e pela graça de Deus que a

montanha sagrada aparece ante olhares humanos. Rodávamos numa estrada

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da encosta da montanha, no meio da tarde, o céu estava turbulento de

nuvens, e enquanto eu sonhava com a visão, sem me atrever a alimentar

qualquer esperança, vi de súbito o perfeito pico branco contra um campo de

repentino céu azul. Poucas, pouquíssimas paisagens famosas são melhores

do que o rumor de sua beleza. O Taj Mahal é uma delas e o Fuji é outra.

Paramos por três minutos e meio para contemplá-lo com deleite e terror.

Então as nuvens esconderam de novo a sua majestosa forma.

Abri os olhos em Tóquio, na manhã seguinte, às cinco horas, inteira e

totalmente desperta. Algo me havia chamado, não uma voz, pelo menos não

ouvi voz alguma. Estava, simplesmente, consciente de ter sido chamada de

alguma forma. O aposento não se achava escuro nem claro. A noite findara

mas o alvorecer ainda não viera. Permaneci imóvel em minha cama,

ouvindo, esperando, convencida de que alguém estava tentando alcançar-me.

A impressão se desvaneceu lentamente e fiquei de novo sozinha, mas não

como estava antes. Faltava, ainda, acontecer algo. Devia estar preparada.

A um quarto para as seis o telefone tocou. Soube imediatamente qual

seria a mensagem.

— Chamada transoceânica, por favor, disse uma voz. — Dos Estados

Unidos, por favor, Pensilvânia chamando... está pronta?

— Estou esperando por ela, respondi. Sabia, agora, o que estivera

esperando durante sessenta minutos.

— Aguarde, por favor, disse a voz.

Estivera aguardando havia uma hora e continuei. Em sete minutos, com

os olhos sobre o relógio na mesinha, a voz de minha filha chegou a mim

vencendo os milhares de quilômetros de terra e mar que nos separavam.

— Mamãe?

— Sim, querida.

— Tenho de lhe dizer uma coisa. Está preparada?

— Sim, querida.

— Mamãe. A voz jovem, clara e brava, fraquejou por um instante, mas

prosseguiu resoluta: — Mamãe, Papai nos deixou esta manhã, enquanto

dormia.

— Imaginei que era isso que você ia me dizer.

— Como soube?

— Eu apenas... sabia.

— Quando voltará para casa?

— Hoje... no primeiro jacto.

— Vamos esperá-la em Nova York.

— Mandarei um cabograma, tão logo tenha o número do vôo.

— Todos vieram para casa. Estamos todos aqui. Trataremos de tudo, até

você chegar.

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— Eu sei.

Trocamos algumas palavras particulares, o coração falou ao coração, e

desliguei. Por um instante houve o arrependimento, oh, eu nunca deveria ter

partido, oh, eu poderia estar lá, quando ele se foi. Deixei tudo isso de lado.

Havia discutido integralmente esse próprio momento com o médico de nossa

família. Ele dissera, anos antes, respondendo a uma pergunta minha: "Pode

levar anos, pode ser amanhã. Você deve continuar a viver exatamente como

sempre viveu. O coração dele é forte, sua digestão perfeita — penso que

viverá muito tempo. Mas lembre-se, quando chegar a hora, seja como

chegar, você nada poderia ter feito para impedi-lo. Eu também não, mesmo

que estivesse sentado à sua cabeceira".

Hesitou, depois prosseguiu: "O cérebro está severamente afetado.

Naturalmente você deve esperar uma mudança total de personalidade... nós

não sabemos..."

Aquele cérebro brilhante, que respondia tão rapidamente ao meu próprio

pensamento... sim, houve mudança de personalidade. O homem que eu

conhecia tão bem, o companheiro prudente, tornou-se outra pessoa, uma

criança confiante, um menino gentil e indefeso, ao qual ninguém podia

deixar de amar. Éramos felizes, mesmo assim. Quando o cérebro falha e fica

somente o corpo, é verdade que às vezes se verifica uma terrificante

mudança de personalidade. Os chineses crêem que o ser humano tem três

almas e sete espíritos terrenos. Quando as almas partem, ficando apenas os

espíritos terrenos, a pessoa se torna má e cruel, de várias e imprevisíveis

maneiras. Não foi assim com ele. Seus espíritos terrenos formavam um só

bloco com suas três almas. Continuou a ser o que sempre fora, amável,

paciente, preocupado em não perturbar, como sempre, a não ser que, pouco a

pouco, a comunicação cessou. A linguagem se perdeu, a vista faltou, o

cérebro parou de viver, exceto durante o sono.

Era muito cedo para acordar alguém com a notícia. De qualquer modo,

quem poderia partilhar de meus pensamentos e de minhas lembranças? Quão

rapidamente, num só instante, os anos de vida feliz se tornaram apenas

lembranças! Estava, agora, completa a longa e lenta preparação dos últimos

sete anos. O dia que eu temera, havia chegado. Viera a solidão final.

Não havia como ocultar a notícia. Alguém, da mesa telefônica, contara a

alguém. Uma hora depois o telefone começou a tocar e os amigos batiam à

minha porta. Nada daquilo parecia próximo ou real. Ouvia vozes

perguntando. Ouvia minhas próprias respostas. Sim, é verdade que tenho de

tomar o primeiro jacto para casa. Não havia lugares disponíveis, porém os

amigos, mais uma vez, trataram de conseguir-me um. Alguém cedeu seu

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lugar, ao saber do ocorrido. Mas o primeiro jacto partiria à meia-noite e eu

tinha um dia inteiro para passar, de qualquer modo. A bondade, a simpatia

crescente, tornavam-se difíceis de suportar. Eu sabia que tinha de sair da

cidade, ir para o campo, longe de telefones, onde ninguém pudesse bater à

minha porta.

Nesse momento, Miki disse:

— Venha passar o dia na minha casa.

Miki, minha amiga, vive a cerca de duas horas de Tóquio. Um bom

serviço ferroviário estabelece a ligação com rapidez e conforto — os trens

japoneses são excelentes — mas fomos no automóvel dela. Quando

chegamos à pequena cidade perto da qual ela mora, a atravessamos

diretamente até o sopé de uma escarpa colina, que não é propriamente uma

montanha, e o portão abriu-se para receber-nos.

— Daqui para a frente teremos de andar, disse Miki vivamente.

Havia conforto naquela voz confiante e realista, alívio em saber que

Miki podia comportar-se exatamente como se eu tivesse apenas ido passar

um dia comum. Na verdade nunca tinha visto a sua casa. Ela estivera na

minha, na Pensilvânia, mais de uma vez. Conhecia o seu trabalho pelas

crianças nipo-americanas, nascidas no Japão. Ela é única entre as mulheres

japonesas. Por que digo japonesas? É única, simplesmente. Jamais conheci

mulher como essa. É moderna até à última célula do cérebro, mas seu sangue

é japonês antigo e nobre. Pertence a uma das grandes famílias do Japão e seu

marido tem ocupado muitos postos honrosos. Ela viveu na Europa e visita os

Estados Unidos uma ou duas vezes por ano. Usa roupas ocidentais porque se

pode movimentar mais livremente com elas, porém só pode ser japonesa, em

qualquer parte do mundo. Ri de sua própria aparência e chama a si mesma de

"cara-de-abóbora". É verdade que tem o rosto redondo, mas é graciosa, de

olhos vivos, e o ar de uma pessoa habituada a ser ouvida. Sua história, como

ela própria a conta, é mais ou menos assim:

Um dia, durante o mais rigoroso período da guerra, entrou num trem

para ir ao campo em busca de alimento. O trem estava apinhado e do porta-

bagagens caiu um pacote sobre a sua cabeça. O embrulho era de papel de

jornal, que se desfazia. Ela o abriu a fim de tornar a embrulhá-lo melhor e

viu que tinha diante de seus olhos horrorizados um menino recém-nascido.

Estava morto. Nesse momento a polícia entrou no vagão à procura de

traficantes do mercado negro. Viram o que tinha no colo e a prenderam

imediatamente por tentar livrar-se de uma criança morta. Pensaram que o

menino fosse dela. Passou um mau quarto de hora até que um velho lavrador

saiu em sua defesa.

— A criança não é dela. Uma moça entrou aqui, pôs o pacote no porta-

bagagens e tornou a sair.

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A polícia, afinal, se convenceu e ela foi salva. Mas, segundo conta,

nunca esqueceu aquele pequeno menino morto.

— Sinto para sempre o peso da criança em meus joelhos, costuma ela

dizer.

Dias mais tarde, ao passear pela manhã em seu belo jardim, notou que

algo se movia sob uma grande moita. Um coelho, pensou. Inclinou-se para

ver se estava ferido e encontrou um bebê. Alguma jovem mãe desesperada o

tinha deixado ali. Levou a criança para casa e cuidou dela. Daí por diante

passou a se dedicar às crianças nipo-americanas nascidas no Japão. O que

começou com um pequeno corpo morto cresceu até se transformar num

grande trabalho vivo para milhares de crianças nascidas de mães japonesas e

de pais americanos, brancos e negros. Organizou uma agência de adoção,

própria, e colocou mais de mil órfãs em lares dos Estados Unidos. As

crianças ainda continuam a nascer e ela ainda as coloca. Mas muitas delas

vivem em sua companhia e continuarão em sua casa até crescerem e se

tornarem capazes de cuidar de si mesmas. Nesse dia, ao subir a colina, ouvi

suas vozes vindas do alto, exclamando, rindo, gritando em meio aos

folguedos. O caminho serpeante por entre grandes árvores, era calçado de

pedra e degraus também de pedra davam acesso às encostas mais íngremes.

O dia estava agradavelmente fresco e a luz do Sol caía por entre os troncos

sobre a terra coberta de musgo. Longe, abaixo de nós, as casas da aldeia se

amontoavam, com seus tetos de palha e telhas. Lembro-me que caminhava

lentamente, minhas energias usualmente fortes, minadas por dentro. Fazia

perguntas e ouvia suas respostas, mas durante o tempo todo achava-me longe

de todos e perto de ninguém. Era como se estivesse suspensa, sem peso, no

espaço. Mente e coração entorpecidos. Compreendi, de súbito, que ela estava

falando e eu não sabia o que dizia.

— Quantas crianças tem aqui, Miki? perguntei, apenas para dizer alguma

coisa.

— Cento e quarenta e oito, respondeu-me.

Ela caminhava com seu habitual passo rápido e parou, esperando que eu

a alcançasse.

Cento e quarenta e oito! Estavam espalhadas por toda parte, nos velhos e

belos prédios japoneses e nos jardins do lar ancestral de Miki. Ela construíra

também algumas casas modernas, funcionais para escola e dormitórios. Em

um dos dormitórios vi duas meninas absorvidas no cuidado de um coelho e

de alguns ratos do campo. Era permitido às crianças manterem seus bichos

junto de si e cada uma tinha um lugar especial para as suas coisas

particulares. A maioria dos orfanatos é triste, mas Miki, de alguma forma,

fizera de seu enorme estabelecimento um lar ao invés de um orfanato. Cerca

da metade das crianças, como notei, eram filhas de pai negro. A proporção

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de nascimentos, naturalmente, é muito inferior, mas a maior parte das

crianças brancas tinha sido adotada, ao passo que das negras apenas umas

poucas, pela simples razão de que são poucos os casais negros que podem

suportar o custo de uma adoção.

Passeamos pela propriedade, parando aqui e ali para olhar algum ponto

especial de interesse. O grande deleite é a escola e está agora trabalhando

arduamente na construção do prédio para o curso secundário. Estivera

empenhada numa corrida de palmo a palmo, nos últimos dez anos, nessa

história de escolas, mantendo-se um pouco à frente de suas crianças.

Lembro-me de que olhamos todas as salas de aula e notei em cada porta um

pequeno mapa de bronze. Examinando-o verifiquei que cada um era de um

Estado dos Estados Unidos e Miki respondeu à minha pergunta:

— Todos os anos vou ao seu país e concentro meus apelos num Estado.

Quando o povo de lá me dá dinheiro suficiente para mais uma sala de aula,

volto e acrescento-a à minha escola. Ponho na porta, então, como

agradecimento, um mapa do Estado, gravando nele a minha gratidão ao seu

povo.

— Mas seus mapas, em tamanhos relativos, são tão diferentes da

realidade! disse eu. — Rhode Island, por exemplo, está bem grande, aqui,

embora seja nosso menor Estado.

Abriu outra porta, enquanto eu falava, e vi um quarto pequeno, não

maior que um armário e demasiado estreito para uma sala de aula. Uma

espécie de despensa, talvez? Na porta havia um mapa quase do tamanho da

palma da minha mão. Representava a gratidão ao povo do Texas!

Miki riu ante o meu espanto:

— O povo texano gosta de guardar o seu dinheiro para o Texas, disse ela

francamente — Agradeço-lhes de igual modo pelo que me deram para as

crianças nipo-texanas, mas você vê que o Texas é muito pequeno, aqui em

nossa escola.

Não havia o menor ressentimento na voz jovial de Miki. Expressava

apenas a aceitação do povo assim como o encontrara. Continuou a mostrar

amavelmente o caminho através de cozinhas asseadas e salas de jantar. As

crianças, até um certo ponto considerável, cuidavam de si mesmas e

ajudavam em tudo, tagarelando e rindo enquanto trabalhavam. Fez algumas

observações aqui e acolá e as crianças a ouviram com atenção, mas sem

medo. Quando ela fala é firme e objetiva, despida de sentimentalismo. Creio,

porém, ter notado um afeto secreto por quem ela denominava "meu garoto

levado", ou "minha garota levada". É verdade que aprecia, até mesmo gosta,

as más-criações que apareciam tão freqüentemente aqui como em qualquer

parte. Explicou que ela própria fora uma "garota levada" quando era pequena

e agora ri mas administra, ao mesmo tempo, a necessária palmada ou

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punição. Não tem medo de suas crianças e elas sabem que as tem todas no

coração. Descobri que ela própria dorme, num quarto, com as mais levadas e

as mais novas.

— Às vezes um garoto indisciplinado quer fugir, disse-me. — Está

habituado à liberdade selvagem das ruas. Quando desconfio que tentará

fugir, amarro uma corda no seu tornozelo, com um nó que ele não poderá

desatar, e a outra ponta da corda no meu próprio tornozelo. Se procurar fugir

à noite, eu acordo e o apanho.

Seu maior orgulho é o teatro, que deixou por último, como um regalo

final. Miki é uma atriz nata, não há dúvida alguma. Tudo quanto faz é

dramático e forte. Ela admite que ama o teatro acima de tudo. No centro do

lugar que é a sua vida criou, por conseguinte, um pequeno e lindo teatro,

moderno e conveniente, onde as crianças apresentam peças e danças.

— Depois do almoço, prometeu ela, minhas crianças cantarão e dançarão

para você.

Sim, a manhã, que se prenunciara à minha frente com a extensão de

séculos, já havia passado. O Sol ascendera ao zênite e o gongo tocava para

as crianças. Largaram seus brinquedos e correram para a sala de jantar. Eu

não esquecera um só momento que estava sozinha no mundo, mas, de algum

modo, o eterno conhecimento não havia penetrado bastante profundamente

em mim. Miki passara o dia inteiro mostrando-me a vida, fizera-me

caminhar de um centro da existência ao outro. E agora, antes que fôssemos

almoçar, reservava-me mais um dom da vida.

— Vamos ver os bebês, disse.

Caminhamos até o fim do jardim e lá, numa casa ensolarada construída

para bebês, os vimos, aos pequeninos recém-nascidos e aos que estavam

aprendendo a sentar-se e a andar. Mulheres bondosas, às quais os bebês se

agarravam, cuidavam deles. Confortou-me ver como os bebês se afastavam

de mim, uma estranha, para se aconchegarem às que cuidavam deles. Visitei

muitos orfanatos onde as crianças corriam para os estranhos e não queriam

largá-los na hora da partida.

— Todos serão adotados, disse Miki, menos este pequenino, que é

retardado mental. Tenho de pensar em alguma coisa para ele... Esta

garotinha vai para Nova York. Este menino parte na próxima semana para

San Francisco. Eu própria vou levá-los — onze bebês para seus novos pais

americanos. Voarei por cima do Pólo Norte.

Olhei de perto, com amor, cada bebê. São sempre bonitas as crianças que

trazem nas veias o Oriente e o Ocidente. Kipling esqueceu-se delas ao dizer

que não podia haver encontro entre o Oriente e o Ocidente. Eles sempre se

encontraram, como corações verdadeiros devem encontrar-se, no amor se

não na política. É o amor que reúne os seres humanos, muitas espécies de

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amor, mas unicamente o amor. Deixei com relutância as crianças, pois elas

me traziam profundo conforto. O amor é mais forte do que o ódio e a vida é

mais forte que a morte.

Voltamos através dos jardins, agora em pleno sol, e chegamos a uma

enorme casa japonesa, construída com madeira velha, e toda aberta, num dos

lados, para o que fora outrora um belo jardim japonês, mas que era, agora,

um poeirento e nu campo de basebol. Um grupo de meninos havia comido às

pressas e já estava de volta no campo, com bastões e bolas. Circundamo-los

e entramos na casa, tirando antes os sapatos no degrau mais baixo. Galgamos

mais um degrau e chegamos à grande e bela sala de estar de Miki. Tinha a

mesma mistura cosmopolita de Oriente e Ocidente que caracterizava a

própria Miki. Num dos extremos do aposento, profundos sofás forrados de

cetim, um tanto gasto, formava um círculo acolhedor. Elegantes biombos

antigos achavam-se em vários lugares e as paredes estavam cobertas de

velhos rolos de pergaminho e fotografias modernas. No outro extremo da

sala havia uma mesa de refeições, baixa, comprida e larga, e dois antigos

armários polidos.

— Sei que gosta de comida chinesa, disse Miki ao entrarmos. —

Convidei, portanto, um General chinês, meu velho amigo, e o melhor

restaurador de Tóquio, para providenciar nosso almoço.

O General surgiu de um distante canto da sala e apresentou-se. Homem

extremamente elegante, cabelos brancos, de aparência delgada e ágil. É

muito comum, entre Generais chineses, eufemisticamente reformados,

tornarem-se restauradores em capitais de países estrangeiros. São homens de

gosto, mas talvez tenham conservado consigo, também, seus cozinheiros

particulares, de acordo com a teoria de que, se o homem tem garantida uma

boa cozinha, pode suportar tudo, inclusive a derrota na batalha. Pode ser,

mesmo, que a lembrança de seu bom cozinheiro tenha ajudado um General a

interromper o combate antes do jantar. Mas nem todos os Generais

permanecem tão magros quanto o General Wang.

Gostaria de poder descrever o refinado tato de minha anfitriã e de meus

companheiros de mesa, durante a deliciosa refeição chinesa. Todos sabiam o

que me havia acontecido, contudo ninguém falou no assunto. Não

procuravam, por outro lado, simular uma falsa jovialidade. Conversavam

com tranqüilo interesse sobre vários temas, despertando habilmente minha

atenção quando eu mergulhava num silêncio demasiado prolongado,

distraindo-me com agradáveis interpelações que exigiam resposta, e

insistindo para que eu provasse uma iguaria após outra, não por ter apetite,

pois sabiam que eu não o tinha, mas por cortesia para com o cozinheiro, que

ficaria magoado se eu não comesse. Lembro-me de ter ouvido, em

determinado momento, um telefone tocar, mas a ligação fora aparentemente

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adiada para depois do jantar. Não recordo quais eram os pratos. Não consigo

lembrar sobre que se conversou. Eu escutava, sorria, dava as respostas que

me pareciam adequadas, e era sustentada, não pelo que estava sendo dito,

mas por aquela forte atmosfera de compreensão nunca posta em palavras.

Lembro-me de que uma bela japonesa, de cabelos grisalhos num moderno

penteado italiano, achava-se sentada a um dos extremos da mesa. Vestia um

quimono de suave cetim vermelho e falava excelente inglês. Lembro-me de

que disse ter acabado de voltar de Paris e que era cunhada de Miki.

Lembro-me, também, que se desenrolava um vigoroso jogo de basebol

enquanto comíamos, e ouvi por diversas vezes o forte estalo de bastão contra

a bola, ruído de pés correndo, gritos e palmas. No meio de tudo isso, Miki

mantinha um olhar vivo no jogo e de quando em quando gritava instruções

ou aprovação.

Quando terminou a refeição, Miki disse-me que havia um chamado

transoceânico para mim. Acompanhou-me a um pequeno quarto, fechou a

porta e passou-me o receptor. Ouvi novamente, através de milhares de

quilômetros de terra e mar, a voz de minha filha tão nitidamente como se

estivesse no quarto contíguo.

— Mamãe, planejamos tudo mas queremos saber se você aprova. A

cerimônia será depois de amanhã e nosso próprio ministro, naturalmente, se

incumbirá dela. Pensamos que ficaria melhor na biblioteca, porque ele

gostava muito dessa sala, você sabe. Ele poderia... o esquife poderia ser

colocado em frente à lareira... não ficando ninguém lá, exceto o pessoal da

fazenda e da casa... e as enfermeiras que cuidaram dele... e todos nós. Depois

o levaremos ao cemitério da família... nada de flores, achamos; apenas pedir

dinheiro às pessoas presentes para a "Casa dos Bem-vindos".

As crianças haviam planejado tudo como eu o teria feito e agora restava-

me, apenas, voltar rapidamente para casa. Repeti sim, sim, sim, várias vezes

e reafirmei meu amor e meus agradecimentos a todos eles. Então, quando

repus o fone no gancho, tudo, de súbito, me pareceu excessivo. Pela primeira

vez permiti-me sentir, e reconhecer, que tudo fora excessivo, desde aquele

dia, há sete anos, no ensolarado parque de Sheridan, Wyoming, quando se

deu o primeiro ataque. Esse pequeno ataque parecera, na ocasião... não mais

que uma leve insolação, pensamos nós. Tínhamos planejado, há muitos anos,

uma viagem de verão com toda a família, através do Oeste, até o

Yellowstone Park e depois ao Oregon e Washington. Foram dias

confortáveis e felizes, todos nós num grande automóvel com ar

condicionado, dirigido pelo nosso experimentado e fiel chofer. "A viagem

fará bem a ele", dissera o médico da família, "se não for guiando".

E assim parecera, até àquele dia de sol. Devíamos ir, no dia seguinte, a

Yellowstone, mas, em vez disso, ele e eu ficamos num agradável rancho

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enquanto as crianças foram e voltaram. Depois seguimos todos para casa,

pensando ainda que não tinha sido nada, mas que seria melhor voltar, de

qualquer modo, para perto de nosso próprio médico. O médico de Sheridan

não estava muito certo de que se tratava de insolação. Mais tarde soubemos

que não fora. Mas ele parecia bem como sempre, vigoroso, continuando sua

vida ocupada, nos escritórios de Nova York e no escritório rural, em nossa

casa.

Escondi o rosto nas mãos, quando pus o fone no gancho, e lutei comigo

mesma. E Miki, com aquela delicadeza tão natural na Ásia antiga, e

habituada à dor humana, sentou-se ao meu lado em silêncio, sem estender a

mão para tocar-me, sabendo que todo conforto seria vão, exceto o conforto

de uma amiga sentada serenamente ao meu lado. Venci a minha luta,

enxuguei os olhos e Miki levantou-se.

— As crianças estão esperando por nós, disse ela.

Estas foram as suas palavras, mas o que ela realmente disse era que eu

devia viver, começar agora mesmo a viver. A morte não devia interromper a

vida. Havia outros esperando por nós. Saímos do pequeno quarto e ela me

conduziu ao teatro.

A audiência compunha-se das crianças mais velhas, da equipe do

estabelecimento e de nós. O entretenimento consistia em dança e música. A

música, uma banda de jazz e canções populares. O que me interessava eram

as crianças. Tinham todas uma beleza impressionante, sem exceção, e

obviamente talentosas. As meninas, em quimono, executaram bailados

japoneses, com leques e flores, no estilo antigo. A banda de jazz era formada

de rapazes, muitos deles de sangue negro, realmente simpáticos.

Confesso que naquele dia, olhando e ouvindo as crianças de Miki,

parecia-me que eu nunca mais poderia tornar a sorrir. Contudo as crianças

trouxeram-me seu próprio conforto e, em amor e determinação, decidi, na

medida de minha capacidade, ajudar Miki a encontrar famílias para elas.

A tarde chegou ao fim. Era tempo de regressar a Tóquio e tempo de

voltar para casa. Miki, até o último momento, recusou-se a deixar-me.

O jacto decolou à meia-noite. Amigos vieram despedir-se, envolvendo-

me em sua bondade e afeto. Mas eles tinham de voltar às suas próprias vidas

e eu tinha a minha a enfrentar. Havia um certo conforto em encontrar-me,

afinal, entre estranhos, aos quais não necessitava corresponder. Achei meu

lugar, afivelei o cinto, recostei-me e fechei os olhos. Era o primeiro instante

em que me via totalmente só, desde o momento em que o mundo mudara,

naquela manhã. Há muito tempo, quando eu soube que minha filha ficaria

retardada para sempre, aprendi que há duas espécies de dor, uma que pode

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ser mitigada e outra que não pode. Esta era diferente, contudo semelhante

num particular — também não podia ser mitigada. Não obstante, eu

aprendera, anos atrás, a técnica da aceitação. O primeiro passo é,

simplesmente, render-se à situação. É um processo espiritual, mas começa

com o corpo. Ali, atada ao meu assento enquanto o avião subia ao escuro céu

noturno, rendi conscientemente meu corpo, músculo por músculo, osso por

osso. Cessei de resistir, cessei de lutar. Que viesse o que tinha de vir, eu nada

podia fazer para alterar o que já havia acontecido. O avião me continha, me

controlava, e me isolava.

De uma curiosa maneira o espírito deve, às vezes, acompanhar o corpo,

exatamente como, em outros momentos, é o espírito que conduz. Agora que

o corpo se rendera, o espírito achou mais fácil render-se também ao mesmo

comando. A vida pode ser inexorável, mas a morte sempre o é. O passo

seguinte consiste em reconhecer a inexorabilidade. O passado se torna

estático. É história e os fatos históricos não podem ser modificados. O que

foi feito está feito. Pode-se extrair lições do passado, pode-se entesourá-lo,

mas não se pode modificá-lo. Vinte e cinco anos foram vividos em

felicidade, mas tinham sido vividos. O Fim fora escrito. Não se continua a

escrever um livro depois que essa palavra o termina. É preciso começar

outro livro.

Mas não se pode começar imediatamente. É necessário tempo para a

descontração total, reconhecimento total da inexorabilidade, compreensão

total de que a vida do passado terminou. Somente então as novas forças

podem ser convocadas. Duvido, mesmo, que possam ser convocadas. Elas

têm de brotar das próprias fontes do ser, convertendo-se numa vontade nova

de viver. O mais que a vontade pôde, naquela noite, enquanto o jacto

flechava o seu caminho entre nuvens e estrelas, foi apenas ordenar ao corpo

que se rendesse e ao espírito que se retirasse. Finalmente, adormeci.

Consultei meu relógio. Eram três horas da madrugada. O tempo perdia o

sentido, nesse vôo veloz, e o céu já estava claro. Eu deixara Tóquio na noite

anterior, domingo, mas chegaria a Nova York na manhã de segunda-feira,

após mais um dia e uma noite de vida, se não de tempo. Estava começando a

compreender a relatividade do tempo com relação ao espaço e à velocidade.

Que milagre ter Einstein nascido coincidentemente com a experiência prática

de jactos e foguetes no espaço! Minha mente, incapaz até então de enfrentar

a profunda transformação ocorrida em minha própria vida, explorava o

sentido da eternidade, tempo sem começo e sem fim. Tudo quanto existe

agora, sempre existiu e sempre existirá, sendo a única lei universal e eterna a

da transformação. E contudo a transformação pode ser assustadora. Se a

morte é apenas uma transformação, então que é a transformação? Ele sabia e

eu não. Num certo momento, durante o sono, ele morrera. No instante

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anterior estava vivo e, no seguinte, morto. Quer dizer, num instante era isto,

e no instante seguinte aquilo, o mesmo e contudo diferente.

Onde está ele agora?

Einstein provou-nos que a massa pode converter-se em energia. Esta

sentença, tão simplesmente escrita, resultou no despertar de minha própria

mente para a nova era. Era mais do que um despertar da mente. Era a

conversão de minha alma, a iluminação de meu espírito, a unificação de todo

o meu ser. Adquiri uma nova concepção da morte, uma visão nova da vida.

Como Paulo de Tarso, eu seguia meu caminho quando uma luz surgiu sobre

mim, uma claridade ardente que alterou meu curso. Essa equação, que

Einstein cristalizou em alguns símbolos breves, é a chave de nosso universo

e, sem dúvida, de muitos outros além do nosso. O que era massa pode tornar-

se energia, é energia potencial mesmo enquanto continua massa. Será esta a

prova científica do que chamamos alma?

Enquanto o coração sangrava em segredo, minha mente revirava-se e se

retorcia, procurando. Meditei sobre o milagre das máquinas mágicas, os

computadores, o mecanismo pensante representado em matéria concreta. São

construídas segundo o princípio do cérebro humano, porém o cérebro é

infinitamente mais complexo, os nódulos infinitamente mais numerosos. O

cérebro pode criar idéias novas, as máquinas não, por enquanto. Não

obstante, o princípio é o mesmo. Sabemos como construir cérebros i com

materiais brutos, se não com elementos humanos.

Na verdade há duas escolas de pensamento entre os cientistas que criam

as máquinas. Alguns acreditam que as máquinas podem ser aperfeiçoadas

em verdadeiros cérebros, iguais aos humanos, e até mesmo, sob certos

aspectos ultrapassá-los. Um cérebro humano, por exemplo, necessitaria de

uma vida inteira para chegar a certas conclusões de matemática astronômica.

A máquina, desde que lhe sejam fornecidos os elementos devidos, pode

chegar a essas conclusões em alguns minutos. Outros cientistas, porém,

acreditam que a máquina nunca poderá reproduzir o cérebro humano. Há no

cérebro humano, sustentam eles, uma vontade, uma percepção, uma

consciência — chamem-na alma ou o que for — que não pode ser

representada através do material de uma máquina.

Espero que a segunda escola esteja mais perto da verdade. Devo crer que

está, pois se somos apenas máquinas, nossa massa meramente carne em vez

de metal, então, quando a massa se deteriora... ah, mas esperem! A massa

não pode perder-se, ela apenas pode transformar-se. , Transformar-se em

quê? É isto que precisamos saber, que saberemos algum dia. Sinto-me

encorajada nessa fé, pois sabemos que não há absolutos neste inacreditável

universo em que vivemos. Até mesmo as linhas paralelas, que se prolongam

ao infinito, acabam por encontrar-se em alguma parte.

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Onde está você? Sabe que estou aqui, no alto, acima da Terra? Você

está aqui, também? Com que rapidez se processa a transformação? A

energia, que você é agora, se transporta instantaneamente a algum outro

lugar? Você vive além das barreiras do espaço sem ar? Estamos sem

comunicação...

Comunicação... é o que deve ser pensado agora, imaginado, investigado.

Há um pesado cordão de radioatividade mortal circundando a Terra. As

únicas saídas ficam nos dois pólos. Terão, essas saídas, um propósito

especial? É incrível que não nos possamos comunicar mais. Quando ele

estava aqui, ríamos freqüentemente porque nossos pensamentos irrompiam

em palavras idênticas, os mesmos pensamentos, no mesmo momento.

Contudo mostrava-se céptico acerca de qualquer noção do sobrenatural.

Embora fosse dotado de cálido sentimento de compaixão, de completa

integridade, de inflexível convicção moral, não aceitava as esperanças e

premissas da religião. Insistia em sua completa independência, como ser

humano.

— Nada sabemos do futuro, dizia. — Não me enganarei a mim mesmo,

nem permito que me enganem.

— Mas não saber não significa que nada haja a saber, tornava eu.

— Seja o que for, eu o saberei na época devida... ou não o saberei,

porque terei cessado de existir, concluía ele.

Essa era a grande discussão entre nós, a pergunta de Hamlet feita em

termos universais. Viremos a ser ou não , viremos? Ele dizia que não. Eu

recusava semelhante crença positiva. Como podíamos dizer não, se não

sabíamos que o sim era impossível? Agora ele sabe e eu não.

Isto não é leal de sua parte. Pensei que sempre saberíamos juntos. Você

pode achar uma maneira de me dizer. Você é ou não é?

Impeli a pergunta para dentro da noite e depois a retirei em pânico. Eu

não queria, realmente, saber a verdade. Se ele existe, a espera, sozinha, seria

intolerável. E não posso suportar a idéia de que ele não existe. Que eu

espere, então, até descobrir por mim mesma, por experiência. Se tenho

razão, minhas primeiras palavras a ele, quando eu chegar, serão ditas com

amor e triunfo.

— Aqui estou. Agora sabemos.

Até então, continuo como estávamos antes, ele duvidando, eu crendo.

Sim, penso que ainda creio, embora não tenha descoberto, ainda, como

saber. Fé, disseram-nos os santos através das eras; possibilidades, dizem hoje

os cientistas, porque tantas coisas que antes considerávamos impossíveis são

agora possíveis. Santos e cientistas...

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A luz da madrugada que impregna um avião a jacto é maravilhosamente

bela. Voávamos em direção ao Sol nascente, numa cascata de luz, gloriosa e

majestática, erguendo-se da curvatura do globo. Pessoas acordavam,

mexiam-se e olhavam para fora, através das pequenas janelas. Havia no ar

uma fragrância de café e uma aeromoça, nova em folha, estava alerta,

servindo suco de frutas. Ao meu lado, um passageiro levantou-se e caminhou

pelo corredor. Durante toda a noite eu não tivera consciência da presença

daquele estranho, contudo sabia que se achava ali. Mais cedo ou mais tarde

nos falaríamos, mas eu me havia refugiado nas trevas. Agora o dia começara,

o primeiro dia de minha nova e solitária vida. Pouco importava o número de

pessoas que me rodeava, dentro de mim haveria sempre, a partir de agora,

uma permanente solidão. Que significava isto? Que podia significar? Era o

que restava descobrir. Não devia insistir em saber tudo ao mesmo tempo.

Aprendi há muitos anos, que para ser paciente com os outros, é preciso ser

paciente consigo mesmo.

Não aprendi essa lição de uma só vez. Era, com freqüência, impaciente

comigo mesma, e comigo mais que com os outros, até aprender, penso que

através do exercício da música, que a aprendizagem era um processo de dia a

dia. Pode-se trabalhar sòlidamente durante quatorze horas, decorando uma

sonata de Beethoven para uma só execução, mas esta aprendizagem não é

permanente. A fim de que a música permaneça para sempre gravada na

mente é preciso que também tenha sido absorvida espiritualmente — isto é,

deve tornar-se parte do ser, por um período de tempo e através de exercício

contínuo. O que eu tinha a descobrir sobre solidão, o que tinha a aprender

sobre seu uso, seu significado, só podia ser adquirido através da vida diária e

da experiência nova. Ir ao teatro sozinha, quando ele já não podia

acompanhar-me, custara-me esforço. Amávamos o teatro, eu e ele, e lá

passamos algumas de nossas horas mais felizes. Rir juntos, durante uma

noitada de Gilbert e Sullivan — bem, ele gostava de Gilbert e Sullivan, sabia

tocar e cantar essas operetas e todos os nossos filhos conheciam as canções.

Tive de aprender também a gostar delas, pois me eram estranhas. Mas nós

éramos ecléticos e gostávamos de teatro, fosse qual fosse, indignando-nos

apenas quando uma peça era tão obviamente tola que profanava uma nobre e

antiga arte. Ele, certamente, teria ficado desapontado comigo, para não dizer

desgostoso, se eu tivesse deixado de freqüentar o teatro por ter de ir sozinha.

Relâmpagos dessa espécie de percepção incidental passavam-me irrelevante-

mente pelo espírito e eu os afastava. Dia a dia era o caminho pelo qual de há

muito eu aprendera a viver, e hoje estava aqui, a milhares de metros acima

da terra, encerrada nesta veloz concha prateada, cercada de pessoas que

nunca tinha visto antes e que provavelmente nunca tornaria a ver.

Há um certo conforto, ao mesmo tempo superficial e orgânico, na

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necessidade de lavar e vestir o corpo, de comer e de beber. Pareceu-me,

quando encarei o espelho, que nunca mais me tornaria a preocupar com a

minha aparência, pois nunca mais tornaria a ouvir suas palavras de

apreciação e louvor. Eu sabia, naturalmente, que não podia, quanto à

verdade, confiar nele a esse respeito. Era demasiado generoso, e

possivelmente ninguém mais podia ver-me como ele me via. Eu não

acreditava, nem por um momento, ser tudo quanto ele dizia que eu era. Mas,

como mulher, gostava de ouvir mesmo aquilo que sabia não poder ser

verdadeiro. Contanto que ele acreditasse, que mais importava?

Era esse o mesmo rosto para o qual eu fora compelida a olhar durante

tantos anos? Eu não era a mesma pessoa e o rosto devia pertencer a alguma

outra. Não obstante, lavei-o, fiz a maquilagem usual e tomei os cuidados

habituais com os meus compridos cabelos. Esses cabelos! Mesmo quando

menina eram a minha cruz, sempre compridos, lisos e emaranhados. Naquela

época eram da cor do mel-amarelado, minha mãe não os cortava, adulava-me

quando eu chorava e me elogiava depois de os ter penteado e amarrado com

uma fita na minha cabeça. Fazia cachos quando eu era pequena, depois

longas trancas, e eu ansiava pelo dia em que, já grande, poderia cortá-los,

como os cortei assim que pude, para deixá-los crescer de novo, porque ele os

preferia compridos. Agora posso cortá-los novamente, pois ele nunca os

verá, mas compreendi no mesmo momento que eu nunca os cortaria, embora

sejam agora da cor da prata, em vez de dourados. Minhas mãos, sem o

menor cuidado, executaram sua tarefa habitual e não pude crer, ao olhar o

espelho, que estivesse, depois de tudo, com a mesma aparência, mas estava.

Quando voltei ao meu assento, a aeromoça serviu-me a refeição e pude

sentir o cheiro do café, do toicinho e das torradas. Embora o espírito

estivesse longe e não tomasse parte em nada disto, o corpo se comportou

como de costume. Ó carne cruel!

E todos, no jacto, estavam despertos agora, eu não conhecia ninguém e

ninguém me conhecia, pelo que me sentia grata. A aeromoça levou, afinal, a

bandeja do café, semiterminada. Tentei ler uma novela japonesa, mas acabei

deixando-a de lado. Não queria uma história de amor nem mesmo uma

história de seres humanos. Abri minha frasqueira e tirei um livro fino,

Science and Human Values, por J. Bronowski. Li esse livro durante toda a

manhã, o cérebro trabalhando nitidamente a par de minha vida individual.

Quer nosso trabalho seja arte ou ciência, ou o trabalho diário de

sociedade, apenas a forma pela qual exploramos nossa experiência é

que é diferente; a necessidade de explorar permanece a mesma. É por

isso que, no fundo, a sociedade de cientistas é mais importante que

suas descobertas. O que a ciência tem a ensinar, aqui, não é a sua

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técnica mas o seu espírito; a irresistível necessidade de explorar... Pois

esta é a lição da ciência, a de que o conceito é mais profundo que as

leis e o ato de julgar mais decisivo que o julgamento. Num livro que

escrevi sobre poesia, disse: "A poesia, por si mesma, não nos leva a

ser justos ou injustos. Leva-nos, isto sim, a pensamentos a cuja luz a

justiça e a injustiça são vistas com terrível nitidez de contornos".

O que é verdade para a poesia é verdade para todo o pensamento

criador. E o que eu disse, então, de um valor é verdadeiro para todos

os valores humanos. Os valores pelos quais teremos de sobreviver não

são regras de comportamento justo ou injusto, mas são aquelas

iluminações mais profundas à luz das quais a justiça e a injustiça, o

bem e o mal, os meios e os fins, são vistos com terrível nitidez de

contornos.

Aqui terminava o livro e eu o fechei, grata a um cérebro pensante que

falava a outro cérebro. Quão grata, na verdade, sou a meus eruditos pais,

àqueles dois que, desde os meus primeiros anos, me ensinaram, pelo seu

exemplo, a encontrar alívio, coragem e força no uso do cérebro! Seja qual

for o sofrimento individual e por mais absoluta que seja a solidão individual,

o cérebro, treinado no uso e pelo uso, continua a explorar. Eu levava, dentro

do crânio, meu próprio instrumento. Não precisava, não devia, retirar-me,

parar ou cessar de evoluir pelo fato de ter de seguir sozinha o meu caminho.

Uma estranha paz, cálida e viva, fluiu dentro de mim. Recostei a cabeça

no espaldar da poltrona e fechei os olhos. Lembro-me de ter sorrido para

mim mesma, embora não saiba por quê. Era como se nos houvéssemos

comunicado, ele e eu, por meio do pensamento e do silêncio, em vez de por

palavras.

Escoava-se o dia e eu ainda não falara com ninguém. Então, no meio da

tarde, meu companheiro de lugar perguntou-me se podia dizer que me havia

reconhecido. Senti-me relutante em admitir o reconhecimento, mas nunca

pude mentir confortavelmente e agora não valeria o esforço. Agradeci-lhe e

respondi que sim, era eu. Tornou-se necessário, então, conversar polida e

casualmente, mas eu ainda podia continuar solitária, não mencionando a

razão por que estava ali, e fiz perguntas a seu respeito. Não lhe recordo o

nome, parece impossível lembrar alguma coisa específica sobre essa viagem,

e duvido que reconheceria seu rosto se tornasse a vê-lo. Era alto, porque eu

tinha de levantar a cabeça quando ele falava, e um tipo magro de rosto

ocidental. A única coisa de que me lembro era que estava viajando para o

Wells Fargo Bank e isso despertava um vago interesse histórico. Wells

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Fargo é um nome romântico na História Americana, mas sobre negócios

bancários eu nada sei além das necessidades de cada dia.

