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  QUANTO À PESCA, MUITOS FORAIS MANUELINOS ESTÃO ERRADOS Fernando Gomes Pedrosa  Novembro de 200 9 A Expansão Marítima iniciada no séc. XV foi um objectivo grandioso que obrigou a sacrificar várias actividades, entre as quais a pesca. Ao abandono a que a pesca foi votada está associado o desconhecimento de alguns conceitos elementares: a dízima e a  portagem. A DÍZIMA E A PORTAGEM A dízima do pescado está mencionada na generalidade dos forais dos sécs. XII e XIII, como o de Santarém (1179): «(…) E a almotaçaria seia do conçelho da uilla, e seiam metudos os almotaçees pelo alcayde e pelo conçelho da uilla, e dem de foro (…) da besta de pescado I dinheiro (…) e da barca de pescado I dinheiro (…) Pescadores dem dizima (…) de pescado de fóra dem dizima (…) Da carrega do pescado a qual ende leuarem homens de fóra, dem VI dinheiros (…) E pola alcaydaria de cada huuma besta que ueer de fóra cum pescado dem II dinheiros, e da barca do pescado mehudo II dinheiros, e de todo outro pescado dem seu foro (…)». 1  O foral tributa o pescado quatro vezes: 1  Portugaliae Monumenta Historica,  Leges et consuetudines, vol. I, fasc. III, 1863, pp. 405-410. Versão em português, Colecção de Livros Inéditos de História Portuguesa , Academia Real das Ciências de Lisboa, tomo IV, 1816, pp. 534-539. 1

Pedrosa Forais Pesca

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Forais Pesca

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  • QUANTO PESCA,

    MUITOS FORAIS MANUELINOS ESTO ERRADOS

    Fernando Gomes Pedrosa

    Novembro de 2009

    A Expanso Martima iniciada no sc. XV foi um objectivo grandioso que

    obrigou a sacrificar vrias actividades, entre as quais a pesca. Ao abandono a que a pesca

    foi votada est associado o desconhecimento de alguns conceitos elementares: a dzima e a

    portagem.

    A DZIMA E A PORTAGEM

    A dzima do pescado est mencionada na generalidade dos forais dos scs. XII e

    XIII, como o de Santarm (1179): () E a almotaaria seia do conelho da uilla, e

    seiam metudos os almotaees pelo alcayde e pelo conelho da uilla, e dem de foro ()

    da besta de pescado I dinheiro () e da barca de pescado I dinheiro () Pescadores

    dem dizima () de pescado de fra dem dizima () Da carrega do pescado a qual ende

    leuarem homens de fra, dem VI dinheiros () E pola alcaydaria de cada huuma besta

    que ueer de fra cum pescado dem II dinheiros, e da barca do pescado mehudo II

    dinheiros, e de todo outro pescado dem seu foro ().1 O foral tributa o pescado quatro

    vezes:

    1 Portugaliae Monumenta Historica, Leges et consuetudines, vol. I, fasc. III, 1863, pp.

    405-410. Verso em portugus, Coleco de Livros Inditos de Histria Portuguesa,

    Academia Real das Cincias de Lisboa, tomo IV, 1816, pp. 534-539.

    1

  • 1. Almotaaria (emolumento para o almotac): de cada besta de pescado 1 dinheiro,

    de cada barca de pescado 1 dinheiro.

    2. Dzima do pescado: pescadores paguem dzima.

    3. Portagem: o pescado que vier de fora pague dzima; os homens de fora paguem 6

    dinheiros por cada carga de pescado que levarem.

    4. Alcaidaria (emolumento para o alcaide): de cada besta que vier de fora com

    pescado 2 dinheiros, de cada barca de pescado mido 2 dinheiros, e todo o outro

    pescado pague seu foro.

    Esta frmula, com ligeiras variantes, reproduzida em todos os forais.

    S a dzima indicada em 2), que os pescadores pagam, que incide sobre o produto da

    pesca. A outra dzima, indicada em 3), a portagem, incide sobre o pescado que entra na

    povoao para nela ser vendido. Por exemplo, o que os pescadores descarregam em Lisboa

    e depois transportado para ser vendido em Santarm, paga em Lisboa a dzima 2) e em

    Santarm a 3).

    Alexandre Herculano2 no interpretou bem e lanou a confuso nos autores que o

    seguiram: () Nos forais do tipo de Santarm, as disposies relativas portagem

    envolvem tambm a aougagem () Na enumerao das portagens vemos mais de uma

    vez repetir-se o mesmo objecto com a designao de igual ou diversa quota () o

    pescado , numa parte, sujeito apenas soluo de um dinheiro em cada carga ou barco

    e, noutra, onerado com a dzima. acaso uma daquelas contradies que a mo de

    redactores inbeis mais de uma vez introduziu nos diplomas da Idade Mdia ? Fora

    absurdo supor que tais erros se reproduzissem em tantos forais do mesmo tipo

    expedidos em diversas pocas. O que evidente a h uma falta de distino entre os

    direitos pagos nas barreiras e os que se pagavam nos mercados; entre a portagem e a

    aougagem.

    No assim. O foral de Santarm no contm a aougagem, tributo que se paga no

    aougue. E a portagem incide sobre o pescado que entra na povoao para nela ser

    vendido (paga a dzima) e o que comprado na povoao para ser vendido fora (paga 6

    dinheiros por cada carga).

    A palavra portagem, que deriva de porta, comeou por significar o tributo que

    pagam na porta da povoao as mercadorias que nela entram ou saem. E passou depois a

    significar tambm, em termos genricos, local de cobrana. Outros tributos se pagam na

    2 Histria de Portugal (), t. IV, ed. Lisboa, Livraria Bertrand, 1981, pp. 553-557.

    2

  • portagem, incluindo a dzima que incide sobre o produto da pesca. Uma carta de D. Dinis

    ao concelho de Tavira, de 23.3.1282, adverte contra as transgresses de alguns

    pescadores que vo ao mar e no pagam dzima a mim ou ao meu porteiro.3 Em

    2.4.1336, D. Afonso IV arrendou a portagem de Lisboa, incluindo toda a pescaria assy

    aziuias [azevias] come saues [sveis] come conbos [covos] come todolos outros

    dereitos que eu ei dessa pescaria.4 Foral manuelino de Lisboa (1500): dos polvos,

    enxarrocos, lulas, chocos () que tomarem com bicheiros, fisgas ou mo, no

    paguem dzima nem outro direito de portagem.5 Assim, a mesma expresso, dzima

    do pescado que se paga na portagem, corresponde a dois tributos completamente

    diferentes: a dzima que incide sobre o produto da pesca e a dzima do pescado que

    entra na povoao para a ser vendido. Isto tem provocado grande confuso.

    E a confuso ainda maior porque a palavra portagem teve outro significado: o de

    alfndega. O foral da portagem de Lisboa, anterior a 5.10.1377, abrange a portagem

    (trnsito de mercadorias), a dzima do pescado (sobre o produto da pesca) e os tributos

    alfandegrios.6 L se cobravam a dzima de entrada das mercadorias que vinham do

    estrangeiro e a dzima de sada das mercadorias que iam para o estrangeiro. Uma das

    mercadorias era o pescado. Por exemplo, o arenque da Inglaterra ou a sardinha da

    Galiza (dzima de entrada), e o pescado portugus que se exportava (dzima de sada).

    Agora, a mesma expresso, dzima do pescado que se paga na portagem,

    corresponde a trs tributos diferentes: 1) a que os pescadores pagam, normalmente dita

    dzima do pescado; 2) a do pescado que entra na povoao para a ser vendido,

    3 Joo Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua

    histria, 3 vols., Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1944-1971, vol. I, p. 13. Doravante,

    DP. 4 DP, supl. I, p. 391. 5 Este e os outros forais manuelinos, em Lus Fernando de Carvalho Dias, Forais

    manuelinos do reino de Portugal e do Algarve conforme o exemplar do Arquivo

    Nacional da Torre do Tombo de Lisboa, 5 vols., Lisboa, edio do autor, 1961-65. 6 DP, supl. I, pp. 51 e ss. Outro foral da portagem de Lisboa, semelhante, de 7.8.1500

    (Francisco de Salles Lencastre, Estudo sobre as portagens e as alfndegas de Portugal

    (sculos XII a XVI), Lisboa, Imprensa Nacional, 1891, p. 89).

    3

  • normalmente dita portagem; 3) a do pescado importado ou exportado que paga na

    alfndega dzima de entrada ou dzima de sada.

    Todas estas dzimas so direitos reais (do rei), os litgios sobre elas decidem-se

    nos tribunais do rei, mas tm beneficirios diferentes. A que os pescadores pagam

    (dzima do pescado) quase sempre doada pelo rei ao senhor da terra. A portagem

    costuma ser atribuda ao senhor da terra, ao concelho ou fazenda real. As

    alfandegrias (de entrada ou sada) ficam quase sempre na fazenda real.

