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PEIRANO, Mariza. Parte III O Estado Na Vida Das Pessoas. in a Teoria Vivida e Outros Ensaios de Antropologia

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    Lene FerreiraText BoxPEIRANO, Mariza. A teoria vivida e outros ensaios de antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006

  • 9. "Sern lenco, sem documento": cidadania no Bresil'

    oantrop6logo que decide fazer das sociedades modernas seu objeto de estudo enfrenta urn desafio e corre urn perigo. 0 desafio consiste em fazer com que a tradicao da disciplina, desenvolvida principalmente no estudo de populacoes tribais, nao seja abandonada como ultrapassada. Faz parte dessa tarefa, portanto, uma perspectiva que supere os limites impostos pela definicao de urn objeto concreto. 0 perigo que 0 antrop6logo corre e, ao contrario, reificar os metodos com os quais as sociedades tradicionais foram estudadas e aplicalos, indiscriminadamente, as modernas. Criticados e rejeitados, os "estudos de comunidade" ainda esperam por uma altemativa.i

    Qualquer forma que tome, essa opcao devera implicar 0 reconhecimento do que eespecificoao objeto investigado, 0 que 0 torna suigeneriseo que 0 faz comparavel e universal.Se houve urn momento no desenvolvimento da disciplina em que foi preciso advertir os etn6logos dos perigos do etnocentrismo, a circunstancia atual parece indicar 0 oposto: 0 antrop61ogo que estranha a sua pr6pria sociedade nao deve sedeixar levarpor uma atitude ingenuaque considera aschamadas sociedades complexas como se fossem simples, apenas complexificadas. Perder-se-ia, assim, 0 carater hist6rico do fenomeno socio16gico unico que foi 0 aparecimento das sociedades nacionais modernas. 0 que os antropologos chamam de "sociedades complexas",na maioria dos casos, sao (ou fazem parte de) Estados-nacoes.'

    A possivel contribuicao da disciplina para 0 estudo de urn terna que tern sido 0 objeto por excelencia da sociologia e da ciencia politica talvez seja 0 carater comparativo, universalista e relativizador de sua perspectiva. Assim, por

  • 122 A teoria vivida

    exemplo, 0 ponto de partida de Wanderley Guilherme dos Santos, de que "a igualdade de todos os seres humanos como pessoas morais so pode significar 0 direito igual de ser diferente"," nao se coloca para 0 pesquisador como urn valor em relacao asociedade que estuda, mas, sim, como foco da sua orientacao. Isso significa que, para 0 antropologo, sao as sociedades que tern igual direito de ser diferentes, e seu ponto de partida serao sempre as categorias com que os mernbros de uma sociedade ordenam sua experiencia ou as configuracoes de significado que e1as formam.

    Para cientistas politicos, 0 tema sugere, imediatamente, questoes de justica, participacao politica, direitos sociais. 0 antropologo propoe-se, em relacao a mesma questao, perguntas aparentemente mais simples: 0 que eurn cidadao? Qual a concepcao que distintos grupos tern de cidadania? Por meio de que simbolos eposslvel detectar essas formulacoes?

    Cidadania, nacao, Estado

    Para 0 antropologo, 0 Estado e a nacao sao interessantes, principalmente, na medida em que sao forrnacoes sociais recentes, agindo como atores privilegiados na arena internacional. 0 Estado nacional tern caracteristicas de universalidade, porem uma observacao mais detalhada mostra sua diversidade e, entao, pode-se atestar que, mais que algo acabado e pronto, trata-se de urn processo ou uma tendencia, Essa perspectiva nao enova, e e reconhecida mediante conceitos como state-formation e nation-building, por exernplo.t A adrnissao da historicidade dos Estados-nacces tambern permite constatar que, a par com os processos de formacao e construcao desse tipo de organizacao social, surgem as auto-imagens das nacoes, Quanto aformacao, predomina 0 aspecto de interdependencia funcional entre os estratos sociais e entre as regioes, e ai a historicidade e admitida. No que diz respeito aauto-imagem, encontram-se representacoes que tendem a ver as nacoes como eternas, imutaveis e integradas. Se distinguirmos os dois planos, iremos verificar que paises industrializados conternporaneos, conquanto se considerem nacoes acabadas, podem ainda estar nas fases iniciais de nation-building. 6

    Por definicao, os membros de um Estado nacional sao considerados cidadaos, a cidadania implicando direitos e deveres no reconhecimento da igualdade humana basica e sua participacao integral na cornunidade.? No entanto, se Estados e nacoes estao sempre em processo de constituicao, consolidacao e transformacao,o mesmo pode ser dito da cidadania. Como cada Estado utiliza

    "Sem lenco, sem documento" 123

    criterios diferentes de selecao e exclusao quanto ao status de cidadao, as variacoes tambem podem ser tomadas contextual e historicamente, Como urn modelo, 0 conceito de cidadania traz consigo fortes conotacoes de individualidade e universalismo e coaduna-se com a definicao de nacao enunciada por Marcel Mauss:

    [Nacao e] uma sociedade material e moralmente integrada, com fronteiras fixas, em que hi uma re1ativa unidade moral,mental e cultural entre seus habitantes, que conscientemente aderem ao Estado e suasleis.8

    Tal definicao foi, no entanto, contestada como se referindo ao Estado nacional, e nao apenas anacao." Naturalmente, ao antropologo nao interessa discutir um conceito que ereconhecidamente controvertido mesmo no lexico da ciencia polftica.l" Mas pode-se, para efeito de analise, ressaltar que 0 conceito de nacao inc1ui sempre valores ideologicos. Como diz Louis Dumont, acima de tudo a nacao e "a sociedade que se ve como constituida de indivfduos'l.!'

    Dumont encara a sociedade moderna como uma formacao social que se diferencia das tradicionais em geral por uma revolucao ideologica que coloca especial proeminencia no individuo. N as sociedades tradicionais, a enfase prin

    cipal esta na ordem, na traduiio e na orientacao de cada ser humano para os fins prescritos pela sociedade. No tipo moderno, a referencia primordial recai nos atributos, reivindicacoes e bem-estar de cada ser individual, independente

    mente de seu lugar no todo social. No primeiro caso, 0 ser humano econside

    rado essencialmente urn ser social, derivando sua propria humanidade da sociedade da qual de faz parte (caso da ideologia holista); no segundo, cada ser e urn elemento da especie, e uma essencia existindo independentemente, e observa-se uma rendencia a reduzir, obscurecer ou suprimir 0 aspecto social da sua natureza. N esse sentido, quando Dumont afirma que a nacao e "a sociedade que se ve como constituida de individuos", ele nao esta se referindo apresens:a empirica de seres humanos, mas ao valor ideologico colocado no individuo. Mesmo assim, adverte Dumont, as variacoes persistem, e ele nos mostra as dife

    12 rens:as entre os conceitos de nacao nos pensamentos frances e germanico.

    Usarei essas ideias como ponto de partida para urn exame do carater sim

    bolico que os documentos assumem no Brasil como emblemas de identidade cfvica. Documentos sao fornecidos por orgaos publicos apenas para aqueles que preenchem determinados requisitos estipulados por lei. Eles cumprem, por

    tanto, a funcao de distinguir 0 cidadao do marginal. Empiricamente, examino dois tipos de papeis legais: a carteira profissional, com apoio na sugestao de

  • 124 A teoria vivida

    Santos.F' e 0 titulo de eleitor, tendo por base pesquisa realizada em urn municipio rural de Minas Gerais. Em seguida, procuro mostrar como 0 conceito de cidadania pode surgir de outras formas, a partir, por exemplo, de algumas reflexoes sobre 0 programa de desburocratizacao que teve inicio no Brasil em 1979. No caso dos documentos, trata-se de ver como os grupos sociais concebem localmente a cidadania; no caso da desburocratizacao, de como 0 conceito edisseminado pelo Estado sob a perspectiva do "nao-documento".

    o documento urbano: a carteira profissional

    A carteira profissional no Brasil converteu-se, de acordo com Santos, em "certidao de nascimento civico"nos anos de 1930. Uma implicacao de sua instituicao, segundo 0 autor, eque, de todos os documentos a que a populacao urbana tinha direito, a carteira de trabalho se tornou 0 atestado comprobatorio de cidadania. Santos esc1arece sua ideia mostrando que, em lugar de ser determinada pelos direitos civis, politicos e sociais, a cidadania no Brasil se desenvolveu mediante a definicao e 0 reconhecimento por lei das profissoes vigentes, via urn sistema de estratificacao ocupacional. A cidadania no Brasil foi, assim, regulada pelo Estado, imposta pela inclusao na legislacao de novas profissoes e ocupacoes e pela ampliacao dos direitos associados a ambas. Passaram, desse modo, ao status de cidadao todos aqueles que tinham sua profissao admitida por lei; consequentemente, foram considerados pre-cidadaos todos os trabalhadores urbanos nao regulamentados e todos os trabalhadores da area rural. Em outras palavras, a nocao de cidadania regulada partia do Estado: "Se era certo que 0 Estado devia satisfacao aos cidadaos, era este mesmo Estado quem definia quem era e quem nao era cidadao, via profissao".14 Portanto, nao foram os valores inerentes aos membros da comunidade, e tampouco as aspiracoes da populacao de comungar urn ideal nacional, que serviram de base para essa concepcao, mas simplesmente uma categorizacao das profissoes.

    A sugestao de Santos indica, ainda, uma possivel afinidade entre a acao do Estado e a assimilacao da definicao estatal pela populacao urbana em geral. Tal fato e atestado por exemplos oferecidos pelo proprio autor, como a luta desenvolvida no Brasil pelo reconhecimento legal de varias profissoes (sociologos, processadores de dados etc.) que visavam sua inclusao na categoria de cidadaos, Por outro lado, corrobora a ideia do autor 0 fato de as associacoes profissionais poderem expedir carteiras de identidade, como era 0 caso daqueIas fornecidas peIo Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CREA. As

    "Sem lenco, sem documento" r :

    associacoes de c1asse assumiram, por muito tempo, funcoes proprias de Secretarias de Seguranca Publica. Finalmente, e interessante notar que, nao obstante a carteira profissional passar a ser simbolo de cidadania, isso nao significou 0 reconhecimento da igualdade entre os individuos e a participacao integral de todos na comunidade. A carteira profissional, privilegio de uma parceIa especifica da populacao, traz em si uma concepcao de cidadania que mostra a face da distincao e a marca do status. Os cidadaos da nacao assim definidos constituem minoria privilegiada. A nacao existe como categoria ideologies, sendo composta de individuos hierarquizados que se diferenciam por sua,profissao e pelo lugar que ocupam no conjunto da sociedade.

    o titulo de eleitor

    o titulo de eleitor leva-nos por outros caminhos. Ele se fez presente, em termos etnograficos, em uma pesquisa de campo em Minas Gerais no inicio dos anos 1980. Diferentemente da situacao urbana descrita por Santos," em Rio Paranaiba, 0 titulo de eleitor era 0 documento mais requisitado no cartorio da cidade. Tudo faz crer que se tratava, para a populacao rural, do equivalente acarteira de trabalho, tendo em vista 0 fato de 0 empregador providenciar 0 titulo eleitoral para seus novos empregados, ate arcando com eventuais despesas. No entanto, se esse documento preenchia funcao correspondente ada carteira profissional, por outro lado, continha implicitas outras dimensoes que eram especificamente rurais - ou, melhor, "nao-urbanas" -, entre e1as a personalizacao das relacoes sociais e a onipresenca da politica como csfera de atuacao e como categoria ideologica.