Encorajado pela minha ignorância, o viajante explicou-me, com uma

clareza seca e viva, qual era exatamente a sua tarefa, e eu captei a

significação da atividade bancária internacional, particularmente em nosso

mundo moderno. Ele estivera em Singapura, Hong-Kong e outras cidades

que eu conhecia bem, mas as vira sob uma luz inteiramente nova para mim,

em áreas desconhecidas, onde homens manipulam a troca de moedas,

proporcionam capital e criam poder, segundo acham conveniente. Ouvi com

um interesse a princípio desatento, depois superficial e finalmente real, "a

irresistível necessidade de explorar". Quase esqueci minha pessoa e me

surpreendi quando a voz do rádio, sobre nossas cabeças, anunciou que

tínhamos chegado a Honolulu. Vi, então, que era noite outra vez. Tínhamos

atravessado um dia inteiro em curto espaço de tempo e estávamos uma vez

mais entrando em nosso próprio país.

Sobreveio a azáfama do desembarque, a entrada em fila para a inspeção

da alfândega e eu de nada me lembro. O que recordo é novamente uma

experiência. Pois enquanto esperava, profundamente consciente de estar só,

aproximou-se um funcionário da alfândega e me pediu que saísse da fila. Eu

assim fiz e ele inclinou sobre o balcão para falar em voz baixa.

— Não quero atrasá-la, mas desejo falar-lhe confidencialmente sobre um

assunto.

Surpreendi-me uma vez mais comigo mesma. Nunca vira aquele homem

antes, tipo grande e robusto, de bondoso rosto redondo, muito americano.

— A senhora compreende, disse ele em voz baixa, tenho uma filha

retardada.

Ah, agora eu sabia porque me tinha chamado de lado! Estou acostumada

a que me chamem de lado para dizer-me isso. Tive a mesma experiência em

toda parte do mundo. "Quero lhe contar... tenho uma filha..."

— Fale-me dela, disse eu.

Ouvi enquanto ele falava, e embora todas as palavras me fossem

familiares, sentia-me cheia de íntimo espanto. Como podia ser que, naquele

próprio instante em que eu necessitava desesperadamente que me

despertassem a vontade de viver, esse homem estivesse ali, chamando-me de

volta à vida? Pois muito de minha vida fora dedicada ao trabalho com e para

os pais de filhos retardados e para estes. Tal fora o meu destino. Contudo,

nas últimas horas, desde o momento em que a voz de minha filha chegara a

mim, pelo telefone, naquela madrugada em Tóquio, eu não me lembrara uma

só vez dessa parte de minha vida. Agora aqui estava, reclamando-me de

novo.

— A senhora vê, dizia o homem, a coisa é assim. Minha mulher e eu

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andamos discutindo. Ela diz que os americanos sempre põem seus filhos

retardados em instituições porque assim é melhor para as crianças. E ela diz

que devemos fazer o que os americanos fazem, agora que o Havaí é um

Estado. E eu digo que nossa menina não dá nenhum trabalho... é gentil,

tranqüila e se sentiria muito sozinha numa instituição.

— Sua mulher se sentiria mais feliz se ela fosse internada? perguntei.

— Não. Ela chora quando fala nisso, mas diz que será melhor para a

menina.

— O senhor quer que ela vá?

— Eu? Isto me partiria o coração. Considerei:

— Que aconteceria se vocês dois morressem? Quem cuidaria de sua

filha?

— Muita gente! Minha mulher é havaiana. Tem uma dessas grandes

famílias havaianas. Todos cuidarão de nossa filha. Na verdade, ficam

malucos quando falamos em interná-la. É só que minha mulher...

— Diga a sua mulher que ela está enganada e que todos vocês estão

certos, disse eu. — Sua filha tem muita sorte. Possui uma família que quer

conservá-la. Estou certa de que pais americanos, nas mesmas circunstâncias,

desejariam ter tanta sorte quanto o senhor e sua mulher, por terem tal

família.

Seu rosto honesto se desanuviou.

— Obrigado, disse ele.

Conduziu-me de volta à seção de bagagens.

— Algo a declarar?

— Nada, respondi. Era verdade. Eu nada tinha a declarar.

— Okay, tornou ele, marcando minhas malas com giz e sorrindo. —

Adeus. Nunca me esquecerei da senhora. Este é o meu dia de sorte. Verá

quando eu contar à minha mulher. Ela não vai acreditar em mim. É um

milagre.

Era um milagre para mim, também.

Então, como para testar-me, fiquei de novo só. Nunca viajara sozinha

antes de ele adoecer. Viajar sempre fora um acontecimento alegre, para nós.

Ele era um delicioso companheiro de viagem. Sempre sabia o que havia para

se ver e onde ir. Eu o acompanhava descuidadamente feliz. Agora tinha de

achar o restaurante e conseguir algo para comer. Haviam-nos dado cupões

para o jantar. Mas aonde deveria eu ir? Quando uma mulher foi sempre

acompanhada por um homem jovial e informado, mergulha em confusão ao

se ver subitamente só. Segui o caminho errado, perguntei a alguém, tomei a

direção oposta e cheguei tarde demais ao restaurante, não encontrando

nenhum lugar vago. Estava prestes a sair de novo e a não pensar mais em

comida, quando um americano de aspecto agradável aproximou-se de mim e

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perguntou se eu estava procurando um lugar. Se assim era, havia um acolá...

dois na verdade, se eu não me incomodava de jantar com ele.

Aceitei com alívio e me guiou até uma mesa meio escondida. Sentamo-

nos, ele encomendou o jantar e eu me senti grata. A solidão interior era

invencível e permanente. Eu sabia disso, mas era como se ele, em alguma

parte, houvesse visto a minha situação e, não podendo estar comigo,

mandava estranhos em seu lugar. Perguntei o nome do desconhecido. Deu-

mo, disse que era cientista e que fora mandado de Washington para trabalhar

com outros cientistas, no Japão. Novamente uma parte de minha vida me

reclamava. A ciência, em especial a física nuclear, era de há muito uma

atração para mim, e me pus a ouvir agora, com interesse e compreensão,

inteiramente desligada de meu ser interior. Os japoneses, disse-me, eram

excelentes cientistas, e, particularmente, sabem sobre a ionosfera mais do

que quaisquer outros cientistas do mundo. A ionosfera, essa camada de

atmosfera superior onde, segundo diz Clyde Orr, "as radiações produzem

uma fermentação mágica de moléculas e íons em metástase, entidades

atômicas carregadas de eletricidade" (Between Earth and Space, página 21).

É o berço da eletricidade, a fonte das tempestades elétricas, contra as quais a

energia armazenada na terra executa um eterno dueto de violência

contraponteada. Minha mente foi de novo agitada por irresistível curiosidade

e me lembrei, como se ele, onde quer que estivesse, me houvesse recordado

que a vida podia prosseguir nesses interesses que havíamos partilhado.

Passou-se uma hora e a voz pelo rádio pediu que tomássemos novamente

nossos lugares no jacto. O dia passara de algum modo e por três vezes um

ser humano fora mandado falar comigo, ajudar-me, recordar-me a vida.

A noite caiu uma vez mais. Não sabia como denominar essa noite, uma

noite sem nome, pois o tempo se estendera mais do que o seu nome. Eu

vivera vinte e quatro horas mais que o espaço entre a noite de domingo e a

manhã de segunda-feira. Havia dado o passo inicial em minha futura vida.

Nessa noite dormi, intermitentemente, mas sem medo. Ninguém podia tomar

o seu lugar, ele não esperava isso, nem eu, mas os estranhos viriam quando

eu os necessitasse, podia aprender deles e deixá-los ir, porque viria outro.

Era como o movimento universal de toda a vida, as ondas de energia que se

abatem sobre o nosso globo, feitas de inumeráveis partículas separadas. Que

são os seres humanos senão partículas, nós também vamos e vimos,

incessantemente, em ondas de movimento e substância. Minha vida era

agora parte do todo, uma partícula separada, só e à parte, contudo

inevitavelmente arrastada no fluxo e refluxo da maré humana.

Quando chegou a aurora seguinte, foi para derramar sua luz dourada

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sobre a paisagem da América. A voz no rádio anunciou que começaríamos

agora a descida sobre a cidade de Allentown, na Pensilvânia. Allentown fica

apenas a poucos quilômetros de minha fazenda. Imaginariam as crianças que

eu estava passando por ali, mas muito alto, entre as nuvens? Fiz uma rápida

toilette, tomei café, e então fomos descendo velozmente até que vi as

brilhantes torres de Nova York.

Agora era preciso enfrentar de novo os amigos e a família. Por um

instante senti medo. Havia sido mais fácil aqui, ao abrigo dos que nada

sabiam sobre a minha viagem e por que a estava fazendo. Eu não dissera a

ninguém e assim não tive de receber o peso da simpatia. Mas era tempo,

agora, de encontrar meus filhos e sobretudo de aceitar sua ajuda.

Confortando-me, eles também seriam confortados.

Era uma bonita manhã. O sol se infiltrava por entre a neblina, enquanto

eu atravessava o campo, rumo ao aeroporto. Do outro lado da porta

esperavam-me minha querida e única irmã e duas de minhas filhas,

acompanhadas pelo fiel teuto da Pensilvânia, que dirigia meus carros há

muitos anos. Olhei cada rosto e meus temores se desvaneceram. Eu me havia

enganado — era bom estar com os que me conheciam e amavam, e aos quais

eu amava. Sou rica em três filhos e seis filhas, dessas seis a mais velha é a

criança que nunca cresceu, à qual eu devo tanto, e mais outros cinco, que vão

da minha filha competente, profissional, terapeuta-ocupacional, até o gentil-

menino nipo-americano, que me veio do Japão. As duas mais moças são de

sangue japonês, sendo seus pais soldados americanos. A seguinte, vivaz,

ordeira, é de sangue alemão, sendo seu pai também americano. A pequenina

do meio, casada e com três perfeitos bebês, é a que mora do outro lado do

córrego, a de cabelos negros, grandes olhos violetas e temperamento ardente,

suavizado por um rápido senso de humor. Cada filho tem sua força

individual, cada filha sua graça peculiar, cada qual um lugar indispensável

em minha vida. Mas hoje eu me alegrava por terem ficado em casa as três

filhas menores e por terem a do meio e as mais velhas vindo receber-me em

companhia de minha irmã; três mulheres fortes e compreensivas.

Naturalmente éramos íntimas, mais íntimas do que fôramos em nossa

feliz vida comum. A morte dele estreitara todos os laços que nos uniam.

Tampouco me passou despercebida a serena compreensão do nosso

motorista. Apanhou meus cupões de bagagem, conduziu-nos ao automóvel,

entramos e ficamos à sua espera. Em poucos minutos estávamos a caminho

de casa, através as ruas de Nova York, do Túnel Lincoln e da barreira de

pedágio. Era tudo familiar e seguro, uma viagem que eu fizera centenas de

vezes através dos anos, a princípio sempre com ele, e sozinha nos últimos

cinco anos. Foram precisos sete anos para que seu forte corpo e fino cérebro

terminassem seu período sobre a Terra.

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E como fora divertido, desde o começo, quão cheios de satisfação os

anos em comum! Havíamos começado em Nova York, onde ele vivera

durante trinta anos, antes de nos encontrarmos. Passamos o primeiro inverno

num hotel cosmopolita, numa suíte de agradáveis aposentos, o que não me

parece estranho, pois com o trânsito de pessoas de todas as partes do mundo,

bem podia ser um hotel de Xangai ou Pequim. E no ano seguinte, quando

adotamos nossos dois primeiros bebês, mudamo-nos para um apartamento

com terraço e começamos nossa vida de pais. Ele sempre quisera ter uma

família grande; como nos regozijamos com o seu agradável crescimento!

Dois anos se passaram, trazendo-nos apenas alegria e satisfação — adotamos

mais dois bebês. Então seu sonho seguinte, que era viver no campo, tornou-

se uma necessidade. Quatro crianças pequenas mal podem caber, com êxito,

em qualquer apartamento. Minha infância decorreu num velho e espaçoso

bangalô tropical, cercado de jardins e, além do muro, das colinas e campos

da cidade de Chinkiang, porto do grande Rio Iã-tsé, na província de Kiangsu.

Eu não podia imaginar uma criança crescendo no cimento, entre torres, por

mais belas que fossem, embora eu ame Nova York como cidade. Mudamo-

nos para a nossa casa de campo, e ele se devotou, como sempre esperara

poder fazê-lo, ao trabalho editorial. Era um homem de negócios relutante e,

se o seu brilhantismo fosse apenas um pouco mais canalizado, poderia ter

sido escritor de livros. De qualquer forma, escreveu alguns, tão variados

quanto ele próprio. Inteligentes versos para crianças, uma novela humorística

de mistério, um excelente trabalho sobre Marco Pólo, simplificado depois

para a infância e editado pela Random House nas séries Landmark, e mais

um estudo crítico de Buffalo Bill, personagem pelo qual tinha um interesse

muito céptico.

À medida que passavam os anos, a casa de campo ia se transformando

num confortável e esparramado lar para uma família em crescimento.

Ensinou as crianças a jogarem tênis, basebol e golfe, e elas aprenderam bem

cedo a nadar e a montar. Eu vivia ocupada com o meu próprio trabalho, mas

a grande janela de meu estúdio dá para a piscina e eu via, por instinto,

quando uma criança se tornava ousada demais. Nossa vida achava-se

despreocupada-mente organizada em torno do trabalho e das crianças, e nós

a vivíamos profundamente. Nossos prazeres consistiam em música, gente,

crianças, livros, o mundo das matas, da montanha e do mar.

Não sei se é mais fácil ver o fim chegar de súbito ou gradativamente ao

longo dos anos. Se me houvesse sido dado escolher, eu teria preferido um

fim súbito, com choque e tudo. Pois assim as lembranças não ficariam

emaranhadas na lenta e agonizante perda da percepção e da fala e, por

último, do reconhecimento mesmo das pessoas amadas e queridas. Há,

porém, um conforto. Ele não teve consciência de seu próprio declínio. Ao

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ficar reduzido aos aspectos físicos elementares da vida, sua natureza

essencial permaneceu, como já disse, o que sempre fora, uma altruísta

suavidade.

A transformação se processou lenta, muito lentamente. Quando seus

olhos fraquejaram e não podia mais ler, mandamos buscar as gravações dos

livros. Devo aqui expressar a minha gratidão à Biblioteca de Livros para

Cegos, que estabeleceu um fluxo contínuo de discos para a nossa casa, sem

qualquer despesa, e seu cérebro se manteve estimulado e vivo, além do que

temêramos. Mas também isto chegou ao fim. Sobreveio o dia em que as

palavras cessaram de ter sentido e até mesmo a música se esvaiu.

Contentava-se apenas em existir. Teria sofrido se soubesse, e eu agradeço à

bondosa inteligência, seja qual for, o fato de ele nunca ter sabido. O corpo

vivia, aliviado de qualquer pressão do cérebro, do espírito ou da emoção, e

assumiu uma estranha durabilidade própria.

Isto vai durar muito tempo, repetiu o médico da família. — Você deve

continuar o seu trabalho habitual. Deve viver, viajar, não se deixe absorver

por aquilo que não pode ser socorrido.

E de fato era essa a única maneira de suportar o que nos estava

ocorrendo. Tentei viver como de costume, na medida em que me era

possível.

O desfecho viera inesperadamente. Eu ouvia as palavras de minha filha

de cabelos negros, enquanto rodávamos para casa através da verde zona rural

naquele fim de primavera. Tudo estava na mesma, com relação a ele, até

dois dias antes. Ela atravessara o córrego, com seus três filhos, após o café,

para a sua visita matinal. Encontrou-o acordado e pronto para o dia. As

crianças subiram em sua cama, beijaram-no e lhe acariciaram o rosto. Ele

proporcionava, penso eu, um elemento de segurança total na vida delas.

Estava sempre na cama, desde que elas tinham nascido, e não se lembravam

de que houvesse sido diferente. Saíram e, ao voltarem um pouco mais tarde,

ele estava morto. Era uma história tão simples que eu não pude suportar

ouvi-la. Durante longo tempo não sabia que estava vivo e também não soube

quando morreu.

— Não havia nada que se pudesse ter feito, disse minha filha.

— Eu sei, respondi. — Sei disso há muito tempo. Nada pude sentir no

momento senão a consciência do fim, um imenso cansaço do corpo e do

espírito, agora que eu sabia tudo quanto havia a saber. Suponho que duas

noites de sono interrompido e a tensão de procurar ser eu mesma, na medida

do possível, embora entre estranhos, fora mais fatigante do que pensei.

Permaneci em silêncio, as mãos nas cálidas e jovens mãos de minha filha. O

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carro entrou afinal em nossa estrada familiar. As bondosas pessoas que me

ajudam na casa, no escritório e no campo, estavam esperando. Tive de

cumprimentá-las, aceitar suas lágrimas e simpatia, e afinal a liberdade de ir

para meu quarto. As crianças estavam em casa, recolhidas de toda parte.

Tudo fora feito. O quarto dele, que por tanto tempo havia sido um hospital,

já se convertera em quarto de hóspedes. A cama de hospital desaparecera, os

tapetes eram novos e limpos, crespas cortinas brancas guarneciam as janelas.

Meu quarto estava imaculado e alegrado com rosas. Eu via tudo e nada

sentia. Caminhava como que dormindo. Quando alguém parava de falar por

um momento, eu adormecia. Depois do almoço, que suponho ter comido,

mas do qual não me lembro, deitei-me no sofá da sala de estar, eu que nunca

fico exausta, e enquanto as crianças confabulavam, dormi. Foi diferente de

qualquer outro sono que já tive. Caí, simplesmente, inconsciente.

Os dois dias seguintes centralizaram-se em três acontecimentos. Fomos,

todos nós, dar-lhe nosso último adeus. Vimos apenas o seu corpo,

naturalmente. Ele não estava lá. Mas o corpo é precioso. Através do corpo

expressamos nosso amor e é com o corpo que vivemos. Lembro-me de

minha mãe, um dia, quando eu não contava mais de sete anos. Eu estava

desesperadamente doente, com difteria, numa cidade chinesa. Meu irmão

menor havia acabado de morrer da mesma doença, iam enterrá-lo naquele

dia e minha mãe soluçava. Uma amiga, bem intencionada mas sem

compreensão, reprovou-a.

— É só o corpo dele, disse à minha mãe. — Sua alma está no céu, com

Nosso Senhor.

Minha mãe, apesar dos soluços, encolerizou-se.

— Mas seu corpo é precioso, gritou ela. — Eu lhe dei nascimento. Eu o

cuidei e amei. Onde quer que sua alma esteja, está fora do meu alcance.

Estão levando o seu corpo e ele é tudo que eu tenho.

Voltaram-me à memória essas palavras enquanto eu me achava junto do

seu querido corpo. Jazia num féretro, os olhos fechados, as mãos repousando

de cada lado. Vestia seu terno de lã, o de que gostava, cinza azulado, e a

gravata azul escura que eu lhe dera no último Natal. Seus belos cabelos,

apenas parcialmente brancos, estavam penteados para trás, como ele sempre

os usava. Seu rosto estava novamente jovem, desaparecidas as rugas, os

lábios tranqüilos. Beijei-lhe a face. Toquei em sua mão, que sempre fora

quente e de reação rápida. A carne estava fria.

Tivemos, no dia seguinte, a cerimônia simples que as crianças haviam

planejado. Haviam afastado para um lado os móveis da biblioteca e quando a

manhã ia pelo meio, o sol inundava o pátio e a pequena fonte, e um

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garotinho de pedra da Itália brincava gentilmente dentro da piscina, postei-

me à janela de meu quarto de dormir. Homens o estavam trazendo para casa,

pela última vez. Quando desci, nosso pessoal doméstico e do campo, as

crianças e suas famílias, e as enfermeiras que haviam cuidado dele, estavam

esperando por mim. Os homens tinham colocado o féretro diante da lareira.

A tampa estava fechada. O ministro de nossa família leu em voz alta trechos

dos livros que considerou adequados. Proferiu depois algumas palavras de

amizade. Não recordo o que disse. Fiquei pensando nas muitas horas que

passamos neste aposento. Fora, primeiro, quarto de brinquedos das crianças.

Depois, quando cresceram o suficiente para quererem jogar basquetebol e

andar de patins, transformamos o celeiro em sala de jogos e fizemos deste

aposento a biblioteca da família, forrando-o com estantes. Por cima da

lareira pendia o quadro da ilustração de uma história de John Galsworthy,

que ele publicara no Colliefs, quando era editor dessa revista. É um belo

quadro a óleo, evocativo e poético. A história foi a primeira, creio eu,

publicada na América por Galsworthy. É sobre uma jovem noviça num

convento, na última noite de seu noviciado. Tinha de decidir, naquelas horas

finais, se se tornaria freira ou se voltaria para a vida e para o seu amado.

Quis o acaso que uma bela bailarina pedisse abrigo no convento, para passar

a noite e, depois da refeição vespertina, dançasse para as freiras. O artista

descreve a dança, a comprida saia vermelha rodopiando ao redor dela. No

segundo plano, a pequena noviça permanece fascinada e, como diz a

história, foge naquela noite para encontrar-se com o amado e viver sua vida

de mulher, como esposa e mãe. O quadro sempre estivera pendurado ali,

acima da lareira revestida de carvalho, e lá está pendurado agora.

Quanto aos livros, sempre teve grande cuidado em que fossem

adequadamente classificados em suas seções próprias — ficção, ciência

social, biografias, literatura infantil, livros de viagem, livros novos e assim

por diante. Era um amante de livros, um homem culto e de espírito largo.

Embora eu conhecesse bem e profundamente a Ásia, contava-me sobre ela

fatos que eu não sabia. Quando visitamos, certa vez, a índia, o Sudeste da

Ásia, a China e o Japão, ele sabia todas as pessoas importantes que devíamos

conhecer e podia contar-me a história de todos os lugares que víamos. Era

um companheiro encantador e interessante tanto na pátria quanto no

estrangeiro. Acima de tudo, nunca me tratava com a condescendência do

homem para com a mulher.

Subi de novo ao meu quarto, enquanto levavam o féretro, e esse, de certo

modo, foi, e ainda é, o pior momento. Ele estava saindo para sempre de

nossa casa e do nosso lar. Seguiu-se, então, a longa corrida ao cemitério de

sua família, em Nova York, onde estão enterrados os seus pais. Sim, todos se

mostraram bondosos. Aqueles que tinham o dever de cuidar dele nessa

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última viagem, mostravam-se pensativos e quietos. Quando nos

aproximamos do fim do percurso, policiais conduziram-nos ao nosso

destino, através do tráfego.

Faço uma pausa, aqui, recordando. E que recordo eu? Isto — em meio

àquela triste corrida, cada momento da qual era agonia concentrada, ao ponto

de sentir meus próprios ossos doerem, aconteceu-me ver pela janela traseira,

e contra a minha vontade, a longa e lenta procissão de carros pretos. Sim,

mas no extremo da fila havia mais dois carros. Eram camionetas, vermelhas

como os carros de bombeiros. Reconheci-as imediatamente. Uma pertencia

ao meu segundo filho e outra ao meu igualmente jovem cunhado. Estremeci

quando mas vieram orgulhosamente mostrar, antes de minha partida para o

Japão, e eu, heroicamente, as admirei. Agora lá estavam, reluzentes e vivas

ao sol da manhã. Eu sabia por quê — e meu coração se dissolveu de novo,

em lágrimas e risos. Que vergonha, que lástima, que ele não pudesse ver

aquelas duas camionetas de um vermelho brilhante fazendo-lhe as honras

nessa ocasião — e como teria rido!

Por que digo que teria? É possível que em algum lugar você esteja

rindo. Ainda é possível. Mantenho minha posição, até...

Tudo estava pronto para nós, quando chegamos ao tranqüilo lugar. Os

pássaros cantavam e as flores desabrochavam. A celebração da cerimônia

final, de devolução do seu corpo à terra, não demorou muito. Nosso ministro

nos havia acompanhado e proferiu as palavras finais de paz e aceitação.

Meus filhos e meu enteado, jovens e fortes, ficaram ao meu lado. Meu

enteado continuaria a firma do pai. Minhas filhas me acompanharam de

volta ao automóvel e partimos... Mas, oh, aquele último momento silente, em

que ele devia ser deixado para trás, e a chegada à casa, agora vazia! Desses

não posso falar. A outras mulheres em circunstâncias semelhantes, que

venham a ler estas páginas, posso apenas dizer que não há como fugir de tais

momentos, quando eles chegam. Têm de ser vividos até o fim, não uma

porém muitas vezes, através da lembrança. Disseram-me que se atenuam

com o tempo. Não acho. Volto para casa como se voltasse para o céu, toda

vez que a deixo, mas não é a mesma coisa, nunca será a mesma. Sei disso

agora. Não havendo como fugir do fato, só pode haver aceitação. E a

aceitação vem afinal, mas não de uma vez... oh, nunca de uma vez.

Eu não deveria, creio, ter ido a Vermont. Mas nós sempre íamos para lá

quando o verão esquentava na Pensilvânia. E pode tornar-se muito quente,

pois, como disse alguém, este Estado é "a distante extremidade delgada do

trópico". Nossas matas e campos tornam-se luxuriantes como qualquer

floresta e as noites permanecem quentes. Talvez eu sentisse que poderia

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escapar, de algum modo, de sua contínua ausência. Custei a aprender como

isto é impossível, seja qual for a parte do mundo para onde eu vá. De

qualquer maneira, após algumas semanas, fui para Vermont com minhas três

filhas menores. Anos antes, quando ficou estabelecido que eu e a tasneira

não podíamos viver juntas, construí uma casa de três cômodos para ele e

para mim — dois quartos e uma grande sala de estar, que servia também de

sala de jantar, com um balcão de cozinha. Nela, ele e eu passamos bons

verões, e as crianças tinham quartos próprios em cima da garagem. Nessa

casa, que fora dele e minha, entrei agora sozinha. As meninas se alojaram

nos quartos sobre a garagem. Pus-me a escrever e a praticar no piano,

passando horas no alto terraço que dava para a montanha Stratton. Não sei

por que imaginei que tudo seria mais fácil aqui. Pois na verdade eu não

podia escrever. Meu cérebro, perdido em pensamentos, lembranças e

perguntas, simplesmente não se ocupava com a criação de vidas de outras

pessoas. Achava-me tão afastada de todos como se fosse eu que tivesse

morrido. Não, assim não podia ser. Vermont não era o lugar. E pela primeira

vez precisei de outra ocupação que não fosse escrever. Precisava de trabalho

que eu tivesse que fazer, trabalho com outros, compelindo-me a acordar cedo

diariamente e a ir a um lugar determinado, onde fosse minha obrigação estar.

Quando esta convicção me invadiu, tomei minha decisão. Voltaria ao

Japão e retomaria meu trabalho no filme. Meus colaboradores tinham estado

ocupados. Haviam descoberto os locais, uma aldeia de pescadores que

consideravam ideal para o nosso filme, uma fazenda com as plantações em

terraços na encosta do morro, uma praia deserta, uma casa de pescador, uma

mansão senhorial. Já tínhamos o vulcão. Tudo pronto para que eu voltasse ao

trabalho. Quando partiria? Respondi que imediatamente. Aproximava-se o

fim de agosto. As meninas breve voltariam à escola, e poderiam morar com

sua irmã mais velha. Não havia razões de família que me detivessem em

casa e eu bendisse a perspectiva de trabalho e do Japão.

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II

A ATMOSFERA EM MEIO à qual desembarcamos mais uma vez do jacto,

no aeroporto próximo a Tóquio, foi de boas vindas e de serena e muda

simpatia. Quanto mais profundos os sentimentos, menos palavras para

expressá-los, acham os japoneses. Nós, americanos, julgamos necessário

falar, mandar cartas e cartões de condolências. Centenas de cartas haviam

jorrado no meu estúdio, antes de minha partida, e eu as li todas porque era

bom conhecer a estima que dedicavam a ele, em tantos lugares do mundo.

Pessoas amigas e estranhas, faziam-me parar nas ruas e estradas rurais, para

dizer-me: "Lamentei tanto quando soube..."

Em Tóquio nada se dizia, porém tudo era transmitido. A consideração

era delicada, mas completa. Meu quarto, no hotel, estava flamante de flores e

cestas de frutas. As pequenas camareiras estavam sempre presentes e

solícitas. Eu compreendi, pois no Japão nem mesmo o amor é expresso em

palavras. Não existem frases como "eu te amo" na língua japonesa.

— Como é que você diz ao seu marido que o ama? perguntei certa vez a

uma amiga japonesa.

Ela me olhou ligeiramente chocada:

— Uma emoção tão profunda como o amor entre marido e mulher não

pode ser posta em palavras. Deve ser expressa pelas atitudes e pelos atos.

Também não existem, em japonês, equivalentes de nossas palavras de

amor — namorada, querida, meu bem, e as outras. Alguns jovens japoneses

estão começando a usar as palavras inglesas, mas não seriamente, talvez.

Mas talvez ninguém use mais essas palavras seriamente. Ouço diretores

americanos espalhá-las descuidada e casualmente pelas amadas e não-

amadas, de igual maneira, à moda de Hollywood e da Broadway, e sempre

me incomodo. Para um escritor todas as palavras isoladas como combinadas

com outras, cada qual devendo ser usada somente no seu lugar próprio,

como jóias. A língua inglesa é peculiarmente rica em palavras de amor, cujas

raízes mergulham no velho solo anglo-saxão. Ouvir um homem chamar uma

secretária, ou uma atriz, ou talvez apenas uma moça de cujo nome não se

recorda, pelas preciosas palavras do amor, sempre me... bem, me irrita! É

uma profanação do sentimento verdadeiro, o mais profundo do coração

humano. Para mim, nada na vida se iguala ou mesmo se assemelha, em valor

e riqueza, ao amor autêntico entre homem e mulher, com tudo quanto

implica. As palavras que usamos há séculos para expressar esse amor não

devem ser maculadas, pois pertencem a todos nós. Se são maculadas por um

descuidado mau uso, como expressaremos o amor verdadeiro? Somos

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roubados de algo que não pode ser substituído. Qualquer mulher que ouvir o

homem que ama chamá-la de querida, meu coração, meu amor, só pode

sentir-se irritada quando essas palavras são destruídas.

— Como pode usar essas palavras assim? perguntei a um americano.

Ele riu, sem compreender.

— Isto faz com que as garotas se sintam bem, respondeu despreocupado.

— É informal... sabe... amigável.

As moças japonesas não se sentem "bem" com isso, nem o consideram

amigável. As poucas que o aceitam, são problemas. Elas acham que palavras

de amor significam amor e se tornam sérias e, por conseguinte, incômodas.

As outras, que não andam em busca do amor dos americanos, com os seus

conseqüentes benefícios, consideram semelhante homem indevidamente

interessado em sexo e, por conseguinte, insultante. São necessárias muitas

explicações para que elas se acalmem. São em geral muito polidas para

queixar-se na presença do homem, mas, por trás, quanto desprezo!

— Vou processá-lo se ele tornar a dizer isso, exclamou uma jovem atriz

com os seus olhos negros reluzentes de fúria... E de fato o processou. Sim,

tivemos nossos problemas.

Nossos cenários estavam prontos, embora eu ainda só os tivesse visto em

filme; a tarefa seguinte era encontrar o elenco. Sendo japonesa a história de

A Grande Onda, o elenco tinha de ser japonês e nós havíamos contratado

uma equipe e um cameraman japoneses. Pela primeira vez uma companhia

cinematográfica americana estava fazendo um filme no Japão, co-produzido

por uma companhia cinematográfica japonesa — a maior e, sob vários

aspectos, a melhor — com equipe e cameraman japoneses. Era uma

experiência e profundamente interessante. Já tinha visto, antes, filmes

extraídos de meus livros, mas nenhum como este, e com a minha presença.

Eu não pretendia interferir na direção nem em qualquer dos aspectos

profissionais, pois conheço minhas áreas de ignorância, mas teria o

privilégio de estar onde me aprouvesse e de falar quando desejasse. Creio,

tudo considerado, que meus companheiros de trabalho confiavam na minha

capacidade de permanecer calada. Eu não falaria muito, freqüentemente.

Sou, de fato, uma mulher calada por natureza, a menos que me sinta

oprimida pelo que eu considere injustiça, circunstância na qual, segundo me

dizem, me torno torturantemente faladora.

Gostei, certamente, de participar da escolha do elenco. Deram-nos um

gabinete no elegante edifício de propriedade dos nossos co-produtores

japoneses e todos os dias eu para lá me dirigia bem cedo, ficando até tarde,

olhando, escutando, julgando, desaprovando ou aprovando, enquanto os

responsáveis davam audiência a atores e atrizes, adultos e crianças. Nossa

primeira preocupação era encontrar as crianças — dois meninos e duas

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meninas — que começariam a história. As crianças nos procuravam,

portanto, acompanhadas de suas mães.

Tenho visto várias crianças de teatro, tristes muitas vezes. Mas as

crianças japonesas, de teatro, não são tristes. Parecem-se com as demais

crianças japonesas, sadias, felizes, revelando a aparência geral dos que são

muito amados. Nem elas nem suas mães se mostravam tensas, como tantas

mães e crianças americanas nas mesmas circunstâncias, diferença esta que só

posso atribuir à possibilidade de que a concorrência não é tão importante na

vida japonesa como é na nossa, e que o desejo de sobressair vem depois da

consideração dos sentimentos humanos.

Elas entraram, uma após outra, cada mãe acompanhando discretamente

seu astro particular. Curvavam-se com a graça proporcionada por aquela

articulação extra que parece ter-se desenvolvido na coluna dorsal dos

japoneses. É única, essa curvatura. O chinês agita jovialmente a cabeça ao

cumprimentar e ao se despedir, e o coreano faz um altiva inclinação. O

japonês executa uma reverência, profunda mas também altiva.

Somente um garoto, na interminável procissão, parecia relutante ou

rebelde. Entrara no começo da manhã, ladeado pela mãe e pela tia, o único

menino que precisava i de escolta de duas mulheres, e o motivo logo se

tornou evidente. Era um garoto vistoso, mas rabugento, sua inclinação foi

quase descortês e a princípio não queria falar. A mãe e a tia desculparam-se

gentilmente desoladas por semelhante comportamento e nos informaram que

ele era um campeão de natação. Isto nos pareceu ótimo, o papel exigia um

bom nadador. Felicitamos o garoto, que se limitou a continuar rabugento.

Convidamo-lo a sentar-se e ele se sentou, ainda rabugento. Condescendeu,

após vários rogos sussurrados por suas parentas, a responder rapidamente às

nossas perguntas — demasiado rapidamente — olhando o tempo todo para a

parede. Sim, disse, respondendo a uma pergunta direta, estava na escola —

escola japonesa. Sim, falava inglês — às vezes. Estivera três anos no Cairo,

Egito, e lá freqüentara uma escola inglesa, mas preferia não falar inglês...

Gostava mais da escola japonesa que da inglesa... Não desejava lembrar-se

do Cairo. Bem, era uma cidade, nada mais... Foi-se tornando cada vez mais

rabugento. Ocorreu-nos uma coisa. Fizemos a pergunta final: ,

— Quer trabalhar neste filme?

Levantou a cabeça, sua fisionomia se iluminou pela primeira vez. Gritou:

— Não!

Fizemos mais uma pergunta certeira:

— Deseja ser ator?

Iluminou-se, agora, como uma lâmpada a gás néon:

— Não!

Estouramos de riso e ele nos olhou, esperançoso.

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— A entrevista está terminada, lhe dissemos, e você é um homem

prudente. Sabe o que quer.

Retirou-se, sem sorrir, varão arrogante, as parentas trotando atrás dele,

magoadas porém conformadas. Era óbvio que conquistara uma vitória sobre

a família e que estava acostumado a tais vitórias.

Passaram-se os dias e os atores ficaram reduzidos aos impossíveis e aos

possíveis, constituindo estes últimos o grupo menor. O Japão tem muitos

excelentes atores de ambos os sexos e de todas as idades, mas estávamos

procurando atores excelentes que também falassem inglês, pois esta seria a

língua dos diálogos. Esperamos, a princípio, um tanto fora da realidade, que

seu inglês fosse perfeito. Depois esperamos apenas que seu inglês fosse

bastante compreensível, de modo que pudesse dar a ilusão de japonês.

Ilusão que me faz recordar um incidente de minha própria vida, na

China. Eu tinha parado para descansar um dia em certa hospedaria de beira

de estrada, numa província remota. Uma velha veio derramar chá na minha

xícara. Agradeci-lhe em chinês e perguntei-lhe como o preparava. Olhou-me

aterrorizada e deixou cair o bule de chá.

— Que os deuses me protejam, balbuciou ela. — Que se passa comigo?

Estou compreendendo inglês!

Era algo assim que esperávamos conseguir, mas havia ocasiões em que

imaginávamos se não estaríamos sendo tolos em alimentar tal esperança. A

variedade de pronúncia dos japoneses que falam inglês é espantosa, mas tem

uma característica comum. A consoante "1" parece alheia tanto ao ouvido

como à língua japonesa.

O dia passava nesse divertido trabalho, até anoitecer, e o problema de

todos os dias era que no fim de cada um havia sempre a noite.

Pela primeira vez na vida eu me sentia triste quando chegava o anoitecer.

Os outros se reuniam aos seus maridos e esposas, mas eu voltava sozinha

para o meu quarto de hotel. As janelas davam para os tetos da nova Tóquio,

como disse; não era bonita, pois não tinha havido tempo suficiente para criar

beleza. A cidade fora apressadamente reconstruída depois da guerra. Uma

pena, pois tendo sido vastamente achatada pelos bombardeios, bem

poderiam, se possível, ter traçado ruas largas e amplas pistas de velocidade,

fazendo uma cidade moderna porém bela à maneira japonesa. Não a fizeram.

A guerra havia sido áspera, a gente estava desesperadamente ansiosa por

começar a viver de novo, e o governo se achava quase falido. As casas eram

levantadas a trouxe-mouxe. Ainda hoje é quase impossível encontrar uma

casa pelo seu número ou mesmo pela sua rua. Não se pode confiar senão no

desconhecido.

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As noites, em solitários quartos de hotel, são impossíveis, pelo menos

para mim. Tinha muitos amigos, convites em quantidade, mais do que

poderia aceitar, mas não satisfaziam. Era preciso sempre manter uma

fachada, uma pose, e isto podia ser feito durante o dia de trabalho, quando a

mente se achava ocupada. Era diferente quando se tinha de reagir

individualmente a outros. Em desespero e solidão, dei para perambular à

noite pelas ruas, desconhecida e livre. Tóquio é rica em teatros e cinemas e

eu habitualmente parava nuns e noutros. Embora não compreendesse os

diálogos, era fácil captar o curso da história, e eu me divertia suavemente, de

maneira superficial pelo menos, com o que via. As casas estavam apinhadas,

o auditório grave e intenso até que um momento cômico produzia riso alto,

staccato, interrompido instantaneamente pela intensa gravidade, de novo.

Numa dessas noites aconteceu-me ver uma americana, mais ou menos da

minha idade, perambulando como eu. Paramos, espantadas uma com a outra,

e então falei. Era de Los Angeles, seu marido tinha ido a Formosa, onde ela

não quisera acompanhá-lo, sua filha fora jantar com um jovem americano e

ela estava satisfazendo o velho desejo secreto de perambular sozinha pelas

ruas de Tóquio. A essa altura, porém, ela parecia incerta, embora não

assustada, e eu lhe propus que fôssemos ver o filme juntas, para nossa mútua

satisfação. O conhecimento amadureceu em amizade, sucedendo-se depois

um jantar com sua família, e mais tarde outro ainda, em Los Angeles. O

toque deste incidente é que eu não imaginava qual a aparência de uma

mulher americana em meio à multidão japonesa. Quando a vi, esqueci,

naturalmente, que a minha aparência era igual à dela, entre milhares de

japoneses.

Experimentava, na verdade, um cálido sentimento de conforto quando

me achava sozinha, em meio a uma multidão japonesa. Isto devia decorrer

da lembrança subjacente da atmosfera da minha infância quando,

acompanhada pela minha babá chinesa, eu me sentava num teatro chinês, ou

ao ar livre, na eira de uma aldeia, ou no pátio de um templo, para ver uma

peça. Na China o importante era sempre a peça, sendo desconhecido o

sistema de astros e estrelas, a não ser, naturalmente, que se fosse a Xangai ou

Pequim assistir o desempenho de uma estrela como, por exemplo, Mei Lang-

fang, ou Butterfly Wu. Quando criança não tive esse privilégio, mas apreciei

as peças de milagres e os longos dramas históricos através dos quais o povo

chinês aprendia religião, filosofia e a história de sua própria raça.

Aceitavam-me como membro assíduo da audiência, e eu me perdia, loura

criança americana dentro da multidão asiática — multidão bondosa naqueles

tempos e nunca me consideraram responsável pelos pecados do colonialismo

como todos os brancos são hoje considerados, por todos os asiáticos,

segundo parece. Eu tinha consciência, apenas, de estar cercada de gente

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agradável e bem humorada. Em Tóquio, agora, eu encontrava a mesma

gente, embora de uma nação e país diferentes, que me aceitava apenas

porque se havia habituado aos americanos como parte da paisagem mundial.

Sabem o que temos de melhor e de pior, através dos longos anos da

Ocupação, e não podemos mais surpreendê-los, quer pelo bem, quer pelo

mal.

Tóquio tem, naturalmente, seus aspectos negros. Há ruas nas quais gosto

tão pouco de andar sozinha quanto em certas partes de Nova York e

Filadélfia, onde aprendi que é perigoso não apenas caminhar assim, mas até

mesmo rodar com as portas de meu carro destrancadas. Cidades são cidades

e em todas se pode encontrar rufiões.

