Pedro e o Capitão

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  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PEDRO E O CAPITO

    MARIO BENEDETTI

    1979

    Traduo de Andressa Molinari, Eveline Teles, Gabriel Dauer, Isabel Bastos, Luza

    Helena Virglio, Marina Andrade, Tiago Mocellin, Vitria Eula

    Reviso de Tamara Traldi e Wellington Bauer

    Oir Grupo de Pesquisa e Extenso em Cooperao Regional

    Universidade Federal de Santa Catarina

    Maio 2013

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    PARTE 1

    Cenrio livre: uma cadeira, uma mesa, uma cadeira de balano. Sobre a mesa h

    um telefone. Em uma das paredes h uma pia com sabo, copo, toalha etc. A janela alta e com grades. Entretanto, no deve dar a impresso de uma cela, mas sim de

    uma sala de interrogatrio.

    PEDRO entra amarrado e com capuz, empurrado por seus supostos guardas e

    soldados, os quais no so vistos. Torna-se evidente as agresses sofridas

    provenientes de uma primeira seo leve de leses fsicas. PEDRO fica em p

    imvel onde o deixaram, esperando por algo, talvez mais castigos. Passaram-se

    alguns minutos e com isso entra o CAPITO impecvel: uniformizado, com a cabeadescoberta, bem penteado, com ar de suficincia. Aproxima-se de PEDRO e o toma

    pelo brao sem violncia. Perante o contato, PEDRO, intuitivamente, faz um

    movimento de defesa.

    Capito

    No tenhas medo. s para te mostrar onde est a cadeira.

    O guia at a cadeira e o faz sentar. Pedro continua rgido e desconfiado. O Capito

    vai mesa, revisa alguns papeis e logo se senta.

    Capito

    Parece que te bateram de leve. No falaste, claro.

    PEDRO mantm o silncio.

    Capito

    Isso sempre acontece na primeira sesso. Inclusive, bom que no fale logo na

    entrada. Eu tambm no falaria de primeira. Depois de tudo, no to difcil

    aguentar umas pancadas e isso ajuda que se sinta bem. Verdade que te sentiste

    bem por no haver falado?

    Silncio de PEDRO.

    Capito

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    Logo a coisa muda, porque os castigos vo sendo cada vez mais duros. No final

    todos falam. Para ser franco, o nico silncio que eu aceito o da primeira sesso.

    Depois masoquismo. A conta que tens que fazer se vais falar quando te

    quebrarem os dentes ou quando te arrancarem as unhas ou quando vomitares

    sangue ou quando... Ah, o que vem a seguir? Bem, voc conhece o repertrio, j

    que constantemente vocs o publicam aos mnimos detalhes. Todos falam garoto.

    Mas uns acabam mais inteiros do que outros. Refiro-me ao fsico, logicamente. Tudo

    depende em que etapa decide abrir a boca. Voc j se decidiu?

    Silncio de PEDRO.

    Capito

    Olhe Pedro... Ou preferes que te chames de Romulo, como s conhecido no seu

    grupo? No, eu vou te chamar de Pedro, porque aqui a hora da verdade e meu

    estilo , acima de tudo, a franqueza. Olhe Pedro, eu entendo tua situao. No

    fcil para ti. Levava uma vida relativamente normal. Digo normal considerando o que

    so esses tempos. Uma mulher linda e jovem. Um garoto saudvel. Teus velhos

    continuam animados. Um bom emprego no banco. A casinha que tu ergueste com o

    prprio esforo. (mudando o tom). A propsito, por que ser que a gente da classe

    mdia, como eu e voc, temos to enraizado o ideal da casa prpria? Por acaso

    vocs pensaram nisso quando se propuseram a criar uma sociedade sem

    propriedade privada? Pelo menos nesse ponto, o da casa prpria, nada vai apoia-

    los. (retomando o tom). Ou seja, voc tinha uma vida simples, mas completa. E, do

    nada, uns tipos bateram na tua porta de madrugada e te arrancaram dessa plenitude

    e ainda por cima te do uma tremenda surra. Como no vou me colocar em sua

    situao? Seria desumano se no entendesse. E no sou desumano, te asseguro.

    Agora, te esclareo que, aqui mesmo, h outros que so quase desumanos.

    Contudo, tu ainda no os conheceste, mas talvez os conheas. No me refiro aos

    que antes o capturaram. No, tem outros que so tremendos. Confesso-te que no

    poderia fazer esse trabalho sujo. Para ser honesto tem que ter nascido honesto. Faz

    parte da guerra. Tambm vs tendes, imagino trabalhos limpos e trabalhos sujos.

    assim ou no? Eu sou frouxo, talvez eu realmente o seja, mas prefiro o trabalho

    limpo. Como este: sentar-me aqui e conversar contigo, e no recorrer briga, nemao submarino, nem ao planto, se no existe razo. Minha especialidade no o

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    choque eltrico, mas sim o argumento. O choque pode ser manejado de qualquer

    maneira, mas para manejar o argumento tem que ter outro nvel. Concordas? Por

    isso tambm eu ganho um pouco mais que os homens eltricos. (Da um golpe para

    frente, como que surpreendido pela sua habilidade verbal.). Os homens eltricos!

    Como tu achas que so? Como nunca me ocorreu de cham-los assim? Esta noite

    no cassino contarei ao Coronel: ele tem senso de humor, ir gostar. (se cala um

    momento. Olha para PEDRO, que continua imvel e calado). Se estiver cansado da

    posio, podes cruzar a perna. (PEDRO no se move.) Parece que optaste por uma

    resistncia passiva. O fraco Gandhi sabia muito sobre isso. Mas uma coisa eram

    hindus contra ingleses e outra, muito diferente, so vs contra ns. A resistncia

    passiva hoje em dia no resulta, nem resolve nada. como te disse antiquado.Desde que os Yankees viu que eu digo Yankees, igual a vs?- impuseram seu

    estilo to eficaz de represso, que a resistncia passiva se foi ao caralho. Agora o

    negcio a morte. Por isso acredito que, mesmo nessa primeira etapa, no te

    convm ser teimoso. Percebes que nem sequer me contestas quando te pergunto

    alguma coisa. Isso no est bem. Porque, como havia observado, no estou aqui

    para te maltratar, seno simplesmente para falar contigo. Vamos ver, porque esse

    silncio? Ser um silncio depreciativo? Consideramos que sim. Aqui, nesta guerra,todos ns nos desprezamos um pouco. Vs e ns, ns e vs. De qualquer forma

    somos inimigos. Por outro lado, tambm nos apreciamos. Ns no podemos deixar

    de apreciar- vos pela paixo com que se entregam a causa, como arriscam tudo por

    ela: desde o conforto at a famlia, desde o trabalho at a vida. No entendemos

    muito o sentido desse sacrifcio, mas te asseguro que o apreciamos. Em

    compensao tenho a impresso de que um pouco da violncia que fazemos a ns

    mesmos quando temos que castig-los, s vezes at arruin-los, a vs que apesarde tudo so nossos compatriotas, e acima de tudo compatriotas jovens. Parece-te

    pouco sacrifcio? Tambm somos seres humanos e gostaramos estar em casa,

    tranquilos, relaxados e descansados, lendo um bom livro policial e assistindo

    televiso. Porm, temos que permanecer aqui, cumprindo horas extras, para fazer

    essa gente sofrer, ou, no meu caso, para falar com essa mesma gente entre

    sofrimento e sofrimento. Meu tempo um intermdio, viu? (mudando o tom.).

    Gostas de msica, de pera? J sei que no vais me responder... Por enquanto

    (retomando o tom.). Mas o que queria lhe dizer que suspeito que vs aprecieis,

    no sei se consciente ou inconscientemente, a paixo que ns, de nossa parte,

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    depositamos em nosso trabalho. assim? (Pela primeira vez, o tom da pergunta

    comea a ser ameaador. PEDRO no responde nem se move.). Deixa-me ver... A

    vs no tenho que explicar as regras do jogo. Tu as conheces bem e at sei que

    recebeis aulas para enfrentar situaes como essas que vives agora. Ou no sabes

    que entre ns h interrogadores maus, quase brutais, esses que so capazes de

    arruinar o detento, e h tambm os bons, que recebem o preso quando ele vem

    cansado do castigo brutal e vo pouco a pouco o amolecendo? Sabes verdade?