    Rio Paranaiba nao era uma comunidade isolada, como comumente ideali

    zado pela populacao urbana em relacao ao interior em geral. Rio Paranaiba for

    maya com outros municipios vizinhos - Sao Gotardo, Carmo do Paranaiba, Patos de Minas, Ibia, por exemplo - uma especie de rede de relacoes comerciais e de services, a qual podia estender-se a Bela Horizonte ou mesmo Brasilia, para onde, inclusive, foi significativa a migracao na decada de 1960. Rio Paranaiba, apesar de sua populacao pequena (nos anos 1980 contava com, aproximada

    mente, tres mil habitantes na scde e 11 mil no restante do municipio), desfru

    tava de recursos razoaveis em comparacao com os da maioria da populacao rural brasileira. Na epoca da pesquisa em pauta, encontravam-se hi, por exemplo, urn posto de saude, um hospital (quase inoperante) com dois medicos, uma escola publica, urn ginasio, urn cartorio, escrit6rio do Sindicato de Trabalhadores

  • 126 A teoria vivida

    Rurais, agencia do Banco Real, escritorio de contadoria, uma igreja cat6lica com padre residente, um temple protestante, um hotel, uma pensao, Moravam em Rio Paranaiba um juiz, um procurador e do is advogados. Nos ultimos anos, tin ham sido inauguradas uma creche, uma estacao rodoviaria, uma nova sede da Prefeitura e instalada uma agencia do Banco do Brasil. 16

    Nesse ambiente, em que os habitantes conviviam com recursos urbanos, 0 titulo de eleitor nao era uma sobrevivencia de um passado clientelista, mas uma realidade que coexistia com a introducao de medidas modernizantes, tais como a criacao do Estatuto do Trabalhador Rural e do Fundo de Assistencia e Previdencia do Trabalhador Rural- Funrural. Eimportante salientar isso, porque Santos em seu argumento sugeriu que, com a extensao dos direitos sociais ao campo, nao so a populacao rural se integraria asociedade legal, mas tambern o Funrural representaria uma inovacao de tal ordem nos valores politicos e sociais que romperia a concepcao de "cidadania regulada". Esses novos direitos, segundo 0 autor, trariam como novidade 0 fato de se estenderem a todos os membros da coletividade agniria, independentemente de sua ocupacao, No entanto, se 0 titulo de eleitor servia como simbolo de identidade civica, se nao contradizia, pelo menos sugeria que se deve encarar com cautela a relacao entre a extensao de direitos peIo Estado e as concepcoes de cidadania vivenciadas pela populacao. Nesse contexto, 0 titulo de eleitor vinculava, em primeiro lugar, 0 cidadao ao empregador, e s6 secundariamente aos outros eleitores. Ele simbolizava nao 0 direito de voto, mas uma filiacao politica.

    A esse respeito, dois aspectos devem ser salientados para futuras pesquisas: um se refere ao que se concebe localmente como politica; 0 outro, associado ao primeiro, tem a ver com a concepcao de jilho domunicipio. Ambos mostram que, apesar da integracao de Rio Paranaiba nos cenarios regional e nacional, as in formacoes provenientes dos grandes centros, e mesmo as medidas concretas de inclusao da populacao na categoria de cidadao, recebem interpretacoes locais particulares.

    Como exemplo da importancia da "politica", basta mencionar seu uso como explicacao para grande parte dos eventos locais: meio de se conseguir um emprego, causa de uma demissao, razao ultima de problemas aparentemente re1igiosos.Justificativas para essas situacoes eram geralmente dadas em termos laconicos: "E a politica." A "politica" e1ucidava ocorrencias hist6ricas - por exernplo, a razao de Benedito Valadares ter sido nomeado interventor em Minas Gerais sem sequer estar incluido na lista dos candidatos, mas apenas por ser casado com uma filha adotiva de Cctulio Vargas. Mas a "politica" deslindava tarnbem a morte de urn padre catolico pela faccao protestante ocorrida

    "Sem lenco, sem documento" 127

    cinquenta anos antes. Por outro lado, a "politica" era dada como razao para a nomeacao de procuradores, inspetores escolares, professores, assim como para a perda de cargos quando a outra faccao estava no poder.

    Tratava-sc de uma concepcao de politica vinculada a relacoes personalizadas e hierarquicas, em contraste com 0 modelo individual e universalista da ideologia moderna. Nao eram as caracteristicas de cada pessoa, e tampouco sua qualificacao ou merito, que determinavam sua escolha para um emprego, mas sua posi

  • 128 A teoria vivida

    modelo de cidadania, tal como tradicionalmente engendrado, ou a concepcao individualista de individuo, eram duvidosos. A ideia de nacionalidade era mediada pela identidade de filho do municipio, cujo simbolo civico e politico era 0 titulo de eleitor. A enfase nao recaia, portanto, no individuo como valor ultimo, mas no grupo. No municipio, os grupos eram os partidos politicos, incluindo aqueles nao mais reconhecidos oficialmente: "Aqui e tudo UDN e PSD e vai continuar assim enquanto 0 mundo for mundo."No plano estadual, a identidade se fazia pelo municipio de origem, reafirmando a ideia de jilho do municipio. Finalmente, em termos nacionais, a identidade era de mineiro (em contraste com goiano, baiano, paulista etc.). Esse esquema, familiar aos antropologos depois de Evans-Pritchard, aponta para uma ideologia nacional que, em termos de padrao, deveria ser "individualists", mas que se insinua, ao contrario, como "holista", Em contraste com 0 modelo de Dumont, 0 que Rio Paranaiba sugere ea possibilidade de termos uma nacao constituida de individuos que ndo se oeem como iguais, e que, ideologicamente hierarquizados na esfera local, transferem essa configuracao para 0 plano nacional. Ao que parece, esse modelo esta intimamente associado a. nocao de territ6rio - sobretudo de municipio -, quando nao a partidos politicos que simbolizam as divisoes internas. Mas e necessario distinguir aqui, como faz Dumont em relacao ao "individuo", 0 territ6rio como presens:a empirica e 0 lugar do territ6rio na consciencia que 0 grupo tern de siY

    o nao-documento

    Eclaro que a carteira profissional e 0 titulo de eleitor nao esgotam as possibilidades de simbolizacao da identidade nacional no Brasil. Hi situacoes em que a certidao de batismo preenche a mesma funcao, misturando-se ai identidade civil e religiosa. Da mesma forma, ha instancias em que nao e a nacao, mas 0 estado da federacao (por exemplo, 0 Ceara) a unidade de referencia."

    Dado esse cenario variado, a discussao do impacto do programa de desburocratizacao iniciado pelo governo federal em 1979 torna-se interessante. A desburocratizacao seria definida, vis-a-vis os documentos mencionados anteriormente, como a instancia do "nao-documento". 0 pressuposto era que a palavra do cidadao vale por urn documento, e 0 objetivo, eliminar ao maximo as dificuldades enfrentadas pelos usuaries dos services publicos,

    Da me sma forma que os documentos simbolizam urn mode1o de cidadania, a desburocratizacao representa urn outro, em que 0 cidadao esta dispensado do

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    excesso de documentos. Dominava a ideia de que 0 individuolcidadao deveria ter acesso direto ao governo, bastando para tanto escrever, pessoalmente e sem intermediarios, ao Ministerio da Desburocratizacao, Logo depois de iniciado, 0 programa procurou avancar: por via do telefone, 0 projeto "Fala Cidadao" (implantado em 1985) eliminaria ate a interrnediacao da carta. Tratava-se, portanto, da implantacao de urn modelo de nacao na forma como foi definido por Mauss, em que a integracao era de tal ordem "que, por assim dizer, nao existe interrnediario entre a nacao e 0 cidadao, que toda especie de grupo desapareceu".'"

    A cidadania alcancaria sua condicao mais pura: os cidadaos da nacao, iguais perante 0 Estado, teriam acesso direto nao s6 ao Ministerio, mas ao pr6prio ministro (no caso das cartas). Vale aqui lembrar que 0 programa de desburocratizacao teve inicio no ambito de urn Ministerio "extraordinario", ele pr6prio concebido como desburocratizado.

    A desburocratizacao fez-se em urn espas:opolitico-ideol6gico bern definido. Ao contrario de medidas econornicas centralizadoras, a desburocratizacao propunha, desde 0 inicio, a descentralizacao administrativa. Mas a descentralizacao tinha implicacoes inesperadas no que se refere a. integracao nacional. Aparentemente, essa parece ter sido a meta nao s6 do Ministerio da Desburocratizacao na epoca, mas tambern de outras entidades governamentais determinadas a construir a mem6ria do passado nacional. Orgaos como 0 Service do Patrimonic Hist6rico eArtistico Nacional- SPHAN, a Fundacao Pr6-Mem6ria etc., visando modificar a medic e longo prazos "a consciencia do Brasil", representariam, no sentido mais puro, uma experiencia de nation-building sob 0 comando do Estado. Se tal hip6tese for correta, 0 Ministerio da Desburocratizacao atingiria seus objetivos a. medida que produzisse respostas de participacao popular e, ao mesmo tempo, ou secundariamente, a efetiva concretizacao de medidas desburocratizantes. Tal sugestao parecia se confirmar em acoes que nitidamente visavam a mobilizacao popular. Em dezembro de 1981, por exemplo, 1,2 milhao de funcionarios publicos federais receberam,junto com seus contracheques, formularies do Ministerio para serem preenchidos com sugestoes visando simplificar a burocracia no pais. Em 1985, nao obstante, entre os nove principais projetos do programa, 0 item "desburocratizacao" propriamente dito figurava em quinto lugar, sendo precedido pelo Projeto Cidadao, pela Politica Nacional de Defesa do Consumidor, pelo Projeto de Apoio a. Microempresa e pelo Plano de Descentralizacao e Municipalizacao.20 (Vinte anos depois, a meta da desburocratizacao sobrevive no Prernio Helio Beltrao - nome do unico ministro da Desburocratizacao -, destinado a distinguir projetos de facilitacao da vida publica.)

