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PEARL S. BUCK
UMA PONTE PARA PASSAR
Tradução de CONSTANTINO PALEÓLOGO
2.a Edição
EDIÇÕES MELHORAMENTOS
Título do original norte-americano: A BRIDGE FOR PASSING © 1961, 1962, by Pearl S. Buck
1964
Da Autora, nas Edições Melhoramentos:
MULHER IMPERIAL
A PRIMEIRA ESPOSA O AMOR ACIMA DE TUDO
VENTO LESTE, VENTO OESTE A BORBOLETA DE PRATA A ESTIRPE DO DRAGÃO
A PROMESSA A EXILADA
RETRATO DE UM CASAMENTO
É COMO É Moto de EDUARDO III, 1340 da Era Crista
QUE FAZER, ENTÃO? BUSCO REFÚGIO EM MEU CORAÇÃO, ONDE O AMO COMO QUERO. PAUL VALÉRY
I
LEMBRO-ME DO DIA em que decidi fazer o filme no Japão, um dia de
abril, há um ano, um dia como este no qual começo a história de meu
regresso à Ásia. Sempre soube que o regresso era inevitável, não um
regresso permanente, pois me sinto demasiado feliz em minha terra para
pensar em viver noutro lugar, mas, apesar de tudo, um regresso. Não se vive
metade da vida na Ásia, sem um regresso. Quanto à época, à causa, ou à
concretização, mesmo, do regresso, eram coisas que eu não sabia. Neste
nosso mutável mundo, o que mais muda é a geografia. A terra amiga da
China, berço de minha infância e juventude, é, por enquanto, terra proibida.
Recuso-me a chamá-la país inimigo. Em minha memória, o povo é
extremamente bom e o país extremamente belo.
A China, porém, não é toda a Ásia, embora seja a maior parte dela. Há
outros países aos quais eu poderia regressar — Japão, índia, Coréia e todos
os demais. O Japão, creio, é o que melhor conheço depois da China.
Logicamente, regressaria a ele, mas quando? Não sou turista. Não sinto
prazer em visitar um país apenas para ver a paisagem. Nem tampouco visitá-
lo na qualidade de pessoa importante. Quando regressar ao Japão, disse a
mim mesma, será para a realização de um projeto, um trabalho, algo
interessante a fazer, algo que explique a não aceitação de todos os convites
para jantar, para fins de semana, entretenimentos que as pessoas
hospitaleiras oferecem aos amigos. Mas que projeto? Uma nova pergunta foi
acrescentada às minhas "onde" e "quando".
Inesperadamente, um dia, propuseram-me ir ao Japão trabalhar, em
companhia de outros, na filmagem de meu livro A Grande Onda. O trabalho
seria algo de novo e, por conseguinte, de excitante. Já estou longe do
conservadorismo e da prudência da juventude. Cheguei à idade aventureira e
A Grande Onda é um livro aventuroso. Envolve uma longínqua aldeia de
pescadores, maremotos, um vulcão, coisas que eu não via há décadas e que
ansiava rever. As perguntas estavam respondidas. "Onde", era o Japão; #
"quando", era agora.
Não, não inteiramente respondidas, pois ainda havia minha família a
considerar. Alguns de seus membros eram velhos, outros muito jovens, uma
grande família que se espraiava sobre gerações e se bifurcava em
ramificações. Podia eu, devia eu, deixá-los a todos em semelhante momento?
Realizamos um conselho de família. A resposta foi que eu podia e devia. O
médico da família assegurou-me não haver motivo para adiar a partida. As
crianças, pequenas e grandes, achavam-se alegres e sadias. E ele? Ele estava
como sempre estaria agora. Se eu esperasse pela possibilidade final, talvez
tivesse de esperar anos. Seis meses antes, não teria podido deixá-lo. Mas, no
breve intervalo, a diferença, para mim, foi como entre o dia e a noite. Ele
mergulhara num mundo somente seu. Eu não havia aprendido ainda a
suportar o que era e sempre teria de ser.
— Vá, disse o médico. — Você precisa mudar de ares. Tem um longo
caminho pela frente.
— Vá, disse minha filha responsável. — Eu cuidarei de tudo.
Assim encorajada, foram assinados os contratos e adquiridas as
passagens.
O livro, naturalmente, tinha de receber um tratamento novo. A Grande
Onda é uma história simples, mas seu tema é vasto. Trata da vida e da morte
e novamente da vida, através de um punhado de seres humanos numa remota
aldeia de pescadores, no extremo sul da adorável ilha de Kyushu, no Japão
meridional. O livro sempre tivera vigorosa vida própria. Conquistara alguns
prêmios em seu gênero, fora traduzido para várias línguas, mas nunca para a
estranha e maravilhosa linguagem do cinema. Usar essa linguagem era, por
si só, uma aventura. Não mais palavras, agora, porém seres humanos,
movendo-se, falando, morrendo corajosamente, vivendo e amando com uma
coragem ainda maior. Estou habituada às artes usuais. Familiarizei-me com a
tela e o pincel, o barro e a pedra, os instrumentos musicais, mas o cinema é
diferente de todas. Também é, contudo, uma grande arte. Mesmo quando
profanado por gente vulgar e material barato, a potencialidade do processo é
inspiradora. Quando os artistas são suficientemente grandes, temos muitos
grandes filmes. Não me achava dominada pela ilusão de grandeza, mas
esperava que pudéssemos fazer um filme fiel à gente sobre a qual eu
escrevera.
Partimos em certa manhã de maio. O Japão fora um vizinho próximo
durante todos os meus anos na China. Quando criança, se viajávamos de
Vancouver ou São Francisco, o Japão era a última parada antes de Xangai,
porta de entrada do meu lar chinês. Se partíamos de Xangai, então o Japão
era a primeira parada na rota para o meu lar americano. Fora, também, o
nosso refúgio, quando as guerras revolucionárias nos expulsaram da China.
Certa vez passei vários meses numa pequena casa japonesa, nas montanhas
próximas de Unzen, perto da região sul da ilha de Kyushu, nas imediações
de Obama. Nesse mesmo ano, passeara em lancha ao redor de Kyushu e
parará rapidamente em Obama, a fim de banhar-me em suas fontes de água
quente. Vejo agora, na imaginação, minha aldeia de pescadores naquela
região de litoral esplêndido, montanhas verdes e seu vulcão fumegante.
— Eu a reconhecerei no momento em que a vir, disse à minha família.
— Será uma pequena aldeia, espremida numa praia rochosa, enseada arenosa
entre montanhas, algumas casas de pedra atrás da alta muralha do mar. Vejo-
a como se me lembrasse dela, embora não saiba seu nome.
Se o Japão me fora próximo e familiar no passado, agora parecia-me
situar-se do outro lado do portão de minha casa, na Pensilvânia. Tomamos
um jacto em Nova York, mais ou menos a duas horas de distância da casa de
pedra de minha fazenda, e decolamos em questão de minutos. Meditei na
incrível dimensão de minha vida. Embora, Deus querendo, eu tenha mais
décadas a viver neste belo globo, foi só na idade adulta que comecei minha
experiência da vida e dos homens. Menina, viajei em carro, de mão, liteira,
carroça de mula ou em barco puxado ao longo de um preguiçoso canal por
homens andando no caminho da sirga. Fiz doze anos antes de ver um trem,
na China, e só depois dos quinze foi que viajei nele. Conhecia navios, pois
os havia no Rio Iã-tsé para conduzir-nos a Xangai e, de lá, através do
Pacífico, ou, rio acima, a Kiukiang e às montanhas de Lu, onde nos
refugiávamos do tórrido calor do verão da planície. Só vi ou andei em
automóvel quando entrei no colégio e depois disso passei anos sem voltar a
vê-lo, até à época em que fui viver em meu próprio país. Tornei-me, então,
uma mulher moderna e, naturalmente, passei a viajar pelo ar. Não, esperem
— tomei, certa vez, um pequeno avião desengonçado para encurtar uma
viagem a Rangoon. Se o não fizesse, levaria oito dias a bordo de um barco
vagaroso. E noutra ocasião voei da Suécia a Copenhagen. Sim, e ainda outra
vez voei do Ceilão a Java, descendo, em certo momento, no calor úmido da
selva de Sumatra. Anos mais tarde, minha primeira viagem a jacto foi na
Europa, a bordo dos incrivelmente rápidos e silenciosos aviões que voam
entre Copenhagen e Roma. Meu interesse pela ciência manteve aguçada a
minha curiosidade no que se refere ao progresso dos jatos e dos foguetes, e
agora me impaciento com tudo quanto seja menos veloz que o jacto — eu,
que comecei a vida a uma velocidade não superior a cinco quilômetros por
hora, numa liteira!
Mas quando o jacto me ergueu da terra ao céu, naquela manhã de maio
em Nova York, confesso que experimentei uma exaltação quase única. O
enorme pássaro metálico aprestou-se para o vôo, seus motores roncaram, a
criatura tremeu com a sua própria força interior. Parte da exaltação era,
talvez, a inquieta consciência de minha completa impotência, ao ganharmos
altura. Eu me havia entregue à máquina. Não podia fugir, não podia descer.
Não tinha decisões a tomar, pois o único caminho era subir. Um velho
provérbio chinês diz que, dos trinta e seis caminhos de fuga, o melhor é
correr. Não sei quais são os outros trinta e cinco — é curioso que, durante
tantos anos na China, nunca pensei em perguntar, talvez porque a resposta
óbvia seria a de que os outros caminhos eram desnecessários, pois sempre se
pode correr. Mas em nossa época moderna isto já não é verdade. Quando nos
entregamos a um avião e a porta se fecha, separando-nos da terra e do lar,
não há mais fuga, mesmo correndo. O resultado é uma estranha sensação de
paz — desesperada, talvez, porém paz.
Tais pensamentos fortuitos esvoaçavam através de minha mente, naquela
manhã, enquanto observava, pela pequena janela, o globo afastar-se,
rodopiando, de mim. Quando — e se — eu regressasse a ele horas depois, o
vasto continente da minha terra natal e a faixa, azul do Oceano Pacífico
estariam entre mim e o meu lar, embora na minha infância nosso navio
levasse semanas para atravessar o mesmo oceano e nosso trem mais outra
semana para atravessar o continente. Contudo, este mundo novo nunca me
parecera estranho. A velocidade tornara-se coisa tão natural quanto
necessária. Flutuávamos sobre um mar de nuvens prateadas e eu me recostei
na poltrona para trabalhar no script de meu filme.
As Ilhas do Havaí são trampolins entre a Ásia e os Estados Unidos.
Lembro-me delas como ilhas de esperança, quando eu era menina e viajava
em navios. Dez dias de São Francisco a Honolulu, ou oito dias de Yokohama
a Honolulu, era a previsão. Mas, rumando para o oriente ou para o ocidente,
estava sempre ansiosa por alcançar as ilhas do verde eterno, onde se podia
colher cocos à vontade e as grinaldas de flores fragrantes eram o
cumprimento de todos os dias. A velocidade do avião privara-nos um pouco
da excitação do grande navio atracando suavemente no cais, depois da longa
viagem, e da vista de grupos de amigos esperando, ou mesmo da tristeza dos
últimos momentos de adeus, amigos acenando do cais enquanto o grande
navio içava as âncoras para iniciar a longa viagem.
A bordo de nosso avião a jacto, aterrissamos hábil e precisamente em
Honolulu, sem o menor atraso, e fomos recebidos por pessoas eficientes que
nos levaram ao hotel para passarmos a noite. Eu decidira por essa parada,
não apenas porque queria rever Honolulu, mas particularmente porque
desejava rodar uma vez mais ao longo das sinuosas montanhas, atrás da
cidade. Queria ver os esquiadores aquáticos cavalgando as suas pranchas na
crista das ondas. Desejava, acima de tudo, sentir a atmosfera do Havaí, agora
como Estado livre de uma nação livre. Eu imaginava que, pertencer a uma
nação, como parte integrante, devia significar o abrandamento dos
descontentes e resmungões da ilha — não que houvesse muitos resmungos
no Havaí, onde o ar é sempre tépido e a chuva e o sol caem diariamente tanto
sobre justos como injustos, em geral ao mesmo tempo. Não — seria uma
questão de estado de espírito.
Era noite quando chegamos e a lua brilhava sobre a alvura da
arrebentação e o mar escuro. O hotel era palaciano e ao atravessarmos o
imenso vestíbulo para reclamar nossos quartos a fim de nos instalarmos para
dormir, homens e mulheres ainda iam e vinham, gente de várias raças e
costumes. Ninguém me era estranho, a não ser as turistas, em "Mãe
Hubbards", aqueles trajes legados por missionários sensíveis nos dias
primitivos em que, como Adão e Eva no seu Éden, os havaianos não sabiam
que estavam nus. Os missionários sabiam, naturalmente, e, gozando as
fantasias e caprichos do coração humano, pensei algumas vezes se teriam
sido os primitivos missionários que ordenaram às adoráveis mulheres nuas
que se cobrissem, não fosse o santo ceder ao diabo que há dentro de todos
nós, ou se teriam sido as missionárias, de saias e mangas compridas, de golas
altas, as quais sabiam jamais poder competir com os macios corpos morenos
que nada mais vestiam além de um alegre pedaço de pano ou um punhado de
folhas nos quadris e uma flor vermelha nos seus ondulados cabelos negros.
Só Deus sabe, e Ele guarda tais segredos para Si mesmo — com um sorriso,
talvez! Hoje, graças aos caprichos da moda, as moças do Havaí trajam
elegantes vestidos ocidentais e as turistas vestem esvoaçantes "Mãe
Hubbards" e mais uma vez são as havaianas que levam a melhor.
O ar do Havaí é divino, nada menos. Deitei-me em minha confortável
cama, dormi e acordei para respirar a suave e pura atmosfera soprada para
dentro do aposento por um vento gentil do mar, e tornei a dormir até que o
sol inundou o quarto. Levantei-me, tomei banho, vesti-me e fiz sozinha a
primeira refeição, no terraço contíguo ao aposento. O ar, lá fora, era
exatamente da temperatura do meu corpo. Não senti choque de frio nem de
calor. É assim que uma criança não nascida deve sentir as águas acolhedoras
de seu primeiro lar. Suave fluidez indescritível, e o resultado é o bem-estar,
ausência total de conflito com o meio circundante.
Já havia esquiadores aquáticos desfrutando a expansão matinal das
ondas, e homens e mulheres quase despidos vadiavam na praia. E eu tinha
toda a razão quanto à mudança de estado de espírito. O garção, que trouxera
meu café, movimentava-se com uma calma e uma confiança que
significavam satisfação íntima. Conversamos brevemente sobre o assunto,
após ter eu observado que, quando lá estivera antes, Honolulu não era capital
de um Estado.
— Tudo agora é melhor, disse-me ele.
— Melhor como? perguntei. Ergueu os ombros, expressivamente.
— Não é questão de comida, de roupas ou de coisas que se possa pegar
com as mãos. É, apenas, melhor... Agora existimos. Agora podemos falar...
Madame, a marmelada está muito boa — laranja fresca, abacaxi fresco.
Recomendo-lhe!
— Obrigada, tornei eu, e acho que tem razão. Tudo está melhor.
Refleti sobre essa sabedoria depois que ele partiu o meu ovo na xícara,
serviu-me café e se foi. A exclusão é sempre perigosa. A integração é a
única segurança, se vamos ter um mundo pacífico, integração numa
comunidade nacional, inclusão numa comunidade internacional de nações.
Creio que todas as nações devem pertencer às Nações Unidas, tão inevitável
e irrevogavelmente quanto uma criança tem de nascer numa família. A
renúncia deve ser impossível. Se, num arroubo de impertinência, a criança se
retira ou mesmo foge, ainda continua sendo um membro da família. A
relação básica se aplica, numa escala mundial, à família das nações. Todas as
coisas básicas são simples e compreensivas. Só as coisas simples podem ser
suficientemente grandes para conter todas as confusões.
Não gosto de praticar esqui aquático. O mar e eu não somos inimigos,
mas somos, digamos, amigos cautelosos. Tenho tido encontros com o mar
colérico, e até mesmo com o mar cordial, dessa cordialidade que o leão
também possui, quando derruba um homem com uma patada brincalhona.
Certa vez, num dia de agosto, no Vinhedo de Martha, ele e eu estávamos
nadando na arrebentação. Alguns dias antes houvera uma tempestade e,
embora o céu estivesse azul naquela manhã, o mar se agitava em ondas
magníficas.
— Segure minha mão, disse ele. — Juntos seremos bastante fortes.
Não nos tornamos bastante fortes, mesmo juntos. O mar apanhou-nos em
suas enormes garras, quebrou-se o equilíbrio, sacudiu-nos violentamente até
deixar-nos sufocados, cegos e quase afogados. Ainda de mãos dadas, fomos
afinal atirados à praia e assim escapamos. O que recordo era a nossa total
impotência, naqueles momentos, dentro da onda, quando ficamos à mercê de
uma força insensata e impiedosa. Caminhamos em silêncio pela praia, ele e
eu, gratos pela vida e não querendo saber mais do mar naquele dia.
Não tinha vontade alguma, por conseguinte, de esquiar sozinha em
Honolulu.
Tampouco adianta imaginar que posso me divertir numa multidão. Há
caçadores de autógrafos em toda parte do mundo e, não gostando de parecer
descortês, o melhor para mim é permanecer solitária. Sozinha, portanto,
apreciei meu terraço, a vista do mar e da montanha. Li os jornais locais,
sempre uma ajuda à compreensão, e deixei o dia fluir até o almoço com
amigos e um passeio ao redor > das ilhas num jipe aberto. Waikiki é para
turistas e só quando saímos dela é que vemos as outras praias, abrigadas em
enseadas, onde as pessoas que vivem em Honolulu, ou nas proximidades,
reúnem suas famílias para se divertirem e fazer piqueniques. A estrada é
excelente e percorre um litoral deslumbrante. Paramos várias vezes para
observar o estouro das pesadas ondas contra as negras rochas de lava antiga.
Novamente, como tantas vezes em minha vida, demorei-me a admirar,
maravilhada, os estranhos e íngremes penhascos daquelas montanhas negras
e abruptas, encarando o mar. É incrível que seres humanos possam galgar
aqueles altos pilares de rocha vulcânica, ou que existam cavernas e fendas
entre elas. Contudo, em outras épocas, homens as galgaram levando para
dentro das cavernas e fendas canoas e botes, transformando-os em túmulos
de seus famosos capitães do mar. Hoje, outros homens as galgam para trazer
de volta as embarcações, limpá-las da poeira antiga e colocá-las em museus.
Lembrei-me da Noruega e,dos grandes navios em museus, os quais lá
também eram túmulos dos homens do mar. Aqui no Havaí a façanha parece
incrível em virtude da formação íngreme das montanhas semelhantes a
recifes.
Estava escuro quando voltamos ao hotel e as manchetes do jornal da
tarde noticiavam um vasto terremoto no Chile. Li o relato do desastre e me
afligi por aqueles que haviam perdido a vida.
Chile! Recordei que a Expedição Downwind, do recente Ano Geofísico
Internacional, levara em navio, na sua exploração suboceânica do Pacífico,
um aparelho que, posto no chão marinho, podia medir o fluxo de calor
proveniente do centro da Terra para o solo do Pacífico. Na elevação da Ilha
de Páscoa o fluxo de calor aumentou acentuadamente. A Ilha de Páscoa e
Sala y Gomez, ambas chilenas, são o resultado desse aumento. E logo depois
da costa ocidental do próprio Chile há uma longa e profunda vala, de base
muito estreita, uma compensação dos Andes, mas produzida provavelmente
por um rio serpeante de elemento frio, fluindo do centro do oceano e abrindo
caminho sob a rochosa massa continental. Um estranho e silente mundo
subterrâneo, este leito oceânico, mundo violento quando sobrevém a
catástrofe, no conflito entre o fogo e a água, o calor e o frio.
O Chile parecia muito distante das aprazíveis ilhas do Havaí e eu me
voltei para as exigências da noite. Jantaríamos no night club do outro lado da
rua e fomos, portanto, apreciar as comidas, a música e as danças havaianas.
As danças fizeram-me rir repetidas vezes. Não eram apenas belas — também
sutis e alegres, sátiras da vida. Uma dança, ostensivamente em memória dos
primeiros missionários, era particularmente cômica. Entrou no palco uma
encantadora e esbelta morena. Trajava um vestido ocidental branco e fora de
moda, de musselina bordada, não uma "Mãe Hubbard" mas a espécie do
vestido que uma mulher de missionário deve ter usado há uma centena de
anos, gola alta, mangas compridas, estreito no colo, saia arrastando no chão,
de cauda franzida. A moça era a imagem da doce inocência, seus longos
cabelos negros suavemente penteados formando um coque na nuca. O único
toque colorido, com exceção de seus polpudos lábios vermelhos, era uma
flor escarlate de hibisco atrás da orelha esquerda, e essa flor me tornou
desconfiada. Em poucos minutos minhas suspeitas foram confirmadas e não
pude conter o riso. Pois essa moça, essa inocente donzela da ilha, envolta em
branco da cabeça aos pés, executou uma dança tão carregada de todos os
ardis que a mulher usa para seduzir o homem que a própria Eva, se a tivesse
visto, ter-lhe-ia pedido algumas lições. Dentro de sua branca embalagem o
bonito corpo moreno se arqueava e estremecia em alegria sensual, não
primitiva pois essa alegria é eterna, renovando-se em cada geração de
homem e mulher, uma dança de amor.
A luz amortecida das lanternas caía sobre o círculo de faces atentas, cada
qual absorta em seu próprio sonho, sua lembrança pessoal ou desejo
insatisfeito. Quando terminou, houve um silêncio, um longo suspiro, depois
aplausos estrondosos. A encantadora jovem sorriu, agradeceu e se foi.
Embora continuássemos aplaudindo até nos arderem as palmas da mão, ela
não voltou à cena.
O mestre de cerimônias prefaciava cada número com uma agradável e
animada conversa. Por diversas vezes, durante a noite, mencionara uma
ressaca. Dissera, atirando a palavra como se fosse uma piada, que talvez
apreciássemos a excitação de uma ressaca e que, por conseguinte,
encomendara uma como atração adicional para a noite. Nenhum de nós o
levou a sério até o momento em que, agora, ao despertarmos novamente para
a realidade, ele começou de novo a tagarelar sobre a ressaca. Súbito, ouvi de
maneira aguda e clara o que ele dizia. Não estava nos anunciando uma
ressaca — advertia-nos de sua aproximação.
Levantei-me imediatamente, com minha companheira, saí da sala e
atravessei a rua em direção ao hotel. Lá tudo era confusão. Hóspedes
estavam sendo transferidos para os pavimentos superiores e havia barricadas
nas ruas que davam para o mar. Que fazer? olhamos uma para a outra,
consternadas. A partida de nosso jacto estava programada para a uma hora
da madrugada. Agora, eram quase onze horas. Se a vida e suas crises me
ensinaram alguma coisa, foi continuar com o plano traçado até que a sua
execução se torne impossível. Corremos, pois, aos nossos quartos,
arrumamos as malas e tomamos o último táxi disponível para o aeroporto.
O aeroporto, em Honolulu, como todos sabem, fica numa estreita
península exatamente acima do nível do mar. Quando chegamos, estava
alarmantemente vazio. Uns poucos empregados olhavam o horizonte e o
chofer mostrava-se apressado em receber o seu dinheiro e ir embora.
Minutos depois encontramo-nos sozinhos na grande sala de espera e fomos
escoltados por um soturno funcionário até o pavimento superior, entrando
numa confortável sala de clube, na qual havia apenas uma assustada
garçonete atrás do balcão de refeições. Recebeu-nos sem entusiasmo, serviu-
nos o café e em seguida dirigiu-se para a grande janela, de onde ficou
olhando a escuridão sobre o mar. Sentamo-nos no sofá e ficamos ouvindo,
obrigatoriamente, o clangor do rádio, instalado no teto, sobre nossas cabeças.
Estava transmitindo jazz, mas de quando em quando a música era
interrompida e uma voz inexorável anunciava que a ressaca atingira outra
ilha e que a sua altura estava aumentando. Em poucos minutos golpearia
Hilo, com uma altura calculada em mais de dezoito metros. Aprendemos,
também, que a ressaca era conseqüência do terremoto no Chile. Havia uma
conexão continental, sob o oceano, entre aquela profunda vala, na costa
chilena, e as ilhas do Pacífico. Estranho simbolismo, esse, pelo qual um
terremoto, num hemisfério, produz uma ressaca no outro!
Minha meditação foi interrompida pelo súbito desaparecimento da
garçonete. Ela voltara ao balcão, murmurando algo sobre seu marido e seus
três filhos. Ficariam alarmados quando não chegasse em casa à meia noite,
como de costume? Não podíamos responder à sua pergunta, nem ela
tampouco, e sem outra palavra, nem ao menos adeus ou boa noite, deixou-
nos e não tornamos a vê-la.
Permanecemos sentados na vasta sala. A música de jazz extinguiu-se à
meia noite e ficou apenas a voz, anunciando a investida da ressaca.
Consideramos nosso destino, fosse ele qual fosse, e a conversa cessou. Os
aviões tinham sido removidos do campo, disse-nos a voz, e todos os vôos
foram cancelados. As estradas para o hotel estavam interditadas. O silêncio
sobre a cidade era ominoso. Tornamo-nos parte do silêncio. Nada havia a
fazer, exceto esperar.
Súbito, à uma hora da madrugada, em ponto, a porta se abriu. Um rapaz
ofegante gritou-nos que descêssemos imediatamente ao campo. Nosso jacto
decolaria nos próximos minutos. Sim, a bagagem estava a bordo. Pegamos
nossas maletas de mão e corremos atrás dele. Lá estava o jacto. Fomos
empurrados para o seu bojo, e mais depressa do que jamais vi um jacto
decolar, subimos ao céu. No momento exato em que deixamos a terra, o
rádio anunciou a chegada da ressaca.
Subindo ao céu, lembrei-me da morte. As precedentes horas de
ansiedade, o instante final da partida, a inevitável separação da terra e tudo
quanto havíamos aprendido, a ascensão ao espaço desconhecido — não é
esta a experiência da morte? Há uma diferença. Do vôo final não se regressa.
Para nós havia a esperança de regressar ao belo Japão.
Contudo, antes que pudéssemos chegar de novo à terra, a ressaca havia
golpeado. Cortando velozmente o ar, a grande altitude, soubemos pelo rádio
que, viajando em direção ao ocidente, ela já havia alcançado o Japão. Viajara
mais depressa que o nosso jacto para atacar, com cruel violência, as praias
nordestinas. O povo da região fora advertido pelo governo, mas não podia
compreender. A experiência lhes ensinara que terremoto e ressaca vinham
sempre juntos. Não podiam compreender que um terremoto no Chile
significasse uma ressaca em suas praias. Que estranha coincidência, a de
estarmos chegando ao Japão, naquele exato momento, para fazer um filme
intitulado A Grande Onda!
— Como foi que o conseguiu? perguntaram os repórteres, no aeroporto,
em Tóquio. — Quem é o seu agente de publicidade?
Estavam brincando, naturalmente. Não tínhamos agente de publicidade,
mas era certo que viéramos montados na publicidade da gigantesca ressaca.
Afligia-me que o meu regresso à Ásia se verificasse junto com uma
tempestade. Sentia-me impotente para outra coisa que não fosse exprimir
minha simpatia pelos que haviam sofrido.
Quanto ao mais, esperara uma chegada tranqüila a Tóquio. Era entre
duas e três horas da madrugada e eu não imaginei que houvesse alguém no
aeroporto para receber-me. Pensei que um ou dois sócios em negócios,
alguns amigos, talvez, depois uma rápida corrida através das ruas escuras até
o velho Imperial Hotel, um banho e cama. Fora um longo vôo, afinal de
contas. Em determinado momento, durante a noite, pousamos na Ilha Wake
para reabastecer o avião, mas isto não parecera importante. Vi, pela janela,
apenas um amontoado de prédios e homens movimentando-se aqui e acolá,
tratando de seus negócios. Poderia ter sido em qualquer lugar, no meio da
noite. Tóquio era outra coisa.
— Alegra-me que tenhamos chegado a uma hora tão macabra, dissera
eu. — Não pode haver ninguém à nossa espera.
— Não tenha tanta certeza, redargüiu minha companheira.
O grande avião estremeceu ao baixar e as luzes de Tóquio brilharam
entre as trevas.
— Eu estava certa, disse. — Não há ninguém aqui. Um homem em _
uniforme branco avançou para mim.
— A senhora é...
— Sim, somos nós, respondi.
— Então seja bem-vinda ao Japão, tomou ele. — Pertenço à aviação
japonesa. Por aqui, por favor... Um momento, por favor... fotógrafos e
repórteres.
Paramos. Luzes nos focalizaram nas trevas e câmaras dispararam.
Repórteres aglomeraram-se à nossa volta, com perguntas e exclamações
sobre a ressaca.
— Obrigado, disse o homem quando demonstramos sinais de exaustão.
— Seus amigos estão à sua espera.
Esperando por nós? Passamos rapidamente pela alfândega e nossos
amigos nos esmagaram, literalmente, com saudações e flores.
Como me senti? De certa maneira, também, como se tivesse chegado à
pátria após longa ausência. De certa maneira, também, como se tivesse
chegado a um país novo e estranho. As faces sorridentes, as vozes cálidas, às
vezes os olhos marejados de lágrimas, reclamavam-me como a um dos seus.
Homens e mulheres que eu conhecera jovens durante minha própria
juventude lá estavam, tão mudados quanto eu, tendo a seu lado filhos e netos
como os que eu deixara em casa, os meninos em roupas ocidentais, as
meninas em seus quimonos formais.
— Minhas filhas levantaram-se à uma hora da madrugada a fim de que
pudessem vestir o quimono para recebê-la, disse com orgulho uma amiga.
Eu sei quanto tempo leva vestir apropriadamente um quimono e fazer o
penteado adequado. As meninas eram belas e me alegrei por haverem elas e
as outras vestido quimono para fazerem sentir-me em casa, pelo menos
quando chegasse. No tempo em que morei no Japão, antes da guerra, todas
as minhas amigas usavam quimono. As mais modernas e liberais possuíam,
talvez, um costume ou vestido ocidental, mas isto era incomum e não muito
aprovado. Agora as japonesas usavam vestidos ocidentais todos os dias e
sempre, exceto nas poucas ocasiões formais da vida, quando punham seu
quimono. Muitas delas têm só um quimono e algumas nenhum. Há exceções,
naturalmente. As velhas usam quimono e certas mulheres distintas, mesmo
em seus negócios, o usam sempre. Minha especial amiga usa quimono
porque lhe assenta bem. Ela alcançou a posição e a idade em que pode usar o
que lhe apraz.
Naquela noite, atrás da multidão amiga com suas flores e fotógrafos, eu
estava consciente da própria cidade de Tóquio. Sabia quão severamente fora
bombardeada durante a guerra e que agora se achava reconstruída, nova e
próspera, talvez um símbolo do Japão que me era estranho. Contudo, pensei,
mesmo as pessoas que foram receber-me pareciam mudadas para melhor. O
velho formalismo rígido havia, de certo modo, desaparecido. Ouvi risadas
prontas, não o velho riso polido, mas espontâneo e real. Todos falavam
livremente e sem medo. Isto era novo. Perdurava a doce cortesia, mas
impregnada de vida e bom humor, como se uma antiga inibição tivesse sido
removida. Esta foi a minha primeira impressão, naquela noite, e tornarei a
falar nisso muitas e muitas vezes porque a encontrei expressa em toda parte e
de várias maneiras.
Entrementes, os fotógrafos acompanhavam pacientemente nossos passos.
Os fotógrafos japoneses são infatigáveis, filosóficos e incrivelmente ágeis.
Não pedem sorrisos ou poses agradáveis. Suas câmaras disparam
incessantemente, onde quer que a pessoa esteja e faça o que fizer.
Voam dentro da noite como vaga-lumes. Fomos fotografados
continuamente, cobertos de flores e cercados de amigos. Movemo-nos em
massa, afinal, para os carros que nos esperavam e fomos conduzidos, a toda
velocidade, para o Imperial Hotel. Não sei por que nunca tive medo dos
motoristas japoneses. Arremetem através de ruas sem sinais e de multidões
compactas, gritando e advertindo, contudo não sofrem acidentes; eu, pelo
menos, nunca vi algum. Tudo isso me parecia bastante natural, recordando-
me outros dias, anos antes, quando fui conduzida exatamente do mesmo
modo, através de ruas ou ao longo da beira de penhascos, montanhas acima e
abaixo, ou sobre o mar e a estrondosa arrebentação. A falta de medo talvez
se deva simplesmente ao fato de que, na Ásia, eu me descontraio adotando a
aceitação oriental e compreendo que nada há, praticamente, que eu possa
fazer a respeito de nada.
Afinal chegamos, e vivos, ao Imperial Hotel, esse paraíso onde o Japão
recebe o mundo com a sua própria graça e estilo, combinados com um
espantoso acervo de conforto e bom serviço. Uma hora depois, estávamos
dormindo em aposentos refrigerados, cercados de flores em cestas japonesas.
Não obstante, demorei muito a adormecer. A memória se pôs a trabalhar
e imagens desfilaram pela minha mente. A primeira foi a face vivida de
minha mãe, cabelos castanhos, pele morena, olhos castanhos. Estávamos
sentadas na ampla varanda de nossa casa, na China. Eu tinha, talvez, sete
anos, garota descalça de compridos cabelos louros, sentada no chão diante
dela, apertando os joelhos e escutando. Ela me contava a história de minha
irmã, que morrera antes de eu nascer.
— No Mar Amarelo, dizia minha mãe, entre o Japão e a China.
Tínhamos ido passar o verão no Japão, nas montanhas que ficam atrás de
Nagasaki. Foi antes de descobrirmos Kuling, nas montanhas de Lu, em
Kiangsi, aqui na China. Fazia tanto calor no Vale do Iã-tsé, que receei pela
saúde das duas crianças. Passamos um ótimo verão no Japão — o ar era
fresco e saudável no alto daquelas montanhas. Eu queria ficar até outubro,
mas seu pai disse que precisava voltar em setembro. Não deveria ter-lhe
dado ouvidos, mas sempre o fiz. Voltamos num vapor japonês — o
Hiroshima Maru — o bebê adoeceu. Não sei o que era — febre alta e
disenteria. Tinha apenas seis meses de idade e não era forte. E eu sempre
sofro de enjôo, no mar — não podia nem mesmo segurá-lo. Seu pai tentou
cuidar de mim. E o velho Dr. Martin começou a passear no convés com o
bebê nos braços. Nunca esquecerei o seu aspecto — tão alto e ereto, com o
pequenino bebê no colo.
Aqui seus olhos sempre se enchiam de lágrimas e eu também soluçava
por vê-la chorar, e me aproximava dela. Estendeu a mão para mim e eu a
agarrei com as minhas.
— E então? supliquei.
— Bem, você sabe, querida. Ela morreu em meus braços. Eu estava
deitada numa espreguiçadeira, tão doente! Era uma noite parada e quente, a
velha Lua mergulhando no mar. E súbito o vi deter-se e examinar o rosto do
bebê. E eu... compreendi.
Senti a mão dela em minha face, ansiei por confortá-la e de fato a
confortei, suponho, à minha maneira infantil. Pois a história usualmente
terminava com ela enxugando os olhos e dizendo vivazmente:
— Agora vamos ouvir um pouco de música, antes de irmos para a cama.
Ou talvez sugerisse uma laranja, manga ou um pedaço de toranja.
Que coisa volátil a memória! Quando pensei na toranja, lembrei a delícia
dessa fruta suculenta e doce, parenta da grape-fruit mas infinitamente
melhor sob todos os aspectos, a casca fácil de destacar, os gomos soltos uns
dos outros e o sabor soberbo. Comparada com ela, a grape-fruit é uma
pequena bolsa de caldo azedo que só se extrai com muito esforço. Resolvi
procurar toranjas novamente, no Japão, pois não as tinha visto em meu país.
Dos lábios de minha mãe, portanto, ouvi pela primeira vez os nomes de
cidades japonesas, e vi, com os olhos do espírito, paisagens de montanha e
litoral. E minha pequenina irmã morta fora enterrada num cemitério cristão
de Xangai, como eu sabia, pois vi seu nome com os de três outras crianças
de nossa família, que nasceriam mais tarde na China, e lá morreriam. Isto foi
antes de eu nascer na casa colonial de minha avó, em West Virgínia.
Contava nove anos quando vi pela primeira vez o Japão, o que se deu
quando visitei também pela primeira vez a minha própria terra. Nosso navio
parou em Nagasaki. Era um barco canadense, pois meu pai estava
convencido de que somente os ingleses sabiam de fato fazer navios e pô-los
a navegar, e só em um capitão inglês se poderia ter confiança de que
controlaria adequadamente a sua tripulação. A cidade de Nagasaki é um
porto marítimo, naquela época bem pequeno, um punhado de casas plantadas
na praia e empurradas, por trás, pelas altas montanhas. O povo falava um
dialeto e meu pai não me deixou aprender uma palavra sequer, porque,
explicou, não se tratava de japonês puro e era importante que as primeiras
palavras de uma língua fossem aprendidas com a sua pronúncia perfeita. Ele
próprio era um lingüista consumado e eu sempre lhe obedeci. De outra
maneira, isto não me haveria ocorrido. Quanto ao nome de Hiroshima,
permaneceu para mim como o nome do navio japonês no qual minha irmã
morreu, até anos, décadas mais tarde, quando se tornou a cidade da morte,
depois que a bomba caiu.
O vestíbulo do Imperial Hotel é o lugar onde qualquer um encontra
qualquer um, de qualquer parte do mundo. Desci a ele na manhã seguinte
num elevador cujo cabineiro era uma bela japonesa em quimono. Quando
entrei no vestíbulo fui abordada por uma americana de fisionomia agradável.
— Você me parece familiar, disse ela. — Sou de Ohio. Não a conheço?
Sorri e sacudi a cabeça. Ela sorriu e continuou seu caminho. No instante
seguinte minhas mãos foram calorosamente agarradas e vi, à minha frente,
um velho amigo da índia.
— Imagine, encontrá-la aqui, gritou ele. — Por que não está em Nova
Delhi? Nosso quarto de hóspedes a aguarda.
Sentamo-nos e trocamos promessas. Deu-me notícias de sua família, de
sua bonita e jovem esposa, muito mais moça que ele e que contrariara a
vontade dos seus para desposá-lo, pois ele tem idade suficiente para ser seu
pai. Mas ela é uma jovem decidida, eram felizes juntos e, para seu imenso
orgulho, dera-lhe dois filhos. Tirou fotografias da carteira, enquanto me
falava deles. Vi a família reunida em seu belo jardim tropical. Ismaya estava
encantadora em seu sari, uma jovem mulher tranqüila e bem organizada,
seus dois meninos segurando-lhe as mãos e, atrás deles, meu amigo, alto,
elegante e de cabelos grisalhos.
— Pareço o avô, não é? observou orgulhosamente. — Mas deixe-me
dizer-lhe: aconselho aos pais a que tenham filhos quando forem velhos.
Minha casa nunca estará vazia. Deixá-la-ei antes de meus filhos e, quando eu
me for, eles confortarão sua mãe.
Minha secretária japonesa achava-se a meu lado. Curvou-se, sorriu
conciliadoramente e lembrou:
— Por favor, agora está na hora da entrevista coletiva. Todos estão
esperando.
Entrevista coletiva! No Japão este é um acontecimento formal,
formidável mesmo, e disso tivemos a prova. O dia era quente, maio em
Tóquio é sempre quente. Reunimo-nos numa vasta sala, na extremidade da
qual havia uma comprida mesa e, atrás desta, uma fila de cadeiras. Tomamos
nossos lugares, não ao acaso, mas de acordo com meticuloso protocolo.
Discutimos, primeiro, quem sentaria à mesa. Depois discutimos a ordem em
que nos sentaríamos.
Tenho comparecido a muitas entrevistas coletivas, mas a respeito desta
havia uma excitação peculiar. A grande sala estava apinhada de repórteres de
todos os jornais e revistas — mais de setenta. Os fotógrafos eram
numerosos, porém permaneciam esperando, tranqüilos, com as câmaras em
repouso.
Como é habitual no Japão, a entrevista começou com discursos de
pessoas selecionadas. Em nosso caso, fora combinado que eu faria algumas
breves observações a título de introdução. O que eu disse foi, simplesmente,
que me sentia feliz por estar de novo no Japão, grata pela bondade com que
me receberam em minha última visita e pronta a informar sobre o avanço de
nosso projeto, A Grande Onda, uma história japonesa. Falei que estávamos
contentes por poder dizer-lhes que uma de suas próprias companhias era co-
produtora do filme e que havia solicitado ao diretor dessa companhia que
fizesse a comunicação formal.
Enquanto isto ocorria, as costumeiras moças bonitas serviam-nos copos
de chá gelado. Grande inovação, essa do chá gelado, influência do Ocidente,
sem dúvida, pois eu só me lembrava de haver tomado chá quente no meu
tempo. Naquele calor úmido o chá gelado era uma bênção. A imprensa
permanecia submissamente sentada, sem chá, ouvindo com atenção. Não
eram permitidas perguntas enquanto não terminassem as discussões.
O discurso, neste caso, foi notável. O diretor da companhia
cinematográfica era muito conhecido e altamente respeitado. Homem do
lado jovem da meia-idade, temperamento calmo, completa segurança e
agradável calor. Não compreendo japonês, mas o discurso continuou durante
algum tempo. Fiquei a imaginar o que estaria dizendo, pois habitualmente é
homem de poucas palavras. Nosso tradutor contou-nos depois, em particular,
o que fora dito. Como podia deixar de emocionar-me? Havia sido um bonito
discurso, no qual dissera que sua companhia se sentia honrada por tomar
parte na filmagem de A Grande Onda. Disse que certa vez ele próprio
pensara, alguns anos antes, em fazer um filme do livro, pois o lera numa
época de profunda depressão espiritual, quando o Japão se achava diante do
mundo, pela primeira vez em sua altiva história, como nação derrotada. Ele
próprio não sabia como recuperar a confiança mental. Um dia encontrou esse
livrinho e o leu. Sentiu que o autor desejara transmitir, através dele, uma
mensagem de esperança ao povo japonês, uma crença em que, se eles
haviam vivido através dos séculos com a constante possibilidade de
destruição por maremotos e terremotos, e na verdade sofreram várias vezes,
tragicamente, os efeitos de tais catástrofes naturais, apenas para
sobreviverem com renovada força e coragem, assim também tornariam a
sobreviver mesmo à derrota. Agora, por uma coincidência peculiar, tinha a
oportunidade de tomar parte, por intermédio de sua companhia, no preparo
da versão cinematográfica da história. Anunciava, portanto, naquela
entrevista coletiva, que sua companhia se reunira aos americanos como co-
produtora de A Grande Onda.
Ouvi, com gratidão à vida. Para uma escritora constitui a mais alta
recompensa saber que um livro, escrito em dúvida e solidão, atingiu um
coração humano com uma significação ainda mais profunda que aquela de
que a escritora tinha consciência ao escrevê-lo. É algo extra, a compensação
inesperada. Muitas perguntas seguiram-se ao discurso. Referiam-se à
produção, ao local da filmagem, aos nomes dos atores, pois tínhamos que ver
e ouvir muitos candidatos. Vinham se processando negociações, havia
semanas, com certos astros, e somente um ficara decidido. Mostrávamo-nos
resolutos, esgrimíamos com bom humor todos os esforços feitos para extrair
informações sobre o elenco. Súbito, quando nos achávamos prestes a
dispersar, recebemos notícia de que haviam chegado a bom termo as
negociações relativas a um astro. Pudemos, então, anunciar que o conhecido
ator japonês Sessue Hayakawa faria o papel do Velho Cavalheiro em A
Grande Onda.
Com isto os jornalistas partiram, exceto uma repórter inglesa que não
entendia japonês. Gastei alguns minutos com ela e com mais um ou dois que
desejavam algumas informações especiais.
Todos então se foram e fiquei novamente só. Este era o esquema
imutável de meus dias desde que ele cessara de ser ele mesmo — uma
multidão, depois ninguém. Sentia saudades, agora, especialmente porque ele
teria gostado dessa entrevista coletiva. Presidira muitas delas, para mim, em
várias partes do mundo, a primeira das quais quando voltei da China, tímida
e bastante assustada para determinar, no segredo do meu espírito, que, fosse
o que fosse que estivesse à minha espera, eu não permitiria modificação
alguma em minha vida. Foi modificada, naturalmente, no momento em que
nos conhecemos em Montreal. Eu chegara de Xangai por mar e por trem e
embora o conhecesse um pouco através de suas cartas — escrevia as cartas
mais encantadoras e bem compostas que jamais li — vi-o pela primeira vez,
queimado pelo sol e com olhos de um azul surpreendente. Fiquei sem fala,
com a minha habitual timidez, mas ele estava perfeitamente à vontade, como
sempre estivera em qualquer parte e com qualquer um, feliz atributo para
mim quando tive de enfrentar, no dia seguinte, a formidável imprensa em
Nova York. Mas ele conhecia os repórteres e eles o conheciam e o
apreciavam, pois começara sua vida profissional como jornalista. Colocou-
nos todos à vontade e me surpreendi respondendo francamente às perguntas
que me faziam. Demasiado francamente, disse-me ele depois, divertido, pois
quando indagaram minha idade não me ocorreu escondê-la, porquanto na
China cada ano era considerado uma honra a mais.
Seu desembaraço natural fazia dele um excelente presidente, e de fato
presidia uma espantosa variedade de organizações. Quantas vezes tomei
assento nessas reuniões e fiquei a observar enquanto ele, aparentemente sem
esforço, permitia a expressão de cada voz dissidente, a apresentação de todos
os argumentos, — e depois, tranqüilamente, em poucas palavras, sintetizava
o consenso de opiniões numa lúcida resolução! Possuía o raro dom de, da
desordem, criar a ordem, um dom editorial. Mas, além disso, possuía o dom
da compreensão humana que o capacitava a selecionar o essencial do
supérfluo e descobrir pontos de acordo entre aqueles que discordavam.
A pequena secretária apareceu de novo a meu lado. — Temos tempo de
ir ao velho templo Meiji antes de passar no escritório e quero que a senhora
o visite primeiro, por favor, disse-me ela. — Tóquio está nova demais, por
causa dos bombardeios, mas o templo é antigo e a senhora se sentirá melhor
depois de vê-lo.
Chamou um táxi e disparamos através da cidade, tão mudada que eu não
a teria reconhecido, nova, agitada, mas não bonita. O palácio, porém,
continuava como era, intocado. Vi os seus tetos arqueados elevando-se,
como antigamente, atrás das altas muralhas de pedra, circundadas de fossos.
Entramos então no templo Meiji e na velha paz. Vaguei pelos caminhos,
Sumiko discretamente quieta a meu lado, e descansamos à margem do lago.
Está como no meu tempo de menina, quando eu ali ficava com a minha
governanta japonesa. As mesmas carpas gordas, enormes, movendo-se
preguiçosamente entre os nenúfares... Foi o que eu disse a Sumiko.
— As mesmas não, por favor, replicou ela. — Na guerra muita gente
faminta vinha aqui apanhar carpas e come' Ias.
Sustentei, porém, que algumas delas eram as mesmas. Pois não
poderiam, de outro modo, ter crescido tanto, mesmo no decurso de muitos
anos.
— Talvez, tornou ela polidamente. — De qualquer maneira, é tempo de
irmos andando, o escritório espera, sem dúvida.
Atravessamos o portão, tomamos outro táxi alucinado e fomos
transportadas como um raio aos escritórios da grande companhia
cinematográfica japonesa.
Aqui, pausa para um breve interlúdio.
O aspecto mais surpreendente do novo Japão é a mulher japonesa. Minha
primeira amiga japonesa era esposa de um inglês, que vivia numa grande
casa em encosta de montanha, perto do lar de minha infância, na China.
Devo ter conhecido outras japonesas em minhas idas e vindas do Japão, mas
nenhuma me causara impressão tão profunda quanto a senhora da casa
inglesa, e isto porque eu só a via quando passava em sua liteira, transportada
por carregadores uniformizados. Ela sempre usava quimono e os cabelos no
alto penteado lustroso das damas do Japão antigo. O rosto empoado de
branco e os olhos de ônix fitando, vagos, um ponto à sua frente, até divisar-
me, de pé, na poeira da estrada. No verão levava um pequeno pára-sol de
seda branca pintada com flores de cerejeira, e no inverno usava sobre o
quimono um casaco de brocado. Trocávamos olhares, os dela tristes e
inexpressivos até sorrir-me, e os meus abertos de maravilhamento e
admiração pela sua beleza. Uma bela mulher, um homem elegante, uma
criança bonita, são fontes de alegria, mesmo que o sejam apenas para os
olhos, se o não são para nada mais. Era assim que eu me lembrava dela,
minha amiga de certo modo, por causa do sorriso.
Anos depois, conheci mais intimamente, como amigas, outras japonesas
ocasionais. Elas pareciam, fossem quem fossem, sempre remotas, um tanto
tristes, esmagadas pelo dever, e isto era verdade quer se tratasse da esposa de
um lavrador, quer de um homem rico e de posição. Era preciso sempre
atravessar uma barreira, a do desapontamento com a vida, talvez, se não uma
mágoa pessoal, antes que se pudesse atingir a mulher interior. Talvez ela
nunca pudesse ser alcançada. Sua voz suave e gentil, suas maneiras modestas
e plenas de consideração para com os outros, vestia o silêncio como a um
traje, e a menos que fosse diretamente interpelada, parecia apagada no
segundo plano.
Nada disto é verdade, agora. A mulher antiquada simplesmente
desapareceu do Japão, ou pelo menos é o que me parece. Os homens
mudaram pouco, tanto na aparência como no comportamento. Mas as
mulheres? Não posso descrever as diferenças que, num dia ou num lugar,
encontrei nas japonesas. Permitam-me abordar o tema gradativamente,
através de mulheres particulares que vim a conhecer enquanto fazíamos o
filme.
Mal entramos nos escritórios da grande companhia cinematográfica
japonesa, espantei-me com o que vi. Noutros tempos eu teria sido recebida
por um jovem, secretário e assistente dos diretores. O escritório seria
composto de rapazes. Agora, porém, era composto de moças, todas em
elegantes trajes ocidentais, muitas delas falando inglês fluentemente. Tive a
impressão, também, de que todas eram eficientes e bonitas. Uma delas
avançou para nós, quando aparecemos, e era certamente muito bonita. Tinha
os cabelos curtos e ondulados — deixem-me dizer aqui e agora, e tornar a
repeti-lo, provavelmente quanto deploro a ondulação permanente, no Japão.
Os macios cabelos negros e lisos, que eram, outrora, a glória da mulher
japonesa, são atualmente cortados curtos e torturados em compactos caracóis
em forma de perucas. Pior que tudo, está na moda, especialmente para
atrizes, como vim a descobrir, tingir os cabelos negros de um ferrugento
castanho. O brilho natural se perde e a cor barrenta embaça a leve tonalidade
creme da pele, tão bonita anteriormente. Por algum motivo, esse castanho
ferrugento também tirou o efeito dos olhos negros, embora as japonesas
disponham das últimas novidades para make-up de olhos, maquilagem do
rosto, em forma líquida, seca ou pastosa.
Essa aparência moderna, contudo, nada é, comparada ao comportamento
atual. Desapareceram os modestos olhos baixados, a delicada reserva, a
aproximação indireta dos homens. Em vez disso, olhares ousados, palavras
francas, ataque sexual aberto a qualquer homem disponível, com preferência
pelos demasiado suscetíveis americanos, é a regra do dia.