Era o tempo, também, dos motins de estudantes em Tóquio, sobre os

quais nós, norte-americanos, fomos tão mal informados. Não eram anti-

americanos. Eram japoneses que gostavam de sua constituição embora

tivesse sido elaborada por americanos — pelo menos por um americano.

Gostavam especialmente da parte em que o Japão, como nação, promete

nunca mais promover guerra. Agora os americanos pedem a eles, japoneses,

que tomem partido no caso de uma guerra, e ao lado do Ocidente, embora se

orientem para a Ásia e, no futuro, devam ser, de acordo com o senso comum,

um povo neutro. Com as bases americanas em seu território sentem que

estão sendo forçados a tomar partido. Tudo isto acumulou-se produzindo

uma situação para eles insuportável pela sua confusão. Os japoneses são um

povo bem organizado, têm seus diferentes níveis, não confundem a parte

melhor de seu ser com a pior. Seja qual for o nível em que se encontrem

temporariamente, é aquele e não outro. Fizeram o motim, portanto, para

proclamar sua confusão, mas não odeiam a ninguém. Em confusão são

capazes de assassínio, não necessariamente por ódio, mas apenas para

aclarar a confusão.

Os estudantes sempre foram uma alarmante, excitante e interessante

parte de minha vida. Não me refiro aos relativamente plácidos estudantes da

América do Norte, cujos momentos mais ativos não produzem nada de mais

violento, ou mesmo de mais excitante, do que as travessuras de colégio.

Estou acostumada aos estudantes do Japão, da índia e da Coréia. Na China, a

nova era, fosse qual fosse — e temos tido novas eras com espantosa e rápida

mudança — foi sempre anunciada por um levante de estudantes. O povo

respeitava esses moços e moças porque eram pessoas que, se não cultas,

estavam não obstante em busca da cultura e portanto mais privilegiadas e

presumivelmente melhor informadas do que o cidadão mediano que não

sabia ler e escrever. Os povos asiáticos acreditam que os livros são cofres de

sabedoria humana e desde que somente os estudantes têm acesso aos livros,

a posição de um estudante na Ásia era revestida, e ainda é, de um prestígio

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sem qualquer proporção com a sua idade e série escolar. Eram um grupo

devotado e arriscavam a vida em cada levante. Durante o regime

Nacionalista na China, vi muitos deles serem mortos por suspeita de

comunismo. Alguns deles eram, sem dúvida, comunistas, mas a maioria era

simplesmente de jovens patriotas dedicados, desejando desesperadamente

melhorar as condições em que seu povo vivia. Eles são os inumeráveis e

anônimos mártires, mas não podem' ser ignorados, apesar disso. Se alguém

quiser saber o que vai acontecer num país asiático, observe os estudantes.

Quanto ao filme, enquanto tudo isso se passava, nós precisávamos de

uma ressaca. Tudo o mais podia ser encontrado, mas a ressaca não podia ser

convocada à vontade. A própria história começava com uma ressaca. Certa

vez, quando eu estava passando um ano no Japão, na ilha de Kyushu, travei

conhecimento com uma pequena e adorável aldeia de pescadores, no

extremo sul da costa. Cerca de uma dúzia de casinhas de pedra se

amontoavam atrás de um dique pétreo. As casas, do lado do mar, não tinham

portas nem janelas. Não é que os pescadores não amassem o mar. Amavam-

no de fato, pois gerações de famílias tinham vivido ao lado dele e do seu

produto. Essas gerações, contudo, também haviam conhecido a fúria

daquelas vastas ondas desencadeadas pelos terremotos debaixo do mar.

Vulcão e mar trabalham juntos em favor da morte e eu os vira trabalhar

dessa forma num luminoso dia de setembro. Houve premonições. A água no

poço fundo, disseram-me os pescadores, estivera barrenta por alguns dias. O

poço, cavado na praia, ficava apenas a poucos metros do mar e ao pé de um

alto penhasco, mas a água era doce. Era lá que as mulheres da aldeia iam,

caminhando um quilômetro e meio na ida e outro tanto na volta, buscar toda

a água fresca que gastavam, e isto durante centenas de anos. Quando sugeri

que isso era um sofrimento, os homens sorriram, incrédulos. Devo dizer que

as mulheres sorriram também.

O terremoto, naturalmente, chega primeiro. O terremoto no Chile

desencadeou uma ressaca que atravessou o mar e atingiu o noroeste do

Japão, mas comumente o terremoto é no Japão, ou sob o mar próximo.

Terremoto — nem posso proferir a palavra para mim mesma, sentada aqui

sobre a sólida terra de minha casa rural da Pensilvânia, sem um toque

daquela interminável náusea do coração e do corpo, aquele desalento

orgânico, que invade um ser humano quando a terra treme debaixo de seus

pés. É como se o próprio globo se estivesse dissolvendo no espaço. A única

segurança que temos, nós os humanos, é esta terra que é o nosso lar, este

globo ao qual nos apegamos. A catástrofe nos assola, trovões e relâmpagos

rugem e faíscam no céu, ventos descem do espaço exterior, chuvas caem

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torrencialmente das nuvens, até mesmo o mar pode erguer-se, tempestuoso,

mas debaixo de tudo temos a terra, ou sentimos que a temos. Podemos ter

sido gerados no mar, mas agora somos criaturas da terra. Quando a terra nos

atraiçoa, quando não nos podemos manter sobre nossos pés, quando o chão

se fende e traga nossas casas e nossa gente, então estamos realmente

perdidos... Certa vez, em um violento terremoto no Japão, a terra se abriu e

uma criança que corria tombou dentro da brecha. A mãe, que perseguia a

criança, pulou atrás dela, e a terra fechou-se de novo, deixando de fora

apenas os seus compridos cabelos negros, como estranhas algas sobre a

trêmula superfície...

No segundo dia após meu regresso a Tóquio, quando estava escrevendo

diante da mesa do quarto do hotel, depois da meia-noite, senti aquele

profundo e agitado tremor de terra e mais uma vez a velha náusea me

invadiu. Não foi mais do que um ligeiro tremor, mas naquele instante minha

mão perdeu o controle e a escrivaninha sacudiu. A maioria das pessoas

continuou dormindo, mas o jornal da manhã noticiava um acentuado tremor.

Tais tremores ocorrem freqüentemente no Japão, centenas, milhares deles

por ano, na média de quatro por dia, e de cada vez é uma lembrança, a um

povo corajoso, de que vive em ilhas perigosas. O efeito que essa tensão

eterna produz sobre eles é óbvio. Têm temperamentos extremos — uma

jovialidade exagerada, uma profunda e às vezes frenética melancolia. Uma

superfície disciplinada e estudada, sorrisos, calma e displicência, forradas,

sem exceção, diria eu, por uma negra tristeza, oriunda do conhecimento, em

crianças e adultos, de que a catástrofe é endêmica a despeito da beleza das

montanhas e do mar, e da benevolência da vida. Esse conhecimento

universal gera neles uma consideração, uma terna cortesia, como a significar

que a melhor atitude é sermos bons uns para os outros, pois o mundo pode

acabar a qualquer momento. Quando essa bondade inerente tem de ser

ignorada, como no tempo de guerra, quando os homens devem ser ensinados

a serem brutais, podem tornar-se cruéis além de qualquer imaginação... Mas

eu estava falando de terremotos — e de ressacas.

Necessitávamos, portanto, de uma ressaca. Podíamos reproduzir o

terremoto com a câmara, mas a ressaca estava além de nossas possibilidades.

Foi nisso que tivemos sorte. Nossos co-produtores japoneses possuíam o

melhor estúdio para efeitos especiais do país e, como me disseram, do

mundo. Eu não sabia o que significava "efeitos especiais" em linguagem

cinematográfica, mas descobri que queria dizer reprodução, em miniatura, de

uma cena da natureza. Os japoneses são supremamente talentosos nesse tipo

de trabalho e, dentre todos eles, Tsuburaya é o mais talentoso. Felizmente

Tsuburaya pertencia à equipe de nossos co-produtores japoneses e, mediante

hora marcada, encontramo-lo em seus escritórios.

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É um artista, o que se percebe ao primeiro olhar. Vestia roupas de

trabalho, calças e camisa modelo saco e um paletó japonês. Saudou-nos com

encantadora cortesia natural. Sim, disse ele, sabia que desejávamos uma

ressaca e já havia preparado alguns desenhos para mostrar-nos. Eram

aquarelas espantosamente precisas do horizonte ascendente, do avanço da

onda e do elevado estouro da crista. Uma ressaca não aparece primeiro como

onda. Ao invés disso, o horizonte se levanta, o mar sobe em direção ao céu

em linha reta, corre para a terra, um muro de água que pode ter um ou

sessenta metros de altura. Uma sucção poderosa concentra a água em forma

de onda, de modo que, olhando do alto de um penhasco, se vê o fundo nu do

oceano, muito além da praia. Então a gigantesca onda se arqueia sobre sua

própria base e arrasa terras, casas e pessoas.

Eu observava a fisionomia de Tsuburaya enquanto ele descrevia as

seqüências que tinha pintado. Gostaria de traçar aquele belo rosto japonês,

mesmo que fosse em palavras. Digo belo no sentido profundo do termo. Não

era bonito no sentido superficial. Estava gasto pelo pensamento e pela

concentração. Era tão sensível quanto um rosto de criança, uma criança

genial, mas em nada infantil. Era arguto e gentil, contudo fresco, forte e bem

humorado,, o rosto de um artista purificado pela satisfação de sua plena

realização através da arte. Conversamos tranqüilamente, eu ouvindo

enquanto ele descrevia seus planos. Iria à aldeia de pescadores, com seu

cameraman, e fotografaria tudo. Depois construiria os cenários no estúdio,

recriaria as cenas e as adaptaria ao filme. Isto seria feito mais tarde, quando

o trabalho estivesse progredindo. Entrementes, senti a particular satisfação

do escritor que sabe que seu trabalho foi compreendido e está prestes a ser

transplantado com fidelidade para outro meio.

Aprendi por experiência que as pessoas que trabalham no teatro não

devem ser julgadas pelos padrões aplicados aos demais. Formam um grupo à

parte, por temperamento, seja qual for sua raça, classe ou nacionalidade. Um

ator chinês, homem ou mulher, é como um ator americano, e é como um ator

de qualquer outro país, porque eles são, acima de tudo, atores. O mesmo

acontece com os diretores, seja qual for sua idade, cor, religião,

nacionalidade —. todos prima-donas, sem uma única exceção. Faço esta

observação geral como preliminar ao nosso primeiro problema real na feitura

do filme. Tudo havia decorrido tão agradavelmente, tão facilmente, que eu

devia esperar, alegremente pessimista como sou, uma tempestade no

horizonte, um nó na linha, um enguiço na máquina.

Aconteceu numa quente manhã de verão quando o ar condicionado

estava quebrado — a fim de proporcionar a temperatura apropriada à

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tempestade que se avizinhava, suponho eu. O gerente de produção se

aproximou de mim com exagerada cortesia. Estávamos no seu escritório, i

como de costume, o diretor americano e eu, e o gerente de produção se

mostrava demasiado cordial para nos inspirar segurança. Eu devia ter

percebido que ele estava com alguma idéia. Ordenou a várias moças bonitas

que nos trouxessem chá, e quando o americano disse que preferia café,

porque era o único lugar em Tóquio onde havia bom café, o gerente de

produção gritou a outro bando de moças bonitas que trouxessem café.

Quando estávamos todos sentados em volta da baixa mesa redonda, e depois

de ter enxugado a transpiração de seu bem nutrido rosto e pescoço, disse,

demasiado negligentemente, que, estando também em jogo, no filme, a

reputação de sua firma, eles gostariam de indicar um assistente de direção

japonês ao americano.

Sei que nada na vida é realmente fortuito. Portanto, ao ver um súbito

alerta nos olhos do americano, dei um tom casual à minha resposta. Nós,

naturalmente, recebíamos com satisfação essa ajuda, disse eu. Queria que o

filme fosse autêntico em todos os detalhes. Era o que se esperava em meu

próprio país. O gerente de produção mencionou, ainda mais casualmente, o

nome de um diretor. Eu o reconheci. Era o nome de um famoso diretor de

cinema japonês, agora oficialmente aposentado mas ainda inesgotavelmente

um diretor.

Gostaria de vê-lo, tornou o diretor americano também casualmente.

Tudo parecia macio e civilizado, o gerente de produção deu um suspiro

feliz e insistiu em que tomássemos ginger ale, além do chá e do café. Era um

homem grande, alto e pesado, e era temperamental. Na verdade eu fora

chamada em particular, no dia anterior ao nosso encontro, e advertida de que

ele e o diretor americano talvez não se dessem bem, por não serem

harmônicas as suas respectivas naturezas. Perguntei qual a significação

disso. Explicaram-me, em termos japoneses, que tanto o americano quanto o

japonês eram cheios de energia e determinação. O americano não cedia

facilmente nos pontos em que se considerava com a razão. O japonês fazia o

mesmo. Digamos claramente que nenhum dos dois cedia jamais. Isso me

perturbara e agora me ocorria que um assistente de direção japonês talvez

agisse como pára-choque.

Mas, quando mencionei essa possibilidade, mais tarde naquele dia, ao

diretor americano, este respondeu bruscamente que não queria pára-choques.

Gostava do gerente de produção japonês porque era tão franco quanto um

americano e por conseguinte podia tratar com ele. Percebi certa tensão na

voz do diretor americano e adiei a discussão. Lembrei-me de que o tempo

cuida de muitas coisas. É o que a Ásia me ensinara.

Prosseguimos, entrementes, na escolha do elenco, sem consideração ao

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mais que estava ocorrendo — um processo que não é diferente em Tóquio ou

na Broadway. Sentamo-nos, a convite, atrás da comprida mesa do escritório,

e os atores ou atrizes se aproximavam um a um, de cada vez. Tínhamos suas

fotografias diante de nós e os estudávamos cuidadosamente do ponto de vista

fotogênico, enquanto eram feitas as perguntas.

O problema era o inglês. Havia muitos jovens elegantes e muitas, muitas

moças bonitas, e alguns personagens mais velhos e seus contracenantes

femininos. As perguntas eram sempre as mesmas:

— Seu nome?

— Quantos filmes já fez?

— Em sua opinião, qual foi o seu melhor papel?

Em determinado momento da chuva de perguntas, em geral bem

depressa, tornava-se transparente que o inglês do candidato era demasiado

fraco, na verdade inexistente. A única frase perfeita em inglês era sempre a

mesma:

— Não sei falar inglês.

— Onde estudou inglês? inquiríamos.

— Na escora... sim.

— Quantos anos na escola?

— Seis ânus.

— Seis anos?

Um aceno. Tentávamos não sorrir quando esses seis anos eram repetidos

por diversas vezes. Afinal um dos rapazes que estudara inglês disse:

— Dez ânus.

Tentamos fazê-lo repetir palavras inglesas, trechos de diálogo. Um bom

ouvido pode tornar possível o aprendizado do diálogo em inglês. Às vezes o

ouvido era muito bom. De modo geral, não era.

— Na próxima vez em que você fizer um filme, aconselhei a mim

mesma, em particular, trate de se limitar aos países de língua inglesa.

Quando, finalmente, aparecia um ator que falava inglês com perfeição,

procurávamos não aceitá-lo apenas por esse fato. Havia outras exigências.

Assim passavam os dias, sem esperança mas não de todo desesperados.

Entrementes não se deixou morrer a questão do assistente de diretor. O

gerente de produção disse-nos, certa manhã, que nos havia marcado um

encontro com o diretor japonês. Eu estava cada vez mais impressionada com

o gerente de produção, com a sua eficiência e sua crônica desesperação. Ele

tinha de produzir um filme por semana para a população japonesa faminta de

películas. Era e é um programa intoleravelmente pesado, mas ele me

assegurou que não podia ser atenuado enquanto a televisão não se

desenvolvesse e proporcionasse uma verdadeira competição, quando,

continuou ele, as companhias cinematográficas teriam de produzir filmes

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melhores e, por conseguinte, menos numerosos. Entrementes, não podia

parar. Realizava conferências com diretores, com todo mundo, segundo

parecia, enquanto se metia conosco, aparecendo e reaparecendo, sempre em

mangas de camisa, o largo rosto brilhando de suor, apesar das salas

refrigeradas. Tinha um rosto muito bonito, na clássica tradição japonesa,

embora não tão bonito quanto devera ter sido, sem dúvida, na juventude,

antes que o vinho e o resto nele deixassem sua marca. As bochechas também

estavam pesadas agora, havia bolsas sob seus expressivos olhos. Mas

desanuviava-se facilmente com o riso, e quando ria era como o rugido de um

leão. Punha de lado as formalidades, sempre que possível, e nos pedia

franqueza. Falava em japonês, sendo interpretado por uma das bonitas

jovens que abrandavam o que ele dizia sem destruir-lhe a força. Era muito

engenhosa. Mas eu ainda não o conhecia realmente. Isto veio depois.

Uma tarde fomos conduzidos a outro gabinete onde nos disseram que

esperássemos para falar com o diretor japonês que nos fora proposto.

Esperamos. Ele entrou cerca de cinco minutos depois, com a vaga aparência

de um Stokowski japonês, porém maior. Era bonito para a sua idade, os

cabelos brancos penteados para trás, o perfil altivo. Curvou-se não muito

profundamente e notei a frieza refletir-se na fisionomia do diretor americano.

Dois jovens atores estavam prestes a criar uma cena para nós. O diretor

japonês sentou-se. Ele compreendia inglês tão bem quanto o gerente de

produção mas, como este, não sabia falar. O diretor americano explicou que

desejava que os dois atores representassem uma cena entre Toru e Yukio,

personagens principais de A Grande Onda. O diretor japonês pegou uma

caneta e se pôs a escrever como pensava que a cena devia ser. O diretor

americano tentou, através da nossa intérprete, interromper esse procedimento

sob a alegação de que não queria que a cena fosse fixa e sim fluida. O

japonês silenciou-a com um gesto imperioso. Os olhos do americano

adquiriram o brilho do aço e ele tornou a instruir a intérprete.

— Diga ao cavalheiro, por favor, que não quero a cena escrita. Quero

que os atores improvisem.

A intérprete, aterrorizada pela fama e pela altivez do diretor nipônico,

fez um esforço por obedecer. Novamente o gesto imperioso da real mão! O

americano manteve sua posição. Quando o japonês se inclinou para dar o

papel aos atores, com suas próprias instruções, o americano apanhou-o,

dizendo num inglês firme:

— Não quero que tenham instruções escritas.

Houve um momento de amedrontado silêncio de parte dos atores. A

quem deviam obedecer? Ao americano, decidiram finalmente, e o japonês

recostou-se na cadeira, com ar terrível. Eu sabia o que estava para vir, mas

sabia, também, que isso devia esperar até voltarmos ao hotel. O americano

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mantinha maneiras perfeitas em público, mas quando a cena terminou —

bem representada, por sinal, considerando a tensão da atmosfera —

levantamo-nos, fizemos uma reverência ao diretor japonês e aos demais

presentes e saímos. A intérprete foi conosco no automóvel, de modo que

nada dissemos. Mas ao saltarmos, na porta do hotel, o americano falou-me

por entre os dentes cerrados.

— Preciso lhe falar, antes que tudo se esboroe.

Curvei-me ante o inevitável.

— Muito bem. Falemos agora, em meus aposentos. Espero-o dentro de

quinze minutos.

Eu necessitava de alguns minutos a fim de preparar-me para a provação

de uma conferência com uma prima-dona. Definir uma prima-dona? Seja

qual for o sentido consignado no dicionário, na vida real significa uma

pessoa egoconcêntrica — não necessariamente egoísta ou egotista, e não

inteiramente egocêntrica, mas certamente uma pessoa cujo ser tem como

núcleo o ego. Falando de modo geral, há duas espécies de diretores; o diretor

de atores e o diretor de diretores. O diretor de atores é querido pelos atores.

Ele os corteja, os fascina, os acata, lisonjeia-os, liga-os a si emocionalmente

até que façam o melhor para ele. Chama, a isso, "desenvolver seus talentos".

Mais cedo ou mais tarde também os destrói, especialmente se não o libertam

do laço emocional criado por ele. Espera ser libertado tão logo a peça estréie

ou o filme termine, pois a emoção serviu ao seu propósito, e fica indignado

quando não o libertam. Alguns atores — as mulheres, para ser mais precisa

— são tão tolos ao ponto de quererem continuar o laço, e quando este é

cortado ficam destruídas, pelo menos por algum tempo. São, contudo, tão

dependentes em termos emocionais que continuam afetuosamente a falar

como "diretor de atores". O diretor de diretores, por outro lado, evitará o uso

da emoção como instrumento para o desenvolvimento do ator, homem ou

mulher. Ele sabe o que quer, e não admite o truque do "desenvolvimento".

Diz ao ator exatamente o que deve ser feito, em termos de arte e da peça, e o

ator deve representar em conseqüência. Sem exceção, que eu saiba, os

diretores japoneses pertencem a este ultimo grupo.

Neste ponto de minha análise houve uma batida à minha porta e o diretor

americano entrou no que se designa por ominoso silêncio. Sentou-se e

começou, como de costume, salientando alguns equívocos menores que eu

cometera durante o dia — menores ou maiores, isto não importava, pois a

essa altura cada equívoco era grande e todos meus.

— Por que — inquiriu ele com assustadora nitidez, os olhos

verrumando-me o rosto — tinha de cumprimentar aquele japonês como se

fosse um velho amigo? Por que tinha de lhe agradecer e dizer que era bom

contar com a sua ajuda?

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Balbuciei alguma coisa acerca da polidez à maneira japonesa, et cetera,

mas nada podia impedir o inevitável. Ele não vacilou.

— Devo lhe dizer — e eu sabia que ele devia — que se esse diretor

japonês não for afastado imediatamente, eu voltarei para Nova York.

Fiquei sem fala. Afastar o japonês depois que o gerente de produção o

convidara? Era o mesmo que pedir para afastar o Monte Fuji da paisagem do

Japão!

O americano continuou num tom frígido:

— Só pode haver um diretor. Sou eu... ou não sou eu. O céu desabou. Eu

estava esmagada. Chegara a crise que havia temido. Esperara que o tempo a

fizesse menos violenta, fora tolamente otimista e agora me sentia

desesperada. Não sou boa combatente em nenhuma circunstância e quando

posta diante de uma batalha tento sempre seguir o velho e bom provérbio

chinês. "Dos trinta e seis caminhos de fuga, o melhor é correr". O problema,

naquele instante, era que não havia lugar para onde correr. Não podia correr,

portanto.

Levantei-me da cadeira. Estávamos no fim do dia, quase seis horas, eu

gostaria de ter mandado vir um bule de chá verde japonês, ao qual sou

afeiçoada, e então, bebericando-o, ler uma novela japonesa enquanto

esperava pelo jantar. Não havia possibilidade nem de chá, nem de novela.

Pensei no pior e no mais assustador lugar, e não consegui pensar noutro.

Disse:

— Vamos agora mesmo ao gabinete do gerente de produção e lhe dizer

tudo.

Esperei que o diretor americano admirasse minha coragem. Mas reagiu

exatamente como se eu lhe tivesse dito que fôssemos ao zoológico,

procurássemos o maior e mais feroz leão e lhe torcêssemos o rabo. Não

mostrou qualquer sinal de admiração. Levantou-se e partimos, a intérprete

timidamente atrás de nós. Empalideceu quando lhe explicamos nosso

objetivo.

— O diretor japonês, balbuciou ela, é um homem muito importante. O

gerente de produção também.

Foi a minha vez de empalidecer. Comecei a odiar temporariamente

aquele diretor americano. E por que tive eu de ceder à idéia de fazer um

filme no Japão? Mas estava aqui. Havíamos chegado ao edifício. Subíamos

no elevador. Anunciamo-nos à porta do escritório do gerente de produção.

Sim, precisávamos vê-lo antes que saísse, dissemos. A moça bonita olhou-

nos surpreendida, insinuou que o gerente de produção estava muito ocupado,

et cetera, mas respondemos que esperaríamos. Fomos admitidos e nos

sentamos. O gerente de produção ignorou-nos enquanto trovejava num e

noutro telefone. Observei, tolamente, que os telefones eram todos de cor

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azul-turquesa numa sala verde. Contei os botões das costas de uma bonita

moça que falava ainda em outro telefone, repetindo em voz gentil os rugidos

do gerente de produção. Trouxeram-nos chá verde mas não me atrevi a

engoli-lo, com medo de ficar sufocada. Após longos cinco minutos, dez

minutos, fosse qual fosse o tempo, o gerente de produção baixou seu

corpanzil a uma das cadeiras em círculo e grunhiu algo à sua intérprete.

Compreendi perfeitamente que perguntara, à sua própria maneira, por que

diabo estávamos ali.

Eu própria não tinha certeza. Desejava não estar ali, mas um olhar ao

perfil soturno do americano foi suficiente para destruir pergunta e resposta.

Mergulhei no assunto, sabendo que estava cometendo suicídio. Comecei

assegurando ao gerente de produção — que compreendia cada uma de

minhas palavras em inglês, mas fingia que não — que seu desejo de ajudar-

nos muito nos honrava, mas, considerando as circunstâncias, os diretores

sendo diretores, jovens e velhos — fui meandrando, esperando evitar a

questão final, no último momento, quando devia dizer diretamente, de algum

modo, que não queríamos o diretor japonês... quer dizer, o diretor americano

é que não queria; quer dizer, eu estava certa de que o gerente de produção

compreendia quão embaraçoso seria para um diretor americano, fazendo seu

primeiro filme no Japão, dizer a um diretor mais velho, tão respeitado, et

cetera. O americano achava impossível até mesmo a idéia desse fato, para

não mencionar a confusão dos atores, que não saberiam a qual dos dois... e

por aí afora...

A intérprete lutava com os meus sincopados esforços. Como eu sabia, o

gerente de produção compreendia perfeitamente onde eu queria chegar.

Interrompeu os balbucios e a interpretação. Bateu nos seus gordos joelhos

com as grandes e bonitas mãos. Rugiu para nós e em inglês!

— Diretor americano tem de ser forte! Diretor americano tem de dizer a

todo mundo: "Vocês escutem aqui o que estou dizendo!"

Bateu no vasto peito para ilustrar como o diretor americano devia

comportar-se. O americano, porém, permaneceu frio. Disse com terrível

calma:

— Sei como me comportar dessa maneira no meu próprio país. Não me

comportarei assim aqui no Japão. Devo pedir que o diretor japonês seja

afastado.

Os dois homens se olharam, para não dizer se fuzilaram, um ao outro.

Abri a bolsa e tirei o leque chinês que conservo para tais emergências.

Embora a sala estivesse bem refrigerada, achei necessário abanar-me. Tentei

pensar em algo remoto e agradável, as montanhas de Vermont, por exemplo,

como as via da janela de minha sala de estar.

Ouvi a alta rajada de um suspiro. Era o gerente de produção. Levantou-

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se e começou a andar pela sala, esfregando a cabeça com as mãos. Estava

murmurando, ainda em inglês.

— Eu temia que qualquer coisa parecida com isso fosse acontecer... oh,

sim, diabos!

Sentou-se e ponderou. Conheço meu Japão e compreendi que ele se

sentia muito infeliz. Alguém tinha de ficar com a cara no chão e não podia

ser o velho e famoso diretor japonês. Também não podíamos ser nós, pois,

como estrangeiros, não sabíamos o suficiente para ficar com a cara no chão.

Ele ergueu a cabeça e atirou-me um olhar reprovador. Você, transmitiu-me

esse olhar, você sabia mais. Devia ter-me poupado isto.

— Lamento, murmurei atrás do meu leque. — Lamento muito. Mas que

posso fazer? Se não lhe tivesse dito, se tivéssemos começado a trabalhar, o

problema teria sido pior.

— Ah, sodeska, suspirou ele. — É verdade... melhor resolver logo.

Voltou ao idioma japonês. Não podia mais falar inglês.

— Diga a eles, falou à intérprete, diga a eles que tratarei do assunto. Vê-

los-ei amanhã. Estou ocupado mas os verei.

Deu-nos as costas assim que pôde e voltamos ao hotel.

— Afinal está feito, disse eu ao americano.

Ele se recusou a demonstrar alegria.

— Ainda não vimos o fim da história, respondeu soturnamente.

No dia seguinte pareceu que ele estava certo. Voltamos aos estúdios e

retomamos a escolha do elenco. Tudo era como no dia anterior, exceto o fato

de não vermos o gerente de produção, do qual dependíamos para tudo.

Bonitas atrizes entravam, informavam que haviam estudado inglês durante

seis anos, declaravam que não sabiam falar inglês e nos deixavam. Jovens

elegantes entravam com a mesma ladainha. Ficamos enormemente alegres

com um ator mais velho que podia fazer o papel do pai de Toru e que falava

um inglês perfeito. E durante todo esse tempo, nada do gerente de produção.

Quando perguntamos por ele a uma moça bonita, ela saiu e voltou para dizer

que ele podia encontrar-se conosco nos escritórios da cidade, às duas horas.

Estava muito ocupado, et cetera. Serviram-nos deliciosos sanduíches de

carne — ontem de vaca e hoje de porco temperado. Faço uma pausa aqui

para dizer que, no Japão, a carne é de vacas Kobe, alimentadas a cerveja e

massageadas à mão, diariamente, por devotados vaqueiros, razão por que é

mais tenra do que qualquer outra que já provei.

Às duas horas, exatamente, estávamos nos escritórios da cidade.

Nenhum gerente de produção apareceu no horizonte desse dia ou de

qualquer dia. O americano ficou indignado e eu resignada. As moças bonitas

saíam trotando e voltavam para dizer que o gerente de produção nos veria às

cinco horas do dia seguinte, ou do seguinte, ou do seguinte. Isto significava

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um adiamento da decisão sobre o nosso elenco, que nós simplesmente não

nos podíamos permitir. Voltamos ao hotel e nos queixamos à minha especial

amiga, por telefone. Era inútil pensar em comer ou em dormir, se o gerente

de produção nos tinha abandonado. Houve uma longa espera. Ela nos

chamou. Desta vez o americano assumiu a ofensiva. Explicou sua posição,

inalterada e inalterável. Escutou a resposta dela e pela primeira vez em dois

dias a sua fisionomia se iluminou. Deduzi que a questão do diretor de

produção havia sido resolvida. Ele fora convidado a renunciar. Tudo estava

em ordem, disse minha amiga.

Porém mais tarde, durante meu jantar solitário, surpreendi-me

subitamente sem apetite, apesar da deliciosa salada de carne de siri que

haviam posto à minha frente. Uma hórrida noção agitava-se dentro de mim,

um eco do passado, meu passado na Ásia. Não estava tudo bem — não de

todo, não de todo. Há sempre um preço para a vitória. Qual seria, eu não

sabia. Ainda não sei. Resta uma dívida a ser paga. Posso apenas dizer que o

gerente de produção não... o quê? É bem possível que eu nunca venha a

saber. De qualquer modo, naquele dia, o episódio estava encerrado.

E sempre, ao cabo do dia, de todos os dias, vinha o regresso a ninguém!

Depois dos problemas, resolvidos e não resolvidos, depois das idas e vindas

de muita gente, da dúvida e da preocupação, da excitação da descoberta, dos

risos partilhados, da crescente confiança no trabalho, todos os dias tinham o

mesmo fim. Eu voltava aos aposentos do hotel, abria a porta, entrava e a

trancava de novo. As flores estavam frescas, os quartos refrigerados, as

cartas amontoavam-se sobre a mesa — cartas de ninguém. A carta pela qual

eu ansiava não podia ser escrita porque ele se fora. Não abri as outras. Que

esperassem até a minha secretária japonesa chegar e eu ser forçada a

trabalhar a fim de que ela pudesse trabalhar. Os convites eram muitos, mas

me faltava disposição para aceitá-los. Tinha de aceitar alguns, os que se

relacionavam com os tristes e ansiosos pais de crianças retardadas, alguns

outros de velhos amigos em homenagem às bondades do passado. Adquiri

então o hábito de mandar vir o jantar para o quarto e de comer sozinha, de

modo que não precisasse ser compelida a sorrir a desconhecidos que podiam

abordar-me com perguntas e elogios. Quando chegava a noite, a vida perdia

subitamente o sentido.

Contudo, não me sentia impaciente comigo mesma. Sabia, por

experiência, que é preciso tempo para que o ser absorva o sofrimento. Uma

vez feito esse ajustamento, começa de novo o desenvolvimento e a vida

nova. Era demasiado cedo. Verifiquei que era impossível ficar sentada

sozinha nos quartos do hotel. Estivesse ele comigo e esta seria a parte

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melhor do dia. Sempre fora a melhor parte. Tínhamos de passar separados

muito de nossa vida, durante as horas do dia, pois cada um de nós exercia

uma profissão, um trabalho. Mas quão ansiosamente esperávamos para poder

passá-la juntos! íamos os dois onde quer que tivéssemos de ir, eu cedendo à

necessidade dele, ele à minha, dependendo da importância que atribuíssemos

à ocasião específica. E em vinte e cinco anos de casados não passamos uma

noite separados, até que se tornou necessário, para ele, viver e trabalhar

somente em casa. Mesmo então eu recusava todos os convites que me

fizessem passar a noite fora, até que ele cessou de saber se eu estava presente

ou não. E quando ele parou de saber, tudo foi diferente, exceto a memória.

Rejeitei esse tempo de inconsciência. Quando penso nele, penso nele

como o conheci, vivo, vivido, com infinita variedade de pensamentos e de

palavras, dominante, com invencíveis preconceitos em algumas questões,

como eu costumava dizer impetuosamente quando discordávamos, e ele

sorria, aceitava sorrindo a acusação sem a menor intenção de modificar-se.

Mas ele sabia que eu não o queria modificado. Fosse o que fosse, era ele

mesmo, e eu gostava disso. Por exemplo: não podia pregar um prego sem

bater no seu polegar; por conseguinte, recusava-se sabiamente a pregar

pregos. Não tomava parte nos assuntos caseiros, por mais ocupada que eu

estivesse. Não comia o que não gostava, pouco importando o bem que o

alimento lhe fizesse. Ao mesmo tempo era disciplinado quanto à qualidade e

quantidade do que comia. Quando falava, nenhum de nós o interrompia. Era

o pai, bem como o marido, e contudo recusava-se a tomar qualquer parte na

disciplina de nossa grande família. Eu própria não sou disciplinadora, pois

sou dada a rir das más-criações, a menos que esteja zangada, e nem a

jovialidade nem a cólera são a atmosfera adequada à disciplina. As

professoras de nossas nove crianças eram unânimes numa observação que,

mais ou cedo ou mais tarde, sempre nos era feita, mas particularmente a

mim, pois ele não comparecia a reuniões de pais e professores, e eu tinha de

ir sozinha. A observação era simples:

— Seus filhos estão estragados.

Concordei, desamparada. Como podia ser de outra maneira, se tinham

uma mãe que ria com demasiada facilidade e que custava muito a se zangar

e, quando se zangava, tinha tais acessos que as crianças a olhavam

espantadas e pensavam que ela não estava agindo a sério? Quanto a ele, o

máximo de sua disciplina era olhar a criança refratária com fria

desaprovação e depois voltar-se para mim com uma observação feita tão

casualmente que me deixava invariavelmente atordoada e incapaz de outra

coisa senão de uma débil resposta.

— Você permite que continue uma coisa dessas? perguntava ele.

— E você, permite? redargüia eu.

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Seguia-se o silêncio e a criança, isolada pelo nosso mutismo, acabava se

submetendo, depois de uns poucos minutos em que tentava manter sua

independência. Olhando, agora, para essas mesmas crianças, posso apenas

dizer, pelo que sei, que se saíram bem. Isto é, nenhuma delas é delinqüente

ou esteve na cadeia. Naturalmente ainda há tempo para a cadeia, mas duvido

que cheguem alguma vez a ela.

Estou fazendo justiça a ele, como disciplinador? Talvez não, pois havia

uma ofensa que não tolerava de qualquer criança: ato ou palavra que

considerasse falta de respeito a mim. Se uma criança se comportava dessa

forma, sua reação era instantânea, invariável e trovejante.

— Você não sabe que a sua mãe é a maior mulher do mundo?

O absurdo da observação reduzia-me imediatamente a um estado de

embaraço que as crianças compreendiam e sofriam comigo, sobretudo

porque não haviam tido qualquer intenção de desrespeitar-me. Eu apreciava

a livre discussão, a discordância animada, e a explosão dele matava a

intercomunicação. Se estávamos à mesa, perdíamos o apetite e ficávamos em

silêncio. Não sei o que pensava desse silêncio, pois não permitia protestos ou

discussão sobre o assunto relativo ao respeito a mim, nem mesmo de minha

parte!

Eu, por meu turno, obedecia-lhe demasiado literalmente e isto por dois

motivos. Passara minha vida na China, até nos encontrarmos, e havia

aprendido que a mulher deve obedecer ao homem, se possível. Em segundo

lugar, eu era desgraçadamente ignorante acerca de meu próprio país. Nasci

tarde e meus pais já viviam há décadas na China, antes que eu aparecesse em

sua vida. Eram moços quando saíram da pátria, meu pai com vinte e oito e

minha mãe apenas com vinte e três anos, ambos idealistas e intelectuais.

Atingiram a maturidade dentro da cultura e da sociedade chinesas, não em

sua própria terra. Quando fui, afinal, viver em meu país e nos casamos, ele e

eu, afirmou que, entre outros prazeres, era bom casar comigo pois eu era tão

ignorante que poderia contar-me todas as velhas piadas americanas, as quais

para mim seriam novas. Isto era verdade, e ele deveria ter vivido para contá-

las todas, pois não chegou ao fim delas. A qualquer instante dizia-me algo

que me provocava uma sadia gargalhada.

Errou somente numa decisão familiar e agora sei que eu lhe deveria ter

desobedecido, por razões práticas. Mesmo nesse caso, em princípio estava

certo. Eis a questão: ele não acreditava em tarefas escolares para fazer em

casa. Argumentava, e com razão, que a escola retinha a criança durante as

melhores horas do dia. Se o currículo fosse cuidadosamente planejado e

eliminadas todas as tolices e perda de tempo, tudo poderia ser concluído

dentro do horário escolar. Acreditava que a vida em família, à noite, não

devia ser estragada por ter a criança de fazer os deveres escolares do dia.

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Como de hábito, ignorava tudo quanto não merecia a sua aprovação. Eu não

havia sido educada no sistema escolar americano e não me restava solução

melhor senão concordar com ele. Conseqüentemente, gozávamos nossas

noites todos juntos, fazendo música, jogando e lendo em voz alta. O

resultado aparecia, ai de mim, nos boletins das crianças e numa atitude geral,

devo confessá-lo, de considerar a escola mais um passatempo do que um

trabalho. Repito que não lhe deveria ter obedecido. Eu deveria reunir as

crianças ao redor da mesa grande, à noite, e fazer com que cumprissem suas

tarefas escolares, até que crescessem o suficiente para assumir suas próprias

responsabilidades... Mas, como viveria ele, nesse caso? Noites solitárias,

nenhuma lembrança de noites felizes. Estou contente por termos vivido

como o fizemos.

Eu mergulhava facilmente em tais reminiscências meio risonhas, meio

chorosas, e era necessário que eu despertasse. Assim, depois que terminava o

jantar e a pequena garçonete japonesa, sempre solícita quando eu deixava

meu prato pela metade, tirava a mesa, eu ia perambular de novo pelas ruas

de Tóquio. Dirigia-me freqüentemente a Ginza, mercado, bazar e centro de

diversões, sempre distraída pela variedade de pessoas que iam apreciar o

festivo cenário. Bandeiras, balões, flores de papel de todas as cores presas

nos beirais dos telhados, flutuavam sobre as ruas e lojas; em plena rua,

exibidores enalteciam suas mercadorias. Automóveis americanos, prova de

riqueza, achavam-se estacionados junto ao meio-fio, com os choferes

polindo zelosamente os cromados enquanto seus patrões examinavam

brinquedos, ou sedas, ou jóias. Bicicletas passavam loucamente por entre o

enxame de pessoas e mulheres caminhavam estalando as solas de madeira

dos seus geta, com os bebês amarrados às costas.

Mais significativo que tudo eram os moços e moças andando de mãos

dadas num estado de entorpecida felicidade, olhando vitrinas ou apenas

perambulando. A gente custa a se acostumar com essa história de mãos

dadas no Japão moderno. É algo inteiramente novo. No velho Japão os

namorados encontravam-se em segredo, galgavam vulcões e se atiravam nas

ardentes crateras para significar a profundeza de seu amor desesperado.

Atualmente caminham de mãos dadas em Ginza ou fazem piqueniques em

lugares famosos onde, antigamente, cometiam suicídio juntos. Mudaram os

pais ou foram os jovens que aprenderam a exigir seus direitos? Certamente

há alguma mudança nos pais. As quatro principais catástrofes do velho

Japão, se podemos confiar num antigo dito japonês, são "terremotos,

incêndios, inundações e pais". Terremotos, incêndios e inundações ainda são

temíveis, mas os pais?

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Houve, certamente, uma mudança nos pais, mas a mudança maior foi nas

mães. Nenhuma mãe do velho Japão teria sonhado em permitir que sua filha

andasse de mãos dadas com um rapaz, em Ginza, ou em qualquer outro

lugar, nem a filha teria sonhado em desobedecer. Mas devo abordar

gradativamente e pouco a pouco essa mudança da mulher japonesa. É

profunda e esmagadora.

Quanto a Ginza, embora as mercadorias fossem espantosas,

extravagantes, clamorosas e às vezes belas, minha diversão era o povo — é a

minha diversão, onde quer que eu ande. Graças a ele, escapo de mim mesma.