    Ento te deste conta de que eu sou o bom. Desse modo tu tens que aproveitar.

    Sou o nico que pode te aliviar a surra, rapidez nos plantes, suspenso de choques

    eltricos, melhora nas comidas, um ou outro cigarro... Pelo menos sabes que,

    enquanto ests aqui, comigo, no tens que manter todos os msculos e nervostensos, nem fazer clculos sobre quando e donde vir o prximo golpe. Sou algo

    como o teu descanso, teu alvio. No sabes? Ento acredito que seja mais

    adequado que voc encerre o seu silncio absurdo. Conversando a gente se se

    entende, dizia meu velho, que era rematador, ou seja, que tinha suas boas razes

    para confiar no uso da palavra. Digo-te isto para que tenhas uma composio do

    lugar e no ultrapasse teus direitos, si no queres que eu ultrapasse meus deveres.

    Posso respeitar o direito que tens de calar-se em minha frente, que no tenho ainteno de tocar-te. Mas no quero que saibas que no estou disposto de fazer

    papel de estpido cedendo e cedendo meu desfecho, e vs a, calado como um

    poste. Tambm no espere o impossvel da parte do bom. Sobretudo quando o

    bom conhece alguns detalhes da tua trajetria. Pedro, alis, Rmulo. Mas, - e para

    que no te tortures alm do que vo te torturar-, te direi que no tem nenhuma

    necessidade de falar de Toms, nem de Cassandra, nem de Alfonso. A historia

    deles j temos completa. No nos falta nenhum ponto, nenhuma vrgula, nem sequerum parnteses. Para que vamos quebrar o seu pescoo pedindo dados que j temos

    e verificamos? Seria sadismo, e ns no somos sdicos, seno pragmticos. Em

    troca, sabemos pouco de Gabriel, de Rosario, de Magdalena e de Fermn. Em

    alguns desses casos, nem sequer sabemos o nome real e o domiclio. Vejas que

    margem ampla tu tens para nos ajudar. Agora, porm, para completar as quatro

    abas, e, como sabemos, com certeza que voc , nesse sentido, o homem-chave,

    estamos dispostos no eu, pessoalmente, digo ns como instituio a

    quebrarmos no somente seu pescoo, mas seno os ovos, os pulmes, o fgado e

    at a aurola de santo que alguma vez quiseste usar, mas te parece grande. Como

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    vs, coloco as cartas sobre a mesa. No poders me acusar de mentiroso nem de

    ambguo. Est a situao. E como, de alguma maneira, me s simptico, te digo

    claramente para que saibas que s respeitado. Ou seja, que eu tenho simpatia por ti,

    mas no lstima nem piedade. E por suposto h aqui, nesta unidade militar- que

    nunca saber qual -, gente que, por principio e sem necessidade de saber nada de

    vs, no tem simpatia por ti, e so capazes de levar-te at o ltimo minuto. E no s

    a vs. Eles, os da linha dura, preferem s vezes trazer a esposa do acusado, e,

    como te direi, perfura-la em sua presena, e at tem aqueles que so partidrios

    da tcnica brasileira de fazer os filhos sofrerem diante dos pais, sobretudo de sua

    me. Tu imaginas que eu no me associo a esses extremos, me parecem

    simplesmente desumanos, mas vamos ser objetivos, temos que admitir que taisextremos constituam uma realidade, uma possibilidade, e no me sentiria bem se

    no tivesse te avisado e um dia te encontraria com algum orangotango, como esses

    que antes te deram uma surra de introduo, violaram frente a vs a essa linda

    garota que s tua mulherzinha. Chama-se Aurora, no? Asseguro que nesse caso te

    tirariam o capuz. So orangotangos, mas refinados. Quanto tempo tem de casado?

    verdade que no ltimo dia vinte e dois de outubro celebraste teus oito anos de

    matrimnio? A Aurora gostou da correntinha de ouro que tu compraste na RuaSarand? E o que me conta se chegam a trazer o Andresito e comeam a tortura-lo

    na tua presena? Este ltimo, como te dizia, ainda no foi aprovado como recurso,

    mas os assessores o tem estudado, e, claro, sempre haver algum que ter que ser

    o primeiro. Nunca estarei de acordo com esses procedimentos, porque confio

    plenamente no poder de persuaso que tem um ser humano frente a outro ser

    humano. Mas, acho que os homens eltricos usam os choques porque no tem

    confiana em seu poder de persuaso. E, alm disso, consideram o preso umobjeto, uma coisa na qual vo pressionar por procedimentos mecnicos, a fim de

    que ele libere todas as suas substncias. Eu, ao contrrio, nunca perco de vista que

    o detento um ser humano como eu. Equivocado, mas ser humano! Tu, por

    exemplo, assim como ests, calado e imvel, poderia ser simplesmente uma coisa.

    Talvez o que ests tentando coisificar em minha frente, mas por mais quieto e

    mudo que permaneas, eu sei que no s um objeto, eu sei que s um ser humano,

    e, sobretudo um ser humano com pontos sensveis. Pontos sensveis que, claro, as

    coisas no possuem. (Pausa). J pensaste nos ovos, claro! Quando algum fala de

    pontos sensveis, de praxe: as mulheres pensam nos seios, e os homens nos

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    ovos. Um fato que muito importante no esquecer. J dizia o pobre Mitrione, que

    sabia de tudo: dor preciso, no lugar certo, na medida certa e, com efeito,. claro

    que, segundo o ponto de vista de tuas respeitveis convices, bravo expor a si

    mesmo a mera possibilidade de falar, de entregar dados, referncias. No

    simptico que algum o acuse de traidor. Mas aqui h um elemento que por acaso

    vs ignoreis. Um tratamento que disponibilizamos apenas a gente que nos caem

    bem, como vs, rapaz. Damos-te a possiblidade de que nos ajudes sem ficar de mal

    com teus companheiros. Que voc acha? Melhor impossvel. Parecer-te- vaidade

    da minha parte, mas para ns nada impossvel. Queres que eu te explique? O

    plano tem quatro partes. Primeira: tu falas, quanto antes melhor, assim no temos

    necessidade de ameaar-te: dizes-nos tudo, tudinho, sobre Gabriel, Rosario,Magdalena e Fermn. Veja que poderamos dar-te uma lista com vinte nomes,

    entretanto, bons como somos, inclumos somente quatro. Quatro, te ds conta? Uma

    barganha. Segundo. Terminamos alguns procedimentos, com as informaes que

    espontaneamente, entende? Espontaneamente, nos proporcionaria. claro que

    esses procedimentos nos servem, entre outras coisas, para comprovar se est

    efetivamente colaborando, ou ao contrrio, est nos enganando. No te aconselho a

    segunda opo. Se, ao contrrio, confirmarmos a primeira, no te soltaremos emseguida. Isso para o teu bem, para que teus companheiros no suspeitem.

    Deixamos passar um tempo e depois te soltamos. Lindo, no? Terceiro: Inventamos

    um documento em cdigo ou uma lista de telefones ou qualquer outra coisa que

    entraramos em acordo, e fazemos que o ataque foi devido ao descobrimento fortuito

    dessa lista ou o que seja, e sobre toda a nossa capacidade dedutiva, assim

    terminamos bem. Como vs estais divididos, cada parte acreditar que a lista vem

    de outro informante. Quatro: Soltamos-te por finalmente, e vs quando te juntar aosoutros, digas que negaste tudo com tanta firmeza que nos convencera de tua

    inocncia. O que tu acha? (PEDRO continua imvel). Advirto-te que no podes

    esperar uma soluo melhor que a que te propus. Tem em conta que nunca foi

    empregado at agora, de modo que as suspeitas sobre vs no tero fundamento.

    Mas tenho a impresso de que sairs favorecido quanto a prestigio e autoridade. E

    alm do mais te livrar de toda essa imundcie. s muito jovem para destruir-te, para

    arruinar-te. Poderias voltar com Aurora e com a criana. No te d gua na boca?

