Penal Salviano Medeiros Neto

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FACULDADES ENTRE RIOS DO PIAUDIREITO PENAL DO CONSUMO: FORMAS DE INTERVENO DODIREITO PENALSalviano Medeiros NetoTeresina - PI2012FACULDADES ENTRE RIOS DO PIAUDIREITO PENAL DO CONSUMO: FORMAS DE INTERVENO DO DIREITO PENALMonografia apresentada como requisito parcial de Concluso de Curso para obteno do Grau de Ps-graduao em Direito Penal e Processo PenalSalviano Medeiros NetoTeresina/PI2012DIREITO PENAL DO CONSUMO: FORMAS DE INTERVENO DO DIREITO PENALMonografiaaprovadacomorequisitoparcial para obteno do Grau de Psgraduao em Direito Penal e Processo Penal.Prof. Andr Silveira de Arago OrientadorEilanison Falco do Vale ExaminadorMrcia Soares Bulco ExaminadorTeresina/PI 2012.A paz o fim que o direito tem em vista, a luta o meio de que se serve para conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaado pelos ataques da injustia e assim acontecer enquanto o mundo for mundo nunca ele poder subtrair-se violncia da luta. A vida do direito uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivduos. Rudolf Von IheringRESUMOO presente trabalho tem o desiderato de analisar as formas de interveno do Direito Penal nas relaes de consumo partindo do estudo das principais causas que levaram o legislador penal a adotar determinada poltica criminal no combate delinqncia contra o consumo, e as conseqncias que dita escolha vem ensejando no mbito da dogmtica penal. O Direito Penal do Consumo constitui hoje uma das reas mais crticas da interveno penal, tendo em vista as suas enormes peculiaridades, especialmente no que tange ao seu objeto de tutela e tipologia criminal adotada pelo legislador. Trata-se de um ramo relativamente novo do Direito Penal que guarda profunda relao com o processo de desenvolvimento da sociedade. Dessarte, partindo da anlise das principais modificaes havidas na sociedade psindustrial, em especial o extraordinrio avano tecnolgico e industrial, abordaremos as repercusses que ditas transformaes vm ensejando no mbito da poltica criminal moderna, especialmente no que tange interveno penal nas relaes de consumo, em contraposio com os postulados do Direito Penal tradicional.Palavras-chave: Direito Penal Consumo formas de intervenoABSTRACTThe current assignment intends to analyse the methods of intervention of the Penal Law in the consumption relations starting with the study of the main causes that took the penal legislator to adopt determined criminal policy to fight the delinquency against the consumption and the consequences of such choice to which the opportunity was given in the ambit of penal dogmatic. The Penal Law of Consumption constitutes today one of the most critic areas in the penal intervention picturing its enormous peculiarities specially on what refers to its object of tutelage and to the criminal typology adopted by the legislator. This is about a relatively new branch of the Penal Law that carries on a deep relation with the process of development of society. Therefore, starting from the analysis of the main modifications that happened in the post-industrial society, in special the extraordinary tchnological and industrial advances, we will approach the repercussion of such transformations that are having an opportunity in the ambit of the modern criminal policy, specially on what refers to the penal intervention in consumption relations, in opposition to the postulates of the traditional Penal Law. Keywords: Penal Law Consumption Methods of intervention.SUMRIO1 INTRODUO...................................................................................................................10 2 ASPECTOS HISTRICOS..............................................................................................12 2.1 Evoluo histrica das relaes de consumo...........................................................12 2.2 Antecedentes legislativos no Brasil.............................................................................15 3 PROTEO JURDICA DO CONSUMIDOR................................................................18 3.1 Consideraes preliminares..........................................................................................18 3.2 Conceito jurdico de relaes de consumo.................................................................19 3.2.1 O conceito de consumidor.........................................................................................20 3.2.2 O conceito de fornecedor...........................................................................................22 3.2.3 O conceito de produto e servio...............................................................................22 3.3 Princpios norteadores do Cdigo de Defesa do Consumidor................................23 3.3.1 Princpio da vulnerabilidade do consumidor...........................................................25 3.3.2 Princpio da boa-f......................................................................................................26 3.3.3 Princpio da eqidade.................................................................................................27 3.3.4 Princpio da informao..............................................................................................27 3.3.5 Princpio da garantia de adequao.........................................................................28 3.3.6 Princpio do acesso justia.....................................................................................28 3.3.7 Princpio da coibio e represso de abusos no mercado...................................29 3.4 Direitos bsicos do consumidor....................................................................................30 3.4.1 A proteo da vida, sade e segurana (inciso I).................................................31 3.4.2 A educao do consumidor, liberdade de escolha e igualdade nas contrataes (inciso II).................................................................................................................................32 3.4.3 A informao sobre produtos e servios (inciso III)..............................................33 3.4.4 A proteo contra a publicidade enganosa e abusiva e prticas comerciais condenveis (inciso IV)........................................................................................................34 3.4.5 A proteo contratual (inciso v)................................................................................35 3.46A efetiva preveno e reparao de danos individuais e coletivos (inciso VI)..36 3.47O acesso aos rgos judicirios e administrativos e a proteo aos necessitados (inciso VII)......................................................................................................37 3.4.8 A inverso do nus da prova (inciso VIII)................................................................38 3.4.9 A eficincia dos servios pblicos (inciso IX).........................................................38 4 DIREITO PENAL DO CONSUMO...................................................................................394.1 Consideraes preliminares..........................................................................................39 4.2 Apontamentos relativos ao bem jurdico-penal..........................................................41 4.2.1 Evoluo conceitual e funes do bem jurdico.....................................................41 4.2.2 Concepo atual do bem jurdico-penal..................................................................46 4.2.3 As relaes de consumo como um bem jurdico-penal e sua natureza transindividual.................................................................................................................................48 4.3 A tutela penal do consumo frente aos princpios da interveno mnima e da fragmentariedade do Direito Penal.....................................................................................52 4.4 Crticas concepo penal do Cdigo de Defesa do Consumidor........................56 4.5 Estrutura do tipo penal consumerista..........................................................................58 4.5.1 Dos delitos de perigo abstrato...................................................................................584.5.1.1 Distino entre crimes de dano e crimes de perigo...........................................58 4.5.1.2 Os delitos de perigo abstrato e o princpio da lesividade do Direito Penal....60 4.5.1.3 Os delitos de perigo abstrato na sociedade de riscos.....................................61 4.5.1.4 O fenmeno da administrativizao do Direito Penal......................................65 4.5.2 Normas penais em branco.........................................................................................67 4.5.2.1 Consideraes gerais..............................................................................................67 4.5.2.2 O recurso da norma penal em branco nos delitos de consumo.......................69 4.5.3 Dos tipos omissivos....................................................................................................72 4.6 A tipologia criminal adequada para o consumo.........................................................73 5 CONCLUSES..................................................................................................................76 6 BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................79101 INTRODUOO estudo da tutela penal do consumo constitui tarefa rdua e complexa, haja vista que a matria permeada de questes controvertidas, porm, ainda muito pouco debatidas na doutrina. Trata-se de um assunto de candente atualidade e de enorme relevncia no contexto da dogmtica penal contempornea. O processo de massificao do consumo, que teve incio aps a Revoluo Industrial, veio gerando, ao longo dos tempos, imensas modificaes nas relaes econmicas e sociais, decorrentes principalmente do extraordinrio desenvolvimento das tcnicas de fornecimento de bens e servios. Dentro deste contexto social, o consumidor foi ficando cada vez mais vulnervel na relao, sofrendo constantes prejuzos decorrentes de abusos praticados pelos fornecedores. No entanto, somente com o advento da Lei n. 8.078/1990 que o consumidor obteve a devida tutela legal, fixando-se um tratamento protetivo amplo e englobado. O Cdigo de Defesa do Consumidor constitui um verdadeiro microssistema jurdico, prevendo regras de natureza civil, administrativa e penal. Nada obstante, em que pese o vasto espectro de abrangncia das normas estampadas na Lei de Consumo, a superioridade dos fornecedores nas relaes de consumo s tem aumentado, de modo que a efetiva tutela do consumidor est longe de ser alcanada. No que pertine especificamente ao Direito Penal do Consumo, ele surgiu como um ramo do