    O DZIMO ECLESISTICO

    Mas sobre o produto da pesca incidia outra dzima, esta chamada dzimo

    eclesistico ou dzimo a Deus.

    Aos foros de direito civil, correspondia o dzimo de carcter eclesistico, que se

    tornou obrigatrio no sc. XI e se generalizou no XII. As Partidas de Afonso, o Sbio

    (Ley 1, XX, Partida 1), definem claramente o que o dzimo: Diezmo es la dcima

    parte de todos los bienes que los omes ganan derechamente: e esta mand Santa Iglesia

    que sea dada a Dios (). E este Diezmo, es en dos maneras: la una, es aquella que

    llaman, en latn, predial, que es de los frutos que cogen de la tierra e de los rboles. La

    otra, es llamada personal, e es aquela que los omes dan por razon de sus personas, cada

    uno segund aquello que gana por su servicio o por su menester.7

    Havia portanto dzimos prediais e dzimos pessoais. Os prediais incidiam sobre os

    produtos, como o po, o vinho, a pesca, etc., e os pessoais, tambm chamados

    conhecenas, sobre os ganhos do trabalho.8 O dzimo predial do pescado

    correspondia a 10% ou oscilava em torno deste valor. Quanto s conhecenas,

    encontravam-se fixadas consoante as profisses, mas podiam variar de regio para

    regio. Em 1367 estava em vigor uma taxao do bispado de Coimbra; nesse ano um

    Pero Fernandes, passareiro, compromete-se a dar por dzimo e conhecena, de toda a

    caa e pescado que matar, 20 soldos por ano.9 Em Sesimbra, uma carta testemunhvel

    de 7.4.1410 traslada as conhesensas dos fregezes estabelecidas em data anterior pelo

    7 Maria Isabel Lopez Dias, Consideraciones sobre el diezmo, in Actas das II Jornadas

    Luso-Espanholas de Histria Medieval, vol. II, Porto, 1987, p. 66. 8 M. Gonalves da Costa, Histria do bispado e cidade de Lamego, vol. I, Lamego, s/ed.,

    1977, pp. 393-395. 9 Maria Helena da Cruz Coelho, O Baixo Mondego nos finais da Idade Mdia, vol. I,

    Coimbra, Faculdade de Letras, 1983, p. 379

    4

  • arcebispo de Lisboa: () o pescador de huma barca pague vinte reis, e assim se majs

    teuer pague de cada huma () pescador de lagosta pague ojto reis () os tailha peixe

    paguem de oito ate des reis () as Regatejras paguem de seis ate oito reis ().10

    O dzimo eclesistico pertence a quem tiver o direito de padroado, isto , o direito

    de apresentao dos procos. Normalmente, o bispo, na sua diocese, mas em muitas

    parquias o rei ou outros seculares. Nem os forais nem as doaes rgias se deviam

    referir ao dzimo, por no se tratar de um direito real, mas sim eclesistico. Considera-se

    sempre devido igreja mesmo que no mencionado.11

    Ou seja, os pescadores pagam duas dzimas. Uma, direito real, prevista nos forais ou

    nas doaes rgias. Outra, o dzimo eclesistico, que direito eclesistico e pode no

    estar indicada em qualquer documento. Os litgios sobre a primeira decidem-se nos

    tribunais do rei; sobre a segunda, nos tribunais eclesisticos.

    A DZIMA NOVA

    No ano de 1420, o rei estabeleceu mais uma dzima, esta chamada dzima nova.

    At a os pescadores eram recrutados para os remos das gals. O rei diz agora que os

    liberta desse encargo e com o dinheiro da dzima nova passar a contratar remadores.12

    Mais tarde dir-se- que resultou de um contrato entre o rei e os pescadores. No houve

    contrato o rei imps. Com a instituio desta dzima, a anterior, que os pescadores j

    pagavam, passou a chamar-se dzima velha. Sobre o produto da pesca passaram agora

    a incidir trs dzimas: a velha, a nova e a eclesistica.

    A PESCA AOS DOMINGOS E DIAS SANTOS.

    Como era proibido o trabalho aos domingos e dias santos, a pesca efectuada nesses

    dias podia ser onerada com outra dzima, normalmente destinada a fins sociais e

    benemerentes.

    10 Arquivo da Cmara Municipal de Sesimbra, Liuro do Tombo da Villa de Cezimbra e

    seu Termo, e Limite de Azeitam, fl. 41 v-42, transcrito por Rafael Monteiro, Alguns

    mareantes desconhecidos da terra de Sesimbra, Sesimbra, 1961, p. 18, e Jorge Afonso

    Silva Paulo, Aspectos do desenvolvimento da vila de Sesimbra: do castelo ribeira

    (1165-1535), Sesimbra Cultural, n 2, Cmara Municipal de Sesimbra, Dezembro de

    1992, p. 25. 11 M. Gonalves da Costa, op. cit., p. 394. 12 DP, supl. I, p. 96.

    5

  • A SISA

    A sisa, que vigora desde o sc. XIV, consiste tambm geralmente em 10% da

    mercadoria, a pagar a meias entre o vendedor e o comprador. Os pescadores que trazem

    peixe do mar ou do rio pagam as dzimas, que incidem sobre o produto da pesca, e

    depois, no acto de venda, a sisa. Muitas vezes exigia-se que pagassem logo a sisa

    juntamente com as dzimas, pelo que no raro dar-se tambm sisa o nome de dzima.

    A CONFUSO ENTRA AS DZIMAS

    A esmagadora maioria dos documentos relativos pesca menciona a dzima do

    pescado. Sem especificar. Mas esta dzima pode ser, pelo menos, um de oito tributos

    diferentes: 1) velha; 2) nova; 3) eclesistica; 4) aos domingos e dias santos; 5) sisa; 6)

    portagem; 7) de entrada; 8) de sada. Isto deu origem a enormes confuses, na poca e

    ainda agora, em obras publicadas recentemente.

    A DZIMA DO BACALHAU NO SC. XVI

    Os portugueses foram dos primeiros na pescaria do bacalhau na Terra Nova. Todas

    as informaes apontavam no sentido de ser um pesqueiro riqussimo, o que se veio a

    confirmar mais tarde, e o rei D. Manuel apercebeu-se da revoluo alimentar que a

    vinha. Estando em quase todos os portos as dzimas do pescado, a velha e a nova,

    doadas aos senhores das terras, como o marqus de Vila Real, ou a outras pessoas,

    como o duque de Bragana, seriam eles os principais beneficirios. O rei poderia, pura e

    simplesmente, anular as doaes, mas no quis fazer isso a pessoas to importantes.

    Optou por outra via. A de considerar o bacalhau desembarcado por pescadores

    portugueses, no pescado, mas sim mercadoria, que pagava na alfndega dzima

    de entrada, para a fazenda real.

    Os pescadores nacionais, quando traziam peixe fresco, pagavam as duas dzimas

    reais, a velha e a nova, alm do dzimo eclesistico. Quando se afastavam mais,

    poderiam levar algum sal, para salpicar o peixe, mas este continuava a ser fresco.

    Quando iam pesca longnqua, por exemplo ao Cabo Branco ou a Arguim, j teriam de

    salgar ou secar o peixe, mas tambm este pagava na portagem as duas dzimas reais, tal

    como o peixe fresco; julgamos que esteve quase sempre isento do dzimo eclesistico.

    Em contrapartida, o peixe salgado ou seco que se importava de outros pases pagava na

    alfndega uma nica dzima, a de entrada.

    O bacalhau que vinha da Terra Nova, salgado ou seco, deveria ser tratado como

    outro peixe qualquer. O dos pescadores nacionais pagaria na portagem as duas dzimas

    6

  • reais; o dos estrangeiros, apenas uma dzima, a de entrada, na alfndega. Mas o rei

    pretendeu que todo o bacalhau, desembarcado por nacionais ou estrangeiros, pagasse a

    dzima de entrada na alfndega.

    Numa carta de 14.10.1506, ordenou a Diogo Brando que nos portos da Provncia

    de Entre Douro e Minho fizesse arrecadar por oficiais do rei as dzimas do pescado que

    vem das pescarias da Terra Nova, no obstante as sentenas dos juzes dos direitos

    reais em favor dos que tm as ditas dzimas, porque, sendo esse negcio importante,

    queria antes averigu-lo.13

    Reagiram os donatrios das dzimas do pescado de Aveiro (Gonalo Tavares de

    Sousa), Viana da Foz do Lima (marqus de Vila Real) e Lisboa (duque de Bragana),

    interpondo aces em tribunal.