Estou me adiantando à minha história. Não aprendi imediatamente tudo
isto, ao entrar nos escritórios da grande companhia cinematográfica
japonesa. O que vi foi um bando de mulheres bonitas, esmeradas, serenas,
eficientes, vistosas e como que indestrutivelmente jovens. Uma delas
conduziu-nos ao gabinete interno. Confesso que foi tranqüilizador ver a
minha especial amiga sentada atrás de uma escrivaninha muito moderna,
sem dúvida, mas vestindo um quimono de seda cinza prateada e um cinto
vermelho pálido. Levantou-se para receber-nos, curvando-se profundamente,
com toda a antiquada graça. Seu inglês é perfeito, e eu sabia que fala
igualmente bem francês, alemão e italiano, pois parte de seu trabalho
consiste em viajar por países europeus, tratando de filmes japoneses. Nada
há, nela, realmente, de antiquado, a não ser seu vestido. É sócia no negócio,
em pé de igualdade, com seu marido e dois outros homens. Eles se rendem à
sua sabedoria, eficiência e julgamento, embora eu tenha ouvido subterrâneos
resmungos ocasionais do gerente de produção, quanto ao fato de que ela
estava "tomando muita altura ultimamente". Mas como se tratasse de um
celibatário, coisa repreensível, por si mesma, num homem de mais de
cinqüenta anos, no Japão, não o levei a sério.
O gabinete era elegante, moderno até à última cadeira, mas da parede
pendiam uma fina pintura antiga e alguma excelente caligrafia. Minha amiga
convidou-nos a sentar, e duas ou três das bonitas moças trouxeram-nos chá
verde em xícaras japonesas. Sorvemo-lo, conversando amenidades. Ela
convidou-me a passar o fim de semana em sua casa de campo de Kamakura.
Aceitei, e disso falarei mais, depois. Não demoramos, pois nunca é de boa
educação, no Japão, prolongar uma primeira visita. Passados cerca de quinze
minutos, a bonita jovem levou-nos ao gabinete do diretor da companhia,
homem alto e elegante, nem jovem nem velho.
Estava sentado atrás de sua escrivaninha e, quando entramos, levantou-
se, curvou-se e convidou-nos a sentar ao redor de uma comprida e ampla
mesa. Não falava muito inglês, e sua secretária, outra moça bonita, servia de
intérprete para nós ambos. Era um homem inteligente, como se podia ver de
suas finas feições civilizadas, e homem do mundo, seguro, autoconfiante,
cortês. A sala, como a maioria dos escritórios e gabinetes no Japão, tinha
atmosfera calma, era bem decorada e parca mas excelentemente mobiliada
com móveis modernos. Sentamo-nos à mesa em confortáveis cadeiras de
couro e outra moça bonita, ou duas delas, trouxe-nos chá fresco. Enquanto os
homens conversavam através da bonita intérprete, eu examinava a sala. Da
parede próxima a nós, no extremo do aposento, pendiam três impressivos
retratos a óleo, dos fundadores da companhia, como me disseram. Esses
eram os únicos quadros, além de, na parede oposta, como observei a seguir,
um grande calendário, no qual estava impressa, em estilo de cartão postal, a
forma vivaz de uma bela banhista, em plenas cores, fascinante objeto sobre o
qual pareciam ainda estar fixos os olhos dos três solenes cavalheiros, apesar
de mortos. Fiquei a imaginar, rindo interiormente, se uma daquelas
esmeradas e bonitas pequenas não teria pendurado ali a sua duplicata, com
intenção humorística.
Entrementes a conversa prosseguia, animada. Era óbvio que o nosso
anfitrião compreendia perfeitamente o inglês, mas a bonita moça
interpretava para ele de igual maneira, com uma digna vivacidade. Ele,
obviamente, confiava no bom senso e na competência da intérprete. Que
pensa o homem japonês desse novo tipo de mulher? Resolvi tratar de
descobri-lo, algum dia. Quanto a ela, parecia ser extremamente útil, além de
ornamental, e, acima de tudo, parecia feliz. Desaparecera sua antiga tristeza.
A tragédia a abandonara, e se o que a substituíra não fora exatamente a
comédia, fora algo de vivaz e encantador.
Os detalhes de nossa cooperação foram fixados num espaço de tempo
espantosamente curto — se é que se pode fixar a fluidez e as exigências de
uma filmagem. Concluídas, pelo menos, as preliminares, aquele chefe da
grande companhia triangular convidou-nos a nos reunirmos com o terceiro
restante, o gerente de produção. Sabíamos, então, que havíamos chegado ao
definitivo, ao prático, ao homem com o qual teríamos de tratar muitas e
muitas vezes. Mas somente seria possível encontrá-lo depois do domingo,
pois estávamos no fim do dia e aquele era o último dia útil da semana. O fim
de semana, na sociedade japonesa, tornou-se acontecimento tão importante
como na maioria dos países ocidentais. Nada podia ser feito enquanto não
terminasse. Era o momento ideal para aceitar o convite de minha amiga.
Não muito longe da grande e moderna Tóquio fica a tranqüila cidade de
Kamakura. É famosa na História japonesa, mas famosa também agora
porque nela residem alguns dos mais renomados escritores japoneses. O
marido de minha amiga achava-se na Europa, mas ela própria veio buscar-
me em seu confortável automóvel com chofer.
Rodamos através da populosa cidade e dos subúrbios que se estendiam
até o campo. Era uma ensolarada tarde de agosto, mas só vimos que fazia sol
depois de sair da cidade, em virtude do smog, que é o mesmo em toda parte,
e em Tóquio às vezes pode ser forte e denso, como era naquele dia.
Desfrutei grandemente o passeio, não apenas porque me dava
oportunidade de ver os delineamentos gerais da nova e espantosa Tóquio,
pelo menos numa direção, mas também porque descobri que eu realmente
podia conversar com a igualmente espantosa nova mulher japonesa, que se
achava a meu lado. Ela continuava formosamente japonesa, em seu quimono
de seda cinza, cabelos lisos, feições amáveis e serenas, mas seu espírito era
cosmopolita e sofisticado, no verdadeiro sentido da palavra. Ela podia ser, e
era, ela mesma em qualquer parte do mundo, à vontade em qualquer capital.
Estou acostumada às mulheres cosmopolitas e sofisticadas de muitos países,
porém minha amiga tem uma qualidade individual e fora do comum. Não
pode ser tomada por outra coisa senão por japonesa, e no entanto essa
cristalização natural do nascimento e da educação é apenas o meio através
do qual ela comunica uma experiência universal, com sabedoria e encanto.
Uma rosa é uma rosa em qualquer parte do mundo, mas num aposento
japonês, arranjada num vaso japonês, numa tokonoma japonesa, a rosa se
torna de certo modo japonesa. Assim é minha amiga.
Receio ter-lhe feito uma centena de perguntas, e fiquei deliciada com as
suas respostas francas e informadas. Duas horas se escoaram como se
fossem minutos.
— Convidei alguns de nossos escritores para vê-la, disse-me afinal. —
Jantaremos numa hospedaria famosa.
Quando chegamos a Kamakura o Sol já se havia posto e fomos
diretamente para a hospedaria. O carro parou a alguma distância e
caminhamos ao longo de uma trilha estreita, longe da rua principal de
Kamakura. No fim do caminho atravessamos um portão de madeira e
degraus de pedra nos conduziram através de um jardim até um amplo
gramado, iluminado por lanternas de pedra. Os tetos baixos dos prédios se
aninhavam sob grandes árvores, galgando as encostas abruptas de uma
montanha, atrás da hospedaria.
Estávamos atrasados e os hóspedes, alguns dos mais queridos escritores
japoneses, já esperavam por nós. Todos vestiam quimonos japoneses escuros
e se achavam sentados num comprido banco de pedra, tomando chá. Fui
apresentada a eles, um a um, e reconheci especialmente o Sr. Kawabata e
Jiro Osaragi. O Sr. Kawabata é presidente do P. E. N. Clube do Japão e tinha
acabado de voltar, no mesmo jacto que eu, de uma visita à América do Norte
e do Sul. Como eu nunca o havia encontrado, não sabia quem era, a bordo do
avião. Ele estava sentado do outro lado do corredor, em frente a mim, e de
quando em quando eu o olhava.
— Deve ser um grande homem do Japão, murmurei à minha
companheira de assento.
Não era alto e tinha as feições delicadas e finas. Os olhos, contudo,
revelavam o homem. Grandes, negros, e tão luminosos de inteligência que
eram, de fato, janelas através das quais se podia vislumbrar um espírito
sensível e brilhante.
Agora eu tornava a vê-lo, reconhecendo-o instantaneamente.
— Era o senhor... no jacto! exclamei. Ele sorriu:
— Eu a conhecia, mas a senhora, a mim, não.
— Conheço-o agora, declarei. — Li seus livros. Sei que foi à América
do Sul. E — perdoe-me — sabia, quando o vi naquele dia, que o senhor era...
alguém.
Riu da minha tolice e eu admirei, intimamente, suas feições
delicadamente esculpidas, a pele ebúrnea e firme e a massa de cabelos
brancos. Tem sessenta e dois anos de idade. O pesado quimono de seda
completava seu ar de aristocrata. Contudo, também é muito vivaz e
moderno. Quando elogiei, mais tarde naquela noite, o excelente serviço da
Japan Airlines, assumiu uma expressão travessa e sacudiu a cabeça.
— Mas eu tenho uma queixa, disse ele. Nem sempre a aeromoça é muito
bonita!
Rimos e minha amiga explicou cordialmente que o famoso escritor
exerce atração sobre as jovens e é, por conseguinte, um connoisseur.
Permanecemos sentados durante uma hora, admirando a Lua e
saboreando suco de frutas gelado. A conversa era em inglês, ou em japonês
traduzido em meu benefício. A maioria dos escritores não falava inglês.
Fomos, então, chamados e passamos ao restaurante, tiramos os sapatos à
entrada e ingressamos numa ampla sala, aberta dos dois lados para o jardim.
Aí, no frescor produzido por um grande ventilador elétrico, conversamos ou
descansamos, de quando em quando, em pacífico silêncio. Eu me sentara ao
lado de Jiro Osaragi e minha amiga nos servia de intérprete. Tinha acabado
de ler, pela segunda vez, sua terna novela, Homecoming, livro quase
feminino, em sua graça e sutileza. Era difícil imaginá-lo escrito por aquele
homem de meia idade, alto, forte e elegante. Ele, certamente, nada tinha de
feminino. Mas a combinação de delicadeza e força, de ternura e crueldade, é
habitual na obra de escritores japoneses, e talvez seja inerente à natureza
nipônica.
Enquanto conversávamos, era servido um prato após outro. Estávamos
na época da truta marinha, a primeira boa estação depois de muito tempo,
segundo me contaram, pois a truta do mar fora destruída nos últimos anos,
de um modo que não compreendi bem, talvez pela radiação atômica. De
qualquer maneira, agora evidentemente, era uma iguaria. Serviam a truta
individualmente, assada, em pedras quentes em vez de pratos, cada peixe
colocado como se estivesse nadando no leito oceânico. Uma linha de sal
simbolizava a praia, um pedaço de galho de cedro as algas marinhas. Era
demasiado refinado para ser comido, mas o comemos e o achamos delicioso.
Retirado esse prato, trouxeram a seguir um pedaço de bambu verde, aberto
ao meio, e recheado com fumegante carne fresca de codorniz jovem. E assim
continuamos até o fim da refeição, voltando depois para o jardim. Aqui, num
caramanchão aberto, comemos genghis khan, prato mongol de finas fatias de
carne e vegetais cozidos num fogareiro de carvão, precursor, atrevo-me a
dizer, do moderno sukiyaki. Devia, adequadamente, ser preparado e comido
ao ar livre, como fizemos, em homenagem à nômade vida mongol. Mas não
entrarei nesse assunto de iguarias, pois não há limites para a engenhosidade e
imaginação dos japoneses em questões culinárias. A noite passava,
demasiado rápida chegou a hora da separação. Dissemos nossos adeuses e
seguimos nosso caminho.
A casa de minha amiga é grande, uma combinação de arquitetura
japonesa antiga e moderna, situada num amplo jardim e cercada por um
muro de pedra. Ao entrar, vislumbrei uma ampla sala de estar, mobiliada
com cadeiras e sofás ocidentais, e ao lado dela um aposento em estilo
japonês. Mas já era muito tarde e fui levada a um quarto do sobrado, onde se
colocou um colchão, um lençol imaculado e um travesseiro sobre o tatami,
no soalho. Ela indicou-me o banheiro particular, tateou uma garrafa térmica
de chá para verificar se estava quente, e desejou-me uma bondosa boa noite.
Quando ela se foi, afastei o shoji e descobri atrás dele uma ampla
varanda que dava para um belo jardim, inundado, naquele momento, pela
dourada luz da Lua, uma luz tão brilhante que embaçava as lâmpadas das
lanternas de pedra. A paisagem era de uma paz inefável e eterna, a Lua
deslizando muito alto, por cima da copa das árvores, como vinha fazendo há
inumeráveis anos. Permita Deus que possamos vê-la deslizar pelo mesmo
caminho, através do céu, por muitos séculos vindouros! Lembrei, contudo,
que fora aquela mesma Lua que apenas recentemente quase levara o nosso
mundo à catástrofe final.
Um grande radar, instalado para captar a menor explosão de energia fora
do comum, em qualquer parte do mundo, registrou certa noite que uma
explosão desse tipo estava ocorrendo. O sinal de alerta voou ao redor do
globo. Distância não é problema para a transmissão, e em dois segundos as
ordens de revide podiam ter sido enviadas e recebidas. Exatamente a tempo
chegou uma frenética mensagem de adiamento. Que acontecera? A Lua
cheia se havia erguido e, em alguma parte, um jovem perturbai negligenciara
de registrar o seu surgimento e explicar, assim, a conseqüente explosão de
energia. As ordens foram sustadas exatamente a tempo e a raça humana foi
salva.
Desviei-me da Lua e fui para a cama. As velhas lanternas ardiam nos
jardins a noite inteira e os grilos cantavam enquanto eu adormecia.
Pela manhã minha amiga declarou que eu devia ver o famoso templo
Kamakura. Saímos de casa após um tardio des jejum e fomos em automóvel
até esse antigo templo, construído no período de Meiji, há cerca de cento e
cinqüenta anos. Era domingo e lá se encontrava uma multidão de pessoas,
passeando. Jovens japoneses perambulavam por ali, moças e rapazes, de
mãos dadas, para espanto meu — sombras do velho Japão! — ou lado a
lado, levando cestas de merenda. Gente do campo tinha vindo à cidade e os
mais velhos caminhavam lentamente, a mulher alguns passos atrás do
homem.
Mas quando nos aproximamos do grande pavilhão de entrada, de fina
madeira de cedro, encontramos autêntica agitação. Estavam realizando um
filme para televisão. Homens em trajes do velho garbo, de xógum* e
daimyo, esgrimiam e combatiam, numa peça histórica. Reunimo-nos à
multidão de espectadores. No momento em que o diretor, irrequieto jovem
de óculos escuros, no melhor estilo de Hollywood, gritou "Ação!" — no
momento em que as câmaras estavam prestes a disparar — a ação cessou.
Um rapaz, montado numa bicicleta, entrou pedalando no meio da cena
medieval, descendo da colina do templo. Ouviram-se altos brados do diretor,
frenéticos, também no melhor estilo de Hollywood, a advertir o moço
ciclista que fosse pedalar no bosque. O rapaz obedeceu, alarmado, e os
guerreiros tomaram de novo seus lugares, mergulhando na batalha. Mas
nesse momento um bando de colegiais apareceu ao longe. Novos gritos, as
crianças foram impelidas para o bosque e uma vez mais voltamos ao
passado. E assim continuou a coisa. Havia algo de simbólico em tudo aquilo,
velho e novo, combinação que se sentia em toda parte no Japão — vinho
novo em frascos velhos. * xógum — antigo governador militar do Japão (N. do T.).
A grande sala de estar, na bela casa japonesa, mobiliada em estilo
ocidental, é para a família, como descobri quando regressamos. A sala de
estar japonesa era para a mãe de minha amiga, agora com oitenta anos de
idade. Ela sentava-se sobre uma almofada, no chão, com as pernas cruzadas
debaixo do corpo. Sobre uma mesa baixa, à sua frente, achavam-se as suas
preciosidades, seus livros, vim vaso de flores, seu pequeno papagaio verde,
numa gaiola. Ela poderia ter saído dos séculos passados. Contudo sentia-se
inteiramente feliz na moderna e confortável casa japonesa. Estava na família,
no centro dela, bem-vinda e cálida, mas ela própria era o velho Japão. Algo
novo e algo velho, mais uma vez!
O dia decorreu em agradável paz, em conversa e explicação do jardim e
da biblioteca. Voltei para Tóquio sozinha, à noite no carro made-in-Japan,
confortável, provido de ar condicionado, e meditei sobre aquele fim de
semana. Um pequeno incidente sobrepunha-se, em meu espírito, a todos os
demais. Havia, na tranqüila e luxuosa casa, uma irmã mais moça, gentil e
discreta, e que já não era jovem. Eu me refreara de fazer perguntas a seu
respeito. Não era de minha conta a razão por que se encontrava lá. Mostrava-
se útil, estava contente. Mas a minha inveterada, incontrolável, insaciável
curiosidade de romancista acabou levando a melhor, antes que eu me fosse.
Estou, realmente, em termos de boa amizade com essa família japonesa, mas
senti-me compelida a começar desculpando-me.
— Envergonho-me de fazer tantas perguntas, disse à minha amiga. —
Mas, se não perguntar, como ficarei sabendo?
— Pergunte o que lhe aprouver, respondeu bondosamente.
E eu:
— Por favor, sua irmã mais moça nunca se casou? É tão fora do comum!
Houve um instante de hesitação na fisionomia serena da irmã mais velha.
Então respondeu:
— Casou-se uma vez, há vinte anos. Era um bom homem, um velho
amigo... Quatro dias depois do casamento, ela voltou para casa.
Aguardei, esperando não fazer outra pergunta. Mas não, ela veio
correndo aos meus lábios:
— Por que voltou ela para casa?
A irmã mais velha respondeu com inteira simplicidade:
— Não sabemos. Não gostamos nunca de perguntar. Não fiz mais
perguntas. Vinte anos e eles não gostavam de perguntar! A resposta revelou
a delicada reticência de todo um povo... Não, vinho novo em velhos frascos,
não. Invertam a metáfora — vinho velho em frascos novos. A diferença é
sutil mas profunda.
No dia seguinte comparecemos ao encontro marcado com o gerente de
produção. É uma figura importante em qualquer companhia cinematográfica,
mas na companhia japonesa ocupava o lugar de primeiro ministro. Tudo
dependia dele, esperava-se que fizesse milagres, e todos os "sins" e "nãos"
da cúpula vinham através dele.
Assim, na manhã de segunda-feira, muito quente, fomos introduzidos no
seu gabinete por uma bonita moça. Vimos um enorme japonês em mangas de
camisa, cabelos revoltos, olhos selvagens, queixo pesado, boca franzida, voz
alta. Estava berrando num telefone enquanto três moças bonitas, em várias
partes do aposento, falavam em outros três telefones, de acordo com o que
ele lhes ditava, mas em voz aveludada. Rolou seus grandes olhos ferozes em
nossa direção, mas não demonstrou reconhecer-nos de outra maneira a não
ser por um imperioso aceno de sua grande mão, convidando-nos a sentar.
Sentamo-nos em cadeiras baixas, ao redor de uma mesa baixa e uma bonita
moça serviu-nos chá enquanto esperávamos. Ele interrompeu a conversação,
afinal, com um berro feroz e veio cumprimentar-nos, todo cordialidade,
bondade, impaciência e um certo ar de desespero, que mais tarde soubemos
ser a sua disposição habitual.
Pôs de lado as formalidades e falou com aparente franqueza —
certamente franqueza do momento. Faço esta qualificação, pois aprendi,
mesmo em meu próprio país, que a encantadora e desarmante franqueza dos
cidadãos permanentes do mundo teatral não transmite necessariamente o que
é, comumente, denominado verdade. Verdade, no teatro, pode ser
estritamente momentânea e confinada nos limites da esperança, expectativa,
ou mesmo, possivelmente, da intenção. O gerente de produção, portanto,
pertencia estritamente ao mundo teatral. Falava em japonês e sua intérprete
era uma das bonitas moças educadas nos Estados Unidos, que abrandava o
que ele dizia sem destruir-lhes a força. Ela era muito hábil. Mas nós ainda
não o conhecíamos de fato. Disse, apenas, naquele dia, com ar embaraçado,
que faria tudo quanto pudesse para ajudar-nos, pedindo-nos somente um
favor. Devíamos deixar a seu cargo o arranjo das questões financeiras com o
elenco. As companhias cinematográficas japonesas, disse-nos, não eram
muito favoráveis à co-produção de filmes americanos. Os americanos pagam
salários absurdos e tornam os atores descontentes e indisciplinados quando,
depois, vão tratar com suas próprias companhias japonesas. Bateu seu
grande punho na mesa. Vejam, trovejou, o que acontecera na Itália! Isto não
devia repetir-se no Japão. Concordamos e nos despedimos.
Agora que havíamos conhecido todas as pessoas importantes, a tarefa
seguinte era a programação. No preparo de um filme, a programação é tão
importante quanto a reunião de dados para alimentar uma máquina
computadora. Todos os ingredientes necessários devem ser providos
imediatamente e em tal ordem que assegurem o resultado adequado. Assim,
nós tínhamos não só de considerar os arranjos com a nossa companhia
cinematográfica japonesa cooperante, mas tínhamos, ao mesmo tempo, de
pensar em encontrar lugares para a filmagem bem como escolher atores,
montador, cameraman e tudo o mais que entra na vasta complexidade de um
filme. Agora que nossa película está terminada verifico que tenho muito
mais respeito por todos os filmes, até mesmo os maus, do que tinha antes.
Por mais insatisfatórios que possam ser do ponto de vista artístico, entram,
em sua preparação, sofrimento e esforço imensos, muitos desapontamentos e
muita agonia, para não falar no cansaço do corpo e do espírito. Fazer um
filme é um grande trabalho.
Enquanto o gerente de produção cumpria suas promessas de ajudar-nos a
encontrar nosso elenco, decidimos trabalhar na escolha dos cenários. Litoral,
casa de pescador, fazenda, mansão senhorial e um vulcão ativo eram os
cenários de que necessitávamos. Paisagem e incidente enriqueceriam a
história que seria vivida nesses lugares. Havia também a ressaca, porém mais
tarde.
Entramos em consultas para estabelecer o que deveríamos fazer em
primeiro lugar, agora que estavam feitos os contatos preliminares, e
decidimos escolher os lugares, especialmente o vulcão. Esperávamos
encontrar tudo perto de Tóquio, se possível, pois lá é que ficam os estúdios.
Eu, pessoalmente, não alimentava essa esperança, porque via, na
imaginação, uma pequena aldeia situada numa ampla enseada ao lado do
mar, sobre ela o eirado de uma fazenda na encosta da colina, e em alguma
parte junto dela a casa do Velho Cavalheiro. Eu estava certa de que
semelhante paisagem não podia ser encontrada perto de Tóquio. O vulcão,
porém, era outro assunto. A estranha ilha negra de Oshima não fica longe da
cidade — apenas algumas horas em um pequeno e trôpego vapor costeiro, e
quarenta e cinco minutos por avião. Decidimos pelo barco, esperando, ainda,
que navegando ao longo das praias denteadas, descobríssemos uma aldeia de
pescadores à qual pudéssemos voltar. Era provável que o mar ficasse
agitado, como nos disseram, e o barco certamente era pequeno. Tratava-se
de um vaporzinho asseado e quando embarcamos nele já estava cheio de
colegiais e seus professores, em passeio.
Os colegiais são os bem-amados do Japão, como qualquer um pode ver.
Todos, atualmente, vestidos em roupas ocidentais. Nas menores aldeias e nas
mais antigas vêem-se às oito horas da manhã bandos de meninos e meninas,
elegantemente trajados, imaculadamente limpos, cada qual com mochila e
garrafa térmica, rumando em ziguezagues para a escola. Nas férias ou nos
dias feriados, dirigem-se, com a mesma aparência imaculada, a vários
lugares famosos, sempre em ordem e aparentemente muito felizes.
Nesse dia, o número de colegiais era espantosamente grande e o pequeno
vapor mergulhava muito abaixo da linha de água. Mas ninguém parecia ter
medo e como fizesse um bonito dia, o mar reluzindo com a espuma branca
da crista das ondas, decidi afastar o receio e gozar a breve viagem. Durante
toda a manhã costeamos o litoral soberbamente belo, sem ver uma só aldeia
que nos parecesse apropriada. Entramos, afinal, num amplo ancoradouro e
nos encontramos no porto. Fomos imediatamente para o hotel, pois lá
deveríamos passar a noite, voltando pelo vapor da manhã. O hotel de
veraneio era grande, um tanto maltratado, como é próprio desse tipo de
hotéis em toda parte, e para embaraço meu verifiquei que me tinham
reservado a suíte do Imperador. O cordial hoteleiro assegurou-me que o
Imperador e a Imperatriz a tinham ocupado havia apenas uma semana e a
acharam tão confortável que não quiseram levantar-se para o desjejum, o que
me deixou tão apavorada que pedi um aposento menos augusto. Contratamos
então um carro e rodamos pela ilha, rumo ao vulcão.
Oshima é negra. Pensei nos versos que o Rei Salomão cantava para a sua
amada escura: "Tu és negra, mas graciosa". Assim é Oshima. A ilha inteira é
formada pelo transbordamento do vulcão e isto significa que o solo é lava,
comprimida pelo tempo e pelo clima. Não há terras cultivadas, mas os vales
e as colinas mais baixas são verdes de camélias silvestres. Quando
florescem, no começo da primavera, a ilha se transforma num jardim famoso
em todo o Japão. A subsistência dos habitantes depende, porém, não das
flores mas do óleo extraído das sementes de suas vagens. Óleo de camélia —
como isto soa refinado! É um líquido fino, claro como água e sem cheiro.
Serve para tudo, desde para cozinhar até passar nos cabelos.
Havia umas poucas aldeias de pescadores na costa da ilha, com pequena
população em virtude da pobreza da terra. A linha litorânea é selvagem e eu
parei freqüentemente o carro a fim de poder gozar a terrível beleza da alta e
alva arrebentação estourando contra os rochedos da negrura do ébano.
As estradas eram ásperas e nos alegramos ao desistir afinal de nossa
busca e rumar para o próprio vulcão. Vira-o, o dia inteiro, fumegando sobre
nós e expelindo suas nuvens de gás amarelo-sulfurino, uma visão terrífica.
Quando alcançamos sua base, ficamos realmente assustados. As montanhas
eram lisas, negras e totalmente despidas de capim, e até mesmo de pés de
camélia. A fumaça, o gás e o vapor tinham destruído tudo numa área de
centenas de quilômetros quadrados e as descarnadas montanhas que
circundavam o vulcão alçavam seus picos negros contra o céu. Assim deverá
parecer a Lua ao primeiro astronauta e eu me sentia como um astronauta, tão
inacreditável era que aquilo fosse a nossa Terra. Não pudemos aproximar-
nos da cratera, pelo menos naquele dia. Disseram-me que a sinuosa estrada
tinha de doze a dezesseis quilômetros de comprimento e era preciso vencê-la
a cavalo. Havia por ali grupos de cavalos selados à espera, com seus
ansiosos donos. Mas não nos era necessário subir ao vulcão para saber que
tínhamos encontrado o que procurávamos. Fiquei durante longo tempo no
topo de um monte negro e nu, ao pé do vulcão, e vi o Sol poente avermelhar
as espirais de vapor branco até se assemelharem às chamas de fogo vivo.
Aqui voltaríamos mais tarde com nossos atores, cinegrafistas e equipe.
Subiríamos ao topo da cratera e filmaríamos a cena do nosso pequeno herói,
Yukio, o filho do lavrador, quando ele se debruçara a fim de olhar para
dentro do centro do nosso globo.
E nunca esquecerei que, antes de voltarmos a Tóquio, vimos
inesperadamente, naquela tarde, o nevado cume do Monte Fuji, erguendo-se
acima das nuvens, a meio caminho do céu. Há visitantes que passam meses
no Japão sem ver o Fuji. É inteiramente por acaso e pela graça de Deus que a
montanha sagrada aparece ante olhares humanos. Rodávamos numa estrada
da encosta da montanha, no meio da tarde, o céu estava turbulento de
nuvens, e enquanto eu sonhava com a visão, sem me atrever a alimentar
qualquer esperança, vi de súbito o perfeito pico branco contra um campo de
repentino céu azul. Poucas, pouquíssimas paisagens famosas são melhores
do que o rumor de sua beleza. O Taj Mahal é uma delas e o Fuji é outra.
Paramos por três minutos e meio para contemplá-lo com deleite e terror.
Então as nuvens esconderam de novo a sua majestosa forma.
Abri os olhos em Tóquio, na manhã seguinte, às cinco horas, inteira e
totalmente desperta. Algo me havia chamado, não uma voz, pelo menos não
ouvi voz alguma. Estava, simplesmente, consciente de ter sido chamada de
alguma forma. O aposento não se achava escuro nem claro. A noite findara
mas o alvorecer ainda não viera. Permaneci imóvel em minha cama,
ouvindo, esperando, convencida de que alguém estava tentando alcançar-me.
A impressão se desvaneceu lentamente e fiquei de novo sozinha, mas não
como estava antes. Faltava, ainda, acontecer algo. Devia estar preparada.
A um quarto para as seis o telefone tocou. Soube imediatamente qual
seria a mensagem.
— Chamada transoceânica, por favor, disse uma voz. — Dos Estados
Unidos, por favor, Pensilvânia chamando... está pronta?
— Estou esperando por ela, respondi. Sabia, agora, o que estivera
esperando durante sessenta minutos.
— Aguarde, por favor, disse a voz.
Estivera aguardando havia uma hora e continuei. Em sete minutos, com
os olhos sobre o relógio na mesinha, a voz de minha filha chegou a mim
vencendo os milhares de quilômetros de terra e mar que nos separavam.
— Mamãe?
— Sim, querida.
— Tenho de lhe dizer uma coisa. Está preparada?
— Sim, querida.
— Mamãe. A voz jovem, clara e brava, fraquejou por um instante, mas
prosseguiu resoluta: — Mamãe, Papai nos deixou esta manhã, enquanto
dormia.
— Imaginei que era isso que você ia me dizer.
— Como soube?
— Eu apenas... sabia.
— Quando voltará para casa?
— Hoje... no primeiro jacto.
— Vamos esperá-la em Nova York.
— Mandarei um cabograma, tão logo tenha o número do vôo.
— Todos vieram para casa. Estamos todos aqui. Trataremos de tudo, até
você chegar.
— Eu sei.
Trocamos algumas palavras particulares, o coração falou ao coração, e
desliguei. Por um instante houve o arrependimento, oh, eu nunca deveria ter
partido, oh, eu poderia estar lá, quando ele se foi. Deixei tudo isso de lado.
Havia discutido integralmente esse próprio momento com o médico de nossa
família. Ele dissera, anos antes, respondendo a uma pergunta minha: "Pode
levar anos, pode ser amanhã. Você deve continuar a viver exatamente como
sempre viveu. O coração dele é forte, sua digestão perfeita — penso que
viverá muito tempo. Mas lembre-se, quando chegar a hora, seja como
chegar, você nada poderia ter feito para impedi-lo. Eu também não, mesmo
que estivesse sentado à sua cabeceira".
Hesitou, depois prosseguiu: "O cérebro está severamente afetado.
Naturalmente você deve esperar uma mudança total de personalidade... nós
não sabemos..."
Aquele cérebro brilhante, que respondia tão rapidamente ao meu próprio
pensamento... sim, houve mudança de personalidade. O homem que eu
conhecia tão bem, o companheiro prudente, tornou-se outra pessoa, uma
criança confiante, um menino gentil e indefeso, ao qual ninguém podia
deixar de amar. Éramos felizes, mesmo assim. Quando o cérebro falha e fica
somente o corpo, é verdade que às vezes se verifica uma terrificante
mudança de personalidade. Os chineses crêem que o ser humano tem três
almas e sete espíritos terrenos. Quando as almas partem, ficando apenas os
espíritos terrenos, a pessoa se torna má e cruel, de várias e imprevisíveis
maneiras. Não foi assim com ele. Seus espíritos terrenos formavam um só
bloco com suas três almas. Continuou a ser o que sempre fora, amável,
paciente, preocupado em não perturbar, como sempre, a não ser que, pouco a
pouco, a comunicação cessou. A linguagem se perdeu, a vista faltou, o
cérebro parou de viver, exceto durante o sono.
Era muito cedo para acordar alguém com a notícia. De qualquer modo,
quem poderia partilhar de meus pensamentos e de minhas lembranças? Quão
rapidamente, num só instante, os anos de vida feliz se tornaram apenas
lembranças! Estava, agora, completa a longa e lenta preparação dos últimos
sete anos. O dia que eu temera, havia chegado. Viera a solidão final.
Não havia como ocultar a notícia. Alguém, da mesa telefônica, contara a
alguém. Uma hora depois o telefone começou a tocar e os amigos batiam à
minha porta. Nada daquilo parecia próximo ou real. Ouvia vozes
perguntando. Ouvia minhas próprias respostas. Sim, é verdade que tenho de
tomar o primeiro jacto para casa. Não havia lugares disponíveis, porém os
amigos, mais uma vez, trataram de conseguir-me um. Alguém cedeu seu
lugar, ao saber do ocorrido. Mas o primeiro jacto partiria à meia-noite e eu
tinha um dia inteiro para passar, de qualquer modo. A bondade, a simpatia
crescente, tornavam-se difíceis de suportar. Eu sabia que tinha de sair da
cidade, ir para o campo, longe de telefones, onde ninguém pudesse bater à
minha porta.
Nesse momento, Miki disse:
— Venha passar o dia na minha casa.
Miki, minha amiga, vive a cerca de duas horas de Tóquio. Um bom
serviço ferroviário estabelece a ligação com rapidez e conforto — os trens
japoneses são excelentes — mas fomos no automóvel dela. Quando
chegamos à pequena cidade perto da qual ela mora, a atravessamos
diretamente até o sopé de uma escarpa colina, que não é propriamente uma
montanha, e o portão abriu-se para receber-nos.
— Daqui para a frente teremos de andar, disse Miki vivamente.
Havia conforto naquela voz confiante e realista, alívio em saber que
Miki podia comportar-se exatamente como se eu tivesse apenas ido passar
um dia comum. Na verdade nunca tinha visto a sua casa. Ela estivera na
minha, na Pensilvânia, mais de uma vez. Conhecia o seu trabalho pelas
crianças nipo-americanas, nascidas no Japão. Ela é única entre as mulheres
japonesas. Por que digo japonesas? É única, simplesmente. Jamais conheci
mulher como essa. É moderna até à última célula do cérebro, mas seu sangue
é japonês antigo e nobre. Pertence a uma das grandes famílias do Japão e seu
marido tem ocupado muitos postos honrosos. Ela viveu na Europa e visita os
Estados Unidos uma ou duas vezes por ano. Usa roupas ocidentais porque se
pode movimentar mais livremente com elas, porém só pode ser japonesa, em
qualquer parte do mundo. Ri de sua própria aparência e chama a si mesma de
"cara-de-abóbora". É verdade que tem o rosto redondo, mas é graciosa, de
olhos vivos, e o ar de uma pessoa habituada a ser ouvida. Sua história, como
ela própria a conta, é mais ou menos assim:
Um dia, durante o mais rigoroso período da guerra, entrou num trem
para ir ao campo em busca de alimento. O trem estava apinhado e do porta-
bagagens caiu um pacote sobre a sua cabeça. O embrulho era de papel de
jornal, que se desfazia. Ela o abriu a fim de tornar a embrulhá-lo melhor e
viu que tinha diante de seus olhos horrorizados um menino recém-nascido.
Estava morto. Nesse momento a polícia entrou no vagão à procura de
traficantes do mercado negro. Viram o que tinha no colo e a prenderam
imediatamente por tentar livrar-se de uma criança morta. Pensaram que o
menino fosse dela. Passou um mau quarto de hora até que um velho lavrador
saiu em sua defesa.
— A criança não é dela. Uma moça entrou aqui, pôs o pacote no porta-
bagagens e tornou a sair.
A polícia, afinal, se convenceu e ela foi salva. Mas, segundo conta,
nunca esqueceu aquele pequeno menino morto.
— Sinto para sempre o peso da criança em meus joelhos, costuma ela
dizer.
Dias mais tarde, ao passear pela manhã em seu belo jardim, notou que
algo se movia sob uma grande moita. Um coelho, pensou. Inclinou-se para
ver se estava ferido e encontrou um bebê. Alguma jovem mãe desesperada o
tinha deixado ali. Levou a criança para casa e cuidou dela. Daí por diante
passou a se dedicar às crianças nipo-americanas nascidas no Japão. O que
começou com um pequeno corpo morto cresceu até se transformar num
grande trabalho vivo para milhares de crianças nascidas de mães japonesas e
de pais americanos, brancos e negros. Organizou uma agência de adoção,
própria, e colocou mais de mil órfãs em lares dos Estados Unidos. As
crianças ainda continuam a nascer e ela ainda as coloca. Mas muitas delas
vivem em sua companhia e continuarão em sua casa até crescerem e se
tornarem capazes de cuidar de si mesmas. Nesse dia, ao subir a colina, ouvi
suas vozes vindas do alto, exclamando, rindo, gritando em meio aos
folguedos. O caminho serpeante por entre grandes árvores, era calçado de
pedra e degraus também de pedra davam acesso às encostas mais íngremes.
O dia estava agradavelmente fresco e a luz do Sol caía por entre os troncos
sobre a terra coberta de musgo. Longe, abaixo de nós, as casas da aldeia se
amontoavam, com seus tetos de palha e telhas. Lembro-me que caminhava
lentamente, minhas energias usualmente fortes, minadas por dentro. Fazia
perguntas e ouvia suas respostas, mas durante o tempo todo achava-me longe
de todos e perto de ninguém. Era como se estivesse suspensa, sem peso, no
espaço. Mente e coração entorpecidos. Compreendi, de súbito, que ela estava
falando e eu não sabia o que dizia.
— Quantas crianças tem aqui, Miki? perguntei, apenas para dizer alguma
coisa.
— Cento e quarenta e oito, respondeu-me.
Ela caminhava com seu habitual passo rápido e parou, esperando que eu
a alcançasse.
Cento e quarenta e oito! Estavam espalhadas por toda parte, nos velhos e
belos prédios japoneses e nos jardins do lar ancestral de Miki. Ela construíra
também algumas casas modernas, funcionais para escola e dormitórios. Em
um dos dormitórios vi duas meninas absorvidas no cuidado de um coelho e
de alguns ratos do campo. Era permitido às crianças manterem seus bichos
junto de si e cada uma tinha um lugar especial para as suas coisas
particulares. A maioria dos orfanatos é triste, mas Miki, de alguma forma,
fizera de seu enorme estabelecimento um lar ao invés de um orfanato. Cerca
da metade das crianças, como notei, eram filhas de pai negro. A proporção
de nascimentos, naturalmente, é muito inferior, mas a maior parte das
crianças brancas tinha sido adotada, ao passo que das negras apenas umas
poucas, pela simples razão de que são poucos os casais negros que podem
suportar o custo de uma adoção.
Passeamos pela propriedade, parando aqui e ali para olhar algum ponto
especial de interesse. O grande deleite é a escola e está agora trabalhando
arduamente na construção do prédio para o curso secundário. Estivera
empenhada numa corrida de palmo a palmo, nos últimos dez anos, nessa
história de escolas, mantendo-se um pouco à frente de suas crianças.
Lembro-me de que olhamos todas as salas de aula e notei em cada porta um
pequeno mapa de bronze. Examinando-o verifiquei que cada um era de um
Estado dos Estados Unidos e Miki respondeu à minha pergunta:
— Todos os anos vou ao seu país e concentro meus apelos num Estado.
Quando o povo de lá me dá dinheiro suficiente para mais uma sala de aula,
volto e acrescento-a à minha escola. Ponho na porta, então, como
agradecimento, um mapa do Estado, gravando nele a minha gratidão ao seu
povo.
— Mas seus mapas, em tamanhos relativos, são tão diferentes da
realidade! disse eu. — Rhode Island, por exemplo, está bem grande, aqui,
embora seja nosso menor Estado.
Abriu outra porta, enquanto eu falava, e vi um quarto pequeno, não
maior que um armário e demasiado estreito para uma sala de aula. Uma
espécie de despensa, talvez? Na porta havia um mapa quase do tamanho da
palma da minha mão. Representava a gratidão ao povo do Texas!
Miki riu ante o meu espanto:
— O povo texano gosta de guardar o seu dinheiro para o Texas, disse ela
francamente — Agradeço-lhes de igual modo pelo que me deram para as
crianças nipo-texanas, mas você vê que o Texas é muito pequeno, aqui em
nossa escola.
Não havia o menor ressentimento na voz jovial de Miki. Expressava
apenas a aceitação do povo assim como o encontrara. Continuou a mostrar
amavelmente o caminho através de cozinhas asseadas e salas de jantar. As
crianças, até um certo ponto considerável, cuidavam de si mesmas e
ajudavam em tudo, tagarelando e rindo enquanto trabalhavam. Fez algumas
observações aqui e acolá e as crianças a ouviram com atenção, mas sem
medo. Quando ela fala é firme e objetiva, despida de sentimentalismo. Creio,
porém, ter notado um afeto secreto por quem ela denominava "meu garoto
levado", ou "minha garota levada". É verdade que aprecia, até mesmo gosta,
as más-criações que apareciam tão freqüentemente aqui como em qualquer
parte. Explicou que ela própria fora uma "garota levada" quando era pequena
e agora ri mas administra, ao mesmo tempo, a necessária palmada ou
punição. Não tem medo de suas crianças e elas sabem que as tem todas no
coração. Descobri que ela própria dorme, num quarto, com as mais levadas e
as mais novas.
— Às vezes um garoto indisciplinado quer fugir, disse-me. — Está
habituado à liberdade selvagem das ruas. Quando desconfio que tentará
fugir, amarro uma corda no seu tornozelo, com um nó que ele não poderá
desatar, e a outra ponta da corda no meu próprio tornozelo. Se procurar fugir
à noite, eu acordo e o apanho.
Seu maior orgulho é o teatro, que deixou por último, como um regalo
final. Miki é uma atriz nata, não há dúvida alguma. Tudo quanto faz é
dramático e forte. Ela admite que ama o teatro acima de tudo. No centro do
lugar que é a sua vida criou, por conseguinte, um pequeno e lindo teatro,
moderno e conveniente, onde as crianças apresentam peças e danças.
— Depois do almoço, prometeu ela, minhas crianças cantarão e dançarão
para você.
Sim, a manhã, que se prenunciara à minha frente com a extensão de
séculos, já havia passado. O Sol ascendera ao zênite e o gongo tocava para
as crianças. Largaram seus brinquedos e correram para a sala de jantar. Eu
não esquecera um só momento que estava sozinha no mundo, mas, de algum
modo, o eterno conhecimento não havia penetrado bastante profundamente
em mim. Miki passara o dia inteiro mostrando-me a vida, fizera-me
caminhar de um centro da existência ao outro. E agora, antes que fôssemos
almoçar, reservava-me mais um dom da vida.
— Vamos ver os bebês, disse.
Caminhamos até o fim do jardim e lá, numa casa ensolarada construída
para bebês, os vimos, aos pequeninos recém-nascidos e aos que estavam
aprendendo a sentar-se e a andar. Mulheres bondosas, às quais os bebês se
agarravam, cuidavam deles. Confortou-me ver como os bebês se afastavam
de mim, uma estranha, para se aconchegarem às que cuidavam deles. Visitei
muitos orfanatos onde as crianças corriam para os estranhos e não queriam
largá-los na hora da partida.
— Todos serão adotados, disse Miki, menos este pequenino, que é
retardado mental. Tenho de pensar em alguma coisa para ele... Esta
garotinha vai para Nova York. Este menino parte na próxima semana para
San Francisco. Eu própria vou levá-los — onze bebês para seus novos pais
americanos. Voarei por cima do Pólo Norte.
Olhei de perto, com amor, cada bebê. São sempre bonitas as crianças que
trazem nas veias o Oriente e o Ocidente. Kipling esqueceu-se delas ao dizer
que não podia haver encontro entre o Oriente e o Ocidente. Eles sempre se
encontraram, como corações verdadeiros devem encontrar-se, no amor se
não na política. É o amor que reúne os seres humanos, muitas espécies de
amor, mas unicamente o amor. Deixei com relutância as crianças, pois elas
me traziam profundo conforto. O amor é mais forte do que o ódio e a vida é
mais forte que a morte.
Voltamos através dos jardins, agora em pleno sol, e chegamos a uma
enorme casa japonesa, construída com madeira velha, e toda aberta, num dos
lados, para o que fora outrora um belo jardim japonês, mas que era, agora,
um poeirento e nu campo de basebol. Um grupo de meninos havia comido às
pressas e já estava de volta no campo, com bastões e bolas. Circundamo-los
e entramos na casa, tirando antes os sapatos no degrau mais baixo. Galgamos
mais um degrau e chegamos à grande e bela sala de estar de Miki. Tinha a
mesma mistura cosmopolita de Oriente e Ocidente que caracterizava a
própria Miki. Num dos extremos do aposento, profundos sofás forrados de
cetim, um tanto gasto, formava um círculo acolhedor. Elegantes biombos
antigos achavam-se em vários lugares e as paredes estavam cobertas de
velhos rolos de pergaminho e fotografias modernas. No outro extremo da
sala havia uma mesa de refeições, baixa, comprida e larga, e dois antigos
armários polidos.
— Sei que gosta de comida chinesa, disse Miki ao entrarmos. —
Convidei, portanto, um General chinês, meu velho amigo, e o melhor
restaurador de Tóquio, para providenciar nosso almoço.
O General surgiu de um distante canto da sala e apresentou-se. Homem
extremamente elegante, cabelos brancos, de aparência delgada e ágil. É
muito comum, entre Generais chineses, eufemisticamente reformados,
tornarem-se restauradores em capitais de países estrangeiros. São homens de
gosto, mas talvez tenham conservado consigo, também, seus cozinheiros
particulares, de acordo com a teoria de que, se o homem tem garantida uma
boa cozinha, pode suportar tudo, inclusive a derrota na batalha. Pode ser,
mesmo, que a lembrança de seu bom cozinheiro tenha ajudado um General a
interromper o combate antes do jantar. Mas nem todos os Generais
permanecem tão magros quanto o General Wang.
Gostaria de poder descrever o refinado tato de minha anfitriã e de meus
companheiros de mesa, durante a deliciosa refeição chinesa. Todos sabiam o
que me havia acontecido, contudo ninguém falou no assunto. Não
procuravam, por outro lado, simular uma falsa jovialidade. Conversavam
com tranqüilo interesse sobre vários temas, despertando habilmente minha
atenção quando eu mergulhava num silêncio demasiado prolongado,
distraindo-me com agradáveis interpelações que exigiam resposta, e
insistindo para que eu provasse uma iguaria após outra, não por ter apetite,
pois sabiam que eu não o tinha, mas por cortesia para com o cozinheiro, que
ficaria magoado se eu não comesse. Lembro-me de ter ouvido, em
determinado momento, um telefone tocar, mas a ligação fora aparentemente
adiada para depois do jantar. Não recordo quais eram os pratos. Não consigo
lembrar sobre que se conversou. Eu escutava, sorria, dava as respostas que
me pareciam adequadas, e era sustentada, não pelo que estava sendo dito,
mas por aquela forte atmosfera de compreensão nunca posta em palavras.
Lembro-me de que uma bela japonesa, de cabelos grisalhos num moderno
penteado italiano, achava-se sentada a um dos extremos da mesa. Vestia um
quimono de suave cetim vermelho e falava excelente inglês. Lembro-me de
que disse ter acabado de voltar de Paris e que era cunhada de Miki.
Lembro-me, também, que se desenrolava um vigoroso jogo de basebol
enquanto comíamos, e ouvi por diversas vezes o forte estalo de bastão contra
a bola, ruído de pés correndo, gritos e palmas. No meio de tudo isso, Miki
mantinha um olhar vivo no jogo e de quando em quando gritava instruções
ou aprovação.
Quando terminou a refeição, Miki disse-me que havia um chamado
transoceânico para mim. Acompanhou-me a um pequeno quarto, fechou a
porta e passou-me o receptor. Ouvi novamente, através de milhares de
quilômetros de terra e mar, a voz de minha filha tão nitidamente como se
estivesse no quarto contíguo.
— Mamãe, planejamos tudo mas queremos saber se você aprova. A
cerimônia será depois de amanhã e nosso próprio ministro, naturalmente, se
incumbirá dela. Pensamos que ficaria melhor na biblioteca, porque ele
gostava muito dessa sala, você sabe. Ele poderia... o esquife poderia ser
colocado em frente à lareira... não ficando ninguém lá, exceto o pessoal da
fazenda e da casa... e as enfermeiras que cuidaram dele... e todos nós. Depois
o levaremos ao cemitério da família... nada de flores, achamos; apenas pedir
dinheiro às pessoas presentes para a "Casa dos Bem-vindos".
As crianças haviam planejado tudo como eu o teria feito e agora restava-
me, apenas, voltar rapidamente para casa. Repeti sim, sim, sim, várias vezes
e reafirmei meu amor e meus agradecimentos a todos eles. Então, quando
repus o fone no gancho, tudo, de súbito, me pareceu excessivo. Pela primeira
vez permiti-me sentir, e reconhecer, que tudo fora excessivo, desde aquele
dia, há sete anos, no ensolarado parque de Sheridan, Wyoming, quando se
deu o primeiro ataque. Esse pequeno ataque parecera, na ocasião... não mais
que uma leve insolação, pensamos nós. Tínhamos planejado, há muitos anos,
uma viagem de verão com toda a família, através do Oeste, até o
Yellowstone Park e depois ao Oregon e Washington. Foram dias
confortáveis e felizes, todos nós num grande automóvel com ar
condicionado, dirigido pelo nosso experimentado e fiel chofer. "A viagem
fará bem a ele", dissera o médico da família, "se não for guiando".
E assim parecera, até àquele dia de sol. Devíamos ir, no dia seguinte, a
Yellowstone, mas, em vez disso, ele e eu ficamos num agradável rancho
enquanto as crianças foram e voltaram. Depois seguimos todos para casa,
pensando ainda que não tinha sido nada, mas que seria melhor voltar, de
qualquer modo, para perto de nosso próprio médico. O médico de Sheridan
não estava muito certo de que se tratava de insolação. Mais tarde soubemos
que não fora. Mas ele parecia bem como sempre, vigoroso, continuando sua
vida ocupada, nos escritórios de Nova York e no escritório rural, em nossa
casa.
Escondi o rosto nas mãos, quando pus o fone no gancho, e lutei comigo
mesma. E Miki, com aquela delicadeza tão natural na Ásia antiga, e
habituada à dor humana, sentou-se ao meu lado em silêncio, sem estender a
mão para tocar-me, sabendo que todo conforto seria vão, exceto o conforto
de uma amiga sentada serenamente ao meu lado. Venci a minha luta,
enxuguei os olhos e Miki levantou-se.
— As crianças estão esperando por nós, disse ela.
Estas foram as suas palavras, mas o que ela realmente disse era que eu
devia viver, começar agora mesmo a viver. A morte não devia interromper a
vida. Havia outros esperando por nós. Saímos do pequeno quarto e ela me
conduziu ao teatro.