Direito Penal Econmico, e constitui hoje uma das reas mais debatidas da interveno penal, haja vista que representa uma manifestaode um fenmeno que vem se mostrando dominante em todas as legislaes penais no sentido da introduo de novos tipos penais para a tutela de novos interesses essencialmente diversos do paradigma do Direito Penal clssico. Com efeito, o nosso modo social hodierno, caracterizado como sociedade de riscos, vem demandando uma maior interveno do Direito Penal para a proteo de novos bens jurdicos, que no mais se referem a uma pessoa11individualmente considerada, mas se projetam em um grupo ou em toda a sociedade. So os denominados bens jurdicos trans-individuais ou macrossociais. Ocorre que, o Direito Penal, que tradicionalmente voltado para a proteo de bens individuais, vem encontrando srias dificuldades para encontrar uma forma de interveno que melhor se ajuste natureza supra-individual desses novos bens jurdicos, mediante a criao de uma tipologia criminal adequada. Neste sentido, a principal questo que permeia a interveno penal nas relaes de consumo e que constituir, destarte, o principal objeto do presente trabalho, consiste na incapacidade do Direito Penal clssico de lidar com essas novas formas de criminalidade hauridas do contexto social ps-industrial, o que vem gerando grandes discusses na doutrina quanto ao rumo a ser seguido pela dogmtica penal diante dessas novas situaes.122 ASPECTOS HISTRICOS2.1 Evoluo histrica das relaes de consumoA relao de consumo, tal como concebida na atualidade, fruto da sociedade capitalista contempornea, com requintes de impessoalidade, produo em massa e no interveno do consumidor no processo de manufatura, somente teve incio aps a Revoluo Industrial, eclodida em meados do sculo XVIII, na Inglaterra. No perodo anterior ao industrialismo o que existia era to-somente uma relao comercial entre particulares, estabelecida pessoal e diretamente entre os contratantes. Neste contexto histrico, a produo basicamente se concentrava nas oficinas artesanais, denominadas corporaes de ofcio, onde o arteso somente produzia sob encomenda, de modo que o objeto era feito especificamente para o comprador, resultando em um produto final totalmente individualizado. Como se denota, era o consumidor que mandava na relao, ou seja, era ele quem determinava o produto a ser manufaturado, o que resultava em um equilbrio entre as partes. Ademais, sequer havia logstica empresarial, uma vez que a organizao do fornecedor era caseira, no-profissional, dotada de uma estrutura rudimentar, sendo que os envolvidos intervinham diretamente em todas as fases deproduo. No entanto, com o advento da Revoluo Industrial e a conseqente expanso da produo, iniciou-se um acelerado processo de evoluo das relaes de consumo, que culminou com a premente necessidade de tutela do consumidor, ante ao surgimento da chamada sociedade de massa, sofisticada e complexa, onde o fornecedor assumiu uma notvel posio de superioridade na relao, avanando13de forma extraordinria, enquanto o consumidor permaneceu inerte, ficando hipossuficiente do ponto de vista tcnico e econmico. Com a mecanizao da agricultura no incio do sculo XIX e o conseqente xodo rural, formaram-se os grandes centros urbanos, possibilitando uma maior oferta de produtos, o que causou um aumento extraordinrio na capacidade de produo das indstrias, dando origem denominada produo em srie, ou standartizao da produo1. O fornecedor passou a se profissionalizar, se organizando e se estruturando para o fornecimento de bens, auferindo maiores lucros, de modo que a relao contratual j no se findava mais entre particulares, mas entre fornecedor e consumidor. Essa mudana na organizao do fornecedor e a produo em larga escala causaram um afastamento entre as partes na relao de consumo. A negociao, que outrora era interpessoal e direta, passou a ser impessoal e indireta, de modo que o consumidor no mais intervinha nas etapas de produo, no mais tendo o poder de especificar o produto desejado, tendo que consumir somente o que posto no mercado. Outra caracterstica da sociedade de massa a oferta de produtos padronizados. Como a produo era feita em larga escala, inviabilizou-se a individualizao dos produtos, de forma que o fornecedor planejava unilateralmente a produo e posteriormente fabricava os produtos em srie, impondo-os aos consumidores. Da mesma forma, os modelos contratuais passaram a ser elaborados unilateralmente pelo fornecedor, dando origem ao chamado contrato de adeso. Na dico de Rizzatto Nunes (2005, p. 4):(...) no tinha sentido fazer um automvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade, quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes, tambm faz um nico contrato e o reproduz vinte mil vezes.1Neste sentido, Joo Batista de Almeida (2002)14O surgimento desse novo modelo contratual, por mitigar o elemento vontade, antes considerado o mais importante na relao contratual, tendo em vista as noes tradicionais do direito privado, se contraps ao liberalismo do Sc. XIX, ocasionando a decadncia do voluntarismo no direito privado, uma vez que deixou evidente a necessidade de interveno do Estado nas relaes de consumo para proteger o consumidor, cada vez mais vulnervel na relao. Neste sentido, as normas do regime privatista j no mais eram eficazes em questes ligadas sociedade de massa, uma vez que, dispensando tratamento igual s partes na relao de consumo, no coibiam os constantes abusos do fornecedor, no reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor na relao. Assim, com a rpida evoluo das relaes de consumo, houve uma conseqente mudana nas relaes sociais, econmicas e jurdicas, que deixou o consumidor desprotegido ante as novas situaes decorrentes do desenvolvimento. Com o surgimento da tecnologia de ponta, o fortalecimento da informtica, o incremento das telecomunicaes e o desenvolvimento das tcnicas de marketing essa situao de desvantagem do consumidor se agravou ainda mais. O fornecedor foi se aprimorando constantemente na arte de fornecer, criando maneiras de atiar o nosso instinto consumerista. Destarte, o consumidor passou a ser mais ignorante. Como antigamente os produtos eram mais simples, era mais fcil saber o que se estava consumindo. A tecnologia tem evoludo muito rapidamente, o que obsta que a populao em geral conhea determinados produtos. Com todas essas tcnicas desenvolvidas pelo fornecedor para atrair o consumidor, o consumo passou cada vez mais a fazer parte da vida cotidiana daspessoas, formando-se uma sociedade tpica de consumo. Assim sendo, muitas vezes o consumidor acabou se vendo obrigado a contratar. No mais um consumidor por mera opo, mas sim por necessidade. Neste aspecto, assevera Joo Batista de Almeida (2002, p. 2):O consumo parte indissocivel do cotidiano do ser humano. verdadeira a afirmao de que todos ns somos consumidores. Independentemente15da classe social e da faixa de renda, consumimos desde o nascimento e em todos os perodos de nossa existncia. Por motivos variados que vo desde a necessidade e da sobrevivncia at o consumo por simples desejo, o consumo pelo consumo.Na mesma consonncia, e lecionando sobre as causas que levaram hipossuficincia tcnica e econmica do consumidor, obtempera Othon Sidou (1977, p. 5):(...) o que deu dimenso enormssima ao imperativo cogente de proteo ao consumidor, ao ponto de impor-se como tema de segurana de Estado no mundo moderno, em razo dos atritos sociais que o problema pode gerar e ao Estado cumpre delir, foi o extraordinrio desenvolvimento do comrcio e a conseqente ampliao da publicidade, do que igualmente resultou, isto sim, o fenmeno conhecido dos economistas do passado a sociedade do consumo, ou o desfrute pelo simples desfrute, a aplicao da riqueza por mera sugesto consciente ou inconsciente.Afirma-se, em concluso, que o extraordinrio desenvolvimento das tcnicas de fornecimento de bens e servios, as profundas modificaes das relaes de consumo e o reconhecimento da hipossuficincia do consumidor conduziram, no conjunto, ao surgimento da tutela respectiva.2.2 Antecedentes legislativos no BrasilA defesa do consumidor, como tema especfico, relativamente nova no direito ptrio. Como tema inespecfico, no entanto, mesmo antes da Constituio Federal de 1988, constata-se a existncia de legislao nacional que indiretamenteprotegia o consumidor, embora no fosse esse o objetivo principal do legislador. J nas Ordenaes Filipinas, que representaram o nosso primeiro Cdigo Penal at ser editado o Cdigo Penal do Imprio em 1830, se tem notcia da existncia de normas penais que, no obstante tutelassem o patrimnio como bem jurdico principal, indiretamente ofereciam proteo ao consumidor, embora limitada16etmida,sendoestasnormasdotadasdeextremorigorismoepenasdesproporcionais2. Mais tarde, precisamente em 1951, foi editada a Lei dos Crimes Contra a Economia Popular que sistematizou uma proteo mais forte e diferenciada ao consumidor. Outro diploma importante editado foi a Lei 7.347/85, que disciplinou a ao civil pblica de responsabilidade por danos causados aos consumidores, alm de outros bens tutelados, iniciando, desta forma, a tutela jurisdicional dos interesses difusos em nosso pas. No entanto, a vitria mais importante nesse campo, fruto dos reclamos da sociedade e de ingente trabalho dos rgos e entidades de defesa do consumidor, foi a insero, na Constituio Federal de 1988, de quatro dispositivos especficos sobre o tema. O art. 5, inciso XXXII, inseriu a defesa do consumidor entre os direitos e deveres individuais e coletivos. De seu turno, o art. 24, inciso VIII, estabeleceu a competncia concorrente da Unio, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre matria consumerista. O art. 170, por sua vez, erigiu a tutela do consumidor como princpio geral da ordem econmica. E o art. 48 dos Atos de Disposies Constitucionais Transitrias determinou ao Congresso Nacional a elaborao do Cdigo de Defesa do Consumidor. Tratando-se de legislao especfica, todavia, somente com a edio do Cdigo de Proteo e Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que fixou-se um tratamento protetivo amplo e englobado ao consumidor. A referida lei, alm de representar a consolidao da tutela especfica do consumidor no direito ptrio, tem uma conotao formal que a diferencia das leis anteriores. Nasceu por ser uma garantia constitucional (art. 5, inciso XXXII, daConstituio Federal), e esta emigrao para a rea constitucional lhe deu maior fora e estabilidade normativa. Sobre o Cdigo de Defesa do Consumidor, convm citar a lio de Tupinamb Miguel Castro Nascimento (1991, p. 15):2Dispe neste sentido, Tupinamb Miguel Castro Nascimento (1991)17Aqui, a conotao substancial do Cdigo do Consumidor. Alm de tratar mais abrangentemente da matria sobre as relaes de consumo, contm regras mais