Quando a meia noite chegava e a multidão se dispersava — pois os

japoneses vão cedo para a cama, exceto os cavalheiros dos bares — eu

voltava aos aposentos do hotel, entrava de novo, trancava a porta e ia para a

cama.

Na estranha existência flutuante daqueles dias e noites, fui certa vez ao

Teatro Kabuki a convite do ator principal. A troupe tinha voltado de uma

temporada de êxito em Nova York, porém eu não chegara a vê-los lá.

Parecia-me de algum modo incongruente a presença do Kabuki na mais

moderna das cidades, e num ou noutro momento, possivelmente, eu estaria

de novo em Tóquio. A peça, naquela noite, era a mesma que haviam

apresentado em Nova York — A Cobra Branca. Eu conhecia bem a história,

pois é uma antiga narrativa chinesa. A Cobra Branca é uma mulher que

assume a forma de serpente para certos fins próprios.

A noite estava clara e as ruas de Tóquio achavam-se mais cheias que de

costume. Tomei um táxi e chegamos à entrada do teatro, vasto saguão

coberto de pinturas, cheio de coisas em exibição e apinhado de gente.

Alguém estava à minha espera. O ator declarara que não começaria o show

enquanto eu não chegasse e fôssemos fotografados. Fui conduzida aos

bastidores, onde ele se encontrava, travestido de mulher — a Cobra Branca.

Sua caracterização era perfeita, sinistra e graciosa. Vestia um quimono

branco muito justo, sem qualquer traço de cor. A cabeleira era branca e o

rosto, pescoço e mãos haviam sido pintados da alvura da neve. Até os lábios

eram brancos, embora delineados em vermelho na margem interna. Os olhos

eram olhos de serpente, negros e brilhantes, dardejando de um lado para o

outro. Ao ver-me, estendeu a mão e eu a segurei, sentindo-a fria e lisa, na

minha palma. Quis largá-la porque estava fria e lisa como pele de cobra, mas

ela agarrou-se à minha, e assim, mão na mão, fomos fotografados. Ele falou

alguns minutos, quase sem mover os lábios rígidos, e então o gongo soou

marcando a hora de entrar em cena.

Ocupei meu lugar na platéia e ali passei algumas horas de prazer puro. O

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palco era enorme, maior do que todos que já vi, e o espetáculo soberbo. Em

meio a massas de cor e esplendor, a Cobra Branca se movia com sinuosa

serenidade, ao mesmo tempo terrífica e simbólica, e nunca vi a peça

representada mais poderosa e belamente. Em minha opinião, não há arte no

mundo que ultrapasse o Kabuki em poder imaginativo. Mas talvez seja

porque as histórias dessas peças foram parte de minha infância que eu

tornava a viver agora. De qualquer modo, a platéia japonesa estava absorta

como só pode estar neste teatro. Terminada a peça, saímos num silêncio de

sonho.

O imenso palco, o enorme elenco, o esplendor dos trajes e a

extraordinária iluminação, lembraram-me, por contraste, o confinado e

estreito palco da Broadway. Ano a ano o teatro foi sendo comprimido e

diminuído simplesmente em virtude do custo de montagem de uma peça.

Uma grande arte está sendo estrangulada pelo artesãos e mecânicos

sindicalizados. Autores, diretores e atores ofereceram reduzir seus

rendimentos, mas não houve a mesma disposição por parte dos operários

sindicalizados. Demorei-me, depois da peça, no teatro Kabuki, naquela

noite, e conversei sobre o assunto com amigos japoneses, ante uma xícara de

chá. Eles haviam visitado Nova York e sustentavam que o teatro japonês

nunca poderia sofrer semelhante desastre.

— Nós amamos demais a arte, disseram eles. — Compreendemos os

benefícios espirituais e emocionais da arte. Até os nossos operários

compreendem isso e jamais destruiriam uma parte tão importante de nossa

vida apenas por cobiça pessoal.

Espero que tenham razão.

Passava muito da meia-noite quando cheguei aos aposentos do hotel. Já

pronta para deitar-me, fui até à janela, como é meu costume, antes de dormir,

seja qual for a parte do mundo em que esteja, e olhei a cidade quieta. Uma

Lua velha e torta pendia do céu e sua luz pálida brilhava sobre os tetos.

Nesse momento, senti de novo o profundo estremecimento interno de um

terremoto. Começou como um tremor, depois cresceu num movimento

ondulante. Um quadro caiu, livros escorregaram da escrivaninha, um vaso de

flores espatifou-se no chão. Agarrei-me ao peitoril da janela e senti o

coração bater-me nas costelas. Iria ser perigoso? Não... a terra aquietou-se de

novo. Somente a Lua continuava pendendo lá em cima, imutável e fixa.

Esperei mais alguns minutos, depois coloquei os livros no lugar e enchi o

vaso com água, para as flores.

Custei muito a adormecer. O tremor de terra havia, de algum modo,

abalado as raízes de meu mundo temporário. Reconheço a minha

necessidade de raízes. Suponho que é o resultado de minha infância na

China. Por mais que eu amasse aquele país, e devo sempre amá-lo muito,

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tinha sempre consciência, ao mesmo tempo, do tumulto em que vivíamos, da

possibilidade de que, a qualquer momento, as iras e insatisfações existentes

havia séculos contra os povos ocidentais poderiam inflamar-se em crises nas

quais nós, inocentes que éramos individualmente, perdêssemos nossas vidas,

como de fato quase as perdemos e por mais de uma vez. Possivelmente essa

lembrança infantil de sempre presente incerteza, sobre a qual eu não tinha

mais controle que uma folha na tempestade, sempre me perseguira — pelo

menos até ele aparecer. Agora que ele se fora, a velha consciência

subterrânea do perigo tornava a voltar.

Ele não se ressentia de tais sombras negras. Resolutamente jovial,

naturalmente alegre, nunca suspeitara nem esperara a catástrofe. Ao ser

compelido pelo fato, tinha o estranho hábito de decidir quando o enfrentaria.

O método era simples mas absoluto. Relacionava todas as piores

possibilidades e as escrevia em sua letra clara e firme. Então apanhava na

escrivaninha o grande relógio de ouro de seu pai e decidia o dia e a hora em

que atacaria o problema total. Era sempre o último momento possível. Até

chegar esse momento, comportava-se com o seu encanto usual. Sempre

encontrou a solução, ou pelo menos uma saída, e esta nunca era por qualquer

dos trinta e seis caminhos chineses. Ele jamais correu.

Acabei por depender muito do seu talento para tratar com o improvável,

para solver o insolúvel e conseguir o impossível — e isto sempre sem a

ajuda de amigos. Tinha amigos incontáveis, de alta e baixa posição, alguns

entre os homens mais ricos do mundo, outros pobres. Os ricos não o

ajudaram nas duas crises financeiras de sua vida. Venceu suas crises sozinho

e triunfantemente. Os pobres pediam-lhe dinheiro emprestado, sem sentirem

vergonha. Para indignação minha, distribuía de igual modo a ricos e pobres,

mantendo uma sorridente indiferença.

— Não têm intenção de me fazer mal, dizia ele.

Odiei o terremoto. Despertara-me velhos temores e os velhos temores

recordaram-me seu inabalável bom humor, seu alegre pessimismo, seus

lampejos de impaciência, seu afetuoso cinismo para com a humanidade,

acima de tudo sua jovial aceitação da vida como a encontrava, nada disso

existia mais. A velha incerteza estava de novo comigo, e para sempre.

O mais moderno teatro, em contraste com o Kabuki, foi para mim um

choque violento. Aconteceu da seguinte maneira. Procuramos um dia o

gerente de produção, com uma lista de nossos personagens experimentais.

Entramos em seu gabinete, precedidos de uma bonita moça, e o

encontramos, naquela manhã, com ar de homem de negócios revestido de

dignidade. O homem mundano e jovial havia desaparecido totalmente.

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Demorou-se durante o tempo adequado para mostrar quão ocupado se

encontrava e talvez quão importante era — ficamos sabendo que estava

ocupado e era importante e nos sentamos para esperar. Chegou o chá mas o

gerente de produção ainda estava ocupado. Reuniu-se a nós, finalmente, e

lhe entregamos nossa lista de atores. Indicou imediatamente dois nomes

duvidosos. Parecia que não sabia falar absolutamente inglês, naquela manhã.

A bonita intérprete disse que ele estava apenas sugerindo, não dirigindo —

isto com um olhar amargo ao americano — mas deveríamos fazer uma

escolha melhor dos dois homens principais. Concordamos prontamente mas

lhe recordamos que o homem que mais queríamos não nos fora liberado pela

sua firma. Ouvindo isso, levantou-se, deu alguns passos, cocou a cabeça,

grunhiu alto várias vezes e falou em três telefones ao mesmo tempo. Nada

aconteceu além de não... não... não.... dos três interlocutores. Ele prendeu

uma moça bonita a um quarto telefone, sentou-se atrás de seu bureau, torceu

os cabelos com ambas as mãos e tornou a grunhir. Bateu então na cabeça,

com os punhos cerrados, e voltou-se para nós, radiante. Tivera uma idéia. A

exibição final dos cantores e músicos japoneses de rock-and-roll estava se

realizando naquele mesmo instante em seu próprio teatro de rock-and-roll.

Ele nos acompanharia até lá, poderíamos ver os melhores dançarinos de

rock-and-roll e poderíamos então fazer a nossa escolha. Ordenaria a todos os

escolhidos por nós que fossem nossos atores. Eles o ouviriam.

— Sou um grande produtor, disse em voz alta, e agora em inglês.

Concordamos alacremente e ele se atirou para a frente, um behemoth*

porém cordial, e nós o seguimos, sendo empacotados em automóveis e

entregues no teatro. Era um lugar enorme e quando fui conduzida à poltrona

de um camarote, o último e único assento vago no vasto teatro, reservado

naturalmente para o próprio gerente de produção, fiquei atordoada com o

que vi. Ali estavam reunidos todos os adolescentes do Japão, ou assim

parecia; certamente milhares e milhares deles. * Um animal, provavelmente o hipopótamo, descrito em Jó, XL. 15-24; daí, um animal

grande e forte (N. do T.).

Sentei-me e me pus a olhar o palco e a platéia, simultaneamente. Era, de

fato, um Japão novo para mim, rock-and-roll, rock-and-roll, moças

dançarinas e rapazes cantores, canções americanas, canções ocidentais em

inglês, e apenas umas poucas canções japonesas. As moças gritavam

exatamente como fazem em meu próprio país, e pareciam igualmente tolas.

Que aflição é essa, dos jovens, propagando-se de nação a nação? Milhares e

milhares de jovens japoneses — oh, muito jovens — os executantes têm

menos de vinte anos ou pouco mais, e as mocinhas em saia e blusa saíam

correndo da platéia para pendurarem coroas de flores de papel e fitas de

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papel em seus rapazes favoritos. Só havia uma cantora, bonita moça de

dezoito anos, com uma excelente voz.

— Que pensam os pais? perguntei ao gerente de produção.

— Ficam desgostosos, tornou ele, mas que podem fazer?

De fato — que podem eles fazer, aqui ou em qualquer outro lugar?

Nosso objetivo, porém, era encontrar atores. Depois do grande final,

descemos a uma sala pequena e quente e entrevistamos três ou quatro

rapazes que nos pareceram com possibilidades, observados no palco, através

de binóculos de ópera. Estávamos esperançosos, pois cantavam tão bem em

inglês que achamos que poderiam falar de igual maneira. Mas não era esse o

caso. A única frase que pronunciavam bem era a mesma.

— Não sei falar inglês.

E cada um deles havia estudado seis anos de inglês na escola.

Encontramos, então, uma brilhante exceção — um rapaz de fisionomia

gentil, conhecido como o Eddie Fisher do Japão. Falava ótimo inglês. A

explicação consistia em que sua mãe tinha sangue inglês e ele aprendera a

falar em casa. Pedimos-lhe que nos procurasse na manhã seguinte, para o

ouvirmos.

Enquanto se desenrolavam esses fatos, eu observava uma transformação

no gerente de produção. Estava amaciando. Viu o nosso problema dos "seis

anos de inglês" e ficou preocupado. Convidou-nos a jantar com ele e

perguntou-nos se queríamos ir ao lugar onde sempre ia, ou se tínhamos

alguma preferência. Aceitamos, gratamente surpreendidos, dizendo que o

acompanharíamos ao seu lugar favorito. Entramos nos automóveis, abrindo

caminho de novo através de oceanos de jovens à espera que seus cantores

preferidos saíssem pela porta do palco, e não tardamos a parar diante de um

restaurante que não se assemelhava a nenhum dos que eu conhecera. Não

era, obviamente, lugar para turistas, nem talvez para senhoras. Mas eu não

me intimidei. O gerente de produção, evidentemente, reinava aqui como em

toda parte. Era um lugar fascinante, pequeno mas limpo, dessa limpeza que

só os japoneses conhecem, as rudes mesas de madeira e os balcões, feitos de

tábuas de seis polegadas de espessura, não pintadas mas esfregadas até

ficarem da alvura da neve. O gerente de produção deu ordens à maneira de

quem está habituado a ser sempre obedecido, e o foi. Juntaram os extremos

de duas tábuas e ele nos indicou nossos lugares. O meu ficava em frente ao

dele e assim tive plena oportunidade de observar esse homem extraordinário.

Pois agora aparecia um homem novo. Anunciou, mesmo, que não era o

mesmo homem que tínhamos visto até então e começou a explicar a sua

pessoa e a sua vida. Não era casado, disse-nos, e insistiu em afirmar que era

o homem mais solitário de Tóquio. Morava com sua mãe, maravilhosa

mulher a quem adorava, mas ele já tinha cinqüenta anos de idade. Não os

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aparentava. Sua aparência era a de uns castigados trinta e nove. Entrementes,

continuou a falar-nos de sua desgraçada vida. Passava o dia inteiro andando

de uma conferência para outra, preparando o filme semanal que estava

obrigado a produzir. Acordava cedo todas as manhãs, apesar de dormir tarde,

e lia durante a fria madrugada.

— Que lê o senhor? perguntei com interesse.

Talvez lesse poesia ou Zen Budismo. Respondeu por entre os dentes

cerrados:

— Só leio argumentos de cinema... centenas... centenas... centenas que

jorram em cima de mim todos os dias... Fico sempre deprimido, depois.

Portanto venho para cá, todas as noites, beber.

Quanto mais bebia, melhor era o inglês que falava. Nunca era perfeito,

mas expressivo e... explosivo. Não parava também de falar japonês.

Mantinha, na verdade, um extraordinário monólogo bilíngüe com os

japoneses que nos cercavam. Pilheriava e quando viu que eu não estava

bebendo sakè ordenou que enchessem de água um jarro de vinho e anunciou

aos brados que eu estava bebendo ultrajantemente, e estourou em

gargalhadas com o seu próprio espírito. Subitamente se pôs a derramar

conselhos sobre o diretor americano. Um diretor, disse ele, não pode ser um

artista puro... puro não, puro não! Devia ter o mal dentro de si — por fora

amável, por dentro mau, mau, pois de outro modo as pessoas não teriam

medo dele. O americano ouvia sem responder, sorrindo. De repente o

gerente de produção bateu na própria cabeça com os punhos cerrados. Tivera

de novo uma idéia, uma idéia gloriosa!

— Bebendo, sou uma fonte de idéias, exclamou, fascinado consigo

mesmo.

Sua idéia relacionava-se com o genro de minha amiga, um jovem ator

promissor. A esposa dele era proficiente em inglês e podia ser útil a todos.

Se os incluíssemos em nosso elenco, todos os ressentimentos desapareceriam

e todos os corações ficariam aliviados. Recordou-nos que tivera de sofrer

muito quando fora obrigado a dizer ao grande diretor japonês que ele não

trabalharia no filme conosco. Tivera de assumir plena responsabilidade por

um triste equívoco e curvar-se ao nível mais baixo — e isto doía. Mas

poderia perdoar-nos se...

Respondemos que gostaríamos, naturalmente, de ver os dois jovens, mas

que devíamos considerar o filme antes dos sentimentos. Mas ele já estava ao

telefone e, depois de uma explosão em japonês, voltou para junto de nós,

todo alegria e satisfação.

— Agora, exclamou, devemos ser todos felizes. Bar ou casa de geishas?

Pedimos que decidisse por nós.

— Bar, naturalmente, declarou. — Geisha é muito antiquado. No bar nos

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descontraímos. Bar de alta classe. Vou lá todas as noites.

Tomamos de novo táxis e disparamos através das ruas congestionadas.

Os choferes de táxi japoneses são descritos em agitado detalhe por todos os

turistas americanos e nada necessito acrescentar a essas descrições exceto

para confirmar que tudo quanto dizem é verdade. São zelosamente bondosos,

emocionalmente interessados em cada passageiro e inteiramente descuidados

quanto à vida, membros, ou propriedades de quem quer que seja, inclusive

de si mesmos.

Tive a impressão, ao entrarmos, de que se tratava de um certo número de

pequenas salas confortáveis agrupadas ao redor de um bar. O gerente de

produção começou a se descontrair imediatamente, afrouxando o cinto e

tirando a gravata. O bar era pequeno e apinhado de homens de negócios e

moças bonitas, das quais havia muitas. Fui apresentada a uma esbelta e

elegante mulher ainda jovem, que o gerente de produção declarou ser a

melhor madame de Tóquio. Ela parecia competente e modesta e, ao ouvir

meu nome, caiu num estado de emoção, declarando que havia lido todos os

meus livros. Eu era seu ídolo, et cetera. Fiquei comovida mas ligeiramente

embaraçada. Apresentou-me suas moças, depois que nos sentamos, muito

apertados, num banco circular junto do próprio bar; essas moças sentaram-se

perto de mim, uma a uma, e através de uma delas, que falava inglês,

familiarizei-me um tanto com suas vidas. Quase todas eram casadas e tinham

filhos. Não, não gostavam do trabalho no bar, disseram, mas seus maridos

não tinham bons empregos, ou estavam desempregados, e aquele era um

trabalho fácil. Detectei, ou imaginei ver, uma certa tristeza paciente em seus

olhos e me lembrei de uma visita que fiz certa vez em Paris, há muitos anos,

ao Folies Bergère. Então, como agora, eu era humanamente curiosa e, depois

do show, deixei minha escolta e fui aos bastidores conhecer as coristas. Elas

também não eram moças. Eram mulheres, casadas em sua maioria, com

problemas domésticos de maridos desertores, maridos doentes, pobreza,

enfermidade — e a maior parte delas não era jovem.

— Por que esse trabalho? perguntei.

— À noite as crianças estão dormindo e em segurança.

— É melhor do que deixá-las sozinhas o dia inteiro, e assim por diante, o

mesmo em Paris como em Tóquio...

Nossa conversa foi agora interrompida pelo gerente de produção.

— Minha melhor amiga, anunciou ele, apresentando-nos uma moça

pequenina.

Seu rosto era um camafeu de tristeza. Eu já a havia notado. Estivera

sentada ao lado de um vaidoso homem de negócios, servindo-lhe bebida e

petiscos. Em certo momento, com o meu maldito olho observador de

novelista, vi-o passar o braço ao redor dela, com demasiada força, e a moça

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se encolheu com uma expressão no olhar que, por piedade, não descreverei.

Sentou-se ao meu lado, agora, sem falar, apenas olhando-me com tão

profunda serenidade que senti a comunicação estabelecer-se entre nós. Disto,

não falarei.

A noite se esgotou. Levantei-me para partir. A madame, a quem as

moças chamam "mama", organizou uma fila para que me fizessem a

reverência de despedida. Ela própria acompanhou-me até o automóvel,

inclinando-se na janela para falar-me, num inglês bastante bom. Tinha

educação e não era mulher superficial ou tola. Olhava-me com afeto e calor,

apertou-me as mãos, deu-me um grande buquê e foi com relutância que me

deixou partir.

Sozinha no automóvel, meditei nesse fenômeno da vida japonesa, a vida

noturna de homens separados de suas famílias. É uma força destrutiva da

vida familiar, um resquício de feudalismo. A mulher japonesa moderna

odeia bares e as casas de geishas, que afastam seus maridos do lar. As

japonesas antiquadas aceitavam-nas como aceitavam tudo quanto os homens

faziam, porém as japonesas modernas anseiam por um autêntico

companheirismo com os homens que amam. Mas os homens continuam a se

afastar de casa, "e eu aprendi", como disse um dia, com fria calma, minha

pequena secretária japonesa, "a não importuná-lo mais. Aprendi, até, a como

recebê-lo com um sorriso feliz às duas horas da madrugada".

Sim, ela podia fazê-lo. As mulheres japonesas sempre foram mais fortes

do que os homens, pois, como as chinesas, jamais tiveram favores. Ela nunca

ouvira falar de cavalaria ou de cavaleiros em armaduras douradas. Nascera

fêmea — isto é, uma pessoa inferior, uma carregadora de pesos, uma escrava

obediente. Em séculos de tal existência, enquanto se obrigava ao

devotamento e ao dever, ela acumulava uma força interior que não pode ser

ultrapassada. Dava nascimento ao homem, zelava-o e cuidava dele,

abrigava-o e o defendia, sem fazer perguntas. Por que perguntaria ela, se não

havia ninguém para responder? Era traída apenas por uma pessoa, uma outra

espécie de mulher, a mulher que não se casava, a mulher que não era

dobrada pelas preocupações domésticas e as crianças, a mulher instruída,

treinada e enfeitada para divertir os homens. Era traída pela geisha. Tudo

quanto um homem não podia encontrar em sua esposa sem instrução e gasta

pelo trabalho, mas da qual necessitava para seu conforto e bem-estar caseiro,

ele procurava e encontrava na geisha, cujo único dever consistia em agradá-

lo, atrair seu olhar, seduzi-lo com música, conquistar-lhe o espírito com a

sua instrução. As melhores geishas são mulheres inteligentes e brilhantes.

Têm a sua correspondente na Hetera grega, contra a qual as mulheres gregas

também gemiam suas acusações.

Perguntei, um dia, a uma bela geisha:

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— Não se preocupa com a esposa desse homem que você capturou?

Ela ergueu os ombros.

— São os homens que criam a procura. Nós somos apenas a mercadoria.

Resposta cínica. A sua equivalente moderna, a moça de bar, é-lhe

inferior sob todos os aspectos. Uma geisha bem treinada pode ser, à sua

maneira, uma mulher de distinção e graça. Qualquer mulher, parece, pode

ser moça de bar. Se seu rosto é mais ou menos bonito, tem sorte, mas se não

é muito bonito, tem outras mercadorias a vender. Sua influência sobre os

homens ainda é menos afortunada que a da geisha. É menos graciosa, menos

distinta, sob todos os aspectos. Às vezes não é mais do que uma moleca de

rua e quase sempre é uma prostituta. As geishas podem ser prostitutas, mas

não são obrigadas a sê-lo. Podem manter seu domínio sobre os homens por

outras maneiras, se assim o desejam. A moça de bar tem poucos recursos

além do sexo, e atualmente o sexo é mais cru do que nunca, no Japão. O

naturalismo sempre existiu, mas o sexo, per se, é usado pelas mulheres,

agora, como isca e como arma, e pelos homens como uma fuga, comparável

ao alcoolismo. Fuga de quê? Do desespero e de uma sensação de

inferioridade pessoal, suponho eu. De que mais procura o macho humano

escapar?

Mas pondo de lado as geishas e as moças de bar, algo aconteceu às

jovens mulheres japonesas, e eu imagino que esse algo são os homens

americanos. Muitas mulheres japonesas foram cortejadas por americanos e

os dois, homem e mulher, surpreenderam-se ao encontrar o que vinham

procurando há muito tempo — a mulher, um homem que aprecia a gentileza,

a deferência e uma atitude naturalista em relação ao sexo; o homem, uma

mulher que aprendeu a respeitá-lo, a servi-lo, a crer que seu interesse sexual

por ela é todo o amor que deve esperar de qualquer homem. Embora eu me

lembre de um certo jovem americano que se queixava de que a japonesa era

uma esposa maravilhosa ao chegar pela primeira vez à América, mas, dois

anos depois, tendo aprendido os novos costumes femininos, não era melhor

do que uma americana!

Seja como for, as jovens, no Japão, não aprenderam os costumes

americanos. Libertaram-se, isto é tudo. Movimentam-se por toda parte com

delicioso desembaraço e serenidade, ao mesmo tempo ousada e feminina,

atrevida e tímida, uma encantadora combinação de aparente inocência e

verdadeira sofisticação, a qual, se não permanente, é muito atraente enquanto

dura. E talvez, ao ir viver na América, ela descubra que o americano é em

geral encantador mas um perpétuo menino, e o que lhe agradava e

surpreendia no começo torna-se insípido ao verificar que o menino não

cresce nunca. Conheço um certo americano que trouxe uma bela esposa

japonesa para casa e a apresentou com entusiasmo aos seus acolhedores pais.

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Um ano mais tarde, a mesma jovem mulher anunciou que desejava

divorciar-se porque se apaixonara por outro homem. O homem, como se

revelou, era o pai dele, que também se havia apaixonado por ela. O homem

mais velho queria uma esposa que o adorasse, e a japonesa fora treinada para

adorar, e a jovem mulher queria, como disse, "um homem mais sábio".

Talvez não haja regras para esse eterno jogo entre homem e mulher. O

homem japonês, tanto quanto posso ver, não mudou muito. Fico a imaginar

se gostará de sua mulher quando descobrir o que ela realmente é. Até agora,

não o sabe.

Naquela noite, quando fui para o meu hotel, cheia de tais pensamentos,

estava chovendo, as ruas achavam-se inundadas e a chuva caindo

torrencialmente encerrou-me numa caixa de som. Sou claustrófoba e fugi

pelos corredores silenciosos da vasta parte nova do hotel, onde ficavam

meus aposentos, para o velho edifício desenhado por Frank Lloyd Wright.

Fora uma de suas primeiras manifestações e decerto em nada se assemelha

ao seu trabalho posterior, o Museu Guggenheim, em Nova York, ou o Dallas

Little Theater. Tampouco se assemelha a nenhum outro, no Japão. É um

curioso monte de cantos e beirais enxadrezados e superdecoração. Sua glória

consiste em que atravessou, firme, todos os terremotos e isto porque o

arquiteto descobrira que Tóquio está construída sobre um trêmulo mar de

lama. Nesse mar mergulhou ele milhares de troncos de pinheiros do Oregon

e sobre essa base construiu a sua monstruosidade. O prédio realmente flutua

e pode, por conseguinte, ajustar-se a qualquer coisa.

A flutuação conduz ao ajustamento? Refleti sobre a questão enquanto

procurava um dos muitos cantos no velho e escuro vestíbulo. Se assim era,

então eu devia estar me ajustando. Parecia-me que eu não estava vivendo,

nem mesmo existindo, apenas flutuando sobre a superfície do tempo.

Levantar-me pela manhã e trabalhar, caminhar sozinha à noite, dormir

rapidamente e acordar de madrugada, não pensar no passado ou no futuro,

mas apenas no dia de hoje, nesta noite, meditar sobre homens e mulheres,

recordava-me quão rara fora a minha experiência matrimonial. Não sou

mulher fácil de casar, ou assim o imagino. Sou dividida no fundo do meu

ser, tendo uma parte de mulher, a outra parte de artista que nenhuma relação

tem com mulher. Como artista sou capaz de crueldade, pois os artistas são e

devem ser implacáveis.

— Pode suportar ver-se retratado numa novela? perguntei-lhe certa vez.

— Não como você é, naturalmente — sempre crio meus próprios

personagens, mas roubo tudo quanto necessito — a maneira pela qual pediu

que me casasse com você, por exemplo, a qual estou certa de que nunca foi

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usada antes por outro homem. Posso precisar dela para outros homens e

mulheres.

Ele sorriu. Tinha um sorriso maravilhoso, que começava em seus

profundos olhos azuis — olhos desperdiçados num homem, pois eram pura

violeta, com longos cílios negros, mas eu gostava deles e talvez por isso não

fossem desperdiçados.

— Leve-a, respondeu. — É sua de qualquer maneira. Leve tudo quanto

tenho para dar...

Seu atributo único era compreender um artista. Duvido que

compreendesse as mulheres ou se preocupasse em compreendê-las. Tinha

uma baixa opinião das mulheres em geral. Não desgostava delas, mas sua

atitude era impessoal e um tanto condescendente. Quando me queixava de

que era injusto, retrucava' tranqüilamente:

— Não menosprezo as mulheres, absolutamente. Pelo contrário, acho

que podem ser muito mais do que são. Elas se avaliam por muito pouco

quando se contentam em ser cozinheiras, lavadeiras e amas-secas, se podem

ser qualquer coisa que desejem ser e fazerem o que lhes aprouver. Ninguém

as impede, a não ser elas próprias.

Desde que ele mesmo tinha uma atitude de cavalheiro inglês com relação

aos problemas domésticos — era inglês por ambos os lados e sua mãe

nascera na Inglaterra — eu sentia que essas observações estavam

impregnadas de injustiça, mas não sou o tipo que sustenta uma discussão e

certamente ele não era puritano, no que se refere a mulheres. Começou cedo

sua vida, graduando-se em Harvard com honras, quando contava apenas

vinte anos, e casou-se imediatamente. As mulheres achavam-no atraente, e

ele sabia disso, com olhos azuis, cabelos negros e pele morena. Suas

maneiras eram encantadoras, às vezes enganosas quando estava falando com

uma mulher. Contudo, tinha seu próprio e invencível código. Não chamaria,

por exemplo, pelo primeiro nome uma mulher que trabalhasse para ele, nem

a convidaria para almoçar, ou para marcar um encontro fora das horas do

expediente. Sentia que qualquer exigência de natureza pessoal feita a uma

empregada era uso desleal do poder do patrão. Lembro-me de que teve certa

vez uma secretária que era desusadamente jovem e bonita. Quando algum

amigo ou visitante a negócios fazia a esse respeito observações

impertinentes e invejosas, ele se mostrava frio como só um inglês pode

mostrar-se.

— Miss Kirbe é uma secretária eficiente, do contrário eu não a

empregaria, era a sua invariável resposta.

O resultado de semelhante atitude era, naturalmente, a total devoção de

suas secretárias. Mesmo hoje, que Miss Kirbe está casada e tem filhos

crescidos, ela e outras como ela dizem-me em carinhosa recordação:

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— Era tão divertido trabalhar para ele... e podia-se ter confiança. Nunca

insinuava propostas. A gente podia agir com inteira naturalidade.

Humilde tributo, mas quão significativo! E no entanto, às vezes, podia

fazer-me furiosamente feliz. Gostava de dizer, por exemplo, que eu era

diferente de qualquer outra mulher que conhecera porque tinha Um cérebro

de homem num corpo de mulher. Eu explodia em imprecações,

invariavelmente, diante dessa noção: Por que dizer de uma mulher,

exclamava eu, que tinha cérebro de homem só porque era dotada de uma boa

mente? Só aos homens é que a Natureza concedera o supremo dom? Havia

alguma lei de hereditariedade que negasse cérebros às mulheres? Ele ria,

simulava procurar um abrigo, e depois dizia gravemente que eu tinha razão.

— Peço desculpas, concluía com os olhos cintilando, mas naturalmente

nunca se desculpava por aquilo em que acreditava.

Para mim, mais precioso que diamantes, era o fato de que apreciava meu

espírito. Gostava da conversação profunda sobre temas abstrusos. Apreciava

as réplicas argutas. E muito acima dos diamantes e da própria vida situava-se

o fato de que compreendia que eu tinha de ficar só quando estava

escrevendo. Nunca perguntava o que estava eu escrevendo ou a respeito de

que era o livro. Quando uma novela se achava concluída, datilografada e

pronta para ser entregue ao editor, eu própria a levava a ele e a apresentava,

à maneira Chinesa, com ambas as mãos. Seu estúdio ficava ao lado do meu,

mas separado por duas portas. O seu ficava no prédio velho e o curto

corredor fora outrora o quarto de defumar, onde os camponeses, durante uma

centena de anos, defumaram presunto e toicinho. As duas portas ficavam

sempre fechadas quando eu estava escrevendo e ele nunca as abria, mas

levantava-se quando eu entrava com o trabalho terminado e o recebia

gravemente.

— Este é um grande dia, costumava sempre dizer.

Era sempre um grande dia. Punha tudo de lado e sentava-se para a tarefa

de que mais gostava, dizia-me ele, acima de todas — a leitura de um original

escrito por mim. Revisava cuidadosamente mas parcamente. Não me lembro

de que tivesse feito jamais uma correção que envolvesse algo mais sério do

que uma preposição mal colocada ou uma confusão de tempo. A língua

chinesa tem poucas preposições e nunca aprendi totalmente a manejar essas

refratárias e precisas palavrinhas inglesas. Quando à confusão de tempo, era

algo de que eu sempre tinha de ser salva. Não tenho noção do tempo. Não

quero dizer que seja impontual. Pelo contrário, aprendi bem cedo a ser

exageradamente pontual — digo exageradamente porque sou pontual demais

e perco meu tempo esperando por outras pessoas. Meus pais eram duas

criaturas separadamente ocupadas, que viviam de acordo com programas

separados aos quais eu, como criança, tinha de me ajustar. Vivo segundo um

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programa, também, como uma pessoa separadamente ocupada, e o mesmo

fazia ele. Não — quero dizer que eu não dava atenção ao ano, ao mês ou ao

dia. Não me lembro de aniversários ou de qualquer data importante que

todos acham que as mulheres não esquecem. Uma secretária tinha de

recordar-me tudo isso e avisar-me com antecedência. Ele, por sua vez, tinha

o desconcertante hábito de lembrar-se perfeitamente do tempo. Em qualquer

manhã à mesa do café, ou a qualquer momento do dia, podia consultar o

relógio e perguntar:

— Lembra-se do que estávamos fazendo há dez... vinte (etc.) anos, neste

momento?

A princípio, querendo ser perfeita, eu tentava lembrar. Mais tarde,

resignei-me. Passei a afirmar ousadamente que não lembrava. Então ele me

dizia:

— Foi a primeira vez que a beijei... ou lhe propus casamento... ou você

disse que não me queria... ou a peguei de surpresa em Yokohama, etc, etc."

A caçada de fato fora longa. Havíamos passado da primeira juventude

quando nos encontramos pela primeira vez, cada qual resignado,

pensávamos nós, ao seu casamento insatisfatório, e cada qual conhecido em

seu próprio ramo. Eu o recusara firmemente em Nova York, Estocolmo,

Londres, Paris e Veneza, e depois navegara, pela rota da índia, para casa, em

Nanking, China.

Seis meses depois cabografou-me para que o fosse encontrar em Xangai

a fim de ouvir o "não" de novo e desta vez para sempre. Depois disso fui

sozinha a Pequim para alguns meses de pesquisa necessária à conclusão de

minha tradução de Shui Hu Chuan, ou Todos os Homens São Irmãos, e

estava lá havia menos de uma semana quando ele apareceu inesperadamente

em meio a uma tempestade de pó proveniente do deserto de Gobi.

Separamo-nos de novo, eternamente, indo ele para a Mandchúria e eu de

novo para casa, a fim de preparar as malas para uma visita de verão aos

Estados Unidos, com o objetivo de ver se tudo estava bem com a minha filha

retardada. Levei comigo minha filha menor e minha secretária, achando-me

com relação a ele, num estado de espírito resignado. Havia tomado, pensava

eu, uma decisão prudente. Não queria tumulto em minha vida.

Era uma bela manhã de julho, lembro-me, e estávamos atracando no píer

de Yokohama. Eu resolvera não desembarcar, pois estivera várias vezes na

cidade. Em vez disso, ficaria trabalhando na tradução e a secretária levaria

minha filhinha ao parque. Mal me havia preparado para a minha solitária

tarefa quando ouvi a voz que era, agora, a que eu melhor conhecia em todo o

mundo.

— Apareci de novo... continuarei aparecendo, você sabe... em todas as

partes do mundo. Você não pode escapar de mim.

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Lá estava ele, magro, moreno, elegante, fumando seu velho cachimbo de

torga... A despeito disso, eu dizia "não" todos os dias a bordo do navio e

novamente em Vancouver e durante todo o inverno em Nova York. Mas a

primavera, naquela cidade mágica, foi a minha perdição e nos casamos a

onze de junho e vivemos felizes para sempre, juntos como homem e mulher,

separadamente em nosso trabalho profissional.

Ele era um grande editor — vi-o pegar manuscritos confusos e

transformá-los num todo unificado — mas teria sido um fino crítico. Julgaria

o escritor dizendo quão bem realizara o objetivo que estabelecera para si

mesmo, e não estontearia o leitor com irrelevantes observações de sua

cabeça. E era um gênio em sua especialidade de arrancar livros de escritores

que não sabiam que eram escritores. Um exemplo notável foi um curto

manuscrito que lhe chegou um dia de uma americana do Sião. Era, então,

editor e proprietário da revista Ásia. Lembro-me do artigo. Intitulava-se "O

Inglês do Rei", e o rei era o Rei do Sião. A autora fizera uma pequena e

excelente pesquisa sobre o inglês vernáculo do rei, tímido e delicioso. Mas

ele viu mais do que o pequeno e leve ensaio. Viu um personagem e um

homem e convidou a americana a escrever mais sobre aquele rei. Chegaram

alguns artigos e, afinal, graças à sua persuasão e encorajamento,- um

manuscrito em tamanho de livro. Pôs-se a trabalhar para criar um livro com

o material que tinha ali e pedindo o que faltava. O resultado foi um livro

fascinante, que intitulou Ana e o Rei de Sião, o qual se tornou mais tarde um

fabuloso musical na Broadway, da autoria de Rodgers e Hammerstein.

A lista é expressiva. Foi ele que trouxe aos americanos os grandes livros

de Jawaharlal Nehru, e, através de sua companhia editora, aos leitores de

todo o mundo. Foi ele quem discerniu no jovem Sukarno da Indonésia a

promessa de um futuro líder asiático e o encorajou a escrever seu primeiro

livro, tornando-se conhecido, assim, no Ocidente. Foi ele quem publicou o

primeiro livro de advertência contra o nazismo, nos Estados Unidos, uma

profecia tão adiantada à época, embora não à realidade, que encontrou

poucos leitores. E foi ele, também, que editou todos os melhores livros de

Lin Yutang e estabeleceu, pela primeira vez, sua reputação como escritor.

Possuía o dom da compreensão universal, um espírito eclético, um

julgamento sintetizador, vivificado pela fé no talento, onde quer que o

encontrasse.

Orgulhava-se de ser editor e considerava-o uma profissão nobre. Seu

impulso nunca era fazer dinheiro. Se um livro era suficientemente bom para

merecer publicação, ele o aceitava com entusiasmo, pouco importando que

concordasse ou não com o conteúdo. Suas próprias opiniões sempre se

situavam com firmeza do lado do liberal inteligente. Numa família

fortemente republicana, ele votava sempre com os democratas, com

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ocasionais variações em favor dos socialistas, como voto de protesto.

Editava, contudo, autores conservadores, que às vezes o eram no sentido

mais estreito. Acreditava que também eles tinham o direito de ser ouvidos e,

se apresentavam bem suas opiniões, dispensava aos seus livros o mesmo

cuidado editorial que dava a todos os outros. A escala de autores que ele

difundiu vai de Fritz Sternberg a James Burnham.

Um editor — acreditava ele — tinha o alto privilégio de descobrir o

talento e o dever de ajudá-lo a se desenvolver até produzir seus melhores

frutos, apresentando-o então ao mundo. Era um empresário de escritores e

livros, mas um homem de tão terna compreensão das necessidades,

delicadeza e timidez das pessoas de talento, que as guiava sem parecer fazê-

lo, extraindo-lhe idéias mediante perguntas engenhosas e honesto louvor e

apreciação. Das numerosas cartas que recebi depois de sua- morte, muitas

eram de escritores dizendo que, até ele ajudá-los a se compreenderem,

haviam sido incapazes de escrever.

Que direi quanto a mim? Foi ele quem viu algo em meu primeiro

livrinho, uma tentativa rejeitada por todos os outros editores até que ele

percebeu naquelas páginas a possibilidade de que o autor pudesse um dia

escrever um livro melhor. As opiniões de sua equipe estavam divididas a

respeito do livro e coube a ele, como presidente da companhia, desempatar

com seu voto. Votou a favor e foi por meio dessa estreita oportunidade que

minha vida começou.

Ai de mim, não é bom sonhar demasiado. O vestíbulo do velho Imperial

Hotel, em Tóquio, excetuando um porteiro sonolento, estava deserto. A

chuva parará e uma lua nova balançava acima das nuvens quando saí para

respirar o ar frio da noite. Lua nova? Estava em Tóquio havia três semanas.

Durante dois meses estivera sozinha.

A música sempre constituíra uma parte importante de minha vida, como

fundo e meio para o pensamento e o sentimento. Para o filme eu queria

música japonesa, não a tolice sintética que passa por oriental em nossas

tentativas americanas, mas uma criação original no Japão e por japonês.

Devia ser, ademais, japonês moderno, pois a transformação que se operou

em todos os aspectos da vida nipônica em coisa alguma é mais evidente do

que na música. A música é o barômetro — e o termômetro, nesse particular

— de toda cultura, a arte mais reveladora do temperamento de um povo, do

caráter e da reação à influência exterior. Alegrei-me, portanto, quando

Toshiro Miyazumi disse que gostaria de escrever a música para A Grande

Onda. Eu conhecia sua obra, mas nunca nos havíamos encontrado e foi um

prazer especial vê-lo, certa manhã, esperando por mim na sala de estar do

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hotel. Levantou-se, apresentou-se e, ao mesmo tempo, ofereceu-me um

presente — o disco de sua sinfonia, Nirvana.

— Sou o seu compositor, disse modestamente. Sentamo-nos e examinei

francamente sua fisionomia. Era um rosto encantador, forte e gentil, sereno,

poético e sem malícia. Um rosto inocente, diria eu, com diferença de que não

era um rosto infantil, embora ostentasse a franca expressão de uma criança.