  • 131 130 A teoria vivida

    Outras observacoes sao ainda pertinentes. Desburocratizar, em termos estritos, significa eliminar papeis. Pressup6e, portanto, uma situacao altamente burocratizada, com urn grau de ineficiencia tao elevado que se faz necessaria uma intervencao. Se tal fenomeno e claramente visivel nos grandes centros urbanos brasileiros, sua aplicabilidade e incerta no meio rural. Assim, em Rio Paranaiba, os habitantes nao acreditavam na utilidade do programa, uma vez que la "todo mundo conhece todo mundo". A solucao local era ate vista como mais favoravel, e mesmo superior, que a federal na tentativa de se eliminar injusticas sociais. Como todos se conhecem, "rnuitas vezes pobre nao paga". A maioria da populacao de Rio Paranaiba encarava 0 seu cotidiano como ja desburocratizado. (Uma perspectiva pre-burocratizada talvez fosse mais realista.) A excecao ficava por conta dos funcionarios do judiciario e despachantes, que viam na desburocratizacao a solucao para se romper 0 esquema de satelitizacao em que Rio Paranaiba estava envolvido, cuja principal irnplicacao era a situacao de dependencia para com Sao Gotardo, Carmo do Paranaiba, Patos de Minas e mesmo Belo Horizonte e Brasilia. A quebra desse sistema acarretaria urn maior fortalecimento do municipio. Note-se que mudancas sao pretendidas no ambito dos vinculos externos ao municipio, preservando as relacoes sociais existentes na esfera local. (Em 1981, duas pessoas de Rio Paranaiba tinham escrito para 0 entao ministro Helio Beltrao, ambas pertencentes ao sistema judiciario: urn advogado e urn escrivao.)

    o exemplo de Rio Paranaiba mostra que e possivel andarem juntas a descrenca no programa de desburocratizacao e a assimilacao do seu apelo ideologico - a prefeitura de Rio Paranaiba exibia urn cartaz do programa logo na sala de entrada. Revela, igualmente, 0 paradoxo de ver a desburocratizacao chegar a lugares pre-burocratizados, Por outro lado, durante algum tempo, paises como Colombia, Argentina, Venezuela, Portugal e Espanha procuraram 0 governo brasileiro para iniciar convenios visando a consultas e trocas de experiencias"

    Independentemente da versao de modernidade sobre a qual se assentava 0 projeto, permanece a questao se, com 0 novo modelo de cidadania, a desburocratizacao nao traria junto 0 famoso "paradoxo de Tocqueville",22que se refere ao fato de 0 individualismo e 0 poder central poderem crescer lado a lado, na medida em que cada individuo tern 0 dire ito de fazer suas reivindicacoes aassistencia governamental de forma autonorna. Em outras palavras, a pergunta que fica e a seguinte: a igualdade de participacao que a desburocratizacao prometia naquele contexto nao poderia acarretar a perda de identidade social do individuo? Tratar-se-ia, entao, de uma copia falsa de participacao, porque enquanto do ponto de vista do Estado novos canais de cornunicacao eram ofere

    "Sern lenco, sem documento"

    cidos, para os cidadaos a representacao coletiva ficava bloqueada. A inexistencia de intermediaries entre a nacao e 0 cidadao tambern chamou a atencao de Marcel Mauss, para quem "[...] 0 poder do individuo sobre a sociedade e 0 da sociedade sobre 0 individuo, exercendo-se sem freios e sem engrenagens, pode resultarem algo anormal [...]".23

    Tendo em vista que a burocracia faz as vezes de grupo intermediario entre o Estado e 0 cidadao, a questao que se coloca, entao, e a de se pensar no problema da burocracia a partir de novos modelos de organizacao - nao necessariamente "de cima para baixo", mas tambem na direcao inversa.

    V rna ultima observacao refere-se ao timing do inicio do programa de desburocratizacao. Santos-" mostra que foi nos periodos autoritarios que mais se propuseram modelos de cidadania no Brasil. Se isso e verdade, temos aqui urn processo contradit6rio de disserninacao, vindo "de cima" - em que pesem os indicios de abertura na epoca da sua implantacao -, de urn modelo dernocratico. Essa proposta, por exemplo, nao brota de aspiracoes populares especfficas, po is se trata de uma iniciativa particular do governo. A rigor, as reivindicacoes populares (como demandas salariais e outras) ficaram por longo tempo amargem e, na epoca, propos-se, como uma especie de substitutivo, a desburocratizacao, Alem disso, cabe salientar que essa e uma proposta eminentemente urbana, cujo pressuposto e que a burocracia e urn procedimento puramente tecnico.r" Ja no meio rural, onde as relacoes sociais sao, reconhecidamente, relacoes "politicas", 0 programa produz uma possivel integracao ideo16gica,mas desprovida de eficacia.

    Em 1985, seis anos depois da implantacao do Ministerio da Desburocratizacao, a mudanca de governo nao implicou alteracoes substantivas nas diretrizes gerais do projeto. Nota-se, ate, a perpetuacao dos seus paradoxos, como, por exemplo, no Programa de Documentacao para a Cidadania, por interrnedio do qual pequenos postos municipais provis6rios ofereciam titulo de eleitor, certidao de nascimento, certidao de casamento, certidao de obito, carteira de identidade ou de trabalho e certificado militar para a populacao desprovida de tais documentos. Observa-se ai a tentativa de habilitar as pessoas, intentando a consolidacao de uma sociedade civil, supondo-se que somente esta poderia alterar a correlacao de forcas encontrada nos escaloes intermediaries - e mais burocratizados - do governo. Em que pese a aparente contradicao de "documentar para desburocratizar", havia (e continua havendo) urn toque de realismo na medida. Esquecia-se, no entanto, 0 significado cultural de tais documentos em contextos diversos (ver Capitulo 10). Esquecia-se, ainda, que a cidadania passa pelo dominio do "politico", nao se limitando a aspectos propriamente civis e sociais.

  • "Sern lenco, sem documento"I32 A teoria vivida I33

    A questao, entao, e saber se a construcao de uma sociedade civil tern na desburocratizacao 0 seu caminho mais eficaz.

    ObservaCjoes finais

    Chegamos, portanto, aconclusao de que 0 ideal de se viver "sern lenco, sem documento" e fundamentalmente urbano.i" No meio rural, "cidadao" e urn termo que possui conotacao negativa, que se usa para designar uma pessoa desconhecida, estranha acomunidade - uma pessoa "sern nome": "Ei, providencia urn cafe para 0 cidadao aqui!" ou "0 cidadao nao esta entendendo...". A expressao "cidadao" marca 0 individuo como urn estranho. Fica claro, portanto, que "cidadania" e "cidadao" sao conceitos cujos significados variam entre cientistas sociais e membros de uma comunidade especifica, podendo ter ate urn status valorizado para uns e indesejavel para outros.

    Cientistas sociais sofrem de uma perene dificuldade para definir cidadania, na medida em que, mesmo reconhecendo 0 fenorneno como resultado de urn processo hist6rico, ha uma inevitavel tendencia a se falar em uma tipologia dos direitos do cidadao. Esta tern origem nos trabalhos de T.H. Marshall, que, embora afirme que sua analise e ditada "mais pe1a historia que pela 16gica",27 divide 0 conceito em tres partes:

    ". os direitos civis, compostos dos direitos necessaries aliberdade individualliberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fe, direito apropriedade e de realizar contratos validos e 0 direito ajustica;

    os direitos politicos, como 0 direito de participar no exercicio do poder politico como membro de urn organismo investido de autoridade politica ou como e1eitor dos membros de tal organismo;

    os direitos sociais, que se referem ao direito a urn minimo de bem-estar economico e seguranca, ao direito de participar por completo da heranca social e de levar a vida de urn ser civilizado de acordo com os padroes que prevalecern na sociedade'V''

    Marshall reve1a que os tres elementos da cidadania se formaram na Inglaterra no decorrer de tres seculos: os direitos civis podem ser atribuidos ao seculo XVlII, os politicos ao XIX e os sociais ao xx,mesmo se aceitando uma superposicao no seu desenvolvimento. Assim, alern de uma descricao hist6rica, nota-se uma tendencia implicita de conceber os direitos como "urn mode1o de

    cidadania". A mesma perspectiva aparece nos estudos de Bendix,29 quando este autor focaliza sua preocupacao na extensao dos direitos de cidadania as classes baixas. Em seus trabalhos, a visao hist6rica e frequentemente contaminada por termos como "os elementos da cidadania'v? e "nas experiencias de transicao".'!

    ParaT.H. Mashall, nao hi nenhum principio universal que determine quais sao os direitos e obrigacoes da cidadania, "mas as sociedades nas quais a cidadania e uma instituicao em desenvolvimento criam a imagem de uma cidadania ideal".32 0 principal problema dessa abordagem reside no pressuposto implicito de que algumas nacoes ultrapassam 0 ponto critico em que ocorrem transformacoes no conceito de cidadania. Mesmo que se aceite, por exemplo, que a 1nglaterra "e a excecao, mais que 0 modelo'v'? e como se 0 Estado nacional se encontrasse em sua forma definitiva eo conceito de cidadania plena e categoricamente estabelecido. Em primeiro lugar, essa perspectiva e etnocentrica e ahist6rica; em segundo, ela nao distingue os direitos que urn Estado oferece aos cidadaos da propria concepcao que os cidadaos tern da cidadania, A vinculacao entre os dois niveis nao e autornatica, nem necessariamente ambos sao homologos; por fim, e talvez mais importante, e1anao leva em consideracao que, em diferentes contextos, os direitos civis, politicos e sociais de que fala Marshall podem ter valores ideol6gicos diferenciados - como parece ser 0 caso hist6rico brasileiro em relacao a predorninancia dos direitos politicos.

    Criticando a visao estatica a partir da qual os Estados nacionais tern sido estudados, como se fossem sistemas ou tipos ideais, Blok34mostra como e inapropriada a ideia de que qualquer desenvolvimento politico seja 0 resultado do esforco de urn governo particular contra as forcas da tradicao, da corrupcao e do particularismo. Nesse sentido, Blok mostra que a mafia siciliana, por exemplo, nao e 0 residuo de urn passado sem lei, mas 0 resultado da forma especifica mediante a qual 0 processo de state-formation se desenvolveu na Italia.

    Minha hip6tese e que 0 pr6prio desenvolvimento de uma sociedade e apreendido em termos de valores culturais. Nos paises ricos e industrializados, predomina uma ideologia que os ve como Estados prontos e acabados. No Brasil, a nocao de uma nacao acabada nao existe. Hi mais de urn seculo que urn aspecto dominante de nossos valores e que estamos construindo uma nacao, Nation-building nao e, portanto, apenas urn processo, mas urn trace de nossos valores. Formar urn Estado nacional foi projeto de imperadores, intelectuais, revolucionarios, governos militares e governos eleitos.l'' A consciencia de construcao da nacao convive, ao mesmo tempo, com a idealizacao do que seja urn Estado-nas:ao, concebido como uma reificacao dos processos hist6ricos europeu e norte-americano.

  • 134 A teoria vivida

    A proposta contida neste capitulo e que conceitos como cidadania, Estado, nacao variam historica e etnograficamente. De urn lado, temos processos de formacae do Estado, de construcao da nacao, de ampliacao dos direitos. Enessa esfera que as politicas estatais devem ser analisadas e os aspectos administrativoburocraticos avaliados. De outro, vinculadas, mas nao necessariamente homologas, estao as categorias de cidadao, Estado, nacao, tambern sofrendo processos de construcao ideologica, 0 corolario e que a ampliacao dos direitos, por exemplo, desejavel sob 0 ponto de vista da justica social, nao cria, automaticamente, individuos que se concebem como cidadaos, segundo 0 modelo classico. Da mesma forma, e indesejavel, e mesmo condenavel, forcar esse mesmo valor sem que os direitos correspondentes sejam oferecidos. Isso nos leva a postular que a cidadania, tal como definida classicamente, e, do ponto de vista do individuo, apenas uma das formas de identidade nacional.

    Os exemplos que vimos, por precarios que sejam, indicam que essa nocao varia no Brasil em situacoes urbanas e rurais, regionalmente, em termos de concepcoes impostas ou "reguladas" pelo Estado ou de concepcoes nativas. Estamos diante, portanto, nao de urn conceito de cidadania, mas de urn processo de construcao de identidade nacional em que ela e uma de suas expressoes, em que varies modelos coexistem e no qual 0 Estado e a sociedade civil se em penham de maneiras diversas. Resta saber ate que ponto suas visoes divergem ou coincidem. Em termos de politicas concretas, e necessario estar atento para que a disserninacao dos direitos de cidadania nao venha atrelada, necessariamente, asua concepcao moderna e ultra-individualista. Devem, por outro lado, acautelar-se os administradores e politicos para 0 logro que significa fazer com que a populacao se sinta participante quando seu poder de ser efetivamente ouvida e minimo ou inexistente. Aqui, confrontamo-nos, novamente, com 0 valor ideologico elevado dos direitos politicos. Em termos teoricos, 0 caso brasileiro representa urn entre aqueles que mostram variacoes da questao de integracao nacional- social e territorial-, apontando para possiveis cornbinacoes entre os valores modernos, vistos como individualistas, e os valores tradicionais, holistas. Talvez uma nacao possa existir na consciencia dos homens sem que necessariamente estes sevejam como entidades abstratas independentes.