A audiência compunha-se das crianças mais velhas, da equipe do
estabelecimento e de nós. O entretenimento consistia em dança e música. A
música, uma banda de jazz e canções populares. O que me interessava eram
as crianças. Tinham todas uma beleza impressionante, sem exceção, e
obviamente talentosas. As meninas, em quimono, executaram bailados
japoneses, com leques e flores, no estilo antigo. A banda de jazz era formada
de rapazes, muitos deles de sangue negro, realmente simpáticos.
Confesso que naquele dia, olhando e ouvindo as crianças de Miki,
parecia-me que eu nunca mais poderia tornar a sorrir. Contudo as crianças
trouxeram-me seu próprio conforto e, em amor e determinação, decidi, na
medida de minha capacidade, ajudar Miki a encontrar famílias para elas.
A tarde chegou ao fim. Era tempo de regressar a Tóquio e tempo de
voltar para casa. Miki, até o último momento, recusou-se a deixar-me.
O jacto decolou à meia-noite. Amigos vieram despedir-se, envolvendo-
me em sua bondade e afeto. Mas eles tinham de voltar às suas próprias vidas
e eu tinha a minha a enfrentar. Havia um certo conforto em encontrar-me,
afinal, entre estranhos, aos quais não necessitava corresponder. Achei meu
lugar, afivelei o cinto, recostei-me e fechei os olhos. Era o primeiro instante
em que me via totalmente só, desde o momento em que o mundo mudara,
naquela manhã. Há muito tempo, quando eu soube que minha filha ficaria
retardada para sempre, aprendi que há duas espécies de dor, uma que pode
ser mitigada e outra que não pode. Esta era diferente, contudo semelhante
num particular — também não podia ser mitigada. Não obstante, eu
aprendera, anos atrás, a técnica da aceitação. O primeiro passo é,
simplesmente, render-se à situação. É um processo espiritual, mas começa
com o corpo. Ali, atada ao meu assento enquanto o avião subia ao escuro céu
noturno, rendi conscientemente meu corpo, músculo por músculo, osso por
osso. Cessei de resistir, cessei de lutar. Que viesse o que tinha de vir, eu nada
podia fazer para alterar o que já havia acontecido. O avião me continha, me
controlava, e me isolava.
De uma curiosa maneira o espírito deve, às vezes, acompanhar o corpo,
exatamente como, em outros momentos, é o espírito que conduz. Agora que
o corpo se rendera, o espírito achou mais fácil render-se também ao mesmo
comando. A vida pode ser inexorável, mas a morte sempre o é. O passo
seguinte consiste em reconhecer a inexorabilidade. O passado se torna
estático. É história e os fatos históricos não podem ser modificados. O que
foi feito está feito. Pode-se extrair lições do passado, pode-se entesourá-lo,
mas não se pode modificá-lo. Vinte e cinco anos foram vividos em
felicidade, mas tinham sido vividos. O Fim fora escrito. Não se continua a
escrever um livro depois que essa palavra o termina. É preciso começar
outro livro.
Mas não se pode começar imediatamente. É necessário tempo para a
descontração total, reconhecimento total da inexorabilidade, compreensão
total de que a vida do passado terminou. Somente então as novas forças
podem ser convocadas. Duvido, mesmo, que possam ser convocadas. Elas
têm de brotar das próprias fontes do ser, convertendo-se numa vontade nova
de viver. O mais que a vontade pôde, naquela noite, enquanto o jacto
flechava o seu caminho entre nuvens e estrelas, foi apenas ordenar ao corpo
que se rendesse e ao espírito que se retirasse. Finalmente, adormeci.
Consultei meu relógio. Eram três horas da madrugada. O tempo perdia o
sentido, nesse vôo veloz, e o céu já estava claro. Eu deixara Tóquio na noite
anterior, domingo, mas chegaria a Nova York na manhã de segunda-feira,
após mais um dia e uma noite de vida, se não de tempo. Estava começando a
compreender a relatividade do tempo com relação ao espaço e à velocidade.
Que milagre ter Einstein nascido coincidentemente com a experiência prática
de jactos e foguetes no espaço! Minha mente, incapaz até então de enfrentar
a profunda transformação ocorrida em minha própria vida, explorava o
sentido da eternidade, tempo sem começo e sem fim. Tudo quanto existe
agora, sempre existiu e sempre existirá, sendo a única lei universal e eterna a
da transformação. E contudo a transformação pode ser assustadora. Se a
morte é apenas uma transformação, então que é a transformação? Ele sabia e
eu não. Num certo momento, durante o sono, ele morrera. No instante
anterior estava vivo e, no seguinte, morto. Quer dizer, num instante era isto,
e no instante seguinte aquilo, o mesmo e contudo diferente.
Onde está ele agora?
Einstein provou-nos que a massa pode converter-se em energia. Esta
sentença, tão simplesmente escrita, resultou no despertar de minha própria
mente para a nova era. Era mais do que um despertar da mente. Era a
conversão de minha alma, a iluminação de meu espírito, a unificação de todo
o meu ser. Adquiri uma nova concepção da morte, uma visão nova da vida.
Como Paulo de Tarso, eu seguia meu caminho quando uma luz surgiu sobre
mim, uma claridade ardente que alterou meu curso. Essa equação, que
Einstein cristalizou em alguns símbolos breves, é a chave de nosso universo
e, sem dúvida, de muitos outros além do nosso. O que era massa pode tornar-
se energia, é energia potencial mesmo enquanto continua massa. Será esta a
prova científica do que chamamos alma?
Enquanto o coração sangrava em segredo, minha mente revirava-se e se
retorcia, procurando. Meditei sobre o milagre das máquinas mágicas, os
computadores, o mecanismo pensante representado em matéria concreta. São
construídas segundo o princípio do cérebro humano, porém o cérebro é
infinitamente mais complexo, os nódulos infinitamente mais numerosos. O
cérebro pode criar idéias novas, as máquinas não, por enquanto. Não
obstante, o princípio é o mesmo. Sabemos como construir cérebros i com
materiais brutos, se não com elementos humanos.
Na verdade há duas escolas de pensamento entre os cientistas que criam
as máquinas. Alguns acreditam que as máquinas podem ser aperfeiçoadas
em verdadeiros cérebros, iguais aos humanos, e até mesmo, sob certos
aspectos ultrapassá-los. Um cérebro humano, por exemplo, necessitaria de
uma vida inteira para chegar a certas conclusões de matemática astronômica.
A máquina, desde que lhe sejam fornecidos os elementos devidos, pode
chegar a essas conclusões em alguns minutos. Outros cientistas, porém,
acreditam que a máquina nunca poderá reproduzir o cérebro humano. Há no
cérebro humano, sustentam eles, uma vontade, uma percepção, uma
consciência — chamem-na alma ou o que for — que não pode ser
representada através do material de uma máquina.
Espero que a segunda escola esteja mais perto da verdade. Devo crer que
está, pois se somos apenas máquinas, nossa massa meramente carne em vez
de metal, então, quando a massa se deteriora... ah, mas esperem! A massa
não pode perder-se, ela apenas pode transformar-se. , Transformar-se em
quê? É isto que precisamos saber, que saberemos algum dia. Sinto-me
encorajada nessa fé, pois sabemos que não há absolutos neste inacreditável
universo em que vivemos. Até mesmo as linhas paralelas, que se prolongam
ao infinito, acabam por encontrar-se em alguma parte.
Onde está você? Sabe que estou aqui, no alto, acima da Terra? Você
está aqui, também? Com que rapidez se processa a transformação? A
energia, que você é agora, se transporta instantaneamente a algum outro
lugar? Você vive além das barreiras do espaço sem ar? Estamos sem
comunicação...
Comunicação... é o que deve ser pensado agora, imaginado, investigado.
Há um pesado cordão de radioatividade mortal circundando a Terra. As
únicas saídas ficam nos dois pólos. Terão, essas saídas, um propósito
especial? É incrível que não nos possamos comunicar mais. Quando ele
estava aqui, ríamos freqüentemente porque nossos pensamentos irrompiam
em palavras idênticas, os mesmos pensamentos, no mesmo momento.
Contudo mostrava-se céptico acerca de qualquer noção do sobrenatural.
Embora fosse dotado de cálido sentimento de compaixão, de completa
integridade, de inflexível convicção moral, não aceitava as esperanças e
premissas da religião. Insistia em sua completa independência, como ser
humano.
— Nada sabemos do futuro, dizia. — Não me enganarei a mim mesmo,
nem permito que me enganem.
— Mas não saber não significa que nada haja a saber, tornava eu.
— Seja o que for, eu o saberei na época devida... ou não o saberei,
porque terei cessado de existir, concluía ele.
Essa era a grande discussão entre nós, a pergunta de Hamlet feita em
termos universais. Viremos a ser ou não , viremos? Ele dizia que não. Eu
recusava semelhante crença positiva. Como podíamos dizer não, se não
sabíamos que o sim era impossível? Agora ele sabe e eu não.
Isto não é leal de sua parte. Pensei que sempre saberíamos juntos. Você
pode achar uma maneira de me dizer. Você é ou não é?
Impeli a pergunta para dentro da noite e depois a retirei em pânico. Eu
não queria, realmente, saber a verdade. Se ele existe, a espera, sozinha, seria
intolerável. E não posso suportar a idéia de que ele não existe. Que eu
espere, então, até descobrir por mim mesma, por experiência. Se tenho
razão, minhas primeiras palavras a ele, quando eu chegar, serão ditas com
amor e triunfo.
— Aqui estou. Agora sabemos.
Até então, continuo como estávamos antes, ele duvidando, eu crendo.
Sim, penso que ainda creio, embora não tenha descoberto, ainda, como
saber. Fé, disseram-nos os santos através das eras; possibilidades, dizem hoje
os cientistas, porque tantas coisas que antes considerávamos impossíveis são
agora possíveis. Santos e cientistas...
A luz da madrugada que impregna um avião a jacto é maravilhosamente
bela. Voávamos em direção ao Sol nascente, numa cascata de luz, gloriosa e
majestática, erguendo-se da curvatura do globo. Pessoas acordavam,
mexiam-se e olhavam para fora, através das pequenas janelas. Havia no ar
uma fragrância de café e uma aeromoça, nova em folha, estava alerta,
servindo suco de frutas. Ao meu lado, um passageiro levantou-se e caminhou
pelo corredor. Durante toda a noite eu não tivera consciência da presença
daquele estranho, contudo sabia que se achava ali. Mais cedo ou mais tarde
nos falaríamos, mas eu me havia refugiado nas trevas. Agora o dia começara,
o primeiro dia de minha nova e solitária vida. Pouco importava o número de
pessoas que me rodeava, dentro de mim haveria sempre, a partir de agora,
uma permanente solidão. Que significava isto? Que podia significar? Era o
que restava descobrir. Não devia insistir em saber tudo ao mesmo tempo.
Aprendi há muitos anos, que para ser paciente com os outros, é preciso ser
paciente consigo mesmo.
Não aprendi essa lição de uma só vez. Era, com freqüência, impaciente
comigo mesma, e comigo mais que com os outros, até aprender, penso que
através do exercício da música, que a aprendizagem era um processo de dia a
dia. Pode-se trabalhar sòlidamente durante quatorze horas, decorando uma
sonata de Beethoven para uma só execução, mas esta aprendizagem não é
permanente. A fim de que a música permaneça para sempre gravada na
mente é preciso que também tenha sido absorvida espiritualmente — isto é,
deve tornar-se parte do ser, por um período de tempo e através de exercício
contínuo. O que eu tinha a descobrir sobre solidão, o que tinha a aprender
sobre seu uso, seu significado, só podia ser adquirido através da vida diária e
da experiência nova. Ir ao teatro sozinha, quando ele já não podia
acompanhar-me, custara-me esforço. Amávamos o teatro, eu e ele, e lá
passamos algumas de nossas horas mais felizes. Rir juntos, durante uma
noitada de Gilbert e Sullivan — bem, ele gostava de Gilbert e Sullivan, sabia
tocar e cantar essas operetas e todos os nossos filhos conheciam as canções.
Tive de aprender também a gostar delas, pois me eram estranhas. Mas nós
éramos ecléticos e gostávamos de teatro, fosse qual fosse, indignando-nos
apenas quando uma peça era tão obviamente tola que profanava uma nobre e
antiga arte. Ele, certamente, teria ficado desapontado comigo, para não dizer
desgostoso, se eu tivesse deixado de freqüentar o teatro por ter de ir sozinha.
Relâmpagos dessa espécie de percepção incidental passavam-me irrelevante-
mente pelo espírito e eu os afastava. Dia a dia era o caminho pelo qual de há
muito eu aprendera a viver, e hoje estava aqui, a milhares de metros acima
da terra, encerrada nesta veloz concha prateada, cercada de pessoas que
nunca tinha visto antes e que provavelmente nunca tornaria a ver.
Há um certo conforto, ao mesmo tempo superficial e orgânico, na
necessidade de lavar e vestir o corpo, de comer e de beber. Pareceu-me,
quando encarei o espelho, que nunca mais me tornaria a preocupar com a
minha aparência, pois nunca mais tornaria a ouvir suas palavras de
apreciação e louvor. Eu sabia, naturalmente, que não podia, quanto à
verdade, confiar nele a esse respeito. Era demasiado generoso, e
possivelmente ninguém mais podia ver-me como ele me via. Eu não
acreditava, nem por um momento, ser tudo quanto ele dizia que eu era. Mas,
como mulher, gostava de ouvir mesmo aquilo que sabia não poder ser
verdadeiro. Contanto que ele acreditasse, que mais importava?
Era esse o mesmo rosto para o qual eu fora compelida a olhar durante
tantos anos? Eu não era a mesma pessoa e o rosto devia pertencer a alguma
outra. Não obstante, lavei-o, fiz a maquilagem usual e tomei os cuidados
habituais com os meus compridos cabelos. Esses cabelos! Mesmo quando
menina eram a minha cruz, sempre compridos, lisos e emaranhados. Naquela
época eram da cor do mel-amarelado, minha mãe não os cortava, adulava-me
quando eu chorava e me elogiava depois de os ter penteado e amarrado com
uma fita na minha cabeça. Fazia cachos quando eu era pequena, depois
longas trancas, e eu ansiava pelo dia em que, já grande, poderia cortá-los,
como os cortei assim que pude, para deixá-los crescer de novo, porque ele os
preferia compridos. Agora posso cortá-los novamente, pois ele nunca os
verá, mas compreendi no mesmo momento que eu nunca os cortaria, embora
sejam agora da cor da prata, em vez de dourados. Minhas mãos, sem o
menor cuidado, executaram sua tarefa habitual e não pude crer, ao olhar o
espelho, que estivesse, depois de tudo, com a mesma aparência, mas estava.
Quando voltei ao meu assento, a aeromoça serviu-me a refeição e pude
sentir o cheiro do café, do toicinho e das torradas. Embora o espírito
estivesse longe e não tomasse parte em nada disto, o corpo se comportou
como de costume. Ó carne cruel!
E todos, no jacto, estavam despertos agora, eu não conhecia ninguém e
ninguém me conhecia, pelo que me sentia grata. A aeromoça levou, afinal, a
bandeja do café, semiterminada. Tentei ler uma novela japonesa, mas acabei
deixando-a de lado. Não queria uma história de amor nem mesmo uma
história de seres humanos. Abri minha frasqueira e tirei um livro fino,
Science and Human Values, por J. Bronowski. Li esse livro durante toda a
manhã, o cérebro trabalhando nitidamente a par de minha vida individual.
Quer nosso trabalho seja arte ou ciência, ou o trabalho diário de
sociedade, apenas a forma pela qual exploramos nossa experiência é
que é diferente; a necessidade de explorar permanece a mesma. É por
isso que, no fundo, a sociedade de cientistas é mais importante que
suas descobertas. O que a ciência tem a ensinar, aqui, não é a sua
técnica mas o seu espírito; a irresistível necessidade de explorar... Pois
esta é a lição da ciência, a de que o conceito é mais profundo que as
leis e o ato de julgar mais decisivo que o julgamento. Num livro que
escrevi sobre poesia, disse: "A poesia, por si mesma, não nos leva a
ser justos ou injustos. Leva-nos, isto sim, a pensamentos a cuja luz a
justiça e a injustiça são vistas com terrível nitidez de contornos".
O que é verdade para a poesia é verdade para todo o pensamento
criador. E o que eu disse, então, de um valor é verdadeiro para todos
os valores humanos. Os valores pelos quais teremos de sobreviver não
são regras de comportamento justo ou injusto, mas são aquelas
iluminações mais profundas à luz das quais a justiça e a injustiça, o
bem e o mal, os meios e os fins, são vistos com terrível nitidez de
contornos.
Aqui terminava o livro e eu o fechei, grata a um cérebro pensante que
falava a outro cérebro. Quão grata, na verdade, sou a meus eruditos pais,
àqueles dois que, desde os meus primeiros anos, me ensinaram, pelo seu
exemplo, a encontrar alívio, coragem e força no uso do cérebro! Seja qual
for o sofrimento individual e por mais absoluta que seja a solidão individual,
o cérebro, treinado no uso e pelo uso, continua a explorar. Eu levava, dentro
do crânio, meu próprio instrumento. Não precisava, não devia, retirar-me,
parar ou cessar de evoluir pelo fato de ter de seguir sozinha o meu caminho.
Uma estranha paz, cálida e viva, fluiu dentro de mim. Recostei a cabeça
no espaldar da poltrona e fechei os olhos. Lembro-me de ter sorrido para
mim mesma, embora não saiba por quê. Era como se nos houvéssemos
comunicado, ele e eu, por meio do pensamento e do silêncio, em vez de por
palavras.
Escoava-se o dia e eu ainda não falara com ninguém. Então, no meio da
tarde, meu companheiro de lugar perguntou-me se podia dizer que me havia
reconhecido. Senti-me relutante em admitir o reconhecimento, mas nunca
pude mentir confortavelmente e agora não valeria o esforço. Agradeci-lhe e
respondi que sim, era eu. Tornou-se necessário, então, conversar polida e
casualmente, mas eu ainda podia continuar solitária, não mencionando a
razão por que estava ali, e fiz perguntas a seu respeito. Não lhe recordo o
nome, parece impossível lembrar alguma coisa específica sobre essa viagem,
e duvido que reconheceria seu rosto se tornasse a vê-lo. Era alto, porque eu
tinha de levantar a cabeça quando ele falava, e um tipo magro de rosto
ocidental. A única coisa de que me lembro era que estava viajando para o
Wells Fargo Bank e isso despertava um vago interesse histórico. Wells
Fargo é um nome romântico na História Americana, mas sobre negócios
bancários eu nada sei além das necessidades de cada dia.
Encorajado pela minha ignorância, o viajante explicou-me, com uma
clareza seca e viva, qual era exatamente a sua tarefa, e eu captei a
significação da atividade bancária internacional, particularmente em nosso
mundo moderno. Ele estivera em Singapura, Hong-Kong e outras cidades
que eu conhecia bem, mas as vira sob uma luz inteiramente nova para mim,
em áreas desconhecidas, onde homens manipulam a troca de moedas,
proporcionam capital e criam poder, segundo acham conveniente. Ouvi com
um interesse a princípio desatento, depois superficial e finalmente real, "a
irresistível necessidade de explorar". Quase esqueci minha pessoa e me
surpreendi quando a voz do rádio, sobre nossas cabeças, anunciou que
tínhamos chegado a Honolulu. Vi, então, que era noite outra vez. Tínhamos
atravessado um dia inteiro em curto espaço de tempo e estávamos uma vez
mais entrando em nosso próprio país.
Sobreveio a azáfama do desembarque, a entrada em fila para a inspeção
da alfândega e eu de nada me lembro. O que recordo é novamente uma
experiência. Pois enquanto esperava, profundamente consciente de estar só,
aproximou-se um funcionário da alfândega e me pediu que saísse da fila. Eu
assim fiz e ele inclinou sobre o balcão para falar em voz baixa.
— Não quero atrasá-la, mas desejo falar-lhe confidencialmente sobre um
assunto.
Surpreendi-me uma vez mais comigo mesma. Nunca vira aquele homem
antes, tipo grande e robusto, de bondoso rosto redondo, muito americano.
— A senhora compreende, disse ele em voz baixa, tenho uma filha
retardada.
Ah, agora eu sabia porque me tinha chamado de lado! Estou acostumada
a que me chamem de lado para dizer-me isso. Tive a mesma experiência em
toda parte do mundo. "Quero lhe contar... tenho uma filha..."
— Fale-me dela, disse eu.
Ouvi enquanto ele falava, e embora todas as palavras me fossem
familiares, sentia-me cheia de íntimo espanto. Como podia ser que, naquele
próprio instante em que eu necessitava desesperadamente que me
despertassem a vontade de viver, esse homem estivesse ali, chamando-me de
volta à vida? Pois muito de minha vida fora dedicada ao trabalho com e para
os pais de filhos retardados e para estes. Tal fora o meu destino. Contudo,
nas últimas horas, desde o momento em que a voz de minha filha chegara a
mim, pelo telefone, naquela madrugada em Tóquio, eu não me lembrara uma
só vez dessa parte de minha vida. Agora aqui estava, reclamando-me de
novo.
— A senhora vê, dizia o homem, a coisa é assim. Minha mulher e eu
andamos discutindo. Ela diz que os americanos sempre põem seus filhos
retardados em instituições porque assim é melhor para as crianças. E ela diz
que devemos fazer o que os americanos fazem, agora que o Havaí é um
Estado. E eu digo que nossa menina não dá nenhum trabalho... é gentil,
tranqüila e se sentiria muito sozinha numa instituição.
— Sua mulher se sentiria mais feliz se ela fosse internada? perguntei.
— Não. Ela chora quando fala nisso, mas diz que será melhor para a
menina.
— O senhor quer que ela vá?
— Eu? Isto me partiria o coração. Considerei:
— Que aconteceria se vocês dois morressem? Quem cuidaria de sua
filha?
— Muita gente! Minha mulher é havaiana. Tem uma dessas grandes
famílias havaianas. Todos cuidarão de nossa filha. Na verdade, ficam
malucos quando falamos em interná-la. É só que minha mulher...
— Diga a sua mulher que ela está enganada e que todos vocês estão
certos, disse eu. — Sua filha tem muita sorte. Possui uma família que quer
conservá-la. Estou certa de que pais americanos, nas mesmas circunstâncias,
desejariam ter tanta sorte quanto o senhor e sua mulher, por terem tal
família.
Seu rosto honesto se desanuviou.
— Obrigado, disse ele.
Conduziu-me de volta à seção de bagagens.
— Algo a declarar?
— Nada, respondi. Era verdade. Eu nada tinha a declarar.
— Okay, tornou ele, marcando minhas malas com giz e sorrindo. —
Adeus. Nunca me esquecerei da senhora. Este é o meu dia de sorte. Verá
quando eu contar à minha mulher. Ela não vai acreditar em mim. É um
milagre.
Era um milagre para mim, também.
Então, como para testar-me, fiquei de novo só. Nunca viajara sozinha
antes de ele adoecer. Viajar sempre fora um acontecimento alegre, para nós.
Ele era um delicioso companheiro de viagem. Sempre sabia o que havia para
se ver e onde ir. Eu o acompanhava descuidadamente feliz. Agora tinha de
achar o restaurante e conseguir algo para comer. Haviam-nos dado cupões
para o jantar. Mas aonde deveria eu ir? Quando uma mulher foi sempre
acompanhada por um homem jovial e informado, mergulha em confusão ao
se ver subitamente só. Segui o caminho errado, perguntei a alguém, tomei a
direção oposta e cheguei tarde demais ao restaurante, não encontrando
nenhum lugar vago. Estava prestes a sair de novo e a não pensar mais em
comida, quando um americano de aspecto agradável aproximou-se de mim e
perguntou se eu estava procurando um lugar. Se assim era, havia um acolá...
dois na verdade, se eu não me incomodava de jantar com ele.
Aceitei com alívio e me guiou até uma mesa meio escondida. Sentamo-
nos, ele encomendou o jantar e eu me senti grata. A solidão interior era
invencível e permanente. Eu sabia disso, mas era como se ele, em alguma
parte, houvesse visto a minha situação e, não podendo estar comigo,
mandava estranhos em seu lugar. Perguntei o nome do desconhecido. Deu-
mo, disse que era cientista e que fora mandado de Washington para trabalhar
com outros cientistas, no Japão. Novamente uma parte de minha vida me
reclamava. A ciência, em especial a física nuclear, era de há muito uma
atração para mim, e me pus a ouvir agora, com interesse e compreensão,
inteiramente desligada de meu ser interior. Os japoneses, disse-me, eram
excelentes cientistas, e, particularmente, sabem sobre a ionosfera mais do
que quaisquer outros cientistas do mundo. A ionosfera, essa camada de
atmosfera superior onde, segundo diz Clyde Orr, "as radiações produzem
uma fermentação mágica de moléculas e íons em metástase, entidades
atômicas carregadas de eletricidade" (Between Earth and Space, página 21).
É o berço da eletricidade, a fonte das tempestades elétricas, contra as quais a
energia armazenada na terra executa um eterno dueto de violência
contraponteada. Minha mente foi de novo agitada por irresistível curiosidade
e me lembrei, como se ele, onde quer que estivesse, me houvesse recordado
que a vida podia prosseguir nesses interesses que havíamos partilhado.
Passou-se uma hora e a voz pelo rádio pediu que tomássemos novamente
nossos lugares no jacto. O dia passara de algum modo e por três vezes um
ser humano fora mandado falar comigo, ajudar-me, recordar-me a vida.
A noite caiu uma vez mais. Não sabia como denominar essa noite, uma
noite sem nome, pois o tempo se estendera mais do que o seu nome. Eu
vivera vinte e quatro horas mais que o espaço entre a noite de domingo e a
manhã de segunda-feira. Havia dado o passo inicial em minha futura vida.
Nessa noite dormi, intermitentemente, mas sem medo. Ninguém podia tomar
o seu lugar, ele não esperava isso, nem eu, mas os estranhos viriam quando
eu os necessitasse, podia aprender deles e deixá-los ir, porque viria outro.
Era como o movimento universal de toda a vida, as ondas de energia que se
abatem sobre o nosso globo, feitas de inumeráveis partículas separadas. Que
são os seres humanos senão partículas, nós também vamos e vimos,
incessantemente, em ondas de movimento e substância. Minha vida era
agora parte do todo, uma partícula separada, só e à parte, contudo
inevitavelmente arrastada no fluxo e refluxo da maré humana.
Quando chegou a aurora seguinte, foi para derramar sua luz dourada
sobre a paisagem da América. A voz no rádio anunciou que começaríamos
agora a descida sobre a cidade de Allentown, na Pensilvânia. Allentown fica
apenas a poucos quilômetros de minha fazenda. Imaginariam as crianças que
eu estava passando por ali, mas muito alto, entre as nuvens? Fiz uma rápida
toilette, tomei café, e então fomos descendo velozmente até que vi as
brilhantes torres de Nova York.
Agora era preciso enfrentar de novo os amigos e a família. Por um
instante senti medo. Havia sido mais fácil aqui, ao abrigo dos que nada
sabiam sobre a minha viagem e por que a estava fazendo. Eu não dissera a
ninguém e assim não tive de receber o peso da simpatia. Mas era tempo,
agora, de encontrar meus filhos e sobretudo de aceitar sua ajuda.
Confortando-me, eles também seriam confortados.
Era uma bonita manhã. O sol se infiltrava por entre a neblina, enquanto
eu atravessava o campo, rumo ao aeroporto. Do outro lado da porta
esperavam-me minha querida e única irmã e duas de minhas filhas,
acompanhadas pelo fiel teuto da Pensilvânia, que dirigia meus carros há
muitos anos. Olhei cada rosto e meus temores se desvaneceram. Eu me havia
enganado — era bom estar com os que me conheciam e amavam, e aos quais
eu amava. Sou rica em três filhos e seis filhas, dessas seis a mais velha é a
criança que nunca cresceu, à qual eu devo tanto, e mais outros cinco, que vão
da minha filha competente, profissional, terapeuta-ocupacional, até o gentil-
menino nipo-americano, que me veio do Japão. As duas mais moças são de
sangue japonês, sendo seus pais soldados americanos. A seguinte, vivaz,
ordeira, é de sangue alemão, sendo seu pai também americano. A pequenina
do meio, casada e com três perfeitos bebês, é a que mora do outro lado do
córrego, a de cabelos negros, grandes olhos violetas e temperamento ardente,
suavizado por um rápido senso de humor. Cada filho tem sua força
individual, cada filha sua graça peculiar, cada qual um lugar indispensável
em minha vida. Mas hoje eu me alegrava por terem ficado em casa as três
filhas menores e por terem a do meio e as mais velhas vindo receber-me em
companhia de minha irmã; três mulheres fortes e compreensivas.
Naturalmente éramos íntimas, mais íntimas do que fôramos em nossa
feliz vida comum. A morte dele estreitara todos os laços que nos uniam.
Tampouco me passou despercebida a serena compreensão do nosso
motorista. Apanhou meus cupões de bagagem, conduziu-nos ao automóvel,
entramos e ficamos à sua espera. Em poucos minutos estávamos a caminho
de casa, através as ruas de Nova York, do Túnel Lincoln e da barreira de
pedágio. Era tudo familiar e seguro, uma viagem que eu fizera centenas de
vezes através dos anos, a princípio sempre com ele, e sozinha nos últimos
cinco anos. Foram precisos sete anos para que seu forte corpo e fino cérebro
terminassem seu período sobre a Terra.
E como fora divertido, desde o começo, quão cheios de satisfação os
anos em comum! Havíamos começado em Nova York, onde ele vivera
durante trinta anos, antes de nos encontrarmos. Passamos o primeiro inverno
num hotel cosmopolita, numa suíte de agradáveis aposentos, o que não me
parece estranho, pois com o trânsito de pessoas de todas as partes do mundo,
bem podia ser um hotel de Xangai ou Pequim. E no ano seguinte, quando
adotamos nossos dois primeiros bebês, mudamo-nos para um apartamento
com terraço e começamos nossa vida de pais. Ele sempre quisera ter uma
família grande; como nos regozijamos com o seu agradável crescimento!
Dois anos se passaram, trazendo-nos apenas alegria e satisfação — adotamos
mais dois bebês. Então seu sonho seguinte, que era viver no campo, tornou-
se uma necessidade. Quatro crianças pequenas mal podem caber, com êxito,
em qualquer apartamento. Minha infância decorreu num velho e espaçoso
bangalô tropical, cercado de jardins e, além do muro, das colinas e campos
da cidade de Chinkiang, porto do grande Rio Iã-tsé, na província de Kiangsu.
Eu não podia imaginar uma criança crescendo no cimento, entre torres, por
mais belas que fossem, embora eu ame Nova York como cidade. Mudamo-
nos para a nossa casa de campo, e ele se devotou, como sempre esperara
poder fazê-lo, ao trabalho editorial. Era um homem de negócios relutante e,
se o seu brilhantismo fosse apenas um pouco mais canalizado, poderia ter
sido escritor de livros. De qualquer forma, escreveu alguns, tão variados
quanto ele próprio. Inteligentes versos para crianças, uma novela humorística
de mistério, um excelente trabalho sobre Marco Pólo, simplificado depois
para a infância e editado pela Random House nas séries Landmark, e mais
um estudo crítico de Buffalo Bill, personagem pelo qual tinha um interesse
muito céptico.
À medida que passavam os anos, a casa de campo ia se transformando
num confortável e esparramado lar para uma família em crescimento.
Ensinou as crianças a jogarem tênis, basebol e golfe, e elas aprenderam bem
cedo a nadar e a montar. Eu vivia ocupada com o meu próprio trabalho, mas
a grande janela de meu estúdio dá para a piscina e eu via, por instinto,
quando uma criança se tornava ousada demais. Nossa vida achava-se
despreocupada-mente organizada em torno do trabalho e das crianças, e nós
a vivíamos profundamente. Nossos prazeres consistiam em música, gente,
crianças, livros, o mundo das matas, da montanha e do mar.
Não sei se é mais fácil ver o fim chegar de súbito ou gradativamente ao
longo dos anos. Se me houvesse sido dado escolher, eu teria preferido um
fim súbito, com choque e tudo. Pois assim as lembranças não ficariam
emaranhadas na lenta e agonizante perda da percepção e da fala e, por
último, do reconhecimento mesmo das pessoas amadas e queridas. Há,
porém, um conforto. Ele não teve consciência de seu próprio declínio. Ao
ficar reduzido aos aspectos físicos elementares da vida, sua natureza
essencial permaneceu, como já disse, o que sempre fora, uma altruísta
suavidade.
A transformação se processou lenta, muito lentamente. Quando seus
olhos fraquejaram e não podia mais ler, mandamos buscar as gravações dos
livros. Devo aqui expressar a minha gratidão à Biblioteca de Livros para
Cegos, que estabeleceu um fluxo contínuo de discos para a nossa casa, sem
qualquer despesa, e seu cérebro se manteve estimulado e vivo, além do que
temêramos. Mas também isto chegou ao fim. Sobreveio o dia em que as
palavras cessaram de ter sentido e até mesmo a música se esvaiu.
Contentava-se apenas em existir. Teria sofrido se soubesse, e eu agradeço à
bondosa inteligência, seja qual for, o fato de ele nunca ter sabido. O corpo
vivia, aliviado de qualquer pressão do cérebro, do espírito ou da emoção, e
assumiu uma estranha durabilidade própria.
Isto vai durar muito tempo, repetiu o médico da família. — Você deve
continuar o seu trabalho habitual. Deve viver, viajar, não se deixe absorver
por aquilo que não pode ser socorrido.
E de fato era essa a única maneira de suportar o que nos estava
ocorrendo. Tentei viver como de costume, na medida em que me era
possível.
O desfecho viera inesperadamente. Eu ouvia as palavras de minha filha
de cabelos negros, enquanto rodávamos para casa através da verde zona rural
naquele fim de primavera. Tudo estava na mesma, com relação a ele, até
dois dias antes. Ela atravessara o córrego, com seus três filhos, após o café,
para a sua visita matinal. Encontrou-o acordado e pronto para o dia. As
crianças subiram em sua cama, beijaram-no e lhe acariciaram o rosto. Ele
proporcionava, penso eu, um elemento de segurança total na vida delas.
Estava sempre na cama, desde que elas tinham nascido, e não se lembravam
de que houvesse sido diferente. Saíram e, ao voltarem um pouco mais tarde,
ele estava morto. Era uma história tão simples que eu não pude suportar
ouvi-la. Durante longo tempo não sabia que estava vivo e também não soube
quando morreu.
— Não havia nada que se pudesse ter feito, disse minha filha.
— Eu sei, respondi. — Sei disso há muito tempo. Nada pude sentir no
momento senão a consciência do fim, um imenso cansaço do corpo e do
espírito, agora que eu sabia tudo quanto havia a saber. Suponho que duas
noites de sono interrompido e a tensão de procurar ser eu mesma, na medida
do possível, embora entre estranhos, fora mais fatigante do que pensei.
Permaneci em silêncio, as mãos nas cálidas e jovens mãos de minha filha. O
carro entrou afinal em nossa estrada familiar. As bondosas pessoas que me
ajudam na casa, no escritório e no campo, estavam esperando. Tive de
cumprimentá-las, aceitar suas lágrimas e simpatia, e afinal a liberdade de ir
para meu quarto. As crianças estavam em casa, recolhidas de toda parte.
Tudo fora feito. O quarto dele, que por tanto tempo havia sido um hospital,
já se convertera em quarto de hóspedes. A cama de hospital desaparecera, os
tapetes eram novos e limpos, crespas cortinas brancas guarneciam as janelas.
Meu quarto estava imaculado e alegrado com rosas. Eu via tudo e nada
sentia. Caminhava como que dormindo. Quando alguém parava de falar por
um momento, eu adormecia. Depois do almoço, que suponho ter comido,
mas do qual não me lembro, deitei-me no sofá da sala de estar, eu que nunca
fico exausta, e enquanto as crianças confabulavam, dormi. Foi diferente de
qualquer outro sono que já tive. Caí, simplesmente, inconsciente.
Os dois dias seguintes centralizaram-se em três acontecimentos. Fomos,
todos nós, dar-lhe nosso último adeus. Vimos apenas o seu corpo,
naturalmente. Ele não estava lá. Mas o corpo é precioso. Através do corpo
expressamos nosso amor e é com o corpo que vivemos. Lembro-me de
minha mãe, um dia, quando eu não contava mais de sete anos. Eu estava
desesperadamente doente, com difteria, numa cidade chinesa. Meu irmão
menor havia acabado de morrer da mesma doença, iam enterrá-lo naquele
dia e minha mãe soluçava. Uma amiga, bem intencionada mas sem
compreensão, reprovou-a.
— É só o corpo dele, disse à minha mãe. — Sua alma está no céu, com
Nosso Senhor.
Minha mãe, apesar dos soluços, encolerizou-se.
— Mas seu corpo é precioso, gritou ela. — Eu lhe dei nascimento. Eu o
cuidei e amei. Onde quer que sua alma esteja, está fora do meu alcance.
Estão levando o seu corpo e ele é tudo que eu tenho.
Voltaram-me à memória essas palavras enquanto eu me achava junto do
seu querido corpo. Jazia num féretro, os olhos fechados, as mãos repousando
de cada lado. Vestia seu terno de lã, o de que gostava, cinza azulado, e a
gravata azul escura que eu lhe dera no último Natal. Seus belos cabelos,
apenas parcialmente brancos, estavam penteados para trás, como ele sempre
os usava. Seu rosto estava novamente jovem, desaparecidas as rugas, os
lábios tranqüilos. Beijei-lhe a face. Toquei em sua mão, que sempre fora
quente e de reação rápida. A carne estava fria.
Tivemos, no dia seguinte, a cerimônia simples que as crianças haviam
planejado. Haviam afastado para um lado os móveis da biblioteca e quando a
manhã ia pelo meio, o sol inundava o pátio e a pequena fonte, e um
garotinho de pedra da Itália brincava gentilmente dentro da piscina, postei-
me à janela de meu quarto de dormir. Homens o estavam trazendo para casa,
pela última vez. Quando desci, nosso pessoal doméstico e do campo, as
crianças e suas famílias, e as enfermeiras que haviam cuidado dele, estavam
esperando por mim. Os homens tinham colocado o féretro diante da lareira.
A tampa estava fechada. O ministro de nossa família leu em voz alta trechos
dos livros que considerou adequados. Proferiu depois algumas palavras de
amizade. Não recordo o que disse. Fiquei pensando nas muitas horas que
passamos neste aposento. Fora, primeiro, quarto de brinquedos das crianças.
Depois, quando cresceram o suficiente para quererem jogar basquetebol e
andar de patins, transformamos o celeiro em sala de jogos e fizemos deste
aposento a biblioteca da família, forrando-o com estantes. Por cima da
lareira pendia o quadro da ilustração de uma história de John Galsworthy,
que ele publicara no Colliefs, quando era editor dessa revista. É um belo
quadro a óleo, evocativo e poético. A história foi a primeira, creio eu,
publicada na América por Galsworthy. É sobre uma jovem noviça num
convento, na última noite de seu noviciado. Tinha de decidir, naquelas horas
finais, se se tornaria freira ou se voltaria para a vida e para o seu amado.
Quis o acaso que uma bela bailarina pedisse abrigo no convento, para passar
a noite e, depois da refeição vespertina, dançasse para as freiras. O artista
descreve a dança, a comprida saia vermelha rodopiando ao redor dela. No
segundo plano, a pequena noviça permanece fascinada e, como diz a
história, foge naquela noite para encontrar-se com o amado e viver sua vida
de mulher, como esposa e mãe. O quadro sempre estivera pendurado ali,
acima da lareira revestida de carvalho, e lá está pendurado agora.
Quanto aos livros, sempre teve grande cuidado em que fossem
adequadamente classificados em suas seções próprias — ficção, ciência
social, biografias, literatura infantil, livros de viagem, livros novos e assim
por diante. Era um amante de livros, um homem culto e de espírito largo.
Embora eu conhecesse bem e profundamente a Ásia, contava-me sobre ela
fatos que eu não sabia. Quando visitamos, certa vez, a índia, o Sudeste da
Ásia, a China e o Japão, ele sabia todas as pessoas importantes que devíamos
conhecer e podia contar-me a história de todos os lugares que víamos. Era
um companheiro encantador e interessante tanto na pátria quanto no
estrangeiro. Acima de tudo, nunca me tratava com a condescendência do
homem para com a mulher.
Subi de novo ao meu quarto, enquanto levavam o féretro, e esse, de certo
modo, foi, e ainda é, o pior momento. Ele estava saindo para sempre de
nossa casa e do nosso lar. Seguiu-se, então, a longa corrida ao cemitério de
sua família, em Nova York, onde estão enterrados os seus pais. Sim, todos se
mostraram bondosos. Aqueles que tinham o dever de cuidar dele nessa
última viagem, mostravam-se pensativos e quietos. Quando nos
aproximamos do fim do percurso, policiais conduziram-nos ao nosso
destino, através do tráfego.
Faço uma pausa, aqui, recordando. E que recordo eu? Isto — em meio
àquela triste corrida, cada momento da qual era agonia concentrada, ao ponto
de sentir meus próprios ossos doerem, aconteceu-me ver pela janela traseira,
e contra a minha vontade, a longa e lenta procissão de carros pretos. Sim,
mas no extremo da fila havia mais dois carros. Eram camionetas, vermelhas
como os carros de bombeiros. Reconheci-as imediatamente. Uma pertencia
ao meu segundo filho e outra ao meu igualmente jovem cunhado. Estremeci
quando mas vieram orgulhosamente mostrar, antes de minha partida para o
Japão, e eu, heroicamente, as admirei. Agora lá estavam, reluzentes e vivas
ao sol da manhã. Eu sabia por quê — e meu coração se dissolveu de novo,
em lágrimas e risos. Que vergonha, que lástima, que ele não pudesse ver
aquelas duas camionetas de um vermelho brilhante fazendo-lhe as honras
nessa ocasião — e como teria rido!
Por que digo que teria? É possível que em algum lugar você esteja
rindo. Ainda é possível. Mantenho minha posição, até...
Tudo estava pronto para nós, quando chegamos ao tranqüilo lugar. Os
pássaros cantavam e as flores desabrochavam. A celebração da cerimônia
final, de devolução do seu corpo à terra, não demorou muito. Nosso ministro
nos havia acompanhado e proferiu as palavras finais de paz e aceitação.
Meus filhos e meu enteado, jovens e fortes, ficaram ao meu lado. Meu
enteado continuaria a firma do pai. Minhas filhas me acompanharam de
volta ao automóvel e partimos... Mas, oh, aquele último momento silente, em
que ele devia ser deixado para trás, e a chegada à casa, agora vazia! Desses
não posso falar. A outras mulheres em circunstâncias semelhantes, que
venham a ler estas páginas, posso apenas dizer que não há como fugir de tais
momentos, quando eles chegam. Têm de ser vividos até o fim, não uma
porém muitas vezes, através da lembrança. Disseram-me que se atenuam
com o tempo. Não acho. Volto para casa como se voltasse para o céu, toda
vez que a deixo, mas não é a mesma coisa, nunca será a mesma. Sei disso
agora. Não havendo como fugir do fato, só pode haver aceitação. E a
aceitação vem afinal, mas não de uma vez... oh, nunca de uma vez.
Eu não deveria, creio, ter ido a Vermont. Mas nós sempre íamos para lá
quando o verão esquentava na Pensilvânia. E pode tornar-se muito quente,
pois, como disse alguém, este Estado é "a distante extremidade delgada do
trópico". Nossas matas e campos tornam-se luxuriantes como qualquer
floresta e as noites permanecem quentes. Talvez eu sentisse que poderia
escapar, de algum modo, de sua contínua ausência. Custei a aprender como
isto é impossível, seja qual for a parte do mundo para onde eu vá. De
qualquer maneira, após algumas semanas, fui para Vermont com minhas três
filhas menores. Anos antes, quando ficou estabelecido que eu e a tasneira
não podíamos viver juntas, construí uma casa de três cômodos para ele e
para mim — dois quartos e uma grande sala de estar, que servia também de
sala de jantar, com um balcão de cozinha. Nela, ele e eu passamos bons
verões, e as crianças tinham quartos próprios em cima da garagem. Nessa
casa, que fora dele e minha, entrei agora sozinha. As meninas se alojaram
nos quartos sobre a garagem. Pus-me a escrever e a praticar no piano,
passando horas no alto terraço que dava para a montanha Stratton. Não sei
por que imaginei que tudo seria mais fácil aqui. Pois na verdade eu não
podia escrever. Meu cérebro, perdido em pensamentos, lembranças e
perguntas, simplesmente não se ocupava com a criação de vidas de outras
pessoas. Achava-me tão afastada de todos como se fosse eu que tivesse
morrido. Não, assim não podia ser. Vermont não era o lugar. E pela primeira
vez precisei de outra ocupação que não fosse escrever. Precisava de trabalho
que eu tivesse que fazer, trabalho com outros, compelindo-me a acordar cedo
diariamente e a ir a um lugar determinado, onde fosse minha obrigação estar.
Quando esta convicção me invadiu, tomei minha decisão. Voltaria ao
Japão e retomaria meu trabalho no filme. Meus colaboradores tinham estado
ocupados. Haviam descoberto os locais, uma aldeia de pescadores que
consideravam ideal para o nosso filme, uma fazenda com as plantações em
terraços na encosta do morro, uma praia deserta, uma casa de pescador, uma
mansão senhorial. Já tínhamos o vulcão. Tudo pronto para que eu voltasse ao
trabalho. Quando partiria? Respondi que imediatamente. Aproximava-se o
fim de agosto. As meninas breve voltariam à escola, e poderiam morar com
sua irmã mais velha. Não havia razões de família que me detivessem em
casa e eu bendisse a perspectiva de trabalho e do Japão.
II
A ATMOSFERA EM MEIO à qual desembarcamos mais uma vez do jacto,
no aeroporto próximo a Tóquio, foi de boas vindas e de serena e muda
simpatia. Quanto mais profundos os sentimentos, menos palavras para
expressá-los, acham os japoneses. Nós, americanos, julgamos necessário
falar, mandar cartas e cartões de condolências. Centenas de cartas haviam
jorrado no meu estúdio, antes de minha partida, e eu as li todas porque era
bom conhecer a estima que dedicavam a ele, em tantos lugares do mundo.
Pessoas amigas e estranhas, faziam-me parar nas ruas e estradas rurais, para
dizer-me: "Lamentei tanto quando soube..."
Em Tóquio nada se dizia, porém tudo era transmitido. A consideração
era delicada, mas completa. Meu quarto, no hotel, estava flamante de flores e
cestas de frutas. As pequenas camareiras estavam sempre presentes e
solícitas. Eu compreendi, pois no Japão nem mesmo o amor é expresso em
palavras. Não existem frases como "eu te amo" na língua japonesa.
— Como é que você diz ao seu marido que o ama? perguntei certa vez a
uma amiga japonesa.
Ela me olhou ligeiramente chocada:
— Uma emoção tão profunda como o amor entre marido e mulher não
pode ser posta em palavras. Deve ser expressa pelas atitudes e pelos atos.
Também não existem, em japonês, equivalentes de nossas palavras de
amor — namorada, querida, meu bem, e as outras. Alguns jovens japoneses
estão começando a usar as palavras inglesas, mas não seriamente, talvez.
Mas talvez ninguém use mais essas palavras seriamente. Ouço diretores
americanos espalhá-las descuidada e casualmente pelas amadas e não-
amadas, de igual maneira, à moda de Hollywood e da Broadway, e sempre
me incomodo. Para um escritor todas as palavras isoladas como combinadas
com outras, cada qual devendo ser usada somente no seu lugar próprio,
como jóias. A língua inglesa é peculiarmente rica em palavras de amor, cujas
raízes mergulham no velho solo anglo-saxão. Ouvir um homem chamar uma
secretária, ou uma atriz, ou talvez apenas uma moça de cujo nome não se
recorda, pelas preciosas palavras do amor, sempre me... bem, me irrita! É
uma profanação do sentimento verdadeiro, o mais profundo do coração
humano. Para mim, nada na vida se iguala ou mesmo se assemelha, em valor
e riqueza, ao amor autêntico entre homem e mulher, com tudo quanto
implica. As palavras que usamos há séculos para expressar esse amor não
devem ser maculadas, pois pertencem a todos nós. Se são maculadas por um
descuidado mau uso, como expressaremos o amor verdadeiro? Somos
roubados de algo que não pode ser substituído. Qualquer mulher que ouvir o
homem que ama chamá-la de querida, meu coração, meu amor, só pode
sentir-se irritada quando essas palavras são destruídas.
— Como pode usar essas palavras assim? perguntei a um americano.
Ele riu, sem compreender.
— Isto faz com que as garotas se sintam bem, respondeu despreocupado.
— É informal... sabe... amigável.
As moças japonesas não se sentem "bem" com isso, nem o consideram
amigável. As poucas que o aceitam, são problemas. Elas acham que palavras
de amor significam amor e se tornam sérias e, por conseguinte, incômodas.
As outras, que não andam em busca do amor dos americanos, com os seus
conseqüentes benefícios, consideram semelhante homem indevidamente
interessado em sexo e, por conseguinte, insultante. São necessárias muitas
explicações para que elas se acalmem. São em geral muito polidas para
queixar-se na presença do homem, mas, por trás, quanto desprezo!
— Vou processá-lo se ele tornar a dizer isso, exclamou uma jovem atriz
com os seus olhos negros reluzentes de fúria... E de fato o processou. Sim,
tivemos nossos problemas.
Nossos cenários estavam prontos, embora eu ainda só os tivesse visto em
filme; a tarefa seguinte era encontrar o elenco. Sendo japonesa a história de
A Grande Onda, o elenco tinha de ser japonês e nós havíamos contratado
uma equipe e um cameraman japoneses. Pela primeira vez uma companhia
cinematográfica americana estava fazendo um filme no Japão, co-produzido
por uma companhia cinematográfica japonesa — a maior e, sob vários
aspectos, a melhor — com equipe e cameraman japoneses. Era uma
experiência e profundamente interessante. Já tinha visto, antes, filmes
extraídos de meus livros, mas nenhum como este, e com a minha presença.
Eu não pretendia interferir na direção nem em qualquer dos aspectos
profissionais, pois conheço minhas áreas de ignorância, mas teria o
privilégio de estar onde me aprouvesse e de falar quando desejasse. Creio,
tudo considerado, que meus companheiros de trabalho confiavam na minha
capacidade de permanecer calada. Eu não falaria muito, freqüentemente.
Sou, de fato, uma mulher calada por natureza, a menos que me sinta
oprimida pelo que eu considere injustiça, circunstância na qual, segundo me
dizem, me torno torturantemente faladora.
Gostei, certamente, de participar da escolha do elenco. Deram-nos um
gabinete no elegante edifício de propriedade dos nossos co-produtores
japoneses e todos os dias eu para lá me dirigia bem cedo, ficando até tarde,
olhando, escutando, julgando, desaprovando ou aprovando, enquanto os
responsáveis davam audiência a atores e atrizes, adultos e crianças. Nossa
primeira preocupação era encontrar as crianças — dois meninos e duas
meninas — que começariam a história. As crianças nos procuravam,
portanto, acompanhadas de suas mães.
Tenho visto várias crianças de teatro, tristes muitas vezes. Mas as
crianças japonesas, de teatro, não são tristes. Parecem-se com as demais
crianças japonesas, sadias, felizes, revelando a aparência geral dos que são
muito amados. Nem elas nem suas mães se mostravam tensas, como tantas
mães e crianças americanas nas mesmas circunstâncias, diferença esta que só
posso atribuir à possibilidade de que a concorrência não é tão importante na
vida japonesa como é na nossa, e que o desejo de sobressair vem depois da
consideração dos sentimentos humanos.