    Aurora te receberia como heri, e, claro, no inicio teria algum remorso, mas com

    uma mulher como a tua, os remorsos se esvaem na cama. Isso sim, tu tens que me

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    responder. At agora suportei que no dissera nada. Mas, poucos detentos tem o

    privilgio de receber uma proposta to generosa. Por que tem me cado to bem?

    De maneira que ter que me responder. Para que vs e eu saibamos a que nos

    atemos. Concretizemos, pois; frente a essa proposta, ests disposto a falar, ests

    disposto a dar-nos alguma informao que te pedimos? (se faz um grande silencio.

    PEDRO continua imvel. O CAPITO sobe o tom). Ests disposto a falar? (O capuz

    de PEDRO se move negativamente).

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    PARTE 2

    O mesmo cenrio.

    Passados uns minutos, Pedro amarrado e com capuz novamente colocado em

    cena, como na cena anterior, mas com mais violncia. Agora est mais deteriorado.

    evidente que o castigo sofrido tenha sido severo. Pedro busca a cadeira com as

    mos. Por fim a encontra e senta com dificuldade. De vez em quando sai de sua

    boca um gemido quase inaudvel. Entra o Capito: aparncia e roupa igual cena

    anterior. Observa cuidadosamente Pedro, fazendo um inventrio de suas novas

    contuses e feridas.

    Capito (Em p, com as pernas abertas e os braos cruzados).

    Viu? J comeou a aumentar. No poders dizer que no te avisei. Veja que bestas

    que so estes subordinados! E tens que deix-los fazer. Ao contrrio, provvel que

    nos revidem. (Pausa). No acreditas? No estou brincando. Mas a verdade que h

    mais de um oficial que amedrontam. (Pausa). Ento? Dei-te tempo para pensar.

    Pensou? (Silncio e imobilidade de Pedro.) Eu te digo uma coisa. No creio que

    vamos seguir todo um semestre nesta situao, digamos estagnada. Por um lado,

    no acredito que seu corpo aguentar por muito tempo. No o que se diz de um

    atleta. No me refiro a mais perguntas, claro, mas sim aos choques eltricos.

    (Mudando de tom.) A propsito, minha piada fez muita graa ao coronel. No

    apenas riu, mas tambm me disse: Capito, temos que cuidar para que no haja

    nenhum apago. A piada no boa, mas o que eu ia fazer. (Retomando a

    conversa.) O que estava dizendo? Ah, sim, que estvamos estagnados. Por mim,

    quero sair desta estagnao. Imagino que voc tambm. Por isso decidi colocar um

    elemento novo na situao. (Pausa.) No tem curiosidade? O que ser? Uma

    testemunha? Algum que te delatou? (Nova pausa, para criar expectativa.) No,

    nada disso. O novo elemento ser seus olhos. Quero que vejas e que eu posso ver

    como voc v. (Aborda Pedro e de uma vez retira o capuz. Pedro est ferido e

    marcas de golpes na face. Abre e fecha vrias vezes os olhos). Bom, bom.

    (Sorrisos.) Muito bem. melhor nos vermos cara a cara, no? Nunca gostei de falarcom um saco de pano. H alguns colegas que no querem te ver preso. E alguns

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    tem razo. O castigo gera rancor, e nunca sabemos o que pode nos trazer no futuro.

    Quem te disse que algum dia est situao se inverta e que voc me interrogue. Se

    isso vier a acontecer, te prometo que vou colaborar mais que voc. Mas no vai

    ocorrer, no se iluda. Temos tomado todas as precaues para que no ocorra. Por

    outro lado, no me preocupo que conhea meu rosto. O mximo que podemos

    culpar o que eu estava perguntando e perguntando, mas penso que no gera

    rancor, creio. Ou gerado? (Pausa.) Ah sim, sem capuz, mais difcil falar,

    verdade?

    Pedro

    Sim.

    Capito

    Caramba! Primeira slaba. Toda uma concesso. Parabns!

    Pedro (Tem certa dificuldade ao falar, por causa do inchao da boca).

    Quero esclarecer que o fato de voc no participar diretamente na minha tortura,

    no garante que eu te odeie, nem sequer que te odeie menos.

    Capito (Se surpreende um pouco, mas reage).

    Est bem. Eu gosto de jogo limpo.

    Pedro:

    No, voc no gosta. Mas no importa. Quero dizer tambm, que com o capuz no

    abri a boca porque tenho um mnimo de dignidade e que no estou disposto a

    renunciar, e o capuz algo indigno.

    Capito (Depois de um silncio)

    Isso de dio, por que disse isso?

    Pedro

    Por que eu disse?

    Capito

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    Sim, pude compreender o que sente. Em troca, no pude compreender que me

    disse isso assim, descaradamente. Aqui eu estou por cima, e voc est por baixo.

    Esqueceu?

    Pedro

    No, no me esqueci.

    Capito

    Eu mostro dio, gero dio.

    Pedro

    Claro.

    Capito

    Vou avisar que no vou entrar nesse jogo. Sou cristo, mas no costumo dar a outra

    face.

    Pedro

    Por suposto. O fato que eu coloquei fui eu, e olha o que eu tenho. As bochechas e

    as costas e as pernas e as unhas.

    Capito

    E amanh os ovos.

    Pedro

    Se voc diz.

    Capito

    Digo-te, mando e os outros cumprem. O que voc acha? (Gesto de Pedro. O capito

    solta uma risadinha.) De toda maneira, te aconselho que no me provoque, sou de

    pouca pacincia, sabe?

    Pedro

    Eu sei. Talvez eu saiba mais de voc do que voc de mim.

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    Capito (Irnico)

    No me digas!

    Pedro

    Sim eu digo. Em sua nsia de sugar tudo o que eu sei e o que eu no sei, voc no

    percebeu que mostra quem voc .

    Capito

    E como eu sou?

    Pedro:

    Bah...

    Capito

    Parece que eu te perguntei como eu sou.

    Pedro

    Sim, eu sei. Mas absurdo. Coloca-me em preso, faz com que me arrebentem e

    ainda por cima quer que eu sirva de analista. Isso no!

    Capito

    Depois de tudo, eu imagino como eu sou.

    Pedro

    Ento eu estou de acordo com esse autodiagnstico.

    Capito

    E se eu me imagino nobre e digno?

    Pedro

    Sabe o que ? Voc no pode se passar por um eltrico. (Pausa muito breve.) No

    se pode imaginar nobre e digno.

    Capito (Gritando)

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    Cala-te!

    Pedro

    Como? No queria que eu falasse? E agora que decido falar...

    Capito (Mais baixo, mas concentrado).

    Cala-te, estpido.

    Pedro

    Est bem.

    Capito (Depois de um tempo, mais calmo, como se reconsiderasse)

    Depois de tudo, no me considero nobre ou digno. Mas a quem importa minha

    nobreza e minha dignidade? Em? A quem?

    Pedro

    Deveria lhe importar. O que me ...

    Capito

    Isto tambm est nas instrues? Estabelecer uma distncia saudvel com o

    interrogador?

    Pedro

    voc quem estabelece a distncia. Como pode haver comunicao, aproximao,

    dilogo, entre um torturado e seu torturador?

    Capito (Com certo alarme)

    Eu nem sequer te toquei.

    Pedro

    Sim, j sei; o bom. Mas h aqui bons e maus? Voc no ser como o

    mastodonte que me faz o submarino, como a besta que me aplica o choque eltrico?

    A mesma engrenagem, a mesma mquina? Por acaso voc mesmo pode crer que

    haja diferena?

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    Capito

    Ests passando de insolente.

    Pedro

    Ento volto a me calar.

    Capito (Depois de um silncio)

    E no queres me perguntar nada?

    Pedro

    Eu perguntar?

    Capito

    Sim, voc perguntar.

    Pedro

    Do que se trata? Uma nova tcnica ps Mitrione?

    Capito

    Na melhor das hipteses

    Pedro (Reconsiderando)

    Bem, vou te perguntar: tem famlia?

    Capito (Surpreendido)

    Por que te importa?

    Pedro

    No me importa nada. A quem deve importar, se tiver uma, a voc.

    Capito

    Ests me ameaando?