    Gonalo Tavares de Sousa, filho de Pedro de Tavares, a quem D. Joo II doara o

    senhorio de Mira com a sua jurisdio e as dzimas do pescado da vila de Aveiro,14

    obteve sentena favorvel, em data desconhecida, talvez anterior a 1515, porque no

    foral de Aveiro, desse ano, o rei diz que ainda est a averiguar o assunto e que

    entretanto a dzima do bacalhau ser cobrada na vila como dzima nova: Bacalhaos:

    E posto que a dzima dos bacalhaus se arrecade agora na dita Vila como dzima nova

    devida pelo contrato dos pescadores, declaramos porm que ainda se est a averiguar

    como deve ser.15

    13 Trelado de hua Carta del Rey, nosso Senhor, aerqua da Dizima dos bacalhaos

    (), IAN/TT, Ncleo Antigo, n 110, Livro dos Registos del Rei noso sor, das cartas

    & alvaras, mandados & outras cartas que o dito Sor manda a esta Alfandega [do

    Porto], fl. 46, in H. P. Biggar, The precursors of Jacques Cartier 1497-1534: a

    collection of documents relating to the early history of the dominion of Canada, Ottawa,

    Government Printing Bureau, 1911, pp. 96-97. 14 Jorge Cardoso, Agiologio Lusitano (), tomo III, Lisboa, Oficina Craesbeekiana,

    1666, pp. 93, 104. 15 A.G. Rocha Madhail, Milenrio de Aveiro, Colectnea de documentos histricos, vol. I

    (959-1516), Cmara Municipal de Aveiro, 1959, p. 295.

    7

  • As dzimas do pescado de Viana, a velha e a nova, foram doadas pelo rei ao

    marqus de Vila Real em 1499.16 No litgio sobre a dzima do bacalhau, que ops os

    procuradores do marqus aos vedores das alfndegas do reino e aos juzes da alfndega

    de Viana, estes invocaram trs argumentos:

    a) Das doaes do rei, estavam excludos todos e quaisquer direitos alfandegrios.

    b) Na doao feita ao marqus deve entender-se, exclusivamente, as pescarias nos

    mares adjacentes a Viana e no noutros mares remotos ou remotssimos: has quaes

    pescarias ero do pescado q se pescavam nos mares adisemtes a dita villa e no dos

    outros q se pescam noutros mares diferentes e remotos da dita villa e que o bacalhao no

    se pescava nas pescarias desta villa nem em mares adisemtes a dita villa, mas nas costas

    da Terra Nova e mais remotissimos.

    c) Sirva de exemplo o caso de Lisboa onde o duque de Bragana tinha as dzimas do

    pescado, a velha e a nova, mas no recebia a dzima do bacalhau: o duque de Bragana

    tinha as dyzimas dos pescados das pescarias da sydade de Lisboa pello que pertendeo

    levar os dereytos dos bacalhaos que viesem portar sydade de Lisboa () se

    pronunciara que os direitos dos bacalhaos que viese ha esta cydade no pertenciam ao

    dito duque nem se compreendiam nas mais doases.

    O marqus obteve uma sentena favorvel, em 1530, e outras desfavorveis, mas foi

    continuando a receber a dzima do bacalhau. E no acatou uma interveno directa do

    provedor das alfndegas do reino, em 1564. Em 1595, o juiz da alfndega de Viana

    proibiu-lhe a arrecadao da dzima. O marqus apelou para o tribunal da Suplicao e

    obteve, em 1602, sentena definitiva e favorvel: Mando que ao embargante seja

    restituyda a posse da dizima do baqualhao de q foy esbulhado () seja outro sy

    restituydo aos fruytos desta dizima des o tempo em que foy esbulhado. Esta sentena

    16 Histria Florestal, Acqucola e Cinegtica, Colectnea de documentos existentes no

    Arquivo Nacional da Torre do Tombo Chancelarias Reais, dir. C. M. L. Baeta Neves,

    6 vols., Lisboa, Direco Geral do Ordenamento e Gesto Florestal, 1980-1993, vol. IV,

    p. 159. Doravante, HFAC.

    8

  • fundamentou-se na de 1530, que explicitamente confirmara ao marqus a posse da

    dzima do bacalhau.17

    Neste litgio merece ateno especial a argumentao falaciosa apresentada pelos

    defensores dos interesses do rei, ao fazerem uma distino entre mares adjacentes,

    remotos e remotssimos. O rei, nas suas doaes das dzimas do pescado, nunca fizera

    tal distino: no indicava qual o espao martimo abrangido.

    As dzimas do pescado de Lisboa, a velha e a nova, foram doadas pelo rei ao duque

    de Bragana em 1499. Falecido o duque D. Jaime em 1532, os rendeiros do seu

    sucessor (D. Teodsio), baseados na sentena que o marqus de Vila Real obtivera a seu

    favor em 1530, e noutra semelhante a favor de Gonalo Tavares de Sousa em Aveiro,

    passaram a receber as dzimas do bacalhau, mas o procurador dos feitos do rei intentou

    aco em 1535, de que resultou uma sentena em 1540 contra o duque:

    - Alegao do procurador do rei: ao rei pertence na cidade de Lisboa a dzima de

    todas as mercadorias e coisas que vm de fora do reino e entram pela foz do rio Tejo,

    ora sejam panos ora pescados ora qualquer outra mercadoria; muitos naturais destes

    reinos vm de fora do reino com muitos bacalhaus, entram pela foz e descarregam em

    Lisboa; o duque de Bragana cobra-lhes a dzima.

    - Contestao do duque: em 1499 recebeu do rei, em doao, as dzimas velha e

    nova do pescado da cidade de Lisboa, que sohyam amdar na portagem; as dzimas

    dos bacalhaus descarregados em Lisboa se arrecadaram sempre e acostumaram

    arrecadar na Casa da Portagem () assim como se arrecadavam na dita casa as dzimas

    de todos os outros pescados que dita cidade vinham, e sempre foram cobradas pelos

    rendeiros do duque.

    - Rplica do procurador do rei: a doao de 1499 contempla apenas o pescado

    fresco que venha a Lisboa, de qualquer parte que viesse, sem se entender na dita

    doao nenhum pescado seco que viesse de fora parte () este tal peixe seco se

    entender sempre pertencer alfndega; quando lhe foram doadas as dzimas velha e

    nova, os bacalhaus no vinham ainda a este reino; depois passaram a ir Terra Fria

    e mares altos pescar bacalhaus e outro pescado grosso, onde andavam at fim de

    Setembro e vm com os ditos pescados secos e curados; a ordenao das alfndegas

    17 Manuel Antnio Fernandes Moreira, O porto de Viana do Castelo e as navegaes

    para o Noroeste Atlntico, in Viana O porto e o mar, Viana do Castelo, Junta

    Autnoma dos Portos do Norte, 1987, p. 82.

    9

  • deste reino determina que todo o pescado seco e salgado que venha do reino e de fora

    dele pague dzima na alfndega; o pescado que entrava pela barra seco ou salgado j

    pagara as dzimas nova e velha no lugar onde fora pescado, e no havia de pagar outra

    vez as ditas dzimas, mas sim a dzima de entrada como qualquer outra mercadoria;

    os pescados salgados e secos que vinham e vm de Setbal, Sesimbra, Algarve,

    Caminha, Viana, Vila do Conde e Porto sempre pagaram a dzima de entrada na

    alfndega, como mercadoria, sem pagarem as dzimas velha e nova; portanto, a dzima

    dos bacalhaus e pescados secos que entram pela foz pertence ao rei e deve ser paga na

    alfndega.

    - Trplica do duque: nos termos do foral de Lisboa, qualquer pescado, quer seja

    fresco ou seco, deve pagar as dzimas que se costumam arrecadar na portagem, e no na

    alfndega; isto que se pratica e sempre se praticou em todos os portos do reino, de

    todo o pescado que aos ditos lugares venha, quer seja pescado nos mares e costas destes

    reinos, quer nos mares e costas de quaisquer outros reinos e senhorios; numa contenda

    igual, no reinado de D. Manuel, entre o procurador do rei e Gonalo Tavares de Sousa,

    sobre a dzima dos bacalhaus que vinham a Aveiro, houvera sentena a favor de

    Gonalo Tavares; tambm noutra contenda entre o procurador do rei e o marqus de

    Vila Real, sobre a dzima do bacalhau que vinha a Viana, houvera sentena a favor do

    marqus; portanto, os bacalhaus no so mercadoria que pertena alfndega, mas

    pertencem casa da portagem como todos os outros pescados.

    A sentena deixou sem contestao os argumentos do duque mas condenou-o

    devoluo das dzimas recebidas desde 7.6.1535.18 E o litgio continuou.

    Tambm aqui toda a argumentao do procurador do rei falaciosa.

    Em 11.1.1542 o duque de Bragana escreveu ao rei queixando-se de ele haver

    passado um alvar a respeito da pescaria da costa de frica: a sentena que se deu

    contra mim foi de bacalhaus da Terra Nova, porque dizem que esta pescaria se

    descobriu depois da doao de 1499; agora o rei manda que isso seja extensivo

    pescaria de toda a Terra Alta, que toda a costa de frica, a saber, de pouco alm de

    Safim contra o Cabo de Gu e Arguim; ora, dizem pescadores muito antigos de

    18 As Gavetas da Torre do Tombo, vol. II, ed. A. da Silva Rego, Lisboa, Centro de

    Estudos Histricos Ultramarinos, 1962, pp. 627-632.