Elas entraram, uma após outra, cada mãe acompanhando discretamente
seu astro particular. Curvavam-se com a graça proporcionada por aquela
articulação extra que parece ter-se desenvolvido na coluna dorsal dos
japoneses. É única, essa curvatura. O chinês agita jovialmente a cabeça ao
cumprimentar e ao se despedir, e o coreano faz um altiva inclinação. O
japonês executa uma reverência, profunda mas também altiva.
Somente um garoto, na interminável procissão, parecia relutante ou
rebelde. Entrara no começo da manhã, ladeado pela mãe e pela tia, o único
menino que precisava i de escolta de duas mulheres, e o motivo logo se
tornou evidente. Era um garoto vistoso, mas rabugento, sua inclinação foi
quase descortês e a princípio não queria falar. A mãe e a tia desculparam-se
gentilmente desoladas por semelhante comportamento e nos informaram que
ele era um campeão de natação. Isto nos pareceu ótimo, o papel exigia um
bom nadador. Felicitamos o garoto, que se limitou a continuar rabugento.
Convidamo-lo a sentar-se e ele se sentou, ainda rabugento. Condescendeu,
após vários rogos sussurrados por suas parentas, a responder rapidamente às
nossas perguntas — demasiado rapidamente — olhando o tempo todo para a
parede. Sim, disse, respondendo a uma pergunta direta, estava na escola —
escola japonesa. Sim, falava inglês — às vezes. Estivera três anos no Cairo,
Egito, e lá freqüentara uma escola inglesa, mas preferia não falar inglês...
Gostava mais da escola japonesa que da inglesa... Não desejava lembrar-se
do Cairo. Bem, era uma cidade, nada mais... Foi-se tornando cada vez mais
rabugento. Ocorreu-nos uma coisa. Fizemos a pergunta final: ,
— Quer trabalhar neste filme?
Levantou a cabeça, sua fisionomia se iluminou pela primeira vez. Gritou:
— Não!
Fizemos mais uma pergunta certeira:
— Deseja ser ator?
Iluminou-se, agora, como uma lâmpada a gás néon:
— Não!
Estouramos de riso e ele nos olhou, esperançoso.
— A entrevista está terminada, lhe dissemos, e você é um homem
prudente. Sabe o que quer.
Retirou-se, sem sorrir, varão arrogante, as parentas trotando atrás dele,
magoadas porém conformadas. Era óbvio que conquistara uma vitória sobre
a família e que estava acostumado a tais vitórias.
Passaram-se os dias e os atores ficaram reduzidos aos impossíveis e aos
possíveis, constituindo estes últimos o grupo menor. O Japão tem muitos
excelentes atores de ambos os sexos e de todas as idades, mas estávamos
procurando atores excelentes que também falassem inglês, pois esta seria a
língua dos diálogos. Esperamos, a princípio, um tanto fora da realidade, que
seu inglês fosse perfeito. Depois esperamos apenas que seu inglês fosse
bastante compreensível, de modo que pudesse dar a ilusão de japonês.
Ilusão que me faz recordar um incidente de minha própria vida, na
China. Eu tinha parado para descansar um dia em certa hospedaria de beira
de estrada, numa província remota. Uma velha veio derramar chá na minha
xícara. Agradeci-lhe em chinês e perguntei-lhe como o preparava. Olhou-me
aterrorizada e deixou cair o bule de chá.
— Que os deuses me protejam, balbuciou ela. — Que se passa comigo?
Estou compreendendo inglês!
Era algo assim que esperávamos conseguir, mas havia ocasiões em que
imaginávamos se não estaríamos sendo tolos em alimentar tal esperança. A
variedade de pronúncia dos japoneses que falam inglês é espantosa, mas tem
uma característica comum. A consoante "1" parece alheia tanto ao ouvido
como à língua japonesa.
O dia passava nesse divertido trabalho, até anoitecer, e o problema de
todos os dias era que no fim de cada um havia sempre a noite.
Pela primeira vez na vida eu me sentia triste quando chegava o anoitecer.
Os outros se reuniam aos seus maridos e esposas, mas eu voltava sozinha
para o meu quarto de hotel. As janelas davam para os tetos da nova Tóquio,
como disse; não era bonita, pois não tinha havido tempo suficiente para criar
beleza. A cidade fora apressadamente reconstruída depois da guerra. Uma
pena, pois tendo sido vastamente achatada pelos bombardeios, bem
poderiam, se possível, ter traçado ruas largas e amplas pistas de velocidade,
fazendo uma cidade moderna porém bela à maneira japonesa. Não a fizeram.
A guerra havia sido áspera, a gente estava desesperadamente ansiosa por
começar a viver de novo, e o governo se achava quase falido. As casas eram
levantadas a trouxe-mouxe. Ainda hoje é quase impossível encontrar uma
casa pelo seu número ou mesmo pela sua rua. Não se pode confiar senão no
desconhecido.
As noites, em solitários quartos de hotel, são impossíveis, pelo menos
para mim. Tinha muitos amigos, convites em quantidade, mais do que
poderia aceitar, mas não satisfaziam. Era preciso sempre manter uma
fachada, uma pose, e isto podia ser feito durante o dia de trabalho, quando a
mente se achava ocupada. Era diferente quando se tinha de reagir
individualmente a outros. Em desespero e solidão, dei para perambular à
noite pelas ruas, desconhecida e livre. Tóquio é rica em teatros e cinemas e
eu habitualmente parava nuns e noutros. Embora não compreendesse os
diálogos, era fácil captar o curso da história, e eu me divertia suavemente, de
maneira superficial pelo menos, com o que via. As casas estavam apinhadas,
o auditório grave e intenso até que um momento cômico produzia riso alto,
staccato, interrompido instantaneamente pela intensa gravidade, de novo.
Numa dessas noites aconteceu-me ver uma americana, mais ou menos da
minha idade, perambulando como eu. Paramos, espantadas uma com a outra,
e então falei. Era de Los Angeles, seu marido tinha ido a Formosa, onde ela
não quisera acompanhá-lo, sua filha fora jantar com um jovem americano e
ela estava satisfazendo o velho desejo secreto de perambular sozinha pelas
ruas de Tóquio. A essa altura, porém, ela parecia incerta, embora não
assustada, e eu lhe propus que fôssemos ver o filme juntas, para nossa mútua
satisfação. O conhecimento amadureceu em amizade, sucedendo-se depois
um jantar com sua família, e mais tarde outro ainda, em Los Angeles. O
toque deste incidente é que eu não imaginava qual a aparência de uma
mulher americana em meio à multidão japonesa. Quando a vi, esqueci,
naturalmente, que a minha aparência era igual à dela, entre milhares de
japoneses.
Experimentava, na verdade, um cálido sentimento de conforto quando
me achava sozinha, em meio a uma multidão japonesa. Isto devia decorrer
da lembrança subjacente da atmosfera da minha infância quando,
acompanhada pela minha babá chinesa, eu me sentava num teatro chinês, ou
ao ar livre, na eira de uma aldeia, ou no pátio de um templo, para ver uma
peça. Na China o importante era sempre a peça, sendo desconhecido o
sistema de astros e estrelas, a não ser, naturalmente, que se fosse a Xangai ou
Pequim assistir o desempenho de uma estrela como, por exemplo, Mei Lang-
fang, ou Butterfly Wu. Quando criança não tive esse privilégio, mas apreciei
as peças de milagres e os longos dramas históricos através dos quais o povo
chinês aprendia religião, filosofia e a história de sua própria raça.
Aceitavam-me como membro assíduo da audiência, e eu me perdia, loura
criança americana dentro da multidão asiática — multidão bondosa naqueles
tempos e nunca me consideraram responsável pelos pecados do colonialismo
como todos os brancos são hoje considerados, por todos os asiáticos,
segundo parece. Eu tinha consciência, apenas, de estar cercada de gente
agradável e bem humorada. Em Tóquio, agora, eu encontrava a mesma
gente, embora de uma nação e país diferentes, que me aceitava apenas
porque se havia habituado aos americanos como parte da paisagem mundial.
Sabem o que temos de melhor e de pior, através dos longos anos da
Ocupação, e não podemos mais surpreendê-los, quer pelo bem, quer pelo
mal.
Tóquio tem, naturalmente, seus aspectos negros. Há ruas nas quais gosto
tão pouco de andar sozinha quanto em certas partes de Nova York e
Filadélfia, onde aprendi que é perigoso não apenas caminhar assim, mas até
mesmo rodar com as portas de meu carro destrancadas. Cidades são cidades
e em todas se pode encontrar rufiões.
Era o tempo, também, dos motins de estudantes em Tóquio, sobre os
quais nós, norte-americanos, fomos tão mal informados. Não eram anti-
americanos. Eram japoneses que gostavam de sua constituição embora
tivesse sido elaborada por americanos — pelo menos por um americano.
Gostavam especialmente da parte em que o Japão, como nação, promete
nunca mais promover guerra. Agora os americanos pedem a eles, japoneses,
que tomem partido no caso de uma guerra, e ao lado do Ocidente, embora se
orientem para a Ásia e, no futuro, devam ser, de acordo com o senso comum,
um povo neutro. Com as bases americanas em seu território sentem que
estão sendo forçados a tomar partido. Tudo isto acumulou-se produzindo
uma situação para eles insuportável pela sua confusão. Os japoneses são um
povo bem organizado, têm seus diferentes níveis, não confundem a parte
melhor de seu ser com a pior. Seja qual for o nível em que se encontrem
temporariamente, é aquele e não outro. Fizeram o motim, portanto, para
proclamar sua confusão, mas não odeiam a ninguém. Em confusão são
capazes de assassínio, não necessariamente por ódio, mas apenas para
aclarar a confusão.
Os estudantes sempre foram uma alarmante, excitante e interessante
parte de minha vida. Não me refiro aos relativamente plácidos estudantes da
América do Norte, cujos momentos mais ativos não produzem nada de mais
violento, ou mesmo de mais excitante, do que as travessuras de colégio.
Estou acostumada aos estudantes do Japão, da índia e da Coréia. Na China, a
nova era, fosse qual fosse — e temos tido novas eras com espantosa e rápida
mudança — foi sempre anunciada por um levante de estudantes. O povo
respeitava esses moços e moças porque eram pessoas que, se não cultas,
estavam não obstante em busca da cultura e portanto mais privilegiadas e
presumivelmente melhor informadas do que o cidadão mediano que não
sabia ler e escrever. Os povos asiáticos acreditam que os livros são cofres de
sabedoria humana e desde que somente os estudantes têm acesso aos livros,
a posição de um estudante na Ásia era revestida, e ainda é, de um prestígio
sem qualquer proporção com a sua idade e série escolar. Eram um grupo
devotado e arriscavam a vida em cada levante. Durante o regime
Nacionalista na China, vi muitos deles serem mortos por suspeita de
comunismo. Alguns deles eram, sem dúvida, comunistas, mas a maioria era
simplesmente de jovens patriotas dedicados, desejando desesperadamente
melhorar as condições em que seu povo vivia. Eles são os inumeráveis e
anônimos mártires, mas não podem' ser ignorados, apesar disso. Se alguém
quiser saber o que vai acontecer num país asiático, observe os estudantes.
Quanto ao filme, enquanto tudo isso se passava, nós precisávamos de
uma ressaca. Tudo o mais podia ser encontrado, mas a ressaca não podia ser
convocada à vontade. A própria história começava com uma ressaca. Certa
vez, quando eu estava passando um ano no Japão, na ilha de Kyushu, travei
conhecimento com uma pequena e adorável aldeia de pescadores, no
extremo sul da costa. Cerca de uma dúzia de casinhas de pedra se
amontoavam atrás de um dique pétreo. As casas, do lado do mar, não tinham
portas nem janelas. Não é que os pescadores não amassem o mar. Amavam-
no de fato, pois gerações de famílias tinham vivido ao lado dele e do seu
produto. Essas gerações, contudo, também haviam conhecido a fúria
daquelas vastas ondas desencadeadas pelos terremotos debaixo do mar.
Vulcão e mar trabalham juntos em favor da morte e eu os vira trabalhar
dessa forma num luminoso dia de setembro. Houve premonições. A água no
poço fundo, disseram-me os pescadores, estivera barrenta por alguns dias. O
poço, cavado na praia, ficava apenas a poucos metros do mar e ao pé de um
alto penhasco, mas a água era doce. Era lá que as mulheres da aldeia iam,
caminhando um quilômetro e meio na ida e outro tanto na volta, buscar toda
a água fresca que gastavam, e isto durante centenas de anos. Quando sugeri
que isso era um sofrimento, os homens sorriram, incrédulos. Devo dizer que
as mulheres sorriram também.
O terremoto, naturalmente, chega primeiro. O terremoto no Chile
desencadeou uma ressaca que atravessou o mar e atingiu o noroeste do
Japão, mas comumente o terremoto é no Japão, ou sob o mar próximo.
Terremoto — nem posso proferir a palavra para mim mesma, sentada aqui
sobre a sólida terra de minha casa rural da Pensilvânia, sem um toque
daquela interminável náusea do coração e do corpo, aquele desalento
orgânico, que invade um ser humano quando a terra treme debaixo de seus
pés. É como se o próprio globo se estivesse dissolvendo no espaço. A única
segurança que temos, nós os humanos, é esta terra que é o nosso lar, este
globo ao qual nos apegamos. A catástrofe nos assola, trovões e relâmpagos
rugem e faíscam no céu, ventos descem do espaço exterior, chuvas caem
torrencialmente das nuvens, até mesmo o mar pode erguer-se, tempestuoso,
mas debaixo de tudo temos a terra, ou sentimos que a temos. Podemos ter
sido gerados no mar, mas agora somos criaturas da terra. Quando a terra nos
atraiçoa, quando não nos podemos manter sobre nossos pés, quando o chão
se fende e traga nossas casas e nossa gente, então estamos realmente
perdidos... Certa vez, em um violento terremoto no Japão, a terra se abriu e
uma criança que corria tombou dentro da brecha. A mãe, que perseguia a
criança, pulou atrás dela, e a terra fechou-se de novo, deixando de fora
apenas os seus compridos cabelos negros, como estranhas algas sobre a
trêmula superfície...
No segundo dia após meu regresso a Tóquio, quando estava escrevendo
diante da mesa do quarto do hotel, depois da meia-noite, senti aquele
profundo e agitado tremor de terra e mais uma vez a velha náusea me
invadiu. Não foi mais do que um ligeiro tremor, mas naquele instante minha
mão perdeu o controle e a escrivaninha sacudiu. A maioria das pessoas
continuou dormindo, mas o jornal da manhã noticiava um acentuado tremor.
Tais tremores ocorrem freqüentemente no Japão, centenas, milhares deles
por ano, na média de quatro por dia, e de cada vez é uma lembrança, a um
povo corajoso, de que vive em ilhas perigosas. O efeito que essa tensão
eterna produz sobre eles é óbvio. Têm temperamentos extremos — uma
jovialidade exagerada, uma profunda e às vezes frenética melancolia. Uma
superfície disciplinada e estudada, sorrisos, calma e displicência, forradas,
sem exceção, diria eu, por uma negra tristeza, oriunda do conhecimento, em
crianças e adultos, de que a catástrofe é endêmica a despeito da beleza das
montanhas e do mar, e da benevolência da vida. Esse conhecimento
universal gera neles uma consideração, uma terna cortesia, como a significar
que a melhor atitude é sermos bons uns para os outros, pois o mundo pode
acabar a qualquer momento. Quando essa bondade inerente tem de ser
ignorada, como no tempo de guerra, quando os homens devem ser ensinados
a serem brutais, podem tornar-se cruéis além de qualquer imaginação... Mas
eu estava falando de terremotos — e de ressacas.
Necessitávamos, portanto, de uma ressaca. Podíamos reproduzir o
terremoto com a câmara, mas a ressaca estava além de nossas possibilidades.
Foi nisso que tivemos sorte. Nossos co-produtores japoneses possuíam o
melhor estúdio para efeitos especiais do país e, como me disseram, do
mundo. Eu não sabia o que significava "efeitos especiais" em linguagem
cinematográfica, mas descobri que queria dizer reprodução, em miniatura, de
uma cena da natureza. Os japoneses são supremamente talentosos nesse tipo
de trabalho e, dentre todos eles, Tsuburaya é o mais talentoso. Felizmente
Tsuburaya pertencia à equipe de nossos co-produtores japoneses e, mediante
hora marcada, encontramo-lo em seus escritórios.
É um artista, o que se percebe ao primeiro olhar. Vestia roupas de
trabalho, calças e camisa modelo saco e um paletó japonês. Saudou-nos com
encantadora cortesia natural. Sim, disse ele, sabia que desejávamos uma
ressaca e já havia preparado alguns desenhos para mostrar-nos. Eram
aquarelas espantosamente precisas do horizonte ascendente, do avanço da
onda e do elevado estouro da crista. Uma ressaca não aparece primeiro como
onda. Ao invés disso, o horizonte se levanta, o mar sobe em direção ao céu
em linha reta, corre para a terra, um muro de água que pode ter um ou
sessenta metros de altura. Uma sucção poderosa concentra a água em forma
de onda, de modo que, olhando do alto de um penhasco, se vê o fundo nu do
oceano, muito além da praia. Então a gigantesca onda se arqueia sobre sua
própria base e arrasa terras, casas e pessoas.
Eu observava a fisionomia de Tsuburaya enquanto ele descrevia as
seqüências que tinha pintado. Gostaria de traçar aquele belo rosto japonês,
mesmo que fosse em palavras. Digo belo no sentido profundo do termo. Não
era bonito no sentido superficial. Estava gasto pelo pensamento e pela
concentração. Era tão sensível quanto um rosto de criança, uma criança
genial, mas em nada infantil. Era arguto e gentil, contudo fresco, forte e bem
humorado,, o rosto de um artista purificado pela satisfação de sua plena
realização através da arte. Conversamos tranqüilamente, eu ouvindo
enquanto ele descrevia seus planos. Iria à aldeia de pescadores, com seu
cameraman, e fotografaria tudo. Depois construiria os cenários no estúdio,
recriaria as cenas e as adaptaria ao filme. Isto seria feito mais tarde, quando
o trabalho estivesse progredindo. Entrementes, senti a particular satisfação
do escritor que sabe que seu trabalho foi compreendido e está prestes a ser
transplantado com fidelidade para outro meio.
Aprendi por experiência que as pessoas que trabalham no teatro não
devem ser julgadas pelos padrões aplicados aos demais. Formam um grupo à
parte, por temperamento, seja qual for sua raça, classe ou nacionalidade. Um
ator chinês, homem ou mulher, é como um ator americano, e é como um ator
de qualquer outro país, porque eles são, acima de tudo, atores. O mesmo
acontece com os diretores, seja qual for sua idade, cor, religião,
nacionalidade —. todos prima-donas, sem uma única exceção. Faço esta
observação geral como preliminar ao nosso primeiro problema real na feitura
do filme. Tudo havia decorrido tão agradavelmente, tão facilmente, que eu
devia esperar, alegremente pessimista como sou, uma tempestade no
horizonte, um nó na linha, um enguiço na máquina.
Aconteceu numa quente manhã de verão quando o ar condicionado
estava quebrado — a fim de proporcionar a temperatura apropriada à
tempestade que se avizinhava, suponho eu. O gerente de produção se
aproximou de mim com exagerada cortesia. Estávamos no seu escritório, i
como de costume, o diretor americano e eu, e o gerente de produção se
mostrava demasiado cordial para nos inspirar segurança. Eu devia ter
percebido que ele estava com alguma idéia. Ordenou a várias moças bonitas
que nos trouxessem chá, e quando o americano disse que preferia café,
porque era o único lugar em Tóquio onde havia bom café, o gerente de
produção gritou a outro bando de moças bonitas que trouxessem café.
Quando estávamos todos sentados em volta da baixa mesa redonda, e depois
de ter enxugado a transpiração de seu bem nutrido rosto e pescoço, disse,
demasiado negligentemente, que, estando também em jogo, no filme, a
reputação de sua firma, eles gostariam de indicar um assistente de direção
japonês ao americano.
Sei que nada na vida é realmente fortuito. Portanto, ao ver um súbito
alerta nos olhos do americano, dei um tom casual à minha resposta. Nós,
naturalmente, recebíamos com satisfação essa ajuda, disse eu. Queria que o
filme fosse autêntico em todos os detalhes. Era o que se esperava em meu
próprio país. O gerente de produção mencionou, ainda mais casualmente, o
nome de um diretor. Eu o reconheci. Era o nome de um famoso diretor de
cinema japonês, agora oficialmente aposentado mas ainda inesgotavelmente
um diretor.
Gostaria de vê-lo, tornou o diretor americano também casualmente.
Tudo parecia macio e civilizado, o gerente de produção deu um suspiro
feliz e insistiu em que tomássemos ginger ale, além do chá e do café. Era um
homem grande, alto e pesado, e era temperamental. Na verdade eu fora
chamada em particular, no dia anterior ao nosso encontro, e advertida de que
ele e o diretor americano talvez não se dessem bem, por não serem
harmônicas as suas respectivas naturezas. Perguntei qual a significação
disso. Explicaram-me, em termos japoneses, que tanto o americano quanto o
japonês eram cheios de energia e determinação. O americano não cedia
facilmente nos pontos em que se considerava com a razão. O japonês fazia o
mesmo. Digamos claramente que nenhum dos dois cedia jamais. Isso me
perturbara e agora me ocorria que um assistente de direção japonês talvez
agisse como pára-choque.
Mas, quando mencionei essa possibilidade, mais tarde naquele dia, ao
diretor americano, este respondeu bruscamente que não queria pára-choques.
Gostava do gerente de produção japonês porque era tão franco quanto um
americano e por conseguinte podia tratar com ele. Percebi certa tensão na
voz do diretor americano e adiei a discussão. Lembrei-me de que o tempo
cuida de muitas coisas. É o que a Ásia me ensinara.
Prosseguimos, entrementes, na escolha do elenco, sem consideração ao
mais que estava ocorrendo — um processo que não é diferente em Tóquio ou
na Broadway. Sentamo-nos, a convite, atrás da comprida mesa do escritório,
e os atores ou atrizes se aproximavam um a um, de cada vez. Tínhamos suas
fotografias diante de nós e os estudávamos cuidadosamente do ponto de vista
fotogênico, enquanto eram feitas as perguntas.
O problema era o inglês. Havia muitos jovens elegantes e muitas, muitas
moças bonitas, e alguns personagens mais velhos e seus contracenantes
femininos. As perguntas eram sempre as mesmas:
— Seu nome?
— Quantos filmes já fez?
— Em sua opinião, qual foi o seu melhor papel?
Em determinado momento da chuva de perguntas, em geral bem
depressa, tornava-se transparente que o inglês do candidato era demasiado
fraco, na verdade inexistente. A única frase perfeita em inglês era sempre a
mesma:
— Não sei falar inglês.
— Onde estudou inglês? inquiríamos.
— Na escora... sim.
— Quantos anos na escola?
— Seis ânus.
— Seis anos?
Um aceno. Tentávamos não sorrir quando esses seis anos eram repetidos
por diversas vezes. Afinal um dos rapazes que estudara inglês disse:
— Dez ânus.
Tentamos fazê-lo repetir palavras inglesas, trechos de diálogo. Um bom
ouvido pode tornar possível o aprendizado do diálogo em inglês. Às vezes o
ouvido era muito bom. De modo geral, não era.
— Na próxima vez em que você fizer um filme, aconselhei a mim
mesma, em particular, trate de se limitar aos países de língua inglesa.
Quando, finalmente, aparecia um ator que falava inglês com perfeição,
procurávamos não aceitá-lo apenas por esse fato. Havia outras exigências.
Assim passavam os dias, sem esperança mas não de todo desesperados.
Entrementes não se deixou morrer a questão do assistente de diretor. O
gerente de produção disse-nos, certa manhã, que nos havia marcado um
encontro com o diretor japonês. Eu estava cada vez mais impressionada com
o gerente de produção, com a sua eficiência e sua crônica desesperação. Ele
tinha de produzir um filme por semana para a população japonesa faminta de
películas. Era e é um programa intoleravelmente pesado, mas ele me
assegurou que não podia ser atenuado enquanto a televisão não se
desenvolvesse e proporcionasse uma verdadeira competição, quando,
continuou ele, as companhias cinematográficas teriam de produzir filmes
melhores e, por conseguinte, menos numerosos. Entrementes, não podia
parar. Realizava conferências com diretores, com todo mundo, segundo
parecia, enquanto se metia conosco, aparecendo e reaparecendo, sempre em
mangas de camisa, o largo rosto brilhando de suor, apesar das salas
refrigeradas. Tinha um rosto muito bonito, na clássica tradição japonesa,
embora não tão bonito quanto devera ter sido, sem dúvida, na juventude,
antes que o vinho e o resto nele deixassem sua marca. As bochechas também
estavam pesadas agora, havia bolsas sob seus expressivos olhos. Mas
desanuviava-se facilmente com o riso, e quando ria era como o rugido de um
leão. Punha de lado as formalidades, sempre que possível, e nos pedia
franqueza. Falava em japonês, sendo interpretado por uma das bonitas
jovens que abrandavam o que ele dizia sem destruir-lhe a força. Era muito
engenhosa. Mas eu ainda não o conhecia realmente. Isto veio depois.
Uma tarde fomos conduzidos a outro gabinete onde nos disseram que
esperássemos para falar com o diretor japonês que nos fora proposto.
Esperamos. Ele entrou cerca de cinco minutos depois, com a vaga aparência
de um Stokowski japonês, porém maior. Era bonito para a sua idade, os
cabelos brancos penteados para trás, o perfil altivo. Curvou-se não muito
profundamente e notei a frieza refletir-se na fisionomia do diretor americano.
Dois jovens atores estavam prestes a criar uma cena para nós. O diretor
japonês sentou-se. Ele compreendia inglês tão bem quanto o gerente de
produção mas, como este, não sabia falar. O diretor americano explicou que
desejava que os dois atores representassem uma cena entre Toru e Yukio,
personagens principais de A Grande Onda. O diretor japonês pegou uma
caneta e se pôs a escrever como pensava que a cena devia ser. O diretor
americano tentou, através da nossa intérprete, interromper esse procedimento
sob a alegação de que não queria que a cena fosse fixa e sim fluida. O
japonês silenciou-a com um gesto imperioso. Os olhos do americano
adquiriram o brilho do aço e ele tornou a instruir a intérprete.
— Diga ao cavalheiro, por favor, que não quero a cena escrita. Quero
que os atores improvisem.
A intérprete, aterrorizada pela fama e pela altivez do diretor nipônico,
fez um esforço por obedecer. Novamente o gesto imperioso da real mão! O
americano manteve sua posição. Quando o japonês se inclinou para dar o
papel aos atores, com suas próprias instruções, o americano apanhou-o,
dizendo num inglês firme:
— Não quero que tenham instruções escritas.
Houve um momento de amedrontado silêncio de parte dos atores. A
quem deviam obedecer? Ao americano, decidiram finalmente, e o japonês
recostou-se na cadeira, com ar terrível. Eu sabia o que estava para vir, mas
sabia, também, que isso devia esperar até voltarmos ao hotel. O americano
mantinha maneiras perfeitas em público, mas quando a cena terminou —
bem representada, por sinal, considerando a tensão da atmosfera —
levantamo-nos, fizemos uma reverência ao diretor japonês e aos demais
presentes e saímos. A intérprete foi conosco no automóvel, de modo que
nada dissemos. Mas ao saltarmos, na porta do hotel, o americano falou-me
por entre os dentes cerrados.
— Preciso lhe falar, antes que tudo se esboroe.
Curvei-me ante o inevitável.
— Muito bem. Falemos agora, em meus aposentos. Espero-o dentro de
quinze minutos.
Eu necessitava de alguns minutos a fim de preparar-me para a provação
de uma conferência com uma prima-dona. Definir uma prima-dona? Seja
qual for o sentido consignado no dicionário, na vida real significa uma
pessoa egoconcêntrica — não necessariamente egoísta ou egotista, e não
inteiramente egocêntrica, mas certamente uma pessoa cujo ser tem como
núcleo o ego. Falando de modo geral, há duas espécies de diretores; o diretor
de atores e o diretor de diretores. O diretor de atores é querido pelos atores.
Ele os corteja, os fascina, os acata, lisonjeia-os, liga-os a si emocionalmente
até que façam o melhor para ele. Chama, a isso, "desenvolver seus talentos".
Mais cedo ou mais tarde também os destrói, especialmente se não o libertam
do laço emocional criado por ele. Espera ser libertado tão logo a peça estréie
ou o filme termine, pois a emoção serviu ao seu propósito, e fica indignado
quando não o libertam. Alguns atores — as mulheres, para ser mais precisa
— são tão tolos ao ponto de quererem continuar o laço, e quando este é
cortado ficam destruídas, pelo menos por algum tempo. São, contudo, tão
dependentes em termos emocionais que continuam afetuosamente a falar
como "diretor de atores". O diretor de diretores, por outro lado, evitará o uso
da emoção como instrumento para o desenvolvimento do ator, homem ou
mulher. Ele sabe o que quer, e não admite o truque do "desenvolvimento".
Diz ao ator exatamente o que deve ser feito, em termos de arte e da peça, e o
ator deve representar em conseqüência. Sem exceção, que eu saiba, os
diretores japoneses pertencem a este ultimo grupo.
Neste ponto de minha análise houve uma batida à minha porta e o diretor
americano entrou no que se designa por ominoso silêncio. Sentou-se e
começou, como de costume, salientando alguns equívocos menores que eu
cometera durante o dia — menores ou maiores, isto não importava, pois a
essa altura cada equívoco era grande e todos meus.
— Por que — inquiriu ele com assustadora nitidez, os olhos
verrumando-me o rosto — tinha de cumprimentar aquele japonês como se
fosse um velho amigo? Por que tinha de lhe agradecer e dizer que era bom
contar com a sua ajuda?
Balbuciei alguma coisa acerca da polidez à maneira japonesa, et cetera,
mas nada podia impedir o inevitável. Ele não vacilou.
— Devo lhe dizer — e eu sabia que ele devia — que se esse diretor
japonês não for afastado imediatamente, eu voltarei para Nova York.
Fiquei sem fala. Afastar o japonês depois que o gerente de produção o
convidara? Era o mesmo que pedir para afastar o Monte Fuji da paisagem do
Japão!
O americano continuou num tom frígido:
— Só pode haver um diretor. Sou eu... ou não sou eu. O céu desabou. Eu
estava esmagada. Chegara a crise que havia temido. Esperara que o tempo a
fizesse menos violenta, fora tolamente otimista e agora me sentia
desesperada. Não sou boa combatente em nenhuma circunstância e quando
posta diante de uma batalha tento sempre seguir o velho e bom provérbio
chinês. "Dos trinta e seis caminhos de fuga, o melhor é correr". O problema,
naquele instante, era que não havia lugar para onde correr. Não podia correr,
portanto.
Levantei-me da cadeira. Estávamos no fim do dia, quase seis horas, eu
gostaria de ter mandado vir um bule de chá verde japonês, ao qual sou
afeiçoada, e então, bebericando-o, ler uma novela japonesa enquanto
esperava pelo jantar. Não havia possibilidade nem de chá, nem de novela.
Pensei no pior e no mais assustador lugar, e não consegui pensar noutro.
Disse:
— Vamos agora mesmo ao gabinete do gerente de produção e lhe dizer
tudo.
Esperei que o diretor americano admirasse minha coragem. Mas reagiu
exatamente como se eu lhe tivesse dito que fôssemos ao zoológico,
procurássemos o maior e mais feroz leão e lhe torcêssemos o rabo. Não
mostrou qualquer sinal de admiração. Levantou-se e partimos, a intérprete
timidamente atrás de nós. Empalideceu quando lhe explicamos nosso
objetivo.
— O diretor japonês, balbuciou ela, é um homem muito importante. O
gerente de produção também.
Foi a minha vez de empalidecer. Comecei a odiar temporariamente
aquele diretor americano. E por que tive eu de ceder à idéia de fazer um
filme no Japão? Mas estava aqui. Havíamos chegado ao edifício. Subíamos
no elevador. Anunciamo-nos à porta do escritório do gerente de produção.
Sim, precisávamos vê-lo antes que saísse, dissemos. A moça bonita olhou-
nos surpreendida, insinuou que o gerente de produção estava muito ocupado,
et cetera, mas respondemos que esperaríamos. Fomos admitidos e nos
sentamos. O gerente de produção ignorou-nos enquanto trovejava num e
noutro telefone. Observei, tolamente, que os telefones eram todos de cor
azul-turquesa numa sala verde. Contei os botões das costas de uma bonita
moça que falava ainda em outro telefone, repetindo em voz gentil os rugidos
do gerente de produção. Trouxeram-nos chá verde mas não me atrevi a
engoli-lo, com medo de ficar sufocada. Após longos cinco minutos, dez
minutos, fosse qual fosse o tempo, o gerente de produção baixou seu
corpanzil a uma das cadeiras em círculo e grunhiu algo à sua intérprete.
Compreendi perfeitamente que perguntara, à sua própria maneira, por que
diabo estávamos ali.
Eu própria não tinha certeza. Desejava não estar ali, mas um olhar ao
perfil soturno do americano foi suficiente para destruir pergunta e resposta.
Mergulhei no assunto, sabendo que estava cometendo suicídio. Comecei
assegurando ao gerente de produção — que compreendia cada uma de
minhas palavras em inglês, mas fingia que não — que seu desejo de ajudar-
nos muito nos honrava, mas, considerando as circunstâncias, os diretores
sendo diretores, jovens e velhos — fui meandrando, esperando evitar a
questão final, no último momento, quando devia dizer diretamente, de algum
modo, que não queríamos o diretor japonês... quer dizer, o diretor americano
é que não queria; quer dizer, eu estava certa de que o gerente de produção
compreendia quão embaraçoso seria para um diretor americano, fazendo seu
primeiro filme no Japão, dizer a um diretor mais velho, tão respeitado, et
cetera. O americano achava impossível até mesmo a idéia desse fato, para
não mencionar a confusão dos atores, que não saberiam a qual dos dois... e
por aí afora...
A intérprete lutava com os meus sincopados esforços. Como eu sabia, o
gerente de produção compreendia perfeitamente onde eu queria chegar.
Interrompeu os balbucios e a interpretação. Bateu nos seus gordos joelhos
com as grandes e bonitas mãos. Rugiu para nós e em inglês!
— Diretor americano tem de ser forte! Diretor americano tem de dizer a
todo mundo: "Vocês escutem aqui o que estou dizendo!"
Bateu no vasto peito para ilustrar como o diretor americano devia
comportar-se. O americano, porém, permaneceu frio. Disse com terrível
calma:
— Sei como me comportar dessa maneira no meu próprio país. Não me
comportarei assim aqui no Japão. Devo pedir que o diretor japonês seja
afastado.
Os dois homens se olharam, para não dizer se fuzilaram, um ao outro.
Abri a bolsa e tirei o leque chinês que conservo para tais emergências.
Embora a sala estivesse bem refrigerada, achei necessário abanar-me. Tentei
pensar em algo remoto e agradável, as montanhas de Vermont, por exemplo,
como as via da janela de minha sala de estar.
Ouvi a alta rajada de um suspiro. Era o gerente de produção. Levantou-
se e começou a andar pela sala, esfregando a cabeça com as mãos. Estava
murmurando, ainda em inglês.
— Eu temia que qualquer coisa parecida com isso fosse acontecer... oh,
sim, diabos!
Sentou-se e ponderou. Conheço meu Japão e compreendi que ele se
sentia muito infeliz. Alguém tinha de ficar com a cara no chão e não podia
ser o velho e famoso diretor japonês. Também não podíamos ser nós, pois,
como estrangeiros, não sabíamos o suficiente para ficar com a cara no chão.
Ele ergueu a cabeça e atirou-me um olhar reprovador. Você, transmitiu-me
esse olhar, você sabia mais. Devia ter-me poupado isto.
— Lamento, murmurei atrás do meu leque. — Lamento muito. Mas que
posso fazer? Se não lhe tivesse dito, se tivéssemos começado a trabalhar, o
problema teria sido pior.
— Ah, sodeska, suspirou ele. — É verdade... melhor resolver logo.
Voltou ao idioma japonês. Não podia mais falar inglês.
— Diga a eles, falou à intérprete, diga a eles que tratarei do assunto. Vê-
los-ei amanhã. Estou ocupado mas os verei.
Deu-nos as costas assim que pôde e voltamos ao hotel.
— Afinal está feito, disse eu ao americano.
Ele se recusou a demonstrar alegria.
— Ainda não vimos o fim da história, respondeu soturnamente.
No dia seguinte pareceu que ele estava certo. Voltamos aos estúdios e
retomamos a escolha do elenco. Tudo era como no dia anterior, exceto o fato
de não vermos o gerente de produção, do qual dependíamos para tudo.
Bonitas atrizes entravam, informavam que haviam estudado inglês durante
seis anos, declaravam que não sabiam falar inglês e nos deixavam. Jovens
elegantes entravam com a mesma ladainha. Ficamos enormemente alegres
com um ator mais velho que podia fazer o papel do pai de Toru e que falava
um inglês perfeito. E durante todo esse tempo, nada do gerente de produção.
Quando perguntamos por ele a uma moça bonita, ela saiu e voltou para dizer
que ele podia encontrar-se conosco nos escritórios da cidade, às duas horas.
Estava muito ocupado, et cetera. Serviram-nos deliciosos sanduíches de
carne — ontem de vaca e hoje de porco temperado. Faço uma pausa aqui
para dizer que, no Japão, a carne é de vacas Kobe, alimentadas a cerveja e
massageadas à mão, diariamente, por devotados vaqueiros, razão por que é
mais tenra do que qualquer outra que já provei.
Às duas horas, exatamente, estávamos nos escritórios da cidade.
Nenhum gerente de produção apareceu no horizonte desse dia ou de
qualquer dia. O americano ficou indignado e eu resignada. As moças bonitas
saíam trotando e voltavam para dizer que o gerente de produção nos veria às
cinco horas do dia seguinte, ou do seguinte, ou do seguinte. Isto significava
um adiamento da decisão sobre o nosso elenco, que nós simplesmente não
nos podíamos permitir. Voltamos ao hotel e nos queixamos à minha especial
amiga, por telefone. Era inútil pensar em comer ou em dormir, se o gerente
de produção nos tinha abandonado. Houve uma longa espera. Ela nos
chamou. Desta vez o americano assumiu a ofensiva. Explicou sua posição,
inalterada e inalterável. Escutou a resposta dela e pela primeira vez em dois
dias a sua fisionomia se iluminou. Deduzi que a questão do diretor de
produção havia sido resolvida. Ele fora convidado a renunciar. Tudo estava
em ordem, disse minha amiga.
Porém mais tarde, durante meu jantar solitário, surpreendi-me
subitamente sem apetite, apesar da deliciosa salada de carne de siri que
haviam posto à minha frente. Uma hórrida noção agitava-se dentro de mim,
um eco do passado, meu passado na Ásia. Não estava tudo bem — não de
todo, não de todo. Há sempre um preço para a vitória. Qual seria, eu não
sabia. Ainda não sei. Resta uma dívida a ser paga. Posso apenas dizer que o
gerente de produção não... o quê? É bem possível que eu nunca venha a
saber. De qualquer modo, naquele dia, o episódio estava encerrado.
E sempre, ao cabo do dia, de todos os dias, vinha o regresso a ninguém!
Depois dos problemas, resolvidos e não resolvidos, depois das idas e vindas
de muita gente, da dúvida e da preocupação, da excitação da descoberta, dos
risos partilhados, da crescente confiança no trabalho, todos os dias tinham o
mesmo fim. Eu voltava aos aposentos do hotel, abria a porta, entrava e a
trancava de novo. As flores estavam frescas, os quartos refrigerados, as
cartas amontoavam-se sobre a mesa — cartas de ninguém. A carta pela qual
eu ansiava não podia ser escrita porque ele se fora. Não abri as outras. Que
esperassem até a minha secretária japonesa chegar e eu ser forçada a
trabalhar a fim de que ela pudesse trabalhar. Os convites eram muitos, mas
me faltava disposição para aceitá-los. Tinha de aceitar alguns, os que se
relacionavam com os tristes e ansiosos pais de crianças retardadas, alguns
outros de velhos amigos em homenagem às bondades do passado. Adquiri
então o hábito de mandar vir o jantar para o quarto e de comer sozinha, de
modo que não precisasse ser compelida a sorrir a desconhecidos que podiam
abordar-me com perguntas e elogios. Quando chegava a noite, a vida perdia
subitamente o sentido.
Contudo, não me sentia impaciente comigo mesma. Sabia, por
experiência, que é preciso tempo para que o ser absorva o sofrimento. Uma
vez feito esse ajustamento, começa de novo o desenvolvimento e a vida
nova. Era demasiado cedo. Verifiquei que era impossível ficar sentada
sozinha nos quartos do hotel. Estivesse ele comigo e esta seria a parte
melhor do dia. Sempre fora a melhor parte. Tínhamos de passar separados
muito de nossa vida, durante as horas do dia, pois cada um de nós exercia
uma profissão, um trabalho. Mas quão ansiosamente esperávamos para poder
passá-la juntos! íamos os dois onde quer que tivéssemos de ir, eu cedendo à
necessidade dele, ele à minha, dependendo da importância que atribuíssemos
à ocasião específica. E em vinte e cinco anos de casados não passamos uma
noite separados, até que se tornou necessário, para ele, viver e trabalhar
somente em casa. Mesmo então eu recusava todos os convites que me
fizessem passar a noite fora, até que ele cessou de saber se eu estava presente
ou não. E quando ele parou de saber, tudo foi diferente, exceto a memória.
Rejeitei esse tempo de inconsciência. Quando penso nele, penso nele
como o conheci, vivo, vivido, com infinita variedade de pensamentos e de
palavras, dominante, com invencíveis preconceitos em algumas questões,
como eu costumava dizer impetuosamente quando discordávamos, e ele
sorria, aceitava sorrindo a acusação sem a menor intenção de modificar-se.
Mas ele sabia que eu não o queria modificado. Fosse o que fosse, era ele
mesmo, e eu gostava disso. Por exemplo: não podia pregar um prego sem
bater no seu polegar; por conseguinte, recusava-se sabiamente a pregar
pregos. Não tomava parte nos assuntos caseiros, por mais ocupada que eu
estivesse. Não comia o que não gostava, pouco importando o bem que o
alimento lhe fizesse. Ao mesmo tempo era disciplinado quanto à qualidade e
quantidade do que comia. Quando falava, nenhum de nós o interrompia. Era
o pai, bem como o marido, e contudo recusava-se a tomar qualquer parte na
disciplina de nossa grande família. Eu própria não sou disciplinadora, pois
sou dada a rir das más-criações, a menos que esteja zangada, e nem a
jovialidade nem a cólera são a atmosfera adequada à disciplina. As
professoras de nossas nove crianças eram unânimes numa observação que,
mais ou cedo ou mais tarde, sempre nos era feita, mas particularmente a
mim, pois ele não comparecia a reuniões de pais e professores, e eu tinha de
ir sozinha. A observação era simples:
— Seus filhos estão estragados.
Concordei, desamparada. Como podia ser de outra maneira, se tinham
uma mãe que ria com demasiada facilidade e que custava muito a se zangar
e, quando se zangava, tinha tais acessos que as crianças a olhavam
espantadas e pensavam que ela não estava agindo a sério? Quanto a ele, o
máximo de sua disciplina era olhar a criança refratária com fria
desaprovação e depois voltar-se para mim com uma observação feita tão
casualmente que me deixava invariavelmente atordoada e incapaz de outra
coisa senão de uma débil resposta.
— Você permite que continue uma coisa dessas? perguntava ele.
— E você, permite? redargüia eu.
Seguia-se o silêncio e a criança, isolada pelo nosso mutismo, acabava se
submetendo, depois de uns poucos minutos em que tentava manter sua
independência. Olhando, agora, para essas mesmas crianças, posso apenas
dizer, pelo que sei, que se saíram bem. Isto é, nenhuma delas é delinqüente
ou esteve na cadeia. Naturalmente ainda há tempo para a cadeia, mas duvido
que cheguem alguma vez a ela.
Estou fazendo justiça a ele, como disciplinador? Talvez não, pois havia
uma ofensa que não tolerava de qualquer criança: ato ou palavra que
considerasse falta de respeito a mim. Se uma criança se comportava dessa
forma, sua reação era instantânea, invariável e trovejante.
— Você não sabe que a sua mãe é a maior mulher do mundo?
O absurdo da observação reduzia-me imediatamente a um estado de
embaraço que as crianças compreendiam e sofriam comigo, sobretudo
porque não haviam tido qualquer intenção de desrespeitar-me. Eu apreciava
a livre discussão, a discordância animada, e a explosão dele matava a
intercomunicação. Se estávamos à mesa, perdíamos o apetite e ficávamos em
silêncio. Não sei o que pensava desse silêncio, pois não permitia protestos ou
discussão sobre o assunto relativo ao respeito a mim, nem mesmo de minha
parte!
Eu, por meu turno, obedecia-lhe demasiado literalmente e isto por dois
motivos. Passara minha vida na China, até nos encontrarmos, e havia
aprendido que a mulher deve obedecer ao homem, se possível. Em segundo
lugar, eu era desgraçadamente ignorante acerca de meu próprio país. Nasci
tarde e meus pais já viviam há décadas na China, antes que eu aparecesse em
sua vida. Eram moços quando saíram da pátria, meu pai com vinte e oito e
minha mãe apenas com vinte e três anos, ambos idealistas e intelectuais.
Atingiram a maturidade dentro da cultura e da sociedade chinesas, não em
sua própria terra. Quando fui, afinal, viver em meu país e nos casamos, ele e
eu, afirmou que, entre outros prazeres, era bom casar comigo pois eu era tão
ignorante que poderia contar-me todas as velhas piadas americanas, as quais
para mim seriam novas. Isto era verdade, e ele deveria ter vivido para contá-
las todas, pois não chegou ao fim delas. A qualquer instante dizia-me algo
que me provocava uma sadia gargalhada.
Errou somente numa decisão familiar e agora sei que eu lhe deveria ter
desobedecido, por razões práticas. Mesmo nesse caso, em princípio estava
certo. Eis a questão: ele não acreditava em tarefas escolares para fazer em
casa. Argumentava, e com razão, que a escola retinha a criança durante as
melhores horas do dia. Se o currículo fosse cuidadosamente planejado e
eliminadas todas as tolices e perda de tempo, tudo poderia ser concluído
dentro do horário escolar. Acreditava que a vida em família, à noite, não
devia ser estragada por ter a criança de fazer os deveres escolares do dia.
Como de hábito, ignorava tudo quanto não merecia a sua aprovação. Eu não
havia sido educada no sistema escolar americano e não me restava solução
melhor senão concordar com ele. Conseqüentemente, gozávamos nossas
noites todos juntos, fazendo música, jogando e lendo em voz alta. O
resultado aparecia, ai de mim, nos boletins das crianças e numa atitude geral,
devo confessá-lo, de considerar a escola mais um passatempo do que um
trabalho. Repito que não lhe deveria ter obedecido. Eu deveria reunir as
crianças ao redor da mesa grande, à noite, e fazer com que cumprissem suas
tarefas escolares, até que crescessem o suficiente para assumir suas próprias
responsabilidades... Mas, como viveria ele, nesse caso? Noites solitárias,
nenhuma lembrança de noites felizes. Estou contente por termos vivido
como o fizemos.
Eu mergulhava facilmente em tais reminiscências meio risonhas, meio
chorosas, e era necessário que eu despertasse. Assim, depois que terminava o
jantar e a pequena garçonete japonesa, sempre solícita quando eu deixava
meu prato pela metade, tirava a mesa, eu ia perambular de novo pelas ruas
de Tóquio. Dirigia-me freqüentemente a Ginza, mercado, bazar e centro de
diversões, sempre distraída pela variedade de pessoas que iam apreciar o
festivo cenário. Bandeiras, balões, flores de papel de todas as cores presas
nos beirais dos telhados, flutuavam sobre as ruas e lojas; em plena rua,
exibidores enalteciam suas mercadorias. Automóveis americanos, prova de
riqueza, achavam-se estacionados junto ao meio-fio, com os choferes
polindo zelosamente os cromados enquanto seus patrões examinavam
brinquedos, ou sedas, ou jóias. Bicicletas passavam loucamente por entre o
enxame de pessoas e mulheres caminhavam estalando as solas de madeira
dos seus geta, com os bebês amarrados às costas.
Mais significativo que tudo eram os moços e moças andando de mãos
dadas num estado de entorpecida felicidade, olhando vitrinas ou apenas
perambulando. A gente custa a se acostumar com essa história de mãos
dadas no Japão moderno. É algo inteiramente novo. No velho Japão os
namorados encontravam-se em segredo, galgavam vulcões e se atiravam nas
ardentes crateras para significar a profundeza de seu amor desesperado.
Atualmente caminham de mãos dadas em Ginza ou fazem piqueniques em
lugares famosos onde, antigamente, cometiam suicídio juntos. Mudaram os
pais ou foram os jovens que aprenderam a exigir seus direitos? Certamente
há alguma mudança nos pais. As quatro principais catástrofes do velho
Japão, se podemos confiar num antigo dito japonês, são "terremotos,
incêndios, inundações e pais". Terremotos, incêndios e inundações ainda são
temíveis, mas os pais?
Houve, certamente, uma mudança nos pais, mas a mudança maior foi nas
mães. Nenhuma mãe do velho Japão teria sonhado em permitir que sua filha
andasse de mãos dadas com um rapaz, em Ginza, ou em qualquer outro
lugar, nem a filha teria sonhado em desobedecer. Mas devo abordar
gradativamente e pouco a pouco essa mudança da mulher japonesa. É
profunda e esmagadora.
Quanto a Ginza, embora as mercadorias fossem espantosas,
extravagantes, clamorosas e às vezes belas, minha diversão era o povo — é a
minha diversão, onde quer que eu ande. Graças a ele, escapo de mim mesma.
Quando a meia noite chegava e a multidão se dispersava — pois os
japoneses vão cedo para a cama, exceto os cavalheiros dos bares — eu
voltava aos aposentos do hotel, entrava de novo, trancava a porta e ia para a
cama.
Na estranha existência flutuante daqueles dias e noites, fui certa vez ao
Teatro Kabuki a convite do ator principal. A troupe tinha voltado de uma
temporada de êxito em Nova York, porém eu não chegara a vê-los lá.
Parecia-me de algum modo incongruente a presença do Kabuki na mais
moderna das cidades, e num ou noutro momento, possivelmente, eu estaria
de novo em Tóquio. A peça, naquela noite, era a mesma que haviam
apresentado em Nova York — A Cobra Branca. Eu conhecia bem a história,
pois é uma antiga narrativa chinesa. A Cobra Branca é uma mulher que
assume a forma de serpente para certos fins próprios.
A noite estava clara e as ruas de Tóquio achavam-se mais cheias que de
costume. Tomei um táxi e chegamos à entrada do teatro, vasto saguão
coberto de pinturas, cheio de coisas em exibição e apinhado de gente.
Alguém estava à minha espera. O ator declarara que não começaria o show
enquanto eu não chegasse e fôssemos fotografados. Fui conduzida aos
bastidores, onde ele se encontrava, travestido de mulher — a Cobra Branca.
Sua caracterização era perfeita, sinistra e graciosa. Vestia um quimono
branco muito justo, sem qualquer traço de cor. A cabeleira era branca e o
rosto, pescoço e mãos haviam sido pintados da alvura da neve. Até os lábios
eram brancos, embora delineados em vermelho na margem interna. Os olhos
eram olhos de serpente, negros e brilhantes, dardejando de um lado para o
outro. Ao ver-me, estendeu a mão e eu a segurei, sentindo-a fria e lisa, na
minha palma. Quis largá-la porque estava fria e lisa como pele de cobra, mas
ela agarrou-se à minha, e assim, mão na mão, fomos fotografados. Ele falou
alguns minutos, quase sem mover os lábios rígidos, e então o gongo soou
marcando a hora de entrar em cena.