    Pedro

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    Isso se chama deformao profissional! Vocs, quando se recordam da famlia de

    algum sempre para ameaar.

    Capito

    E ento para que queres saber?

    Pedro

    Porque se tens pais, mulher e filhos terrvel para ti quando voltas para casa.

    Capito (Gritando)

    O que dissestes?

    Pedro

    Explico-me. Deve ser terrvel para voc, depois de interrogar um recm-torturado,

    dar um beijo na sua mulher ou em seu filho, se tem algum.

    O capito se levanta e d um soco na boca de Pedro.

    Pedro (Move os lbios e fala com mais dificuldade que antes).

    Menos mal que voc o bom.

    Capito

    Tudo tem seu limite.

    Pedro

    Vai se arruinar Capito. No esquea que o bom no pode nem deve executargolpes em um homem amarrado. (Pausa) De todas as maneiras te comunico que

    no podes competir com teus colegas da noite. Eles fazem muito melhor. E lgico.

    O que eles fazem eletricamente, voc faz com sangue. Assim no se pode competir.

    Capito

    Disse que basta.

    Pedro

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    No brigaro quando se derem conta de que perdestes a calma? Violou as regras

    Capito.

    Capito (Falando entre dentes).

    Olhe pirralho, cale-se.

    Pedro

    No gostou da parte da famlia, no ? Primeiro: quer dizer que tem uma. Segundo:

    que no to insensvel.

    Capito (Mais calmo)

    Vais falar ento?

    Pedro

    Estou falando, no estou?

    Capito

    Sabes a que me refiro.

    Pedro

    Capito, no tire concluses precipitadas.

    Capito (Desorientado)

    Mas por qu? Por qu? (Gesto de Pedro.) No te ds conta, cretino, de que esto te

    usando? No te ds conta de que outros pem as ideias e tu pes a cara?

    Pedro

    Essa frase tima. De onde a tiraste? (Pausa.) Inclusive s vezes pode estar certa.

    Capito

    E ento?

    Pedro

    Ento, nada. O essencial no o defeito individual...

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Capito (Concluindo a frase)

    ... E sim a vontade do coletivo. Pargrafo sete, inciso A, da declarao interna que

    vocs analisaram em agosto.

    Pedro

    E se conhecem a declarao de agosto, para que toda esta farsa?

    Capito

    Uma coisa a declarao, e outra voc.

    Pedro

    Ou seja, que temos um delator.

    Capito

    Por que no? O que esperavas?

    Pedro

    E como que no lhes disse tudo sobre Gabriel, Rosrio, Madalena e Fermn?

    Capito

    Porque no sabe.

    Pedro

    Ah.

    Capito

    Por outro lado, sabia sim de ti e por isso castes. Alm disso, nos disseram que voc

    sabia sobre os outros quatro.

    Pedro

    Ah.

    Capito (Depois de um longo silncio)

    Diga-me algo, sabes o que te espera?

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Pedro

    Posso imaginar.

    Capito

    Talvez seja muito pior do que imaginas. Diariamente fazemos progressos.

    Pedro

    O que imagino sempre pior.

    Capito

    Mas o que s? Um suicida?

    Pedro

    Nada disso. Eu gosto de viver.

    Capito

    Viver aprisionado?

    Pedro

    No, simplesmente viver.

    Capito

    Ofereo-te que vivas, simplesmente.

    Pedro

    No, simplesmente no. Voc me oferece que eu viva como um morto. E antes

    disso, prefiro morrer como um vivo.

    Capito

    Bah, frases.

    Pedro

    Eu a disse de propsito. Pensei que gostaria. Vocs, quando fazem um discurso,

    falam sempre enfaticamente.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Capito

    Antes me perguntastes da famlia. Sim, tenho uma mulher e um casal de filhos. O

    menino tem sete anos; a menina, cinco. certo que s vezes, quando chego dotrabalho, difcil enfrent-los. Aqui no torturo, mas ouo muitos gritos, gemidos

    devastadores, bramidos de desespero. s vezes chego com os nervos destroados.

    Minhas mos tremem. No sirvo muito para este trabalho, mas estou aprisionado. E

    ento encontro apenas uma justificativa para o que fao: conseguir que o preso fale.

    Conseguir que nos d a informao da qual precisamos. claro que sempre prefiro

    que fale sem que ningum o toque. Mas assim no d, no vem nada. Nas vezes

    que conseguimos algo, sempre com a mquina. lgico que se sofre vendo

    outros sofrerem. Dissestes que no era insensvel, e certo. Ento, veja, a nica

    maneira de me redimir ante as crianas estar consciente de que estou

    conseguindo o objetivo que me atriburam: obter informao. Mesmo que tenhamos

    que destruir vocs. vida ou morte. Ou destrumos vocs ou nos destroem. Vida

    ou morte. Voc colocou o dedo na ferida quando mencionou minha famlia. Mas

    tambm me fizeste recordar que de qualquer maneira, tenho que te fazer falar.

    Porque s assim me sentirei bem ante minha mulher e filhos. S me sentirei bem se

    cumprir minha funo, se alcanar meu objetivo. Porque do contrrio, serei

    efetivamente um cruel, um sdico, desumano, porque terei ordenado que te torturem

    para nada, e isso uma porcaria que no suporto.

    Pedro (Olha para ele com certa curiosidade, com um interesse quase cientfico,

    como quem examina uma espcie extinguida)

    Algo mais?

    Capito

    Sim, uma pergunta. a mesma de antes, mas aspiro que agora entendas melhor,

    confio que te ds conta de toda a vida que ponho atrs dela. Falars?

    Pedro (Ainda estupefato ante a indagao do Capito, mas sem perder nada de sua

    fora).

    No, Capito.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PARTE 3

    O mesmo cenrio.

    O CAPITO est na cadeira, mexendo-a inquietamente pra trs e para frente. Ele

    perdeu a compostura das cenas anteriores. Est desgrenhado, desabotoou a camisa

    e afrouxou a gravata. Inclina-se sobre a mesa e pega o telefone.

    CAPITO

    Traga-o! (Desliga o telefone)

    Novamente volta a balanar-se na sua cadeira. s vezes parece respirar com

    dificuldade. Decorrem vrios minutos. Rudos so ouvidos nas proximidades.

    PEDRO jogado no ambiente. Est usando o capuz. As roupas esto rasgadas e

    bastante manchadas de sangue. Ele est deitado no cho, imvel. O CAPITO

    chega perto. Sem tirar-lhe o capuz, v seus mltiplos ferimentos e contuses. Pega

    um dos braos de PEDRO. Ouve um gemido rouco. Em seguida o solta. Parece

    desorientado e longe daquele corpo.

    CAPITO

    Pedro!

    O corpo no responde, mas tenta movimentar-se. O CAPITO se aproxima

    novamente, e desta vez o segura com fora e o leva at a cadeira. Mas o corpo de

    PEDRO se inclina para o lado. O CAPITO volta a acomod-lo na cadeira. Quando

    verifica que, finalmente, tem estabilidade, retorna para a sua cadeira e a balana

    novamente. Sob o capuz emitido algum barulho, mas a princpio no h como

    distinguir se est rindo ou chorando. O corpo treme. O CAPITO suspende o

    balano de sua cadeira, e espera tenso. Mas o barulho confuso, ambguo. Em

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    seguida, ele se levanta, se dirige at PEDRO e em um movimento rpido, tira-lhe o

    capuz. Tem o rosto completamente deformado e inchado, mas ri.

    CAPITO

    Do que ests rindo, estpido?

    PEDRO (como se o CAPITO no tivesse falado com ele)

    E em plena sesso de choque eltrico, veio o apago, esse mesmo apago que seumaldito coronel previu. E pobres, os mastodontes no sabiam o que fazer, porque

    sem corrente eltrica no so nada. E l estava aquela garota com o fio na vagina,

    e quando veio o apago, no sei como puderam lhe dar um chute. E a besta riscou

    um fsforo, mas o choque eltrico no funciona com fsforos. (A partir deste

    momento e durante quase toda a cena, PEDRO dar a impresso de algum que

    delira, ou talvez, de algum que simula estar delirando. importante que se

    mantenha esta ambiguidade). Continua na banheira, claro, com sua gua de merdae sua bosta boiando, mas difcil fazer acontecer s escuras. A banheira no

    eltrica, claro, mas s vezes utiliza corrente eltrica. E no confortvel fazer isso

    no meio de um apago. No escuro, no h como saber quando o tipo no vai

    aguentar mais. O doutor precisa de boa iluminao para diagnosticar a proximidade

    de uma parada cardaca. Assim, tiveram que suspender a sesso.