Reconheci essa qualidade, pois só é encontrada em pessoas altamente

dotadas, sábias como serpentes e gentis como pombas, segundo diz o velho

livro.

— Sinto-me feliz, respondi-lhe.

Toshiro Miyazumi é denominado o Leonard Bernstein do Japão e

realmente se assemelha a Bernstein no brilho de seu talento. Mas, ao

contrário de Bernstein, dedica-se à composição de música. É verdade que já

regeu, mas prefere compor.

— Fale-me de si, por favor, disse eu.

Parecia que nada havia a dizer. Mordeu o lábio, tentou recordar.

— Nasceu em 1929, lembrei-lhe.

Um lampejo de gratidão iluminou seu rosto encantador e sereno.

— Ah, sim, nasci mas comecei minha vida aos seis anos de idade,

compondo e tocando piano.

— E depois? Refletiu e afinal falou:

— Ingressei na Universidade de Tóquio. Eu estava a ponto de perguntar:

— E no intervalo?

Mas decidi calar-me. Esperaria e o deixaria apresentar sua vida assim

como a via. Nada houve, portanto, entre os seis anos e a Universidade de

Tóquio.

Após meditar, continuou:

— Quando tinha vinte e um anos, recebi uma bolsa de um ano para o

Conservatório de Paris. Havia um homem, Tony Oben, que me ensinava.

Muito conservador, nada interessado no novo método de composição... Eu

era, portanto, mau aluno. Porque lá as técnicas eram formais, os ritmos um

tanto antiquados e a harmonia tradicional... A criação é diferente. A energia

é emoção. Não posso, porque uso o método dos doze tons. Pesquisei e fui

para os compositores austríacos — Arnold Schoenberg, Anton Webern, que

usam método novo para expressar a composição contemporânea.

— Mas você também usa temas clássicos, recordei-lhe. — Você é

versátil...

Aceitou a observação com um sorriso.

— É muito difícil sustentar a minha vida só com a música clássica,

embora eu a ame. Voltei ao Japão e durante vários anos compus diversas

espécies de música — orquestral, de câmara, e assim por diante, bem como

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para filmes musicais. Suponho que a música de rádio e televisão é o meu

trabalho, mas quero sempre ser um artista...

Houve uma longa pausa, abrangendo anos.

— Cinco anos depois voltei à Europa e freqüentei os festivais musicais

da Suécia, da Alemanha e de outros lugares, onde minha música era

executada.

— Como se sentiu ouvindo sua música executada através do mundo?

inquiri.

Lançou-me um olhar eloqüente, mas era demasiado modesto para falar.

— Voltei ao Japão e constituí um grupo de música contemporânea, tendo

ganho alguns prêmios. Isto é tudo.

Tudo é muita coisa para um jovem de trinta e um anos, mas

aparentemente sua história estava contada. Não se mostrava absolutamente

tímido, e permaneceu descontraído, esperando.

— E esse disco? perguntei, indicando o presente.

— Foi tocado em Tóquio, première no segundo dia de abril de 1958,

após quase um ano de trabalho.

— Interessa-se pela religião? O título sugere budismo.

— O sino do templo budista japonês, tornou ele. — É uma mistura típica

de sons. Gosto muito dele pois sou interessado em música concreta e

eletrônica, isto é, em criar estruturas musicais de energia sonora, como

sugere Edward Varese. Por outras palavras — o método de composição

consiste em dar vida musical à energia inerente ao próprio som. Assim,

introduzo timbres novos em minhas composições — por exemplo: tons

mesclados. Combinações de várias dezenas de tons puros tornaram-se

dominantes em minhas obras.

A face tranqüila ficara subitamente animada e bela.

— Sinto-me atraído pelas vozes dos sacerdotes budistas cantando sutras,

sem melodia, naturalmente, mas com a habitual entonação e ritmo, e quando

quaisquer sacerdotes tomam parte juntos, o grupo produz uma espécie de

ruído musical através da mistura de vozes de diferentes alturas. Acrescentei,

a uma orquestra completa, instrumentos de sopro de madeira e instrumentos

de sopro de metal, colocados em cantos diferentes da sala, para obter um

efeito direcional por meio do cruzamento de sons por cima das cabeças do

auditório...

Nenhum silêncio agora — as palavras jorravam dele numa torrente de

pensamento criador!

— O Nirvana, estado ideal do ser para o budista, é simbolizado pelo

repicar do sino. Assim, talvez eu seja religioso. Compus esta sinfonia com a

idéia de criar meu próprio Nirvana musical. Não é música religiosa, suponho

eu, no sentido mais puro da palavra. É uma espécie de cantata budista.

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Espero que goste.

Sorriu de súbito:

— Falo demais.

Quebrei o silêncio seguinte.

— Que fará depois do nosso filme?

— Vou a Nova York, escrever música para o Ballet da Cidade de Nova

York. Será executada na próxima estação.

— Inteiramente diferente de uma cantata budista?

— Gosto de variar, mas antes de ir a Nova York terminarei a música

para A Grande Onda. O filme é fora do comum, também, e completamente

diferente. Tenho a música na cabeça claramente, realmente romântica, não

do romantismo wagneriano, ao mesmo tempo forte e delicada, com a

filosofia oriental contemporânea. Como é que escreve assim? A emoção é

oriental.

Foi a minha vez de não saber o que dizer. De que modo pode dizer uma

escritora como escreve? Mas eu esquecera sua pergunta.

— Quero uma canção nela, disse eu. — Quero uma canção que seja

como o nascer do Sol, jovem, fresca e cheia de esperança. Os jovens de sua

terra começando de novo a vida em sua própria época, neste momento nunca

vivido antes. Quero esta canção.

Inclinou-se para mim, todo apelo e rogo:

— Se eu compuser a música, escreverá a letra?

— Não posso, respondi.

Nada mais havia a dizer. Apertamo-nos as mãos e ele partiu. E a canção

foi escrita por outra pessoa.

Parou no escritório no dia seguinte, ao meio-dia, e olhou para dentro.

Sempre estava acontecendo alguma coisa ali, e aquele momento não

constituiu exceção. Centenas de trajes estavam amontoados no chão e várias

pessoas — homens, rapazes e uma- ou duas moças — as estavam

manipulando com um corrido acompanhamento em japonês de várias alturas

de tom. Procuravam uma peça de vestuário pedida pelo modelo para diversas

partes do filme. O modelo era um microscópico ser humano, de idade vaga,

não jovem certamente. Tinha cerca de um metro e meio e eu ficaria

surpreendida se pesasse quarenta quilos. Era pele e osso, e se o esqueleto era

de criança o rosto fascinava. Enrugado, vivaz, cheio de graça e malícia, era a

face de um velho fauno. O topo da cabeça era calvo, mas circundado de

cabelos que saíam retos do crânio, como se o velho fauno estivesse sob os

efeitos de um choque elétrico. Estava, sem dúvida, carregado de alguma

espécie de eletricidade, pois dava ordens sem cessar, enquanto

experimentava uma roupa de pescador feita para um homem quatro vezes

maior que ele. Não obstante, era um bom modelo. Apertou as calças no

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peito, torceu o cinto, ajeitou o casaco japonês e tornou-se um pescador.

Todos riram e eu me sentei para observar.

Conhecia todos os personagens de A Grande Onda, como parecia, e

serviu de modelo para todos. Quando encarnava uma mulher, dava-nos as

costas. Eu reconhecia cada personagem, até mesmo a menina Setsu. Como

podia um velho posar de tal maneira que sugeria uma garota jovial, até

mesmo de costas, é algo que não posso explicar. Desejei, pela milionésima

vez, entender japonês, pois os presentes riam convulsivamente de tudo que o

velho fauno dizia. De quando em quando se mostrava insatisfeito e atirava

para longe um traje, ou rejeitava o que lhe ofereciam e se punha a remexer

entre a confusão de roupas amontoadas com toda a feroz intensidade de um

macaco procurando pulgas.

Nesse momento alguém teve uma inspiração.

— Ele é o que estamos procurando... um magnífico criado para o Velho

Cavalheiro. Será que fala inglês?

O velho fauno sorriu com todos os dentes, nenhum deles em bom estado,

e sacudiu a cabeça com referência ao inglês.

Aos outros replicou que pensaria no assunto e nos falaria amanhã. No dia

seguinte, o velho fauno, experimentando mais trajes e dançando sobre suas

pernas magras, iluminou-se quando entrei na sala. Uma torrente de palavras

japonesas jorrou dele, as quais, traduzidas, significavam que integraria o

elenco, mas apenas se lhe prometêssemos não cortar seus cabelos. Disse que

não trabalharia conosco se lhe cortássemos os cabelos.

Olhei o círculo de arame negro eletrificado cercando o crânio calvo e

ossudo.

— Diga-lhe, tornei, que eu nunca pensaria em cortar esses cabelos.

Prometo que não os cortaremos.

Todos nós olhamos gravemente aqueles valiosos cabelos.

— Ai! — exclamou o fauno jovial com um riso que atravessou a sala.

Súbito o sorriso desapareceu. Tagarelice japonesa jorrou de onde estivera o

sorriso.

A paciente intérprete explicou:

— Ele pergunta se tem de falar inglês. Se for assim, não pode.

— Terá de dizer apenas duas linhas e nós lhe ensinaremos todos os dias,

foi a nossa promessa.

Mais palavras japonesas e a intérprete informou:

— Diz ele que precisa de um bom professor. Tem de falar inglês com

perfeição.

— Terá um bom professor, prometemos.

Verificaríamos mais tarde que nenhuma aula conseguiria prevalecer

sobre a sua invencível pronúncia japonesa. Reduzimos suas linhas a duas

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palavras essenciais: yes e no. São as que diz no filme, impressivamente e

com orgulho. Esperara a vida inteira para tornar-se ator, dizia ele, mas o

mais perto que conseguira chegar fora trabalhar com os trajes. Nunca

esquecerei sua expressão beatífica quando soube que lhe daríamos o papel.

No que lhe dizia respeito, era um astro. Dirigiu-nos um largo sorriso e o

fauno se tornou novamente macaco, remexendo por entre as roupas, mas

agora procurava febrilmente seu próprio traje.

Naquela noite, pela primeira vez desde que ele partira, senti um alívio,

ligeiro embora, da pesada opressão de... como a denominarei? Choque,

desolação, solitude, seja qual for o seu componente, havia lançado sobre

mim um peso do qual não podia escapar. Não perambulei pelas ruas naquela

noite. Em vez disso decidi por uma massagem japonesa, jantar solitário em

meu quarto, uma comprida carta às crianças em casa e um livro. Este é um

programa bastante comum, mas eu ainda não o havia cumprido depois de ter

ficado só. Mas o riso o tinha possibilitado agora. Rio com facilidade, pois o

mundo está cheio de pessoas e incidentes engraçados, porém não havia rido

com freqüência nos últimos meses e nunca o fizera com o auto-esquecimento

que de algum modo o velho fauno me inspirara naquela tarde. Constitui

talento peculiar do artista penetrar no ser de outra pessoa e isto é

particularmente verdadeiro quanto ao novelista. Discutimos freqüentemente

o assunto, ele e eu, e sempre me perdoava quando, temporariamente, eu me

achava absorvida por outro que não ele. Esta é uma estranha absorção e não

sei como descrevê-la a não ser comparando-a ao foco de total interesse

essencial próprio do cientista teórico. Esse cientista também é, por

temperamento, um artista, e nenhum de nós pode escapar ao que é.

Mas eu não havia sido capaz de me deixar absorver por ninguém, desde

que ele morrera, até àquela tarde em que, durante uma hora, o velho hábito

retornou. Senti-me estimulada e quase esperançosa. Fiquei pelo menos

aliviada, embora, brevemente, do miasma de tristeza em meio ao qual andara

durante tantas semanas. Ri de todo o coração e me senti curada por uma

hora. Posso informar que cumpri meu programa para a noite e fui deitar-me

a uma hora razoável pela primeira vez em todas aquelas semanas. O fato

marcava um começo.

As mergulhador as de haliotes* — já falei delas? Penso que não, mas

devo falar, pois formavam um pequeno grupo compacto e único em nosso

elenco inteiramente japonês. Os moluscos haliotes são uma iguaria da

cozinha japonesa, mas difíceis de encontrar pois se agarram às rochas com

um poderoso músculo e vivem nas profundezas, onde o mar é escuro e a

água gelada. Os pescadores japoneses recusam-se prudentemente a

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mergulhar para apanhá-los e transferem a tarefa às mulheres jovens, mais

capazes de suportar o frio e o perigo. Os homens conduzem os barcos aos

leitos de moluscos e esperam pacientemente enquanto as mulheres

mergulham no mar, vestindo apenas shorts e cintos nos quais enfiam as

compridas e pesadas facas de ferro necessárias para arrancar os mariscos das

rochas. * Molusco gastrópode da família dos Haliotídeos. (N. do Tr.).

Para espanto meu, seu traje, tão natural para eles e tão adequado, tornou-

se assunto de preocupação e mesmo de controvérsia para nossos produtores

americanos. Parecia que as platéias americanas não tolerariam a visão dos

peitos nus das mulheres mergulhadoras. Na Europa o espetáculo seria

inteiramente aceitável, até mesmo agradável, mas a decência tem padrões

absolutos nos Estados Unidos seio-conscientes.

— Como? inquiri eu. — Uma mulher é uma mulher e não pode,

propriamente, ser qualquer outra coisa.

— Porta-seios, retrucou laconicamente o delegado americano. Abrandou

um pouco ao ver o meu espanto. — Faremos duas filmagens delas, uma com

e uma sem.

E foi o que fizemos. Eu me diverti ao ver quão embaraçadas ficaram as

mulheres ao serem compelidas a vestir soutiens cor de rosa sobre seus

redondos seios morenos. Sentiram-se realmente nuas, como Eva no jardim,

sem dúvida, quando lhe disseram que usasse uma folha como veste.

Uma satisfação peculiar decorrente da transposição de minha história de

um meio a outro, da página impressa para o filme, era que os personagens se

tornavam vivos, em carne e sangue. Um dia encontramos Setsu e nunca

esquecerei o momento de puro prazer angelical em que, olhando para uma

jovem mulher, eu a reconheci. Era uma jovem estrela de sua própria

companhia, informou-nos o gerente de produção. Para mim o mais

importante era o seu adorável rostinho e seus grandes olhos líquidos

castanho-claros. Tão pequena de estatura que era, como me contou, membro

do Transistor Club, cujos sócios deviam ter todos menos de um metro e

meio. Essa pequena-transístor, todavia, era ainda menor. Ao ficar junto de

nosso crescido Toru, com um metro e oitenta, no filme, era exatamente

correto quando ele olhava para baixo, a fim de vê-la, ria e dizia:

— Gosto de você porque é tão pequena e engraçada.

Nosso elenco, afinal, estava completo. Todos sabiam falar inglês ou

podiam aprender as poucas palavras que tinham de proferir — exceto a mãe

de Toru. Ela era simplesmente demasiado tímida para tentar dizer uma

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palavra em inglês. Mas tinha uma fisionomia tão suave, além de ser atriz

muito conhecida no Japão, que cortamos suas linhas e deixamo-la

representar em vez de falar. Entrementes, haviam-se passado três semanas.

Todos os contratos estavam assinados. Era um ótimo elenco, sendo o astro,

Sessue Hayakawa, mais conhecido no mundo ocidental. Todos os outros

eram astros no Japão, exceto Haruko já crescido, uma nova atriz

especialmente escolhida para o papel da feroz mergulhadora de haliotes, que

se apaixonou por Toru e lutou por ele contra a gentil Setsu.

Quando, finalmente, estávamos prontos para deixar Tóquio, o elenco

reunido, o câmara e a equipe esperando, o Velho Cavalheiro convidou-nos

para uma festa numa casa de geishas, e para lá fomos uma noite, após nos

haver chamado para levar-nos em seu próprio carro. A essa altura eu já me

tinha habituado a noites passadas em hospedarias tranqüilas, com amigos

japoneses. Uma boa hospedaria, no Japão, nunca fica situada ao lado de uma

rodovia. A pessoa tem de saltar do carro ou do ônibus e caminhar pelo

menos cem metros, em geral mais, por um caminho musgoso, até um lugar

isolado, onde embaixo de árvores, se possível, estendem-se tetos baixos

sobre salas abertas para jardins e pequenas piscinas. A tais lugares, tão

freqüentemente quanto a minha disposição de aceitar, eu fora convidada por

amigos, professores universitários, escritores, teatrólogos, literatos e artistas,

grupos de mulheres de talento.

Essas noites decorriam em repousante conversação, comparações de

costumes, lembranças de paz e de guerra e novamente de paz. Eu apreciava

além de qualquer descrição a nova liberdade com a qual podíamos falar.

Parecia que, durante os anos em que eu estivera ausente do Japão, fora

derrubada alguma barreira, não da minha parte mas da parte deles. Só posso

atribuir o fato, pelo menos parcialmente, à experiência que tiveram com os

americanos no decurso dos anos de Ocupação e nos posteriores. Houve

incompreensões, mas a compreensão prevaleceu.

A noite na casa de geishas não se assemelhava às tranqüilas noitadas

entre amigos congeniais. Paramos num suntuoso restaurante novo e depois

entramos numa enorme sala onde a mesa baixa mais comprida que já vi se

encontrava cercada de convidados, todos eles, como nos assegurou nosso

anfitrião, os mais altamente situados de sua classe. Fomos, assim,

apresentados a um idoso príncipe rodeado de geishas, das quais havia

inúmeras, em seguida a um ministro do atual gabinete, depois a um jovem

gigante de mais de dois metros de altura e noventa centímetros de largura,

que era o campeão de luta romana no Japão, e assim por diante. Cada

convidado masculino estava cercado de várias geishas, e eu própria recebi

duas para atender-me, à direita e à esquerda.

Entre cada prato éramos entretidos pelas danças e canções tradicionais

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das geishas treinadas. Mas a novidade eram duas jovens mágicas. Das

melhores que conheci, e eu tenho visto mágicos em todos os países porque

os adoro. Essas moças, em contraste com as geishas, usavam vestidos

ocidentais, os braços nus até os ombros. Não havia, portanto, a tolice de

esconder coelhos, galinhas e jarros de água nas mangas. Elas simplesmente

realizavam truques maravilhosos e não tenho a menor idéia de como o

faziam.

Depois de umas quatro horas agradáveis, a noite chegou ao fim.

Refletindo sobre seus incidentes, uma recordação apega-se como leve

penugem ao meu espírito. A esposa do Embaixador Americano me havia

descrito, num almoço em minha honra, os vestidos formais que ainda eram

exigidos às estrangeiras que compareciam a qualquer cerimônia da corte ou

do palácio do Imperador. Os vestidos, dissera-me ela, deviam ser compridos,

de gola alta e mangas longas. Naquele dia, mais tarde, perguntei a uma

amiga japonesa de espírito prosaico, o motivo pelo qual as mulheres

estrangeiras deviam usar golas altas. Respondeu pronta e exatamente:

— É porque, ao se curvarem, o Imperador não deve ficar embaraçado

vendo os seus colos nus.

Nossa última noite em Tóquio. Terminada a festa das geishas, sentei-me

junto à janela, no escuro, antes de dormir, e contemplei a cidade brilhante,

uma massa de edifícios reluzentes, no centro da qual está o elevado e antigo

muro cercando o palácio imperial. Sim, há um fosso. Na divisão do velho e

do novo, que é o Japão de hoje, lembrei-me da visita de cortesia que fizera

naquela manhã ao presidente de outra grande companhia cinematográfica

japonesa. Fora bastante bondoso em ceder-nos um dos seus jovens astros

para fazer o papel do nosso Toru crescido.

À sua maneira, esse executivo também era notável. É um homem

pequeno, magro, saudável e cheio de energia. Olhar agudo e gestos vivos.

Expressei minha gratidão e ele disse que queria que o filme fosse um

sucesso. Nesse momento observei no alto da parede a miniatura de um

templo budista. É um ardente budista, como eu sabia, e conversamos alguns

minutos sobre a grande e antiga religião. Lembro-me de que meu erudito pai

escrevera certa vez uma longa monografia sobre o tema do budismo como

fonte de algumas crenças cristãs. Havia mais de trinta semelhanças desse

tipo e falei delas ao distinto budista japonês. Ficou profundamente

impressionado e disse que meu pai estava absolutamente certo — há muito

de comum entre as duas religiões, e isto não por acidente — estava

convencido — mas por experiência histórica partilhada.

No dia seguinte, o último, obedecemos ao costume japonês de oferecer

uma festa ao elenco e à equipe antes de iniciarmos a grande aventura. A

grande sala que alugamos no hotel estava apinhada. Todos os nossos atores

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ali se encontravam, nosso cameraman — que sem dúvida os deuses nos

haviam mandado — o artista da maquiagem, o melhor do Japão, como nos

disseram, e muitos outros. Os repórteres insistiram em estar presentes e

estavam.

Nossos atores-crianças traziam suas melhores roupas de festas. A

pequena Setsu, o pequeno Toru, o pequeno Yukio, e os seus equivalentes

grandes. Todo o nosso elenco, na verdade, fazia-me inchar de orgulho. Eram

elegantes, enquadravam-se em seus papéis, e estavam entusiasmados.

Nossos co-produtores sentiam-se contentes também, até mesmo o gerente de

produção. Ele ficou até o fim da festa, fez um discurso em japonês que foi

sem dúvida excelente, pois houve aplausos estrondosos. Nosso astro, Sessue

Hayakawa, também falou em japonês, os repórteres tomaram notas, as

câmaras relampaguearam diversas vezes, e a festa terminou. Havia comida e

bebida em quantidade e em pouco tempo todos ficaram conhecendo todos.

Foi uma festa adorável. Demoramo-nos a partir, despedindo-nos e

assegurando que breve tornaríamos a nos encontrar para trabalharmos juntos

em A Grande Onda. Amanhã... amanhã... e tomara que todos os amanhãs

brilhem tanto quanto aquele que nos esperava, disse para mim mesma,

naquela noite.

Mais uma vez não fui perambular sozinha pelas ruas. Ao invés disso,

abri a janela e enviei ao espaço minha mensagem secreta, com amor. Onde

quer que está, ele ouviu, ou assim sonhei, pois um conforto novo desceu

sobre meu coração e me trouxe o primeiro prenuncio de paz. Era a sua

bênção.

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III

CHEGAMOS À DELICIOSA CIDADE de Obama após uma viagem de sete

horas em avião, trem e automóvel. Era meia-noite quando atingimos nosso

hotel, e as camas, feitas à maneira japonesa, sobre esteiras de tatami no chão,

pareciam e eram confortáveis. Era um hotel autenticamente japonês —

alimentação, encanamento e tudo o mais, um grande hotel, confortável em

seu gênero, ao ponto de ter algum luxo.

Eu estava de novo numa cama japonesa. Um colchão grosso posto sobre

as esteiras do chão, um colchão macio, lençóis, travesseiros e colcha

revestida de seda, tudo imaculadamente limpo, proporcionavam a

combinação exata de duro e macio para o mais repousante sono. Há, penso

eu, uma certa segurança em dormir no chão, talvez porque não haja nada de

onde se possa cair. A pessoa de sono irrequieto pode sacudir braços e pernas

e até mesmo rolar de um lado para o outro, e ficará sempre no mesmo nível.

É a segurança que a criatura humana sempre sente quando se encontra sobre

a terra estável, um contato com a planície básica. Os bebês sabem disso por

instinto e dormem mais sadiamente, portanto, quando estão deitados sobre

seus estômagos. Então, se acordam, ou apenas sonham, sentem as mãos e os

pés tocarem a solidez em vez de agarrarem o ar. Por mais estreita que seja a

cama, parece espaçosa quando preparada sobre o chão. E quão sensato,

também, o uso do aposento. Durante o dia o quarto de dormir transforma-se

numa agradável sala de estar, depois de guardar em armários a roupa de

cama. Sábio uso do espaço num país pequeno e superpovoado.

Dormi bem mas acordei cedo, ansiosa por ver os cenários escolhidos

para a filmagem. Havíamos chegado tarde e eu não sabia como era a

paisagem vista da janela da pequena varanda para a qual o meu quarto abria.

Voltava-se para o sul, dando para uma baía curva, cercada de verdes

montanhas. A rua ficava entre o hotel e o mar, e em baixo das minhas janelas

havia uma grande piscina de fumegante água quente — calor natural, pois

Obama é uma famosa estação de águas, com fontes naturais quentes.

Tão logo me mexi, o shoji coberto de papel recuou e uma agradável

criadinha japonesa numa alegre yukata, ou quimono de algodão, entrou,

ajoelhou-se, curvou-se e Começou a tagarelar em japonês enquanto desfazia

a cama. Em poucos minutos meu quarto de dormir estava transformado em

sala de estar, uma mesa baixa e polida no centro, almofadas para sentar, um

espaldar para recostar. O nicho de tokonoma continha um gracioso vaso de

flores frescas e um rolo de paisagem por um bom artista.

— O desjejum não demora, disse-me a criada por meio de gestos.

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Fiz um aceno e desci um renque de degraus até o meu banheiro

particular e tomei um banho japonês. A banheira estava cheia de água quente

natural, muito refrescante, estimulante sem cansar. O desjejum era um ovo,

alguma fruta, peixe salgado e arroz. O banho mineral dera-me fome. Depois

do desjejum partimos num automóvel... Faço aqui uma pausa para dizer que

os carros japoneses são tão extraordinários quanto seus motoristas. São

adaptados a uma paisagem abrupta e a estradas perigosas. O Japão tem muito

boas estradas, muitas mais do que me lembro de ter visto nas visitas

anteriores, mas esses carros rodam com o mesmo espírito em estradas

ásperas e estreitas ou no cimento e no asfalto. A maioria das estradas é

estreita e não tem espaço para uma ultrapassagem confortável. Quando dois

carros se encontram frente a frente em semelhante estrada, ambos param. Os

motoristas se avaliam mutuamente. Mais cedo ou mais tarde um deles se

convence de que é o mais fraco e recua prudentemente até encontrar um

canto onde possa esperar que o outro passe. Um motorista de ônibus ou

caminhão não perde tempo nessa avaliação. Espera simplesmente que o

outro carro saia do caminho, com o ar de quem está fazendo um favor em

não empurrá-lo penhasco abaixo. Parece haver sempre um penhasco na

margem de cada estrada do Japão e muito freqüentemente penhascos

pendentes de ambos os lados, sem parapeito ou qualquer outra proteção. A

razão, suponho eu, é que, passando quase todas as estradas no alto do

penhasco sobre o mar, não adianta sonhar em amuradas. As pessoas devem

aprender a cuidar de si próprias. O mesmo princípio é verdadeiro para os que

dirigem através de cidades, aldeias e hordas de ciclistas. O resultado é que

cada um cuida de si e ensina a seus filhos a fazerem o mesmo. Os acidentes

são extraordinariamente poucos, pelo menos em proporção ao risco!

...Rodamos durante uma hora através de uma região fantàsticamente bela

e todas as minhas recordações reviveram, pois em certa ocasião, numa outra

encarnação, eu vivera alguns meses em Kyushu. Como me lembro bem

dessas montanhas de picos pontiagudos, sujeitas a súbitas neblinas de chuva,

dessas praias recortadas, das rochas corroídas pelas águas, das aldeias

escondidas em enseadas, das casas de lavradores com seus inclinados tetos

de sapé com um metro de espessura, e seus campos terraçados, trepando

passo a passo pelas encostas até quase o topo das montanhas! Nada mudara.

Afastei da memória a cidade de Nagasaki destruída pela bomba, que ficava

bem perto, porque os japoneses também a haviam esquecido, construindo

uma cidade nova.

Fui vê-la mais tarde e encontrei a combinação simbólica do velho-e-

novo do Japão dos dias atuais — novo, o monumento erguido em memória

dos que morreram quando foi lançada a segunda bomba atômica; velho, a

casa construída num monte onde Puccini morou enquanto escrevia Madame

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Butterfly. Essa casa é hoje um lugar de turismo, não muito conservada, nem

mesmo muito limpa. A história foi contada muitas vezes e agora está fora de

moda, pois os jovens soldados ocidentais casam-se com suas namoradas

japonesas e, se o não fazem, Miki toma conta dos bebês.

Em matéria de velho e de novo, nada foi mais surpreendentemente novo

do que o convite, quase casual, num dia quente de verão, para ir

cumprimentar o Imperador e a Imperatriz na cidade de Fukuoka, um

encontro impossível nos dias antigos, quando esses dois personagens eram

tão remotos, para não dizer tão improváveis, quanto os deuses. Naquele dia

em Fukuoka, porém, postamo-nos em fila na estação ferroviária para dar as

boas-vindas, com reverências, às augustas pessoas. Desceram do trem

trajando roupas ocidentais, com a expressão bondosa e um tanto cansada. O

Imperador não teria dado um homem de negócios muito jovial e sua esposa

uma companheira maternal e ansiosa, cujo chapéu e vestido comprido

constituíam um problema. Fiquei a imaginar se recordavam os dias em que,

remotos e frios viviam no Olimpo.

Não posso negar que meu coração bateu mais rápido ao nos

aproximarmos da aldeia de Kitsu, onde vivia Toru, nosso garoto pescador.

Há duas centenas de anos Kitsu fora totalmente varrida por uma ressaca. Era

fácil ver como acontecera, pois essa pequena aldeia de pescadores jaz como

uma sela entre duas montanhas, a menor terraçada até o topo e além. Devo

ter pensado em Kitsu quando escrevi A Grande Onda, tão perfeitamente se

adaptava essa aldeia à história. Pois após a ressaca o povo a reconstruíra no

mesmo lugar, esse obstinado e bravo povo japonês, e no entanto mais cedo

ou mais tarde a aldeia seria de novo apanhada por uma onda monstruosa, e é

tão vulnerável hoje quanto o era há dois séculos, as casas com a mesma

forma e estrutura, dispostas exatamente do mesmo modo, na praia mas sem

janelas para o mar.

Eu reconheci cada passo, enquanto subíamos para a aldeia pelo caminho

estreito e sinuoso. Aqui estavam as casas, aqui as ruas estreitas que não

tinham mais de um metro de largura, certamente, e pelas quais nenhum

veículo podia passar, e dificilmente dois seres humanos. Descendo os gastos

degraus de pedra, rumamos para o mar, seguidos por vinte e nove crianças,

exatamente, pois as contei quando paramos na casa de Toru. Lá estava,

também, a casa assim como a vira em meu livro, e até mesmo o Avô estava

ali, face vivaz e alegre, espreitando-nos por cima do muro. Seus dias de

pescador haviam passado e agora eram os filhos e netos que continuavam a

labuta. Sua esposa morrera, contou-nos, e a nora e a neta é que cuidavam da

casa, secavam e salgavam o peixe e traziam água do poço perto da praia.

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Percorremos a aldeia com profundo contentamento porque era tão

exatamente certa, as redes de pescar secando na praia, as casas aninhadas

entre as colinas terraçadas, um pequeno e velho cemitério numa delas.

Havia, mesmo, um renque de degraus de pedra que podíamos usar como

entrada da casa do Velho Cavalheiro, na montanha acima.

O tempo tinha passado e era hora do almoço. Comemos num restaurante

famoso pelas suas enguias. Galgamos dois lances de escada até uma grande

sala arejada, onde comemos enguia com arroz e nos congratulamos pelo

cenário do filme.

Eu receava ver nosso próximo cenário e confessei meu temor. Tratava-se

da mansão do Velho Cavalheiro, erudito e proprietário de terras.

Encontraríamos, morando em semelhante casa, uma família disposta a nos

emprestá-la? Devia ser espaçosa, bela e elegante, situada em jardins

adoráveis. Perdi pessoalmente a esperança e me distraí pensando em vários

substitutos enquanto rodávamos por uma estrada rural.

Mas o impossível tornou-se possível, como tão freqüentemente

aconteceu no Japão. No momento em que vi a casa, da estrada, compreendi

que era a mansão do Velho Cavalheiro, pouco importando quem morasse

nela. Atravessei o portão e me encontrei num adorável jardim. Não havia

flores, pois os jardins japoneses raramente têm flores. Um caminho feito de

largas pedras irregulares conduzia à entrada principal, ladeado de sempre-

vivas, moitas baixas, samambaias e orquídeas sem flor, constituindo a

paisagem. À porta achava-se uma dama. Trazia um elegante quimono escuro

e curvou-se profundamente. Curvamo-nos em resposta, na medida da nossa

melhor capacidade americana, e perguntei se podíamos ver o resto do jardim.

Havia uma piscina de tamanho médio, mas desenhada de modo a apresentar

os aspectos de um lago. Havia uma ponte conduzindo a um caminho estreito

e um pavilhão entre árvores. Olhei tudo do ponto de vista do Velho

Cavalheiro. Era exatamente a espécie de jardim que ele teria, e eu quase

esperava vê-lo aguardando-nos dentro de casa.

Mas ele não apareceu. Havia apenas a dama elegante que nos convidou a

entrar na casa e nos conduziu de um aposento a outro, todos espaçosos e

decorados com gosto. A casa da fazenda tinha trezentos anos de idade, mas

esta era a casa do proprietário, construída apenas há cerca de quarenta anos,

para substituir a antiga. O Velho Cavalheiro, quem quer que seja, era homem

rico e de gosto. Os móveis, os objetos de arte nos nichos de tokonoma, eram

todos de sua escolha. Duas das salas tinham tapetes postos sobre o tatami,

com mesas e cadeiras de estilo ocidental, mas nós ignoramos os aspectos

modernos do Velho Cavalheiro e nos apegamos ao seu lado japonês.

Agora a dama nos apresentou à sua filha, jovem mulher que não tinha a

metade da beleza da mãe, trajando um vestido ocidental que não lhe ficava

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bem. Mas também era bondosa e me senti comovida e com o coração

aquecido quando, após haver feito meu discurso de louvor, ouvi ambas

declararem que consideravam uma honra a utilização de sua casa em meu

filme, e a dama disse que gostaria, algum dia, de realizar para mim a

cerimônia do chá. Aceitei, agradecendo, e então ela nos serviu chá em taças

tão pequenas que, antes de prová-lo, eu sabia que o chá era precioso. Era, de

fato, o chá perfeito, raramente oferecido a ocidentais. Eu não suportava a

idéia de fazê-lo desaparecer, bebendo-o, mas era tão delicioso, tão superior a

qualquer chá que habitualmente tomo, que não pude senão sorvê-lo enquanto

o elogiava. Ela se sensibilizou com os meus louvores e trouxe o pequeno e

valioso bule, derramando em minha taça mais goles do elixir. Era

naturalmente um chá raro, feito com as primeiras folhas tenras da planta, na

primavera. Trinta gramas dele custam um dólar, o que é muito dinheiro

japonês. Estou certa de que não o serve com freqüência, mesmo a hóspedes

nipônicos. Tê-lo oferecido a nós significava que nos dera um presente.

Recebi-o como tal.

Enquanto conversávamos, eu em inglês, ela em japonês, através de um

intérprete, perguntou se podia gravar a conversa para seu filho, que estava

estudando inglês. Respondi naturalmente que sim, e me diverti ao ver, atrás

de uma almofada, um moderno gravador que até então se achava escondido!

Despedimo-nos afinal, com muitas reverências, prometendo voltar em

breve, prometendo ter o cuidado de nada quebrar na casa e nada estragar no

jardim. Mostrou-se muito graciosa e suplicou-me que deixasse o hotel e

fosse morar com ela, mas respondi que devia ficar com a companhia,

agradecendo-lhe do mesmo modo.

Restava-nos, agora, ver a casa da fazenda e a praia deserta. A praia podia

esperar, pois o dia estava escurecendo, mas tínhamos de ver a casa da

fazenda. Atravessamos uma aldeia e eu a reconheci, entre os campos e a

estrada. A casa ficava entre terraços, ela própria construída num deles,

bastante amplo. A estrada passava na sua frente, seis metros acima da

plantação de arroz. Um muro de tijolos antigos protegia a construção, mas o

largo portão de madeira estava aberto e por ele entramos no mundo da

história do meu livro. Sim, esta era a casa, simples porém espaçosa, paredes

de madeira, quartos divididos por shoji, um teto de sapé tão antigo que flores

e capim cresciam nele. Galinhas, uma cabra, uma pequena horta, algumas

moitas ornamentais, umas poucas rochas decorativas, uma ótima cozinha

antiga, uma varanda estreita, um pequeno tanque para lavar arroz e vegetais,

o próprio lavrador, viúvo jovial com uma filha casada que cuidava dele —

era exatamente certo. E, melhor que tudo, a família era cordial e ansiosa por

ajudar. Quando viríamos? Amanhã? Bom... bom... a casa era nossa. Sim,

tinham eletricidade — e uma bomba na cozinha, fazenda moderna, disse

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com orgulho o lavrador. E gostaria que os americanos vissem como tratava

de tudo. Chá, por favor, antes de partirmos! Era noite quando nos deixou sair

e o trabalho começou às sete horas do dia seguinte. Cada hora de luz é

preciosa quando se faz um filme no local.

As galinhas, como notei ao sair, eram da mais ruidosa variedade. Só as

trevas as silenciaram. Seu cacarejar dissonante, suas exclamações de

excitação e ultraje quando chegamos no dia seguinte, constituiriam a música

de fundo de todas as cenas filmadas na casa da fazenda.

Mas, ai, fomos retardados e pela chuva... chuva... chuva. Quando

chegamos ao nosso hotel, naquela noite, a chuva estava caindo. Eu havia

temido a chuva, sempre o azar nas filmagens naturais, especialmente no

clima do sul do Japão, onde o mar e a montanha são vizinhos íntimos. Se o

vento sopra do mar, o céu se torna claro; se da terra, choverá. Disso eu me

lembrava, desde os dias há muito passados, e enquanto estava deitada em

minha cama japonesa, ouvindo a chuva e esperando o sono, meditei nas

estranhas divisões de minha vida.

Como fora incrível, acima de tudo, que durante toda a primeira metade

de minha vida, eu ignorasse que ele existia! Quando estive aqui, antes, onde

estava ele? E agora que estou aqui de novo, onde está ele agora? Entre essas

duas eras situam-se vinte e cinco bons anos de vida em comum, uma gema

engastada na eternidade, antes e depois. E a velha pergunta me assaltou de

novo, como assalta todo ser humano que viu a morte chegar demasiado

perto. Cerrei os dentes contra a inexorabilidade da morte.

Há vida, além?

Lembrei-me da coragem de seu ateísmo. Com que freqüentemente

discutimos sobre o futuro no qual um de nós teria de viver só! Pois teria sido

bom demais para ser possível que morrêssemos no mesmo momento e

atravessássemos de mãos dadas a invencível barreira. Eu sabia, há anos, que

caberia a mim ficar, a mim com a herança de ancestrais longevos em ambos

os lados de minha família. A questão era se eu me recordaria da

possibilidade de vida além, ou a poria de lado e viveria como se a eternidade

fosse agora — o que é, de certo modo, não havendo começo ou fim no

infinito de todas as coisas. Que é então a solitude presente na qual estou

vivendo? É o fim do que foi ou é o começo de algo que ainda não

compreendo?

Sabia ele que eu estava aqui, no Japão? Estava ele adejando ainda sobre

a nossa casa, a essência dele, e perceberia eu sua presença se estivesse lá?

Deitada em minha cama japonesa, escutando o ruído do mar alto mesclando-

se com a chuva no teto de telhas, lutei contra o poderoso anseio de ir à

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procura dele, onde quer que estivesse. Pois certamente estava procurando

por mim, também. Sentíamo-nos inquietos, sempre, quando separados. Mas

onde ficam os caminhos?

Lembrei-me de uma noite no Sardi's, em Nova York. Eu estava com um

amigo, de Hollywood, e me encontrava pela primeira vez com sua esposa.

Enquanto o marido conversava com outros convidados, essa mulher falava

comigo um tanto timidamente, agradável senhora do Midwest, nada

Hollywood. Mostrara-se tímida a princípio, mas depois, cedendo a algum

impulso, baixou a voz para dizer que desejava "conversar de verdade"

comigo. Sofrerá, segundo parecia, uma estranha evolução pessoal nos

últimos meses. Seu pai, do qual era muito íntima, vivera muitos anos com

ela, após a morte de sua mãe. Mas ele também morrera recentemente.

Preocupava-se a seu respeito, imaginando se ainda estaria em algum lugar e,

se assim era, se estava feliz. Tais preocupações a haviam deprimido e tirado

a sua alegria.

Uma noite, contou ela, em que o marido se demorara no trabalho e ela

ficara sentada sozinha, fazendo crochê, passatempo a que era afeiçoada, pôs-

se a pensar no pai, preocupada como de costume. Súbito ouviu-o chamar seu

nome, e levantando os olhos viu-o claramente de outro lado da sala.

— Você deve parar de preocupar-se comigo, disse ele em sua costumeira

voz prática. — Estou bem, na verdade estou feliz.

— Ficou com medo? perguntei-lhe.

— Medo de meu pai? Não!

— Mas ele era o mesmo?

— Exatamente o mesmo, tornou ela, acrescentando, em seguida, meio

intrigada. — Bem... eu sabia que, embora ele estivesse ali, seu corpo não

estava.

— E tornou a vê-lo?

— Sim, respondeu. — Várias vezes, porém não me preocupo mais. Às

vezes, quando Jack e eu estamos sentados tranqüilamente em casa, à noite,

ele lendo e eu fazendo crochê, sinto que alguém mais está presente e vejo

meu pai sorrindo para nós.

— Jack também o vê? inquiri.

— Perguntei-lhe uma vez: "Jack, está vendo papai ali?" Disse que não,

que não o via, mas acreditava que eu o estivesse vendo, porque no velho país

de onde viera havia gente como eu, que podia ver além das aparências.