Ocupei meu lugar na platéia e ali passei algumas horas de prazer puro. O
palco era enorme, maior do que todos que já vi, e o espetáculo soberbo. Em
meio a massas de cor e esplendor, a Cobra Branca se movia com sinuosa
serenidade, ao mesmo tempo terrífica e simbólica, e nunca vi a peça
representada mais poderosa e belamente. Em minha opinião, não há arte no
mundo que ultrapasse o Kabuki em poder imaginativo. Mas talvez seja
porque as histórias dessas peças foram parte de minha infância que eu
tornava a viver agora. De qualquer modo, a platéia japonesa estava absorta
como só pode estar neste teatro. Terminada a peça, saímos num silêncio de
sonho.
O imenso palco, o enorme elenco, o esplendor dos trajes e a
extraordinária iluminação, lembraram-me, por contraste, o confinado e
estreito palco da Broadway. Ano a ano o teatro foi sendo comprimido e
diminuído simplesmente em virtude do custo de montagem de uma peça.
Uma grande arte está sendo estrangulada pelo artesãos e mecânicos
sindicalizados. Autores, diretores e atores ofereceram reduzir seus
rendimentos, mas não houve a mesma disposição por parte dos operários
sindicalizados. Demorei-me, depois da peça, no teatro Kabuki, naquela
noite, e conversei sobre o assunto com amigos japoneses, ante uma xícara de
chá. Eles haviam visitado Nova York e sustentavam que o teatro japonês
nunca poderia sofrer semelhante desastre.
— Nós amamos demais a arte, disseram eles. — Compreendemos os
benefícios espirituais e emocionais da arte. Até os nossos operários
compreendem isso e jamais destruiriam uma parte tão importante de nossa
vida apenas por cobiça pessoal.
Espero que tenham razão.
Passava muito da meia-noite quando cheguei aos aposentos do hotel. Já
pronta para deitar-me, fui até à janela, como é meu costume, antes de dormir,
seja qual for a parte do mundo em que esteja, e olhei a cidade quieta. Uma
Lua velha e torta pendia do céu e sua luz pálida brilhava sobre os tetos.
Nesse momento, senti de novo o profundo estremecimento interno de um
terremoto. Começou como um tremor, depois cresceu num movimento
ondulante. Um quadro caiu, livros escorregaram da escrivaninha, um vaso de
flores espatifou-se no chão. Agarrei-me ao peitoril da janela e senti o
coração bater-me nas costelas. Iria ser perigoso? Não... a terra aquietou-se de
novo. Somente a Lua continuava pendendo lá em cima, imutável e fixa.
Esperei mais alguns minutos, depois coloquei os livros no lugar e enchi o
vaso com água, para as flores.
Custei muito a adormecer. O tremor de terra havia, de algum modo,
abalado as raízes de meu mundo temporário. Reconheço a minha
necessidade de raízes. Suponho que é o resultado de minha infância na
China. Por mais que eu amasse aquele país, e devo sempre amá-lo muito,
tinha sempre consciência, ao mesmo tempo, do tumulto em que vivíamos, da
possibilidade de que, a qualquer momento, as iras e insatisfações existentes
havia séculos contra os povos ocidentais poderiam inflamar-se em crises nas
quais nós, inocentes que éramos individualmente, perdêssemos nossas vidas,
como de fato quase as perdemos e por mais de uma vez. Possivelmente essa
lembrança infantil de sempre presente incerteza, sobre a qual eu não tinha
mais controle que uma folha na tempestade, sempre me perseguira — pelo
menos até ele aparecer. Agora que ele se fora, a velha consciência
subterrânea do perigo tornava a voltar.
Ele não se ressentia de tais sombras negras. Resolutamente jovial,
naturalmente alegre, nunca suspeitara nem esperara a catástrofe. Ao ser
compelido pelo fato, tinha o estranho hábito de decidir quando o enfrentaria.
O método era simples mas absoluto. Relacionava todas as piores
possibilidades e as escrevia em sua letra clara e firme. Então apanhava na
escrivaninha o grande relógio de ouro de seu pai e decidia o dia e a hora em
que atacaria o problema total. Era sempre o último momento possível. Até
chegar esse momento, comportava-se com o seu encanto usual. Sempre
encontrou a solução, ou pelo menos uma saída, e esta nunca era por qualquer
dos trinta e seis caminhos chineses. Ele jamais correu.
Acabei por depender muito do seu talento para tratar com o improvável,
para solver o insolúvel e conseguir o impossível — e isto sempre sem a
ajuda de amigos. Tinha amigos incontáveis, de alta e baixa posição, alguns
entre os homens mais ricos do mundo, outros pobres. Os ricos não o
ajudaram nas duas crises financeiras de sua vida. Venceu suas crises sozinho
e triunfantemente. Os pobres pediam-lhe dinheiro emprestado, sem sentirem
vergonha. Para indignação minha, distribuía de igual modo a ricos e pobres,
mantendo uma sorridente indiferença.
— Não têm intenção de me fazer mal, dizia ele.
Odiei o terremoto. Despertara-me velhos temores e os velhos temores
recordaram-me seu inabalável bom humor, seu alegre pessimismo, seus
lampejos de impaciência, seu afetuoso cinismo para com a humanidade,
acima de tudo sua jovial aceitação da vida como a encontrava, nada disso
existia mais. A velha incerteza estava de novo comigo, e para sempre.
O mais moderno teatro, em contraste com o Kabuki, foi para mim um
choque violento. Aconteceu da seguinte maneira. Procuramos um dia o
gerente de produção, com uma lista de nossos personagens experimentais.
Entramos em seu gabinete, precedidos de uma bonita moça, e o
encontramos, naquela manhã, com ar de homem de negócios revestido de
dignidade. O homem mundano e jovial havia desaparecido totalmente.
Demorou-se durante o tempo adequado para mostrar quão ocupado se
encontrava e talvez quão importante era — ficamos sabendo que estava
ocupado e era importante e nos sentamos para esperar. Chegou o chá mas o
gerente de produção ainda estava ocupado. Reuniu-se a nós, finalmente, e
lhe entregamos nossa lista de atores. Indicou imediatamente dois nomes
duvidosos. Parecia que não sabia falar absolutamente inglês, naquela manhã.
A bonita intérprete disse que ele estava apenas sugerindo, não dirigindo —
isto com um olhar amargo ao americano — mas deveríamos fazer uma
escolha melhor dos dois homens principais. Concordamos prontamente mas
lhe recordamos que o homem que mais queríamos não nos fora liberado pela
sua firma. Ouvindo isso, levantou-se, deu alguns passos, cocou a cabeça,
grunhiu alto várias vezes e falou em três telefones ao mesmo tempo. Nada
aconteceu além de não... não... não.... dos três interlocutores. Ele prendeu
uma moça bonita a um quarto telefone, sentou-se atrás de seu bureau, torceu
os cabelos com ambas as mãos e tornou a grunhir. Bateu então na cabeça,
com os punhos cerrados, e voltou-se para nós, radiante. Tivera uma idéia. A
exibição final dos cantores e músicos japoneses de rock-and-roll estava se
realizando naquele mesmo instante em seu próprio teatro de rock-and-roll.
Ele nos acompanharia até lá, poderíamos ver os melhores dançarinos de
rock-and-roll e poderíamos então fazer a nossa escolha. Ordenaria a todos os
escolhidos por nós que fossem nossos atores. Eles o ouviriam.
— Sou um grande produtor, disse em voz alta, e agora em inglês.
Concordamos alacremente e ele se atirou para a frente, um behemoth*
porém cordial, e nós o seguimos, sendo empacotados em automóveis e
entregues no teatro. Era um lugar enorme e quando fui conduzida à poltrona
de um camarote, o último e único assento vago no vasto teatro, reservado
naturalmente para o próprio gerente de produção, fiquei atordoada com o
que vi. Ali estavam reunidos todos os adolescentes do Japão, ou assim
parecia; certamente milhares e milhares deles. * Um animal, provavelmente o hipopótamo, descrito em Jó, XL. 15-24; daí, um animal
grande e forte (N. do T.).
Sentei-me e me pus a olhar o palco e a platéia, simultaneamente. Era, de
fato, um Japão novo para mim, rock-and-roll, rock-and-roll, moças
dançarinas e rapazes cantores, canções americanas, canções ocidentais em
inglês, e apenas umas poucas canções japonesas. As moças gritavam
exatamente como fazem em meu próprio país, e pareciam igualmente tolas.
Que aflição é essa, dos jovens, propagando-se de nação a nação? Milhares e
milhares de jovens japoneses — oh, muito jovens — os executantes têm
menos de vinte anos ou pouco mais, e as mocinhas em saia e blusa saíam
correndo da platéia para pendurarem coroas de flores de papel e fitas de
papel em seus rapazes favoritos. Só havia uma cantora, bonita moça de
dezoito anos, com uma excelente voz.
— Que pensam os pais? perguntei ao gerente de produção.
— Ficam desgostosos, tornou ele, mas que podem fazer?
De fato — que podem eles fazer, aqui ou em qualquer outro lugar?
Nosso objetivo, porém, era encontrar atores. Depois do grande final,
descemos a uma sala pequena e quente e entrevistamos três ou quatro
rapazes que nos pareceram com possibilidades, observados no palco, através
de binóculos de ópera. Estávamos esperançosos, pois cantavam tão bem em
inglês que achamos que poderiam falar de igual maneira. Mas não era esse o
caso. A única frase que pronunciavam bem era a mesma.
— Não sei falar inglês.
E cada um deles havia estudado seis anos de inglês na escola.
Encontramos, então, uma brilhante exceção — um rapaz de fisionomia
gentil, conhecido como o Eddie Fisher do Japão. Falava ótimo inglês. A
explicação consistia em que sua mãe tinha sangue inglês e ele aprendera a
falar em casa. Pedimos-lhe que nos procurasse na manhã seguinte, para o
ouvirmos.
Enquanto se desenrolavam esses fatos, eu observava uma transformação
no gerente de produção. Estava amaciando. Viu o nosso problema dos "seis
anos de inglês" e ficou preocupado. Convidou-nos a jantar com ele e
perguntou-nos se queríamos ir ao lugar onde sempre ia, ou se tínhamos
alguma preferência. Aceitamos, gratamente surpreendidos, dizendo que o
acompanharíamos ao seu lugar favorito. Entramos nos automóveis, abrindo
caminho de novo através de oceanos de jovens à espera que seus cantores
preferidos saíssem pela porta do palco, e não tardamos a parar diante de um
restaurante que não se assemelhava a nenhum dos que eu conhecera. Não
era, obviamente, lugar para turistas, nem talvez para senhoras. Mas eu não
me intimidei. O gerente de produção, evidentemente, reinava aqui como em
toda parte. Era um lugar fascinante, pequeno mas limpo, dessa limpeza que
só os japoneses conhecem, as rudes mesas de madeira e os balcões, feitos de
tábuas de seis polegadas de espessura, não pintadas mas esfregadas até
ficarem da alvura da neve. O gerente de produção deu ordens à maneira de
quem está habituado a ser sempre obedecido, e o foi. Juntaram os extremos
de duas tábuas e ele nos indicou nossos lugares. O meu ficava em frente ao
dele e assim tive plena oportunidade de observar esse homem extraordinário.
Pois agora aparecia um homem novo. Anunciou, mesmo, que não era o
mesmo homem que tínhamos visto até então e começou a explicar a sua
pessoa e a sua vida. Não era casado, disse-nos, e insistiu em afirmar que era
o homem mais solitário de Tóquio. Morava com sua mãe, maravilhosa
mulher a quem adorava, mas ele já tinha cinqüenta anos de idade. Não os
aparentava. Sua aparência era a de uns castigados trinta e nove. Entrementes,
continuou a falar-nos de sua desgraçada vida. Passava o dia inteiro andando
de uma conferência para outra, preparando o filme semanal que estava
obrigado a produzir. Acordava cedo todas as manhãs, apesar de dormir tarde,
e lia durante a fria madrugada.
— Que lê o senhor? perguntei com interesse.
Talvez lesse poesia ou Zen Budismo. Respondeu por entre os dentes
cerrados:
— Só leio argumentos de cinema... centenas... centenas... centenas que
jorram em cima de mim todos os dias... Fico sempre deprimido, depois.
Portanto venho para cá, todas as noites, beber.
Quanto mais bebia, melhor era o inglês que falava. Nunca era perfeito,
mas expressivo e... explosivo. Não parava também de falar japonês.
Mantinha, na verdade, um extraordinário monólogo bilíngüe com os
japoneses que nos cercavam. Pilheriava e quando viu que eu não estava
bebendo sakè ordenou que enchessem de água um jarro de vinho e anunciou
aos brados que eu estava bebendo ultrajantemente, e estourou em
gargalhadas com o seu próprio espírito. Subitamente se pôs a derramar
conselhos sobre o diretor americano. Um diretor, disse ele, não pode ser um
artista puro... puro não, puro não! Devia ter o mal dentro de si — por fora
amável, por dentro mau, mau, pois de outro modo as pessoas não teriam
medo dele. O americano ouvia sem responder, sorrindo. De repente o
gerente de produção bateu na própria cabeça com os punhos cerrados. Tivera
de novo uma idéia, uma idéia gloriosa!
— Bebendo, sou uma fonte de idéias, exclamou, fascinado consigo
mesmo.
Sua idéia relacionava-se com o genro de minha amiga, um jovem ator
promissor. A esposa dele era proficiente em inglês e podia ser útil a todos.
Se os incluíssemos em nosso elenco, todos os ressentimentos desapareceriam
e todos os corações ficariam aliviados. Recordou-nos que tivera de sofrer
muito quando fora obrigado a dizer ao grande diretor japonês que ele não
trabalharia no filme conosco. Tivera de assumir plena responsabilidade por
um triste equívoco e curvar-se ao nível mais baixo — e isto doía. Mas
poderia perdoar-nos se...
Respondemos que gostaríamos, naturalmente, de ver os dois jovens, mas
que devíamos considerar o filme antes dos sentimentos. Mas ele já estava ao
telefone e, depois de uma explosão em japonês, voltou para junto de nós,
todo alegria e satisfação.
— Agora, exclamou, devemos ser todos felizes. Bar ou casa de geishas?
Pedimos que decidisse por nós.
— Bar, naturalmente, declarou. — Geisha é muito antiquado. No bar nos
descontraímos. Bar de alta classe. Vou lá todas as noites.
Tomamos de novo táxis e disparamos através das ruas congestionadas.
Os choferes de táxi japoneses são descritos em agitado detalhe por todos os
turistas americanos e nada necessito acrescentar a essas descrições exceto
para confirmar que tudo quanto dizem é verdade. São zelosamente bondosos,
emocionalmente interessados em cada passageiro e inteiramente descuidados
quanto à vida, membros, ou propriedades de quem quer que seja, inclusive
de si mesmos.
Tive a impressão, ao entrarmos, de que se tratava de um certo número de
pequenas salas confortáveis agrupadas ao redor de um bar. O gerente de
produção começou a se descontrair imediatamente, afrouxando o cinto e
tirando a gravata. O bar era pequeno e apinhado de homens de negócios e
moças bonitas, das quais havia muitas. Fui apresentada a uma esbelta e
elegante mulher ainda jovem, que o gerente de produção declarou ser a
melhor madame de Tóquio. Ela parecia competente e modesta e, ao ouvir
meu nome, caiu num estado de emoção, declarando que havia lido todos os
meus livros. Eu era seu ídolo, et cetera. Fiquei comovida mas ligeiramente
embaraçada. Apresentou-me suas moças, depois que nos sentamos, muito
apertados, num banco circular junto do próprio bar; essas moças sentaram-se
perto de mim, uma a uma, e através de uma delas, que falava inglês,
familiarizei-me um tanto com suas vidas. Quase todas eram casadas e tinham
filhos. Não, não gostavam do trabalho no bar, disseram, mas seus maridos
não tinham bons empregos, ou estavam desempregados, e aquele era um
trabalho fácil. Detectei, ou imaginei ver, uma certa tristeza paciente em seus
olhos e me lembrei de uma visita que fiz certa vez em Paris, há muitos anos,
ao Folies Bergère. Então, como agora, eu era humanamente curiosa e, depois
do show, deixei minha escolta e fui aos bastidores conhecer as coristas. Elas
também não eram moças. Eram mulheres, casadas em sua maioria, com
problemas domésticos de maridos desertores, maridos doentes, pobreza,
enfermidade — e a maior parte delas não era jovem.
— Por que esse trabalho? perguntei.
— À noite as crianças estão dormindo e em segurança.
— É melhor do que deixá-las sozinhas o dia inteiro, e assim por diante, o
mesmo em Paris como em Tóquio...
Nossa conversa foi agora interrompida pelo gerente de produção.
— Minha melhor amiga, anunciou ele, apresentando-nos uma moça
pequenina.
Seu rosto era um camafeu de tristeza. Eu já a havia notado. Estivera
sentada ao lado de um vaidoso homem de negócios, servindo-lhe bebida e
petiscos. Em certo momento, com o meu maldito olho observador de
novelista, vi-o passar o braço ao redor dela, com demasiada força, e a moça
se encolheu com uma expressão no olhar que, por piedade, não descreverei.
Sentou-se ao meu lado, agora, sem falar, apenas olhando-me com tão
profunda serenidade que senti a comunicação estabelecer-se entre nós. Disto,
não falarei.
A noite se esgotou. Levantei-me para partir. A madame, a quem as
moças chamam "mama", organizou uma fila para que me fizessem a
reverência de despedida. Ela própria acompanhou-me até o automóvel,
inclinando-se na janela para falar-me, num inglês bastante bom. Tinha
educação e não era mulher superficial ou tola. Olhava-me com afeto e calor,
apertou-me as mãos, deu-me um grande buquê e foi com relutância que me
deixou partir.
Sozinha no automóvel, meditei nesse fenômeno da vida japonesa, a vida
noturna de homens separados de suas famílias. É uma força destrutiva da
vida familiar, um resquício de feudalismo. A mulher japonesa moderna
odeia bares e as casas de geishas, que afastam seus maridos do lar. As
japonesas antiquadas aceitavam-nas como aceitavam tudo quanto os homens
faziam, porém as japonesas modernas anseiam por um autêntico
companheirismo com os homens que amam. Mas os homens continuam a se
afastar de casa, "e eu aprendi", como disse um dia, com fria calma, minha
pequena secretária japonesa, "a não importuná-lo mais. Aprendi, até, a como
recebê-lo com um sorriso feliz às duas horas da madrugada".
Sim, ela podia fazê-lo. As mulheres japonesas sempre foram mais fortes
do que os homens, pois, como as chinesas, jamais tiveram favores. Ela nunca
ouvira falar de cavalaria ou de cavaleiros em armaduras douradas. Nascera
fêmea — isto é, uma pessoa inferior, uma carregadora de pesos, uma escrava
obediente. Em séculos de tal existência, enquanto se obrigava ao
devotamento e ao dever, ela acumulava uma força interior que não pode ser
ultrapassada. Dava nascimento ao homem, zelava-o e cuidava dele,
abrigava-o e o defendia, sem fazer perguntas. Por que perguntaria ela, se não
havia ninguém para responder? Era traída apenas por uma pessoa, uma outra
espécie de mulher, a mulher que não se casava, a mulher que não era
dobrada pelas preocupações domésticas e as crianças, a mulher instruída,
treinada e enfeitada para divertir os homens. Era traída pela geisha. Tudo
quanto um homem não podia encontrar em sua esposa sem instrução e gasta
pelo trabalho, mas da qual necessitava para seu conforto e bem-estar caseiro,
ele procurava e encontrava na geisha, cujo único dever consistia em agradá-
lo, atrair seu olhar, seduzi-lo com música, conquistar-lhe o espírito com a
sua instrução. As melhores geishas são mulheres inteligentes e brilhantes.
Têm a sua correspondente na Hetera grega, contra a qual as mulheres gregas
também gemiam suas acusações.
Perguntei, um dia, a uma bela geisha:
— Não se preocupa com a esposa desse homem que você capturou?
Ela ergueu os ombros.
— São os homens que criam a procura. Nós somos apenas a mercadoria.
Resposta cínica. A sua equivalente moderna, a moça de bar, é-lhe
inferior sob todos os aspectos. Uma geisha bem treinada pode ser, à sua
maneira, uma mulher de distinção e graça. Qualquer mulher, parece, pode
ser moça de bar. Se seu rosto é mais ou menos bonito, tem sorte, mas se não
é muito bonito, tem outras mercadorias a vender. Sua influência sobre os
homens ainda é menos afortunada que a da geisha. É menos graciosa, menos
distinta, sob todos os aspectos. Às vezes não é mais do que uma moleca de
rua e quase sempre é uma prostituta. As geishas podem ser prostitutas, mas
não são obrigadas a sê-lo. Podem manter seu domínio sobre os homens por
outras maneiras, se assim o desejam. A moça de bar tem poucos recursos
além do sexo, e atualmente o sexo é mais cru do que nunca, no Japão. O
naturalismo sempre existiu, mas o sexo, per se, é usado pelas mulheres,
agora, como isca e como arma, e pelos homens como uma fuga, comparável
ao alcoolismo. Fuga de quê? Do desespero e de uma sensação de
inferioridade pessoal, suponho eu. De que mais procura o macho humano
escapar?
Mas pondo de lado as geishas e as moças de bar, algo aconteceu às
jovens mulheres japonesas, e eu imagino que esse algo são os homens
americanos. Muitas mulheres japonesas foram cortejadas por americanos e
os dois, homem e mulher, surpreenderam-se ao encontrar o que vinham
procurando há muito tempo — a mulher, um homem que aprecia a gentileza,
a deferência e uma atitude naturalista em relação ao sexo; o homem, uma
mulher que aprendeu a respeitá-lo, a servi-lo, a crer que seu interesse sexual
por ela é todo o amor que deve esperar de qualquer homem. Embora eu me
lembre de um certo jovem americano que se queixava de que a japonesa era
uma esposa maravilhosa ao chegar pela primeira vez à América, mas, dois
anos depois, tendo aprendido os novos costumes femininos, não era melhor
do que uma americana!
Seja como for, as jovens, no Japão, não aprenderam os costumes
americanos. Libertaram-se, isto é tudo. Movimentam-se por toda parte com
delicioso desembaraço e serenidade, ao mesmo tempo ousada e feminina,
atrevida e tímida, uma encantadora combinação de aparente inocência e
verdadeira sofisticação, a qual, se não permanente, é muito atraente enquanto
dura. E talvez, ao ir viver na América, ela descubra que o americano é em
geral encantador mas um perpétuo menino, e o que lhe agradava e
surpreendia no começo torna-se insípido ao verificar que o menino não
cresce nunca. Conheço um certo americano que trouxe uma bela esposa
japonesa para casa e a apresentou com entusiasmo aos seus acolhedores pais.
Um ano mais tarde, a mesma jovem mulher anunciou que desejava
divorciar-se porque se apaixonara por outro homem. O homem, como se
revelou, era o pai dele, que também se havia apaixonado por ela. O homem
mais velho queria uma esposa que o adorasse, e a japonesa fora treinada para
adorar, e a jovem mulher queria, como disse, "um homem mais sábio".
Talvez não haja regras para esse eterno jogo entre homem e mulher. O
homem japonês, tanto quanto posso ver, não mudou muito. Fico a imaginar
se gostará de sua mulher quando descobrir o que ela realmente é. Até agora,
não o sabe.
Naquela noite, quando fui para o meu hotel, cheia de tais pensamentos,
estava chovendo, as ruas achavam-se inundadas e a chuva caindo
torrencialmente encerrou-me numa caixa de som. Sou claustrófoba e fugi
pelos corredores silenciosos da vasta parte nova do hotel, onde ficavam
meus aposentos, para o velho edifício desenhado por Frank Lloyd Wright.
Fora uma de suas primeiras manifestações e decerto em nada se assemelha
ao seu trabalho posterior, o Museu Guggenheim, em Nova York, ou o Dallas
Little Theater. Tampouco se assemelha a nenhum outro, no Japão. É um
curioso monte de cantos e beirais enxadrezados e superdecoração. Sua glória
consiste em que atravessou, firme, todos os terremotos e isto porque o
arquiteto descobrira que Tóquio está construída sobre um trêmulo mar de
lama. Nesse mar mergulhou ele milhares de troncos de pinheiros do Oregon
e sobre essa base construiu a sua monstruosidade. O prédio realmente flutua
e pode, por conseguinte, ajustar-se a qualquer coisa.
A flutuação conduz ao ajustamento? Refleti sobre a questão enquanto
procurava um dos muitos cantos no velho e escuro vestíbulo. Se assim era,
então eu devia estar me ajustando. Parecia-me que eu não estava vivendo,
nem mesmo existindo, apenas flutuando sobre a superfície do tempo.
Levantar-me pela manhã e trabalhar, caminhar sozinha à noite, dormir
rapidamente e acordar de madrugada, não pensar no passado ou no futuro,
mas apenas no dia de hoje, nesta noite, meditar sobre homens e mulheres,
recordava-me quão rara fora a minha experiência matrimonial. Não sou
mulher fácil de casar, ou assim o imagino. Sou dividida no fundo do meu
ser, tendo uma parte de mulher, a outra parte de artista que nenhuma relação
tem com mulher. Como artista sou capaz de crueldade, pois os artistas são e
devem ser implacáveis.
— Pode suportar ver-se retratado numa novela? perguntei-lhe certa vez.
— Não como você é, naturalmente — sempre crio meus próprios
personagens, mas roubo tudo quanto necessito — a maneira pela qual pediu
que me casasse com você, por exemplo, a qual estou certa de que nunca foi
usada antes por outro homem. Posso precisar dela para outros homens e
mulheres.
Ele sorriu. Tinha um sorriso maravilhoso, que começava em seus
profundos olhos azuis — olhos desperdiçados num homem, pois eram pura
violeta, com longos cílios negros, mas eu gostava deles e talvez por isso não
fossem desperdiçados.
— Leve-a, respondeu. — É sua de qualquer maneira. Leve tudo quanto
tenho para dar...
Seu atributo único era compreender um artista. Duvido que
compreendesse as mulheres ou se preocupasse em compreendê-las. Tinha
uma baixa opinião das mulheres em geral. Não desgostava delas, mas sua
atitude era impessoal e um tanto condescendente. Quando me queixava de
que era injusto, retrucava' tranqüilamente:
— Não menosprezo as mulheres, absolutamente. Pelo contrário, acho
que podem ser muito mais do que são. Elas se avaliam por muito pouco
quando se contentam em ser cozinheiras, lavadeiras e amas-secas, se podem
ser qualquer coisa que desejem ser e fazerem o que lhes aprouver. Ninguém
as impede, a não ser elas próprias.
Desde que ele mesmo tinha uma atitude de cavalheiro inglês com relação
aos problemas domésticos — era inglês por ambos os lados e sua mãe
nascera na Inglaterra — eu sentia que essas observações estavam
impregnadas de injustiça, mas não sou o tipo que sustenta uma discussão e
certamente ele não era puritano, no que se refere a mulheres. Começou cedo
sua vida, graduando-se em Harvard com honras, quando contava apenas
vinte anos, e casou-se imediatamente. As mulheres achavam-no atraente, e
ele sabia disso, com olhos azuis, cabelos negros e pele morena. Suas
maneiras eram encantadoras, às vezes enganosas quando estava falando com
uma mulher. Contudo, tinha seu próprio e invencível código. Não chamaria,
por exemplo, pelo primeiro nome uma mulher que trabalhasse para ele, nem
a convidaria para almoçar, ou para marcar um encontro fora das horas do
expediente. Sentia que qualquer exigência de natureza pessoal feita a uma
empregada era uso desleal do poder do patrão. Lembro-me de que teve certa
vez uma secretária que era desusadamente jovem e bonita. Quando algum
amigo ou visitante a negócios fazia a esse respeito observações
impertinentes e invejosas, ele se mostrava frio como só um inglês pode
mostrar-se.
— Miss Kirbe é uma secretária eficiente, do contrário eu não a
empregaria, era a sua invariável resposta.
O resultado de semelhante atitude era, naturalmente, a total devoção de
suas secretárias. Mesmo hoje, que Miss Kirbe está casada e tem filhos
crescidos, ela e outras como ela dizem-me em carinhosa recordação:
— Era tão divertido trabalhar para ele... e podia-se ter confiança. Nunca
insinuava propostas. A gente podia agir com inteira naturalidade.
Humilde tributo, mas quão significativo! E no entanto, às vezes, podia
fazer-me furiosamente feliz. Gostava de dizer, por exemplo, que eu era
diferente de qualquer outra mulher que conhecera porque tinha Um cérebro
de homem num corpo de mulher. Eu explodia em imprecações,
invariavelmente, diante dessa noção: Por que dizer de uma mulher,
exclamava eu, que tinha cérebro de homem só porque era dotada de uma boa
mente? Só aos homens é que a Natureza concedera o supremo dom? Havia
alguma lei de hereditariedade que negasse cérebros às mulheres? Ele ria,
simulava procurar um abrigo, e depois dizia gravemente que eu tinha razão.
— Peço desculpas, concluía com os olhos cintilando, mas naturalmente
nunca se desculpava por aquilo em que acreditava.
Para mim, mais precioso que diamantes, era o fato de que apreciava meu
espírito. Gostava da conversação profunda sobre temas abstrusos. Apreciava
as réplicas argutas. E muito acima dos diamantes e da própria vida situava-se
o fato de que compreendia que eu tinha de ficar só quando estava
escrevendo. Nunca perguntava o que estava eu escrevendo ou a respeito de
que era o livro. Quando uma novela se achava concluída, datilografada e
pronta para ser entregue ao editor, eu própria a levava a ele e a apresentava,
à maneira Chinesa, com ambas as mãos. Seu estúdio ficava ao lado do meu,
mas separado por duas portas. O seu ficava no prédio velho e o curto
corredor fora outrora o quarto de defumar, onde os camponeses, durante uma
centena de anos, defumaram presunto e toicinho. As duas portas ficavam
sempre fechadas quando eu estava escrevendo e ele nunca as abria, mas
levantava-se quando eu entrava com o trabalho terminado e o recebia
gravemente.
— Este é um grande dia, costumava sempre dizer.
Era sempre um grande dia. Punha tudo de lado e sentava-se para a tarefa
de que mais gostava, dizia-me ele, acima de todas — a leitura de um original
escrito por mim. Revisava cuidadosamente mas parcamente. Não me lembro
de que tivesse feito jamais uma correção que envolvesse algo mais sério do
que uma preposição mal colocada ou uma confusão de tempo. A língua
chinesa tem poucas preposições e nunca aprendi totalmente a manejar essas
refratárias e precisas palavrinhas inglesas. Quando à confusão de tempo, era
algo de que eu sempre tinha de ser salva. Não tenho noção do tempo. Não
quero dizer que seja impontual. Pelo contrário, aprendi bem cedo a ser
exageradamente pontual — digo exageradamente porque sou pontual demais
e perco meu tempo esperando por outras pessoas. Meus pais eram duas
criaturas separadamente ocupadas, que viviam de acordo com programas
separados aos quais eu, como criança, tinha de me ajustar. Vivo segundo um
programa, também, como uma pessoa separadamente ocupada, e o mesmo
fazia ele. Não — quero dizer que eu não dava atenção ao ano, ao mês ou ao
dia. Não me lembro de aniversários ou de qualquer data importante que
todos acham que as mulheres não esquecem. Uma secretária tinha de
recordar-me tudo isso e avisar-me com antecedência. Ele, por sua vez, tinha
o desconcertante hábito de lembrar-se perfeitamente do tempo. Em qualquer
manhã à mesa do café, ou a qualquer momento do dia, podia consultar o
relógio e perguntar:
— Lembra-se do que estávamos fazendo há dez... vinte (etc.) anos, neste
momento?
A princípio, querendo ser perfeita, eu tentava lembrar. Mais tarde,
resignei-me. Passei a afirmar ousadamente que não lembrava. Então ele me
dizia:
— Foi a primeira vez que a beijei... ou lhe propus casamento... ou você
disse que não me queria... ou a peguei de surpresa em Yokohama, etc, etc."
A caçada de fato fora longa. Havíamos passado da primeira juventude
quando nos encontramos pela primeira vez, cada qual resignado,
pensávamos nós, ao seu casamento insatisfatório, e cada qual conhecido em
seu próprio ramo. Eu o recusara firmemente em Nova York, Estocolmo,
Londres, Paris e Veneza, e depois navegara, pela rota da índia, para casa, em
Nanking, China.
Seis meses depois cabografou-me para que o fosse encontrar em Xangai
a fim de ouvir o "não" de novo e desta vez para sempre. Depois disso fui
sozinha a Pequim para alguns meses de pesquisa necessária à conclusão de
minha tradução de Shui Hu Chuan, ou Todos os Homens São Irmãos, e
estava lá havia menos de uma semana quando ele apareceu inesperadamente
em meio a uma tempestade de pó proveniente do deserto de Gobi.
Separamo-nos de novo, eternamente, indo ele para a Mandchúria e eu de
novo para casa, a fim de preparar as malas para uma visita de verão aos
Estados Unidos, com o objetivo de ver se tudo estava bem com a minha filha
retardada. Levei comigo minha filha menor e minha secretária, achando-me
com relação a ele, num estado de espírito resignado. Havia tomado, pensava
eu, uma decisão prudente. Não queria tumulto em minha vida.
Era uma bela manhã de julho, lembro-me, e estávamos atracando no píer
de Yokohama. Eu resolvera não desembarcar, pois estivera várias vezes na
cidade. Em vez disso, ficaria trabalhando na tradução e a secretária levaria
minha filhinha ao parque. Mal me havia preparado para a minha solitária
tarefa quando ouvi a voz que era, agora, a que eu melhor conhecia em todo o
mundo.
— Apareci de novo... continuarei aparecendo, você sabe... em todas as
partes do mundo. Você não pode escapar de mim.
Lá estava ele, magro, moreno, elegante, fumando seu velho cachimbo de
torga... A despeito disso, eu dizia "não" todos os dias a bordo do navio e
novamente em Vancouver e durante todo o inverno em Nova York. Mas a
primavera, naquela cidade mágica, foi a minha perdição e nos casamos a
onze de junho e vivemos felizes para sempre, juntos como homem e mulher,
separadamente em nosso trabalho profissional.
Ele era um grande editor — vi-o pegar manuscritos confusos e
transformá-los num todo unificado — mas teria sido um fino crítico. Julgaria
o escritor dizendo quão bem realizara o objetivo que estabelecera para si
mesmo, e não estontearia o leitor com irrelevantes observações de sua
cabeça. E era um gênio em sua especialidade de arrancar livros de escritores
que não sabiam que eram escritores. Um exemplo notável foi um curto
manuscrito que lhe chegou um dia de uma americana do Sião. Era, então,
editor e proprietário da revista Ásia. Lembro-me do artigo. Intitulava-se "O
Inglês do Rei", e o rei era o Rei do Sião. A autora fizera uma pequena e
excelente pesquisa sobre o inglês vernáculo do rei, tímido e delicioso. Mas
ele viu mais do que o pequeno e leve ensaio. Viu um personagem e um
homem e convidou a americana a escrever mais sobre aquele rei. Chegaram
alguns artigos e, afinal, graças à sua persuasão e encorajamento,- um
manuscrito em tamanho de livro. Pôs-se a trabalhar para criar um livro com
o material que tinha ali e pedindo o que faltava. O resultado foi um livro
fascinante, que intitulou Ana e o Rei de Sião, o qual se tornou mais tarde um
fabuloso musical na Broadway, da autoria de Rodgers e Hammerstein.
A lista é expressiva. Foi ele que trouxe aos americanos os grandes livros
de Jawaharlal Nehru, e, através de sua companhia editora, aos leitores de
todo o mundo. Foi ele quem discerniu no jovem Sukarno da Indonésia a
promessa de um futuro líder asiático e o encorajou a escrever seu primeiro
livro, tornando-se conhecido, assim, no Ocidente. Foi ele quem publicou o
primeiro livro de advertência contra o nazismo, nos Estados Unidos, uma
profecia tão adiantada à época, embora não à realidade, que encontrou
poucos leitores. E foi ele, também, que editou todos os melhores livros de
Lin Yutang e estabeleceu, pela primeira vez, sua reputação como escritor.
Possuía o dom da compreensão universal, um espírito eclético, um
julgamento sintetizador, vivificado pela fé no talento, onde quer que o
encontrasse.
Orgulhava-se de ser editor e considerava-o uma profissão nobre. Seu
impulso nunca era fazer dinheiro. Se um livro era suficientemente bom para
merecer publicação, ele o aceitava com entusiasmo, pouco importando que
concordasse ou não com o conteúdo. Suas próprias opiniões sempre se
situavam com firmeza do lado do liberal inteligente. Numa família
fortemente republicana, ele votava sempre com os democratas, com
ocasionais variações em favor dos socialistas, como voto de protesto.
Editava, contudo, autores conservadores, que às vezes o eram no sentido
mais estreito. Acreditava que também eles tinham o direito de ser ouvidos e,
se apresentavam bem suas opiniões, dispensava aos seus livros o mesmo
cuidado editorial que dava a todos os outros. A escala de autores que ele
difundiu vai de Fritz Sternberg a James Burnham.
Um editor — acreditava ele — tinha o alto privilégio de descobrir o
talento e o dever de ajudá-lo a se desenvolver até produzir seus melhores
frutos, apresentando-o então ao mundo. Era um empresário de escritores e
livros, mas um homem de tão terna compreensão das necessidades,
delicadeza e timidez das pessoas de talento, que as guiava sem parecer fazê-
lo, extraindo-lhe idéias mediante perguntas engenhosas e honesto louvor e
apreciação. Das numerosas cartas que recebi depois de sua- morte, muitas
eram de escritores dizendo que, até ele ajudá-los a se compreenderem,
haviam sido incapazes de escrever.
Que direi quanto a mim? Foi ele quem viu algo em meu primeiro
livrinho, uma tentativa rejeitada por todos os outros editores até que ele
percebeu naquelas páginas a possibilidade de que o autor pudesse um dia
escrever um livro melhor. As opiniões de sua equipe estavam divididas a
respeito do livro e coube a ele, como presidente da companhia, desempatar
com seu voto. Votou a favor e foi por meio dessa estreita oportunidade que
minha vida começou.
Ai de mim, não é bom sonhar demasiado. O vestíbulo do velho Imperial
Hotel, em Tóquio, excetuando um porteiro sonolento, estava deserto. A
chuva parará e uma lua nova balançava acima das nuvens quando saí para
respirar o ar frio da noite. Lua nova? Estava em Tóquio havia três semanas.
Durante dois meses estivera sozinha.
A música sempre constituíra uma parte importante de minha vida, como
fundo e meio para o pensamento e o sentimento. Para o filme eu queria
música japonesa, não a tolice sintética que passa por oriental em nossas
tentativas americanas, mas uma criação original no Japão e por japonês.
Devia ser, ademais, japonês moderno, pois a transformação que se operou
em todos os aspectos da vida nipônica em coisa alguma é mais evidente do
que na música. A música é o barômetro — e o termômetro, nesse particular
— de toda cultura, a arte mais reveladora do temperamento de um povo, do
caráter e da reação à influência exterior. Alegrei-me, portanto, quando
Toshiro Miyazumi disse que gostaria de escrever a música para A Grande
Onda. Eu conhecia sua obra, mas nunca nos havíamos encontrado e foi um
prazer especial vê-lo, certa manhã, esperando por mim na sala de estar do
hotel. Levantou-se, apresentou-se e, ao mesmo tempo, ofereceu-me um
presente — o disco de sua sinfonia, Nirvana.
— Sou o seu compositor, disse modestamente. Sentamo-nos e examinei
francamente sua fisionomia. Era um rosto encantador, forte e gentil, sereno,
poético e sem malícia. Um rosto inocente, diria eu, com diferença de que não
era um rosto infantil, embora ostentasse a franca expressão de uma criança.
Reconheci essa qualidade, pois só é encontrada em pessoas altamente
dotadas, sábias como serpentes e gentis como pombas, segundo diz o velho
livro.
— Sinto-me feliz, respondi-lhe.
Toshiro Miyazumi é denominado o Leonard Bernstein do Japão e
realmente se assemelha a Bernstein no brilho de seu talento. Mas, ao
contrário de Bernstein, dedica-se à composição de música. É verdade que já
regeu, mas prefere compor.
— Fale-me de si, por favor, disse eu.
Parecia que nada havia a dizer. Mordeu o lábio, tentou recordar.
— Nasceu em 1929, lembrei-lhe.
Um lampejo de gratidão iluminou seu rosto encantador e sereno.
— Ah, sim, nasci mas comecei minha vida aos seis anos de idade,
compondo e tocando piano.
— E depois? Refletiu e afinal falou:
— Ingressei na Universidade de Tóquio. Eu estava a ponto de perguntar:
— E no intervalo?
Mas decidi calar-me. Esperaria e o deixaria apresentar sua vida assim
como a via. Nada houve, portanto, entre os seis anos e a Universidade de
Tóquio.
Após meditar, continuou:
— Quando tinha vinte e um anos, recebi uma bolsa de um ano para o
Conservatório de Paris. Havia um homem, Tony Oben, que me ensinava.
Muito conservador, nada interessado no novo método de composição... Eu
era, portanto, mau aluno. Porque lá as técnicas eram formais, os ritmos um
tanto antiquados e a harmonia tradicional... A criação é diferente. A energia
é emoção. Não posso, porque uso o método dos doze tons. Pesquisei e fui
para os compositores austríacos — Arnold Schoenberg, Anton Webern, que
usam método novo para expressar a composição contemporânea.
— Mas você também usa temas clássicos, recordei-lhe. — Você é
versátil...
Aceitou a observação com um sorriso.
— É muito difícil sustentar a minha vida só com a música clássica,
embora eu a ame. Voltei ao Japão e durante vários anos compus diversas
espécies de música — orquestral, de câmara, e assim por diante, bem como
para filmes musicais. Suponho que a música de rádio e televisão é o meu
trabalho, mas quero sempre ser um artista...
Houve uma longa pausa, abrangendo anos.
— Cinco anos depois voltei à Europa e freqüentei os festivais musicais
da Suécia, da Alemanha e de outros lugares, onde minha música era
executada.
— Como se sentiu ouvindo sua música executada através do mundo?
inquiri.
Lançou-me um olhar eloqüente, mas era demasiado modesto para falar.
— Voltei ao Japão e constituí um grupo de música contemporânea, tendo
ganho alguns prêmios. Isto é tudo.
Tudo é muita coisa para um jovem de trinta e um anos, mas
aparentemente sua história estava contada. Não se mostrava absolutamente
tímido, e permaneceu descontraído, esperando.
— E esse disco? perguntei, indicando o presente.
— Foi tocado em Tóquio, première no segundo dia de abril de 1958,
após quase um ano de trabalho.
— Interessa-se pela religião? O título sugere budismo.
— O sino do templo budista japonês, tornou ele. — É uma mistura típica
de sons. Gosto muito dele pois sou interessado em música concreta e
eletrônica, isto é, em criar estruturas musicais de energia sonora, como
sugere Edward Varese. Por outras palavras — o método de composição
consiste em dar vida musical à energia inerente ao próprio som. Assim,
introduzo timbres novos em minhas composições — por exemplo: tons
mesclados. Combinações de várias dezenas de tons puros tornaram-se
dominantes em minhas obras.
A face tranqüila ficara subitamente animada e bela.
— Sinto-me atraído pelas vozes dos sacerdotes budistas cantando sutras,
sem melodia, naturalmente, mas com a habitual entonação e ritmo, e quando
quaisquer sacerdotes tomam parte juntos, o grupo produz uma espécie de
ruído musical através da mistura de vozes de diferentes alturas. Acrescentei,
a uma orquestra completa, instrumentos de sopro de madeira e instrumentos
de sopro de metal, colocados em cantos diferentes da sala, para obter um
efeito direcional por meio do cruzamento de sons por cima das cabeças do
auditório...
Nenhum silêncio agora — as palavras jorravam dele numa torrente de
pensamento criador!
— O Nirvana, estado ideal do ser para o budista, é simbolizado pelo
repicar do sino. Assim, talvez eu seja religioso. Compus esta sinfonia com a
idéia de criar meu próprio Nirvana musical. Não é música religiosa, suponho
eu, no sentido mais puro da palavra. É uma espécie de cantata budista.
Espero que goste.
Sorriu de súbito:
— Falo demais.
Quebrei o silêncio seguinte.
— Que fará depois do nosso filme?
— Vou a Nova York, escrever música para o Ballet da Cidade de Nova
York. Será executada na próxima estação.
— Inteiramente diferente de uma cantata budista?
— Gosto de variar, mas antes de ir a Nova York terminarei a música
para A Grande Onda. O filme é fora do comum, também, e completamente
diferente. Tenho a música na cabeça claramente, realmente romântica, não
do romantismo wagneriano, ao mesmo tempo forte e delicada, com a
filosofia oriental contemporânea. Como é que escreve assim? A emoção é
oriental.
Foi a minha vez de não saber o que dizer. De que modo pode dizer uma
escritora como escreve? Mas eu esquecera sua pergunta.
— Quero uma canção nela, disse eu. — Quero uma canção que seja
como o nascer do Sol, jovem, fresca e cheia de esperança. Os jovens de sua
terra começando de novo a vida em sua própria época, neste momento nunca
vivido antes. Quero esta canção.
Inclinou-se para mim, todo apelo e rogo:
— Se eu compuser a música, escreverá a letra?
— Não posso, respondi.
Nada mais havia a dizer. Apertamo-nos as mãos e ele partiu. E a canção
foi escrita por outra pessoa.
Parou no escritório no dia seguinte, ao meio-dia, e olhou para dentro.
Sempre estava acontecendo alguma coisa ali, e aquele momento não
constituiu exceção. Centenas de trajes estavam amontoados no chão e várias
pessoas — homens, rapazes e uma- ou duas moças — as estavam
manipulando com um corrido acompanhamento em japonês de várias alturas
de tom. Procuravam uma peça de vestuário pedida pelo modelo para diversas
partes do filme. O modelo era um microscópico ser humano, de idade vaga,
não jovem certamente. Tinha cerca de um metro e meio e eu ficaria
surpreendida se pesasse quarenta quilos. Era pele e osso, e se o esqueleto era
de criança o rosto fascinava. Enrugado, vivaz, cheio de graça e malícia, era a
face de um velho fauno. O topo da cabeça era calvo, mas circundado de
cabelos que saíam retos do crânio, como se o velho fauno estivesse sob os
efeitos de um choque elétrico. Estava, sem dúvida, carregado de alguma
espécie de eletricidade, pois dava ordens sem cessar, enquanto
experimentava uma roupa de pescador feita para um homem quatro vezes
maior que ele. Não obstante, era um bom modelo. Apertou as calças no
peito, torceu o cinto, ajeitou o casaco japonês e tornou-se um pescador.
Todos riram e eu me sentei para observar.
Conhecia todos os personagens de A Grande Onda, como parecia, e
serviu de modelo para todos. Quando encarnava uma mulher, dava-nos as
costas. Eu reconhecia cada personagem, até mesmo a menina Setsu. Como
podia um velho posar de tal maneira que sugeria uma garota jovial, até
mesmo de costas, é algo que não posso explicar. Desejei, pela milionésima
vez, entender japonês, pois os presentes riam convulsivamente de tudo que o
velho fauno dizia. De quando em quando se mostrava insatisfeito e atirava
para longe um traje, ou rejeitava o que lhe ofereciam e se punha a remexer
entre a confusão de roupas amontoadas com toda a feroz intensidade de um
macaco procurando pulgas.
Nesse momento alguém teve uma inspiração.
— Ele é o que estamos procurando... um magnífico criado para o Velho
Cavalheiro. Será que fala inglês?
O velho fauno sorriu com todos os dentes, nenhum deles em bom estado,
e sacudiu a cabeça com referência ao inglês.
Aos outros replicou que pensaria no assunto e nos falaria amanhã. No dia
seguinte, o velho fauno, experimentando mais trajes e dançando sobre suas
pernas magras, iluminou-se quando entrei na sala. Uma torrente de palavras
japonesas jorrou dele, as quais, traduzidas, significavam que integraria o
elenco, mas apenas se lhe prometêssemos não cortar seus cabelos. Disse que
não trabalharia conosco se lhe cortássemos os cabelos.
Olhei o círculo de arame negro eletrificado cercando o crânio calvo e
ossudo.
— Diga-lhe, tornei, que eu nunca pensaria em cortar esses cabelos.
Prometo que não os cortaremos.
Todos nós olhamos gravemente aqueles valiosos cabelos.
— Ai! — exclamou o fauno jovial com um riso que atravessou a sala.
Súbito o sorriso desapareceu. Tagarelice japonesa jorrou de onde estivera o
sorriso.
A paciente intérprete explicou:
— Ele pergunta se tem de falar inglês. Se for assim, não pode.
— Terá de dizer apenas duas linhas e nós lhe ensinaremos todos os dias,
foi a nossa promessa.
Mais palavras japonesas e a intérprete informou:
— Diz ele que precisa de um bom professor. Tem de falar inglês com
perfeição.
— Terá um bom professor, prometemos.
Verificaríamos mais tarde que nenhuma aula conseguiria prevalecer
sobre a sua invencível pronúncia japonesa. Reduzimos suas linhas a duas
palavras essenciais: yes e no. São as que diz no filme, impressivamente e
com orgulho. Esperara a vida inteira para tornar-se ator, dizia ele, mas o
mais perto que conseguira chegar fora trabalhar com os trajes. Nunca
esquecerei sua expressão beatífica quando soube que lhe daríamos o papel.
No que lhe dizia respeito, era um astro. Dirigiu-nos um largo sorriso e o
fauno se tornou novamente macaco, remexendo por entre as roupas, mas
agora procurava febrilmente seu próprio traje.
Naquela noite, pela primeira vez desde que ele partira, senti um alívio,
ligeiro embora, da pesada opressão de... como a denominarei? Choque,
desolação, solitude, seja qual for o seu componente, havia lançado sobre
mim um peso do qual não podia escapar. Não perambulei pelas ruas naquela
noite. Em vez disso decidi por uma massagem japonesa, jantar solitário em
meu quarto, uma comprida carta às crianças em casa e um livro. Este é um
programa bastante comum, mas eu ainda não o havia cumprido depois de ter
ficado só. Mas o riso o tinha possibilitado agora. Rio com facilidade, pois o
mundo está cheio de pessoas e incidentes engraçados, porém não havia rido
com freqüência nos últimos meses e nunca o fizera com o auto-esquecimento
que de algum modo o velho fauno me inspirara naquela tarde. Constitui
talento peculiar do artista penetrar no ser de outra pessoa e isto é
particularmente verdadeiro quanto ao novelista. Discutimos freqüentemente
o assunto, ele e eu, e sempre me perdoava quando, temporariamente, eu me
achava absorvida por outro que não ele. Esta é uma estranha absorção e não
sei como descrevê-la a não ser comparando-a ao foco de total interesse
essencial próprio do cientista teórico. Esse cientista também é, por
temperamento, um artista, e nenhum de nós pode escapar ao que é.
Mas eu não havia sido capaz de me deixar absorver por ninguém, desde
que ele morrera, até àquela tarde em que, durante uma hora, o velho hábito
retornou. Senti-me estimulada e quase esperançosa. Fiquei pelo menos
aliviada, embora, brevemente, do miasma de tristeza em meio ao qual andara
durante tantas semanas. Ri de todo o coração e me senti curada por uma
hora. Posso informar que cumpri meu programa para a noite e fui deitar-me
a uma hora razoável pela primeira vez em todas aquelas semanas. O fato
marcava um começo.