prprias e pertinentes responsabilidade civil. No se limita a regulamentar e prever, com sanes, infraes administrativas e penais. Oferece medidas mais especficas, revolucionando certos princpios processuais, em busca de uma mais efetiva equiparao ou igualao, entre as partes na relao jurdica de consumo que, em princpio, seriam desiguais: um, o comerciante, economicamente mais forte, e outro, o consumidor, um hipossuficiente econmico. O Cdigo do Consumidor tem como filosofia bsica dar um plus ao consumidor, para igual-lo, nas relaes de consumo, ao fornecedor.Destarte, como se infere, o Brasil acordou tardiamente para a problemtica da desigualdade entre as partes na relao de consumo, de forma que somente com o advento do Cdigo de Defesa do Consumidor que o consumidor obteve a devida tutela legal. Contudo, impende consignar ainda que, malgrado o consumidor brasileiro esteja legislativamente bem equipado hoje, ele ainda se ressente de proteo efetiva, por motivos que, no entender de Joo Batista de Almeida (2002, p. 11), consistem na falta de vontade poltica e de recursos tcnicos e materiais.183 PROTEO JURDICA DO CONSUMIDOR3.1 Consideraes preliminaresAntes de adentrar na questo da tutela do consumidor na esfera penal, mister realizar-se um breve escoro do ordenamento jurdico consumerista como um todo, com o escopo de facilitar o entendimento dos tipos penais de consumo e o seu alcance. Nesta consonncia, abordar-se-, inicialmente, os principais pontos conceituais da relao de consumo, estabelecendo-se os elementos que apontam tal relao, para se determinar o mbito de incidncia das normas estampadas no Cdigo do Consumidor. Continuamente, sero analisados os princpios reguladores do microssistema jurdico de proteo ao consumo, e seus principais aspectos. Neste ponto, cumpre mencionar que o Cdigo de Defesa do Consumidor uma lei principiolgica. Isso implica dizer que o referido diploma legal tem vida prpria, tendo sido criado como subsistema autnomo e, portando, submisso apenas ao sistema constitucional brasileiro. Sobre o assunto, ensina Rizzatto Nunes (2005, p. 70):(...) de um lado, as normas do Cdigo de Defesa do Consumidor esto logicamente submetidas aos parmetros normativos da Carta Magna, e, de outro, todas as demais normas do sistema somente tero incidncia nas relaes de consumo se e quando houver lacuna no sistema consumerista.Caso no haja, no h por que nem como pensar em aplicar outra Lei diversa da de n 8.078.Insta salientar tambm que a tutela do consumidor hoje enquadrada dentro do grupo dos denominados interesses difusos ou coletivos. Isto se d pelo fato de a superao da vulnerabilidade do consumidor nas relaes de consumo19interessar a toda coletividade e no apenas ao consumidor individual. Tanto que o prprio legislador em matria de consumo concedeu natureza jurdica de normas de ordem pblica e de interesse social s disposies do Cdigo do Consumidor (art.1), no facultando s partes a possibilidade de optar ou no pela aplicao de seus dispositivos que, portanto, no podero ser afastados seno quando houver expressa autorizao legal. Conforme dispe Paulo Dourado Gusmo (1984, p.118):O ius cogente forma de proteo do interesse social porque tutela instituies jurdicas fundamentais e tradicionais bem como as que garantem a segurana das relaes jurdicas e protegem os direitos personalssimos e situaes jurdicas que no podem ser alteradas pelo juiz e pelas partes por deverem ter certa durao.A respeito, cumpre transcrever tambm a excelente colocao de Brethe de la Gressaye e Laborde-Lacoste (1981) apud Paulo Dourado Gusmo (1984, p. 118-119), para quem a ordem pblica a parte essencial, fundamental, da ordem social, que necessria a manter a sociedade: as leis de ordem pblica so as bases jurdicas da sociedade. Aps a exposio do tema relativo aos princpios informadores do direito do consumidor e, fechando o presente captulo, ser feito um pequeno aclaramento a respeito dos principais direitos dos consumidores, explanando-se quanto sua amplitude e o seu modo de exerccio.3.2 O Conceito jurdico de relao de consumo de extrema importncia delimitar-se o conceito de relao de consumo, tendo em vista que o Cdigo de Defesa do Consumidor ter incidncia em toda relao puder ser caracterizada como tal. Neste passo, na dico de Rizzatto Nunes (2005, p. 71), haver relao jurdica de consumo sempre que se puder identificar num dos plos da20relao o consumidor e, no outro, o fornecedor, ambos transacionando produtos e servios. No mesmo sentido, prescreve Hlio Zaghetto Gama (2002, p. 28):Podemos ento entender por relaes de consumo aquelas relaes que se estabelecem ou que podem vir a se estabelecer quando de um lado porta-se algum com a atividade de ofertador de produtos ou servios e, de outro lado, haja algum sujeito a tais ofertas ou sujeito a algum acidente que venha ocorrer com a sua pessoa ou com os seus bens.Insta, portanto, que estabeleamos o conceito jurdico de consumidor, fornecedor e produto e servio. Entretanto, antes de buscarmos a delimitao dos conceitos retro, necessrio dizer que eles esto basicamente expostos nos arts. 2, 3, 17 e 29 do Cdigo do Consumidor.3.1.1 O conceito de consumidorO Cdigo de Defesa do Consumidor delimitou o conceito de consumidor em seu art. 2, que dispe, in verbis, que consumidor e toda pessoa fsica ou jurdica que adquire ou utiliza produto ou servio como destinatrio final. Contudo, malgrado o dispositivo acima colacionado tenha delimitado expressa e objetivamente o conceito de consumidor, h at hoje grande controvrsia doutrinria quanto ao seu real sentido jurdico. Isso porque, no dizer de Joo Batista de Almeida (2002, p. 34), (...) h certa tendncia em aceitar a concepoeconmica de consumidor, que nem sempre transferida e acolhida pelo direito (...). E explica o mencionado doutrinador (2002, p.34) que, quanto ao conceito econmico de consumidor , ele abrange, pois, no apenas aquele que adquire para uso prprio, ou seja, como destinatrio final, mas tambm aquele que o faz na condio de intermedirio, para repasse a outros fornecedores.21Para o presente trabalho, no entanto, interessa-nos analisar a definio legal de consumidor. Quanto a esta, a mngua do que prescreve o artigo supratranscrito, depreende-se que o importante para sua configurao a retirada do bem do mercado, no perquirindo-se a respeito o sujeito que adquiriu o produto ou servio (profissional ou no). Deste modo, em regra, ficam excludos do conceito de consumidor os intermedirios, que mesmo tendo adquirido o produto ou servio, no o fazem na qualidade de adquirentes finais ou usurios finais, v.g., quem compra o produto para revenda. No que tange ao consumidor-pessoa jurdica, conforme j exposto, ele ter a proteo do Cdigo do Consumidor, inclusive para as hipteses de vcio do produto, desde que adquira ou utilize o produto como destinatrio final, no o incorporando em outro, nem revendendo-o. H, apenas, quanto a este, uma atenuao na obrigao de indenizar, conforme o determinado pelo art. 51, inciso II, da Lei Consumerista. O pargrafo nico do art. 2 suso referido equipara como consumidora a coletividade de pessoas que intervenha absorvendo bens ou servios ou se aprestando para tais absores. O referido dispositivo pretende conferir proteo legal a coletividade de pessoas que possam ser, de alguma maneira, afetadas pelas relaes de consumo. essa regra que d legitimidade para a propositura de aes coletivas para a defesa dos interesses difusos e coletivos (art. 81 a 107 do CDC). Outra equiparao a consumidor trazida pelo art. 17 da lei de consumo, que garante proteo legal s vtimas de acidente de consumo que no tenham sido consumidoras diretas do bem ou do servio que as atingiu. Para Arruda Alvim (1995, p. 26), o referido dispositivo legal visou resolver o problema dos intermedirios, que estavam excludos da tutela legal pelo disposto no art. 2 da leiconsumerista, legitimando-os, desta forma, a agir na defesa de seus direitos, na qualidade de equiparados ao consumidor. Trata-se, como se infere, deresponsabilidade civil objetiva pelo fato do produto ou servio causador do acidente de consumo. Por ltimo, o Cdigo de Consumo, em seu art. 29, equiparou a consumidor todas as pessoas, ainda que indeterminveis, que estejam expostas s prticas comerciais. Conforme proclama Rizzatto Nunes (2005, p. 72):22(...) trata-se praticamente de uma espcie de conceito difuso de consumidor, tendo em vista que j e desde sempre todas as pessoas so consumidoras por estarem potencialmente expostas a toda e qualquer prtica comercial.3.2.2 O conceito de fornecedorDiferentemente do que ocorre com o consumidor, o conceito de fornecedor no debatido com freqncia pelos autores. Isto se d em virtude da doutrina aceitar com tranqilidade a definio legal de fornecedor, que engloba (...) toda pessoa fsica ou jurdica, pblica ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produo, montagem, criao, construo, transformao, importao, exportao, distribuio ou comercializao de produtos ou prestao de servios (art. 3 do Cdigo de Defesa do Consumidor). Como se v, o legislador procurou estabelecer a maior abrangncia possvel para o conceito de fornecedor, englobando todas as pessoas capazes, fsicas ou jurdicas, alm dos entes desprovidos de personalidade. Desta forma, ser o ncleo da atividade desenvolvida que caracterizar o fornecedor. Nesta linha de raciocnio, preleciona Jos Geraldo Brito Filomeno (1999, p. 29) que so fornecedores todos quanto propiciem a oferta de produtos e servios no mercado de consumo, de maneira a atender as necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que ttulo. No mesmo diapaso, anota Arruda Alvim (1995, p. 32), sinteticamente, que fornecedor todo ente que provisione o mercado de consumo, de produtos ou servios.3.2.3 O conceito de produto e servioO legislador consumerista tambm se preocupou em definir o objeto da relao de consumo. Mais uma vez, quanto a este aspecto, ele foi bastante23abrangente, definindo produto como (...) qualquer bem, mvel ou imvel, material ou imaterial (art. 3, 1, do CDC). Como se denota, qualquer bem pode ser produto, desde que seja objeto de relao de consumo. Para Joo Marcelo de Arajo Jnior (1992, p. 57):No Cdigo de Defesa do Consumidor, a palavra produto empregada em sentido econmico, como fruto da produo. Produto , portanto, um bem. Algo elaborado por algum, com o fim de coloc-lo no comrcio, para satisfazer uma necessidade humana.No que pertine ao conceito de servio, tambm o seu espectro de abrangncia vastssimo. Conforme define o Cdigo de Defesa do Consumidor:Art. 3 (...) 