Pedro Bloch entrevista Guimarães Rosa

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Joo Guimares Rosa - Entrevistado por Pedro Bloch

A Academia Brasileira de Letras, espera de braos abertos e com banda de msica na porta, seu novo membro que dever ser eleito por unanimidade: Guimares Rosa, o genial escritor brasileiro que est invadindo o mundo com sua obra. O espanto dos editores e da crtica de todos os pases, que vm conhecer o singular homem de letras, tem sido imenso. O impacto o da descoberta avassaladora de algo novo, indito, neste mundo j sem originalidades. Joo Guimares Rosa est na minha frente e avisa: Olhe, Pedro. No posso dar entrevista. No dou. Neguei a meus melhores amigos. At a Jos Olmpio. Se dou a voc, me coloco mal diante dele Prometo respeitar seus escrpulos. No entrevista, que no sou entrevistador. conversa. E no de responder a perguntas mas, to amigo sou de Guimares Rosa, tanto o conheo, tanto temos falado, que nem precisaria de ali estar para entrevist-lo. No preciso perguntar nada pra saber que The Devil to day in the Backlands (traduo americana deGrande Serto e que textualmente significa: "Vai Haver o Diabo no Serto") foi editado por Knopf este ano; Il Duello (Primeira parte de Sagarana) tem xito enorme na Itlia, enquanto j se prepara a segunda parte; Seuil, da Frana, publicou, em 1961, Buriti (uma parte de Corpo de Baile) que, por sinal, no inclui a novela Buriti, mas trs outras; em 1962 surgiu Les Nuits du Serto (L'Express proclamou: Guimares Rosa Giono multiplicado por dez!); Livros do Brasil, de Lisboa, alterando todo o seu programa de publicao, d prioridade absoluta obra de Rosa, j tendo lanadoSagarana, com xito invulgar; Feltrinelli, de Milo, publicar Corpo de Baile, Grande Serto e obras

futuras; na Sucia, na Alemanha (Kipenheuer), na Noruega (Gyldendel Norvsk), na Dinamarca, na Tchecoslovquia (Dilia), na Holanda, na Finlndia, na Espanha, em toda parte a obra deste vulto extraordinrio de nossa literatura est provocando acaloradas disputas pela prioridade de publicao. Voc sabe por que no dou entrevista? - diz-me Guimares Rosa. - No por vaidade, por nada. No comeo, quando eu no era ningum, ningum queria entrevistar-me. Depois, com o comeo de minha carreira literria, com Sagarana, comearam a entrevistar-me. As entrevistas saam e eu guardava. No tenho nada contra quem entrevista. Tenho contra mim. Passado tempo ia ver o que tinha dito e no concordava mais comigo. No diria mais aquilo, compreende? No gosto do transitrio, do provisrio. Gosto do eterno. Pra confirmar o que lhe digo, veja voc, por exemplo, aquele questionrio que perguntava "quais as dez palavras mais bonitas da lngua". Eu, por exemplo, no acho bonita a palavra saudade. Pra mim a palavra alma, mesmo graficamente. Das palavras que enumerei, naquela ocasio, s sobraram esta e alegria. Alma feia em qualquer idioma, menos no nosso; anima, me, sou!... Alma, para mim, como tinido de cristal; alegria cacho de uvas esmagado. (Insensivelmente, Guimares Rosa esmaga no cinzeiro o cigarro que

fuma sem vocao para o fumo.)