Sim, e lembrando, pensei no que minha filha de quatorze anos dissera no

dia posterior ao do funeral. Quisera ficar com o quarto dele, depois de vazio,

pois está situado junto do meu e ali dormiu plàcidamente na primeira noite,

lembro-me, pois eu lhe perguntara se queria mesmo dormir nele, tão cedo.

— Não quero que esvaziem o quarto, disse ela.

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Na manhã seguinte falou com inteira naturalidade, durante o café:

— Papai entrou no quarto ontem à noite. Estava com um aspecto

maravilhoso... bom de novo e tão alegre! Voltou apenas para ver se tudo

estava em ordem.

Contive minha incredulidade.

— Falou com você?

— Não, apenas sorriu.

— E que vestia ele? indaguei.

— Penso que sua jaqueta de fumar, de veludo vermelho.

Mas a jaqueta vermelha, apesar de sua favorita, fora posta de lado há

cinco anos, quando deixara de fumar.

Creio? Se acredito é porque estou certa de que algum dia saberemos

como somos cientes, as comunicações serão claras, as leis científicas nos

revelarão os princípios que governam o universo criador. A religião chama a

força criadora por um nome, Deus por quem esperamos. En attendant

Godot!

Ali, no escuro da noite, junto do mar japonês, supliquei-lhe que me

fizesse saber, por algum sinal autêntico, que vivia em alguma parte, apenas

para dizer-me que existia. Não fez sinal algum. Contudo o silêncio não é

definitivo. Pode ser apenas definição. Ele está lá, eu estou aqui. Ainda não

temos o mesmo comprimento de onda. Isto é fé? Não me atrevo a dar-lhe

este nome. Sou familiar com a ciência. Há duas escolas sobre a questão.

Uma consiste em crer que o impossível é um absoluto a menos e até que se

prove que é possível. A outra, em crer que o possível é um absoluto a menos

e até que se prove que é impossível. Eu pertenço a esta última escola. Por

conseguinte todas as coisas são possíveis até que se prove que são

impossíveis — e mesmo o impossível pode ser assim, como agora.

Dessa maneira minha vida continuava a ser vivida em dois planos

separados, um durante o dia, o outro durante a noite; um sobre a Terra, o

outro em busca de uma habitação que mãos não construíram.

As chuvas pareciam cair interminavelmente. Jorraram sem cessar

durante três dias. As montanhas estavam ocultas pela chuva e o mar rugia

contra as pedras. Olhávamos, alarmados, uns para os outros. E se isso

continuasse?

— Pensei tê-la ouvido dizer que a estação das chuvas é em junho e nós

estamos em setembro, observou-me o americano, reprovadoramente.

Eu própria estava um tanto espantada com o dilúvio e passei a questão ao

maître d'hôtel japonês, o qual confirmou que junho sempre fora a estação

das chuvas.

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— Então que é isto? perguntei.

— É só chuva, redargüiu o japonês.

Ninguém pôde negar o fato e assim passamos a assuntos mais

controvertíveis. Decidimos trabalhar no argumento, planejando o programa

de cada dia, caso a chuva viesse a parar algum dia. Planejamos cena por cena

e tomada por tomada. Era necessário um trabalho criador e aprendi também

o que não sabia antes — que num filme não se conta a história em seqüência

cronológica. Filma-se todas as cenas em cada local, independentemente do

tempo em que se situam na narrativa. Assim, nos quatro primeiros dias,

ficaríamos na casa da fazenda, filmando tudo quanto se passava nela e com a

família de quatro pessoas, Pai, Mãe, Yukio e Setsu. Isto me parecia um

negócio muito confuso, mas compreendia a sua lógica.

Sentamo-nos ao redor da baixa e comprida mesa japonesa, juntamente

com o nosso cameraman, o técnico de som japonês e assistente de direção.

Sentamo-nos no chão, naturalmente, e o cameraman teve a imprudência de

escolher uma das cabeceiras da mesa baixa. Digo imprudência porque tinha

pernas compridas, muito compridas, e não podia esticá-las quando se

cansava de sentar-se sobre elas, porque eu já estava cansada e havia esticado

as pernas, cruzadas, por baixo da mesa.

Faço aqui uma pausa de um momento para discutir a questão de sentar-

se a pessoa sobre as pernas dobradas. Antes de vir ao Japão este ano, após

tão prolongada ausência, fiz todos os dias, rigorosamente, o exercício de

dobrar as pernas e sentar-me sobre os pés. Não é fácil e no princípio eu só

agüentava três minutos, chegando ao máximo de vinte minutos, o que é

insuficiente para um jantar japonês, pelo menos do tipo dos que os meus

amigos me oferecem. Estava envergonhada, mas foi o máximo que consegui.

Qual não foi minha satisfação, por conseguinte, ao descobrir que, durante os

anos de minha ausência, os japoneses haviam abandonado o costume de

permanecerem sentados sobre as pernas durante muito tempo! Ao invés

disso, sentam-se em cadeiras sempre que possível, e as crianças, muitas

delas, não se sentam absolutamente sobre suas pernas e até mesmo a minha

amiga disse francamente que não agüentava por muito tempo a postura

japonesa e achava, de qualquer maneira, que não era boa para a circulação.

Atribuía o surpreendente aumento de estatura da sua geração de jovens

adultos ao fato de não serem obrigados a sentar-se durante horas sobre as

pernas dobradas. Talvez seja esta a razão. Notei, certamente, a nova estatura

dos japoneses. Sua aparência é melhor e as pernas são mais retas.

Agora deixem-me falar do cameraman. Primeiro devo dizer que era

encantador, bondoso, temperamental e, no seu ramo, um artista. Falava

pouco inglês mas compreendia muito mais do que pensávamos. Era

obviamente devotado ao seu trabalho e queria que soubéssemos que tinha

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uma devoção especial por A Grande Onda, no que acreditávamos, pois se

assim não fosse por que estaria trabalhando conosco? Era famoso e podia

facilmente ganhar a mesma coisa num trabalho mais cômodo. Mas eu estava

encantada com ele por outros motivos. Era o ser humano de aparência mais

espetacular que já vi. Muito alto e muito estreito nos pés, pernas, corpo,

braços, mãos, pescoço e especialmente rosto. Tinha um queixo comprido,

atirado para baixo e... mas não posso explicar sua anatomia. Não sei como

adquiriu essa aparência. Tudo quanto sei é que gostava dele e apreciava o

seu aspecto espetacular. Havia tanta coisa naquele seu rosto comprido que eu

o olhava e tornava a olhá-lo por cima da mesa. Era um rosto triste, pensei, e

depois achei que não era, de modo que continuei olhando para ele. E nossa

assistente japonesa formava um completo contraste, jovem mulher muito

moderna em blusa e calças compridas, os cabelos penteados em forma de

colmeia. Falava línguas estrangeiras e tinha estudado ballet na Europa.

Casara-se recentemente com o nosso principal ator jovem, o Toru crescido.

Seus contratos cinematográficos impediam-no de estar conosco até o dia

vinte e um, e assim aquela era a primeira separação do casal. Os outros

membros do elenco brincavam bastante com ela, forçando-a de hora em hora

a escrever cartões-postais para o marido, que eles próprios endereçavam, e

assim por diante. Ela deixava, com bom humor, que os outros se divertissem.

Era uma jovem calma, inteligente, eficiente e, incidentalmente, mas de

maneira importante, muito apaixonada.

Mas — ai — no próprio dia em que parou de chover e começamos a

filmar nossas primeiras cenas na casa da fazenda, nosso cameraman caiu

numa plantação de arroz. Não foi um acontecimento tão suave quanto soa,

pois ocorreu no fim de um dia de doze horas de trabalho. Eu saíra do local

um pouco mais cedo a fim de tratar de um negócio de Tóquio, pelo telefone,

e fui chamada ao hospital. Ao chegar, vi o alongado cameraman estendido

num banco do vestíbulo, esperando para ser examinado ao raio X. Temíamos

o pior, pois ele não caíra apenas na plantação de arroz ao lado da casa, mas a

plantação ficava ao pé de um muro de pedra sobre o qual passava a estrada, e

caíra não como eu supusera, sobre lama macia e altas espigas de arroz, mas

sobre as pedras no fundo da plantação. Sua estrutura podia ser melhor

definida, a qualquer momento, como uma coleção de ossos compridos e

finos frouxamente ligados por uma enrugada pele morena. Deitado no banco

parecia ter dois metros e meio de comprimento.

Declaramos nosso alarma mas ele se recusou a partilhá-lo e foi levado à

sala de raio X contra a sua vontade. Em meia hora o médico informou que

não havia ossos quebrados, apenas uma contusão. O próprio cameraman saiu

com um ar tão alegre quanto possível, com o seu curioso rosto, esperando a

nossa admiração, que não lhe negamos. Estava muito vistoso numa yukata

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preta e branca, limpa, e também permitira ao médico que pusesse seu braço

direito numa tipóia, mas só até sair do hospital, pois insistiu em voltar ao

trabalho. Rodamos com ele de volta ao hotel e lhe demos numerosas ordens,

através da nossa intérprete, dizendo-lhe que teria um criado que carregaria

sua cadeira por toda parte, a fim de que se sentasse, juntamente com um

leque, um guarda-chuva, bebida gelada e frutas.

O cameraman ouviu tudo isso sem mudar de expressão e acrescentou:

— E cama também.

Rimos e a velha figura indomável sentou-se ereta no assento dianteiro.

Desejamos-lhe boa noite no seu hotel e assim terminou aquele dia.

Aqui devo consultar minhas notas, rabiscadas nas páginas do meu script,

e escritas em toda parte e em qualquer lugar, na casa da fazenda, onde quer

que a cena estivesse sendo representada.

A primeira nota diz "Pena..."

Pena?

Ah, sim, é a cena em que Toru jaz em longo estupor depois que a ressaca

golpeara, e a pequena e travessa Setsu se insinua no quarto e lhe faz cócegas

com a pena para acordá-lo- Era uma cena bonita, interrompida pela Mãe que

entra com uma cestinha de ovos, seguida pela última aquisição do nosso

elenco, um cãozinho muito inteligente. A última aquisição era, na verdade,

um pato, mas ainda não havia aparecido no cenário.

Enquanto se filmava essa cena, vi o Pai em outro canto, ensaiando sua

grande cena com Yukio. O Pai é um bom lavrador, com o rosto de um

moreno honesto. Nosso maquilador, o melhor do Japão — ou já disse isso

antes? — passava delicadamente uma esponja no rosto do Pai, enxugando-

lhe o suor da concentração. A criada pessoal da Mãe estava fazendo o

mesmo com ela, em outro canto. Foi a criada que nos fez rir. Era tão

eficiente, entrando apressada nos últimos momentos, antes que o câmara os

chamasse, a fim de corrigir um cabelo levantado na cabeça da Mãe e

acrescentar um toque de make-up no canto do olho ou na margem do lábio.

"Terminado o trabalho", dizem minhas notas, "é um espetáculo ver a

Mãe, em seu elegante quimono de seda cinzenta, seguindo seu dignificado

caminho ao longo da suja estrada, no alto do muro, sobre o campo de arroz.

É uma atriz de alguma distinção no Japão. O Pai atuou em Casa de Chá do

Luar de Agosto. Toru e Yukio são ambos crianças-estrelas. Estou orgulhosa

com a nossa família da Grande Onda".

Aquele foi o dia, lembro-me, em que o carteiro me trouxe uma carta de

um amigo japonês de Tóquio, um colega escritor, que se dera ao trabalho de

ir à biblioteca pública a fim de colher, em alguns velhos registros de família,

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dados sobre ressacas. Escrevia-me que, antes de uma ressaca desabar, há um

terrível estrondo cavo proveniente do mar. Os japoneses denominam-no o

"canhão do oceano". E um dos sinais da aproximação da onda é que secam

os poços, ou transbordam, e a água fica barrenta. E os peixes, especialmente

os peixes-gato, nadam em direção à terra.

Enquanto eu lia as fascinantes páginas, ouvi o assistente de direção, um

homem, anunciar a nova cena.

— Yoi!

— Hoomba!

— Starto!

— Backo!

Os atores tomaram seus lugares e o cameraman ficou atento. Veio então

a ordem final do diretor.

— Ação!

— Schis-kani, ouvia eu dizer repetidas vezes durante as cenas e não

sabia o que significava até que um eletricista fez eco, trovejando num meio-

inglês:

— "Silêncio!"

O resultado foi um profundo silêncio. E fiquei espantada com a

simplicidade do mecanismo. O microfone era uma coisa amarrada numa

bolsa de algodão e pendurada na ponta de um bambu que estava sempre

espetando alguém, como minhas próprias costelas podiam testemunhar,

porém funcionava bastante bem. Quando ouvi a trilha sonora repetida,

surpreendi-me com a sua nitidez. Os efeitos eram obtidos por meios

estranhamente simples. A câmara, por exemplo, estava enrolada tão

cuidadosamente quanto um bebê numa tempestade de neve no Central Park.

Eu não podia perceber a razão, pois o tempo era muito quente e certamente

aquela coisa não estava fria. Perguntando, vim a saber que os cobertores e

colchas eram para abafar o ruído da própria câmara, a fim de que o

microfone não o captasse.

Será possível que eu tenha esquecido de contar como a cidade de Obama

celebrou nossa chegada? Ah, mas durou pouco tempo. Chegamos sem

pompa nem cerimônias, em pequenos carros japoneses, descarregamos as

bagagens e nos instalamos discretamente no hotel. Além do mais éramos

todos japoneses, excetuando o diretor americano, sua mulher e filha, e eu. E

éramos pessoas tranqüilas, pelo menos como americanos. Mas, num dia ou

dois, correu a notícia de que estávamos lá, de que eu estava lá, de que seria

feito um filme. Os pais da cidade pediram permissão para visitar-nos e a

concedemos com prazer. Chegaram trazendo grandes buquês de flores

misturadas e enormes pães-de-ló chatos, uma especialidade de Nagasaki, a

cidade próxima. Convidamo-los a tomar chá conosco, eles aceitaram com

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prazer, e nos pediram, através dos intérpretes, que lhes solicitássemos tudo

quanto precisássemos.

— Se não pedirem, disseram-nos, não saberemos. Portanto, peçam!

Prometemos. Terminado o chá, curvaram-se, nós nos curvamos e assim

nos separamos.

No dia seguinte foi hasteada uma grande bandeira no muro da rua

principal, dando-nos as boas-vindas à cidade de Obama, em inglês e em

japonês. O hotel, para não ficar em inferioridade, fez uma bandeira

semelhante, fotógrafos bateram chapas nossas, segurando buquês, e

bandeiras continuaram a ser hasteadas durante toda a nossa permanência.

Com a passagem do tempo, algumas letras desmaiaram, com as chuvas

repentinas às quais estávamos sujeitos, e as bandeiras em geral adquiriram

uma aparência borrada, mas as boas-vindas, sinto-me feliz em dizê-lo,

continuaram tão cálidas como sempre.

E falando de letras recordo-me que os colegiais nipônicos são

condenados a aprender três línguas, todas japonesas. Uma é o chinês antigo,

ainda usado na escrita formal, a outra é o japonês fonético, e a terceira a

nova linguagem necessária nos tempos modernos, a qual é fonética para as

palavras inglesas incorporadas ao idioma japonês.

A despeito dessa carga lingüística, as crianças pareciam saudáveis e

felizes durante o dia inteiro, exceto o rapaz que vi a caminho de nossa aldeia

— Kitsu. Dobramos, um dia, uma esquina inesperada e topamos com uma

robusta e irada mãe espancando o menino por algum malfeito. Acabou sua

tarefa, apesar do nosso aparecimento, o menino berrando o mais alto que

podia, depois limpou as mãos, sorriu-nos jovialmente enquanto o rapaz se

retirava para um canto da parede a fim de terminar seus soluços, e ela voltou

aos seus trabalhos domésticos.

Deve-se espancar as crianças? Retardei o passo, ficando atrás dos outros,

no estreito caminho da encosta da colina, e meditei sobre a questão. Era um

velho assunto em nossa família americana, nunca dirimido. Ele dizia que

acreditava em bater nas crianças até certa idade, porque não eram abertas à

razão e funcionavam inteiramente pelo instinto e pela emoção. Eu retrucava

que detestava todo castigo físico e acreditava que não fazia bem. A diferença

entre nós era que, quando uma criança me provocava a ira, e fazendo justiça

a mim mesma devo dizer que isto não era freqüente e só me acontecia

quando ultrajantemente provocada, eu podia e me surpreendia administrando

umas rápidas e bem colocadas palmadas. Ele, apesar de sua crença no

princípio, nunca tivera coragem de bater em criança alguma, por nenhum

motivo — exceto numa ocasião momentosa, na qual me recusei a participar

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do problema.

— Os meninos devem apanhar, disse-me um dia com expressão muito

grave.

Não recordo o que fizeram, mas haviam se metido, juntos, em alguma

diabrura. Postaram-se diante de nós, num belo dia de verão, os três quase da

mesma idade, todos bonitos, saudáveis e sem o menor arrependimento.

— Não posso fazer isso, disse eu.

— Então eu terei de fazê-lo, respondeu com firmeza. Para nosso espanto

recíproco, meu e dos meninos, bateu

realmente num de cada vez. Homens crescidos que são agora, ainda

rugem de riso quando recordam juntos o episódio. Eles também não se

lembram do que fizeram de errado, mas lembram-se dele com amor e

divertimento.

— Sabíamos que tínhamos de chorar, diz o segundo filho, o de alegre

senso de humor. — Devíamos ter chorado por ele, a fim de que tivesse a

satisfação de saber que estava fazendo um bom serviço, mas foi tão

engraçado que... tivemos de rir.

Recordo-me de uma espécie de ruído abafado e a simulação de

esfregarem os olhos com os nós dos dedos, mas a mim não enganaram nem

por um segundo. Eu sabia que estavam rindo, Deus os abençoe, e tentando

não fazê-lo, porque não queriam magoar os sentimentos dele.

Desconfiei que o menino japonês estava simulando algo semelhante. Ela

não lhe batera com muita força e ele estava fazendo um barulho fora de

qualquer proporção. Deixe que minha mãe se satisfaça, estaria pensando ele.

Deixe que ela creia que me está fazendo bem... Sejamos, em resumo, bons

para nossos pais!

Naquela noite, durante meu solitário jantar — era um grande siri

vermelho — surpreendi-me rindo alto, ao recordar-me. Era a primeira vez

que eu ria espontaneamente sozinha, desde quando estávamos habituados a

rir juntos, e este foi outro marco no rumo de minha nova vida.

A casa da fazenda era o nosso primeiro cenário e lá trabalhamos durante

dias, cada qual semelhante ao anterior. Este era o programa: eu acordava às

cinco e meia e descia para tomar banho. A criadinha, sempre vigilante, não

precisava ser chamada. Enquanto eu estava ausente do quarto, ela entrava,

dobrava a cama, punha a mesa e o assento almofadado, trazia meu desjejum.

Esta era, devo confessá-lo, a mais fraca refeição do dia, tolerável apenas

graças a uma fruta especial, que parecia uma maçã mas era pêra, não da

variedade americana macia, mas da enrugada espécie chinesa. Dois ovos

cozidos, grossas torradas e um estranho café, completavam o menu. Eu

expliquei que comia apenas um ovo e uma torrada, mas as explicações nada

significavam. O gerente da companhia ordenara o que me devia ser servido e

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o que ele ordenara aparecia. Suponho que a criadinha dava conta das sobras

e deixei que as coisas ficassem como estavam.

Seja como for, eu tinha de estar às sete horas na porta da frente. Ali nos

juntávamos todos para trocar os chinelos pelos sapatos, no que éramos

auxiliados pelas criadinhas. Lotávamos então vários automóveis, curvando-

nos para as criadas enfileiradas, que esperavam para fazer-nos a reverência

de despedida, e assim partíamos. As ruas eram limpas, como tudo no Japão,

a poeira fixada no chão com água fresca e os paralelepípedos brilhando. As

montanhas avançando para o mar eram de um verde reluzente, o mar de um

azul faiscante sob o sol da manhã, se o dia era bonito. Rodávamos através da

cidade numa irrequieta velocidade, passando por centenas de colegiais de

roupas alegres e entrávamos no campo sobre estradas de cascalho entre

campos de arroz maduro. Há momentos em que penso que o Japão é o país

mais belo do mundo. Mas o encantamento da Ásia consiste em que cada país

é belo à sua própria maneira. Dizemos Ásia e penso em termos de um vasto

continente enxameante, os povos indiferençáveis um do outro, mas nada

pode ser mais equivocado. Os países e povos da Ásia são tão diferentes um

do outro como podem possivelmente sê-lo. Mais diferentes que os

americanos dos europeus. "Isto é seguro", como dizem meus vizinhos

holandeses da Pensilvânia. Na verdade, a índia e a China são duas grandes

civilizações-mães, e sua influência espalha-se sobre as terras e culturas

vizinhas, no entanto cada terra e cada cultura, reconhecendo a influência,

desenvolveu-se com uma graça individual e peculiar.

Chegando à casa da fazenda, onde uma platéia interessada nos esperava,

atravessávamos o portão todas as manhãs e encontrávamos tudo pronto para

nós. A família se havia levantado, desfeito as camas, comido e saído para

passar o dia fora. De quando em quando algum deles vinha ver o que

estávamos fazendo, mas a cortesia a proibia qualquer comentário, fosse o

que fosse o que pensassem. Os aldeões vizinhos, porém, vinham olhar

francamente e se revezavam.

O primeiro grupo, que vinha cedo, era sempre de colegiais. Era óbvio

que se haviam levantado cedo e paravam a caminho da escola. Mostravam-

se comportados e silenciosos, olhando sem piscar. Precisamente às oito e

quinze deixavam-nos, incorporados, para começarem as aulas às oito e meia.

O contingente seguinte era de mães, que a essa hora já tinham arrumado as

casas e providenciado o almoço. Chegavam com os bebês amarrados às

costas e não se mostravam tão polidas. Não conseguiam refrear exclamações

sussurradas e risadas abafadas com as mãos. Saíam, também precisamente,

às onze e meia a fim de tratarem de alimentar seus maridos trabalhadores.

Por volta das três horas, os avós e os velhos da aldeia, após terem comido e

tirado a sesta, vinham passar o resto da tarde conosco. Às cinco juntavam-se

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a eles os pais trabalhadores, cujo dia havia terminado. Esses ficavam em

nossa companhia, fielmente, até sairmos cerca de sete horas.

Quanto a nós, começávamos a filmar tão logo as câmaras eram

instaladas, movendo-nos de um aposento ao outro, segundo as exigências da

história. O homem do make-up e seu assistente mantinham zelosa vigilância

sobre os atores, impedindo que o calor fizesse o creme e o ruge correrem em

riachos pelas suas faces e lhes manchassem os trajes — artista autêntico e

homem encantador, o nosso homem do make-up, com suas fórmulas secretas

e escovas feitas pelas suas próprias mãos. Achei uma dessas excelentes

escovas na praia, depois de terminado o trabalho, quando ele já se havia ido

para Tóquio, e a guardei como lembrança. É feita de bambu, uma fina lasca,

e provida de uma linha estreita das melhores cerdas.

Os efeitos de som, no decorrer do dia, eram o nosso veneno. O boi mugia

no momento errado, a cabra berrava demais, embora apenas para se mostrar

cordial. Quanto às galinhas, acabamos desistindo. Nada podia refreá-las e,

conseqüentemente, cacarejam felizes em todas as cenas da casa da fazenda,

onde quer que o filme seja exibido.

O trabalho do dia continuava até que chegasse o almoço do hotel,

quando o interrompíamos por uma hora. O calor, em agosto, era assustador e

nos sentávamos embaixo do grande caquizeiro, no pátio da frente, um espaço

pequeno entre a casa e o maciço portão, mas ali nos sentávamos todos,

alguns nos degraus da casa, outros em pedras e tocos e nas beiradas da

carreta. Cada almoço era servido separadamente, dentro de uma bonita

caixinha laqueada, a bandeja de cima contendo peixe e pedaços de carne

assada, vegetais e pickles, e a bandeja de baixo cheia de arroz branco.

Grandes bules de chá, com as alças envoltas em pequenas tiras de bambu,

contra o calor, completavam nossa mais que adequada refeição. Comíamos

com pauzinhos japoneses de bambu, acondicionados em papel encerado e

postos fora depois de usados, certamente os utensílios para comer mais

higiênicos do mundo.

Em vinte minutos a refeição estava terminada e durante o restante da

hora de almoço a casa da fazenda ficava quieta. Equipe e atores ficavam

estendidos sobre o tatami, como sardinhas, adormecidos. Eu achava um

canto tranqüilo atrás de uma mesinha, perto do fundo do aposento, e me

deitava olhando as montanhas erguidas para o céu. Nuvens brancas

flutuavam contra o azul e lançavam suas sombras oscilantes. Parecia um

sonho que eu estivesse ali, que estivesse vendo meu pequeno livro adquirir

vida no país onde fora concebido, meus personagens transformados agora

em criaturas japonesas vivas, representando minha história.

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Aquele calor de agosto! Quão inquietas estavam as criaturas selvagens!

Em meio às vozes humanas o canto alto e ardente de uma cigarra chocava

repetidamente o nosso técnico de som. Para mim era um grito que evocava a

lembrança nostálgica dos quentes verões de minha infância, nas margens do

Rio Iã-tse. Sempre que as cigarras se punham a dar seus gritos agudos e

intermitentes, sabia-se que o verão tinha chegado ao seu ponto máximo. Daí

por diante podia-se, apenas, esperar por um dia de vento frio e até por um

tufão. O técnico de som, contudo, ficava furioso com as cigarras no pátio da

casa da fazenda. Gritava e meia dúzia de pessoas da equipe pulava sobre o

grande caquizeiro e batia em seus galhos com bambus. Durante cinco

minutos o vigoroso inseto ficava quieto, mas depois escutávamos o seu grito

serrando o ar. Desta vez os homens trepavam no caquizeiro e começavam a

sacudi-lo até que as folhas se punham a cair e os frutos verdes a tremer.

Durante meia hora, pelo menos, a cigarra se mantinha prudente, mas depois

começava de novo sua interminável canção. Éramos, porém assaltados por

outras criaturas. Um galo orgulhoso anunciava o nascimento de cada ovo

que seu harém botava. Galinhas brigavam e gritavam. No meio da multidão

curiosa um bebê chorava e tinha de ser afastado.

Um dia tivemos alguma sorte. Quando a nossa pequena Setsu saiu

correndo pelo portão da casa da fazenda, com as mangas de seu quimono

esvoaçando, surgiu por acaso a mulher mais velha do mundo, curvada sob o

peso de um monte de gravetos. Tinha um belo rosto velho, enrugado e

moreno, mas seus olhos eram tão jovens quanto a própria vida. Convidamo-

la a figurar em nosso filme, ela aceitou graciosamente e posou, endireitando-

se para a ocasião e segurando seu comprido bordão, enquanto seu velho

rosto alegre assumia uma expressão de nobreza. Nosso assistente de make-

up, com equivocado zelo, correu a arrumar as dobras de seu quimono, que se

abrira deixando um vislumbre de seus velhos seios, mas lhe gritamos que o

deixasse como estava antes, e assim aparece no filme. Vemo-la caminhando

pela estrada, curvada sob a sua carga, enquanto a pequena Setsu passa

correndo. Queríamos pagar-lhe, mas nos asseguraram que magoaríamos seus

sentimentos. O máximo que pôde ser feito com dignidade foi dar-lhe alguns

maços de cigarros, o que fizemos, e ela continuou seu caminho.

Chuva e sol alternavam-se através dos dias. Nossos atores trabalhavam

bem e se tornaram um grupo conjugado. Começamos a expressar os

personagens e vivíamos dentro da história. Lembro-me de que um dia

terminou com o episódio em que Toru é levado para casa, depois da ressaca,

quando o rapaz desperta de seu estupor, e ele pergunta onde está seu pai e

onde está sua mãe. Uma súbita compreensão emotiva invadiu

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simultaneamente os atores. Eles sabiam, eles compreendiam tudo aquilo

muito bem. Lágrimas saltaram dos olhos da mãe da atriz, e eu senti um nó na

garganta, pois de súbito eles haviam retratado um momento de absoluta

realidade.

A última cena daquele dia candente foi ao ar livre, no curral. Era quase

crepúsculo, a multidão somava centenas de pessoas de todas as idades.

Formaram um anel à nossa volta, sempre quietas e respeitosas, enquanto os

atores preparavam o cenário, completo com carroça, boi, produtos da terra e

família de lavradores. Desta vez nossa família incluía o patinho e o cão de

Setsu. O pato, que no argumento é um patinho, acabou sendo um pato

enorme, o avô de todos os patos vivos, e quando Setsu lutava para conservá-

lo debaixo do braço, lembrei-me de Alice no País das Maravilhas e do

flamingo no jogo de croquet com a Duquesa. O cão, alegre, do tipo fox

terrier — embora o rabo fosse diferente, portanto não sei de que raça era —

não se pôs a cabriolar inocentemente como se esperava que fizesse, mas

insistiu em perseguir as galinhas como um louco, apavorando uma galinha

com uma grande família de pintinhos, para não mencionar uma quantidade

de frangas brancas que aparentemente nunca tinham visto um cachorro. O

pato foi levado para fora de cena por Setsu, o cão controlado e castigado, e a

cena continuou.

Nesse momento ouvi um cacarejar humano atrás de mim, enquanto o Pai

descarregava a carroça. Os cacarejos eram risadas de dois sujos lavradores

na multidão, que não se agüentavam com o divertimento que sentiam com a

maneira pouco realista com que o Pai manejava a vara e os dois cestos. Eles,

obviamente, não acreditavam que fosse um lavrador. Quanto à Mãe, quando

apareceu, foi a vez das mulheres rirem. Nenhuma delas era bonita, e a Mãe

era bonita. Assim, como podia ela ser uma esposa de um lavrador? Era um

problema. Talvez a Mãe fosse demasiado bonita. Mas pode uma mulher ser

bonita demais num filme?

A cena terminou afinal e estávamos nos preparando para a próxima,

correndo contra a escuridão que cai tão depressa neste clima quente, quando

de súbito ouvi latidos altos como de um cachorro enorme e velho. Não pude

imaginar o que fosse. Não havia cão indígena na fazenda. Dirigi-me ao

estábulo para investigar e vi um porco. Não podia ser porco, pois latia como

cão. Mas era porco, um enorme porco velho de ar brigão. Perguntei, por

meio de um intérprete, por que motivo o porco latia como cão, se não era

cão. A resposta foi simples:

— Não sabemos por que porco late como cão.

Isto foi tudo. O porco continua a latir, a noite caiu, o assistente do

cameraman anunciou que não podíamos terminar a cena seguinte porque a

luz, na montanha, estava fenecendo. Reunimo-nos e partimos. O porco parou

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de latir, a multidão mergulhou na noite e nós também mergulhamos. Outro

dia havia passado. Amanhã era domingo e nós iríamos descansar, embora

tivéssemos sido avisados que não deveríamos esperar mais domingos de

folga. Já bastava para aquele dia — pensei apenas no banho e na cama.

Banho japonês e cama japonesa.

Levantou-se durante a noite tamanho vento que pensei que estivéssemos

sendo açoitados por um tufão. O sonho era uma reminiscência da infância,

suponho eu, ou de uma vida anterior na ilha, ou talvez apenas a própria A

Grande Onda, criado pelo meu próprio espírito. Talvez não fosse mais que a

conversa da noite anterior, com a mulher do hoteleiro. Esta hospedaria,

dissera-me ela, havia sido freqüentemente açoitada pelos tufões, o derradeiro

fora apenas no último ano, quando o mar invadiu aquela própria sala em que

eu estava instalada. Seja como for, acordei, ouvindo o vento, e lembrei-me

de uma tarde de agosto, há muito tempo. Eu me achava na encosta de uma

montanha voltada para o mar, ao sul do Japão. Um tufão se estava formando

em alguma parte, no horizonte. Nós havíamos sido advertidos e, de acordo

com o bom senso, devíamos estar em segurança dentro de uma casa, com as

janelas pregadas com sarrafos e as portas protegidas com barras. Ninguém

sabe o que um tufão pode fazer. É incontrolável e, por conseguinte,

imprevisível. É a libertação de uma força insensata e sua única tarefa é a

destruição.

Mas eu vira muitos tufões, na minha infância asiática, e tive o desejo de

ver mais um, naquele dia. Um tufão é muito parecido com um furacão, mas

os furacões que eu tinha visto em Nova Inglaterra e na Pensilvânia não eram

tufões. O trópico ou a proximidade do trópico fornece uma força vulcânica

ao vento e à chuva. Nós vivíamos num clima subtropical, a trezentos

quilômetros do Oceano Pacífico, mas até hoje me lembro da ordem severa de

meu pai e da fisionomia ansiosa de minha mãe:

— Vem,vindo um tufão! Ponha as trancas nas janelas e passe o ferrolho

na porta!

Sentamo-nos esperando e ouvindo, enquanto o céu escurecia e o

primeiro rugido do vento aumentou para um rosnar raivoso. Árvores se

quebrariam, muros desmoronariam e a própria casa tremeria, quando

chegasse o ataque, mas nada podíamos fazer senão esperar e ouvir. Quando

terminou e o silêncio caiu afinal, abrimos as portas e as janelas. O que vimos

era sempre o mesmo — destruição por toda parte.

— Estúpido, dizia minha mãe. — Tão estúpido!

Foi a lembrança de seu invariável comentário que me deu a idéia de

fazer uma história com o tufão e me levara à encosta da montanha, naquela

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manhã há tanto passada, numa visita anterior ao Japão. O rádio havia

anunciado um tufão.

Chegara logo depois de uma hora, precedido por um estranho e distante

ruído sobre o horizonte ascendente. Eu me abrigara debaixo de uma rocha,

no que era uma espécie de caverna, tendo-me certificado de que essa rocha

fazia parte da coluna da montanha e não era urna pedra traiçoeira que a

tempestade fizesse cair sobre mim, esmagando-se. Certificara-me, também,

de que me achava num ponto bastante elevado, na montanha, onde o mar não

poderia alcançar-me. E tomara o cuidado de verificar que não havia árvores

por perto, que caíssem sobre mim. Tudo considerado, estava tão segura

quanto uma pessoa decidida a correr um risco podia estar.

Lá fiquei eu sentada, esperando, mas desta vez sem família ou casa que

me abrigassem. Foi uma experiência profunda, terrificante e compensadora,

e me proporcionou a cena que eu desejava para o começo da história.

Deixem-me descrevê-la da melhor maneira que posso. O tufão veio do mar,

primeiro, como um profundo rugido cavo. Então apareceu como uma

monstruosa nuvem negra. A nuvem parecia uma coisa viva, modelando-se

desta e daquela maneira, rasgada por ventos conflitantes. Embora podendo

esticar-se para a direita e para a esquerda, estendia-se para o alto e se

projetava em direção a este e oeste. O dia adquiriu a escuridão do crepúsculo

e o terrível rugido veio correndo em direção a mim, provindo das

profundezas. Acocorei-me atrás da minha rocha e esperei.

A princípio, lembro-me, não havia chuva, apenas os ventos selvagens e o

mar agitado. Uma hora antes o mar estivera calmo e azul. Agora estava

negro e tarjado de cristas de espuma branca. Quando a chuva chegou, foi de

repente, como se as nuvens se tivessem aberto e a derramado. Uma cortina

de chuva caiu entre a montanha e o mar, uma sólida folha de água, a um

metro de distância de mim. O capim e as moitas da encosta da montanha

achatavam-se sob o vento e a chuva. Eu estava cercada da loucura, da

irracionalidade de uma energia incontrolada e indisciplinada. Nada disto

fazia sentido. Era pior do que inútil — era a natureza destruindo sua própria

criação, seu próprio ser. Criar mediante o longo processo de crescimento e

depois destruir num acesso de emoção selvagem — não era isto loucura, não

era isto irracional? Eu tinha o começo da minha história.

A tempestade esgotou-se afinal. Os ventos se dispersaram, a chuva

reduziu-se a uma garoa e a uma neblina, a nuvem abriu-se ao meio e o sol

brilhou através dela. Saí de meu abrigo e contemplei as ruínas que tinham

ficado. Árvores haviam caído nas partes mais baixas, frestas tinham sido

abertas na terra entre as rochas, o próprio capim e os arbustos jaziam

achatados e exaustos. Eu podia apenas imaginar a devastação que se abatera

sobre as aldeias ao longo da costa, os barcos de pesca quebrados e atirados

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ao mar, casas esmagadas, quebra-mares rompidos, diques desmoronados.

Era, como minha mãe dizia, tudo muito estúpido. Era inútil.

Eu vira a mesma devastação ocorrer na vida humana, em seres humanos,

em termos de emoções humanas.

Jazia ali, em minha cama japonesa, anos depois, e meditava na similitude

da energia do tufão e da energia da emoção humana. Incontrolada, destrói.

Mas deve a emoção ser destrutiva? E se não, quando é valiosa e por quê?

Como podemos usar a emoção como energia útil, como energia necessária à

vida? Quais as utilidades da emoção e quais as disciplinas necessárias ao seu

uso útil? Estas eram as perguntas que eu ansiava por responder, primeiro

para mim mesma, depois para os outros. Coloquei-me em primeiro lugar

porque sou a lente através da qual vejo os outros.

E, como sempre, quando não posso responder minhas próprias

perguntas, ponho o espírito e o coração à procura dele. Ele não podia

responder, não sempre, mas tinha o talento de orientar a busca por perguntas

próprias, engenhosas e ampliadoras. A sua não era uma mente profunda. Não

posso fingir que ele sempre me podia acompanhar na busca de conclusões

que vinham uma a urna, através das quais a pessoa continua, não como

absolutos, mas como passos em direção à verdade. A própria verdade não é,

naturalmente, absoluta. Talvez, de fato, impregne o processo, existindo em

tudo e em toda parte, um todo do qual, em qualquer etapa só vemos uma

parte. Ele não possuía a mente conceptual nem tinha a disciplina do erudito,

na qual eu fora treinada. Estava entendido que havia muita coisa que não

podíamos partilhar. Nossas naturezas eram essencialmente diferentes.

Nossos prazeres, mesmo na música e literatura, eram desiguais. Ambos

amávamos a música, por exemplo, porém eu me sinto mais feliz quando

estou trabalhando numa sonata de Beethoven ou em Chopin. Ele gostava de

música leve, da qual eu também gosto, mas só como caviar. Por outro lado,

sou profundamente interessada em jazz, não tanto musicalmente como

psicologicamente, e ele não tinha interesse em jazz sob nenhum aspecto. Ele

também não tinha interesse pela ciência, embora nutrisse um interesse

acadêmico pela tecnologia. Como era um ateu decidido, podia aceitar mas

não partilhar meu interminável envolvimento com os físicos teóricos e a

tremenda significação de suas descobertas recentes.

O que ele tinha era uma brilhante mente intuitiva e, o que era mais raro,

a capacidade de apreciar o que não podia compreender. Ele estimulava, por

meio de perguntas engenhosas, nunca parecia conduzir, embora não

acompanhasse, descobria sem modelar. Proporcionava uma atmosfera na

qual eu podia pensar mais claramente, criar mais espontaneamente do que

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poderia ter feito de outro modo. Podia ouvir-me pensar em voz alta em torno

ou sobre um assunto que me interessava, permitindo-me divagar livremente

como se estivesse só, suas perguntas nunca sendo marcos orientadores mas

convites a tomar caminhos que eu sozinha talvez não tivesse notado.

Compreendo que agora — ai — não tenho ninguém com quem

conversar. Silêncio, minha alma!

O programa demandava trabalho ao ar livre; uma cena de piquenique

com a pequena Setsu, uma cena de colheita, depois campo e semeadura, mas

estava chovendo de novo. Continuamos, não obstante, até um ponto em que

se podia ir caminhando, um lugar encantador com uma encosta terraçada e

no fundo um velho e cinzento cemitério japonês. Era sobre um desses

túmulos de pedra que Setsu tinha de esperar, com a comida, pelo Pai e

Yukio, com aqueles maus e desastrosos resultados que não devo contar aqui.

O contraste entre os velhos túmulos cobertos de musgo e a nossa bonita

menina era o contraste entre a vida e a morte, e eu estava ansiosa por ver a

cena. Esperamos nos automóveis enquanto a chuva caía. Uma bondosa

família de lavradores convidou-nos a que nos abrigássemos em sua

confortável casa e aceitamos, gratos. A mulher preparou-nos chá e

discutimos o que fazer. Aqui, montanhas e mar combinavam-se para fazer do

tempo um mistério ainda mais incerto do que na maior parte do mundo. O

céu tinha a aparência de que continuaria a esvaziar-se por mais quarenta

dias. Decidimos ir à casa da fazenda e filmar uma cena de chuva,

apropriadamente, e um interior de cozinha. O diretor assistente iria a Kitsu,

nossa aldeia de pescadores, a fim de preparar a cena em que os botes saem

na chuva para a pesca do tubarão.

A manhã, porém, foi um desapontamento. O dilúvio continuava. O pátio

da fazenda transformou-se num lago de lama e os beirais de sapé pingavam

tristemente. Dentro da casa a equipe trabalhava sem entusiasmo. O

cameraman passou maus momentos até começar o trabalho, o diretor ficou

impaciente e eu entediada. A primeira cena foi montada por diversas vezes e

o câmara cometia repetidamente algum monstruoso engano. Era meio-dia

quando ficamos realmente prontos para filmar a cena de chuva e então o sol

apareceu, fraco, mas suficiente para nos obrigar a preparar uma chuva

artificial. E assim, num dia chuvoso, os homens treparam no teto da casa e

puseram em funcionamento a melhor máquina de chuva do mundo, isto é,

um bambu oco, cheio de furos, com uma mangueira de borracha ligada numa

das extremidades e a outra vedada. Um belo jorro de chuva artificial

começou a pingar dos beirais no lago da lama feito pela verdadeira chuva.