2 Servio qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remunerao, inclusive as de natureza bancria, financeira, de crdito e securitria, salvo as decorrentes das relaes de carter trabalhista.Assim, para configurar-se a prestao de servios, basta que a atividade seja remunerada e no subordinada a vnculo trabalhista. Nestes termos, proclama Toshio Mukai (1991, p. 38) que (...) para se caracterizar servio, para efeitos de incidncia do CDC, basta que a atividade desenvolvida seja remunerada, ainda que espordica e no habitual.3.3 Princpios norteadores do Cdigo de Defesa do ConsumidorCelso Antnio Bandeira de Mello (2003, p. 450-451) define princpio jurdico como:24(...) mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondolhes o esprito e servindo de critrio para sua exata compreenso e inteligncia, exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico.O art. 4 da Lei de Consumo, tratando da Poltica Nacional de Relaes de Consumo, disps expressamente sobre os princpios que regem a matria. Antes de adentrar do assunto, entretanto, cumpre mencionar que o referido dispositivo legal, ao dispor, em seu caput, sobre os objetivos colimados pela Poltica Nacional de Relaes de Consumo, elencando, dentre outros, o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito sua dignidade, a proteo de seus interesses econmicos e a melhoria de sua qualidade de vida, foi alvo de constantes crticas por uma parte da doutrina. Isto por que, para os que censuram a redao do artigo em exame, ele teria concedido excessiva proteo ao consumidor, dispensando tratamento desproporcional ao fornecedor, que estaria sendo encarado como o vilo da histria, o responsvel por todas as mazelas verificadas no mercado de consumo, fomentando, desta forma, a discrdia entre os protagonistas das relaes de consumo. Todavia, h tambm aqueles que combatem o entendimento supra, defendendo o preceito em comento, sob o argumento de que o escopo precpuo da Poltica Nacional de Relaes de Consumo seria justamente o oposto do suscitado acima, ou seja, ela buscaria a harmonizao das relaes de consumo, que deveria reg-las a todo momento. Neste sentido, e combatendo as crticas dirigidas sobredita PolticaNacional de Relaes de Consumo, argumenta Jos Geraldo Brito Filomeno (2001, p. 54):(...) ela visa exatamente harmonia das relaes de consumo, porquanto, se por um lado efetivamente se preocupa com o atendimento das necessidades bsicas dos consumidores (isto , respeito a sua dignidade, sade, segurana, e aos seus interesses econmicos, almejando- se a melhoria de sua qualidade de vida), por outro visa igualmente paz daquelas, para tanto atendidos certos requisitos, como sero analisados a seguir, dentre os quais se destacam as boas relaes comerciais, a proteo da livre concorrncia, do livre mercado, da tutela das marcas e25patentes, inventos e processos industriais, programas de qualidade e produtividade, enfim, uma poltica que diz respeito ao mais perfeito possvel relacionamento entre consumidores todos ns em ltima anlise, em maior ou menor grau e fornecedores.Esclarecido o assunto, passemos anlise dos princpios reguladores do Cdigo do Consumidor.3.3.1 Princpio da vulnerabilidade do consumidorO art. 4, inciso I, do CDC prev expressamente como princpio regulador do sistema de proteo ao consumo o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Trata-se de princpio basilar, do qual decorrem todos os outros princpios, e que parte do pressuposto da fraqueza manifesta do consumidor no mercado para conferir-lhe certos instrumentos para melhor defender-se3. Na dico de Joo Batista de Almeida (2002 p. 45), (...) trata-se do pilar bsico que envolve a problemtica do consumidor, a servir de justificativa suficiente de sua tutela. No mesmo sentido, proclama Fbio Nusdeo (1992, p. 27): Na realidade, o Cdigo todo uma emanao do princpio da vulnerabilidade e, em certo sentido, justifica-se em funo dele. Como se v, o princpio em apreo de suma importncia para o ordenamento consumerista, chegando a afirmar Hlio Zaghetto Gama (2001, p. 55) que (...) essa qualidade do consumidor na relao a razo de ser de todo osistema protetivo do consumidor. Ademais, saliente-se que o princpio da vulnerabilidade encontra fundamento na prpria Constituio Federal, constituindo desdobramento do princpio maior da isonomia, segundo o qual deve ser dispensado tratamento desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade.3Neste sentido, Jos Geraldo Brito Filomeno (2001)26Na lio de Nelson Nery Jnior (1991, p. 320):(...) o princpio da vulnerabilidade que permeia as relaes de consumo esta em verdade a dar realce especfico ao princpio constitucional da isonomia, dispensando tratamento desigual aos desiguais.Porderradeiro,deve-semencionarqueavulnerabilidadedoconsumidor na relao qualidade intrnseca, ingnita, de todos os consumidores, pouco importando sua condio social, cultural ou econmica, quer se trate de consumidor-pessoa jurdica ou consumidor-pessoa fsica.3.3.2 Princpio da boa-fO princpio da boa-f est previsto expressamente no inciso III do art. 4 e encontra-se permeado em boa parte dos dispositivos do Cdigo do Consumidor, como, por exemplo, no art. 6, no captulo referente reparao dos danos pelo fato do produto e no das prticas comerciais, da publicidade e da proteo contratual (art. 51, inciso IV). O aludido princpio, que significativo de regra geral de conduta, possui uma conotao especial no direito consumerista, exigindo que as partes na relao de consumo atuem com estrita boa-f, dizer, sinceridade, seriedade, lealdade e transparncia, sem objetivos mal disfarados de esperteza, lucro fcil e imposio de prejuzo ao outro. Como bem assevera Joo batista de Almeida (2002, p. 46):Bem por isso que a legislao do consumidor contm diversas presunes legais, absolutas ou relativas, para assegurar o equilbrio entre as partes e conter as formas sub-reptcias e insidiosas de abusos e fraudes engendradas pelo poder econmico para burlar o intuito de proteo do legislador.273.3.3 Princpio da eqidadeEste princpio, que tambm est expressamente inscrito no art. 4 da Lei de Consumo, tem incidncia sobre as relaes contratuais, determinando a existncia de um equilbrio entre direitos e deveres dos contratantes. Conforme anota Joo batista de Almeida (2002, p. 46), busca-se a justia contratual, o preo justo. So expresses deste princpio a vedao das clusulas abusivas, bem como daquelas que proporcionam vantagem exagerada para o fornecedor ou oneram excessivamente o consumidor.3.3.4 Princpio da informaoA informao, como bem aduz Arruda Alvim (1995, p. 48), a (...) tnica do Cdigo do Consumidor. O legislador, ao tipific-la como princpio geral do sistema consumerista (art. 4, inciso IV e VIII), demonstrou a preocupao em exigir que seja o consumidor devidamente informado e educado acerca de eventuais circunstncias que possam influir em seu convencimento no que pertine s relaes de consumo. Para ele, a informao, que tem como corolrio a educao, a verdadeira chave para que, futuramente, venha o consumidor efetivamente a exercer seu direito4.Conforme preconiza Arruda Alvim (1995, p. 49):Em suma, pode-se dizer: quaisquer instrumentos jurdicos, por mais completos, precisos e adequados que possam ser, esbarraro para alcanar a completa efetividade na soluo de problemas de cunho social,4Dispe neste sentido, Arruda Alvim, et al (1995)28ou na soluo dos problemas das relaes de consumo, no vazio cultural que caracteriza a populao brasileira.3.3.5 Princpio da garantia de adequaoO art. 4, em seu inciso II, garantiu ao consumidor a adequao dos produtos e servios por ele adquiridos ao binmio segurana/qualidade. Por este princpio, buscou o legislador a alcanar os objetivos colimados pela Poltica Nacional de Relaes de Consumo (art. 4, caput), quais sejam, o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito sua dignidade, sade e segurana, a proteo de seus interesses econmicos e a melhoria de sua qualidade de vida.3.3.6 Princpio do acesso JustiaEmbora no esteja expressamente previsto no CDC, o princpio do acesso Justia encontra supedneo em diversos dispositivos do Cdigo, tendo notvel importncia no sistema consumerista, uma vez que possibilita o alcance de seus principais objetivos, constituindo um meio para fazer valer as normas estampadas na Lei de Consumo. Nesta consonncia, frise-se que, atravs deste princpio, determinou o legislador a criao de instrumentos processuais adequados para a proteo do consumidor, no sentido de possibilitar que este alcance efetividade de seus direitos.A respeito, ilustrativa a lio de Arruda Alvim (1999, p. 33):(...) em termos processuais, a palavra efetividade alcana uma conotao principalmente sociolgica e no meramente jurdico-formal, mas no sentido de que o que conta, em ltima anlise, no tanto a existncia de uma normatividade completa e lgica, em que todos os direitos so protegidos29pela letra da lei e pelo sistema, mas to-somente aparentemente funcional, pois na verdade, normatividade jurdica, ainda que exaustiva, no suficiente para satisfazer s aspiraes sociais dos seguimentos numericamente predominantes e desprotegidos da sociedade.3.3.7 Princpio da coibio e represso de abusos no mercadoComo j anteriormente anotado, o Cdigo de Consumo no trata apenas do consumidor, mas de ambas as partes na relao de consumo. O princpio em exame expressa essa vertente, na medida em que voltado para o fornecedor, buscando, em primeira anlise, tutelar os interesses deste, e, somente reflexamente, oferecer proteo ao consumidor. O art. 4, inciso VI, do CDC, tipificando este princpio, buscou a almejada ordem econmica (art. 170 da Constituio Federal), delimitando a proteo e o incentivo s prticas leais de mercado. Como assevera Jos Geraldo Brito Filomeno (2001, p. 79), por intermdio da livre concorrncia que se obtm (...) a melhoria da qualidade de produtos e servios, o desenvolvimento tecnolgico na fabricao e melhores opes ao consumidor ou usurio final. Por outro lado, a no garantia da livre concorrncia leva aos abusos no mercado, permitindo a tomada de estratgias desleais por parte dos fornecedores em busca do lucro fcil, acarretando o aumento de preos dos produtos e servios, a queda da sua qualidade, a estagnao tecnolgica e a reduo de alternativas de compras. Outro fator de preocupao no que concerne qualidade dos produtos postos no mercado de consumo a globalizao da economia. A invaso domercado interno por produtos de todas as procedncias e origens dificulta o controle de sua qualidade, podendo levar aquisio de produtos de qualidade duvidosa, como tambm contrafeitos e falsificados. Em sntese, a coibio e represso aos abusos no mercado, uma vez que possibilitam o alcance da aclamada ordem econmica, interferem de forma definitiva para o alcance da efetiva tutela ao consumidor.30Neste sentido, proclama Jos Geraldo Brito Filomeno (2001, p. 80):Portanto, necessrio verdadeiro arsenal legislativo, derivado da prpria Constituio Federal, quando cuida do estabelecimento da ordem econmica, no sentido de se coibirem os abusos do poder econmico, a concorrncia desleal, e a