    10

  • Alfama que a Terra Alta de tempo imemorial foi sempre descoberta.19 O rei deu razo

    ao duque. Este continuou a receber as duas dzimas, a velha e a nova, do pescado da

    costa de frica que se descarregava em Lisboa.

    Em Aveiro, os herdeiros de Gonalo Tavares de Sousa continuavam a receber a

    dzima do bacalhau. Em 1608 Pedro de Tavares e sua mulher pretenderam at cobrar do

    bacalhau de segunda mo, isto , no do que estava na posse dos pescadores (de

    primeira mo), mas do que j tinha passado para os mercadores. Alega Pedro de

    Tavares que donatrio da dzima de todo o pescado que entra em Aveiro, Esgueira e

    seus termos, e tambm da dzima do bacalhau que entra pela barra, pertencendo-lhe a

    dzima do dito baquallao, assi da primeira mo, como da segunda, comprado por via de

    mercansia; os oficiais da alfndega se intrometeram a arrecadar a dzima do bacalhau

    que entra pela barra e foz da dita vila de Aveiro, por segunda mo; no avia, nem

    podia aver, distino alguma entre hum e outro bacalhao; numa demanda antiga entre o

    procurador do rei e o seu av, Simo de Tavares, alegando o procurador que era

    pescaria novamente descoberta, houve sentena a favor do seu av; antes, sempre a

    dzima do bacalhau foi arrecadada pelo donatrio, nunca pela alfndega; no tempo das

    guerras com a Inglaterra, o seu pai andou ao servio do rei fora de Aveiro, e os

    funcionrios da alfndega aproveitaram para cobrar a dzima do bacalhau da segunda

    mo que ento comeara a vir. Alega o procurador do rei: a dzima do pescado e

    bacalhau que entra nas vilas de Aveiro e Esgueira por segunda mo, de pessoas que o

    no pescam, e o trazem por mercancia, pertence ao rei e cobra-se na alfndega; Pedro

    de Tavares s tem direito a receber a dzima do bacalhau dos pescadores que o pescam.

    A sentena do rei, de 20.6.1608, contrariou a pretenso de Pedro de Tavares.20

    Em obra recente, Darlene Abreu Ferreira21 minimizou a pescaria dos bacalhoeiros

    portugueses, sem qualquer fundamento e desconhecendo muita documentao,

    nomeadamente todos os argumentos apresentados nos litgios acima referidos.

    19 Alberto Iria, As pescarias no Algarve (Subsdios para a sua histria), Revista

    Conservas de peixe, Lisboa, n 194, Maio de 1962; IAN/TT, Corpo Cronolgico,

    I/71/57; doravante, CC. 20 A. G. Rocha Madahil, op. cit., vol. I, p. 141. 21 The cod trade in Early-Modern Portugal: deregulation, English domination, and the

    decline of female cod merchants, Newfoundland, 1996. Texto policopiado, tese de

    doutoramento em Filosofia, University of Newfoundland.

    11

  • Os portugueses foram dos primeiros na Terra Nova, mas a importncia do bacalhau

    transformou este pesqueiro numa das zonas do mundo mais disputadas pelas grandes

    potncias martimas, que passaram a enviar navios de corso ou de guerra proteger os

    seus bacalhoeiros e afugentar os restantes. Os reis de Portugal, empenhados na

    Expanso Martima que absorvia todos os recursos disponveis, nada fizeram para

    proteger os seus.

    Humphrey Gilbert chegou a So Joo da Terra Nova em 1583 e tomou oficialmente

    posse do territrio em nome da rainha de Inglaterra. A notcia chegou a Espanha atravs

    do relatrio de um juiz de Aveiro com o testemunho de 4 pescadores da vila.22 A sua

    inteno era povoar a Terra Nova, o Cabo Breto e a Florida, e exigir uns pagamentos

    para se poder pescar em certas baas, como se l no passaporte que entregou a Toms

    Andr, mestre dum bacalhoeiro de Aveiro.23 Mas os portugueses l continuaram at aos

    finais da dcada de 1610. Alguns pescadores de Aveiro foram cativados pelos mouros

    quando se dirigiam Terra Nova em 1618.24

    OS ERROS EM MUITOS FORAIS MANUELINOS

    A reforma manuelina dos forais (c. 1495-1520) mostra bem o desconhecimento de

    alguns conceitos elementares e lanou uma enorme confuso que persiste ainda hoje.25

    Pretendia reexaminar os forais antigos e outros documentos, averiguar os usos e

    costumes e ouvir as partes interessadas. Segundo Francisco Ribeiro da Silva26 as

    22 Caroline Mnard, La pesca gallega en Terranova, siglos XVI-XVIII, Madrid, Consejo

    Superior de Investigaciones Cientficas, Universidad de Sevilla, 2008, p. 175.23 AGI, Patronato, 265, R. 40. 24 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Entre a Cristandade e o Islo (sculos XV

    XVIII). Cativos e renegados nas franjas de duas sociedades em conflito, Ciudad

    Autonome de Ceuta, Instituto de Estudios Ceutis, 1998, p. 39. A ltima campanha de

    bacalhoeiros da Galiza na Terra Nova est documentada em 1614 (Caroline Mnard, op.

    cit., pp. 62-64).25 Como se v em Francisco Ribeiro da Silva, A pesca e os pescadores na rede dos

    forais manuelinos, in Quinhentos/Oitocentos (Ensaios de Histria), Porto,

    Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2008, pp. 210-243; j antes publicado in

    Oceanos, n 47/48, Lisboa, CNCDP, Julho/Dezembro 2001, pp. 8-28. 26 O foral da Feira e Terra de Santa Maria (1514), Revista de Histria, vol. XI, Centro

    de Histria da Universidade do Porto, 1991, p. 102.

    12

  • dvidas foram depois submetidas a uma comisso de 22 desembargadores e a reviso

    final confiada a uma comisso de peritos. No tocante pesca, seria obrigatrio cumprir

    dois requisitos fundamentais: 1) ouvir todas as partes interessadas; 2) dispor de peritos

    medianamente conhecedores da matria. Nenhum destes requisitos foi cumprido: no

    foram ouvidas todas as partes; os peritos, de pesca, sabiam pouco.

    Um foral estabelece a tributao aplicvel (a carga fiscal), isto , quem paga, o

    qu, a quem. uma matria sensvel, sujeita a trfico de influncias, que exige rigor e

    iseno. Em 1512 a cmara da Ericeira decidiu mandar a Lisboa um procurador e um

    vereador para tratarem do conduto;27 conduto era o nmero de peixes, isento de tributos,

    que os pescadores podiam retirar para a alimentao do seu agregado familiar. O

    processo de reforma do foral de Alenquer durou 6 anos, desde 1504 at 1510,

    envolvendo o concelho e o procurador da donatria, a rainha D. Leonor; um dos temas

    em litgio era a dzima do pescado.28 Ora o responsvel pela reviso dos forais, Ferno

    de Pina, e os seus colaboradores, revelaram incria e vido comodismo, notando-se

    at casos de fraude ou falsificao.29 Em 1516, quatro anos depois da elaborao do

    foral de Viana da Foz do Lima, a cmara de Viana mandou a Lisboa Joo do Rego, o

    Velho, fazendo-o portador de 10 cruzados para Ferno de Pina a fim de conseguir a

    incluso de algumas coysas, que no estavam no forall velho, pusesem no novo.30 E

    ele incluiu.

    Das trs dzimas que incidem sobre o produto da pesca, a velha, a nova e o dzimo

    eclesistico, este ltimo pode no estar mencionado nos forais antigos; e no deve estar,

    por no ser direito real, mas sim eclesistico. E a dzima velha pode estar escondida,

    por ter outro nome, como vintena, de 20 peixes 1 (Atouguia, Ericeira e Lourinh), ou

    27 J. d Oliveira Lobo e Silva, Anais da vila da Ericeira: registo cronolgico de

    acontecimentos referentes mesma vila, desde 1229 at 1943, 1 ed. Coimbra, 1933, p.

    17. 28 Ivo Carneiro de Sousa, A rainha D. Leonor (1458-1525). Poder, misericrdia,

    religiosidade e espiritualidade no Portugal do Renascimento, Lisboa, F. Calouste

    Gulbenkian, 2002, p. 159. 29 Joo Martins da Silva Marques, Foral de Esgueira (1515), Figueira da Foz, 1935, pp.

    7-8. 30 Manuel Antnio Fernandes Moreira, O municpio e os forais de Viana do Castelo,

    Cmara Municipal de Viana do Castelo, 1986, p. 243.

    13

  • quarentena, de 40 peixes 1 (Esgueira), ou estar includa num foro colectivo. Por

    exemplo, na Pvoa de Varzim, os moradores pagavam um foro colectivo de 250 libras,

    desde o foral de D. Dinis, de 1308, pollas quaaes lyvras seriam livres de todo outro

    foro nem tributo, l-se no foral manuelino de 1514, que actualizou o valor para 4 mil

    reais.