Seuil, editora famosssima, diz: "Sabemos que estamos diante de uma grandiosssima obra, daquelas que um editor tem rarssima oportunidade de deparar no decurso de sua carreira"; "abrimos uma exceo, enviando trechos das fichas confidenciais de leitura", tal o entusiasmo provocado; "o impacto causado no pblico vai mudar completamente nossa atitude em face da literatura sul-americana". Albin-Michel est em vias de lanar Grande Serto; enquanto isso, Seuil insiste: "Desejamos tornar-nos vosso nico editor, em Frana, publicar Corpo de Baile, Grande Serto" e obras futuras (isto vem em telegrama urgente). No se contentam os editores com a obra que j possuem, mas querem assegurar, para si, tudo o que o escritor brasileiro ainda est para criar. Estou trabalhando em vrias coisas, no momento. Sabe? J entreguei ao Enio Silveira a minha Soberba, parte dos Sete Pecados Capitais. No Brasil acontece uma coisa. Ou se aceita Guimares Rosa com paixo ou se assume a atitude do no entendo, no gosto, sem ter realmente penetrado a obra. Em primeiro lugar preciso que se compreenda a alma dessa criao. - Joo, como que voc, que fala com essa absurda simplicidade, usa todo aquele rebuscamento para criar um conto? Voc conhece os meus cadernos, no conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por minha Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pssaro que voa, cada espcie, tem vo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o vo de cada pssaro, em cada momento. No h nada igual neste mundo. No quero palavra, mas coisa, movimento, vo. Neste instante ele descobre que o fotgrafo est batendo muitas chapas. Pedro, voc me disse que ia s fotografar meus livros, no foi? No dou entrevista e detesto tirar retrato, sabe por qu? que no gosto de minha cara. Um dia o Saldanha Coelho mandou um japons tirar uma foto minha que me agradou. O diabo que eu nunca mais descobri o tal

japons. Fotgrafo de luxo o diabo! Faz tanta coisa pra gente ficar bem, que, no fim, sai um retrato artisticamente formidvel, mas a gente fica com a cara macerada. Eu no quero esta minha cara. Quero parecer forte e valente. Retrato para mim sofrimento. Um dia olhei minha cara no espelho e no gostei. Nunca vi sujeito mais antiptico.

O crtico do The New York Times, Orville Prescott, temido e respeitado, transmitiu, em sua crnica, todo o entusiasmo gerado pelo Grande Serto:"seu livro uma assombrosa realizao"; William L. Crossman proclama: "Rosa arre bata o leitor com a beleza selvagem desses sertes. Estilo mgico";Sunday Star exclama no prprio ttulo: "Um romance extraordinrio"; o The Washington Post diz: "Poderoso manipulador de rico material, magistralmente tecido"; a faixa da edio italiana anuncia a obra "del piu originale narratore sudamericano d'oggi"; Juin, de Lettres Franaises, se alonga em admirao; Marcel Brion, de Nouvelles Littraires: "O estilo de Guimares Rosa uma conjurao mgica"; um jornal belga publica: "Encontram-se neste romance o vigor, o estilo, a opulncia de um grande escritor"; o Progres: "O primeiro livro j era timo; este fascinante." Nasceu em 1908; em Cordisburgo, Estado de Minas. (No diga dia nem ms, pelo amor de Deus! Sabe por qu? Comeam a chegar telegramas, amigos telefonam carinhosamente e isso me d um trabalho louco. Se uma autoridade maior, ainda tenho que agradecer

pessoalmente. Fiz o diabo para mandar tirar meu nome da lista de aniversrios, nos jornais.) filho de Florduardo Pinto Rosa e Dona Chiquinha Guimares Rosa. Em menino eu gostava de isolamento. Trancava-me no quarto, deitavame no cho a imaginar histrias. Acho que na vida da criana existe um excesso de adultos invadindo. Guimares Rosa j havia prometido: Um dia ainda hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos. Rosa sempre teve grande pendor para lnguas. Seu primeiro professor foi "seu" Candinho, e o franciscano Frei Esteves o introduziu no francs. Guimares Rosa mdico: Fui exercer a Medicina, durante dois anos, em Itaguara (Itana). S lia Medicina. Naquele tempo, quando eu tinha que atender a doentes, montado a cavalo, longe, achava que qualquer coisa que eu lesse fora da Medicina me enfraquecia. Devorava tudo com angstia, voracidade. Se ao atender um doente eu tivesse lido um jornal ou qualquer coisa no mdica, tinha uma impresso de falta, enfraquecimento. Eu no podia aceitar, por exemplo, que doente meu morresse! Guimares Rosa foi mdico na Fora Pblica de Belo Horizonte. Depois, em 1934, era, em Barbacena, oficial-mdico do 9 Batalho de Infantaria. Fui colega e contemporneo de Juscelino. Ele chegou a coronel da Fora Pblica. Eu fiquei em capito. Vivia estudando lnguas para me afogar daquela vida de interior. Em 1934 mesmo veio para o Rio para fazer concurso para o Itamarati. Hoje o Embaixador Guimares Rosa, trabalhando em Fronteiras. Escreveu um livro de poesias, quando ainda morava na Praa da Repblica e estudava para o concurso. O livro, Magma, foi premiado pela