    CAPITO

    Pedro.

    PEDRO

    Chamo-me Rmulo.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    CAPITO

    No, teu nome Pedro.

    PEDRO

    Rmulo, pseudnimo Pedro.

    CAPITO

    No me confunda. Pedro, pseudnimo Rmulo.

    PEDRO

    Nada.

    CAPITO

    Qu?

    PEDRO

    Nada, no tenho nome nem pseudnimo. Nada.

    CAPITO

    Pedro.

    PEDRO

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Pedro Nada. Nada meu sobrenome materno. O senhor no sabia capito? Ento

    estou te revelando neste exato momento. O senhor no vai chamar o taqugrafo?

    uma declarao importante. Ou o senhor est utilizando o gravador? Pedro Nada. E

    o meu sobrenome paterno Mais. Ou seja, completinho: Pedro Nada Mais. (ri com

    dificuldade).

    CAPITO (espera que PEDRO termine de rir)

    O que h contigo?

    PEDRO

    Nada de importante. Estou morto. Adeus. A esta altura, a morte no me importa.

    CAPITO

    Ests vivo. E podes estar mais vivo ainda.

    PEDRO

    O senhor est errado, capito. Estou morto. Estamos em meu velrio.

    CAPITO

    No seja to delirante. Comigo, este teatro no funciona.

    PEDRO

    No teatro, capito. Estou morto. No sabes a tranquilidade que me veio quando

    soube que estava morto. Por isso agora no me importa que me apliquem choques,

    ou me mergulhem na merda, ou me deixem plantado esperando, ou que me

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    explodam os ovos. No me importa porque estou morto e isso d uma grande

    serenidade, e at uma grande alegria. Voc no v como estou contente?

    CAPITO

    s o primeiro morto que fala como um papagaio.

    PEDRO

    Muito bem capito, excelente: voc se deu conta da contradio. Ests treinandopara a dialtica, no mesmo? Eu estou morto e eu falo como um papagaio. Bravo,

    capito! Quem diria que chegarias a to brilhante concluso? Bravssimo! Peo que

    conste na gravao minha vontade de aplaudir; no aplaudo, claro, porque estou

    amarrado. (Pausa). Eu lhe devo uma explicao. Quero dizer que estou

    tecnicamente morto, mas ainda funciono como corpo, isto , eu mijo, fao merda.

    No diria que arroto, porque como estou morrendo de fome, no tenho nada para

    arrotar. Pois bem, digo que estou tecnicamente morto porque no vo tirar de mimnenhum nmero de telefone, nem sequer o nmero da minha camisa, e, em

    consequncia, vo continuar me batendo e espancando mais e mais. E este corpo

    frgil aguenta apenas um pouco mais, muito pouco mais. Como o senhor bem

    observou capito, no sou um atleta. E como vo continuar me batendo, bom, por

    isso estou morto, tecnicamente morto. Entendeu capito? O senhor no sabe a

    tranquilidade me veio quando me dei conta. Tudo mudou. Por exemplo: tinha dio do

    senhor, e em vez disso, uma vez que estou morto, agora tenho lstima. Sinto que

    pela primeira vez tenho uma vantagem considervel, diria quase imensurvel.

    CAPITO

    No fique to seguro. Como sabes at onde aguentars? Isso somente se sabe

    quando chega o momento. Aguentaste at agora. Mas j te disse antes que no

    chegamos ao mximo. Todos os dias descobrimos algo novo.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PEDRO

    Reconheo que essa era a preocupao que tinha quando estava vivo: at onde eu

    poderia aguentar. Porque quando se est vivo, quer seguir vivendo e isso sempreuma tentao perigosa. Em troca, a tentao se acaba quando se sabe que est

    morto.

    CAPITO

    E a dor?

    PEDRO

    T certo, e a dor? Como importante a dor quando se est vivo. Mas que pouco

    significa a dor quando se est morto.

    CAPITO

    Voc no est morto, caralho! (Pausa.) Mas talvez estejas louco.

    PEDRO

    Fao-te uma concesso, capito: louco, porm, morto.

    CAPITO

    Ou te passas por vivo.

    PEDRO

    Outra observao sagaz, capito! Porque ningum pode se passar por morto.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    CAPITO (impaciente)

    Pedro!

    PEDRO

    Pedro Nada Mais.

    CAPITO

    Estou cagando para o teu nome completo!

    PEDRO

    Comunico que o senhor cagou em um cadver, capito, e que isto, em qualquer

    parte do mundo e sob qualquer regime, desrespeitoso.

    CAPITO (tentando levar o dilogo para um nvel de mais normalidade)

    Voc tem que falar Pedro. Vou ser franco contigo: comecei a me simpatizar por ti.

    No quero que te machuquem mais.

    PEDRO

    J me machucaram demais, capito. O seu lapso de bondade chegou tarde. Sinto

    muito. J no tenho mais fgado, e provvel que no tenha mais ovos. Pelo sim e

    pelo no, no conferi.

    CAPITO

    No quero que eles te destruam.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PEDRO

    Porque o senhor fala na terceira pessoa do plural?

    CAPITO

    No quero que a gente te destrua.

    PEDRO

    Assim est melhor. No gostas das runas? Digamos, Pompeia, Herculano, Machu

    Pichu, Pedro Nada Mais, etc.

    CAPITO

    Cala a boca!

    PEDRO

    Os que se calam so os vivos. Se lembra capito, como me calavas quando eu

    estava vivo? Mas os mortos podem falam. Com a pouca lngua, a garganta

    apertada, os quatro dentes, os lbios ensanguentados, com este pouco que vocs

    nos deixam, os mortos podem falar. (Pausa.) Da tua famlia, por exemplo.

    CAPITO

    Outra vez? Por que no falamos da tua?

    PEDRO

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Ou da minha, por que no?

    CAPITO

    Da tua mulher.

    PEDRO

    Da minha viva, na verdade, Aurora...

    CAPITO (cortando PEDRO)

    Pseudnima Beatriz.

    PEDRO fica em silncio. A cabea cai sobre o peito

    CAPITO (sorrindo)

    Como? No estavas morto? Parece que ainda tens reflexos.

    PEDRO segue imvel, sempre com a cabea cada para frente.

    CAPITO

    Aurora, pseudnimo Beatriz. No havia te dito que todos os dias colocamos as

    cartas sobre a mesa?

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PEDRO vai de pouco a pouco levantando a cabea, mas agora seu olhar est

    perdido em algum ponto distante. Comea a falar em tom muito baixo, quase como

    um sussurro, e em seguida, vai lentamente subindo a voz.

    PEDRO

    Quando eu era pequeno, sonhava com o mar. Agora que tenho doze anos, prefiro

    v-lo. Nicols disse que no mar. Nicols...

    CAPITO (delimitando)

    Pseudnimo Esteban...

    PEDRO

    Disse que rio. Mas nos rios se v sempre a outra margem e aqui no. E ademais

    no so salgados. E este salgado. Assim eu o chamo mar. Chamo-no mar. E

    quando o chamo, afundo os ps na areia, e a areia se mete entre meus dedos. Faz-

    me cosquinhas.