contrafao de marcas, sinais distintivos e outros aspectos que protegem a propriedade industrial, para o fim principal de defesa do consumidor, destinatrio final de tudo quanto colocado no mercado de consumo.3.4 Direitos bsicos dos consumidoresConforme define Voltaire de Lima Moraes (1991) apud Arruda Alvim et al (1995, p. 58):Por direitos bsicos do consumidor deve-se entender o conjunto de normas que tutelam os interesses fundamentais de toda pessoa fsica ou jurdica, que adquire ou utiliza produtos ou servios na condio de destinatrio final no plano material ou instrumental.O art. 6 do Cdigo do Consumidor traz um rol exemplificativo dos direitos bsicos dos consumidores. Como explica Jos Geraldo Brito Filomeno (2001, p. 120), o referido dispositivo (...) uma sntese do que o intrprete ir encontrar nos dispositivos de Direito Material e Processual, j a partir do art. 8 (...). A assertiva acima transcrita se deve ao fato de que, na maioria das vezes, os direitos elencados no artigo em questo so objeto de normatizao especfica por outros dispositivos da lei, funcionando o dispositivo como verdadeira apresentao do Cdigo.Neste sentido, consideram-se direitos bsicos do consumidor, por fora do disposto no art. 6 da Lei de Consumo:313.4.1 A proteo da vida, sade e segurana (inciso I)O inciso I do art. 6 reflete a preocupao do legislador quanto incolumidade das pessoas nos atos de consumo. Conforme preconiza Jos Geraldo Brito Filomeno (2001, p. 123):Tem os consumidores e terceiros no envolvidos em dada relao de consumo incontestvel direito de no serem expostos a perigos que atinjam sua incolumidade fsica, perigos tais representados por prticas condenveis no fornecimento de produtos e servios.Parra Lucan (1990) apud Arruda Alvim et al (1995, p. 60) sobressalta a importncia de tais direitos, asseverando que los problemas de salud y seguridad son de los ms importantes que plantia la proteccin del consumidor So estes direitos considerados inafastveis, e vm tratados pelo Cdigo em seo especial, ditados, prioritariamente, pelos arts. 8, 9 e 10, embora outros dispositivos tambm guardem tal preocupao especfica. A proteo vida, sade e segurana so afetas ao princpio da garantia de adequao (art. 4), uma vez que referem-se ao binmiosegurana/qualidade, impondo ao fornecedor o dever de qualidade dos produtos e servios que presta, no sentido de que eles no acarretem riscos aos consumidores, correspondendo, ltima anlise, s expectativas destes quanto ao produto ou servio no ato de sua aquisio, segundo o que razoavelmente se podia esperar deles.Decorre desse direito o dever de informar do fornecedor, de maneira clara e evidente, sobre os riscos que os produtos e servios possam apresentar. Esta informao deve ser passada atravs da impresso nas propagandas, embalagens, invlucros e incipientes dos produtos, ou dos cartazes onde so feitos os servios, de advertncias ou sinais ostensivos sobre os perigos que acarretam, constituindo-se crime a omisso de tais alertas.32De seu turno, proibido ao fornecedor a colocao no mercado de produtos e servios que apresentem um grau de nocividade ou periculosidade que vai alm do que normalmente se esperaria deles. Quanto a estes ltimos, quando o alto grau de periculosidade ou nocividade for constatado aps a colocao do produto no mercado, deve o fornecedor retir-lo do mercado, mediante o chamado recall, alm de comunicar s autoridades competentes a respeito desses riscos, ensejando a responsabilidade do fornecedor por eventuais prejuzos causados aos consumidores.3.4.2 A educao do consumidor, liberdade de escolha e igualdade nas contrataes (inciso II)A educao de que trata o inciso II do art. 6 deve ser encarada sob dois aspectos: a) a educao formal: dada pelo Estado, atravs dos cursos escolares; b) a educao informal: de responsabilidade dos prprios fornecedores, deve ser dada atravs das tcnicas de marketing. Quanto a esta ltima, ela impe ao fornecedor o dever de imprimir, juntamente com os produtos e servios ofertados, um folheto explicativo sobre a forma de se utilizar ou consumir, visando a no permitir erros por parte dos consumidores. Como ressalta Arruda Alvim (1995, p. 61):H uma proporo direta entre o nvel de informao franqueada ao consumidor e o grau de segurana que ele ter em relao ao produto ou servio, isto , quanto melhor, mais completa e eficiente for a informao sobre as caractersticas do produto e sua forma de mais correta utilizao e possveis perigos, mais seguro, na acepo jurdica do termo, estar ousurio.Em suma, o consumidor deve ser educado, formal e informalmente, para exercer com conscincia sua funo no mercado. Entretanto, este trabalho educativo no tem apenas o condo de informar o consumidor a respeito do produto ou servio ofertado, mas tambm para33que se garanta a ele a liberdade de escolha e a igualdade na contratao, informando-o previamente das condies contratuais, e para que ele no seja surpreendido posteriormente com alguma clusula potestativa do fornecedor ou abusiva. No basta, assim, que se assegure ao consumidor o respeito autonomia da vontade. Deve-se garantir a ele o direito autonomia racional, de modo que ele possa escolher, de forma consciente, dentre os diversos produtos e servios aquele que ele entende mais satisfatrio para as suas necessidades. Por fim, deve-se ainda garantir ao consumidor a igualdade nas contrataes, criando-se mecanismos para impedir que o fornecedor sobreponha a sua vontade do consumidor. A respeito, aduz Antnio Herman de Vasconcellos e Benjamin (2004, p. 148):(...) a nova concepo social levar a um renascimento do formalismo (assim, Malinvald, p. 53), pois o dever de empregar determinadas formas para o nascimento de obrigaes jurdicas representa uma proteo extra para os contratantes menos preparados.3.4.3 A informao sobre produtos e servios (inciso III)Refere-se o Inciso III do art. 6 ao direito de informar o consumidor, relativamente s principais caractersticas dos produtos e servios. Constitui-se o dispositivo em detalhamento do inciso II ora comentado, uma vez que fala expressamente sobre especificaes corretas de quantidade, caractersticas,composio, qualidade e preo, obrigao especfica dos fornecedores de produtos e servios. Para Jos Geraldo Brito Filomeno (2001, p. 125):Trata- se, repita-se, do dever de informar bem o pblico consumidor sobre todas as caractersticas importantes sobre produtos e servios, para que34aquele possa adquirir produtos, ou contratar servios, sabendo exatamente o que poder esperar deles.Tem este dispositivo tambm uma conotao contratual, no sentido de que nada que no se tenha advertido ou informado previamente ao consumidor no que concerne ao produto ou servio adquirido, poder lhe obrigar. Quanto informao prestada, deve ser ela suficiente e adequada, sob pena de considerar-se o produto defeituoso (art. 12, in fine) e viciado (art. 18, caput, e 5), recaindo sobre o fornecedor a responsabilidade objetiva. Saliente-se tambm que a falta ou a omisso das informaes constantes no inciso III do art. 6 constitui crime (art. 66).3.4.4 A proteo contra a publicidade enganosa e abusiva e prticas comercias condenveis (inciso IV)O legislador atribuiu oferta carter vinculativo, determinando a exata correspondncia entre o produto ou servio ofertado e a expectativa despertada no pblico consumidor atravs da propaganda veiculada. Assim, tudo o que constar na propaganda obriga o fornecedor, passando esta a fazer parte do contrato, ainda que de forma informal ou tcita. A oferta publicitria dotada de extrema importncia no mercado de consumo, tendo em vista o seu alcance e sua capacidade de interferir no convencimento do consumidor a respeito da aquisio de determinado produto ouservio. So, desta forma, as modalidades enganosa e abusiva suscetveis de conseqncias bastante severas, em todos os mbitos de incidncia das normas consumeristas. No que tange aos mtodos comerciais coercitivos e desleais referidos no inciso IV em apreo, constituem-se eles em prticas danosas aos consumidores, na medida em que violam frontalmente o princpio da boa-f, e representam35inaceitvel bice transparncia nas relaes de consumo, que um dos objetivos centrais colimados pela Poltica Nacional de Relaes de Consumo (art. 4). A parte final do inciso IV do art. 6 novamente cuida de amparar o consumidor frente aos contratos, principalmente no que tange aos chamados contratos de adeso. Tal proteo conferida a partir do art. 30 do Cdigo, que de forma taxativa e exaustiva reprime as clusulas abusivas ou exageradas nos contratos de consumo.3.4.5 A proteo contratual (inciso V)No que pertine defesa do consumidor no mbito contratual, exaustiva a lio de Nelson Nery Jnior (1991, p. 273-274, que preconiza que o Cdigo do Consumidor:(...) inova e rompe com as tradies do direito privado cujas bases esto assentadas no liberalismo que reinava na poca das grandes codificaes europias do sc. XIX, para: a) relativizar o princpio da intangibilidade do contedo do contrato, alterando sobremodo a regra milenar expressa pelo brocardo pacta sunt servanda e enfatizar o princpio da conservao do contrato (art. 6, V); b) instituir a boa-f como princpio basilar informador das relaes de consumo (art. 4, caput, e inc. III); c) impor ao fornecedor o dever de prestar declaraes de vontade (contrato), se tiver veiculado oferta, apresentao ou publicidade (art. 30); d) estabelecer a execuo especfica da oferta como regra (arts. 35, n. 1 e 84, 1), apenas para dar alguns dos mais significativos exemplos da inovao e modificao das regras privatsticas at ento vigentes para as relaes de consumo, normas estas revisitadas pelo sistema do CDC.Reportando-nos especificamente ao inciso V do art. 6, em suaprimeira parte, ele garante ao consumidor o direito de rever, total ou parcialmente, qualquer contrato assinado por ele, quando, na sua aplicao, for evidente que ficaram estabelecidas prestaes desproporcionais. Trata-se de uma vertente do princpio da equidade, no sentido de que haja uma equivalncia entre os direitos e deveres dos contratantes nas relaes de consumo, e constitui exceo ao princpio do pacta sunt servanda.36A segunda modalidade de proteo contratual especfica encartada neste dispositivo conhecida como teoria da impreviso e institui a chamada clusula rebus sic stantibus, permitindo a reviso do contrato quando ocorrer a supervenincia de onerosidade excessiva, vindo a sobrecarregar o consumidor, decorrentes de acontecimentos sucessivos contratao, insuscetveis de haverem sido previstos. Como se v, o dispositivo em exame relativizou os clssicos da teoria geral dos contratos, como a autonomia da vontade e a fora vinculante do pacto. Alm das duas formas de proteo contratual inscritas no inciso V do art. 6, estabeleceu o Cdigo outra srie de dispositivos destinados a maximizar esta proteo, como, por exemplo, os