    10. A 16gica multipla dos documentos'

    Qpando, [em 1954,] depois de quase vinte anos vivendo sem nacionalidade, Blucher fez 0 juramento e seus documentos chegaram pelo correio, de informou a Arendt que 0 tempo horrivel sem papeis, "neste tempo terrfvel de documentos", finalmente tinha terminado - "ate a pr6. " Xlma vez .

    Elon2

    Ha, nas ciencias sociais conternporaneas, uma divisao de trabalho discreta, mas persistente, em que 0 Estado e visto como objeto legitimo de estudo de sociologos e cientistas politicos; os antropologos deveriamos, quando nao continuar a pesquisar sociedades tradicionais, elucidar questoes do mundo moderno relativas a padroes de sociabilidade. Essa divisao de trabalho, herdeira da epoca em que sociologos estudavam suas proprias sociedades e antropologos, as civilizacoes nao-ocidentais ou povos primitivos, embora vista como ultrapassada, mantem-se na agenda das ciencias sociais mesmo no contexto de fenornenos contemporaneos, permanecendo estavel 0 vinculo do Estado aautoridade (e asociologia), e 0 da nacao asolidariedade - urn constante desafio.

    Antropologos em particular partimos de uma perspectiva diversa: idealmente procuramos ver a sociedade tanto por seus aspectos sociologicos formais quanto pela perspectiva das pessoas que nela vivem, isto e, interessamonos, ao mesmo tempo, pela estrutura social e pelo ponto de vista nativo, pelo "Estado" das regras formais e pela "nacao" dos processos sociais em acao. Aos antropologos soa estranho, por exemplo, distinguir, como fazem cientistas

  • 136 A teoria vivid a

    politicos, Estado de sociedade. Dessa perspectiva, entao, a formacao social que se designa como Estado-nacao eurn todo que so pode ser desmembrado de forma heuristica.

    Essa perspectiva nao enova: ao falar da sociedade contemporanea, Mauss afirmava tratar-se de "uma sociedade material e moralmente integrada, com fronteiras fixas, e onde ha uma relativa unidade moral, mental e cultural entre seus habitantes, que conscientemente aderem ao Estado e as suas leis". 3 A nacao englobaria 0 Estado, 0 que levou Dumont a concebe-la em relacao a valores, isto e, a sociedade "que se ve como constituida de individuos". 4 N aturalmente, Weberja havia alertado antes para 0 fato de que surge urn problema"sernpre que se fala apenas do Estado e nao da nacao".5

    o Estado-nacao moderno mereceria, entao, mais que urn hifen a ligar as duas partes; essa formacao eurn [Estado-nacao],6 Tendo se tornado 0 veiculo civilizat6rio por excelencia, 0 Estado nacional passou a ocupar lugar central no que hoje consideramos a "cultura mundial dos tempos", mesmo que, em terrnos empiricos, sua implantacao em outras latitudes seja questionada? e, no Ocidente, se argumente que sua forca dominante enfraquece.f Para tratar desse tema, acompanho aopcao de antrop6logos que se forcam acruzar fronteiras disciplinares por meio da analise etnognifica de microeventos com 0 objetivo de resgatar fenornenos atuais de uma naturalizacao inevitavel.

    Tenho dois temas de investigacao em mente, que se tangenciam: 0 primeiro, e principal, sao as "documentos" - de que falava Blucher para Arendt-, esses papeis legais que infernizam, atormentam ou facilitam a vida do individuo na sociedade moderna. Ao examinar alguns deles em sua ocorrencia rotineira, procuro indicar como situacoes que os tern como protagonistas tanto revel am quanto poem em movimento essas entidades que concebemos abstratamente como nacao, Estado, cidadania. Meu objetivo e, portanto, observar a Estado em ato, a nacao se fazendo, a Estado no dia-a-dia da vida das pessoas." Especificamente, meu interesse eapontar no Estado-nacao a presens:a de do is modos complementares de orientacao ao mundo que, ao senso comum (incluindo dos cientistas sociais), parecem opostos. Sao eles, urn, 0 conjunto formado pelas nocoes de racionalidadelcausalidade/burocracia (consideradas

    . c: Es a t do vi rorrna , esque1"eto , "); 0mars arms ao a VISto como "C" " "estrutura outro, a bloco constituido pelas ideias de identidade/participas:ao/solidariedade, que e visto como alusivo ao "espirito", a nacao, Embora a primeira goze de mais reconhecimento no Ocidente, sendo considerada mesmo 0 padrao, as duas orientacoes nao sao antagonicas, nem exclusivas: par certo, nao existe sociedade que nao seja racional, nem sociedade desprovida de afetividade. 0

    A16gica multipIa dos documentos 137

    segundo terna e breve e subsidiario aos documentos, e refere-se ao projeto de simplificar a vida do cidadao par meio de numeros e meios eletr6nicos, ideia que vern crescendo no Brasil nos ultimos 25 anos. Essa questao serve como contraponto a discussao anterior por tratar-se de urn movimento "antidocumente" que procura, em nome de uma ampliacao dos direitos dos cidadaos, diminuir a presens:a do Estado. No entanto, ao fixarem-se apenas na formulas:aosupostamente isenta da racionalidade burocratica, os propositos dernocraticos assumem urn carater modernizante que com frequencia levam a mais coercao e a maior controle.

    Orienta~ao gera!. Parto de uma perspectiva etnografica, isto e, privilegio a visao nativa dos que sustentam e promovem 0 Estado, e que sobrevivem sob seu dominio - quer nas suas entranhas, quer nas suas margens. Minha orientacao geral esemi6tica, 0 que significa que estou interessada nos processos cornunicativos que, quando analisados, revelam aspectos de urn repert6rio simb6lico que e partilhado socialmente. Enfatizando 0 aspecto "performativo" dos eventos, faco uso intensivo (ernbora quase sempre de forma implicita) das teorias da linguagem, quer desenvolvidas por lingiiistas, comoJakobson, quer por filosofos e l6gicos, sobretudo Peirce e Austin.l''Jaque forma e conteudo sao indissociaveis quando se incluem eventos no quadro maior da cultura e da cosmologia, parto do pressuposto de que traces formais sempre se encontram, tanto para 0 analista como para os nativos, vinculados a contextos culturais particulares.l '

    Documentos e papeis legais

    Para que serve urn documento? Documentos facilitam 0 ato de contar, somar, agregar a populacao (e, assim, taxar a riqueza e controlar a producao) e identificar 0 individuo - para fins de conceder direitos e reclamar deveres. Assim, tanto elementos particulares/individuais quanta 0 conhecimento sobre a coletividade - esses dais componentes indissociaveis do "fato moderno" - se conciliam nos documentos, nos "papeis" que, reconhecidos e regulados pelo Estado, identificam 0 individuo como unico, 0 documento legaliza e oficializa 0 cidadao e 0 torna visivel, passivel de controle, e legitimo para 0 Estado. 0 documentofaz a cidadao em termos performativos e compuls6rios. Essa obrigatoriedade legal tern 0 seu lado inverso: 0 de impedir 0 reconhecimento social do individuo que nao tenha documentos. Alguns episodios situam nossa discussao,

  • 138 A teoria vivida

    Epis6dio #1 Urn estudante universitario eassaltado por urn ladrao bern -vestido na noite de urn feriado, quando retornava da biblioteca para casa. 0 estudante so percebeu tratarse de urn ladrao quando, depois de perguntar a hora, apontou-lhe 0 revolver e tirou-lhe a carteira, a jaqueta, 0 tenis e 0 relogio. 0 ladrao ja se afastava quando 0 estudante se deu conta de que estava sem dinheiro, sem as chaves de casa e sem os documentos. Gritou sem pensar nas consequencias: - Ei, moco, voce levou minha identidade no bolso da jaqueta. Bota no chao, por favor...!0 ladrao apalpou 0 bolso e, para surpresa do estudante, voltou e devolveu-lhe os documentos. Em seguida, ordenou: - Agora corre! E nao olhe pra tras1 12

    Nesse caso, ocorrido hi poucos anos em Belo Horizonte, esta claro 0 reconhecimento social dos documentos e, implicitamente para 0 cidadao brasileiro, a dificuldade de obte-los em virtude de uma complexa burocracia. Essa recognicao atravessa diversos segmentos da sociedade, inc1uindo os que se encontram amargem da lei. 0 sentimento de pertencer a uma mesma coletividade e aqui percebido em ato, por meio de valores, mas tambern de receios socialmente partilhados. 0 assaltante esolidario com sua vitima: mesmo correndo riscos, ele se sensibiliza, coopera, devolvendo literalmente em maos os documentos ao seu dono. A coletividade e0 Estado-nas:ao: as leis sao feitas pelo Estado; a solidariedade e dos que se sentem subjugados a ele. 0 apelo para que ladroes devolvam documentos euma constante no Brasil.ja que esses sao geralmente guardados na mesma carteira que 0 dinheiro. (Depois de assaltado no Rio de Janeiro, 0 jogador de futebol Ronaldo pediu na televisao aos assaltantes: - Devolvam, pelo menos, meus documentosl? 0 born humor nao escondia 0 aborrecimento.)

    Epis6dio #2 Dois indios da aldeia do Carretao, Goias, chegam a Brasilia e, na estacao rodoviaria, sao abordados por urn guarda que se dirige ao mais velho, Ze Belino: - Voce tern documento? Ze Belino tern guardado no bolso, mas diz que nao: - Nao tenho nao. o policial pergunta: - E como eque esta viajando? Voce nao tern documento nenhum? Ze Belino responde: - Tenho, sim, olha aqui. E mostra as maos calejadas. o guarda se satisfaz:

    A logica multipla dos documentos 139

    - Ja sei 0 que voce e. Dirige-se ao indio mais moco e faz a mesma pergunta sobre os documentos. Recebe a resposta que ele tern, sim, carteira de identidade e carteira de reservista. Mostra os dois para confirmar. o guarda retruca: - Voce tern documento, mas nao trabalhou. Como ereservista se nao trabalhour!"

    Nesse evento, trata-se do encontro de urn agente do Estado - 0 policial-, responsavel pela segurans:a publica, e dois personagens nao urbanos - no caso, indios. Eles conhecem as leis: ZeBelino, 0 mais velho, chega a desafiar a autoridade. Embora possua 0 documento de identidade, opta por negar que 0 tenha. Aparentemente, nao aceita as regras legais vigentes e testa outro c6digo que, para sua satisfacao, eentendido pelo policial- ao mostrar as maos calejadas como evidencia do service bracal, ele eaceito como forca de trabalho da sociedade. Menos sorte tern 0 companheiro que, apresentando os documentos legais de identidade e reservista, sofre a humilhacao do guarda, que nao 0 reconhece como "trabalhador". Seus documentos sao menos valorizados na escala de prestigio do policial: trabalhar, contribuir para a reproducao economica da sociedade, econsiderado mais significativo que 0 documento formal.