Academia, mas jamais quis public-lo. Em 37 concluiu Sagarana. Como diplomata esteve em Paris, Bogot, Hamburgo. Em 1946 foi chefe de gabinete do Ministro Joo Neves da Fontoura, cuja cadeira ir ocupar na Academia. Que que voc quer que eu diga de Joo Neves? Ele representou tanta coisa para mim! Quando morreu me telefonaram de um jornal pedindo uma frase sobre ele. Como que eu posso resumir Joo Neves numa frase? Por essas e outras que eu no dou entrevista. H pouco esteve aqui, comigo, uma moa do The New York Times. Travou comigo uma luta enorme: Quando voc me faz uma pergunta como se estivesse alterando alguma coisa em mim, compreende? Passados instantes e mudando de tema: Sempre fui mstico. Tudo tem causa. A religio no est na bondade. Bondade acessrio, compreende? Guimares Rosa, num de nossos papos, j me havia dito: Voc sabe, Pedro Bloch, nunca se pode fazer lista das melhores coisas da vida. A razo simples: se elas chegam de repente ... falta preparo; se as prevemos... fica sendo cpia. Eu acho que todas as coisas acontecem como se estivessem preparadas antes. A sorte grande lei da vida e a sorte deve ter suas leis. O mundo algo plstico. A f criadora. No f acreditar-se num sistema. S vemos pedacinhos, fragmentos de uma coisa sempre maior. O momento feliz, j reparou?, no o que ocorre naquele instante. Est sempre associado a outros lugares e outros tempos. violino querendo ser orquestra. S as coisas boas so completas.

A Araci, sua esposa, Guimares Rosa trata de Ara. a ela que ele dedica o Grande Serto, sua obra mxima. Com ternura, certo dia, me conta o que ela fez, a seu lado, para salvar os perseguidos do nazismo. Deixava de comer para socorrer. Muita gente ainda chora, ao deparar com Araci e Guimares Rosa, relembrando as vidas que roubaram Gestapo. Laura Beatriz a netinha de quem Rosa me conta frases para os meus livros de bolso: "Sabe, me? A bola deve gostar muito de mim porque eu jogo ela longe e ela volta." Olhando uma frigideira empretecida: "Olha, mame, o de noite da panela." 'Contemplando a chuva: "Me, a caminha da chuva o saco de papel que est no cho da rua." Laura Beatriz trata Guimares Rosa de Vov Beleza. Quando telefona diz: - Um beijinho pra voc, filhinho do beijo grande que j dei pra voc. Adolpho Bloch, certo dia, diante de um indivduo que criticava seus quadros abstratos, com aquele no entendo de quem no gosta, respondeu ao cavalheiro: - Pr-de-sol o senhor entende? Isso se associa ao que muita gente diz quando declara no entender o autor de Primeiras Estrias. Diz isso com ar de quem olhou um quadro abstrato ... e ficou no ar. O curioso (e nisso est a grandeza) que, quando as pessoas dizem que no entendem, no caso do quadro o fazem, sempre, censurando o quadro. No caso de Guimares Rosa, na grande maioria dos casos, confessam uma culpa, censuram a prpria sensibilidade. E tm muita razo em faz-la. Guimares Rosa encontrou nas palavras uma quarta dimenso. Elas esto pejadas de novos sentidos. Mesmo apelando para os nossos sentidospoderamos repetir com Drummond que "cinco sentidos to pouco!" Especialmente quando se trata de penetrar a obra de Rosa. As palavras esto nele sentidas e ressentidas, criadas e recriadas. Quem conseguiria dizer como ele, falando de certo indivduo que "ele era um rico diabo bem-trapilho"?; "Enormes e desenormes"; "mudou e demudou"; "essezinho, essezim"; "abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debrua, o vo j est pronto"; "tosse, tossura da que puxa secos peitos"; "por isso que se carece principalmente de religio: para se desendoidecer, para desdoidar"; "antesmente"; "um era ruim, como o outro ruim era"; "um poucadinho"; "sozinhozinho"; "uma tristeza