    CAPITO (como contagiado por PEDRO, ele tambm se transforma. Um e outro vo

    falando alternadamente, sem dialogar. Na realidade, so dois monologos cruzados)

    Eu tinha que dar-lhe uma rosa. No sei por que, mas tinha. Ela vinha com sua me esua prima. Ela vinha e eu a via, mas eu tinha que dar a ela uma rosa. E uma tarde

    roubei do jardim da embaixada, e o policial me correu e disse saco de merda, mas

    eu corri mais e me veio asma. Mas quando cheguei ao parque, quando cheguei

    fonte, j havia passado a asma, mesmo que ainda me saltasse o corao, e ento

    me aproximei e dei a ela a rosa e ela primeiro me olhou surpreendida, logo piscou e

    em seguida arremessou a rosa na gua da fonte.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PEDRO

    Eu queria ser vagabundo e aos treze fugi de casa. E caminhei toda a manh e me

    sentia eufrico, livre, feliz. E como tinha no bolso um troco que era da me, ao meio-dia comprei dois sanduches de presunto e queijo, e uma cerveja. E tarde, devido

    ao sol to forte, acabei dormindo na praa e s acordei com a sirene dos bombeiros.

    Mas eles passaram distncia e eu caminhei e caminhei, com cachorros me

    seguindo e sem cachorros, e ento comearam a me doer os joelhos e se

    acenderam os faris da rua, e quando estava a ponto de chorar a me me viu da

    calada da frente e gritou filhinho e a terminou minha carreira de vagabundo.

    CAPITO

    Andrs me seguia a todas as partes porque me odiava, e eu percebia esse dio to

    intensamente que no podia menos que odi-lo tambm. E um dia no pude mais e

    dei a volta, e o enfrentei, e ento ele tambm deu a volta e saiu disparado. E ento

    eu comecei a segu-lo e nos odivamos intensamente, mas ele nunca deu a volta

    nem me enfrentou.

    PEDRO

    Vinha todas as tardes biblioteca e se sentava a estudar matemtica. Eu estudava

    histria, mas na realidade no estudava nada porque eu ficava olhando ela de canto

    de olho e tratando de investigar se ela tambm me olhava de canto de olho, mas

    nunca coincidamos nas investigaes, assim que passamos todo um semestreolhando se nos olhvamos. At que uma tarde Aurora...

    CAPITO

    Pseudnima Beatriz...

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Ainda que o CAPITO o tenha dito mecanicamente, como se assim se rompesse

    um encanto.

    PEDRO

    Est bem, o senhor sabe tudo, capito, mas isso no vai impedir que eu esteja

    morto. E tambm sei algo mais. Por exemplo, que vocs sabem que ela no sabe,

    mas imaginam que eu sei.

    CAPITO

    Igual podemos trazer-la.

    PEDRO

    Mais uma razo para estar morto. Quanto antes melhor. Os mortos no so

    chantageveis.

    CAPITO (depois de uma pausa grande)

    Por que ser que me cais bem apesar das besteiras que dizes?

    PEDRO

    Ser que tu gostas das besteiras?

    CAPITO

    No, no isso. O que passa que o senhor... (Se interrompe, surpreendido, d

    uns passos no cmodo.) Senhor? E agora por que, assim de repente, deixei de te

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    chamar de tu? (Pela primeira vez PEDRO sorri.) No, no ria. Senti logo que devia

    trat-lo de senhor. Nunca me havia passado isso.

    PEDRO (sempre sorrindo)

    No te preocupes. Em compensao, eu vou te tratar por tu.

    CAPITO (concorda com a cabea)

    Est bem. Parece-me justo.

    PEDRO (Entusiasmado)

    Partimos?

    CAPITO

    Claro.

    PEDRO

    Comece.

    CAPITO

    No, comece o senhor.

    PEDRO

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

    33/49

    E eu j te disse que estou morto? Ah, sim, te disse quando ainda no te tratavas por

    tu. Bem, mas antes de bater as botas, quero desentranhar algo que para mim um

    mistrio.

    CAPITO

    Ah. E eu que tenho a ver?

    PEDRO

    Tens que ver, como no. Quero desentranhar o mistrio de como um homem pode

    se no um louco, se no um monstro, converter-se em torturador. (Pausa)

    Perceba que estou morto, ou seja, que no vou contar a ningum. s para mim.

    CAPITO (falando lentamente)

    Eu no sou isso.

    PEDRO

    Ah no?

    CAPITO

    J expliquei.

    PEDRO

    Mas pra mim pouco importa a tua explicao. Tu sabes o que s. (Pausa.) Me conta

    como aconteceu isso. Trauma infantil? Convico profunda? Alienao passageira?

    Preparao em Fort Gulick?

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    CAPITO (encolhendo os ombros)

    Bom, sou anticomunista.

    PEDRO

    Sim, eu imagino. Mas no serve como explicao. No mundo h milhes de

    anticomunistas que no so torturadores. O Papa, por exemplo.

    CAPITO

    Nem todos se realizam. (Ri como se o dito fosse piada).

    PEDRO

    De acordo, nem todos se realizam. Mas tu, por que te realizastes?

    CAPITO

    uma histria longa e lenta. Nenhum trauma infantil. Nem todo o mal acontece na

    vida devido a traumas de infncia. Mais uma pequena mudana depois de outra

    pequena mudana. Nenhuma convico profunda. Mais uma pequena tentao

    depois de outra pequena tentao. Econmicas ou ideologicas, pouco importa. E

    tudo de pouco em pouco. certo que o ltimo impulso me deu em Fort Gulick. Alime ensinaram, com breves e suportveis torturinhas que sofri em carne prpria,

    onde residem os pontos sensiveis do corpo humano. Mas antes me ensinaram a

    torturar cachorros e gatos. Antes, antes, sempre tem um antes. algo paulatino.

    No creia que de repente, como por mgica, algum se converte de bom moo em

    monstro insensvel. Eu no sou um monstro insensvel, no o sou ainda, mas, em

    troca, j no me recordo de quando era bom moo. (Pausa.) E por que lhe conto

    todas essas coisas? Por que fao do senhor meu confidente?

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PEDRO

    Sempre tarde quando a sorte ruim.

    CAPITO

    As primeiras torturas so horrveis, quase sempre vomitava. Mas na madrugada que

    voc deixa de vomitar, a sim est perdido. Porque quatro ou cinco madrugadas

    depois comea a desfrutar. O senhor no vai acreditar...

    PEDRO

    Eu acredito em tudo, no te preocupes.

    CAPITO

    No, o senhor no vai acreditar, mas uma noite em que estvamos torturando umagarota, no muito linda, torturando-a, se d conta?

    PEDRO

    Claro que me dou conta. E ela gritava enlouquecida e se agitava e se agitava... (Se

    detem).

    PEDRO

    E o que houve?

    CAPITO

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    No vai me acreditar, mas logo me dei conta que eu tive uma ereo. Nada menos

    que uma ereo, nessas circunstncias. No lhe parece horrvel?

    PEDRO

    Sim, me parece.

    CAPITO

    E o pior foi que no dia seguinte, ao me deitar com minha mulher, no podia... Ecomecei a ficar nervoso... E no conseguia...

    PEDRO

    Mas no fim conseguistes, verdade?

    CAPITO

    Sim, como sabe?

    PEDRO

    Sempre se consegue.

    CAPITO

    Mas eu s consegui quando coloquei toda minha fora evocativa na garota da

    vspera, que no era to linda. No espantoso? S consegui funcionar com minha

    mulher quando me lembrei da garota que se retorcia porque a torturvamos. Como

    se chama isso? Deve ter uma denominao cientfica.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    PEDRO

    O nome o de menos.

    CAPITO

    por isso que no posso voltar atrs, por isso que no posso ceder. por isso

    que tenho que fazer que fale. J andei muito trecho por esse caminho. Compreende

    agora? Compreende por que vai ter que falar?

    PEDRO

    Compreendo que tu queres que eu compreenda.

    CAPITO

    Por isso tive que trat-lo de senhor. Porque se seguia tratando por tu, no ia poder.

    PEDRO

    Queres que te diga uma coisa? De nenhuma maneira vais poder, capito. Nem me

    tratando de senhor, nem de tu, nem de vs, nem de sua senhoria. Vs? Essa a

    vantagem que tem o no. Sempre no e nada mais que no. Ouvistes bem,

    capito? No! Ouviu capito? No! Ouviu-me, capito? No!

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

    38/49

    PARTE 4

    O mesmo cenrio.

    Sobre o cho est Pedro, ou pelo menos o corpo de Pedro, imvel, com capuz. Em

    um instante comea a ouvir gemidos muito fracos. Entra o Capito, sem palet e

    sem gravata, suado e despenteado.