    Mas por que 0 policial reconhece no trabalho uma identidade valida? Se a carteira de trabalho se transformou na certidao de nascimento civico a partir dos anos 1930,15 caracterizando a cidadania no Brasil como regulada pelo Estado e imposta pela inclusao, na legislacao, de profissoes e ocupacoes, era 0 Estado

    I u quem definia 0 status de cidadao por via da exclusividade profissional, No entanto, a carteira de trabalho nao assume tal importancia no vazio: a existencia de valores sociais relativos ao trabalho - tornando 0 individuo digno perante a sociedade - favoreceu a legitimidade que ela logo alcancou para a populacao em geral. Nesse contexto, a carteira de trabalho e0 passaporte para a sociedade de dire ito, partilhando com 0 passaporte convencional 0 formato de livreto no qual se anota a trajetoria profissional do cidadao,

    Epis6dio #3 Na cidade-satelite do Guara II, no Distrito Federal, urn casal descobriu, pela manha, que havia sido roubado anoite. A bolsa da mulher havia desaparecido. A grande preocupacao era com a perda dos documentos, mas quando ela chegou ao portae da casa levou urn susto ao ver seu rosto no chao - era sua carteira de identidade. Seu alivio se misturou ao ultraje: como poderia estar ali,jogada no rneio da rua? Passado 0 portao, logo depois estava seu CPF. Andando mais urn pouco, achou o titulo de eleitor."

  • 140 A teoria vivida

    Aqui se ve como as relacoes de trabalho e a contribuicao do individuo para o bem-estar da coletividade estao tambern presentes em outro importante documento: 0 CPF. 17 Trata-se de urn numero com onze digitos que identifica 0 contribuinte - aquele que nao apenas trabalha, mas paga imposto sobre 0 fruto de seu trabalho, ajudando assim a manter 0 Estado funcionando. Inicialmente, 0 CIC era fornecido por ocasiao da declaracao anual de renda do trabalhador ou aqueles que provavam, nos anos subsequentes, que sua renda nao atingia os niveis obrigat6rios de contribuicao (os "isentos"). Nas iiltimas decadas, tendo se tornado urn documento cada vez mais requisitado para diversas atividades abrir conta em banco, comprar a credito, obter passaporte e ate fazer transferencia bancaria -, passou a ser parte de urn cadastro nacional e e concedido a qualquer cidadao, mesmo nao-trabalhador, sem vinculo empregaticio ou renda estavel, como estudantes e trabalhadores auronomos.l'' 0 numero do CPF, tendo se tornado mais relevante do que 0 cartao em si, faz, hoje, parte dos dados incluidos nas novas carteiras de identidade e de motorista. Mas entre os documentos roubados, a mulher do Guara II sublinha sua identificacao com a carteira de identidade. Volto ao assunto mais adiante.

    Epis6dio #4 Recanto das Emas, ana de 2000. Visto como urn "deposito"de pessoas sem-teto, essa cidade-satelite de Brasilia - que 0 IBGE considera uma das quatro favelas da capital- abriga uma populacao demandante de lotes que sao distribuidos pelo governo local. Para se tornarem proprietarios, os candidatos devem comprovar tempo de residencia em Brasiliapor meio de "papeis" como, por exemplo, boletim escolar,protocolo hospitalar ou conta de agua. Esses sao indicadores de que aquela pessoa ou familia manteve relacao com 0 poder publico local por urn perfodo igual ou maior do que cinco anos. A essa cornprovacao se soma a exigencia do titulo de eleitor (exigencia essaescrita it mao no cartaz que divulgaos documentos necessarios para a solicitacao), 0 que significa que quem quiser se tornar proprietario precisa votar no Distrito Federal.'?

    Mudamos aqui de registro. Diferentemente da carteira de identidade e do CPF, que sao documentos de cunho universalista, fornecidos por uma agencia (por definicao, impessoal) do Estado, esta aqui em questao a relacao que se estabelece entre 0 candidato ao recebimento de urn lote e 0 governo que 0 concede: o lote e a pes:a principal da barganha politica. Nesse ambiente, a interrnediacao de alguern designado como autoridade torna 0 vinculo pessoal. Nao e por outra razao que a exigencia do titulo de e1eitor no cartaz nao e impressa, mas escrita a

    A 16gica multipla dos documentos 141

    mao, sugerindo uma possfvel ilegalidade. Nesse sentido, se 0 e1eitor nao cumpre a exigencia, esta tambern indicando sua recusa ao estabe1ecimento do vinculo politico. 0 titulo precisa ser tirado no Distrito Federal antes do recebimento do lote. Sem 0 titulo, sua obtencao faz-se remota.

    Essa conotacao politica do titulo de eleitor faz parte do status mais geral dos documentos no Brasil. Porern, 0 titulo, especificamente, torna alguns aspectos mais visiveis. Comovotar e urnaobrigacao legal, ha umagamade variacoes entre os poles representados pelo e1eitor, que tern no titulo apenas urn de seus documentos, e 0 trabalhador rural, cujo patrao 0 vincula ao cartorio e1eitoral do municipio. Nesse contexto, a obtencao do titulo via urn interrnediario cria uma relacao particular entre os dois: enquanto 0 empregador toma a si 0 encargo pelo empregado, este se compromete moralmente a votar nos candidatos indicados pelo empregador (ver Capitulo 9). Esse pacto mutuo passa a sinalizar um vinculo vertical, mais poderoso do que a solidariedade horizontal com os demais votantes e concidadaos.

    Se essa pratica tern rafzes no passado, e preciso nao esquecer que 0 titulo de e1eitor possui uma conotacao local ou regional acentuada no Brasil (mas nao apenas aqui). Embora se espere que 0 e1eitor transfira 0 titulo quando muda de residencia, com frequencia isso nao ocorre: ha uma tendencia de os e1eitores (de qualquer regiao ou estrato social) manterem seus titulos - e, portanto, sua insercao politica - em suas regioes de origem. Somando-se a isso 0 fato de quevotar e obrigat6rio, 0 resultado e que, nos momentos de eleicao, observa-se uma especie de romaria cfvica: em varios casos, a populacao faz grandes sacrificios para retornar para votar, reafirmando sua identidade social e politica local.

    A particularizacao do titulo de e1eitor contrasta, assim, com a natureza da carteira de identidade, que logo estampa sua legalidade "em todo 0 territ6rio nacional". 0 titulo de e1eitor - embora tambem valido nacionalmente - assinala o vinculo com uma determinada secao e zona e1eitoral, em principio proxima ao dornicilio do e1eitor. Essa definicao particularizada do documento leva ao uso tarnbem diferenciado do mesmo, 0 que facilita 0 abuso e1eitoral por parte dos politicos locais.

    Uma observacao a mais: a personalizacao dos vinculos via documentos nao se restringe a urn certificado legal como 0 titulo de e1eitor, mas seu poder e valido para qualquer "paper' fornecido por autoridade administrativa. A promessa de urn lote no Distrito Federal, por exemplo, pode se materializar com a posse de urn "papelzinho", fornecido por urn funcionario, no qual esta anotado urn numero.r" Este numero refere-se a urn processo, mas e 0 papel (acrescido do mimero) que reve1a 0 poder e a autoridade da escrita em urn contexte pouco letrado. Em urn

  • 143 142 A teoria vivida

    ambiente urbano, urn pape! ou papelzinho precisa ter a marca legal de uma assinatura, principalmente aposta junto a urn carimbo. Mas carimbos, todos sabemos, sao extremamente vulneraveis a falsificacao. Seu poder, no entanto, nao diminui por essa circunstancia.

    Episodic #5 Eliseu foi jardineiro em uma residencia em Brasiliadurante dais periodos, sempre trabalhando tres dias par semana e recebendo como diarista. Depois dos dais primeiros anos,a empregadorprecisou de urn caseiropermanente porque passariaurn ana no exterior. Esse regime nao convinha a Eliseu par ser casado. Quando a empregador regressou,Eliseuvoltou ao trabalho dejardineiro.Mas, dessavez,tornou-se ineficiente e foi dispensado.Logo apos, a empregador foi intimado a comparecer ajustica doTrabalho porque a ex-diarista pedia uma indenizacao, Ele alegavahaver trabalhado na casa seisdias par semana par quatro anos consecutivose reivindicava as direitos reservados em lei a urn "empregado dornestico", que incluem a carteira de trabalho assinada.

    Em parte, Eliseu estava correto. A partir de caso ocorrido em 1999, a jurisprudencia brasileira estabe1ece que qualquer empregado que cumpra rotina de trabalho de tres ou mais dias por semana em residencia particular e urn "empregado dornestico", Esse tipo de trabalho caracteriza-se por urn regime de "subordinacao e pessoalidade". A diferenca no numero de dias, de dois para tres, parece ser determinante para configurar 0 vinculo em questao.* 0 empregador nao podia alegar desconhecimento das leis do Estado - nenhum cidadao tern esse direito -, mas foi suficiente que provasse, durante a audiencia, que 0 empregado nao havia trabalhado os quatro anos consecutivos, como argumentava, e Eliseu se viu desacreditado perante 0 juiz.

    Aqui ha dois aspectos interessantes a ressaltar: 0 advogado do empregador o orientou a levar aaudiencia uma copia autenticada da carteira de trabalho do caseiro que substituiu Eliseu como forma de evidenciar a falsidade do diarista. Mas inforrnou-lhe que a propria carteira seria prova mais convincente. Isto e, a sua apresentacao fisica, na sua conspicuidade (azul), no que Peirce chama de

    Como a subordinacao euma caracteristica geral da hierarquia empregadorlempregado, a "pessoalidade" torna-se 0 traco determinante que qualifica 0 "empregado dornestico". Ela justifica, por exemplo, que alguns juizes considerem a regularidade, e nao 0 numero de dias trabalhados por semana,o atributo principal dessa atividade.

    A l6gicamultipla dos documentos

    Firstness, faria 0 proprio advogado do jardineiro se convencer de que era impossive1ganhar a causa. Foi 0 que aconteceu. U rna copia autenticadaeo original tern o mesmo valor legal, porern a materialidade do documento foi mais eficaz. 0 segundo aspecto eque, mesmo tirando born proveito como diarista, na audiencia Eliseu mostrou que se ressentia tarnbem de nao ter 0 carne do INSS - que lhe foi entregue entao.

    Nao eraro 0 empregado preferir urn salario mais baixo e carteira assinada a diarias mais altas. A carteira eprova de emprego fixo, de assalariamento e, como lembrou Wanderley G. dos Santos (Justita e cidadania), atestado de cidadania. Mas a materialidade da carteira nao chamou a atencao de Wanderley. 0 carne do INSS serve de evidencia para mostrar a sua importancia. 0 recolhimento do irnposto do INSS e feito mensalmente em banco, em carne no qual constam 0 nome eo numero de identificacao do contribuinte, 0 valor a ser recolhido e 0 tipo de contribuicao, Esses dados sao processados de forma eletronica de modo que, por meio do numero de identificacao, epossive1 obter-se em alguns minutos urn comprovante de todos os recolhimentos em uma agencia do INSS ligada a Internet. Mas, de novo, 0 empregado nem sempre reconhece 0 mesmo valor do carne laranja, em que cada folha corresponde a urn mes de contribuicao, na simples listagem de uma folha de pape1 do Instituto de Seguridade.21

    Episodic #6 A mulher de urn policial resolveuvingar-se do marido par ter sido traida: tirou-lhe as documentos semque e1e percebesse, incluindo alicencadeporte dearma, e enterrou-as no quintal.0 policial,nervosoe inquieto, procurava as papeispe1a casa, sem sucesso. Passadourn tempo, amulher exumouas documentos e guardou-os em sua balsa,masnaosesentiu segura.Consultou airma, que se recusouaesconde-los,pais nao queriaa cunhado,"aque1a pessoa", em suacasa,mas seofereceupara guarda-los na caixade correia.Dias depois, arrependida do arranjo, devolveuas documentos a irma que,sempoder ape1ar paramais ninguern,decidiu dar urn fim a tudo cortando as papeisurn par urn. Era como seestivesse "cortando a marido". Ela sentiu-se vingada e aliviada; a marido tirou novaviados documentos.F

    Essa historia parece auto-explicativa: para a mulher e sua irma, os documentos nao representam 0 marido e 0 cunhado, e1es sao 0 marido e 0 cunhado. Mas nao 0 sao literalmente: afinal, foram apenas papeis cortados, 0 que pode acalmar a mulher ao faze-la sentir que tinha reparado a rraicao.