As mergulhador as de haliotes* — já falei delas? Penso que não, mas
devo falar, pois formavam um pequeno grupo compacto e único em nosso
elenco inteiramente japonês. Os moluscos haliotes são uma iguaria da
cozinha japonesa, mas difíceis de encontrar pois se agarram às rochas com
um poderoso músculo e vivem nas profundezas, onde o mar é escuro e a
água gelada. Os pescadores japoneses recusam-se prudentemente a
mergulhar para apanhá-los e transferem a tarefa às mulheres jovens, mais
capazes de suportar o frio e o perigo. Os homens conduzem os barcos aos
leitos de moluscos e esperam pacientemente enquanto as mulheres
mergulham no mar, vestindo apenas shorts e cintos nos quais enfiam as
compridas e pesadas facas de ferro necessárias para arrancar os mariscos das
rochas. * Molusco gastrópode da família dos Haliotídeos. (N. do Tr.).
Para espanto meu, seu traje, tão natural para eles e tão adequado, tornou-
se assunto de preocupação e mesmo de controvérsia para nossos produtores
americanos. Parecia que as platéias americanas não tolerariam a visão dos
peitos nus das mulheres mergulhadoras. Na Europa o espetáculo seria
inteiramente aceitável, até mesmo agradável, mas a decência tem padrões
absolutos nos Estados Unidos seio-conscientes.
— Como? inquiri eu. — Uma mulher é uma mulher e não pode,
propriamente, ser qualquer outra coisa.
— Porta-seios, retrucou laconicamente o delegado americano. Abrandou
um pouco ao ver o meu espanto. — Faremos duas filmagens delas, uma com
e uma sem.
E foi o que fizemos. Eu me diverti ao ver quão embaraçadas ficaram as
mulheres ao serem compelidas a vestir soutiens cor de rosa sobre seus
redondos seios morenos. Sentiram-se realmente nuas, como Eva no jardim,
sem dúvida, quando lhe disseram que usasse uma folha como veste.
Uma satisfação peculiar decorrente da transposição de minha história de
um meio a outro, da página impressa para o filme, era que os personagens se
tornavam vivos, em carne e sangue. Um dia encontramos Setsu e nunca
esquecerei o momento de puro prazer angelical em que, olhando para uma
jovem mulher, eu a reconheci. Era uma jovem estrela de sua própria
companhia, informou-nos o gerente de produção. Para mim o mais
importante era o seu adorável rostinho e seus grandes olhos líquidos
castanho-claros. Tão pequena de estatura que era, como me contou, membro
do Transistor Club, cujos sócios deviam ter todos menos de um metro e
meio. Essa pequena-transístor, todavia, era ainda menor. Ao ficar junto de
nosso crescido Toru, com um metro e oitenta, no filme, era exatamente
correto quando ele olhava para baixo, a fim de vê-la, ria e dizia:
— Gosto de você porque é tão pequena e engraçada.
Nosso elenco, afinal, estava completo. Todos sabiam falar inglês ou
podiam aprender as poucas palavras que tinham de proferir — exceto a mãe
de Toru. Ela era simplesmente demasiado tímida para tentar dizer uma
palavra em inglês. Mas tinha uma fisionomia tão suave, além de ser atriz
muito conhecida no Japão, que cortamos suas linhas e deixamo-la
representar em vez de falar. Entrementes, haviam-se passado três semanas.
Todos os contratos estavam assinados. Era um ótimo elenco, sendo o astro,
Sessue Hayakawa, mais conhecido no mundo ocidental. Todos os outros
eram astros no Japão, exceto Haruko já crescido, uma nova atriz
especialmente escolhida para o papel da feroz mergulhadora de haliotes, que
se apaixonou por Toru e lutou por ele contra a gentil Setsu.
Quando, finalmente, estávamos prontos para deixar Tóquio, o elenco
reunido, o câmara e a equipe esperando, o Velho Cavalheiro convidou-nos
para uma festa numa casa de geishas, e para lá fomos uma noite, após nos
haver chamado para levar-nos em seu próprio carro. A essa altura eu já me
tinha habituado a noites passadas em hospedarias tranqüilas, com amigos
japoneses. Uma boa hospedaria, no Japão, nunca fica situada ao lado de uma
rodovia. A pessoa tem de saltar do carro ou do ônibus e caminhar pelo
menos cem metros, em geral mais, por um caminho musgoso, até um lugar
isolado, onde embaixo de árvores, se possível, estendem-se tetos baixos
sobre salas abertas para jardins e pequenas piscinas. A tais lugares, tão
freqüentemente quanto a minha disposição de aceitar, eu fora convidada por
amigos, professores universitários, escritores, teatrólogos, literatos e artistas,
grupos de mulheres de talento.
Essas noites decorriam em repousante conversação, comparações de
costumes, lembranças de paz e de guerra e novamente de paz. Eu apreciava
além de qualquer descrição a nova liberdade com a qual podíamos falar.
Parecia que, durante os anos em que eu estivera ausente do Japão, fora
derrubada alguma barreira, não da minha parte mas da parte deles. Só posso
atribuir o fato, pelo menos parcialmente, à experiência que tiveram com os
americanos no decurso dos anos de Ocupação e nos posteriores. Houve
incompreensões, mas a compreensão prevaleceu.
A noite na casa de geishas não se assemelhava às tranqüilas noitadas
entre amigos congeniais. Paramos num suntuoso restaurante novo e depois
entramos numa enorme sala onde a mesa baixa mais comprida que já vi se
encontrava cercada de convidados, todos eles, como nos assegurou nosso
anfitrião, os mais altamente situados de sua classe. Fomos, assim,
apresentados a um idoso príncipe rodeado de geishas, das quais havia
inúmeras, em seguida a um ministro do atual gabinete, depois a um jovem
gigante de mais de dois metros de altura e noventa centímetros de largura,
que era o campeão de luta romana no Japão, e assim por diante. Cada
convidado masculino estava cercado de várias geishas, e eu própria recebi
duas para atender-me, à direita e à esquerda.
Entre cada prato éramos entretidos pelas danças e canções tradicionais
das geishas treinadas. Mas a novidade eram duas jovens mágicas. Das
melhores que conheci, e eu tenho visto mágicos em todos os países porque
os adoro. Essas moças, em contraste com as geishas, usavam vestidos
ocidentais, os braços nus até os ombros. Não havia, portanto, a tolice de
esconder coelhos, galinhas e jarros de água nas mangas. Elas simplesmente
realizavam truques maravilhosos e não tenho a menor idéia de como o
faziam.
Depois de umas quatro horas agradáveis, a noite chegou ao fim.
Refletindo sobre seus incidentes, uma recordação apega-se como leve
penugem ao meu espírito. A esposa do Embaixador Americano me havia
descrito, num almoço em minha honra, os vestidos formais que ainda eram
exigidos às estrangeiras que compareciam a qualquer cerimônia da corte ou
do palácio do Imperador. Os vestidos, dissera-me ela, deviam ser compridos,
de gola alta e mangas longas. Naquele dia, mais tarde, perguntei a uma
amiga japonesa de espírito prosaico, o motivo pelo qual as mulheres
estrangeiras deviam usar golas altas. Respondeu pronta e exatamente:
— É porque, ao se curvarem, o Imperador não deve ficar embaraçado
vendo os seus colos nus.
Nossa última noite em Tóquio. Terminada a festa das geishas, sentei-me
junto à janela, no escuro, antes de dormir, e contemplei a cidade brilhante,
uma massa de edifícios reluzentes, no centro da qual está o elevado e antigo
muro cercando o palácio imperial. Sim, há um fosso. Na divisão do velho e
do novo, que é o Japão de hoje, lembrei-me da visita de cortesia que fizera
naquela manhã ao presidente de outra grande companhia cinematográfica
japonesa. Fora bastante bondoso em ceder-nos um dos seus jovens astros
para fazer o papel do nosso Toru crescido.
À sua maneira, esse executivo também era notável. É um homem
pequeno, magro, saudável e cheio de energia. Olhar agudo e gestos vivos.
Expressei minha gratidão e ele disse que queria que o filme fosse um
sucesso. Nesse momento observei no alto da parede a miniatura de um
templo budista. É um ardente budista, como eu sabia, e conversamos alguns
minutos sobre a grande e antiga religião. Lembro-me de que meu erudito pai
escrevera certa vez uma longa monografia sobre o tema do budismo como
fonte de algumas crenças cristãs. Havia mais de trinta semelhanças desse
tipo e falei delas ao distinto budista japonês. Ficou profundamente
impressionado e disse que meu pai estava absolutamente certo — há muito
de comum entre as duas religiões, e isto não por acidente — estava
convencido — mas por experiência histórica partilhada.
No dia seguinte, o último, obedecemos ao costume japonês de oferecer
uma festa ao elenco e à equipe antes de iniciarmos a grande aventura. A
grande sala que alugamos no hotel estava apinhada. Todos os nossos atores
ali se encontravam, nosso cameraman — que sem dúvida os deuses nos
haviam mandado — o artista da maquiagem, o melhor do Japão, como nos
disseram, e muitos outros. Os repórteres insistiram em estar presentes e
estavam.
Nossos atores-crianças traziam suas melhores roupas de festas. A
pequena Setsu, o pequeno Toru, o pequeno Yukio, e os seus equivalentes
grandes. Todo o nosso elenco, na verdade, fazia-me inchar de orgulho. Eram
elegantes, enquadravam-se em seus papéis, e estavam entusiasmados.
Nossos co-produtores sentiam-se contentes também, até mesmo o gerente de
produção. Ele ficou até o fim da festa, fez um discurso em japonês que foi
sem dúvida excelente, pois houve aplausos estrondosos. Nosso astro, Sessue
Hayakawa, também falou em japonês, os repórteres tomaram notas, as
câmaras relampaguearam diversas vezes, e a festa terminou. Havia comida e
bebida em quantidade e em pouco tempo todos ficaram conhecendo todos.
Foi uma festa adorável. Demoramo-nos a partir, despedindo-nos e
assegurando que breve tornaríamos a nos encontrar para trabalharmos juntos
em A Grande Onda. Amanhã... amanhã... e tomara que todos os amanhãs
brilhem tanto quanto aquele que nos esperava, disse para mim mesma,
naquela noite.
Mais uma vez não fui perambular sozinha pelas ruas. Ao invés disso,
abri a janela e enviei ao espaço minha mensagem secreta, com amor. Onde
quer que está, ele ouviu, ou assim sonhei, pois um conforto novo desceu
sobre meu coração e me trouxe o primeiro prenuncio de paz. Era a sua
bênção.
III
CHEGAMOS À DELICIOSA CIDADE de Obama após uma viagem de sete
horas em avião, trem e automóvel. Era meia-noite quando atingimos nosso
hotel, e as camas, feitas à maneira japonesa, sobre esteiras de tatami no chão,
pareciam e eram confortáveis. Era um hotel autenticamente japonês —
alimentação, encanamento e tudo o mais, um grande hotel, confortável em
seu gênero, ao ponto de ter algum luxo.
Eu estava de novo numa cama japonesa. Um colchão grosso posto sobre
as esteiras do chão, um colchão macio, lençóis, travesseiros e colcha
revestida de seda, tudo imaculadamente limpo, proporcionavam a
combinação exata de duro e macio para o mais repousante sono. Há, penso
eu, uma certa segurança em dormir no chão, talvez porque não haja nada de
onde se possa cair. A pessoa de sono irrequieto pode sacudir braços e pernas
e até mesmo rolar de um lado para o outro, e ficará sempre no mesmo nível.
É a segurança que a criatura humana sempre sente quando se encontra sobre
a terra estável, um contato com a planície básica. Os bebês sabem disso por
instinto e dormem mais sadiamente, portanto, quando estão deitados sobre
seus estômagos. Então, se acordam, ou apenas sonham, sentem as mãos e os
pés tocarem a solidez em vez de agarrarem o ar. Por mais estreita que seja a
cama, parece espaçosa quando preparada sobre o chão. E quão sensato,
também, o uso do aposento. Durante o dia o quarto de dormir transforma-se
numa agradável sala de estar, depois de guardar em armários a roupa de
cama. Sábio uso do espaço num país pequeno e superpovoado.
Dormi bem mas acordei cedo, ansiosa por ver os cenários escolhidos
para a filmagem. Havíamos chegado tarde e eu não sabia como era a
paisagem vista da janela da pequena varanda para a qual o meu quarto abria.
Voltava-se para o sul, dando para uma baía curva, cercada de verdes
montanhas. A rua ficava entre o hotel e o mar, e em baixo das minhas janelas
havia uma grande piscina de fumegante água quente — calor natural, pois
Obama é uma famosa estação de águas, com fontes naturais quentes.
Tão logo me mexi, o shoji coberto de papel recuou e uma agradável
criadinha japonesa numa alegre yukata, ou quimono de algodão, entrou,
ajoelhou-se, curvou-se e Começou a tagarelar em japonês enquanto desfazia
a cama. Em poucos minutos meu quarto de dormir estava transformado em
sala de estar, uma mesa baixa e polida no centro, almofadas para sentar, um
espaldar para recostar. O nicho de tokonoma continha um gracioso vaso de
flores frescas e um rolo de paisagem por um bom artista.
— O desjejum não demora, disse-me a criada por meio de gestos.
Fiz um aceno e desci um renque de degraus até o meu banheiro
particular e tomei um banho japonês. A banheira estava cheia de água quente
natural, muito refrescante, estimulante sem cansar. O desjejum era um ovo,
alguma fruta, peixe salgado e arroz. O banho mineral dera-me fome. Depois
do desjejum partimos num automóvel... Faço aqui uma pausa para dizer que
os carros japoneses são tão extraordinários quanto seus motoristas. São
adaptados a uma paisagem abrupta e a estradas perigosas. O Japão tem muito
boas estradas, muitas mais do que me lembro de ter visto nas visitas
anteriores, mas esses carros rodam com o mesmo espírito em estradas
ásperas e estreitas ou no cimento e no asfalto. A maioria das estradas é
estreita e não tem espaço para uma ultrapassagem confortável. Quando dois
carros se encontram frente a frente em semelhante estrada, ambos param. Os
motoristas se avaliam mutuamente. Mais cedo ou mais tarde um deles se
convence de que é o mais fraco e recua prudentemente até encontrar um
canto onde possa esperar que o outro passe. Um motorista de ônibus ou
caminhão não perde tempo nessa avaliação. Espera simplesmente que o
outro carro saia do caminho, com o ar de quem está fazendo um favor em
não empurrá-lo penhasco abaixo. Parece haver sempre um penhasco na
margem de cada estrada do Japão e muito freqüentemente penhascos
pendentes de ambos os lados, sem parapeito ou qualquer outra proteção. A
razão, suponho eu, é que, passando quase todas as estradas no alto do
penhasco sobre o mar, não adianta sonhar em amuradas. As pessoas devem
aprender a cuidar de si próprias. O mesmo princípio é verdadeiro para os que
dirigem através de cidades, aldeias e hordas de ciclistas. O resultado é que
cada um cuida de si e ensina a seus filhos a fazerem o mesmo. Os acidentes
são extraordinariamente poucos, pelo menos em proporção ao risco!
...Rodamos durante uma hora através de uma região fantàsticamente bela
e todas as minhas recordações reviveram, pois em certa ocasião, numa outra
encarnação, eu vivera alguns meses em Kyushu. Como me lembro bem
dessas montanhas de picos pontiagudos, sujeitas a súbitas neblinas de chuva,
dessas praias recortadas, das rochas corroídas pelas águas, das aldeias
escondidas em enseadas, das casas de lavradores com seus inclinados tetos
de sapé com um metro de espessura, e seus campos terraçados, trepando
passo a passo pelas encostas até quase o topo das montanhas! Nada mudara.
Afastei da memória a cidade de Nagasaki destruída pela bomba, que ficava
bem perto, porque os japoneses também a haviam esquecido, construindo
uma cidade nova.
Fui vê-la mais tarde e encontrei a combinação simbólica do velho-e-
novo do Japão dos dias atuais — novo, o monumento erguido em memória
dos que morreram quando foi lançada a segunda bomba atômica; velho, a
casa construída num monte onde Puccini morou enquanto escrevia Madame
Butterfly. Essa casa é hoje um lugar de turismo, não muito conservada, nem
mesmo muito limpa. A história foi contada muitas vezes e agora está fora de
moda, pois os jovens soldados ocidentais casam-se com suas namoradas
japonesas e, se o não fazem, Miki toma conta dos bebês.
Em matéria de velho e de novo, nada foi mais surpreendentemente novo
do que o convite, quase casual, num dia quente de verão, para ir
cumprimentar o Imperador e a Imperatriz na cidade de Fukuoka, um
encontro impossível nos dias antigos, quando esses dois personagens eram
tão remotos, para não dizer tão improváveis, quanto os deuses. Naquele dia
em Fukuoka, porém, postamo-nos em fila na estação ferroviária para dar as
boas-vindas, com reverências, às augustas pessoas. Desceram do trem
trajando roupas ocidentais, com a expressão bondosa e um tanto cansada. O
Imperador não teria dado um homem de negócios muito jovial e sua esposa
uma companheira maternal e ansiosa, cujo chapéu e vestido comprido
constituíam um problema. Fiquei a imaginar se recordavam os dias em que,
remotos e frios viviam no Olimpo.
Não posso negar que meu coração bateu mais rápido ao nos
aproximarmos da aldeia de Kitsu, onde vivia Toru, nosso garoto pescador.
Há duas centenas de anos Kitsu fora totalmente varrida por uma ressaca. Era
fácil ver como acontecera, pois essa pequena aldeia de pescadores jaz como
uma sela entre duas montanhas, a menor terraçada até o topo e além. Devo
ter pensado em Kitsu quando escrevi A Grande Onda, tão perfeitamente se
adaptava essa aldeia à história. Pois após a ressaca o povo a reconstruíra no
mesmo lugar, esse obstinado e bravo povo japonês, e no entanto mais cedo
ou mais tarde a aldeia seria de novo apanhada por uma onda monstruosa, e é
tão vulnerável hoje quanto o era há dois séculos, as casas com a mesma
forma e estrutura, dispostas exatamente do mesmo modo, na praia mas sem
janelas para o mar.
Eu reconheci cada passo, enquanto subíamos para a aldeia pelo caminho
estreito e sinuoso. Aqui estavam as casas, aqui as ruas estreitas que não
tinham mais de um metro de largura, certamente, e pelas quais nenhum
veículo podia passar, e dificilmente dois seres humanos. Descendo os gastos
degraus de pedra, rumamos para o mar, seguidos por vinte e nove crianças,
exatamente, pois as contei quando paramos na casa de Toru. Lá estava,
também, a casa assim como a vira em meu livro, e até mesmo o Avô estava
ali, face vivaz e alegre, espreitando-nos por cima do muro. Seus dias de
pescador haviam passado e agora eram os filhos e netos que continuavam a
labuta. Sua esposa morrera, contou-nos, e a nora e a neta é que cuidavam da
casa, secavam e salgavam o peixe e traziam água do poço perto da praia.
Percorremos a aldeia com profundo contentamento porque era tão
exatamente certa, as redes de pescar secando na praia, as casas aninhadas
entre as colinas terraçadas, um pequeno e velho cemitério numa delas.
Havia, mesmo, um renque de degraus de pedra que podíamos usar como
entrada da casa do Velho Cavalheiro, na montanha acima.
O tempo tinha passado e era hora do almoço. Comemos num restaurante
famoso pelas suas enguias. Galgamos dois lances de escada até uma grande
sala arejada, onde comemos enguia com arroz e nos congratulamos pelo
cenário do filme.
Eu receava ver nosso próximo cenário e confessei meu temor. Tratava-se
da mansão do Velho Cavalheiro, erudito e proprietário de terras.
Encontraríamos, morando em semelhante casa, uma família disposta a nos
emprestá-la? Devia ser espaçosa, bela e elegante, situada em jardins
adoráveis. Perdi pessoalmente a esperança e me distraí pensando em vários
substitutos enquanto rodávamos por uma estrada rural.
Mas o impossível tornou-se possível, como tão freqüentemente
aconteceu no Japão. No momento em que vi a casa, da estrada, compreendi
que era a mansão do Velho Cavalheiro, pouco importando quem morasse
nela. Atravessei o portão e me encontrei num adorável jardim. Não havia
flores, pois os jardins japoneses raramente têm flores. Um caminho feito de
largas pedras irregulares conduzia à entrada principal, ladeado de sempre-
vivas, moitas baixas, samambaias e orquídeas sem flor, constituindo a
paisagem. À porta achava-se uma dama. Trazia um elegante quimono escuro
e curvou-se profundamente. Curvamo-nos em resposta, na medida da nossa
melhor capacidade americana, e perguntei se podíamos ver o resto do jardim.
Havia uma piscina de tamanho médio, mas desenhada de modo a apresentar
os aspectos de um lago. Havia uma ponte conduzindo a um caminho estreito
e um pavilhão entre árvores. Olhei tudo do ponto de vista do Velho
Cavalheiro. Era exatamente a espécie de jardim que ele teria, e eu quase
esperava vê-lo aguardando-nos dentro de casa.
Mas ele não apareceu. Havia apenas a dama elegante que nos convidou a
entrar na casa e nos conduziu de um aposento a outro, todos espaçosos e
decorados com gosto. A casa da fazenda tinha trezentos anos de idade, mas
esta era a casa do proprietário, construída apenas há cerca de quarenta anos,
para substituir a antiga. O Velho Cavalheiro, quem quer que seja, era homem
rico e de gosto. Os móveis, os objetos de arte nos nichos de tokonoma, eram
todos de sua escolha. Duas das salas tinham tapetes postos sobre o tatami,
com mesas e cadeiras de estilo ocidental, mas nós ignoramos os aspectos
modernos do Velho Cavalheiro e nos apegamos ao seu lado japonês.
Agora a dama nos apresentou à sua filha, jovem mulher que não tinha a
metade da beleza da mãe, trajando um vestido ocidental que não lhe ficava
bem. Mas também era bondosa e me senti comovida e com o coração
aquecido quando, após haver feito meu discurso de louvor, ouvi ambas
declararem que consideravam uma honra a utilização de sua casa em meu
filme, e a dama disse que gostaria, algum dia, de realizar para mim a
cerimônia do chá. Aceitei, agradecendo, e então ela nos serviu chá em taças
tão pequenas que, antes de prová-lo, eu sabia que o chá era precioso. Era, de
fato, o chá perfeito, raramente oferecido a ocidentais. Eu não suportava a
idéia de fazê-lo desaparecer, bebendo-o, mas era tão delicioso, tão superior a
qualquer chá que habitualmente tomo, que não pude senão sorvê-lo enquanto
o elogiava. Ela se sensibilizou com os meus louvores e trouxe o pequeno e
valioso bule, derramando em minha taça mais goles do elixir. Era
naturalmente um chá raro, feito com as primeiras folhas tenras da planta, na
primavera. Trinta gramas dele custam um dólar, o que é muito dinheiro
japonês. Estou certa de que não o serve com freqüência, mesmo a hóspedes
nipônicos. Tê-lo oferecido a nós significava que nos dera um presente.
Recebi-o como tal.
Enquanto conversávamos, eu em inglês, ela em japonês, através de um
intérprete, perguntou se podia gravar a conversa para seu filho, que estava
estudando inglês. Respondi naturalmente que sim, e me diverti ao ver, atrás
de uma almofada, um moderno gravador que até então se achava escondido!
Despedimo-nos afinal, com muitas reverências, prometendo voltar em
breve, prometendo ter o cuidado de nada quebrar na casa e nada estragar no
jardim. Mostrou-se muito graciosa e suplicou-me que deixasse o hotel e
fosse morar com ela, mas respondi que devia ficar com a companhia,
agradecendo-lhe do mesmo modo.
Restava-nos, agora, ver a casa da fazenda e a praia deserta. A praia podia
esperar, pois o dia estava escurecendo, mas tínhamos de ver a casa da
fazenda. Atravessamos uma aldeia e eu a reconheci, entre os campos e a
estrada. A casa ficava entre terraços, ela própria construída num deles,
bastante amplo. A estrada passava na sua frente, seis metros acima da
plantação de arroz. Um muro de tijolos antigos protegia a construção, mas o
largo portão de madeira estava aberto e por ele entramos no mundo da
história do meu livro. Sim, esta era a casa, simples porém espaçosa, paredes
de madeira, quartos divididos por shoji, um teto de sapé tão antigo que flores
e capim cresciam nele. Galinhas, uma cabra, uma pequena horta, algumas
moitas ornamentais, umas poucas rochas decorativas, uma ótima cozinha
antiga, uma varanda estreita, um pequeno tanque para lavar arroz e vegetais,
o próprio lavrador, viúvo jovial com uma filha casada que cuidava dele —
era exatamente certo. E, melhor que tudo, a família era cordial e ansiosa por
ajudar. Quando viríamos? Amanhã? Bom... bom... a casa era nossa. Sim,
tinham eletricidade — e uma bomba na cozinha, fazenda moderna, disse
com orgulho o lavrador. E gostaria que os americanos vissem como tratava
de tudo. Chá, por favor, antes de partirmos! Era noite quando nos deixou sair
e o trabalho começou às sete horas do dia seguinte. Cada hora de luz é
preciosa quando se faz um filme no local.
As galinhas, como notei ao sair, eram da mais ruidosa variedade. Só as
trevas as silenciaram. Seu cacarejar dissonante, suas exclamações de
excitação e ultraje quando chegamos no dia seguinte, constituiriam a música
de fundo de todas as cenas filmadas na casa da fazenda.
Mas, ai, fomos retardados e pela chuva... chuva... chuva. Quando
chegamos ao nosso hotel, naquela noite, a chuva estava caindo. Eu havia
temido a chuva, sempre o azar nas filmagens naturais, especialmente no
clima do sul do Japão, onde o mar e a montanha são vizinhos íntimos. Se o
vento sopra do mar, o céu se torna claro; se da terra, choverá. Disso eu me
lembrava, desde os dias há muito passados, e enquanto estava deitada em
minha cama japonesa, ouvindo a chuva e esperando o sono, meditei nas
estranhas divisões de minha vida.
Como fora incrível, acima de tudo, que durante toda a primeira metade
de minha vida, eu ignorasse que ele existia! Quando estive aqui, antes, onde
estava ele? E agora que estou aqui de novo, onde está ele agora? Entre essas
duas eras situam-se vinte e cinco bons anos de vida em comum, uma gema
engastada na eternidade, antes e depois. E a velha pergunta me assaltou de
novo, como assalta todo ser humano que viu a morte chegar demasiado
perto. Cerrei os dentes contra a inexorabilidade da morte.
Há vida, além?
Lembrei-me da coragem de seu ateísmo. Com que freqüentemente
discutimos sobre o futuro no qual um de nós teria de viver só! Pois teria sido
bom demais para ser possível que morrêssemos no mesmo momento e
atravessássemos de mãos dadas a invencível barreira. Eu sabia, há anos, que
caberia a mim ficar, a mim com a herança de ancestrais longevos em ambos
os lados de minha família. A questão era se eu me recordaria da
possibilidade de vida além, ou a poria de lado e viveria como se a eternidade
fosse agora — o que é, de certo modo, não havendo começo ou fim no
infinito de todas as coisas. Que é então a solitude presente na qual estou
vivendo? É o fim do que foi ou é o começo de algo que ainda não
compreendo?
Sabia ele que eu estava aqui, no Japão? Estava ele adejando ainda sobre
a nossa casa, a essência dele, e perceberia eu sua presença se estivesse lá?
Deitada em minha cama japonesa, escutando o ruído do mar alto mesclando-
se com a chuva no teto de telhas, lutei contra o poderoso anseio de ir à
procura dele, onde quer que estivesse. Pois certamente estava procurando
por mim, também. Sentíamo-nos inquietos, sempre, quando separados. Mas
onde ficam os caminhos?
Lembrei-me de uma noite no Sardi's, em Nova York. Eu estava com um
amigo, de Hollywood, e me encontrava pela primeira vez com sua esposa.
Enquanto o marido conversava com outros convidados, essa mulher falava
comigo um tanto timidamente, agradável senhora do Midwest, nada
Hollywood. Mostrara-se tímida a princípio, mas depois, cedendo a algum
impulso, baixou a voz para dizer que desejava "conversar de verdade"
comigo. Sofrerá, segundo parecia, uma estranha evolução pessoal nos
últimos meses. Seu pai, do qual era muito íntima, vivera muitos anos com
ela, após a morte de sua mãe. Mas ele também morrera recentemente.
Preocupava-se a seu respeito, imaginando se ainda estaria em algum lugar e,
se assim era, se estava feliz. Tais preocupações a haviam deprimido e tirado
a sua alegria.
Uma noite, contou ela, em que o marido se demorara no trabalho e ela
ficara sentada sozinha, fazendo crochê, passatempo a que era afeiçoada, pôs-
se a pensar no pai, preocupada como de costume. Súbito ouviu-o chamar seu
nome, e levantando os olhos viu-o claramente de outro lado da sala.
— Você deve parar de preocupar-se comigo, disse ele em sua costumeira
voz prática. — Estou bem, na verdade estou feliz.
— Ficou com medo? perguntei-lhe.
— Medo de meu pai? Não!
— Mas ele era o mesmo?
— Exatamente o mesmo, tornou ela, acrescentando, em seguida, meio
intrigada. — Bem... eu sabia que, embora ele estivesse ali, seu corpo não
estava.
— E tornou a vê-lo?
— Sim, respondeu. — Várias vezes, porém não me preocupo mais. Às
vezes, quando Jack e eu estamos sentados tranqüilamente em casa, à noite,
ele lendo e eu fazendo crochê, sinto que alguém mais está presente e vejo
meu pai sorrindo para nós.
— Jack também o vê? inquiri.
— Perguntei-lhe uma vez: "Jack, está vendo papai ali?" Disse que não,
que não o via, mas acreditava que eu o estivesse vendo, porque no velho país
de onde viera havia gente como eu, que podia ver além das aparências.
Sim, e lembrando, pensei no que minha filha de quatorze anos dissera no
dia posterior ao do funeral. Quisera ficar com o quarto dele, depois de vazio,
pois está situado junto do meu e ali dormiu plàcidamente na primeira noite,
lembro-me, pois eu lhe perguntara se queria mesmo dormir nele, tão cedo.
— Não quero que esvaziem o quarto, disse ela.
Na manhã seguinte falou com inteira naturalidade, durante o café:
— Papai entrou no quarto ontem à noite. Estava com um aspecto
maravilhoso... bom de novo e tão alegre! Voltou apenas para ver se tudo
estava em ordem.
Contive minha incredulidade.
— Falou com você?
— Não, apenas sorriu.
— E que vestia ele? indaguei.
— Penso que sua jaqueta de fumar, de veludo vermelho.
Mas a jaqueta vermelha, apesar de sua favorita, fora posta de lado há
cinco anos, quando deixara de fumar.
Creio? Se acredito é porque estou certa de que algum dia saberemos
como somos cientes, as comunicações serão claras, as leis científicas nos
revelarão os princípios que governam o universo criador. A religião chama a
força criadora por um nome, Deus por quem esperamos. En attendant
Godot!
Ali, no escuro da noite, junto do mar japonês, supliquei-lhe que me
fizesse saber, por algum sinal autêntico, que vivia em alguma parte, apenas
para dizer-me que existia. Não fez sinal algum. Contudo o silêncio não é
definitivo. Pode ser apenas definição. Ele está lá, eu estou aqui. Ainda não
temos o mesmo comprimento de onda. Isto é fé? Não me atrevo a dar-lhe
este nome. Sou familiar com a ciência. Há duas escolas sobre a questão.
Uma consiste em crer que o impossível é um absoluto a menos e até que se
prove que é possível. A outra, em crer que o possível é um absoluto a menos
e até que se prove que é impossível. Eu pertenço a esta última escola. Por
conseguinte todas as coisas são possíveis até que se prove que são
impossíveis — e mesmo o impossível pode ser assim, como agora.
Dessa maneira minha vida continuava a ser vivida em dois planos
separados, um durante o dia, o outro durante a noite; um sobre a Terra, o
outro em busca de uma habitação que mãos não construíram.
As chuvas pareciam cair interminavelmente. Jorraram sem cessar
durante três dias. As montanhas estavam ocultas pela chuva e o mar rugia
contra as pedras. Olhávamos, alarmados, uns para os outros. E se isso
continuasse?
— Pensei tê-la ouvido dizer que a estação das chuvas é em junho e nós
estamos em setembro, observou-me o americano, reprovadoramente.
Eu própria estava um tanto espantada com o dilúvio e passei a questão ao
maître d'hôtel japonês, o qual confirmou que junho sempre fora a estação
das chuvas.
— Então que é isto? perguntei.
— É só chuva, redargüiu o japonês.
Ninguém pôde negar o fato e assim passamos a assuntos mais
controvertíveis. Decidimos trabalhar no argumento, planejando o programa
de cada dia, caso a chuva viesse a parar algum dia. Planejamos cena por cena
e tomada por tomada. Era necessário um trabalho criador e aprendi também
o que não sabia antes — que num filme não se conta a história em seqüência
cronológica. Filma-se todas as cenas em cada local, independentemente do
tempo em que se situam na narrativa. Assim, nos quatro primeiros dias,
ficaríamos na casa da fazenda, filmando tudo quanto se passava nela e com a
família de quatro pessoas, Pai, Mãe, Yukio e Setsu. Isto me parecia um
negócio muito confuso, mas compreendia a sua lógica.
Sentamo-nos ao redor da baixa e comprida mesa japonesa, juntamente
com o nosso cameraman, o técnico de som japonês e assistente de direção.
Sentamo-nos no chão, naturalmente, e o cameraman teve a imprudência de
escolher uma das cabeceiras da mesa baixa. Digo imprudência porque tinha
pernas compridas, muito compridas, e não podia esticá-las quando se
cansava de sentar-se sobre elas, porque eu já estava cansada e havia esticado
as pernas, cruzadas, por baixo da mesa.
Faço aqui uma pausa de um momento para discutir a questão de sentar-
se a pessoa sobre as pernas dobradas. Antes de vir ao Japão este ano, após
tão prolongada ausência, fiz todos os dias, rigorosamente, o exercício de
dobrar as pernas e sentar-me sobre os pés. Não é fácil e no princípio eu só
agüentava três minutos, chegando ao máximo de vinte minutos, o que é
insuficiente para um jantar japonês, pelo menos do tipo dos que os meus
amigos me oferecem. Estava envergonhada, mas foi o máximo que consegui.
Qual não foi minha satisfação, por conseguinte, ao descobrir que, durante os
anos de minha ausência, os japoneses haviam abandonado o costume de
permanecerem sentados sobre as pernas durante muito tempo! Ao invés
disso, sentam-se em cadeiras sempre que possível, e as crianças, muitas
delas, não se sentam absolutamente sobre suas pernas e até mesmo a minha
amiga disse francamente que não agüentava por muito tempo a postura
japonesa e achava, de qualquer maneira, que não era boa para a circulação.
Atribuía o surpreendente aumento de estatura da sua geração de jovens
adultos ao fato de não serem obrigados a sentar-se durante horas sobre as
pernas dobradas. Talvez seja esta a razão. Notei, certamente, a nova estatura
dos japoneses. Sua aparência é melhor e as pernas são mais retas.
Agora deixem-me falar do cameraman. Primeiro devo dizer que era
encantador, bondoso, temperamental e, no seu ramo, um artista. Falava
pouco inglês mas compreendia muito mais do que pensávamos. Era
obviamente devotado ao seu trabalho e queria que soubéssemos que tinha
uma devoção especial por A Grande Onda, no que acreditávamos, pois se
assim não fosse por que estaria trabalhando conosco? Era famoso e podia
facilmente ganhar a mesma coisa num trabalho mais cômodo. Mas eu estava
encantada com ele por outros motivos. Era o ser humano de aparência mais
espetacular que já vi. Muito alto e muito estreito nos pés, pernas, corpo,
braços, mãos, pescoço e especialmente rosto. Tinha um queixo comprido,
atirado para baixo e... mas não posso explicar sua anatomia. Não sei como
adquiriu essa aparência. Tudo quanto sei é que gostava dele e apreciava o
seu aspecto espetacular. Havia tanta coisa naquele seu rosto comprido que eu
o olhava e tornava a olhá-lo por cima da mesa. Era um rosto triste, pensei, e
depois achei que não era, de modo que continuei olhando para ele. E nossa
assistente japonesa formava um completo contraste, jovem mulher muito
moderna em blusa e calças compridas, os cabelos penteados em forma de
colmeia. Falava línguas estrangeiras e tinha estudado ballet na Europa.
Casara-se recentemente com o nosso principal ator jovem, o Toru crescido.
Seus contratos cinematográficos impediam-no de estar conosco até o dia
vinte e um, e assim aquela era a primeira separação do casal. Os outros
membros do elenco brincavam bastante com ela, forçando-a de hora em hora
a escrever cartões-postais para o marido, que eles próprios endereçavam, e
assim por diante. Ela deixava, com bom humor, que os outros se divertissem.
Era uma jovem calma, inteligente, eficiente e, incidentalmente, mas de
maneira importante, muito apaixonada.
Mas — ai — no próprio dia em que parou de chover e começamos a
filmar nossas primeiras cenas na casa da fazenda, nosso cameraman caiu
numa plantação de arroz. Não foi um acontecimento tão suave quanto soa,
pois ocorreu no fim de um dia de doze horas de trabalho. Eu saíra do local
um pouco mais cedo a fim de tratar de um negócio de Tóquio, pelo telefone,
e fui chamada ao hospital. Ao chegar, vi o alongado cameraman estendido
num banco do vestíbulo, esperando para ser examinado ao raio X. Temíamos
o pior, pois ele não caíra apenas na plantação de arroz ao lado da casa, mas a
plantação ficava ao pé de um muro de pedra sobre o qual passava a estrada, e
caíra não como eu supusera, sobre lama macia e altas espigas de arroz, mas
sobre as pedras no fundo da plantação. Sua estrutura podia ser melhor
definida, a qualquer momento, como uma coleção de ossos compridos e
finos frouxamente ligados por uma enrugada pele morena. Deitado no banco
parecia ter dois metros e meio de comprimento.
Declaramos nosso alarma mas ele se recusou a partilhá-lo e foi levado à
sala de raio X contra a sua vontade. Em meia hora o médico informou que
não havia ossos quebrados, apenas uma contusão. O próprio cameraman saiu
com um ar tão alegre quanto possível, com o seu curioso rosto, esperando a
nossa admiração, que não lhe negamos. Estava muito vistoso numa yukata
preta e branca, limpa, e também permitira ao médico que pusesse seu braço
direito numa tipóia, mas só até sair do hospital, pois insistiu em voltar ao
trabalho. Rodamos com ele de volta ao hotel e lhe demos numerosas ordens,
através da nossa intérprete, dizendo-lhe que teria um criado que carregaria
sua cadeira por toda parte, a fim de que se sentasse, juntamente com um
leque, um guarda-chuva, bebida gelada e frutas.
O cameraman ouviu tudo isso sem mudar de expressão e acrescentou:
— E cama também.
Rimos e a velha figura indomável sentou-se ereta no assento dianteiro.
Desejamos-lhe boa noite no seu hotel e assim terminou aquele dia.
Aqui devo consultar minhas notas, rabiscadas nas páginas do meu script,
e escritas em toda parte e em qualquer lugar, na casa da fazenda, onde quer
que a cena estivesse sendo representada.
A primeira nota diz "Pena..."
Pena?
Ah, sim, é a cena em que Toru jaz em longo estupor depois que a ressaca
golpeara, e a pequena e travessa Setsu se insinua no quarto e lhe faz cócegas
com a pena para acordá-lo- Era uma cena bonita, interrompida pela Mãe que
entra com uma cestinha de ovos, seguida pela última aquisição do nosso
elenco, um cãozinho muito inteligente. A última aquisição era, na verdade,
um pato, mas ainda não havia aparecido no cenário.
Enquanto se filmava essa cena, vi o Pai em outro canto, ensaiando sua
grande cena com Yukio. O Pai é um bom lavrador, com o rosto de um
moreno honesto. Nosso maquilador, o melhor do Japão — ou já disse isso
antes? — passava delicadamente uma esponja no rosto do Pai, enxugando-
lhe o suor da concentração. A criada pessoal da Mãe estava fazendo o
mesmo com ela, em outro canto. Foi a criada que nos fez rir. Era tão
eficiente, entrando apressada nos últimos momentos, antes que o câmara os
chamasse, a fim de corrigir um cabelo levantado na cabeça da Mãe e
acrescentar um toque de make-up no canto do olho ou na margem do lábio.
"Terminado o trabalho", dizem minhas notas, "é um espetáculo ver a
Mãe, em seu elegante quimono de seda cinzenta, seguindo seu dignificado
caminho ao longo da suja estrada, no alto do muro, sobre o campo de arroz.
É uma atriz de alguma distinção no Japão. O Pai atuou em Casa de Chá do
Luar de Agosto. Toru e Yukio são ambos crianças-estrelas. Estou orgulhosa
com a nossa família da Grande Onda".
Aquele foi o dia, lembro-me, em que o carteiro me trouxe uma carta de
um amigo japonês de Tóquio, um colega escritor, que se dera ao trabalho de
ir à biblioteca pública a fim de colher, em alguns velhos registros de família,
dados sobre ressacas. Escrevia-me que, antes de uma ressaca desabar, há um
terrível estrondo cavo proveniente do mar. Os japoneses denominam-no o
"canhão do oceano". E um dos sinais da aproximação da onda é que secam
os poços, ou transbordam, e a água fica barrenta. E os peixes, especialmente
os peixes-gato, nadam em direção à terra.
Enquanto eu lia as fascinantes páginas, ouvi o assistente de direção, um
homem, anunciar a nova cena.
— Yoi!
— Hoomba!
— Starto!
— Backo!
Os atores tomaram seus lugares e o cameraman ficou atento. Veio então
a ordem final do diretor.
— Ação!
— Schis-kani, ouvia eu dizer repetidas vezes durante as cenas e não
sabia o que significava até que um eletricista fez eco, trovejando num meio-
inglês:
— "Silêncio!"
O resultado foi um profundo silêncio. E fiquei espantada com a
simplicidade do mecanismo. O microfone era uma coisa amarrada numa
bolsa de algodão e pendurada na ponta de um bambu que estava sempre
espetando alguém, como minhas próprias costelas podiam testemunhar,
porém funcionava bastante bem. Quando ouvi a trilha sonora repetida,
surpreendi-me com a sua nitidez. Os efeitos eram obtidos por meios
estranhamente simples. A câmara, por exemplo, estava enrolada tão
cuidadosamente quanto um bebê numa tempestade de neve no Central Park.
Eu não podia perceber a razão, pois o tempo era muito quente e certamente
aquela coisa não estava fria. Perguntando, vim a saber que os cobertores e
colchas eram para abafar o ruído da própria câmara, a fim de que o
microfone não o captasse.
Será possível que eu tenha esquecido de contar como a cidade de Obama
celebrou nossa chegada? Ah, mas durou pouco tempo. Chegamos sem
pompa nem cerimônias, em pequenos carros japoneses, descarregamos as
bagagens e nos instalamos discretamente no hotel. Além do mais éramos
todos japoneses, excetuando o diretor americano, sua mulher e filha, e eu. E
éramos pessoas tranqüilas, pelo menos como americanos. Mas, num dia ou
dois, correu a notícia de que estávamos lá, de que eu estava lá, de que seria
feito um filme. Os pais da cidade pediram permissão para visitar-nos e a
concedemos com prazer. Chegaram trazendo grandes buquês de flores
misturadas e enormes pães-de-ló chatos, uma especialidade de Nagasaki, a
cidade próxima. Convidamo-los a tomar chá conosco, eles aceitaram com
prazer, e nos pediram, através dos intérpretes, que lhes solicitássemos tudo
quanto precisássemos.
— Se não pedirem, disseram-nos, não saberemos. Portanto, peçam!
Prometemos. Terminado o chá, curvaram-se, nós nos curvamos e assim
nos separamos.
No dia seguinte foi hasteada uma grande bandeira no muro da rua
principal, dando-nos as boas-vindas à cidade de Obama, em inglês e em
japonês. O hotel, para não ficar em inferioridade, fez uma bandeira
semelhante, fotógrafos bateram chapas nossas, segurando buquês, e
bandeiras continuaram a ser hasteadas durante toda a nossa permanência.
Com a passagem do tempo, algumas letras desmaiaram, com as chuvas
repentinas às quais estávamos sujeitos, e as bandeiras em geral adquiriram
uma aparência borrada, mas as boas-vindas, sinto-me feliz em dizê-lo,
continuaram tão cálidas como sempre.
E falando de letras recordo-me que os colegiais nipônicos são
condenados a aprender três línguas, todas japonesas. Uma é o chinês antigo,
ainda usado na escrita formal, a outra é o japonês fonético, e a terceira a
nova linguagem necessária nos tempos modernos, a qual é fonética para as
palavras inglesas incorporadas ao idioma japonês.
A despeito dessa carga lingüística, as crianças pareciam saudáveis e
felizes durante o dia inteiro, exceto o rapaz que vi a caminho de nossa aldeia
— Kitsu. Dobramos, um dia, uma esquina inesperada e topamos com uma
robusta e irada mãe espancando o menino por algum malfeito. Acabou sua
tarefa, apesar do nosso aparecimento, o menino berrando o mais alto que
podia, depois limpou as mãos, sorriu-nos jovialmente enquanto o rapaz se
retirava para um canto da parede a fim de terminar seus soluços, e ela voltou
aos seus trabalhos domésticos.
Deve-se espancar as crianças? Retardei o passo, ficando atrás dos outros,
no estreito caminho da encosta da colina, e meditei sobre a questão. Era um
velho assunto em nossa família americana, nunca dirimido. Ele dizia que
acreditava em bater nas crianças até certa idade, porque não eram abertas à
razão e funcionavam inteiramente pelo instinto e pela emoção. Eu retrucava
que detestava todo castigo físico e acreditava que não fazia bem. A diferença
entre nós era que, quando uma criança me provocava a ira, e fazendo justiça
a mim mesma devo dizer que isto não era freqüente e só me acontecia
quando ultrajantemente provocada, eu podia e me surpreendia administrando
umas rápidas e bem colocadas palmadas. Ele, apesar de sua crença no
princípio, nunca tivera coragem de bater em criança alguma, por nenhum
motivo — exceto numa ocasião momentosa, na qual me recusei a participar
do problema.
— Os meninos devem apanhar, disse-me um dia com expressão muito
grave.
Não recordo o que fizeram, mas haviam se metido, juntos, em alguma
diabrura. Postaram-se diante de nós, num belo dia de verão, os três quase da
mesma idade, todos bonitos, saudáveis e sem o menor arrependimento.
— Não posso fazer isso, disse eu.
— Então eu terei de fazê-lo, respondeu com firmeza. Para nosso espanto
recíproco, meu e dos meninos, bateu
realmente num de cada vez. Homens crescidos que são agora, ainda
rugem de riso quando recordam juntos o episódio. Eles também não se
lembram do que fizeram de errado, mas lembram-se dele com amor e
divertimento.
— Sabíamos que tínhamos de chorar, diz o segundo filho, o de alegre
senso de humor. — Devíamos ter chorado por ele, a fim de que tivesse a
satisfação de saber que estava fazendo um bom serviço, mas foi tão
engraçado que... tivemos de rir.
Recordo-me de uma espécie de ruído abafado e a simulação de
esfregarem os olhos com os nós dos dedos, mas a mim não enganaram nem
por um segundo. Eu sabia que estavam rindo, Deus os abençoe, e tentando
não fazê-lo, porque não queriam magoar os sentimentos dele.
Desconfiei que o menino japonês estava simulando algo semelhante. Ela
não lhe batera com muita força e ele estava fazendo um barulho fora de
qualquer proporção. Deixe que minha mãe se satisfaça, estaria pensando ele.
Deixe que ela creia que me está fazendo bem... Sejamos, em resumo, bons
para nossos pais!
Naquela noite, durante meu solitário jantar — era um grande siri
vermelho — surpreendi-me rindo alto, ao recordar-me. Era a primeira vez
que eu ria espontaneamente sozinha, desde quando estávamos habituados a
rir juntos, e este foi outro marco no rumo de minha nova vida.
A casa da fazenda era o nosso primeiro cenário e lá trabalhamos durante
dias, cada qual semelhante ao anterior. Este era o programa: eu acordava às
cinco e meia e descia para tomar banho. A criadinha, sempre vigilante, não
precisava ser chamada. Enquanto eu estava ausente do quarto, ela entrava,
dobrava a cama, punha a mesa e o assento almofadado, trazia meu desjejum.
Esta era, devo confessá-lo, a mais fraca refeição do dia, tolerável apenas
graças a uma fruta especial, que parecia uma maçã mas era pêra, não da
variedade americana macia, mas da enrugada espécie chinesa. Dois ovos
cozidos, grossas torradas e um estranho café, completavam o menu. Eu
expliquei que comia apenas um ovo e uma torrada, mas as explicações nada
significavam. O gerente da companhia ordenara o que me devia ser servido e
o que ele ordenara aparecia. Suponho que a criadinha dava conta das sobras
e deixei que as coisas ficassem como estavam.
Seja como for, eu tinha de estar às sete horas na porta da frente. Ali nos
juntávamos todos para trocar os chinelos pelos sapatos, no que éramos
auxiliados pelas criadinhas. Lotávamos então vários automóveis, curvando-
nos para as criadas enfileiradas, que esperavam para fazer-nos a reverência
de despedida, e assim partíamos. As ruas eram limpas, como tudo no Japão,
a poeira fixada no chão com água fresca e os paralelepípedos brilhando. As
montanhas avançando para o mar eram de um verde reluzente, o mar de um
azul faiscante sob o sol da manhã, se o dia era bonito. Rodávamos através da
cidade numa irrequieta velocidade, passando por centenas de colegiais de
roupas alegres e entrávamos no campo sobre estradas de cascalho entre
campos de arroz maduro. Há momentos em que penso que o Japão é o país
mais belo do mundo. Mas o encantamento da Ásia consiste em que cada país
é belo à sua própria maneira. Dizemos Ásia e penso em termos de um vasto
continente enxameante, os povos indiferençáveis um do outro, mas nada
pode ser mais equivocado. Os países e povos da Ásia são tão diferentes um
do outro como podem possivelmente sê-lo. Mais diferentes que os
americanos dos europeus. "Isto é seguro", como dizem meus vizinhos
holandeses da Pensilvânia. Na verdade, a índia e a China são duas grandes
civilizações-mães, e sua influência espalha-se sobre as terras e culturas
vizinhas, no entanto cada terra e cada cultura, reconhecendo a influência,
desenvolveu-se com uma graça individual e peculiar.
Chegando à casa da fazenda, onde uma platéia interessada nos esperava,
atravessávamos o portão todas as manhãs e encontrávamos tudo pronto para
nós. A família se havia levantado, desfeito as camas, comido e saído para
passar o dia fora. De quando em quando algum deles vinha ver o que
estávamos fazendo, mas a cortesia a proibia qualquer comentário, fosse o
que fosse o que pensassem. Os aldeões vizinhos, porém, vinham olhar
francamente e se revezavam.
O primeiro grupo, que vinha cedo, era sempre de colegiais. Era óbvio
que se haviam levantado cedo e paravam a caminho da escola. Mostravam-
se comportados e silenciosos, olhando sem piscar. Precisamente às oito e
quinze deixavam-nos, incorporados, para começarem as aulas às oito e meia.
O contingente seguinte era de mães, que a essa hora já tinham arrumado as
casas e providenciado o almoço. Chegavam com os bebês amarrados às
costas e não se mostravam tão polidas. Não conseguiam refrear exclamações
sussurradas e risadas abafadas com as mãos. Saíam, também precisamente,
às onze e meia a fim de tratarem de alimentar seus maridos trabalhadores.