    Capito

    Ah, te trouxeram antes do tempo (toca o corpo com um p) Pedro. (O corpo no d

    sinal de vida). Vamos, Pedro, temos que trabalhar. (Vai at o lavabo, molha a toalha,

    espreme um pouco, se aproxima do corpo estendido, se inclina sobre ele, tira ocapuz, e fica evidentemente impressionado ante o estado calamitoso do rosto de

    Pedro. Se sobrepe, sem demora, e comea a limpar-lhe as feridas da cara com a

    toalha um pouco mida. Lentamente, Pedro comea a se mover). Pedro.

    Pedro

    Ah? (Abre um olho, mas parece no reconhecer o Capito).

    Capito

    O que acontece? Se sente melhor?

    Pedro

    Ah?

    Capito

    Pedro. Reconhece-me?

    Pedro (balbuciando)

    Infelizmente sim.

    O Capito ajuda Pedro a sentar-se na cadeira, mas o preso no consegue se

    sustentar. Dessa vez o haviam destrudo. O Capito tira seu cinto e com ele prende

    Pedro ao encosto da cadeira. Aos poucos Pedro vai se reanimando, masvisivelmente est acabado. De todos os modos, sempre haver uma contradio

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    entre a relativa vitalidade que mostra em seu rosto e o aspecto exausto de seu

    fsico.

    Pedro

    , Capito?

    Capito

    Claro. Como te deram dessa vez! Arrebentaram-te, Pedro, que barbaridade!

    Pedro

    Menos mal se j estivesse morto.

    Capito

    No te parece que chegou o momento de amolecer? J se portou como um heri.

    Quem vai ser to desumano para reprov-lo que fale agora?

    Pedro (no responde, depois de um silencio).

    Capito, Capito.

    Capito

    Que?

    Pedro

    O senhor nunca fala sozinho?

    Capito

    Pode ser. Algumas vezes.

    Pedro

    Eu sim falo sozinho.

    Capito

    E porque isso?

    Pedro

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Falo sozinho porque faz trs meses que estou incomunicvel.

    Capito

    Como? Voc conversa comigo.

    Pedro

    Isso no conversar.

    Capito

    E o que ?

    Pedro

    Merda, isso . (pausa) Converso sozinho porque tenho medo de esquecer-me de

    como se fala.

    Capito

    Mas fala comigo.

    Pedro.

    No me refiro a falar com o inimigo. Refiro-me a falar com um companheiro, com um

    irmo.

    Capito.

    Ah.

    Pedro

    Capito, capito.

    Capito

    Que acontece agora?

    Pedro

    No se sente as vezes que flutua no ar?

    Capito

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Francamente, no.

    Pedro

    Claro, no est morto.

    Capito

    E voc tambm no, mesmo que esteja fazendo mritos notveis para est-lo.

    Pedro

    Pois eu s vezes flutuo. E lindo flutuar. Ento, vou at a costa.

    Capito

    No vai a lugar nenhum. Nem a costa nem a parte alguma. Est enterrado aqui.

    Pedro.

    isso. isso. Enterrado, claro, por que estou morto. Mas quando flutuo, vou

    costa. claro que no vou todos os dias. Tem vezes que no tenho vontade de ir.

    Ontem tive vontade, e fui. Faz anos, quando ia costa, no flutuando, mas simcaminhando, sempre via casais de namorados, mas agora j no esto l. Agora

    esto lutando contra vocs. Agora esto presos, escondidos, ou no exlio (larga

    pausa). Como se chama sua esposa, Capito?

    Capito. (entre os dentes)

    Do que te importa?

    Pedro

    V? Dei-te a oportunidade de dizer espontaneamente. Mas eu sei que se chama

    Ins.

    Capito (surpreendido)

    De onde voc tirou isso?

    Pedro

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    J lhe disse que eu sei mais de voc que voc de mim. Ins. Mas no se preocupe.

    Tambm sei que no tem apelidos. Salvo que a chama Beba. Mas no um nome

    clandestino. Que sorte, verdade? Hoje em dia no bom ter um nome clandestino.

    Capito

    Aonde quer chegar?

    Pedro

    Na minha morte, capito, na minha morte.

    Capito

    O que ganha em no falar? Que o arrebentem?

    Pedro

    Ou que me deixem de arrebentar.

    Capito

    No se engane. No vo deixar.

    Pedro.

    Se me matam, me deixam. E eu morro.

    Capito

    Mas ruim morrer assim.

    Pedro.

    Nem tanto, se um ajuda, se um colabora.

    Capito (Esperanoso).

    Est disposto a colaborar?

    Pedro (pronunciando lentamente).

    Estou disposto a ajudar a me matar. (Pausa)

    Tambm estou disposto a ajudar que Ins te queira.

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Capito

    No se preocupe com isso. Ela me quer.

    Pedro

    Sim, at hoje. Porque no sabe exatamente em que consiste seu trabalho.

    Capito

    Talvez o imagine.

    Pedro

    No, no o imagina. Se o imaginasse, j havia te deixado. Ela no m.

    Capito.

    No m.

    Pedro

    E tambm quero ajudar-lhe que teus filhos (o casalsinho) no te odeiem.

    Capito

    Meus filhos no me odeiam.

    Pedro

    Ainda no, claro. Mas j te odiaram. Por acaso no vo escola?

    Capito

    Somente o menino.

    Pedro

    Mas a menina ir mais a frente. E seus coleguinhas informaro a um e a outro sobre

    quem so. Na primeira desavena que se arme, j o sabero. lgico. E a partir

    dessa revelao, comearam a odi-lo. E nunca o perdoaro. Nunca os recuperar.

    Nunca saber se... (No pode seguir falando. Desmaia).

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    No comeo o Capito no se aproxima. O olha sem encara-lo. Logo vai at o lavabo,

    enche um vaso com gua, fica de frente a Pedro e lhe joga gua na cara. Aos

    poucos Pedro recupera os sentidos.

    Capito

    No fantasie. No morreu ainda. Seguimos frente a frente.

    Pedro (recuperando-se)

    Ah, sim, falando de Ins e do casalsinho.

    Capito

    Basta disso!

    Pedro

    Capito, porque no me mata?

    Capito

    Voc est louco! E quer me enlouquecer!

    Pedro

    Por que no me mata capito? Ser em defesa prpria, te prometo. Alm disso,

    queria fugir. A lei da fuga lembra-se? Coragem, capito, tens a oportunidade de

    fazer a boa ao do dia.

    Capito

    Que eloquente est hoje.

    Pedro

    Cansei-me de tanto silncio. Alm do mais, o interlocutor ideal.

    Capito

    Eu?

    Pedro

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Sim, por que tens peso na conscincia. muito estimulante saber que o inimigo tem

    peso na conscincia. Por que tudo isso que disse, de no ter nascido carrasco, tudo

    isso no conta nada. Trabalhou de mau h muito tempo, em um passado no to

    distante. Conhecemos-te capito. Ou seja, devem fazer os capuzes mais grossos.

    Sempre h algum que v algum. E eu, por exemplo, no conheo s o nome de

    sua mulher. Tambm sei o seu. E at o seu apelido (pseudnimo).

    Capito

    Est louco! Eu no tenho apelido (pseudnimo)!

    Pedro

    Tem sim. S que o seu apelido no um nome, e sim um cargo. Teu apelido um

    cargo de capito. E voc coronel. coronel, capito. Das duas uma: ou nos

    tratamos de Rmulo e Capito, ou nos tratamos de Coronel e Pedro. O que acha

    capito? Ou coronel?

    Capito (que retruca o golpe)

    Sabe de uma coisa? O senhor mais cruel que eu.

    Pedro

    Por qu? Por que te aplico o mesmo tratamento? No para tanto. Alm disso, tens,

    todavia, o poder, a arma eltrica, a piscina com merda, a planta. Eu no tenho nada.

    Exceto minha recusa.

    Capito

    E te parece pouco?

    Pedro

    No, no me pouco. Mas com minha recusa...

    Capito

    Fantica...

    Pedro

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Sim, com minha negao fantica, desapareo, deixo-te o campo livre. Melhor dito,

    o cemitrio livre.