Fizemos afinal uma tomada e chegou a hora do almoço. O dia era tão triste

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que nem mesmo o almoço foi bom.

A cena da cozinha e a da praia chuvosa foram das melhores que

filmamos. A cena da cozinha era o terremoto. Nossa mãe lavradora, cheia de

confusão, corria de um lado para o outro, tentando salvar sua louça. Estava

tão desolada que esqueceu de pôr no chão uma cesta de ovos e estes se

quebraram, aumentando a confusão. Nada há, de fato, mais confuso que uma

cesta de ovos quebrados, especialmente quando uma mulher se esquece de

pô-los no chão antes de correr pela sua cozinha tentando salvar seus pratos

durante um terremoto, e ainda vê por cima que a lâmpada de azeite está

ardendo e pode atear fogo na casa. Foi uma cena e tanto. Nossa mãe, agindo

com realismo, cortou o pé duas vezes nos vidros quebrados, dando assim

oportunidade à nossa enfermeira, que éramos obrigados a ter sempre

conosco, de salvar a vida de alguém. Ela avançou com ar de importância e

aplicou uma fita adesiva no pé da Mãe. Ficamos impressionados com tal

eficiência e nos alegramos um pouco.

Pura teimosia me impedia de desistir e tomar meu lamacento caminho de

volta ao hotel, e eu estava contente. Com aquela inexplicável reviravolta que

parece inevitável quando acontece o pior, o trabalho da tarde tornou-se de

súbito excitante. Foram dispensados os ateres da casa da fazenda pelo resto

do dia e chamada a família de pescadores para as cenas de praia. Terminada

a cena de chuva, o Sol se escondeu e começou de novo o dilúvio. Tornou-se

aparente, agora, que o diretor americano tinha a intenção de dispensar-me

também, com o pretexto da tempestade, chuva, ondas violentas e o mais.

Quando me neguei a ser dispensada ele fez vagas sugestões de que eu

poderia quebrar uma perna ou qualquer outra coisa no íngreme e estreito

caminho que descia a Kitsu, e ele já estava cheio de quedas. Recusei essa

argumentação ridícula, pois minhas duas casas favoritas ficam na zona rural

da Pensilvânia e nas montanhas de Vermont, e eu ando prodigiosamente por

toda parte, trepo em tudo como uma cabra e nunca escorreguei ou caí, a

menos que alguém me tivesse deixado cair do colo, quando era bebê, do que

aliás não me lembro. Convidei esse diretor a não se preocupar comigo,

limitando-se a voltarmos ao hotel, se eu estava num dos automóveis. E assim

rumamos para Kitsu.

Nunca deixarei de ser grata por ter ido, pois a experiência me deu... bem,

aqui está:

Desci pelo estreito e sinuoso caminho do penhasco sem acidente, e desci

à praia, fingindo, ostensiva e indiscretamente, que não me achava lá. Chovia

gloriosamente, a água caía a cântaros, o que adoro. Eu estava totalmente

protegida pela minha capa e chapéu, bem como por vários guarda-chuvas

mantidos sobre minha cabeça por bondosos aldeões. Minha única queixa no

Japão é que o povo é tão bondoso que sempre descubro um guarda-chuva

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sobre minha cabeça, um leque na minha mão e uma almofada onde me sento.

Enquanto o diretor moldava a sua cena e espreitava pela câmara, eu me

recostei no alto muro fronteiro à casa de Toru e olhei para o mar e o céu

cinzentos. Nosso ator, o pai de Toru, era um pescador e, ao receber o sinal,

começou a soprar numa grande concha, convocando os botes.

— Corte! gritou o diretor.

Cortamos. A aldeia inteira estava na praia, debaixo de enormes guarda-

chuvas, para observar o que se passava e algum menino descuidado

atravessara correndo a cena em busca de um lugar melhor no outro lado. O

principal da aldeia, que era nosso aliado remunerado, proibira qualquer ruído

ou movimento e o incidente provocou-lhe um ótimo paroxismo de fúria. Não

falo nem compreendo japonês, mas podia perceber que eles estavam

chamando os seus concidadãos de bando de cabeças duras, estava querendo

mostrar ao mundo que espécie de idiotas eram, ignorando que, quando se

atravessa uma cena, estraga-se o filme que estava sendo feito por aqueles

americanos, na aldeia de Kitsu, pela primeira vez na história, um lugar

desconhecido até agora, como terra de crianças e de tolos? Todos

começaram a rir encabulados e recuaram cerca de seis polegadas. Súbito,

outro menino, que não havia escutado, passou correndo por entre as pernas

terrivelmente arqueadas e cabeludas do próprio principal, não se lembrando

de fechar antes o seu guarda-chuva. O resultado foi desastroso, o guarda-

chuva ficou inutilizado.

Faço aqui uma pausa de um momento para recordar afetuosamente

aquele principal da aldeia de Kitsu. Tinha a cabeça redonda e raspada, rosto

áspero e radiante, pernas tortas como as de um caranguejo, uma vontade de

ferro e o coração próprio de um rei. Era um ditador, naturalmente, e

governava seu povo de maneira absoluta. Todas as noites lhes dizia o que

podiam e o que não deviam fazer no dia seguinte. Assim, depois do

repreensível comportamento dos meninos, os aldeões foram proibidos de

olhar para nós ou de ficarem por perto. Tinham de continuar suas tarefas

habituais como se não estivéssemos lá, exceto, como favor especial, durante

uma hora, entre as cinco e as seis, mas não podiam ficar a menos de quinze

metros de distância para olhar-nos, e em completo silêncio. Seu entusiasmo

pelo filme era comovedor, pois estava convencido de que a história era a seu

respeito. Como Toru, toda a sua família tinha sido varrida por uma ressaca,

quando ele era apenas um menino.

Postada ali, com as costas contra o úmido dique, eu observava o

cameraman tomar uma adorável cena dos pescadores carregando suas redes,

correndo para o mar e impelindo seus barcos de pesca por entre as ondas e a

chuva. O câmara correu então para o grande quebra-mar, que formava uma

plataforma ideal para a filmagem dos barcos rumando para o alto mar. Os

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aldeões correram atrás do câmara e eu fui engolida pela multidão. Quase fui

empurrada do quebra-mar abaixo, para dentro d'água, o que daria tanta razão

ao diretor que eu possivelmente teria de tomar o primeiro avião para casa a

fim de escapar à ira de Deus. Mas felizmente fui salva por um robusto aldeão

que respirou càlidamente no meu rosto — tinha mau hálito, ai, e da pior

espécie, uma pena, pois era um homem muito gentil. Disse-me, respirando

forte, que me tinha visto na televisão de Tóquio, pediu permissão para

manter seu guarda-chuva sobre minha cabeça e... por que não havia alguém

cuidando de uma pessoa tão importante como eu? Respondi que ninguém

cuidava de mim quando estávamos fazendo filmes, e obrigada, não precisava

de guarda-chuva porque tinha chapéu impermeável, e assim escapei dele,

sentando-me no cais de pedra e contemplando a impecável beleza dos barcos

de pesca japoneses navegando para o mar alto.

Deixo de lado toda a prosaica rotina, o fato de os terem mandado voltar

para partirem de novo porque o cameraman estava com a câmara travada e

não pôde filmar e então desconfiou que havia algo de errado com a câmara,

tendo o americano observado amargamente que a única coisa errada era o

cameraman, e outras conversas miúdas desse tipo. Deixem-me apenas falar

de mim, sentada na chuva, aquela chuva oblíqua que Hokusai tanto gostava

de retratar em suas gravuras. Cercada pelas verdes colinas terraçadas, as

montanhas mais altas envoltas em nuvens e olhando sobre o mar infinito,

contemplei o regresso dos barcos e os vi contornarem o extremo do quebra-

mar. Como eram belos, como eram soberbos em forma, velocidade e graça!

Havia três homens em cada bote, todos remando, não com a agitação dos

remadores ocidentais, mas suavemente como um peixe nada, pois esses

remadores nunca levantavam seus remos acima da água. Estudei o ritmo

daqueles remos. Era em terças contraponteadas, nenhum remo movendo-se

no mesmo instante que o outro, mas todo o movimento fluindo

harmonicamente. Súbito reconheci o ritmo — era o das nadadeiras de um

peixe. Os barcos moviam-se através do mar como um peixe movimenta suas

barbatanas. Senti a profunda satisfação da conclusão certa. Era exatamente

isso e eu me mostrara lenta em compreendê-lo só nesta etapa tardia da minha

vida, embora houvesse observado esses barcos desde quando era menina,

passando muitos verões no Japão.

Os botes fizeram-se de novo ao mar, numa longa fila. Viraram para a

esquerda, acompanhando a curva da baía até serem ocultos por uma ponta

rochosa, sobre a qual se erguia, por acaso, a figura de um homem, solitário e

desconhecido, fitando o horizonte. Que belo! É suficiente para o dia.

Agradeço a Deus, e possa eu ver o belo, toda a minha vida, com a mesma

clareza!

Regressei em grato silêncio, lembro-me, tomei meu banho e jantei. O

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banheiro era grande e duas pequenas janelas de vidro opaco davam para a

piscina lá fora. Podia ouvir os nadadores gritando e rindo, enquanto eu me

banhava. Teto e paredes de ladrilhos brancos, a banheira quadrada de

cimento ladrilhado, com um metro e vinte de comprimento e igual

profundidade, um dos extremos erguido para formar um assento e manter,

assim, minha cabeça acima da água. Estava sempre cheia de água mineral

quente, suave à pele. Mas por que falo da banheira? Mas eu sabia que era

melhor não entrar na banheira sem uma preparação adequada, que consistia

em encher de água uma pequena tina de madeira, sentar-me num pequeno

tamborete de bambu no centro do chão ladrilhado, com a tina diante de mim,

ensaboar-me inteiramente e derramar água sobre o corpo. Só depois disso

estava preparada para a banheira grande. Quando saía dela, haviam

desaparecido todos os pontos doloridos e toques de fadiga. Sentia-me

restabelecida e renovada.

Sentei-me, naquela noite, junto da janela, recordo-me, vestida numa

fresca yukata, e ouvi os nadadores, na piscina lá fora, mergulhando, gritando

e rindo. Passara aquele dia mergulhada no belo e agora me parecia

insuportável não poder falar-lhe a esse respeito. Talvez ele soubesse... mas

se não podia comunicar-me seu conhecimento, como seria eu confortada? Eu

me havia conduzido tão bem, pensei, e de repente compreendi que não.

— Isso não melhora, tinha-me advertido uma viúva amiga. — Isso fica

pior.

Que significa pior? Como podia ficar pior do que isto? Quis de repente

afastar toda lembrança do belo e contudo sou das que não podem viver sem

beleza — e não me permito chorar. Pensei que estivesse indo bem. Achava

que ele devia sentir-se orgulhoso de mim, caso me estivesse observando de

algum lugar distante. Agora eu precisava novamente de socorro,

urgentemente. Onde encontrá-lo? A beleza me havia desmanchado, tornara-

me fraca e saudosa. Os estranhos deviam ser de novo o meu refúgio. Tirei a

yukata, enfiei o vestido e saí a perambular novamente pelas ruas, sozinha.

Não longe da porta dos fundos do hotel, numa estreita rua pavimentada,

descobri o cinema. Era o único da cidade, e muito bom, com um palco

espaçoso, os assentos confortáveis. O proprietário, como cortesia, avisara-

nos que não precisaríamos pagar entrada enquanto estivéssemos em Obama.

Com a passagem dos dias, adquiri o hábito de enveredar pela rua no frescor

da noite e escolher uma poltrona ao lado de uma coluna laqueada de

vermelho. Ao meu redor estava a multidão japonesa, de homens em sua

maioria, pois não havia bares em Obama e talvez aquele fosse seu único

refúgio de crianças choronas e esposas sobrecarregadas. Havia, é certo, três

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velhas geishas na cidade, porém eram mais ou menos honorárias e se haviam

tornado respeitáveis membros da comunidade, agora que se tinham

aposentado do negócio ativo. Não podiam, certamente, ser consideradas

fontes de distração para homens cansados.

Os filmes eram reveladores. Receio que as películas mais suaves e mais

artísticas, feitas no Japão, são as enviadas ao estrangeiro para consumo

externo. O material autêntico é conservado em casa e especialmente para

áreas remotas, das quais Obama era, sem dúvida, uma. As emoções, na tela,

eram violentas, primitivas, repetidas e para mim altamente divertidas. Tudo

era supercolorido, tanto literal quanto simbolicamente. Os vermelhos eram

da cor do sangue, os verdes venenosos, os azuis sulfurosos. Igualmente

extremista era a ação. Nunca bastava um só estupro num filme. Vi, através

das noites, a mesma pequena ser estuprada duas e três vezes por um homem

ou por vários homens. O tiroteio, obviamente copiado dos nossos selvagens

westerns, era muito mais selvagem. Todos atiravam em todos até que restava

só um homem que, por sua vez, atirava em si mesmo. Cheguei à conclusão

de que seria uma boa diversão noturna quando todas as mulheres fossem

violentadas e todos os homens mortos. A platéia dava então um suspiro de

felicidade e se levantava num estado de sonho para voltar às suas mulheres e

crianças. No entanto aqueles mesmos homens eram sempre delicadamente

corteses com os estrangeiros e gentilmente polidos um com o outro. A

natureza nipônica não é tão complexa quanto simplesmente contraditória.

Refletindo sobre as emoções cruas, eu observava sem participar. Parecia-

me que o ciúme era a paixão predominante, com a violentação e o

assassinato como resultado inevitável. Eu riria disso, mas recordo agora um

incidente ocorrido em minha própria casa e conhecido como o "Caso do

Prato de Madeira".

Fôramos à Escandinávia, certo ano, ele e eu, numa viagem combinada de

prazer e negócios, e paramos em Copenhagen para visitar alguns amigos. Ao

jantar, em nossa primeira noite, admirei alguns belos pratos de madeira e

exprimi o desejo de comprar uma dúzia para a nossa casa da Pensilvânia. E

assim fiz, na manhã seguinte, remetendo-os diretamente para casa. Quando

regressamos, os doze pratos de madeira já se achavam lá, desembrulhados e

esperando. Pareciam ainda mais bonitos do que eu me lembrava e os usamos

em nosso primeiro café. As crianças se haviam levantado mais cedo naquela

manhã e tinham tomado café com a sua babá, pois chegáramos tarde na noite

anterior. Estávamos só os dois, portanto, ele e eu.

Durante anos, depois desse café,, minha governanta e outras pessoas

insistiam em perguntar-me por que só havia onze pratos de madeira e

durante anos eu dei respostas vagas. Onze pratos? Tinham certeza de que só

havia onze pratos? Eu mesma precisava contá-los... et cetera.

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A verdade é que eu sabia que só havia onze pratos. Quando ele e eu

começamos a tomar café naquela manhã havia doze, mas quando

terminamos havia só onze. Eis como aconteceu — e começo por dizer que é

maravilhoso e, pela graça de Deus, uma falta da pessoa amada não constitui

impedimento para o verdadeiro amor. Reconheço assim, que essa foi a sua

única falta... ou quase a única, a não ser que, como já disse, ele não podia

bater um prego sem deixar uma marca azul e preta no polegar, de modo que

seguiu sensatamente meu conselho e desistiu totalmente dos martelos. Sua

única falta, portanto, era o ciúme! A princípio isto me fazia rir, pois jamais

compreendi o ciúme. Se ele, por exemplo, se apaixonasse por outra pessoa

que não eu, ou simplesmente se sentisse atraído temporariamente, não me

posso imaginar com ciúmes. Se o amado pode encontrar alguém melhor que

a que já possui, como se pode ter a coragem de privá-lo dessa alegria?

Quanto à atração temporária... bem, a pessoa sempre pode pensar em alguma

outra coisa enquanto a história dura e há muitos interesses agradáveis para os

quais a vida só nos proporciona muito pouco tempo. A música pode encher

as vinte e quatro horas do dia, e também a escultura e a jardinagem,

especialmente de rosas e camélias — e também ler, escrever, melhorar o

aspecto da casa, caminhar pelos bosques, guiar automóvel, voar, nadar,

velejar e, acima de tudo, conversar com pessoas interessantes.

Ai, era esta última ocupação que causava o conflito. Não posso resistir às

pessoas interessantes e algumas destas são homens, embora para mim o

ponto importante não é que sejam homens ou mulheres. Um bom cérebro é

igualmente fascinante quer seja macho ou fêmea a caixa craniana que o

contém. Mas não para ele. Ele, o mais calmo, o mais frio e o mais sábio dos

homens, podia mostrar-se absurdamente ciumento se o cérebro que me atraía

fosse contido pelo crânio de um homem. Digo absurdo porque era assim que

me parecia a princípio. Eu não tinha intenção de limitar a conversação às

mulheres e assim o disse. Fiz uma pilhéria com a história toda, mas ele não

riu. Isto me surpreendeu e depois me aborreceu, mas escondi o

aborrecimento tão graciosamente quanto pude.

Durante nossa viagem pela Europa ele se mostrara melhor que de

costume e eu conversara com muitas pessoas interessantes sem pensar nas

conseqüências. Naquela manhã particular, em casa, conversávamos enquanto

comíamos, ríamos sobre certos fatos passados e nos divertíamos como de

hábito. Era uma adorável manhã, o sol brilhava sobre a mesa do café, a jarra

de rosas difundia sua fragrância, e saboreávamos os ovos e o toicinho de

nossa própria fazenda. Eu havia acabado de louvar com admiração o efeito

produzido pelo toicinho e pelos ovos em nossos pratos chineses azuis, sob os

quais estavam os pratos de madeira que tínhamos comprado em

Copenhagen, quando aquele homem querido e habitualmente previsível

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olhou-me do outro lado da mesa e parou de rir. Eu o fitei, surpreendida, e vi

que seus celestiais olhos azuis estavam começando a ficar verdes.

— Que há de errado? exclamei.

— Esses pratos, tornou ele. — Lembram-me aquele dia, em

Copenhagen.

— Mas por que... comecei e fui interrompida. Sua voz era fria como aço.

— A maneira pela qual você" falava a... a maneira pela qual você sorriu

de...

Agora fui eu que o interrompi, mas não com palavras. Estava furiosa

demais para isso. Não sou mulher colérica, nem querelante, nem discutidora.

Os repórteres me chamam de "fala macia", creio. Têm razão. Falo macio e

até mesmo gentilmente, de uma maneira um tanto rude. Fui, também,

exercitada na tradição confuciana, segundo a qual uma pessoa superior

nunca fala ou age colérica mente. Naquela manhã, porém, esqueci tudo sobre

Confúcio e as pessoas superiores. Na verdade não falei colericamente porque

estava demasiado zangada para falar. Fiquei muda e cega de raiva e

obedecendo puramente ao instinto levantei o prato de madeira com o prato

chinês azul contendo o toicinho e os ovos e o espatifei no chão. A destruição

foi total, pois o chão de nossa sala de jantar era de ladrilhos. Depois saí de

casa, atravessei o prado e entrei no bosque. Lá fiquei sentada num tronco,

junto do riacho. Ali permaneci sentada durante três horas e pensei na minha

vida inteira, examinei meu casamento, pesei as vantagens e desvantagens de

estar apaixonada. A essa altura a raiva desaparecera por completo, pude rir e

me achava apta a continuar vivendo. Voltei para casa retemperada e faminta,

pois não havia tomado o café, antes do acesso de cólera. Encontrei-o sentado

soturnamente à sua escrivaninha, tentando trabalhar, e pude perceber de

modo bastante claro que ele se sentia exausto por não ter ido à minha

procura. Atiramo-nos um nos braços do outro, ele balbuciando algo sobre

perdão, mas eu não o deixei falar. Quando estávamos novamente calmos, ele

disse com uma humildade que quase me partiu o coração, pois a humildade

nunca fizera parte da sua natureza:

— Vou escrever a...

— Não mencione seu nome, interrompi com simpatia.

— Mas não devo encomendar outro prato de madeira? perguntou, ainda

humilde.

— Não, tornei eu. — Fiquemos para sempre com onze pratos de

madeira. Porque se você esquecer alguma vez, eu contarei os pratos em voz

alta, para você ouvir — um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove,

dez... onze!

O fim desta história é que vivemos felizes depois e eu nunca tive de

contar novamente os pratos, nem uma vez sequer. E continuei a manter todas

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conversações interessantes em toda parte do mundo e com qualquer um.

Um dia perfeito foi aquele em que mudamos o nosso cenário para a

mansão que era a casa do Velho Cavalheiro. Em determinado momento após

a meia-noite, acordei para uma atmosfera nova. O calor pesado do vento da

terra foi subitamente alterado por um vento oeste vindo do mar. O ar estava

fresco e claro, prenunciando sol pela manhã. Para uma manhã assim foi que

acordamos. As montanhas estavam livres de neblina, o Sol brilhava, o

mundo era novo. Entramos nos carros que nos esperavam, com absoluta

pontualidade, e rumamos para a casa do Velho Cavalheiro, ao longo dos

penhascos. Longe, abaixo de nós, quando fizemos a grande curva, barcos de

pesca recolhiam as redes, um círculo de pontos brancos juntando-se mais e

mais. Eu disse a grande curva, pois a estrada parecia sempre projetar-se dos

penhascos. No ponto exato da curva havia um altar e sobre ele um pequeno

deus de pedra, advertência aos motoristas descuidados, alguém a quem rogar

e proteger. Passava por ele todas as manhãs e, se não estava escuro, todas as

tardes também.

A casa do Velho Cavalheiro ficava perto da cidade de Issahaya, pequena

e movimentada, muito limpa como são todas as cidades japonesas, e com

muitas lojas de aparência próspera. Havia diversas lojas de cerâmica, pois os

famosos vasos de Arita eram feitos nas proximidades, mas nem a cidade nem

as lojas atraíam nossa atenção naquele momento. Logo adiante estava a casa,

com os seus tetos de telha cobertos de orvalho e brilhando ao sol da manhã.

Era uma casa majestosa, cercada por um muro, o portão de entrada

imponente, duas grandes portas de madeira com ferrolhos e dobradiças de

ferro, à direita um pequeno portão que mal dava passagem a uma pessoa.

Os portões estavam abertos, pois nossa equipe já havia chegado. Quando

entramos, os móveis ocidentais tinham sido retirados, ficando apenas os

belos objetos japoneses antigos, prontos para o nosso filme. O dono estava

em casa naquele dia — homem robusto num quimono escuro. Sua esposa

estava com ele e nos cumprimentaram bondosa e càlidamente. Suas duas

filhas também se encontravam lá, uma na casa dos vinte anos, a outra com

um pouco menos. Elas nos saudaram também com ardor e contentamento.

Não obstante, fiquei a imaginar se a família teria compreendido o que

estava para acontecer. Nossa espantosamente eficiente equipe havia

simplesmente entrado na habitação — carpinteiros, eletricistas, técnicos de

make-up e outros, transformando numa espécie de fábrica o que fora, um

momento antes, um lar pacífico, antiquado e elegante, apesar do cuidado que

os homens tomavam em não causar qualquer prejuízo. O fino tatami foi

coberto com esteiras e a equipe protegeu com papel macio os ganchos que

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fixavam os refletores no teto. O teto da casa era belo, de madeira cor de

cobre e com um acabamento macio como o cetim. Mas tudo era belo. Entre

os quartos e ao longo das varandas, finas cortinas de bambu ligadas com

cetim serviam como decoração e como biombos. Em cada aposento o nicho

de tokonoma tinha o seu rolo e o seu arranjo de flores especiais. A mesa e os

utensílios para a cerimônia do chá ficavam num aposento próprio e na

parede abriam-se painéis para revelar um altar budista em reluzente lâmina

de ouro. Os jardins não eram grandes, mas achavam-se bem ornamentados e

as grandes pedras chatas dos caminhos haviam sido dispostas com engenho e

arte. Nossos homens estavam diligentemente colocando algas nas margens e

nas frestas do caminho fronteiro e trabalharam tão bem que cheguei a pensar

que era realmente musgo, até que me informaram o contrário.

Depois de tudo pronto, sentamo-nos à espera do nosso Velho Cavalheiro,

Sessue Hayakawa. Ele havia jantado conosco na noite anterior e parecia, em

suas roupas ocidentais, um simpático homem de cinqüenta. Discutimos sobre

a velhice e nos falou que praticava yoga e esperava viver cem anos. Sessue

Hayakawa disse que sua avó morrera quando contava apenas noventa e nove

e os parentes sentiram que ela havia humilhado a família. Tendo chegado tão

longe, achavam que devia ter agüentado um pouco mais e completado o

século, como haviam feito seus antepassados.

Sessue Hayakawa não tardou a se aprontar e sua aparência era

extraordinariamente elegante nos trajes de um cavalheiro japonês antiquado

e conservador. Examinamos o seu make-up e apontamos ao técnico um

cabelo fora do lugar na barba e um canto do bigode ligeiramente sem cola. A

secretária-criada, ou criada-secretária de Sessue, abanava-o o tempo todo,

acendia seu charuto ou cigarro, dava-lhe chá e o consolava de modo geral.

Era jovem, eficiente, e cuidava dele como se fosse um velho e bom bebê, o

que talvez era. Fosse o que fosse, era também um ator profissional, um astro,

e era uma alegria vê-lo trabalhar. Entregava-se ao seu papel e ganhava

estatura à medida que o dia passava. Depois do almoço, seu ajudante lhe

trouxe almofadas e um travesseiro, ele ficou apenas com as roupas de baixo,

todas de seda branca, deitou-se e dormiu numa calma yoga enquanto a

equipe se afanava ao seu redor.

Lembro-me de que naquele dia estávamos sem os nossos dois meninos

— Yukio e Toru. Haviam ido a Nagasaki na véspera e beberam cerveja

japonesa com comida chinesa, o que não é uma boa combinação. Daí terem

passado mal a noite e não poderem comparecer ao local pela manhã. Nosso

astro queixou-se de que não podia trabalhar sem eles e por um momento o

dia pareceu frustrado. Abrandou depois e disse que se tivesse uma menina do

elenco para inspirá-lo, poderia representar. Emprestamos-lhe, assim, nossa

pequena-transístor até chegarem os meninos. Ela sentou-se ao pé da câmara,

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com seu aspecto atraente e bonito, e ele continuou com satisfação e gosto.

Lembro-me de que aquele dia inteiro foi de pura alegria. O ar estava leve

e fresco, o Sol brilhante. Encontrávamo-nos todos num estado de euforia,

penso eu, partilhando o prazer do belo ambiente e a suave graça com que o

trabalho decorria. O Velho Cavalheiro crescia ante os nossos olhos. Era

como observar um grande artista pintando um retrato. Sim, vejo, como se a

cena estivesse aqui e agora diante de meus olhos, a ampla sala japonesa, o

shoji aberto para o adorável jardim. Junto à janela, o Velho Cavalheiro, em

vestes de seda branca, erudito e aristocrata, poeta e profeta, está sentado

numa almofada diante de uma mesa baixa. Traça numa larga folha de papel

as letras de um poema.

As crianças de Deus

São muito queridas,

Muito bonitas, mas muito estreitas.

À sua frente estão ajoelhadas as duas crianças. Lê o poema em voz alta e

lhes pergunta o que significa. Elas não sabem e ele explica lentamente e com

uma grave dignidade.

O diálogo é em inglês e o seu inglês não é perfeito, porém ele é capaz de

transmitir o sentido e a atmosfera de sua própria alma. As crianças

correspondem à ilusão da realidade. Depois disso, passei o dia todo sorrindo.

A noite se aproxima e estou plena de contentamento e expectação. Chegou

agora o ponto alto da história, o momento em que o Velho Cavalheiro sabe

que a ressaca está próxima. Ordena que repiquem o sino grande e acendam

as tochas do lado de fora do portão — aviso final ao povo para que suba a

montanha e se abrigue em sua casa, de modo que se possa salvar, com seus

filhos. Receia — quase sabe — que ninguém lhe dará atenção, mas talvez

venham alguns.

Estava escuro quando nos reunimos para esta cena final e eu torno a

vivê-la enquanto escrevo. Deixem-me continuar a usar o tempo presente.

Juntou-se uma grande multidão das aldeias e dos campos. O dia terminou e

todos se acham livres para espiar o que está acontecendo na colina. Do outro

lado da estrada foi construída uma plataforma, a uma distância da câmara,

encarando o portão e a casa. Do outro lado do portão, grandes tochas estão

prontas para ser acesas. O gerente da companhia, tipo vigoroso de voz

tonitruante, sai e se dirige à multidão, conjurando-a a não fazer barulho. É a

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grande cena, lhes diz. Não se deve ouvir uma tosse ou um grito. A multidão

exclama promessas em resposta e continua a esperar. Um tempo

interminável decorre enquanto são dados os últimos retoques. O homem do

make-up está frenético, o Velho Cavalheiro tem de usar um chapéu alto

antigo, sua barba precisa estar firme de modo que o vento não possa soprar

sequer um fio. Até mesmo o criado tem de ser maquilado com cuidado.

Dão-me uma cadeira de armar, embaixo da alta plataforma e ali me sento

em tranqüila excitação, para esperar e observar. São ditas as últimas

palavras, o assistente grita o seu "aprontar... vai começar..." e o diretor diz:

"Ação!"

Começamos. Observo com um poderoso aperto no coração. Mal posso

respirar. Lembro-me quando escrevi a cena — ao terminá-la estava exausta.

Agora irei vê-la viva. O Velho Cavalheiro será capaz de representá-la como

a escrevi? Será possível que possa fazê-lo com a força e a majestade que me

foram reveladas? | Atrás de mim, no pátio, entre os circundantes campos de

arroz, encontra-se a multidão, silente e absorta. A equipe está ocupada com

as luzes e a câmara. De súbito o foco poderoso cai sobre o velho criado que

está saindo para acender as tochas. As chamas serpeantes rasgam as trevas

para revelarem o Velho Cavalheiro, aquele velho altivo, no topo dos degraus

de pedra que levam ao portão. Ele contempla o mar. Está desesperado,

aquele velho, um profeta desacreditado, contudo ansioso. Compreende

demasiado bem o que acontecerá ao seu povo, ao seu ignorante, obstinado e

bem amado povo. Sim, sim... ele é o personagem que eu criei. Vejo-o nítido

e inteiro, perfeito na concepção e no detalhe, e me surpreendo ao sentir

lágrimas deslizarem pelas minhas faces — eu que nunca choro!

Tal realização raramente ocorre a um artista — umas poucas vezes,

talvez, em toda uma vida de criação. A mim isto acontece agora

perfeitamente pela primeira vez, a feliz coincidência da criação manifestada

na carne e no espírito de outro ser humano. Sinto-me esmagada pela

necessidade de partilhar o momento com alguém — alguém! Centenas de

pessoas amontoam-se ao meu redor, pessoas bondosas mas, neste momento,

estranhas. Entre elas não há ninguém. Volto-me e caminho dentro das trevas

até o carro que espera e sou levada para longe, no meio da noite.

Naquele momento compreendi o que antes havia apenas sabido. Ele

estava morto. Não haveria mais qualquer comunicação. Se a comunicação

fosse possível, ter-se-ia realizado lá, no escuro, quando eu estava só dentro

da multidão. Ele me teria ouvido, teria conhecido a minha necessidade.

Fossem quais fossem as barreiras, teria de algum modo encontrado o

caminho até mim, caso se achasse desperto e consciente, onde quer que se

encontrasse. Ele sempre encontrara um caminho. O fato de não ter

encontrado só podia significar que a comunicação era agora impossível, ou

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que não estava nem desperto nem consciente.

O quarto de hotel tornou-se novamente intolerável. Deslizei sem ser vista

através de corredores vazios e ganhei as ruas silenciosas da cidade. Todas as

pessoas decentes já estavam na cama e até mesmo um bêbedo seguia,

cambaleando, o caminho de sua casa. Era Lua cheia — um mês se havia

passado, de algum modo — e à sua luz deixei a cidade e entrei no campo.

Silêncio, silêncio por toda parte e apenas silêncio, porque a morte é silêncio.

Não sei quanto tempo caminhei ou quão longe fui, ou mesmo onde, apenas o

longo intumescer da maré cheia. Lembro-me como era bela a paisagem, à

noite, as montanhas emergindo da neblina prateada que cobria os vales. Via

tudo e nada sentia. Era como se estivesse flutuando muito longe, numa

região estranha, na qual eu não tinha vida. Eu mesma podia estar morta, tão

profundo era o silêncio interior. Nunca tornaria a chorar. Sabia, agora, que as

lágrimas de nada adiantavam, como não havia qualquer conforto a ser

procurado ou encontrado. Havia apenas uma coisa — eu. Tolice, chorar por

mim mesma!

Dei as costas ao mar e rumei terra a dentro, andando num caminho

estreito por entre campos de arroz. O ar estava parado até que, de súbito, um

vento se levantou de parte alguma, como parecia, e eu me detive para sentir

o seu frescor no rosto. Nesse mesmo momento ouvi uma criança chorar, um

bebê, como pude compreender pelo tom agudo de sua frenética agonia. Olhei

à minha volta. Sim, uma casa de fazenda do outro lado do campo achava-se

brilhante de luzes. Estaria doente a criança? Ouvi tantas crianças chorarem

que conheço sua linguagem. Não, aquilo não era agonia — surpresa, talvez,

medo, possivelmente raiva. Era o choro de uma criança recém-nascida.

Deixei-me cair no barranco relvado, escutando. O choro parou, ouvi

risos e vozes. Então a criança era um menino! A criança era outra vida.

Deitei-me na relva, como sobre uma cama, e durante longo tempo fiquei

contemplando o céu. As estrelas não estavam visíveis, pois a Lua brilhante

descrevia seu arco através do céu e a olhei até acreditar que a vi mover-se.

Um cansaço desesperado penetrava-me os ossos, o cansaço da aceitação, a

aceitação do inevitável, a convicção do imutável. Daí para a frente eu nunca

mais devia esperar partilhar os grandes momentos de minha vida. Tais

momentos continuariam a ocorrer enquanto eu vivesse, momentos de beleza,

momentos de excitação e de regozijo; acima de tudo, momentos de

realização. Nesses momentos, ele e eu nos voltávamos um para o outro, tão

instintivamente quanto respirávamos. Isto não aconteceria mais... Não é

verdade que nunca andamos sozinhos. Há uma eternidade em que

caminhamos sozinhos e não sabemos quando acaba.

A noite chegara ao fim e a este, sob o horizonte, o Sol estava brilhando.

Era hora de voltar para o meu quarto, hora de preparar-me para o trabalho do

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dia.

O bom tempo continuou. Rumamos para a casa do Velho Cavalheiro,

onde encontramos nossa equipe pronta a começar o trabalho, já com algas

frescas nos caminhos. Nesse dia um amigo me acompanhava. Havia anos

que eu aprendera a ser grata por pequenos milagres. Era um velho amigo de

Hiroshima. Nossas relações começaram quando ele, a esposa e os filhos

vieram aos Estados Unidos para trabalhar por algumas jovens que, meninas

ainda, tinham sido tristemente feridas, mas não mortas, pela bomba atômica.

Enquanto viajava fazendo conferências e levantando dinheiro para as

despesas de hospital concernentes à cirurgia necessária à restauração de seus

rostos desfigurados, restituindo-lhes algo de sua beleza natural, a esposa e os

três filhos passaram o verão em minha grande casa. Encontrei-o esperando

por mim naquela manhã e me senti alegre ao ver sua fisionomia cordial.

— Gostaria de acompanhar-me à filmagem de hoje? perguntei.

Existe, naturalmente, algo de ator em todos os pregadores.

— Que prazer! tornou ele com o rosto iluminado. Rodando para a casa

do Velho Cavalheiro, conversamos sobre muitas coisas. Soube que

Hiroshima está reconstruída e muito maior que antes, somando agora cerca

de meio milhão de almas, cada qual com o seu respectivo corpo. Menciono o

corpo porque foi este o destruído pela bomba, e os corpos são valiosos

porque é só através deles, parece, que as almas se podem comunicar.

O dia passou ao mesmo tempo muito depressa e muito devagar. Meu

amigo de Hiroshima ficou ao meu lado, absorvido nos infinitos detalhes da

feitura de um filme. Conversávamos de quando em quando.

— Prometa-me que irá a Hiroshima antes de partir do Japão, pediu ele.

Não podia prometer. Sabia que não iria. Não era como se eu fosse

necessitada. O povo de Hiroshima sobrevivera ao desastre, aprendera que a

paz é o objetivo mais valioso da vida humana, pois quando não há paz há

morte. Se eu fosse a Hiroshima seria como turista, e eu não sou isso... não

em Hiroshima. Mas não podia explicar todos esses aspectos ao meu amigo.

Separamo-nos no fim do dia, ele para voltar à sua cidade renascida, eu

para o meu quarto. Eu estava e não estava lá. Em absoluto repouso passei a

noite num silêncio que ficava apenas a um passo do sono. Em determinado

momento da noite fui acordada por risos debaixo da minha janela. Levantei-

me e olhei para fora. A Lua estava brilhando de novo e lá, na grande piscina,

três homens jovens se estavam banhando, seus esbeltos corpos nus meio

ocultos entre os fumegantes vapores da água aquecida pela terra, uma cena

tão bela de vida que, ao observá-la, quase me convenci de que o pintor,

como artista, é superior a todos nós.

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Era o último dia na casa do Velho Cavalheiro e eu relutava em partir. O

cenário da casa da fazenda fora delicioso, fizera amizade com todos os

membros da família, até mesmo com o galo e suas galinhas, e a cabra. Só

com o porco que latia foi que mantive uma certa distância, sentindo a nossa

mútua falta de interesse, como resultado, sem dúvida, do fato de nada termos

em comum.

Com a família do Velho Cavalheiro eu tinha muito em comum.

Apreciava plenamente seus espíritos cultivados, sua delicada cortesia, sua

cordialidade ao mesmo tempo franca e retraída. Mas ali o fim tinha que

chegar também. O Velho Cavalheiro executara sua parte com dignidade e

graça, seu criado conduzira Yukio, o garoto lavrador, e Toru, o filho de

pescador, à majestosa casa e os levara de novo ao portão depois que Toru

tomou a decisão fatídica de escolher a partida. O criado tivera seu grande

momento ao portão, pois fora aqui que se desenrolara seu momentoso

diálogo, seu yes e seu no. Proferiu essas palavras com importância, e de fato

são as palavras mais importantes de qualquer língua, contendo em seus

breves sons as forças positiva e negativa de todo o universo.

Fizemos também nossas despedidas, curvando-nos e agradecendo, e eu

assinei centenas — estou certa — de grandes cartões de autógrafos que são

usados para esse propósito no Japão. É quase um prazer escrever o nome na

larga superfície creme clara, tão exatamente adequada a uma pincelada ou a

uma linha comprida e fina. Instintivamente somos levados a escrever o nome

em traços grandes e graciosos. O resultado é de algum modo compensador e

as margens prateadas do bonito cartão, as estrelas de prata salpicadas no

verso, aumentam a satisfação.

Juntamo-nos de mau grado e saímos do belo lugar, afastando-nos das

bondosas pessoas que nele vivem, e fomos transportados em automóveis e

caminhões ao nosso próximo cenário, a aldeia de Kitsu. Nossos veículos

despejaram-nos no alto de um penhasco e de lá o percurso devia ser feito a

pé, por um caminho estreito que descia pela encosta rochosa. Fomos

descendo até chegar à aldeia, um amontoado de casas de pedra separadas por

estreitas ruas calçadas. Caminhando por aquelas ruas, eu sabia que já amava

Kitsu mais que todos os nossos cenários. Fazia um dia gloriosamente

luminoso, o sol ardendo sobre a areia e — ai — desta vez o argumento

exigia chuva. O rádio de Nagasaki previra chuva, mas parecia que não

jorraria daquele céu de brilhante azul. Tínhamos, por conseguinte, de

fabricar chuva novamente.

E a fabricamos o dia todo e a noite toda, até secarmos o poço da aldeia

com as nossas bombas. A fabricação de chuva era primitiva mas eficaz. Uma

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pesada mangueira de lona conectava o poço ao tanque próximo da casa do

pescador, onde se desenrolaria a cena. Os tanques eram grandes banheiras de

madeira, cada qual comportando duzentos litros de água, mas não sei por

que não ligamos a mangueira ao mar, pois duzentos litros não eram mais que

uma gota para a quantidade de que necessitávamos. Todas as vezes que

estávamos prontos para a cena alguém gritava que a água tinha acabado e a

bomba de gasolina começava a trabalhar de novo. Ou quando estávamos

prontos para a cena, os atores em posição e a chuva caindo, o homem do

make-up descobria um fio de cabelo fora do lugar na testa do nosso astro, ou

uma linha de suor em sua fronte, e no momento em que a irregularidade

estava corrigida não havia mais água, outra vez, e portanto não havia mais

chuva.

No entanto continuávamos a precisar de chuva, pois agora vinha a cena

em que o Velho Cavalheiro advertia a família de pescadores de que era certo

a ressaca chegar. O Avô cacarejou que não haveria tufão, apenas chuva. Os

velhos da aldeia, contratados como extras e muito orgulhosos de sua nova

carreira, reuniram-se na estreita varanda da casa de Toru e concordaram com

ele.

Aqueles velhos! Nunca imaginei que uma aldeia pudesse fornecer

semelhante coleção de velhos enrugados, dentuços, joviais, chistosos, mas

Kitsu os fornecera, evidentemente, pois ali estavam eles. A princípio

mostraram-se artificialmente graves e bem comportados, especialmente um

velho pássaro de cara de águia, que piscava ocasionalmente seus olhos

mortiços mas não dava qualquer outro sinal de vida até que o diretor exigiu

algumas risadas no momento apropriado. O velho pássaro, então, espantou a

todos nós com os seus gritos, numa estentórica voz de baixo, uma torrente de

palavras que, traduzidas, significavam o seguinte:

— Bota o chapéu, americano! Aí eu vou rir!