    Esse episodic faria a alegria de muitos analistas: Frazer teria identificado at urn caso de magia simpatica, quando a acao sobre urn objeto (rnetaforico ou

  • 145 144 A teoria vivida

    metonimico) sustenta a acao sobre 0 individuo. Mais perto de nos, DaMatta certamente se regozijaria ao ver os documentos na caixa de correio, a meio caminho entre "a casa e a rua", no espa

  • 146 A teoria vivida

    por diante. Essa serie marca etapas na vida das pessoas: nao tira carteira de motorista quem nao puder provar, com outros papeis, que tern a idade minima requerida para a habilitacao.

    Documentos tern 0 poder de transformar urn individuo em cidadao de urn determinado Estado nacional.26 Como vimos em alguns dos episodios anteriores, 0 vinculo entre a pessoa e 0 documento que a identifica nao e apenas de representacao, mas tambern de contiguidade e/ou extensao, Aqueles que ja viram sua carteira de identidade forjada ou reconheceram sua assinatura adulterada em urn cheque, por exemplo, conhecem 0 mal-estar da copia falsa do seu "eu". Muitas vezes plastificado, 0 documento se asseme1ha a urn amuleto moderno - ao mesmo tempo em que concede reconhecimento ao individuo, e por ele transformado em sua replica. Vejamos em mais detalhe 0 fundamento do seu simbolismo.

    Doeumentos eomo ieones indexicos. A materialidade empirica dos documentos nos remete aos tres tipos de signa que Peirce identificou como icones, indices e simbolos. Brevemente, icones sao signos que representam urn objeto por similaridade ou identidade parcial, imagens que estimulam mentalmente sua ideia, 0 icone e urn First, uma qualidade ou urn objeto externo cujo significado e uma possibilidade. Uma planta arquitetonica e urn Icone de uma edificacao; uma estatua, urn icone de urn heroi; a arvore mudyi, urn Icone da matrilinearidade Ndernbu.ja indicessao signos que se referem a seu objeto nao tanto por similaridade ou analogia, mas em razao da conexao dinarnica, da contigiiidade entre 0 objeto individual e os sentidos ou memoria de quem ou do que ele e signo. Indices sao caracterizados por Secondness, 0 modo associado ao factual, ao aqui e agora, ao contexto empirico. Urn relogio e urn indice das horas do dia; uma batida na porta e urn indice; 0 gesto de apontar tambern; urn sotaque e urn indice. Por fim, 0 simbolo refere-se ao modo universal, convencional, neutro e independente de contexto imediato que ecaracterizado pela generalidade, pela lei, pelo pensamento abstrato. Simbolos convencionais sao Thirds;por exernplo, a linguagem referencial.27

    Desse apanhado, ressalto tres aspectos. 0 primeiro refere-se ao principio da arbitrariedade do signo, uma referencia na linguistica saussureana, mas cujo papel aqui e circunscrito e limitado apenas ao simbolo. Estamos no terreno pleno da serniotica. 0 segundo alude ao fato de que signos combinam os tres componentes, isto e, em todos os signos ha urn liame de Icone, indice e simbolo urn domina, determina ou eenfatizado, porern os demais estao presentes. Terceiro, estao englobados na triade acima dirnensoes sernanticas e pragmaticas

    A16gica multipla dos documentos 147

    simultaneas. Esses aspectos sao centrais em relacao aos documentos: de fato, para identificar 0 individuo, enecessario urn conjunto de referencias singulares que, sob uma redundancia controlada, garanta que somente um individuo corresponda adescricao ai contida.

    Vejamos a carteira de identidade. De urn lado, ela contern dados basicamente referenciais, como nome e filiacao, data de nascimento, orgao e local de expedicao e a assinatura do diretor da instituicao, que atesta a veracidade da mesma. Todos esses dados sao verdadeiros em relacao ao portador, mas nenhum 0 constroi de forma inequivoca. A possibilidade de falsificacao esta aberta. E no verso que elementos iconicos e indexicos jixam as inforrnacoes anteriores, fazendo-as apontar para uma so pessoa. La estao a fotografia, com sua predorninancia iconica (embora, em uso, com sua presens:a indexica); a impressao digital (dominantemente indexica e metonimica), que serve para a identificacao pelos orgaos de segurans:a; e, finalmente, a assinatura unica. E esse agregado de elementos - os referenciais, de urn lado da carteira, e os indexicos e iconicos, do outro - que produz a identidade.j" No dia-a-dia, no en tanto, destacamos 0 numero outorgado pelo Estado, 0 "registro geral- RG", ou 0 "mirnero da identidade".

    Numeros vern, lenta e progressivamente, adquirindo prestigio e au toridade no mundo conternporaneo. Poovey'? indica como eles vieram a se constituir, nos ultimos seculos, no lugar do estilo retorico e da palavra escrita, "umajanela transparente para se observar 0 mundo das coisas, urn modo descarnado que transcende a politica e os interesses'T" Numeros sao vistos como neutros, isentos, imparciais - exatamente as caracteristicas da logica moderna da racionalidade e da causalidade, 0 estilo dominante assumido pelo Estado. Mas numeros precisam de urn vinculo, urn indice ou icone, que os liguem a diferentes individuos, como 0 retrato ou a impressao digital. Assim, embora 0 numero, 0 "RG", pares:a ser a propria "identidade", sobretudo nas relacoes sociais que nao envolvem 0 aparato de segurans:a do Estado, 0 numero nao representa 0 individuo diretamente, ele substitui a carteira. Por esse afastamento duplo do seu objeto - 0 mimero, a carteira e a pessoa atuam como uma serie -, os numeros reafirmamse como significantes vazios, espelhando uma arbitrariedade plena. Cada numero surge como urn signa em branco, ja que nem mesmo a sequencia deles tern significado - 0 que explica a ideia de que sao neutros e imparciais.

    Fraenkel" propoe que, embora os elementos da identidade sejam heterogeneos e desordenados, os signos elementares da identidade moderna se convencionam como 0 nome, a fotografia e a impressao digital; Caplan'P comenta que esses elementos correspondem, "por meio de uma logica que certamente nao

  • 149 48 A teoria vivida

    eacidental",33 atricotomia de Peirce, composta por simbolo, leone e indice. A associacao dos "signos elementares" da identidade com a teoria peirceana einstigante, mas nao faz jus a ela por nao levar em consideracao 0 principio de que 0 Icone, 0 indice e 0 simbolo ndosao exclusivos- eles aparecemsempre cornbinados." Alern disso, a esses elementos epreciso acrescentar 0 numero, item indispensavel tanto para 0 Estado quanto para as pessoas no uso diario que fazem da carteira de identidade. Tudo considerado, a carteira parece representar 0 modelo exemplar de documento no Brasil: a despeito de sua origem policial (sobretudo no aspecto da papiloscopia), trata-se de urn objeto cujo uso indica modernidade, civilidade e valores de c1assemedia."

    Duas orientccoes ao mundo. Chegamos, assim, ao ponto central.Trata-se do fato de que os documentos, esses objetos de simbolismo complexo, sem os quais nosso dia-a-dia nao eviavel, incorporam dois tipos complementares de orientacao ao mundo. Urn diz respeito aracionalidade, al6gica instrumental, aneutralidade das acoes, aeficacia dos atos tecnicos, podendo ser identificado como a "l6gica da causalidade". Esse e0 dominio da atuacao do Estado. Aqui a linguagem referencial e os nurneros detem 0 poder do calculo e da transparencia. A convencionalidade do Third prevalece. A outra orientacao refere-se al6gica da participacao, que se ambienta na linguagem da solidariedade, da unidade, da acao expressiva, na eficacia dos atos comunicativos, na "lei da participacao". Proponho que esse e 0 espas:oda nacao, Aqui 0 aspecto evocativo da fotografia, da digital e da assinatura se destaca, indicando que sao as caracteristicas indexicas e iconicas em acao que sustentam os vinculos entre as pessoas. Nos epis6dios iniciais observamos esse fen6meno repetidas vezes: vimos, por exemplo, a solidariedade dos oprimidos pe1aburocracia - quando 0 ladrao devolve os documentos ao estudante assaltado; testemunhamos na mao calejada do indio Ze Belino urn c6digo paralelo aos documentos; reconhecemos a manutencao das relacoes verticais entre trabalhadores e patrao via titulo de e1eitor; identificamos a forca que emana da materialidade do documento na audiencia trabalhista que garante direitos de trabalhadores e de empregadores; observamos como a mulher, cuja casa foi assaltada anoite, se refletiu na carteira de identidade jogada no chao; finalmente, notamos a identificacao "magica" do marido traidor nos documentos picados pela mulher. Em suma: a Estado (da causalidade) impoe a identidade; a nacao (da participacao) a reinventa, modifica, transforma em urn moto integrado e continuo.

    Naturalmente, uma orientacao nao exclui a outra; por exemplo, tanto elementos de participacao estfio prcscntes no discurso ciennfico quanta traces de

    A16gica multipla dos documentos

    causalidade informam eventos coletivos de carater participative. As duas 16gicas se projetam nas capacidades experimental e simbolica das mesmas modalidades sensoriais do ser humano, isto e, tato, audicao, visao e paladar. Enquanto o discurso da causalidade e da ciencia positiva se enquadra nos termos da neutralidade, da experimentacao, do distanciamento e na linguagem da razao analitica, 0 da participacao se projeta em termos do contato da magia simpatica, dos speech acts performativos e da acao ritual. A "participacao" enfatiza a comunicas:ao sensorial e afetiva, e a linguagem das ernocoes; a "causalidade" ressalta a racionalidade da acao instrumental e a linguagem da cognicao."

    o documento necessita da cornbinacao das duas 16gicas (digamos, a do "Estado" e a da "nacao"), e nao tern eficacia como prova de identidade se uma de las esta ausente: eimprescindivel descrever um individuo; e e necessaria que 0 documento seja socialmente reconhecido e eficaz. Em certo sentido, entao, e1e personifica 0 Estado-nacao. Externos aos individuos - isto e, ndosilo os pr6prios individuos -, tornam-se objetos do Estado, veiculos de norrnas, leis, regulamentos, passiveis de calculos numericos e elementos de controle e repressao, Mas essa mesma externalidade do documento obrigat6rio propicia a criacao de urn vinculo existencial entre a pessoa e 0 objeto-documento, fazendo deste urn totem individual, urn duplo, urn amuleto. Essa relacao nao einerte: individuo e objeto se representam mutuamente em termos iconicos, e transferem energias e atributos de forma indexica'"

    Fui testemunha de urn desses movimentos de emprestirnos reciprocos no Carnaval de 2004, quando urn foliao que brincava no Cordao do Bola Preta, no Rio de Janeiro, pendurou no pescos:ouma grande ampliacao colorida de sua carteira de identidade. 0 carnaval eurn momenta de liberacao coletiva da inventividade. No caso, 0 foliao solucionou de forma engenhosa a questao do porte obrigat6rio da identificacao legal e 0 prop6sito de se fantasiar. Ao am pliar a carteira, criou uma alegoria de si. (Urn detalhe curioso eque a carteira nao estava na posicao vertical, talvez mais cornoda, mas que apenas 0 duplicaria, ficando as duas cabecas alinhadas. Ao porta-la no sentido horizontal, e1e perdeu uma certa amplitude de movimento, mas criou averdadeira alegoria ao deslocar sua imagem.)

    o totemismo inerente aos documentos, aliado adificuldade de se obter uma segunda via, e, com frequencia, experimentado em uma situacao coniqueira, quando vemos uma au mais carteiras de identidade coladas no vidro de urn guiche de pagamento (seja de padaria, estacionamento, posto dos correios), indicando que foram perdidas ou deixadas no balcao por seus donos distraidos. As carteiras sao posicionadas com os retratos em nossa direcao, para que sejam

  • ISO A teoria vivida

    facilmente identificadas. Re1atos a esse respeito fizeram-me notar que muitas pessoas sentem como se as carteiras as olhassem, a espera de serem resgatadas por seus respectivos donos. Nao sao seus titulares os objetos da empatia; sao as carteiras que foram abandonadas.