Por volta das três horas, os avós e os velhos da aldeia, após terem comido e
tirado a sesta, vinham passar o resto da tarde conosco. Às cinco juntavam-se
a eles os pais trabalhadores, cujo dia havia terminado. Esses ficavam em
nossa companhia, fielmente, até sairmos cerca de sete horas.
Quanto a nós, começávamos a filmar tão logo as câmaras eram
instaladas, movendo-nos de um aposento ao outro, segundo as exigências da
história. O homem do make-up e seu assistente mantinham zelosa vigilância
sobre os atores, impedindo que o calor fizesse o creme e o ruge correrem em
riachos pelas suas faces e lhes manchassem os trajes — artista autêntico e
homem encantador, o nosso homem do make-up, com suas fórmulas secretas
e escovas feitas pelas suas próprias mãos. Achei uma dessas excelentes
escovas na praia, depois de terminado o trabalho, quando ele já se havia ido
para Tóquio, e a guardei como lembrança. É feita de bambu, uma fina lasca,
e provida de uma linha estreita das melhores cerdas.
Os efeitos de som, no decorrer do dia, eram o nosso veneno. O boi mugia
no momento errado, a cabra berrava demais, embora apenas para se mostrar
cordial. Quanto às galinhas, acabamos desistindo. Nada podia refreá-las e,
conseqüentemente, cacarejam felizes em todas as cenas da casa da fazenda,
onde quer que o filme seja exibido.
O trabalho do dia continuava até que chegasse o almoço do hotel,
quando o interrompíamos por uma hora. O calor, em agosto, era assustador e
nos sentávamos embaixo do grande caquizeiro, no pátio da frente, um espaço
pequeno entre a casa e o maciço portão, mas ali nos sentávamos todos,
alguns nos degraus da casa, outros em pedras e tocos e nas beiradas da
carreta. Cada almoço era servido separadamente, dentro de uma bonita
caixinha laqueada, a bandeja de cima contendo peixe e pedaços de carne
assada, vegetais e pickles, e a bandeja de baixo cheia de arroz branco.
Grandes bules de chá, com as alças envoltas em pequenas tiras de bambu,
contra o calor, completavam nossa mais que adequada refeição. Comíamos
com pauzinhos japoneses de bambu, acondicionados em papel encerado e
postos fora depois de usados, certamente os utensílios para comer mais
higiênicos do mundo.
Em vinte minutos a refeição estava terminada e durante o restante da
hora de almoço a casa da fazenda ficava quieta. Equipe e atores ficavam
estendidos sobre o tatami, como sardinhas, adormecidos. Eu achava um
canto tranqüilo atrás de uma mesinha, perto do fundo do aposento, e me
deitava olhando as montanhas erguidas para o céu. Nuvens brancas
flutuavam contra o azul e lançavam suas sombras oscilantes. Parecia um
sonho que eu estivesse ali, que estivesse vendo meu pequeno livro adquirir
vida no país onde fora concebido, meus personagens transformados agora
em criaturas japonesas vivas, representando minha história.
Aquele calor de agosto! Quão inquietas estavam as criaturas selvagens!
Em meio às vozes humanas o canto alto e ardente de uma cigarra chocava
repetidamente o nosso técnico de som. Para mim era um grito que evocava a
lembrança nostálgica dos quentes verões de minha infância, nas margens do
Rio Iã-tse. Sempre que as cigarras se punham a dar seus gritos agudos e
intermitentes, sabia-se que o verão tinha chegado ao seu ponto máximo. Daí
por diante podia-se, apenas, esperar por um dia de vento frio e até por um
tufão. O técnico de som, contudo, ficava furioso com as cigarras no pátio da
casa da fazenda. Gritava e meia dúzia de pessoas da equipe pulava sobre o
grande caquizeiro e batia em seus galhos com bambus. Durante cinco
minutos o vigoroso inseto ficava quieto, mas depois escutávamos o seu grito
serrando o ar. Desta vez os homens trepavam no caquizeiro e começavam a
sacudi-lo até que as folhas se punham a cair e os frutos verdes a tremer.
Durante meia hora, pelo menos, a cigarra se mantinha prudente, mas depois
começava de novo sua interminável canção. Éramos, porém assaltados por
outras criaturas. Um galo orgulhoso anunciava o nascimento de cada ovo
que seu harém botava. Galinhas brigavam e gritavam. No meio da multidão
curiosa um bebê chorava e tinha de ser afastado.
Um dia tivemos alguma sorte. Quando a nossa pequena Setsu saiu
correndo pelo portão da casa da fazenda, com as mangas de seu quimono
esvoaçando, surgiu por acaso a mulher mais velha do mundo, curvada sob o
peso de um monte de gravetos. Tinha um belo rosto velho, enrugado e
moreno, mas seus olhos eram tão jovens quanto a própria vida. Convidamo-
la a figurar em nosso filme, ela aceitou graciosamente e posou, endireitando-
se para a ocasião e segurando seu comprido bordão, enquanto seu velho
rosto alegre assumia uma expressão de nobreza. Nosso assistente de make-
up, com equivocado zelo, correu a arrumar as dobras de seu quimono, que se
abrira deixando um vislumbre de seus velhos seios, mas lhe gritamos que o
deixasse como estava antes, e assim aparece no filme. Vemo-la caminhando
pela estrada, curvada sob a sua carga, enquanto a pequena Setsu passa
correndo. Queríamos pagar-lhe, mas nos asseguraram que magoaríamos seus
sentimentos. O máximo que pôde ser feito com dignidade foi dar-lhe alguns
maços de cigarros, o que fizemos, e ela continuou seu caminho.
Chuva e sol alternavam-se através dos dias. Nossos atores trabalhavam
bem e se tornaram um grupo conjugado. Começamos a expressar os
personagens e vivíamos dentro da história. Lembro-me de que um dia
terminou com o episódio em que Toru é levado para casa, depois da ressaca,
quando o rapaz desperta de seu estupor, e ele pergunta onde está seu pai e
onde está sua mãe. Uma súbita compreensão emotiva invadiu
simultaneamente os atores. Eles sabiam, eles compreendiam tudo aquilo
muito bem. Lágrimas saltaram dos olhos da mãe da atriz, e eu senti um nó na
garganta, pois de súbito eles haviam retratado um momento de absoluta
realidade.
A última cena daquele dia candente foi ao ar livre, no curral. Era quase
crepúsculo, a multidão somava centenas de pessoas de todas as idades.
Formaram um anel à nossa volta, sempre quietas e respeitosas, enquanto os
atores preparavam o cenário, completo com carroça, boi, produtos da terra e
família de lavradores. Desta vez nossa família incluía o patinho e o cão de
Setsu. O pato, que no argumento é um patinho, acabou sendo um pato
enorme, o avô de todos os patos vivos, e quando Setsu lutava para conservá-
lo debaixo do braço, lembrei-me de Alice no País das Maravilhas e do
flamingo no jogo de croquet com a Duquesa. O cão, alegre, do tipo fox
terrier — embora o rabo fosse diferente, portanto não sei de que raça era —
não se pôs a cabriolar inocentemente como se esperava que fizesse, mas
insistiu em perseguir as galinhas como um louco, apavorando uma galinha
com uma grande família de pintinhos, para não mencionar uma quantidade
de frangas brancas que aparentemente nunca tinham visto um cachorro. O
pato foi levado para fora de cena por Setsu, o cão controlado e castigado, e a
cena continuou.
Nesse momento ouvi um cacarejar humano atrás de mim, enquanto o Pai
descarregava a carroça. Os cacarejos eram risadas de dois sujos lavradores
na multidão, que não se agüentavam com o divertimento que sentiam com a
maneira pouco realista com que o Pai manejava a vara e os dois cestos. Eles,
obviamente, não acreditavam que fosse um lavrador. Quanto à Mãe, quando
apareceu, foi a vez das mulheres rirem. Nenhuma delas era bonita, e a Mãe
era bonita. Assim, como podia ela ser uma esposa de um lavrador? Era um
problema. Talvez a Mãe fosse demasiado bonita. Mas pode uma mulher ser
bonita demais num filme?
A cena terminou afinal e estávamos nos preparando para a próxima,
correndo contra a escuridão que cai tão depressa neste clima quente, quando
de súbito ouvi latidos altos como de um cachorro enorme e velho. Não pude
imaginar o que fosse. Não havia cão indígena na fazenda. Dirigi-me ao
estábulo para investigar e vi um porco. Não podia ser porco, pois latia como
cão. Mas era porco, um enorme porco velho de ar brigão. Perguntei, por
meio de um intérprete, por que motivo o porco latia como cão, se não era
cão. A resposta foi simples:
— Não sabemos por que porco late como cão.
Isto foi tudo. O porco continua a latir, a noite caiu, o assistente do
cameraman anunciou que não podíamos terminar a cena seguinte porque a
luz, na montanha, estava fenecendo. Reunimo-nos e partimos. O porco parou
de latir, a multidão mergulhou na noite e nós também mergulhamos. Outro
dia havia passado. Amanhã era domingo e nós iríamos descansar, embora
tivéssemos sido avisados que não deveríamos esperar mais domingos de
folga. Já bastava para aquele dia — pensei apenas no banho e na cama.
Banho japonês e cama japonesa.
Levantou-se durante a noite tamanho vento que pensei que estivéssemos
sendo açoitados por um tufão. O sonho era uma reminiscência da infância,
suponho eu, ou de uma vida anterior na ilha, ou talvez apenas a própria A
Grande Onda, criado pelo meu próprio espírito. Talvez não fosse mais que a
conversa da noite anterior, com a mulher do hoteleiro. Esta hospedaria,
dissera-me ela, havia sido freqüentemente açoitada pelos tufões, o derradeiro
fora apenas no último ano, quando o mar invadiu aquela própria sala em que
eu estava instalada. Seja como for, acordei, ouvindo o vento, e lembrei-me
de uma tarde de agosto, há muito tempo. Eu me achava na encosta de uma
montanha voltada para o mar, ao sul do Japão. Um tufão se estava formando
em alguma parte, no horizonte. Nós havíamos sido advertidos e, de acordo
com o bom senso, devíamos estar em segurança dentro de uma casa, com as
janelas pregadas com sarrafos e as portas protegidas com barras. Ninguém
sabe o que um tufão pode fazer. É incontrolável e, por conseguinte,
imprevisível. É a libertação de uma força insensata e sua única tarefa é a
destruição.
Mas eu vira muitos tufões, na minha infância asiática, e tive o desejo de
ver mais um, naquele dia. Um tufão é muito parecido com um furacão, mas
os furacões que eu tinha visto em Nova Inglaterra e na Pensilvânia não eram
tufões. O trópico ou a proximidade do trópico fornece uma força vulcânica
ao vento e à chuva. Nós vivíamos num clima subtropical, a trezentos
quilômetros do Oceano Pacífico, mas até hoje me lembro da ordem severa de
meu pai e da fisionomia ansiosa de minha mãe:
— Vem,vindo um tufão! Ponha as trancas nas janelas e passe o ferrolho
na porta!
Sentamo-nos esperando e ouvindo, enquanto o céu escurecia e o
primeiro rugido do vento aumentou para um rosnar raivoso. Árvores se
quebrariam, muros desmoronariam e a própria casa tremeria, quando
chegasse o ataque, mas nada podíamos fazer senão esperar e ouvir. Quando
terminou e o silêncio caiu afinal, abrimos as portas e as janelas. O que vimos
era sempre o mesmo — destruição por toda parte.
— Estúpido, dizia minha mãe. — Tão estúpido!
Foi a lembrança de seu invariável comentário que me deu a idéia de
fazer uma história com o tufão e me levara à encosta da montanha, naquela
manhã há tanto passada, numa visita anterior ao Japão. O rádio havia
anunciado um tufão.
Chegara logo depois de uma hora, precedido por um estranho e distante
ruído sobre o horizonte ascendente. Eu me abrigara debaixo de uma rocha,
no que era uma espécie de caverna, tendo-me certificado de que essa rocha
fazia parte da coluna da montanha e não era urna pedra traiçoeira que a
tempestade fizesse cair sobre mim, esmagando-se. Certificara-me, também,
de que me achava num ponto bastante elevado, na montanha, onde o mar não
poderia alcançar-me. E tomara o cuidado de verificar que não havia árvores
por perto, que caíssem sobre mim. Tudo considerado, estava tão segura
quanto uma pessoa decidida a correr um risco podia estar.
Lá fiquei eu sentada, esperando, mas desta vez sem família ou casa que
me abrigassem. Foi uma experiência profunda, terrificante e compensadora,
e me proporcionou a cena que eu desejava para o começo da história.
Deixem-me descrevê-la da melhor maneira que posso. O tufão veio do mar,
primeiro, como um profundo rugido cavo. Então apareceu como uma
monstruosa nuvem negra. A nuvem parecia uma coisa viva, modelando-se
desta e daquela maneira, rasgada por ventos conflitantes. Embora podendo
esticar-se para a direita e para a esquerda, estendia-se para o alto e se
projetava em direção a este e oeste. O dia adquiriu a escuridão do crepúsculo
e o terrível rugido veio correndo em direção a mim, provindo das
profundezas. Acocorei-me atrás da minha rocha e esperei.
A princípio, lembro-me, não havia chuva, apenas os ventos selvagens e o
mar agitado. Uma hora antes o mar estivera calmo e azul. Agora estava
negro e tarjado de cristas de espuma branca. Quando a chuva chegou, foi de
repente, como se as nuvens se tivessem aberto e a derramado. Uma cortina
de chuva caiu entre a montanha e o mar, uma sólida folha de água, a um
metro de distância de mim. O capim e as moitas da encosta da montanha
achatavam-se sob o vento e a chuva. Eu estava cercada da loucura, da
irracionalidade de uma energia incontrolada e indisciplinada. Nada disto
fazia sentido. Era pior do que inútil — era a natureza destruindo sua própria
criação, seu próprio ser. Criar mediante o longo processo de crescimento e
depois destruir num acesso de emoção selvagem — não era isto loucura, não
era isto irracional? Eu tinha o começo da minha história.
A tempestade esgotou-se afinal. Os ventos se dispersaram, a chuva
reduziu-se a uma garoa e a uma neblina, a nuvem abriu-se ao meio e o sol
brilhou através dela. Saí de meu abrigo e contemplei as ruínas que tinham
ficado. Árvores haviam caído nas partes mais baixas, frestas tinham sido
abertas na terra entre as rochas, o próprio capim e os arbustos jaziam
achatados e exaustos. Eu podia apenas imaginar a devastação que se abatera
sobre as aldeias ao longo da costa, os barcos de pesca quebrados e atirados
ao mar, casas esmagadas, quebra-mares rompidos, diques desmoronados.
Era, como minha mãe dizia, tudo muito estúpido. Era inútil.
Eu vira a mesma devastação ocorrer na vida humana, em seres humanos,
em termos de emoções humanas.
Jazia ali, em minha cama japonesa, anos depois, e meditava na similitude
da energia do tufão e da energia da emoção humana. Incontrolada, destrói.
Mas deve a emoção ser destrutiva? E se não, quando é valiosa e por quê?
Como podemos usar a emoção como energia útil, como energia necessária à
vida? Quais as utilidades da emoção e quais as disciplinas necessárias ao seu
uso útil? Estas eram as perguntas que eu ansiava por responder, primeiro
para mim mesma, depois para os outros. Coloquei-me em primeiro lugar
porque sou a lente através da qual vejo os outros.
E, como sempre, quando não posso responder minhas próprias
perguntas, ponho o espírito e o coração à procura dele. Ele não podia
responder, não sempre, mas tinha o talento de orientar a busca por perguntas
próprias, engenhosas e ampliadoras. A sua não era uma mente profunda. Não
posso fingir que ele sempre me podia acompanhar na busca de conclusões
que vinham uma a urna, através das quais a pessoa continua, não como
absolutos, mas como passos em direção à verdade. A própria verdade não é,
naturalmente, absoluta. Talvez, de fato, impregne o processo, existindo em
tudo e em toda parte, um todo do qual, em qualquer etapa só vemos uma
parte. Ele não possuía a mente conceptual nem tinha a disciplina do erudito,
na qual eu fora treinada. Estava entendido que havia muita coisa que não
podíamos partilhar. Nossas naturezas eram essencialmente diferentes.
Nossos prazeres, mesmo na música e literatura, eram desiguais. Ambos
amávamos a música, por exemplo, porém eu me sinto mais feliz quando
estou trabalhando numa sonata de Beethoven ou em Chopin. Ele gostava de
música leve, da qual eu também gosto, mas só como caviar. Por outro lado,
sou profundamente interessada em jazz, não tanto musicalmente como
psicologicamente, e ele não tinha interesse em jazz sob nenhum aspecto. Ele
também não tinha interesse pela ciência, embora nutrisse um interesse
acadêmico pela tecnologia. Como era um ateu decidido, podia aceitar mas
não partilhar meu interminável envolvimento com os físicos teóricos e a
tremenda significação de suas descobertas recentes.
O que ele tinha era uma brilhante mente intuitiva e, o que era mais raro,
a capacidade de apreciar o que não podia compreender. Ele estimulava, por
meio de perguntas engenhosas, nunca parecia conduzir, embora não
acompanhasse, descobria sem modelar. Proporcionava uma atmosfera na
qual eu podia pensar mais claramente, criar mais espontaneamente do que
poderia ter feito de outro modo. Podia ouvir-me pensar em voz alta em torno
ou sobre um assunto que me interessava, permitindo-me divagar livremente
como se estivesse só, suas perguntas nunca sendo marcos orientadores mas
convites a tomar caminhos que eu sozinha talvez não tivesse notado.
Compreendo que agora — ai — não tenho ninguém com quem
conversar. Silêncio, minha alma!
O programa demandava trabalho ao ar livre; uma cena de piquenique
com a pequena Setsu, uma cena de colheita, depois campo e semeadura, mas
estava chovendo de novo. Continuamos, não obstante, até um ponto em que
se podia ir caminhando, um lugar encantador com uma encosta terraçada e
no fundo um velho e cinzento cemitério japonês. Era sobre um desses
túmulos de pedra que Setsu tinha de esperar, com a comida, pelo Pai e
Yukio, com aqueles maus e desastrosos resultados que não devo contar aqui.
O contraste entre os velhos túmulos cobertos de musgo e a nossa bonita
menina era o contraste entre a vida e a morte, e eu estava ansiosa por ver a
cena. Esperamos nos automóveis enquanto a chuva caía. Uma bondosa
família de lavradores convidou-nos a que nos abrigássemos em sua
confortável casa e aceitamos, gratos. A mulher preparou-nos chá e
discutimos o que fazer. Aqui, montanhas e mar combinavam-se para fazer do
tempo um mistério ainda mais incerto do que na maior parte do mundo. O
céu tinha a aparência de que continuaria a esvaziar-se por mais quarenta
dias. Decidimos ir à casa da fazenda e filmar uma cena de chuva,
apropriadamente, e um interior de cozinha. O diretor assistente iria a Kitsu,
nossa aldeia de pescadores, a fim de preparar a cena em que os botes saem
na chuva para a pesca do tubarão.
A manhã, porém, foi um desapontamento. O dilúvio continuava. O pátio
da fazenda transformou-se num lago de lama e os beirais de sapé pingavam
tristemente. Dentro da casa a equipe trabalhava sem entusiasmo. O
cameraman passou maus momentos até começar o trabalho, o diretor ficou
impaciente e eu entediada. A primeira cena foi montada por diversas vezes e
o câmara cometia repetidamente algum monstruoso engano. Era meio-dia
quando ficamos realmente prontos para filmar a cena de chuva e então o sol
apareceu, fraco, mas suficiente para nos obrigar a preparar uma chuva
artificial. E assim, num dia chuvoso, os homens treparam no teto da casa e
puseram em funcionamento a melhor máquina de chuva do mundo, isto é,
um bambu oco, cheio de furos, com uma mangueira de borracha ligada numa
das extremidades e a outra vedada. Um belo jorro de chuva artificial
começou a pingar dos beirais no lago da lama feito pela verdadeira chuva.
Fizemos afinal uma tomada e chegou a hora do almoço. O dia era tão triste
que nem mesmo o almoço foi bom.
A cena da cozinha e a da praia chuvosa foram das melhores que
filmamos. A cena da cozinha era o terremoto. Nossa mãe lavradora, cheia de
confusão, corria de um lado para o outro, tentando salvar sua louça. Estava
tão desolada que esqueceu de pôr no chão uma cesta de ovos e estes se
quebraram, aumentando a confusão. Nada há, de fato, mais confuso que uma
cesta de ovos quebrados, especialmente quando uma mulher se esquece de
pô-los no chão antes de correr pela sua cozinha tentando salvar seus pratos
durante um terremoto, e ainda vê por cima que a lâmpada de azeite está
ardendo e pode atear fogo na casa. Foi uma cena e tanto. Nossa mãe, agindo
com realismo, cortou o pé duas vezes nos vidros quebrados, dando assim
oportunidade à nossa enfermeira, que éramos obrigados a ter sempre
conosco, de salvar a vida de alguém. Ela avançou com ar de importância e
aplicou uma fita adesiva no pé da Mãe. Ficamos impressionados com tal
eficiência e nos alegramos um pouco.
Pura teimosia me impedia de desistir e tomar meu lamacento caminho de
volta ao hotel, e eu estava contente. Com aquela inexplicável reviravolta que
parece inevitável quando acontece o pior, o trabalho da tarde tornou-se de
súbito excitante. Foram dispensados os ateres da casa da fazenda pelo resto
do dia e chamada a família de pescadores para as cenas de praia. Terminada
a cena de chuva, o Sol se escondeu e começou de novo o dilúvio. Tornou-se
aparente, agora, que o diretor americano tinha a intenção de dispensar-me
também, com o pretexto da tempestade, chuva, ondas violentas e o mais.
Quando me neguei a ser dispensada ele fez vagas sugestões de que eu
poderia quebrar uma perna ou qualquer outra coisa no íngreme e estreito
caminho que descia a Kitsu, e ele já estava cheio de quedas. Recusei essa
argumentação ridícula, pois minhas duas casas favoritas ficam na zona rural
da Pensilvânia e nas montanhas de Vermont, e eu ando prodigiosamente por
toda parte, trepo em tudo como uma cabra e nunca escorreguei ou caí, a
menos que alguém me tivesse deixado cair do colo, quando era bebê, do que
aliás não me lembro. Convidei esse diretor a não se preocupar comigo,
limitando-se a voltarmos ao hotel, se eu estava num dos automóveis. E assim
rumamos para Kitsu.
Nunca deixarei de ser grata por ter ido, pois a experiência me deu... bem,
aqui está:
Desci pelo estreito e sinuoso caminho do penhasco sem acidente, e desci
à praia, fingindo, ostensiva e indiscretamente, que não me achava lá. Chovia
gloriosamente, a água caía a cântaros, o que adoro. Eu estava totalmente
protegida pela minha capa e chapéu, bem como por vários guarda-chuvas
mantidos sobre minha cabeça por bondosos aldeões. Minha única queixa no
Japão é que o povo é tão bondoso que sempre descubro um guarda-chuva
sobre minha cabeça, um leque na minha mão e uma almofada onde me sento.
Enquanto o diretor moldava a sua cena e espreitava pela câmara, eu me
recostei no alto muro fronteiro à casa de Toru e olhei para o mar e o céu
cinzentos. Nosso ator, o pai de Toru, era um pescador e, ao receber o sinal,
começou a soprar numa grande concha, convocando os botes.
— Corte! gritou o diretor.
Cortamos. A aldeia inteira estava na praia, debaixo de enormes guarda-
chuvas, para observar o que se passava e algum menino descuidado
atravessara correndo a cena em busca de um lugar melhor no outro lado. O
principal da aldeia, que era nosso aliado remunerado, proibira qualquer ruído
ou movimento e o incidente provocou-lhe um ótimo paroxismo de fúria. Não
falo nem compreendo japonês, mas podia perceber que eles estavam
chamando os seus concidadãos de bando de cabeças duras, estava querendo
mostrar ao mundo que espécie de idiotas eram, ignorando que, quando se
atravessa uma cena, estraga-se o filme que estava sendo feito por aqueles
americanos, na aldeia de Kitsu, pela primeira vez na história, um lugar
desconhecido até agora, como terra de crianças e de tolos? Todos
começaram a rir encabulados e recuaram cerca de seis polegadas. Súbito,
outro menino, que não havia escutado, passou correndo por entre as pernas
terrivelmente arqueadas e cabeludas do próprio principal, não se lembrando
de fechar antes o seu guarda-chuva. O resultado foi desastroso, o guarda-
chuva ficou inutilizado.
Faço aqui uma pausa de um momento para recordar afetuosamente
aquele principal da aldeia de Kitsu. Tinha a cabeça redonda e raspada, rosto
áspero e radiante, pernas tortas como as de um caranguejo, uma vontade de
ferro e o coração próprio de um rei. Era um ditador, naturalmente, e
governava seu povo de maneira absoluta. Todas as noites lhes dizia o que
podiam e o que não deviam fazer no dia seguinte. Assim, depois do
repreensível comportamento dos meninos, os aldeões foram proibidos de
olhar para nós ou de ficarem por perto. Tinham de continuar suas tarefas
habituais como se não estivéssemos lá, exceto, como favor especial, durante
uma hora, entre as cinco e as seis, mas não podiam ficar a menos de quinze
metros de distância para olhar-nos, e em completo silêncio. Seu entusiasmo
pelo filme era comovedor, pois estava convencido de que a história era a seu
respeito. Como Toru, toda a sua família tinha sido varrida por uma ressaca,
quando ele era apenas um menino.
Postada ali, com as costas contra o úmido dique, eu observava o
cameraman tomar uma adorável cena dos pescadores carregando suas redes,
correndo para o mar e impelindo seus barcos de pesca por entre as ondas e a
chuva. O câmara correu então para o grande quebra-mar, que formava uma
plataforma ideal para a filmagem dos barcos rumando para o alto mar. Os
aldeões correram atrás do câmara e eu fui engolida pela multidão. Quase fui
empurrada do quebra-mar abaixo, para dentro d'água, o que daria tanta razão
ao diretor que eu possivelmente teria de tomar o primeiro avião para casa a
fim de escapar à ira de Deus. Mas felizmente fui salva por um robusto aldeão
que respirou càlidamente no meu rosto — tinha mau hálito, ai, e da pior
espécie, uma pena, pois era um homem muito gentil. Disse-me, respirando
forte, que me tinha visto na televisão de Tóquio, pediu permissão para
manter seu guarda-chuva sobre minha cabeça e... por que não havia alguém
cuidando de uma pessoa tão importante como eu? Respondi que ninguém
cuidava de mim quando estávamos fazendo filmes, e obrigada, não precisava
de guarda-chuva porque tinha chapéu impermeável, e assim escapei dele,
sentando-me no cais de pedra e contemplando a impecável beleza dos barcos
de pesca japoneses navegando para o mar alto.
Deixo de lado toda a prosaica rotina, o fato de os terem mandado voltar
para partirem de novo porque o cameraman estava com a câmara travada e
não pôde filmar e então desconfiou que havia algo de errado com a câmara,
tendo o americano observado amargamente que a única coisa errada era o
cameraman, e outras conversas miúdas desse tipo. Deixem-me apenas falar
de mim, sentada na chuva, aquela chuva oblíqua que Hokusai tanto gostava
de retratar em suas gravuras. Cercada pelas verdes colinas terraçadas, as
montanhas mais altas envoltas em nuvens e olhando sobre o mar infinito,
contemplei o regresso dos barcos e os vi contornarem o extremo do quebra-
mar. Como eram belos, como eram soberbos em forma, velocidade e graça!
Havia três homens em cada bote, todos remando, não com a agitação dos
remadores ocidentais, mas suavemente como um peixe nada, pois esses
remadores nunca levantavam seus remos acima da água. Estudei o ritmo
daqueles remos. Era em terças contraponteadas, nenhum remo movendo-se
no mesmo instante que o outro, mas todo o movimento fluindo
harmonicamente. Súbito reconheci o ritmo — era o das nadadeiras de um
peixe. Os barcos moviam-se através do mar como um peixe movimenta suas
barbatanas. Senti a profunda satisfação da conclusão certa. Era exatamente
isso e eu me mostrara lenta em compreendê-lo só nesta etapa tardia da minha
vida, embora houvesse observado esses barcos desde quando era menina,
passando muitos verões no Japão.
Os botes fizeram-se de novo ao mar, numa longa fila. Viraram para a
esquerda, acompanhando a curva da baía até serem ocultos por uma ponta
rochosa, sobre a qual se erguia, por acaso, a figura de um homem, solitário e
desconhecido, fitando o horizonte. Que belo! É suficiente para o dia.
Agradeço a Deus, e possa eu ver o belo, toda a minha vida, com a mesma
clareza!
Regressei em grato silêncio, lembro-me, tomei meu banho e jantei. O
banheiro era grande e duas pequenas janelas de vidro opaco davam para a
piscina lá fora. Podia ouvir os nadadores gritando e rindo, enquanto eu me
banhava. Teto e paredes de ladrilhos brancos, a banheira quadrada de
cimento ladrilhado, com um metro e vinte de comprimento e igual
profundidade, um dos extremos erguido para formar um assento e manter,
assim, minha cabeça acima da água. Estava sempre cheia de água mineral
quente, suave à pele. Mas por que falo da banheira? Mas eu sabia que era
melhor não entrar na banheira sem uma preparação adequada, que consistia
em encher de água uma pequena tina de madeira, sentar-me num pequeno
tamborete de bambu no centro do chão ladrilhado, com a tina diante de mim,
ensaboar-me inteiramente e derramar água sobre o corpo. Só depois disso
estava preparada para a banheira grande. Quando saía dela, haviam
desaparecido todos os pontos doloridos e toques de fadiga. Sentia-me
restabelecida e renovada.
Sentei-me, naquela noite, junto da janela, recordo-me, vestida numa
fresca yukata, e ouvi os nadadores, na piscina lá fora, mergulhando, gritando
e rindo. Passara aquele dia mergulhada no belo e agora me parecia
insuportável não poder falar-lhe a esse respeito. Talvez ele soubesse... mas
se não podia comunicar-me seu conhecimento, como seria eu confortada? Eu
me havia conduzido tão bem, pensei, e de repente compreendi que não.
— Isso não melhora, tinha-me advertido uma viúva amiga. — Isso fica
pior.
Que significa pior? Como podia ficar pior do que isto? Quis de repente
afastar toda lembrança do belo e contudo sou das que não podem viver sem
beleza — e não me permito chorar. Pensei que estivesse indo bem. Achava
que ele devia sentir-se orgulhoso de mim, caso me estivesse observando de
algum lugar distante. Agora eu precisava novamente de socorro,
urgentemente. Onde encontrá-lo? A beleza me havia desmanchado, tornara-
me fraca e saudosa. Os estranhos deviam ser de novo o meu refúgio. Tirei a
yukata, enfiei o vestido e saí a perambular novamente pelas ruas, sozinha.
Não longe da porta dos fundos do hotel, numa estreita rua pavimentada,
descobri o cinema. Era o único da cidade, e muito bom, com um palco
espaçoso, os assentos confortáveis. O proprietário, como cortesia, avisara-
nos que não precisaríamos pagar entrada enquanto estivéssemos em Obama.
Com a passagem dos dias, adquiri o hábito de enveredar pela rua no frescor
da noite e escolher uma poltrona ao lado de uma coluna laqueada de
vermelho. Ao meu redor estava a multidão japonesa, de homens em sua
maioria, pois não havia bares em Obama e talvez aquele fosse seu único
refúgio de crianças choronas e esposas sobrecarregadas. Havia, é certo, três
velhas geishas na cidade, porém eram mais ou menos honorárias e se haviam
tornado respeitáveis membros da comunidade, agora que se tinham
aposentado do negócio ativo. Não podiam, certamente, ser consideradas
fontes de distração para homens cansados.
Os filmes eram reveladores. Receio que as películas mais suaves e mais
artísticas, feitas no Japão, são as enviadas ao estrangeiro para consumo
externo. O material autêntico é conservado em casa e especialmente para
áreas remotas, das quais Obama era, sem dúvida, uma. As emoções, na tela,
eram violentas, primitivas, repetidas e para mim altamente divertidas. Tudo
era supercolorido, tanto literal quanto simbolicamente. Os vermelhos eram
da cor do sangue, os verdes venenosos, os azuis sulfurosos. Igualmente
extremista era a ação. Nunca bastava um só estupro num filme. Vi, através
das noites, a mesma pequena ser estuprada duas e três vezes por um homem
ou por vários homens. O tiroteio, obviamente copiado dos nossos selvagens
westerns, era muito mais selvagem. Todos atiravam em todos até que restava
só um homem que, por sua vez, atirava em si mesmo. Cheguei à conclusão
de que seria uma boa diversão noturna quando todas as mulheres fossem
violentadas e todos os homens mortos. A platéia dava então um suspiro de
felicidade e se levantava num estado de sonho para voltar às suas mulheres e
crianças. No entanto aqueles mesmos homens eram sempre delicadamente
corteses com os estrangeiros e gentilmente polidos um com o outro. A
natureza nipônica não é tão complexa quanto simplesmente contraditória.
Refletindo sobre as emoções cruas, eu observava sem participar. Parecia-
me que o ciúme era a paixão predominante, com a violentação e o
assassinato como resultado inevitável. Eu riria disso, mas recordo agora um
incidente ocorrido em minha própria casa e conhecido como o "Caso do
Prato de Madeira".
Fôramos à Escandinávia, certo ano, ele e eu, numa viagem combinada de
prazer e negócios, e paramos em Copenhagen para visitar alguns amigos. Ao
jantar, em nossa primeira noite, admirei alguns belos pratos de madeira e
exprimi o desejo de comprar uma dúzia para a nossa casa da Pensilvânia. E
assim fiz, na manhã seguinte, remetendo-os diretamente para casa. Quando
regressamos, os doze pratos de madeira já se achavam lá, desembrulhados e
esperando. Pareciam ainda mais bonitos do que eu me lembrava e os usamos
em nosso primeiro café. As crianças se haviam levantado mais cedo naquela
manhã e tinham tomado café com a sua babá, pois chegáramos tarde na noite
anterior. Estávamos só os dois, portanto, ele e eu.
Durante anos, depois desse café,, minha governanta e outras pessoas
insistiam em perguntar-me por que só havia onze pratos de madeira e
durante anos eu dei respostas vagas. Onze pratos? Tinham certeza de que só
havia onze pratos? Eu mesma precisava contá-los... et cetera.
A verdade é que eu sabia que só havia onze pratos. Quando ele e eu
começamos a tomar café naquela manhã havia doze, mas quando
terminamos havia só onze. Eis como aconteceu — e começo por dizer que é
maravilhoso e, pela graça de Deus, uma falta da pessoa amada não constitui
impedimento para o verdadeiro amor. Reconheço assim, que essa foi a sua
única falta... ou quase a única, a não ser que, como já disse, ele não podia
bater um prego sem deixar uma marca azul e preta no polegar, de modo que
seguiu sensatamente meu conselho e desistiu totalmente dos martelos. Sua
única falta, portanto, era o ciúme! A princípio isto me fazia rir, pois jamais
compreendi o ciúme. Se ele, por exemplo, se apaixonasse por outra pessoa
que não eu, ou simplesmente se sentisse atraído temporariamente, não me
posso imaginar com ciúmes. Se o amado pode encontrar alguém melhor que
a que já possui, como se pode ter a coragem de privá-lo dessa alegria?
Quanto à atração temporária... bem, a pessoa sempre pode pensar em alguma
outra coisa enquanto a história dura e há muitos interesses agradáveis para os
quais a vida só nos proporciona muito pouco tempo. A música pode encher
as vinte e quatro horas do dia, e também a escultura e a jardinagem,
especialmente de rosas e camélias — e também ler, escrever, melhorar o
aspecto da casa, caminhar pelos bosques, guiar automóvel, voar, nadar,
velejar e, acima de tudo, conversar com pessoas interessantes.
Ai, era esta última ocupação que causava o conflito. Não posso resistir às
pessoas interessantes e algumas destas são homens, embora para mim o
ponto importante não é que sejam homens ou mulheres. Um bom cérebro é
igualmente fascinante quer seja macho ou fêmea a caixa craniana que o
contém. Mas não para ele. Ele, o mais calmo, o mais frio e o mais sábio dos
homens, podia mostrar-se absurdamente ciumento se o cérebro que me atraía
fosse contido pelo crânio de um homem. Digo absurdo porque era assim que
me parecia a princípio. Eu não tinha intenção de limitar a conversação às
mulheres e assim o disse. Fiz uma pilhéria com a história toda, mas ele não
riu. Isto me surpreendeu e depois me aborreceu, mas escondi o
aborrecimento tão graciosamente quanto pude.
Durante nossa viagem pela Europa ele se mostrara melhor que de
costume e eu conversara com muitas pessoas interessantes sem pensar nas
conseqüências. Naquela manhã particular, em casa, conversávamos enquanto
comíamos, ríamos sobre certos fatos passados e nos divertíamos como de
hábito. Era uma adorável manhã, o sol brilhava sobre a mesa do café, a jarra
de rosas difundia sua fragrância, e saboreávamos os ovos e o toicinho de
nossa própria fazenda. Eu havia acabado de louvar com admiração o efeito
produzido pelo toicinho e pelos ovos em nossos pratos chineses azuis, sob os
quais estavam os pratos de madeira que tínhamos comprado em
Copenhagen, quando aquele homem querido e habitualmente previsível
olhou-me do outro lado da mesa e parou de rir. Eu o fitei, surpreendida, e vi
que seus celestiais olhos azuis estavam começando a ficar verdes.
— Que há de errado? exclamei.
— Esses pratos, tornou ele. — Lembram-me aquele dia, em
Copenhagen.
— Mas por que... comecei e fui interrompida. Sua voz era fria como aço.
— A maneira pela qual você" falava a... a maneira pela qual você sorriu
de...
Agora fui eu que o interrompi, mas não com palavras. Estava furiosa
demais para isso. Não sou mulher colérica, nem querelante, nem discutidora.
Os repórteres me chamam de "fala macia", creio. Têm razão. Falo macio e
até mesmo gentilmente, de uma maneira um tanto rude. Fui, também,
exercitada na tradição confuciana, segundo a qual uma pessoa superior
nunca fala ou age colérica mente. Naquela manhã, porém, esqueci tudo sobre
Confúcio e as pessoas superiores. Na verdade não falei colericamente porque
estava demasiado zangada para falar. Fiquei muda e cega de raiva e
obedecendo puramente ao instinto levantei o prato de madeira com o prato
chinês azul contendo o toicinho e os ovos e o espatifei no chão. A destruição
foi total, pois o chão de nossa sala de jantar era de ladrilhos. Depois saí de
casa, atravessei o prado e entrei no bosque. Lá fiquei sentada num tronco,
junto do riacho. Ali permaneci sentada durante três horas e pensei na minha
vida inteira, examinei meu casamento, pesei as vantagens e desvantagens de
estar apaixonada. A essa altura a raiva desaparecera por completo, pude rir e
me achava apta a continuar vivendo. Voltei para casa retemperada e faminta,
pois não havia tomado o café, antes do acesso de cólera. Encontrei-o sentado
soturnamente à sua escrivaninha, tentando trabalhar, e pude perceber de
modo bastante claro que ele se sentia exausto por não ter ido à minha
procura. Atiramo-nos um nos braços do outro, ele balbuciando algo sobre
perdão, mas eu não o deixei falar. Quando estávamos novamente calmos, ele
disse com uma humildade que quase me partiu o coração, pois a humildade
nunca fizera parte da sua natureza:
— Vou escrever a...
— Não mencione seu nome, interrompi com simpatia.
— Mas não devo encomendar outro prato de madeira? perguntou, ainda
humilde.
— Não, tornei eu. — Fiquemos para sempre com onze pratos de
madeira. Porque se você esquecer alguma vez, eu contarei os pratos em voz
alta, para você ouvir — um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove,
dez... onze!
O fim desta história é que vivemos felizes depois e eu nunca tive de
contar novamente os pratos, nem uma vez sequer. E continuei a manter todas
conversações interessantes em toda parte do mundo e com qualquer um.
Um dia perfeito foi aquele em que mudamos o nosso cenário para a
mansão que era a casa do Velho Cavalheiro. Em determinado momento após
a meia-noite, acordei para uma atmosfera nova. O calor pesado do vento da
terra foi subitamente alterado por um vento oeste vindo do mar. O ar estava
fresco e claro, prenunciando sol pela manhã. Para uma manhã assim foi que
acordamos. As montanhas estavam livres de neblina, o Sol brilhava, o
mundo era novo. Entramos nos carros que nos esperavam, com absoluta
pontualidade, e rumamos para a casa do Velho Cavalheiro, ao longo dos
penhascos. Longe, abaixo de nós, quando fizemos a grande curva, barcos de
pesca recolhiam as redes, um círculo de pontos brancos juntando-se mais e
mais. Eu disse a grande curva, pois a estrada parecia sempre projetar-se dos
penhascos. No ponto exato da curva havia um altar e sobre ele um pequeno
deus de pedra, advertência aos motoristas descuidados, alguém a quem rogar
e proteger. Passava por ele todas as manhãs e, se não estava escuro, todas as
tardes também.
A casa do Velho Cavalheiro ficava perto da cidade de Issahaya, pequena
e movimentada, muito limpa como são todas as cidades japonesas, e com
muitas lojas de aparência próspera. Havia diversas lojas de cerâmica, pois os
famosos vasos de Arita eram feitos nas proximidades, mas nem a cidade nem
as lojas atraíam nossa atenção naquele momento. Logo adiante estava a casa,
com os seus tetos de telha cobertos de orvalho e brilhando ao sol da manhã.
Era uma casa majestosa, cercada por um muro, o portão de entrada
imponente, duas grandes portas de madeira com ferrolhos e dobradiças de
ferro, à direita um pequeno portão que mal dava passagem a uma pessoa.
Os portões estavam abertos, pois nossa equipe já havia chegado. Quando
entramos, os móveis ocidentais tinham sido retirados, ficando apenas os
belos objetos japoneses antigos, prontos para o nosso filme. O dono estava
em casa naquele dia — homem robusto num quimono escuro. Sua esposa
estava com ele e nos cumprimentaram bondosa e càlidamente. Suas duas
filhas também se encontravam lá, uma na casa dos vinte anos, a outra com
um pouco menos. Elas nos saudaram também com ardor e contentamento.
Não obstante, fiquei a imaginar se a família teria compreendido o que
estava para acontecer. Nossa espantosamente eficiente equipe havia
simplesmente entrado na habitação — carpinteiros, eletricistas, técnicos de
make-up e outros, transformando numa espécie de fábrica o que fora, um
momento antes, um lar pacífico, antiquado e elegante, apesar do cuidado que
os homens tomavam em não causar qualquer prejuízo. O fino tatami foi
coberto com esteiras e a equipe protegeu com papel macio os ganchos que
fixavam os refletores no teto. O teto da casa era belo, de madeira cor de
cobre e com um acabamento macio como o cetim. Mas tudo era belo. Entre
os quartos e ao longo das varandas, finas cortinas de bambu ligadas com
cetim serviam como decoração e como biombos. Em cada aposento o nicho
de tokonoma tinha o seu rolo e o seu arranjo de flores especiais. A mesa e os
utensílios para a cerimônia do chá ficavam num aposento próprio e na
parede abriam-se painéis para revelar um altar budista em reluzente lâmina
de ouro. Os jardins não eram grandes, mas achavam-se bem ornamentados e
as grandes pedras chatas dos caminhos haviam sido dispostas com engenho e
arte. Nossos homens estavam diligentemente colocando algas nas margens e
nas frestas do caminho fronteiro e trabalharam tão bem que cheguei a pensar
que era realmente musgo, até que me informaram o contrário.
Depois de tudo pronto, sentamo-nos à espera do nosso Velho Cavalheiro,
Sessue Hayakawa. Ele havia jantado conosco na noite anterior e parecia, em
suas roupas ocidentais, um simpático homem de cinqüenta. Discutimos sobre
a velhice e nos falou que praticava yoga e esperava viver cem anos. Sessue
Hayakawa disse que sua avó morrera quando contava apenas noventa e nove
e os parentes sentiram que ela havia humilhado a família. Tendo chegado tão
longe, achavam que devia ter agüentado um pouco mais e completado o
século, como haviam feito seus antepassados.
Sessue Hayakawa não tardou a se aprontar e sua aparência era
extraordinariamente elegante nos trajes de um cavalheiro japonês antiquado
e conservador. Examinamos o seu make-up e apontamos ao técnico um
cabelo fora do lugar na barba e um canto do bigode ligeiramente sem cola. A
secretária-criada, ou criada-secretária de Sessue, abanava-o o tempo todo,
acendia seu charuto ou cigarro, dava-lhe chá e o consolava de modo geral.
Era jovem, eficiente, e cuidava dele como se fosse um velho e bom bebê, o
que talvez era. Fosse o que fosse, era também um ator profissional, um astro,
e era uma alegria vê-lo trabalhar. Entregava-se ao seu papel e ganhava
estatura à medida que o dia passava. Depois do almoço, seu ajudante lhe
trouxe almofadas e um travesseiro, ele ficou apenas com as roupas de baixo,
todas de seda branca, deitou-se e dormiu numa calma yoga enquanto a
equipe se afanava ao seu redor.
Lembro-me de que naquele dia estávamos sem os nossos dois meninos
— Yukio e Toru. Haviam ido a Nagasaki na véspera e beberam cerveja
japonesa com comida chinesa, o que não é uma boa combinação. Daí terem
passado mal a noite e não poderem comparecer ao local pela manhã. Nosso
astro queixou-se de que não podia trabalhar sem eles e por um momento o
dia pareceu frustrado. Abrandou depois e disse que se tivesse uma menina do
elenco para inspirá-lo, poderia representar. Emprestamos-lhe, assim, nossa
pequena-transístor até chegarem os meninos. Ela sentou-se ao pé da câmara,
com seu aspecto atraente e bonito, e ele continuou com satisfação e gosto.
Lembro-me de que aquele dia inteiro foi de pura alegria. O ar estava leve
e fresco, o Sol brilhante. Encontrávamo-nos todos num estado de euforia,
penso eu, partilhando o prazer do belo ambiente e a suave graça com que o
trabalho decorria. O Velho Cavalheiro crescia ante os nossos olhos. Era
como observar um grande artista pintando um retrato. Sim, vejo, como se a
cena estivesse aqui e agora diante de meus olhos, a ampla sala japonesa, o
shoji aberto para o adorável jardim. Junto à janela, o Velho Cavalheiro, em
vestes de seda branca, erudito e aristocrata, poeta e profeta, está sentado
numa almofada diante de uma mesa baixa. Traça numa larga folha de papel
as letras de um poema.
As crianças de Deus
São muito queridas,
Muito bonitas, mas muito estreitas.
À sua frente estão ajoelhadas as duas crianças. Lê o poema em voz alta e
lhes pergunta o que significa. Elas não sabem e ele explica lentamente e com
uma grave dignidade.
O diálogo é em inglês e o seu inglês não é perfeito, porém ele é capaz de
transmitir o sentido e a atmosfera de sua própria alma. As crianças
correspondem à ilusão da realidade. Depois disso, passei o dia todo sorrindo.
A noite se aproxima e estou plena de contentamento e expectação. Chegou
agora o ponto alto da história, o momento em que o Velho Cavalheiro sabe
que a ressaca está próxima. Ordena que repiquem o sino grande e acendam
as tochas do lado de fora do portão — aviso final ao povo para que suba a
montanha e se abrigue em sua casa, de modo que se possa salvar, com seus
filhos. Receia — quase sabe — que ninguém lhe dará atenção, mas talvez
venham alguns.
Estava escuro quando nos reunimos para esta cena final e eu torno a
vivê-la enquanto escrevo. Deixem-me continuar a usar o tempo presente.
Juntou-se uma grande multidão das aldeias e dos campos. O dia terminou e
todos se acham livres para espiar o que está acontecendo na colina. Do outro
lado da estrada foi construída uma plataforma, a uma distância da câmara,
encarando o portão e a casa. Do outro lado do portão, grandes tochas estão
prontas para ser acesas. O gerente da companhia, tipo vigoroso de voz
tonitruante, sai e se dirige à multidão, conjurando-a a não fazer barulho. É a
grande cena, lhes diz. Não se deve ouvir uma tosse ou um grito. A multidão
exclama promessas em resposta e continua a esperar. Um tempo
interminável decorre enquanto são dados os últimos retoques. O homem do
make-up está frenético, o Velho Cavalheiro tem de usar um chapéu alto
antigo, sua barba precisa estar firme de modo que o vento não possa soprar
sequer um fio. Até mesmo o criado tem de ser maquilado com cuidado.
Dão-me uma cadeira de armar, embaixo da alta plataforma e ali me sento
em tranqüila excitação, para esperar e observar. São ditas as últimas
palavras, o assistente grita o seu "aprontar... vai começar..." e o diretor diz:
"Ação!"
Começamos. Observo com um poderoso aperto no coração. Mal posso
respirar. Lembro-me quando escrevi a cena — ao terminá-la estava exausta.
Agora irei vê-la viva. O Velho Cavalheiro será capaz de representá-la como
a escrevi? Será possível que possa fazê-lo com a força e a majestade que me
foram reveladas? | Atrás de mim, no pátio, entre os circundantes campos de
arroz, encontra-se a multidão, silente e absorta. A equipe está ocupada com
as luzes e a câmara. De súbito o foco poderoso cai sobre o velho criado que
está saindo para acender as tochas. As chamas serpeantes rasgam as trevas
para revelarem o Velho Cavalheiro, aquele velho altivo, no topo dos degraus
de pedra que levam ao portão. Ele contempla o mar. Está desesperado,
aquele velho, um profeta desacreditado, contudo ansioso. Compreende
demasiado bem o que acontecerá ao seu povo, ao seu ignorante, obstinado e
bem amado povo. Sim, sim... ele é o personagem que eu criei. Vejo-o nítido
e inteiro, perfeito na concepção e no detalhe, e me surpreendo ao sentir
lágrimas deslizarem pelas minhas faces — eu que nunca choro!
Tal realização raramente ocorre a um artista — umas poucas vezes,
talvez, em toda uma vida de criação. A mim isto acontece agora
perfeitamente pela primeira vez, a feliz coincidência da criação manifestada
na carne e no espírito de outro ser humano. Sinto-me esmagada pela
necessidade de partilhar o momento com alguém — alguém! Centenas de
pessoas amontoam-se ao meu redor, pessoas bondosas mas, neste momento,
estranhas. Entre elas não há ninguém. Volto-me e caminho dentro das trevas
até o carro que espera e sou levada para longe, no meio da noite.
Naquele momento compreendi o que antes havia apenas sabido. Ele
estava morto. Não haveria mais qualquer comunicação. Se a comunicação
fosse possível, ter-se-ia realizado lá, no escuro, quando eu estava só dentro
da multidão. Ele me teria ouvido, teria conhecido a minha necessidade.
Fossem quais fossem as barreiras, teria de algum modo encontrado o
caminho até mim, caso se achasse desperto e consciente, onde quer que se
encontrasse. Ele sempre encontrara um caminho. O fato de não ter
encontrado só podia significar que a comunicação era agora impossível, ou
que não estava nem desperto nem consciente.
O quarto de hotel tornou-se novamente intolerável. Deslizei sem ser vista
através de corredores vazios e ganhei as ruas silenciosas da cidade. Todas as
pessoas decentes já estavam na cama e até mesmo um bêbedo seguia,
cambaleando, o caminho de sua casa. Era Lua cheia — um mês se havia
passado, de algum modo — e à sua luz deixei a cidade e entrei no campo.