    Alguns concelhos e pescadores lanaram a confuso entre a dzima velha e o dzimo

    eclesistico. Como este j vigorava desde o sc. XII, h mais de 300 anos, era antigo

    (velho); seria a dzima velha. Assim desaparecia uma das trs dzimas.

    Nos ltimos anos do sc. XV, pescadores do rio Douro criaram uma nova povoao

    junto ao monte de Santa Catarina, no Porto. Em 15.1.1511 o rei doou a dzima velha a

    Pedro Francisco. Pagavam a dzima nova a Lopo de Robres, e que a velha era

    arrendada pela igreja de Lordelo, dizendo que ela pertencia dita igreja, mas como a

    dzima velha pertencia ao rei, e no igreja, doou-a a Pedro Francisco.31 Temos aqui

    um exemplo de confuso entre dzima velha e dzima antiga. O que a igreja de

    Lordelo tem o dzimo eclesistico, j muito antigo, cobrado h muito tempo. A mesma

    confuso est no Censual da Mitra do Porto (1542): a dzima velha o dzimo de todo

    o pescado que os pescadores e pessoas que morarem desde a cidade at Monchique so

    obrigadas a pagar Igreja, primeiro que dele se pague nem tire outro direito.32 O que a

    igreja do Porto tem o dzimo eclesistico, no a dzima velha.

    A mesma confuso est em vrios forais manuelinos, como os de Viana da Foz do

    Lima, Caminha, Vila do Conde e Atouguia.

    FORAL DE VIANA DA FOZ DO LIMA (1512)

    O marqus de Vila Real recebia as dzimas, a velha e a nova, por lhe terem sido

    doadas em 1499. O rei recebia o dzimo eclesistico por ter o padroado da igreja de

    Viana.33 Alvar de 12.12.1571: as rendas dos concelhos no se arrendam de antemo,

    nem as das igrejas em que o rei tem a tera, que so, entre outras, a de Viana da Foz

    31 HFAC, IV, p. 225. 32 Cndido Augusto Dias dos Santos, O Censual da Mitra do Porto. Subsdios para o

    estudo da Diocese nas vsperas do Conclio de Trento, Cmara Municipal do Porto,

    1973, p. 351. 33 Manuel Antnio Fernandes Moreira, O municpio e os forais de Viana do Castelo, p.

    177.

    14

  • do Lima e a de Caminha.34 Havia o costume de repartir o dzimo eclesistico em trs ou

    quatro partes, uma das quais para o padroeiro; a tera aqui indicada.

    O foral de 1512 deveria apenas mencionar isto: o marqus recebe as duas dzimas e

    o rei a tera do dzimo. Mas o texto completamente diferente: (...) se recadar mais

    para ns [rei] na dita Villa a dzima nova () E pagar-se-h mais, na dita Villa, a

    dzima velha dos pescadores Igreja, de que ns havemos de haver a tera (). A dita

    dzima velha que se paga igreja o dzimo eclesistico; deste que o rei tem a

    tera, por ser o padroeiro.

    O concelho de Viana, aproveitando-se da ignorncia de Ferno de Pina e seus

    colaboradores, e da ausncia do marqus, que no foi ouvido, mandou-o pela borda

    fora. Fez desaparecer a dzima velha, e, quanto dzima nova, o texto diz que do

    rei, sem acrescentar que est doada ao marqus. O foral de 1512 um mero disparate

    sem consequncias. O marqus continuou a receber as duas dzimas como se v no

    litgio que sustentou ao longo do sc. XVI sobre o bacalhau da Terra Nova.

    FORAL DE CAMINHA (1512)

    Caminha foi enganada: pagava a dzima velha a dobrar. No foral de 1284, o rei D.

    Dinis concedeu vila todos os reguengos, foros e tributos reais, excepto as dzimas da

    entrada do mar (tributo alfandegrio), metade do navo e o padroado das igrejas, em

    troca de 1.000 maravedis velhos anuais, que descero para 700 maravedis menos 16

    soldos em 1321, quando o termo municipal for encurtado a favor de Vila Nova de

    Cerveira.35 O foral novo (1512) actualiza o foro colectivo para 33.920 reais. Neste foro

    colectivo est includa a dzima velha, mas o concelho e o rei esqueceram-se, e ela

    continuou a ser doada. Em 1499, foi ao marqus de Vila Real que o rei doou as dzimas

    velha e nova de Caminha.36 Tal como em Viana, o rei era o padroeiro da igreja de

    Caminha, pelo que recebia o dzimo eclesistico, ficando com a tera.

    O foral de 1512 deveria apenas mencionar isto: o marqus de Vila Real recebe as

    duas dzimas e o rei o dzimo. Mas o texto completamente diferente. Manda pagar ao

    rei a dzima nova. E a dizima velha se recadara dos pescadores soomente da dita villa

    34 Joaquim Verssimo Serro, Itinerrios de El-Rei D. Sebastio (1568-1578), 2. ed.,

    Lisboa, Academia Portuguesa de Histria, 1987, p. 221. 35 Maria Helena da Cruz Coelho, Homens, espaos e poderes. Sculos XI-XVI. I Notas

    do viver social, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pp. 203, 210. 36 HFAC, IV, p. 159.

    15

  • pera a IgreJa della da quall antigamente estam em posse. E os outros pescadores de fora

    que a dita villa trouxerem pescado pagaro a dita dizyma nova se a Ja nom pagaram

    como dito he e mais a outra dizima velha nom semdo os privjlligiados da dita vila.

    A dita dzima velha que se paga igreja o dzimo eclesistico. Diz tambm o

    foral que a tera do padroado da igreja fora outorgada vila para a construo e

    reparao dos muros. por isso que a dizima velha se recadara dos pescadores

    soomente da dita villa pera a IgreJa della da quall antigamente estam em posse.

    O concelho de Caminha, tal como o de Viana, aproveitou-se da ignorncia de

    Ferno de Pina e seus colaboradores, e da ausncia do marqus, que no foi ouvido,

    para fazer desaparecer a dzima velha. Mas o marqus continuou a receber as duas

    dzimas.

    FORAL DE VILA DO CONDE (1516)

    Em Vila do Conde, uma sentena de 12.12.1480 diz que o mosteiro de Santa Clara

    recebe todos os direitos reais, sem ns (rei) hy avermos cousa alguma, se nom a sisa e

    a dizima do pescado, que se la chamaua dizima nosa.37 Esta dzima nosa deve ser a

    dzima nova. Parece que o mosteiro tem a dzima velha, o que seria confirmado pelo

    foral manuelino (1516): os pescadores que trouxerem pescado fresco pagam duas

    dzimas, a saber, a dizima velha que tem o mosteiro e a outra dzima nova que por

    contrato dos pescadores nos devida. Parece, mas no . A expresso dzima velha

    refere-se a uma dzima muito antiga, que o dzimo eclesistico.

    O mosteiro obteve em 1318 o padroado da igreja matriz de S. Joo Baptista de Vila

    do Conde, como se l num documento, que acrescenta: e escolhero as freiras no

    repartimento dos dzimos desta igreja os da pescaria, e o das mais couzas ao vigairo e

    ressoeiros da dita igreja.38 Em 1524, a igreja matriz de S. Joo Baptista foi erigida em

    colegiada. Na carta de fundao da colegiada, o arcebispo de Braga estabelece a

    separao entre o que fica destinado igreja e ao mosteiro. igreja, toda a renda de

    dzimos da terra assim prediaes como pessoaes e conhecenas, premissas e oblaes

    () E a mais renda dos Dzimos e premissas do pescado de rio e mar appicamos ao

    37 Carlos da Silva Tarouca, Cartulrio do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde,

    Vila do Conde, Associao Comercial e Industrial, 1986, pp. 92 e ss. 38 Amlia Polnia, Vila do Conde. Um porto nortenho na expanso ultramarina

    quinhentista, texto policopiado, 2 vols., Porto, Faculdade de letras, 1999, p. 52.

    16

  • ditto mosteiro () assim e na maneyra que hora levo e levaro suas antecessoras

    ().39

    Diz-se que so recorrentes as contendas entre o mosteiro de Santa Clara e os

    sucessivos vigrios em torno da dzima velha. No a dzima velha. O que os

    sucessivos vigrios disputam a repartio do dzimo eclesistico, porque s este que

    eles podem pretender, nunca a dzima velha, que um direito real. Tambm se diz40 que

    uma sentena do tribunal eclesistico de Roma, em 14.4.1447, afirma o direito do

    mosteiro a toda a dzima do pescado do mar e rio, a pagar pelos fregueses da igreja de S.

    Joo Baptista, enquanto sua anexa. Em 1568 decorria outra demanda entre as duas

    partes, a qual vai por apelao ao tribunal do nncio apostlico em Portugal. O que os

    fregueses de uma igreja pagam o dzimo eclesistico; no a dzima real. No faz

    sentido que um litgio em torno da dzima velha, que um direito real, seja julgado num

    tribunal eclesistico de Roma.