    O Capito est como vencido. Tambm Pedro est terrivelmente cansado.Finalmente, o Capito levanta o olhar. Fala desfiguradamente.

    Capito

    No, Pedro, o senhor no cruel. Peo-te desculpas. E j que no cruel, vai

    compreender. Disse que quer que eu salve o amor de minha mulher e de meus

    filhos.

    Sem responder ao que o Capito disse, Pedro comea a falar, e o faz semgrande conscincia do que h em sua volta.

    Pedro

    Nunca falara sozinho, Capito? Agora estou aqui, contigo. Mas tambm vou falar

    sozinho. Passo a passo aprender como se fala em tais condies. Anote Capito.

    Isto um ensaio de como se fala sozinho. (Pausa). Veja Aurora...

    Capito

    Alis, Beatriz...

    Pedro (como se no escutara o Capito)

    Veja Aurora, estou perdido. E sei que voc, esteja onde estiver tambm est

    perdida. Mas eu estou morto e voc, ao contrrio, est viva. Aguento tudo, tudo,

    menos uma coisa: no ter a sua mo. o que mais sinto saudade: tua mo suave,

    grande, teus dedos finos e sensveis. Creio que a nica coisa que me prende

    vida. Se antes de partir me dessem um s favor, pediria isso: ter tua mo durante

    trs, cinco, oito minutos. Estamos bem, Aurora...

    Capito (com a garganta apertada)

    Alis, Beatriz...

    Pedro

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    Voc e eu. Voc e eu sabemos o que significa confiar um no outro. Por isso queria

    tua mo: porque seria a nica forma de te dizer que confio em voc, seria a nica

    forma de saber que confias em mim. E tambm demorar um pouco pensando em

    confianas passadas. Lembra-te daquela noite de maro, faz quatro anos, na praia

    perto de teus velhos? Lembra que ficamos duas horas, deitados na areia, sem falar,

    olhando a Via Lctea, como quem olha um teto? Recordo que comecei a mover

    minha mo sobre a areia perto de voc, sem te olhar, e percebi que sua mo vinha

    at mim. E na metade do caminho elas se encontraram. Observe que este a

    lembrana que mais me lembro. Tambm teu corpo, tua pele, tambm tua boca.

    Como no lembrar isso? Mas aquela noite na praia a imagem que me lembro

    mais. Aurora...

    Capito (soluando)

    Alis, Beatriz...

    Pedro

    O Andr disse-o h pouco tempo. No o ferira brutalmente com a notcia. Isso marca

    qualquer infncia. Explique devagar e desde o princpio. Somente quando estejasegura de que entendeste um captulo, somente ento comece a contar o outro.

    Paulatinamente, sem ferir-lo, faa-o compreender que isto no foi um estalo

    emocional, nem um palpite, nem uma bronca repentina, e sim uma deciso madura,

    um processo. Explica-o bem, com as palavras ternas e exatas que constituem teu

    melhor estilo. Diga-o que no tem por que aceitar tudo, mas que tem a obrigao de

    compreender. Sei que o deixar agora sem pai como uma agresso que cometo

    contra ele, ou por menos assim pode chegar a sentir-se, no sei se hoje, mas caso

    algum dia ou em alguma insnia. Confio em teu notvel poder de persuaso para

    que o convena de que com minha morte no o agrido, sem que, ao meu modo,

    trato de salv-lo. Podia salvar minha vida se contasse, e no contei, mas se

    contasse ento sim que ia a destruir-lo. Hoje melhor ainda portou-se contente de

    que papai voltara para casa, porm nove ou dez anos depois estaria dando com a

    cabea contra a parede. Diga-o, quando possa entend-lo, que eu quero,

    enormemente, e que minha nica mensagem que no me traia. Vai diz-lo? Mas,

    isso sim, ensaie vrias vezes, assim no chorar quando diz-lo. Sem chorar, pede

    fora ao que diz. Est de acordo, verdade? Alguma vez que voc e eu nos falamos

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    estas coisas, quando a vitria parecia verossmil e perto. Eu no a verei e uma

    lstima. Mas voc e Andr se a virem j uma sorte. Agora me d a mo. Tchau,

    Aurora...

    Capito (chorando, histrico).

    Alis, Beatriz!

    Faz-se um grande silncio. Pedro, depois de esforar-se, ficou esgotado. Talvez

    tenha perdido novamente os sentidos. Seu corpo se inclinou at ficar encostado;

    No cai, somente porque o cinto o prende a cadeira.

    O Capito, em sua parte, tambm est desarrumado, mas sua deteriorao tem,evidentemente, outro smbolo e isso deve ser notado. Tem a cabea entre as mos

    e por um momento ouvem-se seus gemidos.

    Logo, pouco a pouco vai se recompondo, e ainda que Pedro esteja aparentemente

    inconsciente, comea a falar com ele.

    Capito

    Pedro, voc est morto e eu tambm. De mortes distintas, claro. A minha uma

    morte de armadilha, de emboscada. Ca numa emboscada e j no possvel voltar.

    Estou encurralado. Se eu te dissesse que no posso abandonar isso, voc me diria

    que natural porque seria abandonar o conforto, dos bens materiais e etc. E no

    assim. Tudo isso o deixaria sem remorsos. Se no o deixo porque tenho medo.

    Podem fazer comigo o mesmo que te fazem. E voc certamente me diria: Bem, j

    se v, pode aguentar-se. Voc sim pode aguentar, porque tem no que crer, tem no

    que se erguer. Eu no. Mas dentro da minha impossibilidade de resgatar-me, resta-me uma soluo intermediria. J sei que Ins e os garotos podem um dia chegar a

    odiar-me, se conhecerem com luxo de detalhes do que disse e do que fiz. Porm se

    tudo isso que te fao, ainda por cima, sem conseguir nada, como tem sido em teu

    caso at agora, no tenho justificativa plausvel. Se voc morre sem dizer um s

    dado, para mim a derrota total. Se em troca disser algo, haver tambm algo que

    me justifique. Ento minha crueldade no ser gratuita, mesmo que cumpra seu

    objetivo. tudo que peo, que te suplico. J no h quatro nomes e sobrenomes,seno um somente. E pode escolher: Gabriel, Rosrio, Madalena ou Fermn. S um

  • 7/30/2019 Pedro e o Capito

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    o que menos signifique para voc; aquele que voc tenha menos afeto, tambm o

    que seja menos importante. No sei se me entende: aqui no estou pedindo-lhe uma

    informao para salvar o regime, sim um dado para me salvar, ou melhor, para

    salvar um pouco de mim. Estou pedindo-te a medocre justificativa da eficcia, para

    no ficar perante Ins e os garotos como um sdico intil, e sim como um rastreador

    eficaz, como um profissional competente. Do contrrio, perco tudo. (O Capito d

    alguns passos at Pedro e cai de joelhos diante dele.) Pedro, temos pouco tempo,

    muito pouco tempo. A voc e a mim. Mas voc se vai e eu fico. Pedro, isto um

    splica de um homem abatido. Voc no desumano. Voc um homem sensvel.

    Voc capaz de gostar das pessoas, de sofrer pelas pessoas, de morrer pelas

    pessoas. Pedro, te suplico, diga um nome e um sobrenome, nada mais que umnome e um sobrenome. A isto se reduziu toda a minha existncia. O mesmo

    acontecer com seu triunfo.

    Pedro se move um pouco. Tenta endireitar-se, mas no pode. Faz mais um esforo

    e finalmente se ergue. O Capito apela para um recurso desesperado.

    Capito

    Se eu pedir a Rmulo. Se eu suplicar para Rmulo. Ajoelho-me diante de Rmulo!

    Rmulo vai me dizer um nome e um sobrenome? Vai me dizer apenas isso?

    Pedro (com muita aflio)

    No... Capito.

    Capito

    Ento se eu pedir para Pedro, se eu suplicar para Pedro. Ajoelho-me diante dePedro! Apelo no ao nome clandestino, e sim ao homem. De joelhos suplico ao

    verdadeiro Pedro.

    Pedro (abre bem os olhos, quase agonizante)

    No! Coronel!