Silêncio, silêncio por toda parte e apenas silêncio, porque a morte é silêncio.
Não sei quanto tempo caminhei ou quão longe fui, ou mesmo onde, apenas o
longo intumescer da maré cheia. Lembro-me como era bela a paisagem, à
noite, as montanhas emergindo da neblina prateada que cobria os vales. Via
tudo e nada sentia. Era como se estivesse flutuando muito longe, numa
região estranha, na qual eu não tinha vida. Eu mesma podia estar morta, tão
profundo era o silêncio interior. Nunca tornaria a chorar. Sabia, agora, que as
lágrimas de nada adiantavam, como não havia qualquer conforto a ser
procurado ou encontrado. Havia apenas uma coisa — eu. Tolice, chorar por
mim mesma!
Dei as costas ao mar e rumei terra a dentro, andando num caminho
estreito por entre campos de arroz. O ar estava parado até que, de súbito, um
vento se levantou de parte alguma, como parecia, e eu me detive para sentir
o seu frescor no rosto. Nesse mesmo momento ouvi uma criança chorar, um
bebê, como pude compreender pelo tom agudo de sua frenética agonia. Olhei
à minha volta. Sim, uma casa de fazenda do outro lado do campo achava-se
brilhante de luzes. Estaria doente a criança? Ouvi tantas crianças chorarem
que conheço sua linguagem. Não, aquilo não era agonia — surpresa, talvez,
medo, possivelmente raiva. Era o choro de uma criança recém-nascida.
Deixei-me cair no barranco relvado, escutando. O choro parou, ouvi
risos e vozes. Então a criança era um menino! A criança era outra vida.
Deitei-me na relva, como sobre uma cama, e durante longo tempo fiquei
contemplando o céu. As estrelas não estavam visíveis, pois a Lua brilhante
descrevia seu arco através do céu e a olhei até acreditar que a vi mover-se.
Um cansaço desesperado penetrava-me os ossos, o cansaço da aceitação, a
aceitação do inevitável, a convicção do imutável. Daí para a frente eu nunca
mais devia esperar partilhar os grandes momentos de minha vida. Tais
momentos continuariam a ocorrer enquanto eu vivesse, momentos de beleza,
momentos de excitação e de regozijo; acima de tudo, momentos de
realização. Nesses momentos, ele e eu nos voltávamos um para o outro, tão
instintivamente quanto respirávamos. Isto não aconteceria mais... Não é
verdade que nunca andamos sozinhos. Há uma eternidade em que
caminhamos sozinhos e não sabemos quando acaba.
A noite chegara ao fim e a este, sob o horizonte, o Sol estava brilhando.
Era hora de voltar para o meu quarto, hora de preparar-me para o trabalho do
dia.
O bom tempo continuou. Rumamos para a casa do Velho Cavalheiro,
onde encontramos nossa equipe pronta a começar o trabalho, já com algas
frescas nos caminhos. Nesse dia um amigo me acompanhava. Havia anos
que eu aprendera a ser grata por pequenos milagres. Era um velho amigo de
Hiroshima. Nossas relações começaram quando ele, a esposa e os filhos
vieram aos Estados Unidos para trabalhar por algumas jovens que, meninas
ainda, tinham sido tristemente feridas, mas não mortas, pela bomba atômica.
Enquanto viajava fazendo conferências e levantando dinheiro para as
despesas de hospital concernentes à cirurgia necessária à restauração de seus
rostos desfigurados, restituindo-lhes algo de sua beleza natural, a esposa e os
três filhos passaram o verão em minha grande casa. Encontrei-o esperando
por mim naquela manhã e me senti alegre ao ver sua fisionomia cordial.
— Gostaria de acompanhar-me à filmagem de hoje? perguntei.
Existe, naturalmente, algo de ator em todos os pregadores.
— Que prazer! tornou ele com o rosto iluminado. Rodando para a casa
do Velho Cavalheiro, conversamos sobre muitas coisas. Soube que
Hiroshima está reconstruída e muito maior que antes, somando agora cerca
de meio milhão de almas, cada qual com o seu respectivo corpo. Menciono o
corpo porque foi este o destruído pela bomba, e os corpos são valiosos
porque é só através deles, parece, que as almas se podem comunicar.
O dia passou ao mesmo tempo muito depressa e muito devagar. Meu
amigo de Hiroshima ficou ao meu lado, absorvido nos infinitos detalhes da
feitura de um filme. Conversávamos de quando em quando.
— Prometa-me que irá a Hiroshima antes de partir do Japão, pediu ele.
Não podia prometer. Sabia que não iria. Não era como se eu fosse
necessitada. O povo de Hiroshima sobrevivera ao desastre, aprendera que a
paz é o objetivo mais valioso da vida humana, pois quando não há paz há
morte. Se eu fosse a Hiroshima seria como turista, e eu não sou isso... não
em Hiroshima. Mas não podia explicar todos esses aspectos ao meu amigo.
Separamo-nos no fim do dia, ele para voltar à sua cidade renascida, eu
para o meu quarto. Eu estava e não estava lá. Em absoluto repouso passei a
noite num silêncio que ficava apenas a um passo do sono. Em determinado
momento da noite fui acordada por risos debaixo da minha janela. Levantei-
me e olhei para fora. A Lua estava brilhando de novo e lá, na grande piscina,
três homens jovens se estavam banhando, seus esbeltos corpos nus meio
ocultos entre os fumegantes vapores da água aquecida pela terra, uma cena
tão bela de vida que, ao observá-la, quase me convenci de que o pintor,
como artista, é superior a todos nós.
Era o último dia na casa do Velho Cavalheiro e eu relutava em partir. O
cenário da casa da fazenda fora delicioso, fizera amizade com todos os
membros da família, até mesmo com o galo e suas galinhas, e a cabra. Só
com o porco que latia foi que mantive uma certa distância, sentindo a nossa
mútua falta de interesse, como resultado, sem dúvida, do fato de nada termos
em comum.
Com a família do Velho Cavalheiro eu tinha muito em comum.
Apreciava plenamente seus espíritos cultivados, sua delicada cortesia, sua
cordialidade ao mesmo tempo franca e retraída. Mas ali o fim tinha que
chegar também. O Velho Cavalheiro executara sua parte com dignidade e
graça, seu criado conduzira Yukio, o garoto lavrador, e Toru, o filho de
pescador, à majestosa casa e os levara de novo ao portão depois que Toru
tomou a decisão fatídica de escolher a partida. O criado tivera seu grande
momento ao portão, pois fora aqui que se desenrolara seu momentoso
diálogo, seu yes e seu no. Proferiu essas palavras com importância, e de fato
são as palavras mais importantes de qualquer língua, contendo em seus
breves sons as forças positiva e negativa de todo o universo.
Fizemos também nossas despedidas, curvando-nos e agradecendo, e eu
assinei centenas — estou certa — de grandes cartões de autógrafos que são
usados para esse propósito no Japão. É quase um prazer escrever o nome na
larga superfície creme clara, tão exatamente adequada a uma pincelada ou a
uma linha comprida e fina. Instintivamente somos levados a escrever o nome
em traços grandes e graciosos. O resultado é de algum modo compensador e
as margens prateadas do bonito cartão, as estrelas de prata salpicadas no
verso, aumentam a satisfação.
Juntamo-nos de mau grado e saímos do belo lugar, afastando-nos das
bondosas pessoas que nele vivem, e fomos transportados em automóveis e
caminhões ao nosso próximo cenário, a aldeia de Kitsu. Nossos veículos
despejaram-nos no alto de um penhasco e de lá o percurso devia ser feito a
pé, por um caminho estreito que descia pela encosta rochosa. Fomos
descendo até chegar à aldeia, um amontoado de casas de pedra separadas por
estreitas ruas calçadas. Caminhando por aquelas ruas, eu sabia que já amava
Kitsu mais que todos os nossos cenários. Fazia um dia gloriosamente
luminoso, o sol ardendo sobre a areia e — ai — desta vez o argumento
exigia chuva. O rádio de Nagasaki previra chuva, mas parecia que não
jorraria daquele céu de brilhante azul. Tínhamos, por conseguinte, de
fabricar chuva novamente.
E a fabricamos o dia todo e a noite toda, até secarmos o poço da aldeia
com as nossas bombas. A fabricação de chuva era primitiva mas eficaz. Uma
pesada mangueira de lona conectava o poço ao tanque próximo da casa do
pescador, onde se desenrolaria a cena. Os tanques eram grandes banheiras de
madeira, cada qual comportando duzentos litros de água, mas não sei por
que não ligamos a mangueira ao mar, pois duzentos litros não eram mais que
uma gota para a quantidade de que necessitávamos. Todas as vezes que
estávamos prontos para a cena alguém gritava que a água tinha acabado e a
bomba de gasolina começava a trabalhar de novo. Ou quando estávamos
prontos para a cena, os atores em posição e a chuva caindo, o homem do
make-up descobria um fio de cabelo fora do lugar na testa do nosso astro, ou
uma linha de suor em sua fronte, e no momento em que a irregularidade
estava corrigida não havia mais água, outra vez, e portanto não havia mais
chuva.
No entanto continuávamos a precisar de chuva, pois agora vinha a cena
em que o Velho Cavalheiro advertia a família de pescadores de que era certo
a ressaca chegar. O Avô cacarejou que não haveria tufão, apenas chuva. Os
velhos da aldeia, contratados como extras e muito orgulhosos de sua nova
carreira, reuniram-se na estreita varanda da casa de Toru e concordaram com
ele.
Aqueles velhos! Nunca imaginei que uma aldeia pudesse fornecer
semelhante coleção de velhos enrugados, dentuços, joviais, chistosos, mas
Kitsu os fornecera, evidentemente, pois ali estavam eles. A princípio
mostraram-se artificialmente graves e bem comportados, especialmente um
velho pássaro de cara de águia, que piscava ocasionalmente seus olhos
mortiços mas não dava qualquer outro sinal de vida até que o diretor exigiu
algumas risadas no momento apropriado. O velho pássaro, então, espantou a
todos nós com os seus gritos, numa estentórica voz de baixo, uma torrente de
palavras que, traduzidas, significavam o seguinte:
— Bota o chapéu, americano! Aí eu vou rir!
Todos gargalharam, pois esse chapéu já se havia tornado uma pilhéria.
Era um pequeno chapéu de palha trançada frouxa, de um brilhante amarelo
sulfurino, a copa circundada por uma berrante fita multicor. Era útil apenas
para localizar com facilidade o paradeiro do diretor.
No momento em que estávamos realmente em ação, depois dos risos, a
água e a chuva finalmente sincronizadas, um rádio começou a berrar.
Paramos de novo, o técnico de som desesperado. Os berros provinham de
uma escola no alto do penhasco, e o principal da aldeia, todo devotamento,
correu montanha acima para certificar-se de que as crianças estavam limpas
e bem comportadas. Esperamos e a água acabou, mas as crianças chegaram
limpas, seus narizes foram assoados, trajavam, segundo o caso, vestidos ou
calças de algodão limpo. O principal, apesar de sentir-se orgulhoso, mostrou-
se severo. Entregues a si mesmas, disse ele, nos rodeariam e perturbariam
nossa atividade. Assim, sob a sua firme porém benevolente disciplina, como
quer que fosse administrada, elas continuaram suas tarefas diárias,
obviamente devoradas pela curiosidade a nosso respeito, mas dominadas.
Ele, com as pernas arqueadas, andava irrequieto de um lado para o outro, um
caranguejo humano, apesar de sorridente.
Ó Kitsu, aldeia querida! Sentei-me, ontem à noite, num pequeno cinema
vazio, em Nova York, e assisti o filme terminado, com um amigo do lado
para partilhar a recordação e decidir se a película era o que pensávamos que
fosse, quando a fizemos. Os juízes definitivos devem ser outros, pois quando
Kitsu voltou a mim na tela, quando vi o mar rolando na praia branca, as
redes multicoloridas penduradas para secar, os barcos em repouso alteando-
se e baixando gentilmente sobre as ondas, os nobres penhascos da praia e da
montanha e, sim, talvez mais que tudo, os belos e bondosos rostos dos
aldeões, senti um ímpeto de saudade espiritual. Há uns poucos lugares, umas
poucas tocas, tão naturalmente ligadas ao nosso ser, que são para sempre
nossa terra. Não sei se tornarei a ver Kitsu nesta vida, mas ela está comigo e
em mim.
Deixem-me recordar!
Do alto do sinuoso e estreito caminho, como primeiro a vi, Kitsu é,
segundo já disse, um amontoado de tetos numa apertada garganta de terra
acocorada entre dois braços de mar, cada teto tão perto do outro como as
escamas de um peixe. Vista do mar é diferente e eu a prefiro vista do mar.
Tomávamos os barcos todas as manhãs, em Obama, costeávamos o soberbo
litoral durante meia hora e então, contornando um elevado penhasco sobre
rochas maciças, víamos a praia branca e os muros de pedra de Kitsu.
Aquelas casas não tinham janelas para o mar. O povo, ao dormir abrigava-se
contra seu poderoso amigo e inimigo. O cismo era óbvio. Viviam junto do
mar e não viveriam noutra parte, mas o temperamento do mar era o seu
temperamento. Se o dia amanhecia bonito e sem vento, se a água estava azul
como o Mediterrâneo, então a aldeia inteira ficava animada com risos e
negócios. Se o dia despontava cinzento e o vento áspero, o povo, sério e
ansioso, subia nos quebra-mares para amarrar firmemente os barcos às
pedras que tinham rolado até à praia e depois voltava de novo para suas
casas. Em dias bonitos, se entrássemos cedo na ampla enseada, podíamos ter
a sorte de ver a frota de barcos pesqueiros fazendo-se ao mar e este era um
espetáculo inesquecível. Nos dias tempestuosos as ondas abertas terminavam
em irada arrebentação e nós íamos por terra. Sentada ali, no cinema escuro,
no centro de uma grande cidade americana, regressei a Kitsu. Vi Toru e
Yukio no barco de pesca e Setsu... bem, não devo contar a história. Vejo os
rostos das crianças, ri-sonhas e despreocupadas, vejo aquelas mesmas
crianças crescidas, suas faces jovens firmes de vontade e de propósito; Toru,
um jovem, declarando seu amor ao abrigo das grandes pedras cinzentas no
fim da curva da praia, torcida e cavada pela tempestade e pelo vento.
Nossos dias caíram na rotina de trabalho. Levantávamo-nos cedo,
tomávamos café e saíamos do hotel às sete. Quatrocentos metros além
entrávamos no barco e éramos rapidamente transportados à aldeia. Lá
chegados, cada pessoa iniciava sua preparação individual para a cena do dia.
Durante uma hora não necessitavam de mim e eu me punha a caminhar ao
longo da praia, além do quebra-mar de pedra, até o sopé de uma íngreme
colina. Degraus de pedra levavam ao alto do monte, numa extensão de cerca
de duzentos metros, e no cume havia um templo de pedra vazio, outrora um
altar Shinto. Cercava-o um muro baixo e de lá se descortinava o mar, as
montanhas e o céu.
Eu, porém, encontrei meu próprio nicho, atrás do altar. Na beirada do
alto penhasco havia uma concavidade nas rochas à qual meu corpo se
adaptava exatamente. Para lá ia eu todas as manhãs e, retida naquela
cavidade como se estivesse nos braços dele, repousava. Não era o repouso
do sono. Era o repouso do espírito esvaziado, o espírito liberto. Ele e eu
nunca estivéramos aqui, juntos. Nos anos em que eu vivera em Kyushu, não
sabia que ele existia, nem ele sonhara que eu pudesse existir. Tampouco
havia comunicação entre nós, agora — não posso fingir que ouvi sua voz ou
que tive consciência de sua presença. O que ocorreu, gradativamente, à
medida que passavam os dias, foi uma profunda invasão de paz. Ninguém se
tornou parte de mim, porém eu me tornei parte do todo. O cálido leito de
pedra em que eu me deitava, o vento erguendo-se fresco do mar, o céu
intensamente azul e as flutuantes nuvens brancas, o retorcido pinheiro
curvado sobre a minha cabeça — de tudo isso eu era parte e, além disso, do
mundo inteiro. Eu própria cessei de ser, pelo menos por algum tempo, uma
criatura solitária com o coração dolorido. Estava consciente da cura que se
derramava no meu íntimo. É um fato que, ao cabo de uma hora, quando soou
a concha, pude levantar-me retemperada para reunir-me aos meus
companheiros de trabalho.
Os degraus de pedra? Tornei a vê-los a noite passada, no cinema escuro,
quando o Velho Cavalheiro desceu para advertir os aldeões, seguido pelo seu
fiel criado. Sim, aqueles eram os mesmos degraus que eu galgava todas as
manhãs ansiosa pela paz que encontrava no abrigo da rocha. Tornou-se um
hábito. Eu acordava sôfrega por aquela hora e a saboreava profundamente,
com um deleite renovado todos os dias. Descobri, então, que um pouco da
paz de cada dia sobrava como um resíduo para a noite. Eu não a usava toda
de uma vez, havia acumulação. Tornei-me mais forte. Pude perder um dia,
em seguida dois dias, depois mais. Gradativamente me estabeleci em mim
mesma e não precisei mais subir àquele alto e solitário lugar, e esperar para
receber. Fui capaz de manufaturar a paz dentro de mim mesma, apenas por
lembrar-me do fluxo do mar, da montanha e do céu, e de mim mesma
enrodilhada na concavidade da pedra. Tinha então a paz dentro de mim e o
lugar tornou-se um altar em minha memória. Não sei como se processou essa
cura. Não rezo, se a oração consiste em palavras, ou súplicas, ou procura. Se
o processo tem de ser explicado, digo que consistiu simplesmente em
entregar-me de maneira total a um universo que não compreendo mas que
sei ser vasto e belo além da minha compreensão, sendo o meu lugar nele não
mais que uma concavidade numa pedra. Mas há a concavidade, e é minha, e
há a pedra.
Esta crônica, para valer alguma coisa, tem de ser fiel. Estávamos a um
quarto do caminho, aproximadamente, da feitura do filme e tínhamos
chegado ao deserto que fica na metade de todos os planos criadores. O
deserto começa no ponto em que se progrediu demais para pensar em
desistir, e tão longe do término que o fim é invisível e só pode ser
contemplado por uma fé vacilante. Como conheço bem a desolada
perspectiva! Enfrento-a em cada livro que escrevo. O primeiro quarto flui
como uma brisa do mar. O trabalho é pura alegria. Entro então na metade do
livro e a alegria desaparece. Os personagens recusam mover-se, falar, rir ou
chorar. Tomam a postura de colunas de sal. Por que, ó, por que o livro foi
começado? O trabalho executado já é muito, para que se ponha de lado, no
entanto a conclusão está tão distante quanto o fim de um arco-íris. Nada há a
fazer senão continuar a trama, impelir os personagens por esse e aquele
caminho, soprar sobre eles ardentemente na esperança de restituir-lhes a
vida, usar todos os meios de respiração artificial. Em alguma parte, algum
dia, embora parecesse inacreditável durante semanas, meses ou mesmo anos,
eles começam a respirar. Que alívio! O deserto passou, o último quarto do
livro flui suavemente de novo.
Certa manhã, no meio do período deserto do filme, sentei-me na beirada
de um barco de pesca e me pus a observar nosso astro, Sessue Hayakawa.
Esperava, com soturna paciência, que o chamassem ao cenário. A cena tinha
de ser repetida porque o técnico do som descobrira uma mosca no
microfone, que ninguém havia notado., Havia moscas apesar do repelente
que um dos membros da equipe vaporizava zelosamente de igual modo sobre
justos e injustos, e uma delas se ocultara habilmente no microfone e zumbia
o suficiente para abafar qualquer outro som. Nosso astro esperava e sua
secretária-criada abanava-o dentro de seus pesados trajes.
— Por que é que ninguém me abana tão estrategicamente? perguntou o
diretor americano.
Ninguém respondeu e ninguém o abanou. Só o astro permanecia
pacientemente sentado. Tinha na mão um pequeno rádio-transístor. Escutava
uma luta e quando sorri explicou-me que somente assim podia achar a vida
suportável, naquelas circunstâncias. Entrementes o homem do make-up
corria a aplicar-lhe toalhas geladas nos pulsos e no pescoço e tocando-lhe o
rosto. O astro, para infinito terror do homem do make-up, que temia pela
barba que tão cuidadosamente lhe havia aposto, acendeu um grande charuto.
Mas ninguém se atreveu a insinuar coisa alguma e ele fumou em paz, os
olhos fechados, escutando a luta.
No cenário o diretor estava às voltas com o nosso avô que, embora
realmente velho, tinha uma voz demasiado jovem. O diretor fazia
demonstrações de como devia soar a voz de um velho. Mantive a minha
tranqüilidade. Sei que a voz dos velhos é alta e aguda, não baixa e rouca,
mas mantive minha tranqüilidade. Aprendera, desde o primeiro dia, a manter
a minha tranqüilidade — "pelo amor de Deus!"
Esforçávamo-nos por atravessar o deserto do meio, levantando cedo
todas as manhãs, amontoando-nos exaustos nos barcos à noite, aliviados
apenas pela beleza do céu crepuscular. Havia noites em que trabalhávamos
até tão tarde que estava escuro quando tomávamos a lancha e o mar faiscava
com minúsculos peixes fosforescentes, que competiam com as estrelas no
céu.
E Sessue Hayakawa avançava para o último dia de seu contrato conosco,
estava terminando suas cenas como Velho Cavalheiro, e nós ainda
continuávamos no deserto. O homem do make-up realizara um trabalho
engenhoso, envelhecendo-o mais dez anos, como exigia o argumento, mas o
mesmo vento que, certa manhã, levantara demasiado a arrebentação,
impedindo a saída dos barcos, arrancou-lhe a sobrancelha esquerda. O
homem do make-up merecia ser manietado, porque não trouxera uma
sobrancelha extra do hotel. Nada havia a fazer senão fabricar outra
sobrancelha com os fios brancos que tinham sobrado da barba... Tudo
continuava a andar errado. Os bolos, que os bondosos cidadãos haviam
deixado conosco para a equipe, resultaram ser de uma variedade indesejável
e ninguém os quis comer. Estávamos todos morosos. As primeiras cópias,
que esperáramos ver uma semana antes, foram retardadas. Sofrêramos a
interferência de um feriado japonês e de um domingo, e poucas foram as
cópias que tínhamos visto, de modo que nos achávamos pelo menos com três
dias de atraso em relação ao programa traçado. Afastamo-nos e começamos
a remoer negros pensamentos. Entenderia alguém o inglês que nossos atores
falavam? Estávamos tentando o impossível — atores japoneses
representando em inglês! Os jovens Yukio e Toru, bem como nossa mãe-
lavradora, entre outros, falavam antes pouco inglês ou nenhum, e agora
estavam falando, mas seria bastante bom? Como soaria a uma platéia
americana até mesmo a fala do nosso astro?
No meio do deserto de pessimismo recebemos uma carta de nossa
gerente de negócios em Tóquio. Vira as cópias do Velho Cavalheiro e as
achou soberbas, dizia ela, inclusive o diálogo. Fizeram-na chorar, informava.
Que aquela jovem sofisticada houvesse chorado, significava alguma coisa.
Não imagináramos que isto seria possível, tão fria e serena era ela, tão parca
em elogios. Nossas esperanças renasceram. Talvez estivéssemos quase fora
do deserto.
Com o espírito renovado, oferecemos um jantar a Sessue Hayakawa em
homenagem à sua partida. Ele estava com excelente humor, bebeu uma
mistura de cerveja gelada com sakè, que agüentou admiravelmente, e suas
histórias eram tão boas quanto sua representação. Cinqüenta anos de teatro
em vários países formavam um mundo de histórias dignas de serem
contadas. Lamentávamos vê-lo partir e creio que ele também o sentia, mas
nada há de permanente na vida teatral. Trabalhamos intimamente juntos
durante alguns dias, semanas e meses, adquirindo amizade uns pelos outros,
separamo-nos e esquecemos. Nada adquire profundidade — é a única
maneira de suportá-lo.
As cópias chegaram e fomos ao cinema do outro lado da rua, depois de
terminado o espetáculo da noite. Não me fizeram chorar, mas gostei. Então,
de súbito, vi nosso jovem astro, nosso Toru crescido. Estava sentado na fila
fronteira à minha, profundamente adormecido. Meu coração murchou no
assento. Podia ele dormir? Sim, podia e estava dormindo. Voltei-me para
meu companheiro.
— Veja aquilo!
— Está bêbedo, foi a indignada resposta.
Sim, houvera uma festa naquela noite e o nosso jovem astro estava
bêbedo. Tudo se tornou demasiado evidente quando as cópias terminaram e
saímos do cinema. Ele não se podia manter de pé. Não obstante, senti-me
gelada. Bêbedo ou sóbrio, como pôde ele dormir? Não, ainda estávamos no
deserto e só nos restava continuar arrastando-nos.
Houve mais um momento naquele dia. Foi o último vislumbre, o close-
up final do criado do Velho Cavalheiro. Tomamo-lo em frente ao hotel.
Juntou-se uma multidão, uma próspera multidão de feriado, com máquinas
fotográficas e alegria. O criado do Velho Cavalheiro era, naturalmente, o
pequeno e idoso homem do guarda-roupa, mas havia adquirido uma
dignidade nova. Realizara o sonho de toda uma vida. Era, agora, um ator.
Passara todos aqueles anos fazendo trajes e descobrindo roupas para outros
usarem em cena. Mas agora vestira um traje próprio, tivera seu rosto
maquiado — só um pouco, pois seu rosto era perfeito para o papel. Naquela
noite, na presença da multidão, postou-se com calma e dignidade e o
cameraman tomou os close-ups de que necessitávamos para o filme.
Quando terminaram, curvamo-nos e nos apertamos as mãos, lhe
agradecemos e ele curvou-se por sua vez. Disse-nos que aquele era o maior
ano de sua vida. Tornara-se um ator, representara um papel com Sessue
Hayakawa e no mês seguinte casaria sua filha.
Assim terminou o dia.
— Otsukaresama!
É uma palavra que significa "Você está cansado". Gentil maneira
japonesa de dizer: "Chega por hoje".
Era verdade. Estávamos cansados.
Já nos achávamos, agora, muito além do deserto. Faltava uma grande
cena em Kitsu, a chegada da ressaca. Enquanto trabalhávamos ao redor dessa
cena, nosso técnico a estivera criando no estúdio de efeitos-especiais, em
Tóquio. Viera duas vezes a Obama fazer consultas e tirar centenas de
fotografias de Kitsu e da praia deserta. Sabíamos que estávamos em mãos
seguras, a ressaca seria perfeita, mas só poderíamos vê-la quando
voltássemos à cidade. Nossa tarefa consistia em criar a aproximação da onda
e depois a recuperação da aldeia.
Uma atmosfera de tensão e de terror caiu sobre a aldeia ao começarmos
os preparativos para a ressaca. Uma sensação cortante chegava quase a
atingir os ossos. Cada homem, mulher e criança, temia acima de tudo, em
sua bela e precária vida, a incontrolável ressaca atacando sem aviso, a não
ser o rugido baixo e ominoso sobre o horizonte, a água barrenta do poço, o
tremor da terra. Imaginar, apenas, o horror era quase mais do que podiam
suportar, ao se disporem obstinadamente à tarefa de representar a terrível
realidade. Famílias de lavradores e de pescadores representaram bem a sua
parte e nos aproximamos da última noite, quando, em meio às trevas,
acenderam-se as tochas diante da mansão do Velho Cavalheiro e as famílias
de Kitsu, em pânico, fugiram de seus lares ancestrais, galgando o estreito e
sinuoso caminho da montanha, em busca de segurança no topo do penhasco.
Toru era o astro naquela noite, o menino Toru. Nossa parte da cena era
levá-lo ao momento em que vê a aldeia arrastada e nós a vemos através da
sua fisionomia. Era aqui que a ressaca seria inserida. Depois disso
retomamos a história no ponto em que Toru, em agonia e loucura, ele
próprio arrastado pela fúria do mar, fora salvo apenas por uma bondosa e
robusta mão que o susteve quando ele se agarrava ao penhasco. Representou
soberbamente a cena, mas recordo especialmente o povo enxameando
montanha acima, o obstinado e aterrorizado povo tomando o caminho que
seus ancestrais tão freqüentemente haviam palmilhado antes, porém na
realidade.
Naquela noite, quando tudo terminou e nos fomos sobriamente,
adquirimos uma compreensão nova da incomparável coragem da gente de
Kitsu, da sua inabalável devoção ao mar e à sua maneira de vida, maneira
boa e limpa, mas perigosa. Despedimo-nos com um terno pesar. Lembro-me
de uma multidão de faces bondosas, à luz da lanterna, do principal
recebendo com orgulho nossos elogios e agradecimentos, dizendo que a
única recompensa que desejava era saber quando seria exibido o filme no
Japão.
— Vestiremos nossas melhores roupas e iremos até mesmo a Tóquio,
disse-nos.
Finalmente, as chamas das tochas diante do portão do Velho Cavalheiro,
no alto da montanha, apagaram-se dentro da escuridão. Estava terminado, o
filme fora feito. Nunca esquecerei os belos dias de mar, vento e sol, de
refeições partilhadas na praia, dos grandes bules de peltre cheios de chá, nem
esquecerei as horas de repouso que passei, semi-adormecida, num bote vazio
puxado para a praia, o sonolento marulhar das ondas aos meus ouvidos, o
calor do meio-dia sobre mim. Havia afastado naqueles dias e por aqueles
momentos as sombras expectantes de perda e solidão. Vivia o dia, a hora, o
trabalho, a profunda cura orgânica da calidez do sol, da chuva caindo, do
mar tempestuoso.
Estávamos tão perto, agora, da conclusão do filme que podíamos
planejar a atividade de nossos dias. Depois de Kitsu veio a praia vazia de
Chijiwa e a grande cena da pesca do tubarão e a última cena com as crianças
agora grandes, encontrando o amor e a vida, as alegrias e as penas. A última
de todas, em Kitsu, foi a cena com o Velho Cavalheiro, Toru e Setsu. Depois
disso restou apenas a cena do vulcão em Oshima, a ser tomada e inserida em
seu lugar próprio no filme.
Estou indo muito depressa. Deixem-me recordar primeiro a própria
Chijiwa. Num país populoso, num litoral impecável, essa praia ampla e bela
foi deixada deserta. Está vazia e assim se encontra há séculos. Visitem-na
em qualquer dia e verão redes de pesca espalhadas para secar, mas nenhuma
pessoa. Chijiwa encara o mar de um ângulo peculiar de modo que os tufões e
as ressacas a atingem com uma força devastadora. Os pescadores, após a
freqüente repetição da experiência de destruição total, ouviram afinal a
advertência do mar ameaçador e lá não vivem mais.
É uma praia supremamente agradável, contudo, estendendo-se por três
quilômetros de comprimento e penetrando terra a dentro, tendo como
limites, a este e a oeste, grandes e belas rochas. Minha vida na Ásia e meu
amor pela arte asiática condicionaram-me às rochas. Elas acrescentam
estabilidade à paisagem e as formas que adquirem com o tempo e o clima
exprimem o temperamento da natureza. Significam força, resistência e
valores eternos. Na extremidade de Chijiwa existem rochas assim e,
tomando-as como fundo, ali representamos a cena final de amor com Toru e
Setsu crescidos. Foi na direção das rochas que o Velho Cavalheiro caminhou
quando lhes deu seu último adeus.
Não me deixem esquecer, tampouco, os tubarões. É uma cena única no
filme e foi uma experiência única a executar. Uma vez por ano os pescadores
daquela região saem para a pesca do tubarão. Essas cruéis criaturas do mar
destroem o peixe em qualquer área que decidem dominar e os pescadores
lhes fazem guerra. Sua vinda é anunciada por cardumes de peixes pequenos,
os peixes-iscas, e quando aparecem os pescadores preparam sua estratégia.
Trazem seus barcos, cerca de duzentos e estendem no meio a maior e mais
forte rede do mundo. Então os barcos se abrem num vasto círculo e os
peixes-iscas entram naquele espaço, acompanhados pelos tubarões. Quando
a rede está cheia dos agitados monstros, os barcos juntam-se e os tubarões
ficam numa armadilha. Na praia, centenas de homens começam a puxar a
rede, arrastando os tubarões para a terra. Então os matam a pancadas,
transportando-os em carroças. Comem as partes mais tenras e do resto fazem
azeite e fertilizante. Às vezes o resultado da caçada é bom, às vezes não é.
No ano passado os homens pegaram apenas um tubarão, mas este ano lhes
trouxemos sorte, dizem eles, pois pegaram e mataram cento e vinte.
Não tenho afeição a tubarões mas não gosto do espancamento de que são
vítimas. Gosto muito de ver a frota de barcos pesqueiros, suas alegres velas
adejando ao sol brilhante e a multidão animada na praia. A multidão estava
sempre conosco e de há muito tínhamos aprendido a aceitá-la como parte da
paisagem. Por que descreveria eu a cena posterior, quando está tudo no filme
e melhor do que poderia dizer em palavras? É uma guerra ancestral, esta,
entre homem e tubarão, e naquele dia o homem ganhou. Enquanto a batalha
era novamente travada, nossos personagens enfrentavam sua própria luta
pessoal, Haruko e Setsu, crescidas, em seu memorável combate, quando
Haruko tentou afogar Setsu, e Toru e Yukio, não mais crianças, enfrentavam
os perigos privados de serem homens. Está tudo no filme, até o fim, quando
Toru se faz ao mar, em seu barco, e com o seu amor.
Restava-nos apenas, agora, voltar a Oshima, mas eu tinha um sonho a
realizar. Era um sonho pequeno, sem importância para ninguém a não ser
para mim mesma, e consistia em ir à pequena casa japonesa da encosta da
montanha, perto de Unzen, onde certa vez, numa vida anterior, me refugiara
durante a Segunda Revolução Chinesa. O exército atacante era orientado
pelos comunistas e todos os ocidentais foram obrigados a deixar a cidade de
Nanking, onde estávamos morando. Viera para o Japão com minha família e
alguns outros americanos e nos instalamos nas montanhas, acima de
Nagasaki. Lá voltava eu, agora, com uma amiga japonesa como guia e
intérprete.
Alugamos um automóvel com motorista e à habitual velocidade
alucinada seguimos nosso caminho ao longo da estrada para Unzen, cheia de
curvas abruptas. A aldeia montanhesa de que eu me lembrava se havia
transformado numa moderna estação de águas, mas as fontes quentes eram
as mesmas, lançando jactos de vapor através de centenas de pequenas
aberturas nas rochas, e o povo cozia ovos e esquentava água para o chá,
sobre aqueles fogões naturais. Eu não podia achar meu caminho, através das
ruas novas, para a velha estrada rural de que me lembrava. Detivemos uma
jovem mulher para perguntar-lhe se tinha ouvido falar das casas onde, certa
vez, há muitos anos, haviam morado americanos refugiados da China. Sua
fisionomia iluminou-se — sim, seu avô sabia e sempre' falava daqueles
americanos. Foi buscar o avô, um velho magro e esperto, que nos conduziu
jovialmente à estrada, que descemos até à baixada de um vale, depois
atravessamos um riacho, tornamos a subir a montanha e chegamos
finalmente a um amontoado de casas japonesas. Encontravam-se, agora,
vazias e fechadas, mas vi o pequeno abrigo onde tínhamos vivido em
segurança por algum tempo, entre amigos mas em grande pobreza, despidos,
pela revolução, de tudo quanto possuíramos. Minha vida mudara
completamente nos anos intermediários. Eu não era mais a jovem mulher
quase desesperada que morara debaixo daquele teto e dos pinheiros
curvados. Passei algum dinheiro ao velho e me afastei, sabendo que nunca
voltaria. Mas, ao sairmos de Unzen, alguém nos chamou e paramos o
automóvel. Era a jovem mulher e ela me entregou um embrulho.
— Meu avô disse que a senhora costumava comprar estes bolos de arroz
para os seus filhos, falou ela.
Era verdade. Eu havia esquecido, mas ele não.
Oshima nos parecera bastante diabólica por ocasião de nossa viagem de
investigação, em maio, mas agora era outubro e o vulcão estivera ativo e
rebelde nos meses intermediários. Até mesmo em Tóquio o tempo estava
ominoso. Planejáramos ir pelo ar e para isso fretáramos um avião que nos
transportaria através do canal, por etapas, mas o dia amanhecera sombrio e
cinzento e o piloto recusou-se a voar. Agora trabalhávamos contra o tempo,
cada um de nós ansioso por chegar em casa, ou para pôr em dia trabalhos
atrasados. E para evitar demoras, tomamos passagem no navio noturno.
Havia um tufão ao largo e um navio também tem seus azares. Mas tínhamos
corrido tantos riscos, havíamo-nos confiado tantas vezes ao mar e ao ar, que
um risco a mais nos pareceu bastante razoável.
Em meio à chuva e ao vento sibilante rodamos para o cais, naquela noite,
e embarcamos num velho e desequilibrado vapor. Felizmente estava escuro e
não pudemos ver quantas pessoas embarcaram. Subimos todos a bordo,
câmara, equipe, atores e o mais, e fomos imediatamente para as nossas
cabinas. Em poucos minutos nos pusemos em movimento, rumando para o
mar.
Estremeço ao lembrar-me daquela noite terrível. O mar estava agitado, o
mar e a chuva eram inimigos em luta, mas, pior que tudo, o navio estava
carregando quatro vezes mais o peso que comportava, em passageiros que
eram centenas de colegiais em excursão a Oshima. Enjoavam às centenas, as
pobres criaturinhas, e os lavatórios e corredores tornaram-se inúteis e
intransitáveis. O verdadeiro perigo, porém, era o próprio navio. A estrutura
superior era demasiado alta e o vapor oscilava de um lado para o outro de tal
modo que punha em perigo nossas vidas. Sou uma navegadora
experimentada e atravessei várias vezes os oceanos, desde a minha primeira
viagem através do Pacífico, aos três meses de idade, até o meu último vôo
através do mesmo oceano, poucos meses antes, a uma idade tornada
indefinida, contudo nunca tive tanto medo como naquela comprida noite em
demanda de Oshima. Antes do alvorecer, um amigo que viajava conosco
entrou para ver como estava sua esposa, minha companheira de cabina. Seu
bondoso rosto achava-se verde de terror.
— Estamos contrariando todas as leis de matemática, resmungou ele. —
O navio está balançando num grau matematicamente impossível. Isto não
pode ser. Pelo direito, já devíamos ter virado e afundado.
Deitei-me no beliche e meditei sobre uma vida estranha — a minha.
Como é que uma mulher de maneiras suaves, pacífica, sem desejos, sem
ambições ou mesmo inclinação para a aventura, consegue arranjar uma
maneira de estar sempre dentro de uma aventura? Amo tão apaixonadamente
o usual, o lugar comum, o dia a dia, que desligo instantaneamente a televisão
quando começa um programa de aventuras. Não adianta. Estou
constantemente envolvida em alguma ousada expedição e repelindo-a. E
sempre odiei particularmente a idéia de me afogar no mar. Não gosto de
nenhuma espécie de afogamento, mas se este tem de ser o meu fim,
preferiria uma piscina pequena ou, melhor ainda, uma banheira. Contudo,
perco a conta dos mares pelos quais viajei, não sei quantas vezes pelo
Pacífico, pelo Atlântico um pouco menos, pelo Mediterrâneo, pelo Mar
Vermelho, e por todos os mares que se encrespam ao redor das complexas
costas da Ásia. Agora, aparentemente, encontraria meu destino entre Tóquio
e Oshima. A Grande Onda, sem dúvida!
Amanheceu finalmente, uma alvorada úmida e fraca, o pálido sol
franjado de neblina e o mar ainda rugindo e rosnando, suas ondas de crista
branca em correntes contraditórias. O esmaecido contorno de Oshima
emergiu do nada e corremos a enfiar as roupas. Em quinze minutos
chegaríamos ao cais. Os quinze minutos tornaram-se uma hora, depois duas
horas, enquanto continuávamos a rolar. Não podíamos atracar porque o mar
estava demasiado agitado. Se não acalmasse, disseram-nos, seríamos
obrigados a ir para o outro lado da ilha, onde havia um cais inferior. Não
acalmou e fomos para o outro lado da ilha, para o cais inferior. Desembarcou
uma longa procissão de colegiais pálidos mas resolutos e em seguida
saltamos nós, rumando para o hotel através da chuva. Desta vez eu me
achava demasiado abatida para protestar quando me encontrei novamente
alojada no aposento do Imperador, alojamento que recusara na visita anterior
por ser imponente demais para a modesta cidadã de uma república.
Tomamos um café rápido e nos dirigimos, em automóveis, para o sopé
do vulcão. Havia cavalos esperando pelos que desejassem cavalgar. Preferi ir
a pé, pois fazia alguns anos desde a última vez que montara a cavalo.
Ademais a experiência me havia ensinado a desconfiar do cavalo, mula e
pônei asiáticos. Levam uma vida dura, pois o asiático não é sentimental para
com os animais, como nós, americanos. A filosofia da transmigração das
almas conduz o asiático a crer que o ser humano que em vida foi um
criminoso será, na fase seguinte, um animal do qual não se pode esperar que
se comporte melhor do que o criminoso que nele habita. Embora não possa
dizer que acredite nisso, se fosse julgar pelo comportamento dos cavalos que
conheci na Ásia, posso pelo menos considerar possível que são, de fato,
animados por alguma força má. "Não confie em cavalos", diz-nos o bom
livro. A pé, por conseguinte, galguei o negro vulcão, subindo a uma
paisagem escura e nua, espetacularmente, horrificamente bela.
Sob um tempestuoso céu cinzento o efeito era ainda mais sombrio e
estranho. Fitas de vapor branco subiam de todas as brechas e fendas do
vulcão e das altas montanhas circundantes. Não as tinha visto em minha
visita anterior, o que se explicava pelo tufão, como verifiquei ao perguntar.
A cratera do vulcão é muito grande e ficara ainda maior nos últimos dias,
pois sob a chuva torrencial suas paredes se haviam desmoronado em
diversos lugares. Onde quer que havia uma superfície, fora coberta e vedada.
O vapor, assim retido, forçara seu caminho através de canais nas montanhas.
Daí as fitas e bandeiras de vapor, todas sopradas pelo vento numa direção.
Parei várias vezes para olhar o espetáculo, pois era um espetáculo. Tenho
visto algumas das mais magnificentes paisagens do mundo, mas em questão
de esplendor e de terror, ponho em primeiro lugar o vulcão da ilha de
Oshima, naquele dia.
Lá passamos dois dias, dias inquietos, maravilhosos, inesquecíveis.
Pouco tempo antes de chegarmos o vulcão havia entrado em erupção,
atirando grandes pedras ao ar e correndo a montanha. Agora havia guardas
por toda parte, para impedir-nos a passagem, mas abrimos caminho até à
beira da própria cratera, apesar deles, o câmara empoleirando-se
precariamente em qualquer ponto que o suportasse ou contivesse. A descida
para a cratera fazia-se em dois planos, um dos quais era um terraço
circundante, o outro sem fundo e oculto por nuvens de vapor e gás
malcheiroso. Câmara, equipe e diretor desceram ao terraço, mas eu fiquei no
alto, não apenas porque sou prudente, mas porque os desolados guardas nos
haviam advertido de que devíamos correr para salvar a vida ao menor rugido
ou rumor do interior da cratera. Eu não desejava pôr em perigo os homens
moços que, em tal caso, poderiam, por uma questão de honra, sentir-se
obrigados a correr devagar para acompanhar-me.
O vento soprava áspero e frio e o trabalho prosseguiu sem os riscos e a
jovialidade habituais. Rápidos e concentrados cada qual fez sua parte.
Confesso que meu coração perdeu várias pulsações enquanto a equipe
andava na ante-sala da cratera, pulando por cima de grandes brechas,
afundando no chão fofo de cinzas, postando-se na própria beira do abismo.
Lembrei-me novamente de tudo isso quando as cópias foram exibidas no
cinema de Nova York. Vi, na tela, o garoto Yukio com os olhos
escancarados de medo, o vapor branco subindo sinuoso da cratera e
envolvendo-o. Não era de espantar que gritasse a seu pai:
— Somos infelizes, nós, gente do Japão!
— Por que diz isso? pergunta o pai.
— O mar e a montanha trabalham para destruir-nos, responde o menino.
Ficamos contentes quando terminaram os dois dias, o trabalho concluído,
e contudo não teríamos gostado de perder aquela experiência. Nunca
esquecerei a paisagem, negra como o outro lado da Lua. Voamos por cima
do mar, no terceiro dia, sob um céu claro, e chegamos ao aeroporto de
Tóquio exatamente quarenta e cinco minutos depois, em segurança.
Cinco dias mais tarde o vulcão entrou em erupção e o chão negro de lava
sobre o qual havíamos estado, caiu dentro do abismo.
Assim foi feito o filme. Tinha acabado, faltando apenas a cena da
ressaca, que estava sendo montada no estúdio de efeitos especiais, em
Tóquio. Para lá me dirigi no meu último dia. O famoso artista de efeitos
especiais esperava-me, afável em seu terno novo, leve, chapéu e bengala.
Tinha o ar confiante de quem sabe que fez um trabalho triunfantemente bom
e depois de mostrar-me a cena concordei com ele. Num espaço tão vasto
quanto o Madison Square Garden, em Nova York, que é o maior lugar em
que posso pensar no momento, ele reconstruíra Kitsu, as montanhas e o mar.
As casas tinham um metro de altura, cada qual em perfeita miniatura, e tudo
o mais proporcional. Do lado de fora passava um rio e a água corrente para a
ressaca solta dentro do estúdio por grandes comportas dispostas num dos
lados. Olhei dentro das casas, subi a pequena montanha, maravilhei-me com
a exatidão da praia, e até as próprias rochas onde, na realidade, eu tantas
vezes me abrigara. Mas o cenário ainda não estava pronto para a ressaca. Eu
a veria depois, na tela, em toda a sua força e terror. Tinha, porém, visto tudo
o mais, e me despedi, apresentei meus agradecimentos e parti.
Meu quarto de hotel tornara-se uma espécie de lar e me custava deixá-lo,
mas sabia que minha vida nele havia terminado. Fora um lugar agradável e
eu ali vivera em paz cada vez mais profunda. Agora, o velho medo de
enfrentar outra vida sem ele e voltar só aos lugares onde sempre estivéramos
juntos, assaltava-me de novo. Mas tinha de ser feito. Eu não podia escapar e
não podia haver mais protelação.
— Volte, volte breve ao Japão, disseram meus queridos amigos. Prometi
que sim e, afastando-me a custo, entrei sozinha no avião a jacto que me
conduziria de volta novamente a Nova York.
Digo Nova York embora, naturalmente, Nova York fique apenas a
caminho de minha fazenda na Pensilvânia. Mas fiz uma parada em Nova
York, essa cidade de maravilhas e sofrimentos. Ele e eu sempre mantivemos
um lugar de pouso em Nova York. Ele o necessitava para seu trabalho e seu
espírito, e eu continuei nossa tradição. Não é o mesmo lugar que partilhamos
durante tantos anos. Dentro dos confins de nosso velho apartamento eu não
poderia escapar à tortura da recordação. Não sei se teria ficado lá ou não,
mas os arranha-céus de aço e vidro tinham avançado pela nossa avenida e o
prédio onde fizéramos o nosso lar da cidade estava para ser demolido.
Encontrei outro apartamento num edifício novo, num bairro residencial mais
afastado, onde não havia recordações a não ser as que trago, ocultas, onde
quer que esteja.
E aqui conto uma história que nada tem a ver com o filme, fornecendo
apenas uma cena de encerramento para mim mesma. Quando eu estava
procurando o novo apartamento, uma das filhas ajudou-me a eliminar os
impossíveis e levou-me afinal a ver dois ou três que poderiam servir. Era
noite, lembro-me, quando olhei esses lugares. Eu estava com pressa e não
parecia importar-me muito onde viveria. Entramos em quartos vazios, sem
pintura. Olhei por uma ampla janela e discerni vagamente um prédio cujo
teto dava para o apartamento. Uma escola, disse minha filha; Bom para mim,
pois não haveria nenhum arranha-céu cortando-me a vista. Mas também não
me preocupei muito com isso, pois quando é que tenho tempo, em Nova
York, para olhar a paisagem? Além do mais, tenho muita paisagem em
minha casa da Pensilvânia. Assim, decidi obedecendo a um impulso.
— Fico com ele.
A escolha foi ao acaso, diria eu, totalmente ocasional. Mas estou
começando a crer que não existe no mundo essa coisa chamada puro acaso.
Pois aqui está a preliminar dessa história de encerramento:
Quando eu era menina e relutava, freqüentemente, em fazer minhas
obrigações, meu pai costumava dizer com firmeza, mas gentilmente:
— Se você não faz isso porque o certo é fazê-lo, então faça-o para a
maior glória de Deus.
Para a maior glória de Deus, portanto, e por meu pai, embora ainda
relutante, fiz o que tinha de ser feito, pelo menos tão freqüentemente quanto
possível.
Agora a volta ao apartamento. Não o vi uma única vez enquanto estava
sendo decorado. Quando tudo terminou, abri a porta e me encaminhei
diretamente para a grande janela. Era um dia luminoso, lembro-me, um dos
melhores dias de Nova York, o ar fresco do mar e o céu azul. E encarando-
me, no prédio fronteiro, sob os beirais do telhado e ao longo do teto, vi essas
palavras esculpidas em grandes letras de pedra:
AD MAIOREM DEI GLORIAM
Vejo-as agora, enquanto escrevo. Para a maior glória de Deus! Que
significa esta voz do túmulo, do túmulo de meu pai? Ele jaz enterrado no
topo de uma montanha, no próprio coração da China perdida para mim.
Estou aqui, viva, a milhares de quilômetros de distância. Estamos em
comunicação, ele e eu, através de meu pai? Não é possível.
Como ouso dizer que não é?
Algum dia saberemos. Que dia? Naquele dia, talvez, em que santos e
cientistas se unirem para a busca total da verdade. São os santos, os crentes,
que deverão ter a coragem de instar aos cientistas a que os ajudem a
descobrir se o espírito continua sua vida de energia quando a massa que
chamamos corpo cessa de ser o continente. A fé proporciona hipóteses, mas
só a ciência pode fornecer o computador para a verificação. O descrente
nunca prosseguirá na busca. É sempre estático, uma coluna de sal,
eternamente olhando para trás.
Não há milagres, disto tenho certeza. Se alguém caminha sobre a água,
cura os enfermos e ergue os mortos novamente para a vida, não é uma
questão de mágica mas sim de saber como fazê-lo. Não há sobrenatural; há
apenas o supremamente natural, o puramente científico. Ciência e religião,
religião e ciência, coloquem-no como quiserem, há dois lados da mesma
lente, através da qual vemos obscuramente até que os dois, ajustando seu
foco, revelam a verdade.
No dia em que a mensagem vier lá do distante horizonte onde reside
"aquela grande maioria", os mortos, a prova nos alcançará, não como uma
hoste de anjos no céu, mas como um comprimento de onda gravado num
laboratório, um comprimento de onda tão indiscutível e pessoal como a
impressão digital pertencente a alguém cujo corpo é pó. Então o cientista,
reconhecendo o comprimento de onda, exclamará: "Mas é alguém que
conheço! Tomei seu comprimento de onda antes de ele morrer". E
comparará sua gravação com o comprimento de onda que acabou de gravar e
saberá que pelo menos um aparelho, uma máquina, é capaz de receber uma
mensagem há séculos sonhada, a mensagem da continuação da existência
individual, que denominamos imortalidade da alma.
Ou talvez não seja um cientista que a receba, mas uma mulher esperando
junto de uma janela aberta para o céu.