arts. 18, 2, 30, 40, 46, 47, 49, 51, 52 e 53.3.4.6 A efetiva preveno e reparao de danos individuais e coletivos (inciso VI)O Cdigo estabeleceu diversos mecanismos destinados preveno de danos, impondo aos fornecedores determinadas aes com vistas a no causar danos aos consumidores. Quando, no entanto, no obstante estas medidas impostas aos fornecedores nos atos de consumo, sobrevier danos aos consumidores, o Cdigo buscou dotar estes de instrumentos processuais eficazes para que eles obtenham a efetiva reparao dos danos suportados. O dispositivo encontra estreita relao com o direito de acesso Justia e Administrao Pblica (inciso VII), vias nas quais poder ser pleiteado e obtido o respectivo ressarcimento. Na lio de Hlio Zaghetto Gama (2002, p. 38):Qualquer dano causado ao consumidor pelos fatos que ocorram com os produtos ou servios ou em decorrncia dos usos moderados e recomendados de qualquer bem, deve ser efetivamente indenizado. So esses os chamados prejuzo de consumo, ou seja, os prejuzos37decorrentes ou que ocorrem quando h consumo de um bem ou de um servio.Na mesma consonncia, prescreve Arruda Alvim (1995, p. 66):Todo o sistema processual criado pelo CDC leva em seu bojo a finalidade de possibilitar uma efetiva atividade processual e conseqente proteo judiciria s relaes de consumo, de forma a tornar possvel a concreta e efetiva realizao de todos os direitos outorgados ao consumidor e a real reparao dos danos sofridos ao consumidor, com disposies expressas referentes defesa deste em juzo (ver arts. 81 a 89 e 91 a 102).3.4.7 O acesso aos rgos Judicirios e Administrativos e a proteo aos necessitados (inciso VII)Como bem obtempera Hlio Zaghetto Gama (2002, p. 39), uma coisa ter o Direito, outra poder contar com os mecanismos da Administrao Pblica ou da Justia, para algum fazer prevalecer o seu Direito. Neste diapaso, o Cdigo, cuidando da defesa do consumidor em Juzo, ressaltou que o acesso Justia, em sede de relaes de consumo, deve ser universal, no sentido de se dotar o consumidor de instrumentos adequados para demandar em face do fornecedor, sobretudo se aquele for pessoa hipossuficiente, quando ento lhe dever ser proporcionada assistncia jurdica em qualquer circunstncia. Neste ponto, merecem destaque as aes coletivas, de legitimidade do Ministrio Pblico, cabveis quando houver danos coletivos ou difusos, ou quando simplesmente houver perigo da ocorrncia de tais danos (vide art. 81).3.4.8 A inverso do nus da prova (inciso VIII)De uma forma geral, a realizao de prova cumpre a quem alega determinado fato. Tratando-se de relaes de consumo, todavia, em decorrncia da38vulnerabilidade manifesta do consumidor na relao, pode o Juiz, a seu critrio, em situaes que se justifiquem, ante a verossimilhana da afirmao do consumidor, ou constatada sua hipossuficincia, inverter o nus probandi, facilitando a defesa dos seus direitos. Trata-se de outra norma de natureza processual civil que resulta da aplicao do princpio constitucional da isonomia (art. 5, caput, e inciso I), buscando equilibrar a posio das partes, diante da vulnerabilidade do consumidor, que no apenas scio-econmica, mas tambm de cunho tcnico e dificuldades de acesso Justia. Para tanto, deve o Juiz, servindo-se das regras de experincia, verificar se a afirmao do consumidor verossmil, ou, no havendo verossimilhana, deve o Juiz analisar a existncia de hipossuficincia, que pode decorrer da dificuldade de produzir prova luz da falta de informao e de conhecimentos especficos acerca do produto ou servio, ou da dificuldade econmica da prova.3.4.9 A eficincia dos servios pblicos (inciso IX)O dispositivo determina ao Poder Pblico que, quando provisione no mercado de consumo, quer atravs de suas empresas, quer atravs de concessionrios, o faa de forma adequada e eficaz. Deve-se tem em conta que os servios mencionados no inciso IX do art. 6, no se confundem com os servios pblicos propriamente ditos, como, por exemplo, a educao e a sade pblica. Estes decorrem da atividade precpua doEstado, ao propiciar o bem comum da populao, e so remunerados mediante o pagamento de tributos. J os servios pblicos em questo so aqueles colocados a disposio dos consumidores, que retribuem mediante o pagamento de tarifa ou preo pblico.394 DIREITO PENAL DO CONSUMO4.1 Consideraes preliminaresO Direito Penal do Consumo de origem relativamente recente na legislao brasileira. Surgiu como ramo do Direito Penal Econmico, decorrente das profundas modificaes havidas na sociedade ps-industrial. Reflete, assim, o Direito Penal do Consumo, o surgimento de novos interesses antes inexistentes, e que guardam estreita ligao com o processo de desenvolvimento da sociedade. O extraordinrio avano tecnolgico e industrial, aliado ao constante processo de complexidade das relaes sociais, veio acompanhado da crescente produo de riscos. Estes riscos, provenientes de decises humanas no manejo dos avanos tcnicos, so referentes a danos no delimitveis, globais, e, com freqncia, irreparveis, que afetam a todos os cidados5. Este modo social ps-industrial, caracterizado como sociedade de riscos, ocasionou uma enorme sensao social de insegurana por parte dos cidados, que passaram cada vez mais a viver com medo, decorrente da dificuldade de adaptao na sociedade em contnua acelerao, e da falta absoluta de controle sobre os acontecimentos. Com isso, houve uma crescente demanda por mais proteo, ou seja, a sociedade passou cada vez mais a recorrer ao aparato Estatal para, atravs do Direito Penal, tomar de medidas com vistas a reduzir os riscos gerados pelosavanos tecnolgicos. Como bem assevera Silva Snches (2002, p. 41):A soluo para a insegurana, ademais, no se busca em seu, digamos, lugar naturalclssico o direito de polcia -, seno no Direito Penal. Assim,5Neste sentido, Silva Snches (2002)40pode-se afirmar que, ante os movimentos sociais clssicos de restrio do Direito Penal, aparecem cada vez com maior claridade demandas de uma ampliao da proteo penal que ponha fim, ao menos nominalmente, a angstia derivada da insegurana.Estas modificaes sociais deram lugar a uma nova forma de delinqncia, denominada delinqncia dos poderosos ou das empresas (crimes of the powerful), com caractersticas essencialmente distintas da delinqncia clssica. Diante dessa nova forma de criminalidade, h uma mudana na viso geral da sociedade do papel do Direito Penal. As classes inferiores comeam a se ver mais como vtimas potenciais do que como autores potenciais dos delitos, e isso gera uma grande aceitao por parte de alguns setores da sociedade da interveno do Direito Penal nesta rea. A respeito, Silva Snches (2002, p. 51) proclama que:(...) de uma situao em que se destacava sobretudo a espada do Estado contra o delinqente desvalido, se passa a uma interpretao do mesmo como a espada da sociedade contra a delinqncia dos poderosos., ento, dentro deste contexto social, que nasce o Direito Penal do Consumo, como manifestao dos reclamos da sociedade por uma maior proteo, diante dos enormes riscos representados pelo irrefrevel processo de complexidade dos meios de produo e fornecimento de bens, e pelo desproporcionado aumento do poderio econmico apresentado pelos fornecedores. No entanto, a interveno penal nas relaes de consumo vem permeada de questes controvertidas, a comear pela dificuldade de delimitao de seu objeto de tutela, considerando sua natureza trans-individual, e passando pela prpria legitimidade de interveno penal nesta rea, ante aos postulados do DireitoPenal mnimo. Ressalte-se que a grande questo que se impe na doutrina refere-se incapacidade do Direito Penal clssico de lidar com essas novas formas de criminalidade hauridas do contexto social ps-moderno, principalmente no que tange delinqncia econmica. Isto se d porque, como j mencionado, os delitos econmicos so essencialmente distintos dos delitos tradicionais.41Dessarte, tendo em vista as especiais caractersticas apresentadas pela delinqncia contra o consumo, o presente trabalho ter o desiderato de estudar as intervenes legislativas j realizadas neste campo, analisando a tipologia criminal adotada pelo legislador no combate criminalidade consumerista, em contraposio com os princpios garantistas do Direito Penal.4.2 Apontamentos relativos ao bem jurdico-penalUma primeira questo que se impe na doutrina refere-se dignidade da relao de consumo para ser alada condio de bem jurdico-penal. H um seguimento da doutrina que critica a interveno do Direito Penal nesta rea, por considerar ilegtima a ereo da relao de consumo a um bem jurdico-penal, ante aos postulados de um Direito Penal democrtico. Assim, antes de estudarmos o bem jurdico especfico dos delitos de consumo, realizaremos um breve aclaramento sobre o bem jurdico-penal de maneira geral, analisando sua evoluo conceitual e suas funes, mais especificamente no que tange sua funo de limitao da atividade legiferante em matria penal, estabelecendo quais os parmetros estabelecidos na doutrina para a seleo dos bem jurdicos dignos de tutela penal, para posteriormente ponderarmos acerca da considerao das relaes de consumo como um bem jurdico-penal. Outrossim, ser analisada tambm a questo da classificao das relaes de consumo como um bem jurdico de natureza macrossocial, e suas conseqncias no mbito da delimitao do injusto penal.4.2.1 Evoluo conceitual e funes do bem jurdico-penalEm eras pretritas, o ilcito penal tinha dimenso eminentemente privada. Inexistia a noo de um bem jurdico como objeto da tutela penal. A42proteo penal, nesta poca, se dirigia aos interesses divinos, e o delito era tratado como desobedincia vontade divina. Com o Iluminismo, iniciou-se a busca por um conceito material de delito. O crime passou ento a ser concebido como a leso a um direito subjetivo, e o delito encontrava sua razo de ser no contrato social violado. Fewerbach foi um dos principais pensadores dessa poca. A concepo de delito como leso de um bem jurdico, entretanto, surgiu somente com Birnbaum, sendo este pensador o responsvel por uma primeira materializao do objeto de proteo do direito penal, o que o levou a ser considerado tambm por muitos o precursor do conceito de bem jurdico-penal. Partindo da idia formulada por Birnbaum, Binding criou uma nova concepo de bem jurdico eminentemente formal. Atravs de uma viso positivista, ele sustentava ser a norma a nica e definitiva fonte de revelao do bem jurdico. Assim, o importante no era o efetivo valor conferido ao bem pela sociedade, mas a escolha feita por parte do legislador. Os bem jurdicos seriam criados pela lei, e no apenas reconhecidos por ela6. Por esta corrente, no existiam parmetros limitativos para o legislador penal. O indivduo era deixado ao arbtrio estatal. Posteriormente, como reao contrria ao tratamento cientfico formal da norma, originou-se a dimenso material do