Todos gargalharam, pois esse chapéu já se havia tornado uma pilhéria.

Era um pequeno chapéu de palha trançada frouxa, de um brilhante amarelo

sulfurino, a copa circundada por uma berrante fita multicor. Era útil apenas

para localizar com facilidade o paradeiro do diretor.

No momento em que estávamos realmente em ação, depois dos risos, a

água e a chuva finalmente sincronizadas, um rádio começou a berrar.

Paramos de novo, o técnico de som desesperado. Os berros provinham de

uma escola no alto do penhasco, e o principal da aldeia, todo devotamento,

correu montanha acima para certificar-se de que as crianças estavam limpas

e bem comportadas. Esperamos e a água acabou, mas as crianças chegaram

limpas, seus narizes foram assoados, trajavam, segundo o caso, vestidos ou

calças de algodão limpo. O principal, apesar de sentir-se orgulhoso, mostrou-

se severo. Entregues a si mesmas, disse ele, nos rodeariam e perturbariam

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nossa atividade. Assim, sob a sua firme porém benevolente disciplina, como

quer que fosse administrada, elas continuaram suas tarefas diárias,

obviamente devoradas pela curiosidade a nosso respeito, mas dominadas.

Ele, com as pernas arqueadas, andava irrequieto de um lado para o outro, um

caranguejo humano, apesar de sorridente.

Ó Kitsu, aldeia querida! Sentei-me, ontem à noite, num pequeno cinema

vazio, em Nova York, e assisti o filme terminado, com um amigo do lado

para partilhar a recordação e decidir se a película era o que pensávamos que

fosse, quando a fizemos. Os juízes definitivos devem ser outros, pois quando

Kitsu voltou a mim na tela, quando vi o mar rolando na praia branca, as

redes multicoloridas penduradas para secar, os barcos em repouso alteando-

se e baixando gentilmente sobre as ondas, os nobres penhascos da praia e da

montanha e, sim, talvez mais que tudo, os belos e bondosos rostos dos

aldeões, senti um ímpeto de saudade espiritual. Há uns poucos lugares, umas

poucas tocas, tão naturalmente ligadas ao nosso ser, que são para sempre

nossa terra. Não sei se tornarei a ver Kitsu nesta vida, mas ela está comigo e

em mim.

Deixem-me recordar!

Do alto do sinuoso e estreito caminho, como primeiro a vi, Kitsu é,

segundo já disse, um amontoado de tetos numa apertada garganta de terra

acocorada entre dois braços de mar, cada teto tão perto do outro como as

escamas de um peixe. Vista do mar é diferente e eu a prefiro vista do mar.

Tomávamos os barcos todas as manhãs, em Obama, costeávamos o soberbo

litoral durante meia hora e então, contornando um elevado penhasco sobre

rochas maciças, víamos a praia branca e os muros de pedra de Kitsu.

Aquelas casas não tinham janelas para o mar. O povo, ao dormir abrigava-se

contra seu poderoso amigo e inimigo. O cismo era óbvio. Viviam junto do

mar e não viveriam noutra parte, mas o temperamento do mar era o seu

temperamento. Se o dia amanhecia bonito e sem vento, se a água estava azul

como o Mediterrâneo, então a aldeia inteira ficava animada com risos e

negócios. Se o dia despontava cinzento e o vento áspero, o povo, sério e

ansioso, subia nos quebra-mares para amarrar firmemente os barcos às

pedras que tinham rolado até à praia e depois voltava de novo para suas

casas. Em dias bonitos, se entrássemos cedo na ampla enseada, podíamos ter

a sorte de ver a frota de barcos pesqueiros fazendo-se ao mar e este era um

espetáculo inesquecível. Nos dias tempestuosos as ondas abertas terminavam

em irada arrebentação e nós íamos por terra. Sentada ali, no cinema escuro,

no centro de uma grande cidade americana, regressei a Kitsu. Vi Toru e

Yukio no barco de pesca e Setsu... bem, não devo contar a história. Vejo os

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rostos das crianças, ri-sonhas e despreocupadas, vejo aquelas mesmas

crianças crescidas, suas faces jovens firmes de vontade e de propósito; Toru,

um jovem, declarando seu amor ao abrigo das grandes pedras cinzentas no

fim da curva da praia, torcida e cavada pela tempestade e pelo vento.

Nossos dias caíram na rotina de trabalho. Levantávamo-nos cedo,

tomávamos café e saíamos do hotel às sete. Quatrocentos metros além

entrávamos no barco e éramos rapidamente transportados à aldeia. Lá

chegados, cada pessoa iniciava sua preparação individual para a cena do dia.

Durante uma hora não necessitavam de mim e eu me punha a caminhar ao

longo da praia, além do quebra-mar de pedra, até o sopé de uma íngreme

colina. Degraus de pedra levavam ao alto do monte, numa extensão de cerca

de duzentos metros, e no cume havia um templo de pedra vazio, outrora um

altar Shinto. Cercava-o um muro baixo e de lá se descortinava o mar, as

montanhas e o céu.

Eu, porém, encontrei meu próprio nicho, atrás do altar. Na beirada do

alto penhasco havia uma concavidade nas rochas à qual meu corpo se

adaptava exatamente. Para lá ia eu todas as manhãs e, retida naquela

cavidade como se estivesse nos braços dele, repousava. Não era o repouso

do sono. Era o repouso do espírito esvaziado, o espírito liberto. Ele e eu

nunca estivéramos aqui, juntos. Nos anos em que eu vivera em Kyushu, não

sabia que ele existia, nem ele sonhara que eu pudesse existir. Tampouco

havia comunicação entre nós, agora — não posso fingir que ouvi sua voz ou

que tive consciência de sua presença. O que ocorreu, gradativamente, à

medida que passavam os dias, foi uma profunda invasão de paz. Ninguém se

tornou parte de mim, porém eu me tornei parte do todo. O cálido leito de

pedra em que eu me deitava, o vento erguendo-se fresco do mar, o céu

intensamente azul e as flutuantes nuvens brancas, o retorcido pinheiro

curvado sobre a minha cabeça — de tudo isso eu era parte e, além disso, do

mundo inteiro. Eu própria cessei de ser, pelo menos por algum tempo, uma

criatura solitária com o coração dolorido. Estava consciente da cura que se

derramava no meu íntimo. É um fato que, ao cabo de uma hora, quando soou

a concha, pude levantar-me retemperada para reunir-me aos meus

companheiros de trabalho.

Os degraus de pedra? Tornei a vê-los a noite passada, no cinema escuro,

quando o Velho Cavalheiro desceu para advertir os aldeões, seguido pelo seu

fiel criado. Sim, aqueles eram os mesmos degraus que eu galgava todas as

manhãs ansiosa pela paz que encontrava no abrigo da rocha. Tornou-se um

hábito. Eu acordava sôfrega por aquela hora e a saboreava profundamente,

com um deleite renovado todos os dias. Descobri, então, que um pouco da

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paz de cada dia sobrava como um resíduo para a noite. Eu não a usava toda

de uma vez, havia acumulação. Tornei-me mais forte. Pude perder um dia,

em seguida dois dias, depois mais. Gradativamente me estabeleci em mim

mesma e não precisei mais subir àquele alto e solitário lugar, e esperar para

receber. Fui capaz de manufaturar a paz dentro de mim mesma, apenas por

lembrar-me do fluxo do mar, da montanha e do céu, e de mim mesma

enrodilhada na concavidade da pedra. Tinha então a paz dentro de mim e o

lugar tornou-se um altar em minha memória. Não sei como se processou essa

cura. Não rezo, se a oração consiste em palavras, ou súplicas, ou procura. Se

o processo tem de ser explicado, digo que consistiu simplesmente em

entregar-me de maneira total a um universo que não compreendo mas que

sei ser vasto e belo além da minha compreensão, sendo o meu lugar nele não

mais que uma concavidade numa pedra. Mas há a concavidade, e é minha, e

há a pedra.

Esta crônica, para valer alguma coisa, tem de ser fiel. Estávamos a um

quarto do caminho, aproximadamente, da feitura do filme e tínhamos

chegado ao deserto que fica na metade de todos os planos criadores. O

deserto começa no ponto em que se progrediu demais para pensar em

desistir, e tão longe do término que o fim é invisível e só pode ser

contemplado por uma fé vacilante. Como conheço bem a desolada

perspectiva! Enfrento-a em cada livro que escrevo. O primeiro quarto flui

como uma brisa do mar. O trabalho é pura alegria. Entro então na metade do

livro e a alegria desaparece. Os personagens recusam mover-se, falar, rir ou

chorar. Tomam a postura de colunas de sal. Por que, ó, por que o livro foi

começado? O trabalho executado já é muito, para que se ponha de lado, no

entanto a conclusão está tão distante quanto o fim de um arco-íris. Nada há a

fazer senão continuar a trama, impelir os personagens por esse e aquele

caminho, soprar sobre eles ardentemente na esperança de restituir-lhes a

vida, usar todos os meios de respiração artificial. Em alguma parte, algum

dia, embora parecesse inacreditável durante semanas, meses ou mesmo anos,

eles começam a respirar. Que alívio! O deserto passou, o último quarto do

livro flui suavemente de novo.

Certa manhã, no meio do período deserto do filme, sentei-me na beirada

de um barco de pesca e me pus a observar nosso astro, Sessue Hayakawa.

Esperava, com soturna paciência, que o chamassem ao cenário. A cena tinha

de ser repetida porque o técnico do som descobrira uma mosca no

microfone, que ninguém havia notado., Havia moscas apesar do repelente

que um dos membros da equipe vaporizava zelosamente de igual modo sobre

justos e injustos, e uma delas se ocultara habilmente no microfone e zumbia

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o suficiente para abafar qualquer outro som. Nosso astro esperava e sua

secretária-criada abanava-o dentro de seus pesados trajes.

— Por que é que ninguém me abana tão estrategicamente? perguntou o

diretor americano.

Ninguém respondeu e ninguém o abanou. Só o astro permanecia

pacientemente sentado. Tinha na mão um pequeno rádio-transístor. Escutava

uma luta e quando sorri explicou-me que somente assim podia achar a vida

suportável, naquelas circunstâncias. Entrementes o homem do make-up

corria a aplicar-lhe toalhas geladas nos pulsos e no pescoço e tocando-lhe o

rosto. O astro, para infinito terror do homem do make-up, que temia pela

barba que tão cuidadosamente lhe havia aposto, acendeu um grande charuto.

Mas ninguém se atreveu a insinuar coisa alguma e ele fumou em paz, os

olhos fechados, escutando a luta.

No cenário o diretor estava às voltas com o nosso avô que, embora

realmente velho, tinha uma voz demasiado jovem. O diretor fazia

demonstrações de como devia soar a voz de um velho. Mantive a minha

tranqüilidade. Sei que a voz dos velhos é alta e aguda, não baixa e rouca,

mas mantive minha tranqüilidade. Aprendera, desde o primeiro dia, a manter

a minha tranqüilidade — "pelo amor de Deus!"

Esforçávamo-nos por atravessar o deserto do meio, levantando cedo

todas as manhãs, amontoando-nos exaustos nos barcos à noite, aliviados

apenas pela beleza do céu crepuscular. Havia noites em que trabalhávamos

até tão tarde que estava escuro quando tomávamos a lancha e o mar faiscava

com minúsculos peixes fosforescentes, que competiam com as estrelas no

céu.

E Sessue Hayakawa avançava para o último dia de seu contrato conosco,

estava terminando suas cenas como Velho Cavalheiro, e nós ainda

continuávamos no deserto. O homem do make-up realizara um trabalho

engenhoso, envelhecendo-o mais dez anos, como exigia o argumento, mas o

mesmo vento que, certa manhã, levantara demasiado a arrebentação,

impedindo a saída dos barcos, arrancou-lhe a sobrancelha esquerda. O

homem do make-up merecia ser manietado, porque não trouxera uma

sobrancelha extra do hotel. Nada havia a fazer senão fabricar outra

sobrancelha com os fios brancos que tinham sobrado da barba... Tudo

continuava a andar errado. Os bolos, que os bondosos cidadãos haviam

deixado conosco para a equipe, resultaram ser de uma variedade indesejável

e ninguém os quis comer. Estávamos todos morosos. As primeiras cópias,

que esperáramos ver uma semana antes, foram retardadas. Sofrêramos a

interferência de um feriado japonês e de um domingo, e poucas foram as

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cópias que tínhamos visto, de modo que nos achávamos pelo menos com três

dias de atraso em relação ao programa traçado. Afastamo-nos e começamos

a remoer negros pensamentos. Entenderia alguém o inglês que nossos atores

falavam? Estávamos tentando o impossível — atores japoneses

representando em inglês! Os jovens Yukio e Toru, bem como nossa mãe-

lavradora, entre outros, falavam antes pouco inglês ou nenhum, e agora

estavam falando, mas seria bastante bom? Como soaria a uma platéia

americana até mesmo a fala do nosso astro?

No meio do deserto de pessimismo recebemos uma carta de nossa

gerente de negócios em Tóquio. Vira as cópias do Velho Cavalheiro e as

achou soberbas, dizia ela, inclusive o diálogo. Fizeram-na chorar, informava.

Que aquela jovem sofisticada houvesse chorado, significava alguma coisa.

Não imagináramos que isto seria possível, tão fria e serena era ela, tão parca

em elogios. Nossas esperanças renasceram. Talvez estivéssemos quase fora

do deserto.

Com o espírito renovado, oferecemos um jantar a Sessue Hayakawa em

homenagem à sua partida. Ele estava com excelente humor, bebeu uma

mistura de cerveja gelada com sakè, que agüentou admiravelmente, e suas

histórias eram tão boas quanto sua representação. Cinqüenta anos de teatro

em vários países formavam um mundo de histórias dignas de serem

contadas. Lamentávamos vê-lo partir e creio que ele também o sentia, mas

nada há de permanente na vida teatral. Trabalhamos intimamente juntos

durante alguns dias, semanas e meses, adquirindo amizade uns pelos outros,

separamo-nos e esquecemos. Nada adquire profundidade — é a única

maneira de suportá-lo.

As cópias chegaram e fomos ao cinema do outro lado da rua, depois de

terminado o espetáculo da noite. Não me fizeram chorar, mas gostei. Então,

de súbito, vi nosso jovem astro, nosso Toru crescido. Estava sentado na fila

fronteira à minha, profundamente adormecido. Meu coração murchou no

assento. Podia ele dormir? Sim, podia e estava dormindo. Voltei-me para

meu companheiro.

— Veja aquilo!

— Está bêbedo, foi a indignada resposta.

Sim, houvera uma festa naquela noite e o nosso jovem astro estava

bêbedo. Tudo se tornou demasiado evidente quando as cópias terminaram e

saímos do cinema. Ele não se podia manter de pé. Não obstante, senti-me

gelada. Bêbedo ou sóbrio, como pôde ele dormir? Não, ainda estávamos no

deserto e só nos restava continuar arrastando-nos.

Houve mais um momento naquele dia. Foi o último vislumbre, o close-

up final do criado do Velho Cavalheiro. Tomamo-lo em frente ao hotel.

Juntou-se uma multidão, uma próspera multidão de feriado, com máquinas

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fotográficas e alegria. O criado do Velho Cavalheiro era, naturalmente, o

pequeno e idoso homem do guarda-roupa, mas havia adquirido uma

dignidade nova. Realizara o sonho de toda uma vida. Era, agora, um ator.

Passara todos aqueles anos fazendo trajes e descobrindo roupas para outros

usarem em cena. Mas agora vestira um traje próprio, tivera seu rosto

maquiado — só um pouco, pois seu rosto era perfeito para o papel. Naquela

noite, na presença da multidão, postou-se com calma e dignidade e o

cameraman tomou os close-ups de que necessitávamos para o filme.

Quando terminaram, curvamo-nos e nos apertamos as mãos, lhe

agradecemos e ele curvou-se por sua vez. Disse-nos que aquele era o maior

ano de sua vida. Tornara-se um ator, representara um papel com Sessue

Hayakawa e no mês seguinte casaria sua filha.

Assim terminou o dia.

— Otsukaresama!

É uma palavra que significa "Você está cansado". Gentil maneira

japonesa de dizer: "Chega por hoje".

Era verdade. Estávamos cansados.

Já nos achávamos, agora, muito além do deserto. Faltava uma grande

cena em Kitsu, a chegada da ressaca. Enquanto trabalhávamos ao redor dessa

cena, nosso técnico a estivera criando no estúdio de efeitos-especiais, em

Tóquio. Viera duas vezes a Obama fazer consultas e tirar centenas de

fotografias de Kitsu e da praia deserta. Sabíamos que estávamos em mãos

seguras, a ressaca seria perfeita, mas só poderíamos vê-la quando

voltássemos à cidade. Nossa tarefa consistia em criar a aproximação da onda

e depois a recuperação da aldeia.

Uma atmosfera de tensão e de terror caiu sobre a aldeia ao começarmos

os preparativos para a ressaca. Uma sensação cortante chegava quase a

atingir os ossos. Cada homem, mulher e criança, temia acima de tudo, em

sua bela e precária vida, a incontrolável ressaca atacando sem aviso, a não

ser o rugido baixo e ominoso sobre o horizonte, a água barrenta do poço, o

tremor da terra. Imaginar, apenas, o horror era quase mais do que podiam

suportar, ao se disporem obstinadamente à tarefa de representar a terrível

realidade. Famílias de lavradores e de pescadores representaram bem a sua

parte e nos aproximamos da última noite, quando, em meio às trevas,

acenderam-se as tochas diante da mansão do Velho Cavalheiro e as famílias

de Kitsu, em pânico, fugiram de seus lares ancestrais, galgando o estreito e

sinuoso caminho da montanha, em busca de segurança no topo do penhasco.

Toru era o astro naquela noite, o menino Toru. Nossa parte da cena era

levá-lo ao momento em que vê a aldeia arrastada e nós a vemos através da

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sua fisionomia. Era aqui que a ressaca seria inserida. Depois disso

retomamos a história no ponto em que Toru, em agonia e loucura, ele

próprio arrastado pela fúria do mar, fora salvo apenas por uma bondosa e

robusta mão que o susteve quando ele se agarrava ao penhasco. Representou

soberbamente a cena, mas recordo especialmente o povo enxameando

montanha acima, o obstinado e aterrorizado povo tomando o caminho que

seus ancestrais tão freqüentemente haviam palmilhado antes, porém na

realidade.

Naquela noite, quando tudo terminou e nos fomos sobriamente,

adquirimos uma compreensão nova da incomparável coragem da gente de

Kitsu, da sua inabalável devoção ao mar e à sua maneira de vida, maneira

boa e limpa, mas perigosa. Despedimo-nos com um terno pesar. Lembro-me

de uma multidão de faces bondosas, à luz da lanterna, do principal

recebendo com orgulho nossos elogios e agradecimentos, dizendo que a

única recompensa que desejava era saber quando seria exibido o filme no

Japão.

— Vestiremos nossas melhores roupas e iremos até mesmo a Tóquio,

disse-nos.

Finalmente, as chamas das tochas diante do portão do Velho Cavalheiro,

no alto da montanha, apagaram-se dentro da escuridão. Estava terminado, o

filme fora feito. Nunca esquecerei os belos dias de mar, vento e sol, de

refeições partilhadas na praia, dos grandes bules de peltre cheios de chá, nem

esquecerei as horas de repouso que passei, semi-adormecida, num bote vazio

puxado para a praia, o sonolento marulhar das ondas aos meus ouvidos, o

calor do meio-dia sobre mim. Havia afastado naqueles dias e por aqueles

momentos as sombras expectantes de perda e solidão. Vivia o dia, a hora, o

trabalho, a profunda cura orgânica da calidez do sol, da chuva caindo, do

mar tempestuoso.

Estávamos tão perto, agora, da conclusão do filme que podíamos

planejar a atividade de nossos dias. Depois de Kitsu veio a praia vazia de

Chijiwa e a grande cena da pesca do tubarão e a última cena com as crianças

agora grandes, encontrando o amor e a vida, as alegrias e as penas. A última

de todas, em Kitsu, foi a cena com o Velho Cavalheiro, Toru e Setsu. Depois

disso restou apenas a cena do vulcão em Oshima, a ser tomada e inserida em

seu lugar próprio no filme.

Estou indo muito depressa. Deixem-me recordar primeiro a própria

Chijiwa. Num país populoso, num litoral impecável, essa praia ampla e bela

foi deixada deserta. Está vazia e assim se encontra há séculos. Visitem-na

em qualquer dia e verão redes de pesca espalhadas para secar, mas nenhuma

pessoa. Chijiwa encara o mar de um ângulo peculiar de modo que os tufões e

as ressacas a atingem com uma força devastadora. Os pescadores, após a

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freqüente repetição da experiência de destruição total, ouviram afinal a

advertência do mar ameaçador e lá não vivem mais.

É uma praia supremamente agradável, contudo, estendendo-se por três

quilômetros de comprimento e penetrando terra a dentro, tendo como

limites, a este e a oeste, grandes e belas rochas. Minha vida na Ásia e meu

amor pela arte asiática condicionaram-me às rochas. Elas acrescentam

estabilidade à paisagem e as formas que adquirem com o tempo e o clima

exprimem o temperamento da natureza. Significam força, resistência e

valores eternos. Na extremidade de Chijiwa existem rochas assim e,

tomando-as como fundo, ali representamos a cena final de amor com Toru e

Setsu crescidos. Foi na direção das rochas que o Velho Cavalheiro caminhou

quando lhes deu seu último adeus.

Não me deixem esquecer, tampouco, os tubarões. É uma cena única no

filme e foi uma experiência única a executar. Uma vez por ano os pescadores

daquela região saem para a pesca do tubarão. Essas cruéis criaturas do mar

destroem o peixe em qualquer área que decidem dominar e os pescadores

lhes fazem guerra. Sua vinda é anunciada por cardumes de peixes pequenos,

os peixes-iscas, e quando aparecem os pescadores preparam sua estratégia.

Trazem seus barcos, cerca de duzentos e estendem no meio a maior e mais

forte rede do mundo. Então os barcos se abrem num vasto círculo e os

peixes-iscas entram naquele espaço, acompanhados pelos tubarões. Quando

a rede está cheia dos agitados monstros, os barcos juntam-se e os tubarões

ficam numa armadilha. Na praia, centenas de homens começam a puxar a

rede, arrastando os tubarões para a terra. Então os matam a pancadas,

transportando-os em carroças. Comem as partes mais tenras e do resto fazem

azeite e fertilizante. Às vezes o resultado da caçada é bom, às vezes não é.

No ano passado os homens pegaram apenas um tubarão, mas este ano lhes

trouxemos sorte, dizem eles, pois pegaram e mataram cento e vinte.

Não tenho afeição a tubarões mas não gosto do espancamento de que são

vítimas. Gosto muito de ver a frota de barcos pesqueiros, suas alegres velas

adejando ao sol brilhante e a multidão animada na praia. A multidão estava

sempre conosco e de há muito tínhamos aprendido a aceitá-la como parte da

paisagem. Por que descreveria eu a cena posterior, quando está tudo no filme

e melhor do que poderia dizer em palavras? É uma guerra ancestral, esta,

entre homem e tubarão, e naquele dia o homem ganhou. Enquanto a batalha

era novamente travada, nossos personagens enfrentavam sua própria luta

pessoal, Haruko e Setsu, crescidas, em seu memorável combate, quando

Haruko tentou afogar Setsu, e Toru e Yukio, não mais crianças, enfrentavam

os perigos privados de serem homens. Está tudo no filme, até o fim, quando

Toru se faz ao mar, em seu barco, e com o seu amor.

Restava-nos apenas, agora, voltar a Oshima, mas eu tinha um sonho a

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realizar. Era um sonho pequeno, sem importância para ninguém a não ser

para mim mesma, e consistia em ir à pequena casa japonesa da encosta da

montanha, perto de Unzen, onde certa vez, numa vida anterior, me refugiara

durante a Segunda Revolução Chinesa. O exército atacante era orientado

pelos comunistas e todos os ocidentais foram obrigados a deixar a cidade de

Nanking, onde estávamos morando. Viera para o Japão com minha família e

alguns outros americanos e nos instalamos nas montanhas, acima de

Nagasaki. Lá voltava eu, agora, com uma amiga japonesa como guia e

intérprete.

Alugamos um automóvel com motorista e à habitual velocidade

alucinada seguimos nosso caminho ao longo da estrada para Unzen, cheia de

curvas abruptas. A aldeia montanhesa de que eu me lembrava se havia

transformado numa moderna estação de águas, mas as fontes quentes eram

as mesmas, lançando jactos de vapor através de centenas de pequenas

aberturas nas rochas, e o povo cozia ovos e esquentava água para o chá,

sobre aqueles fogões naturais. Eu não podia achar meu caminho, através das

ruas novas, para a velha estrada rural de que me lembrava. Detivemos uma

jovem mulher para perguntar-lhe se tinha ouvido falar das casas onde, certa

vez, há muitos anos, haviam morado americanos refugiados da China. Sua

fisionomia iluminou-se — sim, seu avô sabia e sempre' falava daqueles

americanos. Foi buscar o avô, um velho magro e esperto, que nos conduziu

jovialmente à estrada, que descemos até à baixada de um vale, depois

atravessamos um riacho, tornamos a subir a montanha e chegamos

finalmente a um amontoado de casas japonesas. Encontravam-se, agora,

vazias e fechadas, mas vi o pequeno abrigo onde tínhamos vivido em

segurança por algum tempo, entre amigos mas em grande pobreza, despidos,

pela revolução, de tudo quanto possuíramos. Minha vida mudara

completamente nos anos intermediários. Eu não era mais a jovem mulher

quase desesperada que morara debaixo daquele teto e dos pinheiros

curvados. Passei algum dinheiro ao velho e me afastei, sabendo que nunca

voltaria. Mas, ao sairmos de Unzen, alguém nos chamou e paramos o

automóvel. Era a jovem mulher e ela me entregou um embrulho.

— Meu avô disse que a senhora costumava comprar estes bolos de arroz

para os seus filhos, falou ela.

Era verdade. Eu havia esquecido, mas ele não.

Oshima nos parecera bastante diabólica por ocasião de nossa viagem de

investigação, em maio, mas agora era outubro e o vulcão estivera ativo e

rebelde nos meses intermediários. Até mesmo em Tóquio o tempo estava

ominoso. Planejáramos ir pelo ar e para isso fretáramos um avião que nos

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transportaria através do canal, por etapas, mas o dia amanhecera sombrio e

cinzento e o piloto recusou-se a voar. Agora trabalhávamos contra o tempo,

cada um de nós ansioso por chegar em casa, ou para pôr em dia trabalhos

atrasados. E para evitar demoras, tomamos passagem no navio noturno.

Havia um tufão ao largo e um navio também tem seus azares. Mas tínhamos

corrido tantos riscos, havíamo-nos confiado tantas vezes ao mar e ao ar, que

um risco a mais nos pareceu bastante razoável.

Em meio à chuva e ao vento sibilante rodamos para o cais, naquela noite,

e embarcamos num velho e desequilibrado vapor. Felizmente estava escuro e

não pudemos ver quantas pessoas embarcaram. Subimos todos a bordo,

câmara, equipe, atores e o mais, e fomos imediatamente para as nossas

cabinas. Em poucos minutos nos pusemos em movimento, rumando para o

mar.

Estremeço ao lembrar-me daquela noite terrível. O mar estava agitado, o

mar e a chuva eram inimigos em luta, mas, pior que tudo, o navio estava

carregando quatro vezes mais o peso que comportava, em passageiros que

eram centenas de colegiais em excursão a Oshima. Enjoavam às centenas, as

pobres criaturinhas, e os lavatórios e corredores tornaram-se inúteis e

intransitáveis. O verdadeiro perigo, porém, era o próprio navio. A estrutura

superior era demasiado alta e o vapor oscilava de um lado para o outro de tal

modo que punha em perigo nossas vidas. Sou uma navegadora

experimentada e atravessei várias vezes os oceanos, desde a minha primeira

viagem através do Pacífico, aos três meses de idade, até o meu último vôo

através do mesmo oceano, poucos meses antes, a uma idade tornada

indefinida, contudo nunca tive tanto medo como naquela comprida noite em

demanda de Oshima. Antes do alvorecer, um amigo que viajava conosco

entrou para ver como estava sua esposa, minha companheira de cabina. Seu

bondoso rosto achava-se verde de terror.

— Estamos contrariando todas as leis de matemática, resmungou ele. —

O navio está balançando num grau matematicamente impossível. Isto não

pode ser. Pelo direito, já devíamos ter virado e afundado.

Deitei-me no beliche e meditei sobre uma vida estranha — a minha.

Como é que uma mulher de maneiras suaves, pacífica, sem desejos, sem

ambições ou mesmo inclinação para a aventura, consegue arranjar uma

maneira de estar sempre dentro de uma aventura? Amo tão apaixonadamente

o usual, o lugar comum, o dia a dia, que desligo instantaneamente a televisão

quando começa um programa de aventuras. Não adianta. Estou

constantemente envolvida em alguma ousada expedição e repelindo-a. E

sempre odiei particularmente a idéia de me afogar no mar. Não gosto de

nenhuma espécie de afogamento, mas se este tem de ser o meu fim,

preferiria uma piscina pequena ou, melhor ainda, uma banheira. Contudo,

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perco a conta dos mares pelos quais viajei, não sei quantas vezes pelo

Pacífico, pelo Atlântico um pouco menos, pelo Mediterrâneo, pelo Mar

Vermelho, e por todos os mares que se encrespam ao redor das complexas

costas da Ásia. Agora, aparentemente, encontraria meu destino entre Tóquio

e Oshima. A Grande Onda, sem dúvida!

Amanheceu finalmente, uma alvorada úmida e fraca, o pálido sol

franjado de neblina e o mar ainda rugindo e rosnando, suas ondas de crista

branca em correntes contraditórias. O esmaecido contorno de Oshima

emergiu do nada e corremos a enfiar as roupas. Em quinze minutos

chegaríamos ao cais. Os quinze minutos tornaram-se uma hora, depois duas

horas, enquanto continuávamos a rolar. Não podíamos atracar porque o mar

estava demasiado agitado. Se não acalmasse, disseram-nos, seríamos

obrigados a ir para o outro lado da ilha, onde havia um cais inferior. Não

acalmou e fomos para o outro lado da ilha, para o cais inferior. Desembarcou

uma longa procissão de colegiais pálidos mas resolutos e em seguida

saltamos nós, rumando para o hotel através da chuva. Desta vez eu me

achava demasiado abatida para protestar quando me encontrei novamente

alojada no aposento do Imperador, alojamento que recusara na visita anterior

por ser imponente demais para a modesta cidadã de uma república.

Tomamos um café rápido e nos dirigimos, em automóveis, para o sopé

do vulcão. Havia cavalos esperando pelos que desejassem cavalgar. Preferi ir

a pé, pois fazia alguns anos desde a última vez que montara a cavalo.

Ademais a experiência me havia ensinado a desconfiar do cavalo, mula e

pônei asiáticos. Levam uma vida dura, pois o asiático não é sentimental para

com os animais, como nós, americanos. A filosofia da transmigração das

almas conduz o asiático a crer que o ser humano que em vida foi um

criminoso será, na fase seguinte, um animal do qual não se pode esperar que

se comporte melhor do que o criminoso que nele habita. Embora não possa

dizer que acredite nisso, se fosse julgar pelo comportamento dos cavalos que

conheci na Ásia, posso pelo menos considerar possível que são, de fato,

animados por alguma força má. "Não confie em cavalos", diz-nos o bom

livro. A pé, por conseguinte, galguei o negro vulcão, subindo a uma

paisagem escura e nua, espetacularmente, horrificamente bela.

Sob um tempestuoso céu cinzento o efeito era ainda mais sombrio e

estranho. Fitas de vapor branco subiam de todas as brechas e fendas do

vulcão e das altas montanhas circundantes. Não as tinha visto em minha

visita anterior, o que se explicava pelo tufão, como verifiquei ao perguntar.

A cratera do vulcão é muito grande e ficara ainda maior nos últimos dias,

pois sob a chuva torrencial suas paredes se haviam desmoronado em

diversos lugares. Onde quer que havia uma superfície, fora coberta e vedada.

O vapor, assim retido, forçara seu caminho através de canais nas montanhas.

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Daí as fitas e bandeiras de vapor, todas sopradas pelo vento numa direção.

Parei várias vezes para olhar o espetáculo, pois era um espetáculo. Tenho

visto algumas das mais magnificentes paisagens do mundo, mas em questão

de esplendor e de terror, ponho em primeiro lugar o vulcão da ilha de

Oshima, naquele dia.

Lá passamos dois dias, dias inquietos, maravilhosos, inesquecíveis.

Pouco tempo antes de chegarmos o vulcão havia entrado em erupção,

atirando grandes pedras ao ar e correndo a montanha. Agora havia guardas

por toda parte, para impedir-nos a passagem, mas abrimos caminho até à

beira da própria cratera, apesar deles, o câmara empoleirando-se

precariamente em qualquer ponto que o suportasse ou contivesse. A descida

para a cratera fazia-se em dois planos, um dos quais era um terraço

circundante, o outro sem fundo e oculto por nuvens de vapor e gás

malcheiroso. Câmara, equipe e diretor desceram ao terraço, mas eu fiquei no

alto, não apenas porque sou prudente, mas porque os desolados guardas nos

haviam advertido de que devíamos correr para salvar a vida ao menor rugido

ou rumor do interior da cratera. Eu não desejava pôr em perigo os homens

moços que, em tal caso, poderiam, por uma questão de honra, sentir-se

obrigados a correr devagar para acompanhar-me.

O vento soprava áspero e frio e o trabalho prosseguiu sem os riscos e a

jovialidade habituais. Rápidos e concentrados cada qual fez sua parte.

Confesso que meu coração perdeu várias pulsações enquanto a equipe

andava na ante-sala da cratera, pulando por cima de grandes brechas,

afundando no chão fofo de cinzas, postando-se na própria beira do abismo.

Lembrei-me novamente de tudo isso quando as cópias foram exibidas no

cinema de Nova York. Vi, na tela, o garoto Yukio com os olhos

escancarados de medo, o vapor branco subindo sinuoso da cratera e

envolvendo-o. Não era de espantar que gritasse a seu pai:

— Somos infelizes, nós, gente do Japão!

— Por que diz isso? pergunta o pai.

— O mar e a montanha trabalham para destruir-nos, responde o menino.

Ficamos contentes quando terminaram os dois dias, o trabalho concluído,

e contudo não teríamos gostado de perder aquela experiência. Nunca

esquecerei a paisagem, negra como o outro lado da Lua. Voamos por cima

do mar, no terceiro dia, sob um céu claro, e chegamos ao aeroporto de

Tóquio exatamente quarenta e cinco minutos depois, em segurança.

Cinco dias mais tarde o vulcão entrou em erupção e o chão negro de lava

sobre o qual havíamos estado, caiu dentro do abismo.

Assim foi feito o filme. Tinha acabado, faltando apenas a cena da

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ressaca, que estava sendo montada no estúdio de efeitos especiais, em

Tóquio. Para lá me dirigi no meu último dia. O famoso artista de efeitos

especiais esperava-me, afável em seu terno novo, leve, chapéu e bengala.

Tinha o ar confiante de quem sabe que fez um trabalho triunfantemente bom

e depois de mostrar-me a cena concordei com ele. Num espaço tão vasto

quanto o Madison Square Garden, em Nova York, que é o maior lugar em

que posso pensar no momento, ele reconstruíra Kitsu, as montanhas e o mar.

As casas tinham um metro de altura, cada qual em perfeita miniatura, e tudo

o mais proporcional. Do lado de fora passava um rio e a água corrente para a

ressaca solta dentro do estúdio por grandes comportas dispostas num dos

lados. Olhei dentro das casas, subi a pequena montanha, maravilhei-me com

a exatidão da praia, e até as próprias rochas onde, na realidade, eu tantas

vezes me abrigara. Mas o cenário ainda não estava pronto para a ressaca. Eu

a veria depois, na tela, em toda a sua força e terror. Tinha, porém, visto tudo

o mais, e me despedi, apresentei meus agradecimentos e parti.

Meu quarto de hotel tornara-se uma espécie de lar e me custava deixá-lo,

mas sabia que minha vida nele havia terminado. Fora um lugar agradável e

eu ali vivera em paz cada vez mais profunda. Agora, o velho medo de

enfrentar outra vida sem ele e voltar só aos lugares onde sempre estivéramos

juntos, assaltava-me de novo. Mas tinha de ser feito. Eu não podia escapar e

não podia haver mais protelação.

— Volte, volte breve ao Japão, disseram meus queridos amigos. Prometi

que sim e, afastando-me a custo, entrei sozinha no avião a jacto que me

conduziria de volta novamente a Nova York.

Digo Nova York embora, naturalmente, Nova York fique apenas a

caminho de minha fazenda na Pensilvânia. Mas fiz uma parada em Nova

York, essa cidade de maravilhas e sofrimentos. Ele e eu sempre mantivemos

um lugar de pouso em Nova York. Ele o necessitava para seu trabalho e seu

espírito, e eu continuei nossa tradição. Não é o mesmo lugar que partilhamos

durante tantos anos. Dentro dos confins de nosso velho apartamento eu não

poderia escapar à tortura da recordação. Não sei se teria ficado lá ou não,

mas os arranha-céus de aço e vidro tinham avançado pela nossa avenida e o

prédio onde fizéramos o nosso lar da cidade estava para ser demolido.

Encontrei outro apartamento num edifício novo, num bairro residencial mais

afastado, onde não havia recordações a não ser as que trago, ocultas, onde

quer que esteja.

E aqui conto uma história que nada tem a ver com o filme, fornecendo

apenas uma cena de encerramento para mim mesma. Quando eu estava

procurando o novo apartamento, uma das filhas ajudou-me a eliminar os

impossíveis e levou-me afinal a ver dois ou três que poderiam servir. Era

noite, lembro-me, quando olhei esses lugares. Eu estava com pressa e não

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parecia importar-me muito onde viveria. Entramos em quartos vazios, sem

pintura. Olhei por uma ampla janela e discerni vagamente um prédio cujo

teto dava para o apartamento. Uma escola, disse minha filha; Bom para mim,

pois não haveria nenhum arranha-céu cortando-me a vista. Mas também não

me preocupei muito com isso, pois quando é que tenho tempo, em Nova

York, para olhar a paisagem? Além do mais, tenho muita paisagem em

minha casa da Pensilvânia. Assim, decidi obedecendo a um impulso.

— Fico com ele.

A escolha foi ao acaso, diria eu, totalmente ocasional. Mas estou

começando a crer que não existe no mundo essa coisa chamada puro acaso.

Pois aqui está a preliminar dessa história de encerramento:

Quando eu era menina e relutava, freqüentemente, em fazer minhas

obrigações, meu pai costumava dizer com firmeza, mas gentilmente:

— Se você não faz isso porque o certo é fazê-lo, então faça-o para a

maior glória de Deus.

Para a maior glória de Deus, portanto, e por meu pai, embora ainda

relutante, fiz o que tinha de ser feito, pelo menos tão freqüentemente quanto

possível.

Agora a volta ao apartamento. Não o vi uma única vez enquanto estava

sendo decorado. Quando tudo terminou, abri a porta e me encaminhei

diretamente para a grande janela. Era um dia luminoso, lembro-me, um dos

melhores dias de Nova York, o ar fresco do mar e o céu azul. E encarando-

me, no prédio fronteiro, sob os beirais do telhado e ao longo do teto, vi essas

palavras esculpidas em grandes letras de pedra:

AD MAIOREM DEI GLORIAM

Vejo-as agora, enquanto escrevo. Para a maior glória de Deus! Que

significa esta voz do túmulo, do túmulo de meu pai? Ele jaz enterrado no

topo de uma montanha, no próprio coração da China perdida para mim.

Estou aqui, viva, a milhares de quilômetros de distância. Estamos em

comunicação, ele e eu, através de meu pai? Não é possível.

Como ouso dizer que não é?

Algum dia saberemos. Que dia? Naquele dia, talvez, em que santos e

cientistas se unirem para a busca total da verdade. São os santos, os crentes,

que deverão ter a coragem de instar aos cientistas a que os ajudem a

descobrir se o espírito continua sua vida de energia quando a massa que

chamamos corpo cessa de ser o continente. A fé proporciona hipóteses, mas

só a ciência pode fornecer o computador para a verificação. O descrente

nunca prosseguirá na busca. É sempre estático, uma coluna de sal,

eternamente olhando para trás.

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Não há milagres, disto tenho certeza. Se alguém caminha sobre a água,

cura os enfermos e ergue os mortos novamente para a vida, não é uma

questão de mágica mas sim de saber como fazê-lo. Não há sobrenatural; há

apenas o supremamente natural, o puramente científico. Ciência e religião,

religião e ciência, coloquem-no como quiserem, há dois lados da mesma

lente, através da qual vemos obscuramente até que os dois, ajustando seu

foco, revelam a verdade.

No dia em que a mensagem vier lá do distante horizonte onde reside

"aquela grande maioria", os mortos, a prova nos alcançará, não como uma

hoste de anjos no céu, mas como um comprimento de onda gravado num

laboratório, um comprimento de onda tão indiscutível e pessoal como a

impressão digital pertencente a alguém cujo corpo é pó. Então o cientista,

reconhecendo o comprimento de onda, exclamará: "Mas é alguém que

conheço! Tomei seu comprimento de onda antes de ele morrer". E

comparará sua gravação com o comprimento de onda que acabou de gravar e

saberá que pelo menos um aparelho, uma máquina, é capaz de receber uma

mensagem há séculos sonhada, a mensagem da continuação da existência

individual, que denominamos imortalidade da alma.

Ou talvez não seja um cientista que a receba, mas uma mulher esperando

junto de uma janela aberta para o céu.