    Lamenta-se a abadessa do mosteiro numa carta que escreveu ao rei, em 28.4.1530:

    h seis anos que perdemos a dzima do pescado que nesta vila temos que nos rendia 80

    mil ris, por se deitarem todos os pescadores a navegar, o que senhor cresce em vosso

    proveito e nossa perda.41 Lamenta-se de ter perdido uma dzima (o dzimo eclesistico),

    no duas. Numa relao das demandas do mosteiro, referente aos anos de 1795 a 1845,

    est uma contra os pescadores de Vila do Conde; a sentena contrariou o mosteiro,

    entendendo que a dzima do pescado em causa era real e no eclesistica.42

    O duque de Bragana que passou a ter a dzima velha em Vila do Conde, no

    sabemos desde quando, juntamente com a dzima nova que o rei lhe havia doado em 1499.

    Antes, no sabemos se haveria iseno. Uma sentena de 19.1.1709 favorece o duque e

    contraria os pescadores de Vila do Conde, decidindo que devem pagar de dez peixes

    39 Manuel Amorim, A antiga colegiada de Vila do Conde, Vila do Conde. Boletim

    Cultural, nova srie, n 2, Julho 1988, pp. 5-15. 40 Amlia Polnia, op. cit., p. 287. 41 Coleco de So Loureno, vol. I, prefcio e notas de Elaine Sanceau, Centro de

    Estudos Histricos Ultramarinos, Lisboa, 1973, p. 333. 42 Joaquim Pacheco Neves, O mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, Cmara

    Municipal de Vila do Conde, 1982, p. 61.

    17

  • dois, ficando s com oito, e no na forma que eles queriam e tinham introduzido.43 Os

    dois peixes em cada dez correspondem s duas dzimas, a velha e a nova.

    FORAL DE ATOUGUIA (1510)

    Pagam a vintena, em lugar da dzima velha, salvo os vizinhos chamados francos

    que esto isentos no foral antigo; e mais duas dzimas, a saber, huuma primeiramente

    de que a Igreja estaa per muyto tempo de posse, e outra, a nova, ao rei. Do que

    matarem com rede-p, anzol, bicheiro ou nassa, os pescadores pagam as dzimas, mas

    os no pescadores s a dzima velha Igreja.

    O foral usa a expresso dzima velha com dois significados diferentes, confundindo

    a velha com a antiga. Primeiro, a vintena, o que est certo. Depois, a dzima

    velha Igreja, o que est errado. O que a igreja tem o dzimo eclesistico, j muito

    antigo, cobrado desde h muito tempo.

    FORAL DE SESIMBRA (1514)

    Na reforma dos forais, se uma das partes no ouvida, corre srios riscos de ficar

    lesada, como sucedeu em Viana e Caminha ao marqus de Vila Real. Este, quando

    tomou conhecimento dos novos textos, deve ter logo interposto aces em tribunal e

    obtido sentenas favorveis a corrigir os forais.

    Foi isto que sucedeu em Sesimbra, onde no foi ouvido o comendador da vila, D.

    Duarte de Meneses, que era governador de Tnger.

    Sesimbra tem razes de queixa de Setbal. Ambas pertencem Ordem de Santiago,

    mas em Setbal as receitas so para a Mesa Mestral da Ordem, e em Sesimbra para o

    comendador. Setbal tem sal e portanto o poder de obrigar os de Sesimbra a irem l

    descarregar pescado e pagar as dzimas quando forem carregar sal. Isto deu origem a

    vrios litgios.

    Os forais manuelinos de Setbal e Sesimbra, ambos de 1514, mencionam o acedar,

    importante rede de cerco, e a sacada, nome que se dava dzima de sada

    (alfandegria). O rei ficava quase sempre com esta dzima mas aqui doara-a Ordem de

    Santiago.

    Foral de Setbal: os navios de Setbal que forem pescar ao mar de Sesimbra

    paguem as dzimas do pescado, a velha e a nova, em Setbal; os mercadores nacionais

    ou estrangeiros que comprarem pescado nos acedares de Sesimbra, paguem s uma

    43 Manuel Incio Pestana, A reforma setecentista do Cartrio da Casa de Bragana,

    Lisboa, Fundao da Casa de Bragana, 1985, p. 308.

    18

  • dzima de sacada, e no duas, como at aqui, uma em Sesimbra e outra em Setbal; os

    pescadores de Setbal que forem, em caravelas de Setbal, pescar a Sesimbra, e

    venderem o pescado a mercadores, paguem a dzima de sacada em Setbal, mesmo que

    a caravela no venha com o pescado a Setbal, por ser assim usado antigamente; mas

    se os pescadores e armadores pescarem com suas barcas e redes, pagarem as dzimas,

    a velha e a nova, e carregarem o pescado por si ou seu mandado, no paguem dzima

    de sacada.

    Foral de Sesimbra: os de Sesimbra que forem vender pescado a Setbal paguem a

    dzima velha em Setbal e a dzima nova em Sesimbra; quanto dzima de sacada, de

    qualquer pescado que se carregar por mar na vila ou nos acedares, pague-se em

    Sesimbra.

    Reclamou D. Duarte de Meneses, comendador de Sesimbra, num litgio com o mestre

    da Ordem de Santiago, que teve sentena do rei em 1520:

    - Alegao do comendador: os pescadores de Sesimbra que matavam pescado em

    qualquer parte, e iam vender a Setbal e a outras partes, sempre foi costume pagarem a

    dzima velha em Sesimbra, onde so moradores; tambm sempre foi costume a dzima de

    sacada ser paga pelos compradores no lugar onde compram os pescados e os carregam,

    mesmo que os pescadores sejam moradores em outras partes; a dzima de sacada do peixe

    que os de Setbal vendem e carregam no mar de Sesimbra, deve ser paga em Sesimbra; de

    todo o pescado que quaisquer pessoas, de Setbal ou doutras partes, compravam e

    carregavam nos acedares dos pescadores de Sesimbra, sempre se pagou a dzima de sacada

    em Sesimbra.

    - Contestao do mestre de Santiago: sempre foi costume cobrar em Setbal a

    dzima velha do pescado que os de Sesimbra l descarregam; a dzima nova paga em

    Sesimbra; do pescado que os de Setbal apanham ao longo da costa at Sines ou Melides,

    e l o vendem, os compradores pagam a dzima de sacada em Setbal, que recolhida pela

    Ordem de Santiago; para esse efeito os oficiais da Ordem, estabelecidos em Setbal, vo

    l, onde eles compram os pescados, arrecadar a dzima de sacada; os de Sesimbra pescam

    com os seus acedares dentro da foz do rio de Setbal, e os tm nos mares aducentes

    [adjacentes] e comarcos a Setbal, e vo com eles a Tria, a Melides e a Sines, que so

    lugares da Ordem, e os compradores que compram nesses acedares pagam a dzima de

    sacada vila de Setbal; e isto desde h muito tempo; os de Setbal, quando pescam e

    vendem nos mares de Sesimbra, eles mesmos arrecadam a dzima de sacada dos

    compradores, sem sarem em terra, e trazem a dzima de sacada para os rendeiros do

    19

  • mestre, em Setbal, sem o almoxarife do comendador de Sesimbra o saber, nem ver; se os

    compradores sarem em terra, em Sesimbra, logo o almoxarife do comendador os

    constrange a pagarem outra vez.

    A sentena considera que o comendador provou estar em posse da dzima velha do

    pescado que os de Sesimbra vo vender a Setbal, e manda corrigir o foral. Manda

    tambm que a dzima de sacada do que os pescadores de Sesimbra apanham nas suas

    caravelas e acedares, nos mares de Setbal, se pague em Setbal.44

    UM LITGIO EM ROMA NO SC. XVI

    No sc. XVI decorreu em Roma um litgio entre, por um lado, o arcebispo de

    Lisboa, atravs do cabido da S de Lisboa, e por outro, o rei e a Ordem de Santiago,

    sobre o dzimo eclesistico do pescado de Setbal, Sesimbra e Ribatejo. O Ribatejo

    correspondia margem sul do Tejo, entre o Rio Coina e o Rio das Enguias, basicamente

    a rea dos actuais concelhos do Barreiro, Moita, Montijo e Alcochete, abrangida pelo

    foral de Alhos Vedros (actuais concelhos do Barreiro e da Moita) e pelo foral conjunto

    de Aldeia Galega (Montijo) e Alcochete.45

    O litgio comeou em 1542, j tinha mais de 2.300 folhas em 1557, prolongou-se

    ainda por muitos anos e revela bem a enorme confuso que havia: nem o rei, nem a

    Ordem, nem o arcebispo sabiam os seus direitos. O mestre de Santiago, D. Jorge de

    Lencastre, faleceu em 1550, e nesse mesmo ano uma bula concedeu ao rei D. Joo III a

    administrao dos mestrados das Ordens de Santiago e de Avis para que as administrasse

    juntamente com a Ordem de Cristo da qual j era mestre. D. Joo III ficou neste litgio na

    dupla qualidade de rei e de mestre de Santiago.