que at alegra"; "Como no ter Deus?! Com Deus existindo, tudo d esperana; sempre um mi1agre possvel, o mundo se resolve." .

E no me venham dizer que o importante em Guimares Rosa s forma. Contedo est ali, em cada frase, em cada palavra, em cada silncio, em cada desfalar. Vou dirigindo o carro e conversando e as coisas vo brotando e desbrotando. A no entrevista conversa de amigo, conversa de todos os dias, de telefone comprido, de comprida presena. Nossa bondade diferente - explica Rosa. - Bondade no tem nada que ver com religio.Depois: O meu amor exige distncia. Eu s sou sincero quando estou sozinho. No posso ser sincero no estando s. E adiante: Entrevista no posso. Pra qu? Voc j me conhece to bem! Voc sabe o que vai dizer. - Fale de seu pai. Papai um homem muito rigoroso. Quando eu era menino me levava pra caar com ele. Quando eu avistava caa, gritava por papai. Ele vinha correndo e a caa fugia. Um dia papai desconfiou que eu gritava de propsito para que ele no pudesse matar os bichos e nunca mais me levou. Papai era comerciante, est velhinho hoje. Quando eu era garoto

pensava que era rico. L, em Cordisburgo ... eu era. Mas quando precisei ser rico ... cad? - Voc no acha que seria bom, para aproximar sua obra do grande pblico, para que o pblico venha conhecer melhor Guimares Rosa gente, falar mais de voc? No. Quero que a minha obra se imponha sozinha. O livro deve ser vendido como toucinho, manteiga. Nunca quis ajuda de pessoas amigas para os meus livros. Deve ser coisa impessoal. A prova da arte vender-se por si. Eu no crio facilidade, crio dificuldade. S acredito no eterno. No quero facilidades. Por isso meu livro Sagarana comea com o conto mais difcil. Se eu pudesse s poria, nas capas, as crticas que escrevessem mal de meus livros, para dificultar ainda mais. Tenho tanta confiana de que a minha obra vai crescer com o tempo que sua divulgao no me preocupa. A conversa muda de rumo: Quando vim para a cidade grande, respirei ao ver que a gente no conhece o condutor nem o vizinho. A cidade grande desumaniza ... mas depois, humaniza num plano mais alto. Detesto o cotidiano. Pra mim um suplcio comer, fazer a barba, vestir. O todo-dia um inferno. No leio jornal na hora. Jornal angstia concentrada. S leio matutino noite ... pra dar distncia. Vivo para uma coisa maior, um vir-a-ser de uma natureza diferente. A arte permite isso. Permite essa transformao. Por mim os livros no deviam nem trazer nome do autor. O autor devia ser um mistrio. Estamos quase chegando e eu pergunto cretinamente: - Por que voc s usa gravata borboleta? No , pergunta de entrevista, ? - No. que eu acho que a gravata borboleta define as pessoas. porque nunca aprendi a dar lao nas gravatas comuns. Acho esta mais fcil.

Paro o carro, enquanto Rosa termina um pensamento de algo discutido antes: Vejo o ser humano como rascunho do que vai ser. Ele salta e se despede: Desculpe, Bloch. No fique decepcionado comigo, mas eu no dou entrevista. Voc compreende, no ? No posso magoar os outros. E fecha a porta do carro, enquanto lhe grito: - E o Brasil, hem? O Brasil, como? - Voc no est sofrendo com as surras que estamos levando na Europa em futebol? - Eu no leio as derrotas do Brasil. ("Voc sabe que eu fui center-half no time do meu colgio?") E ao se afastar: S leio jornal quando o Brasil ganha.