    Em algumas situacoes, entao, 0 documento parece ser mais do que urn objeto que concede cidadania; e1e completa 0 individuo de forma mais profunda. Seja pe1a intensidade do vinculo ou pe1as dificuldades enfrentadas por pessoas mais pobres para obte-Ios,as vezes a pr6priavida e colocada em jogo na iminencia de perde-Ios. Dois casos tragicos foram relatados pela midia em 2004: no periodo das enchentes do inicio do ano, em Sao Paulo, uma mulher salva de urn deslizamento com sua familia lembrou-se de que havia deixado os documentos para tras e resolveuvoltar sozinha para pega-los. Nao sobreviveu. Em agosto, urn pedinte deixou sua carteira de identidade cair na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, e afogou-se ao procurar resgata-la.

    Naturalmente, nem to do documento desperta sentimentos de participacao, Eles parecem reservados aqueles legitimos, do tipo "nome, fotografia & digital"." Numeros sozinhos nao geram esses sentimentos, assim como tambern nao 0 fazem sistemas de identificacao como c6digo de barras, DNA, ou a iris. Todas essas propostas de tecnologia avancada (que se baseiam em representacoes arbitrarias, como os numeros, ou metonimicas, como 0 DNA au a iris) esbarram no fato banal de que documentos sao, e precisam ser, tambem leones e indices. Para 0 Estado, as inforrnacoes dos documentos sao basicamente referenciais,o retrato servindo apenas como prova factual de similaridade. Na sua tentativa dominante de racionalidade, a burocracia do Estado desconhece essa forca social que os documentos possuem e, especialmente, 0 simbolismo iconico e indexico da fotografia, essa figuras:ao trivial, mas imprescindivel.

    A personagem de Saramago, 0 Sr.jose do romance Todos osnomes, reconheceu 0 fascinio da fotografia quando comparouos ficharios dos colegios aos documentos aridos produzidos na sua reparticao do registro civil de nascimentos, casamentos e mortes: "Na Conservat6ria Geral [... ] s6 existiam palavras, na Conservat6ria Geral nao se podia ver como tinham mudado e iam mudando as caras, quando 0 mais importante era precisamente isso, 0 que 0 tempo faz mudar, e nao 0 nome, que nunca varia". 39

    Racionalizando 0 Estado

    Neste ponto, nao surpreende que seja por meio de propostas de racionalizacao (muitas vezes, de mais numeros) que 0 Estado procure se tornar mais amigavel,

    A logica multipla dos documentos 151

    buscando facilitar a vida do cidadao pe1aeficiencia e boa adrninistracao. Os projetos de desburocratizacao dos ultimos 25 anos no Brasil fazem parte desse esforco, e se mantiveram re1ativamente independentes dos governos que os lancaram. Embora se saiba que a multiplicidade dos papeis seja urn aspecto intrinseco a cultura do Estado, 0 vies antidocumento tern sido urn trace marcante.t'' Nesse sentido, a desburocratizacao surge como urn contraponto extremo do padrao dos documentos.

    Para relembrar: criado 0 Ministerio da Desburocratizas:ao em 1979, a simplificacao comecava pelo pr6prio orgao, com sete funcionarios. Nos primeiros anos, solicitava-se ao cidadao que escrevesse diretamente ao ministro, que respondia as cartas pessoalmente. Quando perdeu 0 status ministerial para se transformar em secretaria especial da Presidencia, em 1983, a carta acrescentouse 0 acesso por te1efone, na campanha "Fala Cidadao", Dai ate 2000, 0 Programa hibernou e, quando reapareceu.ja nao era mais urn corpo serni-autonomo, mas urn projeto a ser incorporado a varies orgaos do governo. Nessa nova versao, 0 Programa passou a integrar a implantacao do "governo eletronico" (e-governo) , cujo ideario central reside na transparencia das medidas administrativas enos direitos do cidadao - nesse momenta denominado de "cliente", em contrapartida aos impostos que paga. 41 Em menos de vinte anos, portanto, caminhou-se da carta para 0 te1efone e, deste, para 0 e-mail, sempre na tentativa de promover o acesso direto entre 0 cidadao e 0 governo. A ligas:ao por Internet expressaria, hoje, mais urn passo em direcao a urn modelo mais aperfeicoado de cidadania. No desenho da simplificacao, 0 site atual do programa e

  • 153 [52 A teoria vivida

    uma referencia eminentemente urbana. Essa caracteristica se mantern, hoje, na opcao pela cornunicacao via Internet. (Para a maio ria da populacao, que nao dispoe de urn computador, sugere-se 0 telefone como meio alternativo.)

    Nessas tentativas de irnplantacao de urn modelo de Estado eficiente, ao identificar a simplificacao e a transparencia como os caminhos nobres para a democracia, naturalmente nao se leva em conta que novas tecnologias podem se traduzir em renovados mecanismos de centralizacao e controle. Urn exemplo e o projeto do Ministerio da Educacao de iniciar, em 2005, a fiscalizacao da frequencia nas escolas publicas de ensino basico por meio do registro da irnpressao digital das criancas.V De fato, mais as propostas mudam, mais se reafirma a ideologia de que simplificar e sinonimo de libertar tout court- sempre mantendo o mapeamento da vida das pessoas. As reformas na adrninistracao substituem projetos de inclusao efetiva, e as praticas do Estado, a burocracia enfim, ao espelhar a fonte principal dos males politicos, transforma-se, em uma logica circular, na sua possivel solucao.

    Conclusao

    o discurso que produzimos no Ocidente, como qualquer discurso nativo, tambern se constitui de oposicoes binarias, em que urn dos termos e considerado superior ao outro. Avaliamos a logica da causalidade como superior alei da participacao em termos hierarquicos, sendo esta considerada 0 padrao a ser perseguido. Cabe aantropologia, quando nao corrigir a assimetria absoluta, mostrar que as duas nao sao exc1usivas. Reconhecer 0 valor do discurso racional cientifico nao e contradit6rio com a adrnissao de que, em certos contextos, convertemos relacoes metaf6ricas e metonimicas em relacoes de identidade, de "participacao"." Trata-se de uma situacao em tudo equivalente aque J akobson definiu para a linguagem, em que a funcao referencial, convivendo com as funcoes poetica, fatica, conativa, emotiva e metalingiiistica, se torna 0 prot6tipo do mode1o ocidental. Foi merito de Jakobson mostrar como a relacao convencional e arbitraria entre 0 significante e 0 significado (saussureano) nao repudia os usos motivados da linguagem na cornunicacao social, mas a complementa. A suposis:ao de que experimentamos multiplas orientacoes ao mundo, desafiadora que seja, e nao desprovida de consequencias, na verdade permite uma visao mais complexa da nossa vida em sociedade.

    Os documentos de identidade indicam a simultaneidade da 16gica da causalidade e da lei da participacao. Se, em principio, 0 Estado privilegia a logica

    A16gica multipla dos documentos

    instrumental, a neutralidade, a linguagem da razao analitica, e a nacao atua no quadro de referencia da cornunicacao entre pessoas e objetos, e entre pessoas entre si, nos eventos do dia-a-dia as duas logicas se reforcarn, validando a ideia de uma configuracao una de Estado-nas:ao. Em ato, portanto, os dois elementos que a ciencia social separa nao se distinguem - Estado e nacao se legitimam mutuamente, deixando entrever ao analista tanto a estrutura social abstrata quanto 0 ponto de vista nativo dos que vivem na sociedade. Mais ainda: no contexto da acao social, reve1a-se 0 fato inequivoco de 0 Estado se constituir em urn e1emento intrinseco da nossa visao de mundo. A re1ativa facilidade com que cientistas sociais discutem 0 Estado, mas abdicam da nacao - ou mesmo separam Estado de sociedade -, nada mais do que reflete nossa insercao na cosmologia ocidental e a absorcao de suas categorias sociais. Nesse sentido, encerro este exercicio sugerindo ser 0 documento de identidade uma evidencia empirica, se nao material, da configuracao social moderna; 0 documento mostra-se urn First, urn icone desta sociedade conternporanea que e 0 Estado-nacao.

  • r68 A teoria vivida

    setembro de 1997. Agradeco ajesse Freire Souza pelo convite para participar do evento. Posteriormente,o texto foi inc1uido na coletanea organizada porJesse Souza, A atualidade de Max u-eber(Brasilia, Editora da U nB, 2000).

    2. Ver, especialmente, Levi-Strauss, Claude, La Pensee Sauvage; Leach, Edmund, RethinkingAnthropology.

    3. Nos termos de Charles Peirce, trata-se de incorporar aperformance, a dinarnica e a individualidade tangiveis do indice ("Secondness") ao codigo simbolico e suas leis (0 "Third") (ver Peirce, Charles, Philosophical Writings ifPeirce).

    4. Em uma avaliacao rapida, Dumont filia-se diretamente a Durkheim via Mauss (de quem foi aluno), Geertz vincula-se a Weber via Parsons (com quem estudou no Departamento de Relacoes Sociais, da Universidade de Harvard) e Tambiah a Leach

    . (que 0 legitimou como antropologo) (ver Tarnbiah, Stanley, "Continuidade, integracao e horizontes em expansao"),

    5. Citando: "A expressao 'individualismo' inc1ui as coisas mais heterogeneas imaginaveis '" . U ma analise exaustiva desses conceitos em termos historicos haveria de ser, no presente ..., altamente valiosa para a ciencia" (Weber apudDumont, 1980, p.8).

    6. Dumont, Louis, Homo Hierarchicus. The Caste System and its Implications, p.30. 7. Dumont, Louis, From Mandeville to Marx. Genesisand Triumph ofthe Economic

    Ideology, p.10. Podemos acrescentar que quando as subespccializacoes na antropologia (como a antropologia politica, antropologia econ6mica etc.) proliferam, e1assao 0 resultado direto da elirninacao do valor e da bierarquia desses dominios ou esferas no mundo conternporaneo (ver Dumont, 1977).

    8. Ver Bendix, R., Max u-eber. An Intellectual Portrait; especialmente, Capitulo 8: "Max Weber's Sociology ofReligion".

    9. Geertz, Clifford, Islam Observed. Religious Development in Marocco and Indonesia, p.l. [Ed. bras., Observando 0 isla, Rio de Janeiro,Jorge Zahar, 2005.]