    A dzima nova do pescado do Ribatejo estava doada ao duque de Bragana

    desde 1530.46 O duque tinha tambm uma parte da dzima nova de Setbal, a do chamado

    pescado mido,47desde 1520;48 a outra parte seria do rei, segundo o numeramento

    44 Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo Geral, ms. 90, n 9. 45 Maria ngela Beirante, Alcochete, vilabero de D. Manuel. Administrao,

    economia e forma urbana (sculos XV XVI), in O ar da cidade. Ensaios de Histria

    Medieval e Moderna, Lisboa, Colibri, 2008, p. 111. 46 HFAC, V, fasc. II, p.73. 47 Incio Pestana, op. cit., p. 291. 48 HFAC, IV, pp. 285 e ss.

    20

  • feito entre 1527 e 1532. Este numeramento atribui tambm ao rei a dzima nova do

    pescado de Sesimbra.49

    Quanto dzima velha do pescado, competia Ordem de Santiago receber a do

    Ribatejo, e, em Setbal e Sesimbra, receber a dos pescadores destas e das outras suas

    terras, como Sines e Milfontes, cabendo ao rei a dzima velha dos pescadores de fora,

    nacionais ou estrangeiros.

    Tambm competia Ordem o dzimo eclesistico de Setbal, Sesimbra e

    Ribatejo, por ter o padroado das igrejas.

    Ou seja, a Ordem deveria receber integralmente duas dzimas, a velha e o dzimo

    eclesistico, excepto em Setbal e Sesimbra, onde parte da velha, a dos pescadores de

    fora, era para o rei. Mas os pescadores s lhe pagavam uma. A questo em litgio era s

    esta: a dzima que a Ordem recebia era a velha ou o dzimo eclesistico ? Para a Ordem,

    era a velha; para o arcebispo, o dzimo. O dzimo dividia-se normalmente em trs

    partes, uma das quais para o bispo. Era esta tera parte que o bispo, neste caso o

    arcebispo de Lisboa, reivindicava. O arcebispo estendeu depois o litgio para Lisboa

    onde tambm no recebia a tera do dzimo.

    O que os pescadores no pagavam, sabe-se, era o dzimo. Em 1463, o cabido da

    S de Lisboa enviou cartas ao rei queixando-se dos pescadores do Ribatejo que no

    pagavam o dzimo.50 Em 13.6.1486, D. Joo II confirmou aos moradores de Setbal o

    privilgio outorgado por D. Joo I, de apenas pagarem s igrejas o dzimo do sal, figos

    passados, uvas e outros frutos, contrariando assim as exigncias dos almoxarifes do

    mestre de Santiago.51

    Segundo o numeramento feito entre 1527 e 1532:

    - Em Setbal, o rei tem as sisas, a dzima da alfndega, a dizima nova do

    pescado e as teras do concelho; o mestre de Santiago, os dzimos da terra e do mar;

    49 Anselmo Braamcamp Freire, Povoao de Entre Tejo e Guadiana no sc. XVI, in

    Archivo Histrico Portugus, vol. IV, Lisboa, 1906, pp. 355-357. 50 Documentos para a histria da cidade de Lisboa: Cabido da S (), Lisboa, Cmara

    Municipal, 1954, p. 94. 51 Manuela Mendona, Documentos relativos s Ordens Militares na Chancelaria de D.

    Manuel. Tipologia e contedos, in Ordens Militares. Guerra, religio, poder e cultura,

    vol. I, Lisboa, Edies Colibri e Cmara Municipal de Palmela, 1999, p. 82.

    21

  • o cardeal (leia-se o arcebispo) e cabido da S de Lisboa, o tero dos dzimos de terra;

    o duque de Bragana, a dzima do meudo do pescado.

    - Em Sesimbra, o rei tem as sisas, a dzima da alfndega, a dizima nova do

    pescado, e armaes dos atuns, e teras do concelho, as quais teras tem dadas ao

    mestre de Santiago. Tem o cabido da S de Lisboa o tero dos dzimos.52

    Os textos esto confusos e com alguns erros. Em Setbal, o duque de Bragana no

    tem a dzima do mido, mas sim a dzima nova do mido; o rei no tem a dzima nova

    completa, porque uma parte, a do mido, do duque. No mencionam a dzima velha

    do pescado, que est prevista nos forais manuelinos de Setbal e Sesimbra, ambos de

    1514, confirmando vrios documentos anteriores. Em Setbal, o mestre de Santiago

    recebe os dzimos da terra e do mar, e deveria dar a tera parte ao arcebispo e cabido

    da S de Lisboa, mas s d o tero dos dzimos de terra. Falta o tero dos dzimos

    do mar, que so os do pescado; as mercadorias que entram ou saem por mar no

    pagam dzimo eclesistico. O texto relativo a Sesimbra omisso, mas o mestre de

    Santiago tambm receber os dzimos da terra e do mar, e tambm no dar ao

    arcebispo o tero dos dzimos do mar.

    Isto , segundo o numeramento, a dzima que os pescadores no pagam a velha.

    Pagam o dzimo eclesistico Ordem mas esta no d ao arcebispo a tera parte.

    O litgio comeou em 1542, quando o arcebispo de Lisboa exps o assunto numa

    carta ao Papa.53 Em 16.10.1552 o embaixador em Roma, D. Afonso de Lencastre,

    enviou uma carta ao rei:54 () a concrdia que entre o cabido e a Ordem houve acerca

    das teras parece mais fazer por ela que por ele, pelas exceptuaes que faz, as quais

    parecem concordarem com a doao que os reis passados fizeram, por onde o recebem,

    e no por razo da igreja como eles querem dizer (). Depreende-se que havia uma

    concrdia sobre o tero do dzimo, mas com excepes, e no contemplava o pescado.

    Defendia em Roma os interesses do rei, desde 1548, o doutor Antnio Lopes,

    que seria um jurista subordinado ao procurador dos feitos do rei, entidade encarregada

    de defender os interesses do rei em tribunal. E o rei estava muitas vezes em tribunal por

    causa das dzimas do pescado. J vimos que nesta poca, s a dzima do bacalhau deu

    52 Anselmo Braamcamp Freire, op. cit., pp. 355-357. 53 Joaquim H. da Cunha Rivara, Catlogo dos manuscritos da Biblioteca Pblica

    Eborense, tomo III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1871, p. 78. 54 CC/1/88/149.

    22

  • origem a trs litgios, em Viana, Aveiro e Lisboa. O procurador dos feitos do rei tinha,

    portanto, a obrigao de saber qual a diferena entre a dzima velha (direito real) e o

    dzimo (direito eclesistico). Mas o dr. Antnio Lopes no sabia, e foi investigar na

    Torre do Tombo55e no cartrio da cmara de Lisboa.56

    Enviou uma carta ao rei, em 10.8.1557. Este negcio da demanda da dzima do

    pescado do mestrado de Santiago que o cabido de Lisboa traz contra Vossa Alteza to

    importante coroa do seu reino pois do vencimento dela depende segurar-se a outra

    dzima velha dos lugares dos portos do mar.

    No estado actual do processo, que j tem mais de 2.300 folhas, a favor do rei se

    prova: 1) que Vossa Alteza senhor do mar adjacente a seu reino e da sua conquista e

    que V.A. quando acontece fazerem-se alguns delitos no dito mar manda fazer justia

    dos delinquentes como senhor dele; 2) que os pescadores de seu reino, assim por

    razo da entrada das fozes do mar onde entram, como tambm por ser senhor do dito

    mar onde pescam, lhe pagam de tributo a dzima velha como direito real; 3) nos forais

    de Setbal, Sesimbra e Ribatejo esta dzima velha indicada como direito real; 4) a

    dita dzima do pescado tem nome diverso da dzima espiritual [eclesistica], porque em

    Portugal aos direitos de Vossa Alteza, assim como a dzima do pescado e a da alfndega

    e as outras dzimas, lhe chamam dzima em feminino, e a dzima espiritual que se paga

    s igrejas por razo dos sacramentos se chamam dzimos; 5) as dvidas que h sobre

    a dzima velha as determinam os juzes dos feitos de V.A. que so leigos e seculares;

    6) o arcebispo conhece das dvidas que h sobre os dzimos espirituais, e desta dzima

    nunca conheceu, mas antes os oficiais de V.A. em sua presena conhecem dela, e o

    mesmo arcebispo o diz assim em seu testemunho; 7) os pescadores tomam os

    sacramentos nas parquias e pagam os dzimos das cousas da terra aos reitores, e a

    dzima do pescado a pagam Ordem e a V.A.; 8) os reis continuaram a fazer doaes

    da dzima velha, como a deram rainha em Faro, em Lisboa ao duque de Bragana, em

    Santarm, Tavira, Viana e Caminha ao marqus de Vila Real, em Setbal, Sesimbra e

    Ribatejo Ordem; 9) a dzima nova que os pescadores pagam a V.A. por um contrato

    que fizeram com D. Joo I; 10) a sisa do pescado se paga por razo da compra e venda

    55 Corpo Diplomtico Portuguez (), tomo VIII, dir. Jos da Silva Mendes Leal,

    Lisboa, Academia Real das Cincias, 1884, pp. 17-22. 56 Documentos do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Lisboa: Livros dos Reis,

    tomo VII, Lisboa, Cmara Municipal, 1962, p. 196.