conceito de injusto penal. Franz von Liszt defendia a preexistncia dos bem jurdicos atividade do legislador. Para ele, o bem jurdico constitua antes de tudo uma realidade vlida em si mesma, cujo contedo axiolgico no dependia do juzo do legislador, constituindo um dado social preexistente7. Atravs desta concepo, o bem jurdico desenvolveu toda sua capacidade de limitao ao legiferante. A partir do comeo do sculo XX surge o pensamento neokantiano, e obem jurdico passa a ser entendido como um valor cultural8. Atravs deste pensamento, procura-se vincular o bem jurdico ratio legis da norma. O bem jurdico convertido em elemento de interpretao da norma penal, no cumprindo, destarte, sua funo limitadora atravs dessa concepo.67Cf Yuri Carneiro (2003).Neste sentido, Luiz Regis Prado (2003).8Neste sentido, Juarez Tavares (2003).43Surge tambm a viso funcionalista preconizada por Jakobs, que enfrenta a questo do bem jurdico partindo da idia de que o fim do direito penal est situado na estabilidade da norma penal. Jakobs nega, assim, validade ao bem jurdico, conferindo ao direito penal a funo de estabilizar a ordem social e no de proteger bens jurdicos. Exposto, deste modo, em apertada sntese, o tema relativo evoluo histrica da concepo do bem jurdico-penal, passemos anlise de seu conceito atual. Sobre o assunto, cumpre observar, inicialmente, que o postulado de que o delito constitui leso ou perigo de leso a um bem jurdico aceito por praticamente toda a doutrina, constituindo quase um verdadeiro axioma (princpio da exclusiva proteo de bens jurdicos). Reportando-nos ao conceito e ao contedo do bem jurdico-penal, no entanto, observa-se que h grande controvrsia tanto na doutrina estrangeira quanto na doutrina ptria. Arturo Rocco (2001, p. 273-278), aspirando delimitar o conceito de bem a partir da idia de utilidade, o definiu como (...) tudo o que, existindo como realidade diante da considerao da conscincia humana, apto para satisfazer uma necessidade humana. J no que concerne aos bem jurdicos, Claus Roxin (1972) apud Luiz Regis Prado (2003, p. 47), os conceituou como:(...) pressupostos imprescindveis para a existncia em comunidade que se caracterizam numa srie de situaes valiosas, como, por exemplo, a vida, a integridade fsica, a liberdade de atuao, ou a propriedade, que toda a gente conhece, e, na sua opinio, o Estado social deve tambm protegerpenalmente.Zaffaroni (1982, p. 238), por seu turno, partiu de uma idia distinta, considerando bem jurdico-penal como:(...) a relao de disponibilidade de uma pessoa com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante normas que probem44determinadas condutas que as afetam, aquelas que so expressadas com a tipificao dessas condutas.J Hans Welzel (1969) apud Francisco de Assis Toledo (1994, p. 16), concebeu o bem jurdico como uma situao social desejada, e que, portanto, merece proteo pelo Direito Penal contra leses, o definindo como (...) um bem vital ou individual que, devido ao seu significado social, juridicamente protegido. Na doutrina nacional, igualmente, no h consenso acerca da delimitao conceitual do bem jurdico. Segundo Nelson Hungria (1958, p. 10-11), bem seria (...) tudo aquilo que satisfaz a uma necessidade da existncia humana. E define bem jurdico como (...) aquele que incide sobre a proteo do direito in genere e dispe da reforada tutela penal. Francisco de Assis Toledo (1994, p. 16), por sua vez, define bem jurdico como (...) valores tico-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteo para que no sejam expostos a perigo de ataque ou leses efetivas. E conceitua o bem jurdico-penal (1994, p. 17) como (...) aquele que esteja a exigir uma proteo especial, no mbito das normas de direito penal, por se revelarem insuficientes, em relao a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurdico, em outras reas extrapenais Entendimento semelhante contempla Srgio Chastinet DuartGuimares (2004, p. 44), para quem o bem jurdico-penal constitui (...) o valor socialmente relevante que o direito protege mediante a cominao de pena aflitiva. Heleno Cludio Fragoso (1985, p. 277-278) tambm concebeu o bem jurdico partindo da idia de um valor, afirmando constituir ele em (...) um valor davida humana que o direito reconhece, e a cuja preservao disposta a norma. Por fim, cumpre transcrever o entendimento de Luiz Regis Prado (2003, p. 52), para quem:(...) o bem jurdico vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual, reputado essencial para a coexistncia e o desenvolvimento do homem em sociedade e, por isso, jurdico-penalmente protegido.45Deste modo, conforme demonstrado alhures, em que pese o reconhecimento quase que unvoco por parte da doutrina quanto fundamental importncia do bem jurdico para a delimitao do injusto penal, o seu contedo ainda no possui uma demarcao precisa. J no que pertine s funes atribudas ao bem jurdico, a doutrina no diverge, elencando quatro funes essenciais. A primeira e mais importante delas, consiste na funo de garantia ou de limitao do direito de punir do Estado. Conforme determina o postulado de Direito Penal nullun crimen sine injuria (princpio da lesividade), o legislador penal no pode tipificar seno aquelas condutas graves que lesionem ou coloquem em perigo autnticos bem jurdicos. Janana Conceio Paschoal (2003, p. 25) procurou reforar esse desiderato primordial dos bens jurdico-penais de limitao ao jus puniendi estatal, partindo do pressuposto da gravidade representada pela interveno penal na esfera individual, tendo em vista que incide sobre dois direitos fundamentais albergados pela Carta Magna, quais sejam a liberdade e a dignidade. E sob essa tica ela asseverou:Em razo do grau de interveno representada pelo Direito Penal, filsofos e penalistas passaram a desenvolver teses e teorias objetivando delimitar as situaes em que o Estado poderia utilizar sua arma mxima, concebendose que um dos institutos criados para tal fim foi o do bem jurdico penal, que, durante toda sua histria, independentemente da concepo adotada, cumpriu uma funo de garantia para os indivduos, na medida em que sempre teve em vista a reduo do arbtrio ou subjetivismo do legislador.A mencionada doutrinadora ainda procurou fundamentar a funo de garantia do bem jurdico nos princpios norteadores do Direito Penal mnimo, salientando que (2003, p. 48):(...) o carter limitador do bem jurdico fica expresso quando analisados os princpios informadores do Direito Penal mnimo (subsidiariedade, fragmentaridade e lesividade), segundo os quais nem tudo pode ser considerado bem jurdico penal; mesmo o que pode ser no precisa estar46tutelado de todos os tipos de leso, e apenas as efetivas leses, ou exposio concretas a perigo, podero justificar a existncia de crime.Juarez Tavares tambm reforou a funo de limitao do bem jurdicopenal frente ao direito de punir do Estado, asseverando que (2003, p. 201) (...) a punio criminal unicamente uma contingncia de ultima ratio. Deve-se concluir, ento, que a noo de bem jurdico no pode ser posto como legitimao da incriminao, mas como sua delimitao. imperioso ressaltar aqui que, partindo do reconhecimento quase que unssono por parte da doutrina acerca do carter limitador do bem jurdico, os doutrinadores passaram a se preocupar em construir critrios precisos de identificao dos bem jurdicos merecedores de tutela penal em nosso sistema jurdico. Por derradeiro, alm da funo limitadora, os pensadores ainda atribuem ao bem jurdico uma funo teleolgica, que o identifica como critrio de interpretao dos tipos penais, uma funo individualizadora, que atribui ao bem jurdico um papel na fixao da penal, determinando a considerao acerca da gravidade de sua leso, e uma funo sistemtica, que considera o bem jurdico como elemento classificatrio decisivo na formao dos grupos dos tipos da parte especial do Cdigo Penal.4.2.2 Concepo atual do bem jurdico-penalBuscando fixar concretamente os critrios pelos quais se deve proceder seleo dos bens e valores fundamentais da sociedade, aqueles merecedores de tutela penal, com o escopo de fazer com que o bem jurdico cumpra sua funo de garantia do postulado da liberdade e de um Direito Penal democrtico, a doutrina mais uma vez se posicionou de forma contraditria, fazendo surgir trs correntes de pensamento sobre o bem jurdico.47Dentre essas trs correntes, merecem maior ateno as teorias constitucionais e as teorias sociolgicas, uma vez que a teoria tico-social teve pouca repercusso. As teorias sociolgicas se caracterizam pelo fato de procurar fornecer instrumentos para a determinao do contedo material do bem jurdico priorizando aspectos de natureza sociolgica. Atravs destas teorias, o bem jurdico situado diretamente na realidade social. As duas principais teorias representativas desta corrente so a teoria funcionalista-sistmica, que ressalta o aspecto da danosidade social, apresentando uma concepo do injusto como uma disfuncionalidade do sistema social, e a teoria do conflito, que atribui ao Direito Penal a funo de controle social e manuteno das estruturas socioeconmicas de uma dada sociedade.Sobre essa ltima teoria, importante mencionar o peculiar posicionamento de Nilo Batista (1990, p. 96) que, em sua obra Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro, desenvolveu uma concepo classista do bem jurdicopenal, afirmando que:Numa sociedade de classes, os bem jurdicos ho de expressar, de modo mais ou menos explcito, porm inevitavelmente, os interesses da classe dominante, e o sentido geral de sua seleo ser o de garantir a reproduo das relaes de dominao vigentes, muito especialmente das relaes econmicas estruturais.No entanto, em que pese as teorias sociolgicas terem procurado determinar o contedo material do bem jurdico, elas no obtiveram muito sucesso, uma vez que no foram capazes de oferecer critrios seguros para a seleo dos bem jurdicos dignos de proteo pelo Direito Penal. Quanto s teorias constitucionais, elas tiveram maior repercusso nadoutrina, tendo em vista que procuraram formular critrios capazes de se impor de modo necessrio ao legislador ordinrio, limitando-o no momento de criar o ilcito penal. Por essas teorias, o conceito de bem jurdico deve ser inferido da Constituio Federal. Os contornos do injusto penal, desta forma, so traados a partir dos princpios e dos valores albergados na Carta Magna.48Em defesa desta concepo constitucionalista, exaustiva a lio de Luiz Regis Prado (2003, p. 92):Encontram -se, portanto, na norma constitucional, as linhas substanciais prioritrias para a incriminao ou no de condutas. O fundamento primeiro da ilicitude material deita, pois, suas razes no Texto Magno. S assim a noo de bem jurdico pode desempenhar uma funo verdadeiramente restritiva. A conceituao material de bem jurdico implica o reconhecimento de que o legislador eleva categoria de bem