    10. Geertz, Clifford, Islam Observed. Religious Development in Marocco and Indonesia, p. 9S, enfase minha.

    11. VerTambiah, Stanleyj., Buddhism and the Spirit Cults in North-east Thailand; World Conquerer and World Renoucer.A Study ifBuddhism andPolity in Thailand against a Historical Background; The Buddhist Saints ofthe Forestand the Cult ofAmulets.

    12. Cf. as forrnulacoes de uma "politica galatica" (galacticpolity) e de uma "politica radial" (radialpolity) (Tambiah, StanleyJ., Culture, Thought and SocialAction, especialmente, 0 capitulo "The galactic polity in Southeast Asia").

    13. Ver "Buddhism and this-worldly activity" (Tambiah, StanleyJ., The Buddhist Saints ifthe Forest and the Cult ofAmulets, 1973), sobretudo a longa nota 1. Em varies sentidos 0 trabalho de Tambiah e um contraponto a Weber: ao focalizar etnograficamente 0 budismo em acao, ao examinar historicamente a relacao entre budismo e monarquia, e ao ampliar a nocao de carisma para incluir objetos. (Sobre 0 carisma dos amuletos, verTambiah, A Study in Charisma, Hagiography, Sectarianism, andMillennial Buddhism, 1984.)

    14. Tambiah, StanleyJ., Magic, Science,Religion, andthe ScopeofRationality, p.154. 15. Ver, para a questao da centralidade dos classicos, a Capitulo 1. 16. Ver Capitulo 6 para a nocao de bistoria tedrica.

    Notas r69

    17. Ver, para as semelhancas entre Durkheim e Weber, Schluchter, Wolfgang, Rationalism, Religion and Domination. A u-eberian Perspective, p.54-7; para as diferen

    cas, Schluchter, Wolfgang, idem, p.497, nota 17.

    18. "A sociologia [de Weber] nao era apenas baseada na Vesteben; e/a tambim evi

    tava 0 conceito de sociedade"(Schluchter, idem, p.3, enfase minha).

    Capitulo 8 - Poruma sociologia da India (p.110 a 117) 1. Este capitulo e uma traducao do artigo publicado na secao "For a Sociology of

    India", da revista Contributions to Indian Sociology(1991), no ultimo ruirnero dos 25 anos em que TN. Madan foi seu editor (ver Peirano, Uma antropologia noplural Tres experien

    ciascontempordneas, Capitulo 9, para uma breve historia dessa publicacao),

    2. Madan, TN. UlayofLift King, Householder, Renouncer Essay in Honour ofLouis Dumont, pA17.

    3. Apud Galey, Jean Claude, "A conversation with Louis Dumont Paris, 12 December, 1979", p.19.

    4. Ibid p.20.

    5. Madan modificou a declaracao de Saran, de que "social reality qua social has no outside"para"social reality qua reality has no outside". Dumont usou a versao de Madan, indicando que 0 originallhe era desconhecido (ver Saran 1962, Madan 1966 e Dumont 1966.)

    CapItulo9 - "Sem lenco e sem documento" (p.121 a 134) 1. Publicado na revista Sociedadee Estado, em 1986, este artigo e reproduzido aqui

    nao apenas por seu carater documental, mas por introduzir um programa de pesquisa que tem sequencia no capitulo seguinte. 0 trabalho original foi resultado de uma investigae,:ao realizada em conjunto com Elisa Reis e joao Batista Araujo e Oliveira, na cidade de Rio Paranaiba, Minas Gerais, e no Ministerio da Desburocratizae,:ao, em Brasilia. 0 texto foi mantido como originalmente publicado, mas, em razao das mudane,:asnaque1a regiao do pais, optei por transformar os tempos presentes da versao original em passado, contrariando 0 habito de se manter 0 presente etnografico (ver, tambern, Reis, Processos e Escolhas. Estudos de SociologiaPolitica.

    2. Ver Dumont, Louis, Religion, Politics and History in India, p.112-33, para uma critica ao conceito de "comunidade".

    3. Ver Peirano, Uma antropologia noplural, Capitulo 4, para uma reflexao sobre 0 conceito de "sociedade complexa",

    4. Wanderley G. dos Santos, "Reflexoes sobre a questao do liberalismo", p.17S. 5. Elias, Norbert, "Processes ofstate-formation and nation-building." 6. Ver Weber, Eugen, From Peasants into Frenchmen. The Modernization ofRural

    France, (1976) para um trabalho elucidativo sobre a Franca. 7. Marshall, TH., Cidadania, c/asse sociale status, p.64. 8. Mauss, Marcel, L'Annee Sociologique, p.20. 9. Grillo, R.,"Nation" and "State"in Europe. AnthropologicalPerspectives, p.6. 10. Tilly, Charles, The Formation ifNational States in Western Europe, p.6. 11. Dumont, Louis, Religion, Politics andHistory in India, p.93.

  • 170 A teoria vivida

    12. Dumont, Louis, Religion, politics and society in the individualistic universe, p. 31-4l.

    13. Wanderley G. dos Santos, [ustua ecidadania. 14. Idem, p.77. 15.Wanderley G. dos Santos, [ustlca e cidadania. 16. Os dados foram coletados em duas etapas: em 1981, visando urn estudo da

    burocracia no meio rural e 0 imp acto do Programa de Desburocratizacao no interior; e em 1982, durante 0 periodo de eleicoes gerais.

    17. Ver Dumont, Louis, Religion, Politics and History in India, p.107, para a nocao politic a de territ6rio.

    18. Constatei esse fato em pesquisa de campo realizada, em 1974, entre pescadores no litoral do Ceara, para quem "alernaes" ou "sulistas" poderiam vir a desempenhar igual papel (no caso, de potenciais inimigos). Em suas pesquisas nos anos 1960, Roque de Barros Laraia encontrou populacoes rurais que ainda supunham 0 Brasilligado a Portugal como colonia (cornunicacao pessoal).

    19. Mauss, Marcel, L'Annee Sociologique,p.24. 20. Programa Nacional de Desburocrarizacao, Plano Nacional de Desenvol

    vimento, Presidencia da Republica, 1985. 21. Em artigo recente, Piquet Carneiro (2004) argumenta que 0 projeto brasileiro

    foi pioneiro em relacao ao "Reinventing Government", programa norte-americano de desburocratizacao lancado pelo presidente Bill Clinton em 1993.

    22. Bendix, R., Nation-Building and Citizenship, p.60. 23. Mauss, Marcel, L'Annee Sociologique, p.24. 24. Wanderley G. dos Santos,justira e cidadania. 25. As ambiguidades existentes entre os propositos "tecnicos" e 0 apelo "politico"

    da desburocratizacao no plano do Estado merecem maior esforco de pesquisa. 26. A proposta libertadora do cidadao, do compositor Caetano Veloso, cornpleta

    se com 0 verso seguinte: "Nada no bolso ou nas rnaos." 27. Marshall, TH., Cidadania, cfasse sociale status, p.63. 28. Marshall, TH., Cidadania, cfasse socialestatus, p.64. 29. Bendix, R., Nation-Building and Citizenship. 30. Idem, p.89-ss. 31. Idem, p.78,82,115. 32. Marshall, TH., Cidadania, classe socialestatus, p.76, enfase minha. 33. R. Bendix, Nation-Building and Citizenship, p.86. 34. Anton, Blok, The Mafia oja Sicilian Village:1860-1960. 35. Ver Antonio Candido [Mello e Souza], Formacaoda literatura brasileira, para 0

    papel dos intelectuais na construcao da nacao.

    Capitulo 10 - A 16gica miiltipla dos documentos (p.13S a 1S3) 1. Este capitulo constitui uma versao ampliada da cornunicacao "This horrible

    time of papers: documentos e valores nacionais", apresentada no Serninario "Antropologia da polrtica", Museu NacionaVUFRJ, agosto de 2001, e, mais tarde, no "Encontro de Sociologia e Antropologia", IFCS/UFRJ, maio de 2004. Agradeco a

    Notas 171

    Antonadia Borges e a Wilson Trajano Filho pelas leituras exigentes que ajudaram a tornar 0 texto mais palatavel,

    2. "Scenes from a marriage", p.57-8. 3. Marcel Mauss, L'Annee Sociologique, p.20. 4. Dumont, Religion, Politics and History in India, p.93. Para Grillo (Grillo,

    "Nation" and "State" in Europe. AnthropologicalPerspectives, p.6), Mauss teria definido 0 Esrado-nacao (e nao a nacao, como propunha).

    5. Cf. Mommse apudPoggi, G., The DevelopmentoJthe Modern State. A Sociological Introduction, p.10l. Nessa linha, Schwartzman (Schwartzman, "Apresentacao", p.10) enfatiza a necessidade da pesquisa empirica para esc1arecer a relacao nao-deterrninista entre a autoridade do Estado e a solidariedade da sociedade civil: "[Cojexistern, em todos os sistemas sociais, sistemas de interesse que tratam de orientar e delimitar a acao do Estado,e uma autonomia mais ou menos signilcativa do Estado que trata de influenciar a vida da sociedade civil. Essa dualidade nao e, meramente, de tipo funcional, 0 Estado incorporando as funcoes do sistema politico referidas as relacoes verticais de autoridade e dominacao, e a sociedade civil corporificando as relacoes horizontais de solidariedade e comunidade de interesses. 0 que sepassa, exatamente, eque relacoes de solidariedade se desenvolvem dentro das estruturas de autoridade, e relacoes de autoridade se desenoohiem dentro das estruturas de solidariedade, e e isso que torna a pesquisa empirica necessaria e insubstituivet' (enfase rninha).

    6. Essa perspectiva encontra alicerce em Dumont, "La communaute anthropologique et l'ideologie", para quem cabe a antropologia a tarefa de reunir, compreender e reconstruir 0 que a ideologia moderna separou. Nesse sentido, nota que a letra E rnaiuscula e aqui utilizada para grafar "Estado-nacao" apenas para seguir a convencao dasgwbas sociais brasileiras.

    7. Por exemplo, Das, Critical Events. An Anthropological Perspective on Contemporary India; Tambiah, Buddhism andthe Spirit Cults in North-east Thailand; Daniel, Charred Lullabies. Capters in an Anthropography oJViolence.

    8. Cf. Elisa Reis, Processos eescolhas. Estudos de SociologiaPolitica. Em geral, as sociedades-Estados assumiram 0 carater de Estados-nacoes no meio do seculo XVIII em diante e, para Elias, "Processes of state-formation and nation-building", mesmo as sociedades mais desenvolvidas do mundo industrial contemporaneo nao teriam ainda completado seus respectivos processos de construcao da nacao,

    9. Entre os ensaios que abordam a questao dos documentos a partir de uma perspectiva antropologica, ver Peirano e DaMatta (2002). Oliven (2001) faz uma interessante mencao ao caso norte-arnericano. Scott, Tehranian & Mathias (2002) focalizam o caso dos patronimicos na producao de identidades legais pr6prias aos Estados e finalizam com uma mencao detalhada sobre os usos positivos (em campos de refugiados, por exemplo) e negativos (campos de concentracao) de numeros e documentos. Ver, tambern, Torpey (2000), sobre a invencao do passaporte, e a excelente coletanea de artigos em Caplan & Torpey (2001a).

    10. Cf. Peirano, Mariza, "Rituais como estrategia analitica e abordagem etnografica". 11. Tambiah, Stanley]., Culture, Thought and SocialAction. 12. Depoimento de Aderval Costa Filho (2000). 13. TV Glob