    23

  • que se faz, e que no se vendendo no se deve, e que o mesmo rei D. Joo I foi o

    primeiro que ps a dita sisa, e que a dzima velha do pescado se devia antes.

    O que se prova a favor do cabido o seguinte: 1) Algumas testemunhas dizem

    que ouviram dizer que a dzima do pescado de Lisboa a deram os arcebispos aos reis a

    troco de Alhandra e Santo Antnio; 2) os arcebispos de Lisboa esto em posse dos

    ditos lugares com os direitos reais e jurisdies deles; 3) 7 ou 8 testemunhas, pescadores

    de Sesimbra, dizem que pagam esta dzima velha ao duque de Aveiro como comendador

    da Igreja, e que tm para si que lha pagavam como dzima espiritual por razo dos

    sacramentos; o mesmo dizem algumas testemunhas pela dzima velha de Setbal, e

    algumas testemunhas de Lisboa dizem o mesmo; 4) em Atouguia se paga a dzima

    velha igreja, e o mesmo na Pederneira, posto que isto da Pederneira no faz ao caso,

    porque se prova que tambm pagam a dzima velha ao cardeal como dom abade de

    Alcobaa, e se prova que o rei D. Pedro fez doao desta dzima ao dito mosteiro; 5)

    tambm provam que em alguns lugares de Entre Douro e Minho se paga a dzima

    velha s igrejas. Esta a substncia da sua prova.

    Diz ainda o dr. Antnio Lopes que, em Lisboa, foi aos cartrios da cmara de

    Lisboa e da Torre do Tombo, e neles encontrou documentao probatria de que

    Alhandra e Santo Antnio foram dadas ao arcebispo em troca dos direitos da alfndega.

    Quanto aos testemunhos dos pescadores, dizem eles ter lido em certos livros velhos que

    a dzima espiritual. Em Setbal encontrou uns captulos em que consta que do pescado

    no pagam dzimo a Deus.57

    Em resumo, os principais argumentos a favor do rei so: 1) senhor dos portos e

    do mar adjacente, e nessa qualidade recebe a dzima velha do pescado, como direito

    real; 2) nos forais de Setbal, Sesimbra e Ribatejo a dzima velha indicada como

    direito real; 3) as dzimas reais, do pescado, da alfndega e outras, so femininas

    (dzima); a dzima espiritual (eclesistica) masculina (dzimo); a dzima em causa

    feminina; 4) as dvidas sobre a dzima velha so decididas pelos juzes do rei; sobre o

    dzimo, por juzes eclesisticos; as dvidas sobre a dzima em causa foram sempre

    decididas pelos juzes do rei.

    57 Corpo Diplomtico Portuguez (), tomo VIII, pp. 17-22. O dr. Antnio Lopes diz,

    numa carta de 1.7.1559, que todas as dzimas velhas do pescado do reino, que o rei pode

    perder neste litgio, valem por ano 80 mil cruzados (Corpo Diplomtico Portuguez,

    VIII, pp. 159-160).

    24

  • Os principais argumentos a favor do cabido so: 1) alguns pescadores de

    Setbal, Sesimbra e Lisboa julgam que a dzima que pagam eclesistica; 2) a dzima

    velha de Atouguia paga-se igreja e o mesmo acontece em alguns lugares de Entre

    Douro e Minho.

    O dr. Antnio Lopes, que defende os interesses do rei h 9 anos, desde 1548,

    ainda no percebeu que alguns forais manuelinos de Entre Douro e Minho esto errados,

    como os de Viana, Caminha e Vila do Conde: a dzima velha no se paga igreja. As

    dzimas velhas de Atouguia e Pederneira tambm no se pagam igreja. Sente at

    necessidade de explicar ao rei qual a diferena entre dzima velha, dzima nova,

    dzimo eclesistico e sisa.

    Noutra carta de 6.2.1559 comunica ao rei que se est agora a disputar a quem

    toca o encargo de provar: se ao rei, que esta dzima temporal e tributo que se no

    compreendia na concrdia feita entre o cabido e a Ordem; se ao cabido, que

    espiritual e se paga em razo das igrejas. Diz tambm que h alguns anos, no tempo do

    mestre de Santiago j falecido, D. Jorge de Lencastre, se decidira em Roma que, na

    dvida, esta dzima do pescado se presumia ser espiritual. Alegava o cabido que o

    mestre j falecido confessara que a dzima era espiritual.58

    Com efeito, D. Jorge de Lencastre pensava que a dzima velha era eclesistica.

    Em Sines, outra terra da Ordem de Santiago, s era autorizada a pesca aos domingos e dias

    santos, excepto sardinha e outros peixes de corso, pagando mais uma dzima igreja. Na

    visitao que l fez, em 1517, diz que alguns rendeiros a recebem depois dos outros

    direitos; os pescadores so obrigados a pagar a sisa antes de pagarem a dzima igreja, o

    que no se deve fazer; e manda que, depois de paga a dzima velha que he a dzima de

    deus, se pague esta dzima pera a Igreja, antes dos outros direitos. E destas dizimas da

    Igreija sera ho prior juiz.59 Bastaria a D. Jorge, mestre da Ordem de Santiago, ler o foral

    de Sines, promulgado 5 anos antes, em 1512, para saber que a dzima velha no de Deus:

    os pescadores de Sines ou outras terras da Ordem pagam dzima velha Ordem; os

    pescadores de outras terras, nacionais ou estrangeiros, pagam ao rei. Portanto, um direito

    real e no eclesistico.

    58 Corpo Diplomtico Portuguez, VIII, pp. 98-100. 59 Arnaldo Soledade, Sines, Terra de Vasco da Gama, 2. ed., Sines, 1982 (1 ed.,

    Setbal, 1963), pp. 105, 106.

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  • Chegaram a ser proferidas duas sentenas na Cria Romana a favor do rei e da

    Ordem, em 29.5.1559 e Maio de 1560.60 O dr. Antnio Lopes faleceu em 1562, e o

    litgio continuou, no sabemos at quando.

    Em 1607, diz Lus de Figueiredo Falco61 que a Ordem de Santiago tem em

    Setbal a dzima velha de todo o pescado e sardinha, chamada a dzima real, a qual o

    rei, como governador e perptuo administrador da Ordem, arrenda ou manda arrendar

    por conta da sua fazenda, com obrigao de sustentar priores e beneficiados, e outros

    encargos das igrejas paroquiais da dita vila. Isto , ter-se- chegado a um

    compromisso: a dzima velha real, mas assegura os encargos que competiriam ao

    dzimo eclesistico, o qual os pescadores continuam a no pagar.

    Neste litgio impressiona a ignorncia de todos os intervenientes: o rei, o

    arcebispo, o cabido da S de Lisboa, a Ordem de Santiago, os procuradores dos feitos

    do rei e o dr. Antnio Lopes que esteve 14 anos a estudar o assunto. Ningum sabe qual

    a diferena entre dzima velha e dzimo eclesistico.

    Em contraste, noutras regies do pas os interessados nas dzimas do pescado

    sabiam muito bem o que estavam a fazer. o caso do mosteiro de Santa Cruz de

    Coimbra e do cabido da S de Coimbra que litigaram durante sculos em torno da pesca

    no rio Mondego e na rea martima adjacente. Muitos processos judiciais destas duas

    entidades esto copiados nos livros e cadernos manuscritos de A. Mesquita de

    Figueiredo, na Biblioteca Municipal da Figueira da Foz, e neles se v que dominavam

    perfeitamente o assunto. Pena que o dr. Antnio Lopes, em vez de investigar

    durante 14 anos, no tivesse a ideia de ir a Coimbra perguntar ao mosteiro de Santa

    Cruz ou ao cabido da S.

    60 Corpo Diplomtico, VIII, p. 405. 61 Livro de toda a fazenda (), Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, p. 260.

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  • CONCLUSO

    A esmagadora maioria dos documentos conhecidos sobre a actividade piscatria

    menciona um ou mais tributos. Mas este domnio, o da tributao aplicvel, permanece

    quase ignorado, mesmo os conceitos mais elementares, como a dzima e a portagem.

    A palavra portagem teve vrios significados, e a palavra dzima ainda mais, o

    que deu origem a enormes confuses, na poca e ainda agora, em obras publicadas

    recentemente. Isto tem implicaes na histria da pesca, na histria das povoaes

    martimas e na histria do direito martimo.

    27