jurdico o que j na realidade social se mostra como um valor. Esta circunstncia intrnseca norma constitucional, cuja virtude no outra seno a de retratar o que constitui os fundamentos e os valores de uma determinada poca. No cria os valores a que se refere, mas limita-se a proclam-los e a dar-lhes um especial tratamento jurdico.Da mesma forma, Janana Conceio Paschoal (2003, p. 50) aduz que:Se a liberdade um bem constitucionalmente relevante, o bem cujo ferimento pode ensejar a privao da liberdade necessariamente h de ter relevncia constitucional, ou, como se vem asseverando pela doutrina, o bem h de merecer tutela penal ou ser digno dela.No entanto, no obstante prevalea na doutrina o entendimento de que o bem jurdico tutelado penalmente deve ter por suporte um valor de cunho constitucional, advertem os pensadores no serem todos os valores albergados pela Constituio merecedores da proteo penal, mas somente aqueles valores fundamentais para a convivncia em sociedade9.4.2.3 As relaes de consumo como um bem jurdico-penal e sua natureza trans-individualPartindo da concepo atual de bem jurdico acima estudada, resta-nos agora ponderarmos acerca da considerao das relaes de consumo como um bem jurdico merecedor de proteo penal.9Cf Yuri Carneiro (2003)49Inicialmente, importante esclarecer que nos delitos estampados no Cdigo do Consumidor a tutela dirigida prpria relao de consumo, identificada como um bem jurdico de natureza supra-individual, e no aos consumidores individualmente considerados10. Os interesses individuais dos consumidores constituem to-somente uma objetividade jurdica secundria das normas penais de consumo. Neste sentido, Antnio Herman de Vasconcellos e Benjamin (2007, p. 110) acentua que o Direito Penal do Consumo (...) visa garantir o respeito aos direitos e deveres decorrentes do regramento civil e administrativo que orienta as relaes entre fornecedores e consumidores. Defende, dessarte, o aludido autor, o carter instrumental do Direito Penal do Consumo, haja vista que suas sanes se destinam a assegurar o respeito a direitos e deveres estabelecidos por normas nopenais. Damsio Evangelista de Jesus (1995, p. 14), por seu turno, assevera que o autor do crime contra o consumo lesa o mnimo da relao de confiana exigida pelo legislador nas relaes entre produtor e consumidor. No que tange ao fundamento constitucional, a tutela das relaes de consumo encontra respaldo nas normas dos arts. 5, inciso XXXII, e 170, inciso V, da Lei Maior. Disto j se infere a elevada categoria constitucional em que o constituinte inseriu a defesa do consumidor, haja vista a localizao do referido art. 5 dentro dos denominados direitos e garantias individuais (Ttulo II), inserindo a proteo ao consumidor no rol dos direitos fundamentais11. Ademais, o Texto Constitucional elevou a defesa do consumidor a princpio da ordem econmica (art. 170, inciso V), o que reforou ainda mais a proteo do consumidor como um valor constitucional fundamental. Com base nosdois preceitos constitucionais retro-aludidos, Eliana Passarelli (2002, p. 19) concluiu que assim sendo, possvel o Estado intervir, de todas as formas que lhe couber, visando assegurar a defesa do consumidor.10 Cf Luiz Regis Prado (2004)11 Dispe neste sentido, Eliana Passarelli (2002)50Luiz Luisi (2003, p. 59) tambm reforou a importncia desses preceitos constitucionais dirigidos defesa do consumidor, os considerando como sugestes criminalizadoras. Contudo, para melhor demonstrarmos o elevado grau de relevncia que possui a relao de consumo na sociedade contempornea, necessrio tecermos algumas consideraes acerca do surgimento dos denominados bens jurdicos coletivos ou difusos. Os bens jurdicos coletivos ou difusos, tambm denominados bens trans-individuais ou macrossociais, so bens jurdicos que ultrapassam a esfera individual e se projetam em um grupo ou na sociedade globalmente considerada 12. Afetam, assim, um grupo de pessoas ou toda a coletividade, sem deixar, todavia, de envolver o indivduo como membro indistinto de uma comunidade13. O surgimento desses novos bens se deve ao processo de desenvolvimento econmico, que gerou a necessidade de estabelecimento de meios adequados de controle de mercado. Na dico de Luiz Regis Prado (2003, p. 106), esses bens (...) emergem como bens jurdicos relacionados com o desenvolvimento tcnico e cientfico, frutos em grande parte da sociedade ps-industrial, na qual novos riscos so criados ou incrementados pelos processos de alta tecnologia. Silva Snches14 se refere aos bens coletivos como novas realidades, em cujo contexto o indivduo tem que viver, e que se v profundamente atingido por suas alteraes. Ressalta, assim, o autor (2002, p. 28), a elevada importncia desses novos interesses, destacando que eles (...) realam a crescente dependncia do ser humano de realidades externas ao mesmo, como o caso da normal atividade de determinados terceiros. Sobre o surgimento desses novos bens, Gianpaolo Poggio Smanio(2000, p. 27) assevera que a sociedade de massa trouxe fenmenos sociais e jurdicos que no poderiam ser adequadamente resolvidos dentro da legislao ento vigente, fundamentada na proteo individual. Concluindo que: Por isso,12 Cf Luiz Regis Prado (2003) 13 Alguns doutrinadores so contrrios a essa distino entre bens individuais e coletivos ou difusos. Juarez Tavares (2003, p. 203), por exemplo, preconiza o contedo estritamente pessoal de todos os bens jurdicos, ressaltando que nos bens jurdicos coletivos apenas no se possvel identificar a pessoa do titular. E defende que essa diviso entre bens jurdicos individuais e supra-individuais pode conduzir a confuso entre bem jurdico e funo. 14 Silva Snches (2002, p. 27).51hoje, a tutela penal dos interesses difusos uma necessidade indispensvel, porque visa proteger bens valiosos para a sociedade. Luiz Luisi (2003, p. 14) tambm defende a criminalizao de condutas lesivas a interesses coletivos, como exigncia dos postulados de um Estado social (Sozialstaats), o qual se proporia:(...) a fazer do direito penal, no o exclusivo, mas um dos instrumentos necessrios correo das distores causadas por um individualismo exacerbado favorecendo a homogeneizao social, com vistas a realizao da igualdade concreta possvel entre os cidados, ou seja, com a finalidade de contribuir para que se realize uma sociedade dotada de justia material.Da mesma forma, e ressaltando o valor dos bens jurdicos supraindividuais, Luiz Regis Prado (2003, p. 107) aduz que:Esses bens jurdicos, prprios do Estado Social de Direito, so primordiais para o desenvolvimento das potencialidades do ser humano enquanto pessoa, bem como sua real integrao (social, poltica, cultural e econmica) em uma coletividade organizada.Assim, partindo da anlise da relao de consumo como um bem jurdico supra-individual, porque interessa sociedade em geral, e tendo em vista as bases da nossa sociedade hodierna, que estruturada sobre o consumo de massa, grande seguimento da doutrina se posicionou no sentido do valor fundamental representado pela relao de consumo na sociedade, concluindo ser ela digna de tutela penal15. Nada obstante, cabe fazermos uma pequena considerao acerca da dificuldade de determinao do bem jurdico no mbito supra-individual.Como os bens jurdicos coletivos ou difusos constituem bens jurdicos imateriais, haja vista que no tm realidade material-naturalstica 16, alguns autores criticam a proteo penal a esses bens jurdicos sob o argumento de que eles no15 Neste sentido, Pedro Ivo Andrade (2007), Antnio Herman de Vasconcellos e Benjamin (2006), JosGeraldo Brito Filomeno (1999) e Arruda Alvim et al (1995). 16 Neste sentido, Antnio Herman de Vasconcellos e Benjamin (2006)52cumpririam a funo de delimitao do injusto penal, por no possurem uma definio exata. Com efeito, os bens jurdicos prprios ao Direito Penal tradicional so de fcil determinao, uma vez que, estando diretamente relacionados pessoa, sua ofensa de fcil percepo, o que no ocorre com os delitos que afetam interesses difusos, haja vista que, com relao a esses crimes, no h referncia a um bem jurdico concreto e individualizvel17. Sobre o assunto, salienta Renato de Mello Jorge Silveira (2003, p. 181) que:Os interesses difusos, quer por representarem nova rea de abordagem penal, quer por significativa influncia dos gestores atpicos da moral, quer, ainda, por sua implicao social, mostram -se como elemento de turbulncia no Direito Penal. Sua recente presena em diversos dispositivos legais, delineando uma expanso assombrosa deste ramo jurdico, da vazo a questionamentos sobre se, de fato, ele o melhor e mais eficiente campo para sua devida proteo.Desta forma, devido a essa dificuldade de delimitao do bem jurdico no mbito supra-individual, mesmo os autores que defendem a interveno penal nesta rea advertem que ela deve ser feita de forma muito cuidadosa e seletiva, sempre primando pela maior preciso possvel das fronteiras do injusto penal, de acordo com os princpios penais fundamentais inerentes a um Estado Democrtico de Direito18.4.3 A tutela penal do consumo frente aos princpios da interveno mnima e da fragmentariedade do Direito PenalSuperada essa questo afeta dignidade da relao de consumo para ser erigida condio de bem jurdico-penal, cumpre-nos agora analisarmos as17 Cf Srgio Chastinet Duart Guimares (2004).18 Neste sentido, Gianpaolo Poggio Smanio (2003)53intervenes legislativas j realizadas nesse campo, contrapondo-as com os princpios penais de garantia. Nesta consonncia, no que afeta ao princpio da interveno mnima, Luiz Luisi (2002, p. 39) ensina que ele preconiza que:(...) s se legitima a criminalizao de um fato se a mesma constitui meio necessrio para a proteo de um determinado bem jurdico. Se outras formas de sano se revelam suficientes para a tutela desse bem, a criminalizao incorreta. Somente se a sano penal for instrumento indispensvel de proteo jurdica que a mesma se legitima.Trata-se de um princpio constitucional implcito 19 que reclama a imprescindibilidade da interveno penal para a tutela de determinado bem jurdico para sua legitimao. Impe, pois, a concepo do direito penal como um remdio ltimo, cuja presena s se legitima quando fracassadas as demais formas de proteo do bem jurdico atravs de reas de direito extrapenais. Sobre o carter subsidirio do Direito Penal, Fabin I. Balcarce (2003, p. 88) proclama que:El Principio de subsidiariedad se conceptualiza tradicionalmente diciendo que es aquel por el cual el derecho penal debe aplicarse en ltimo trmino, esto es, una vez que los restantes medios menos lesivos con que cuenta el Estado constitucionalde derecho se hayan mostrado ineficaces para resolver el conflicto que, para los intereses vitales de la sociedad, implica la comisin de los delitos.O princpio da fragmentariedade corolrio do princpio anterior e determina que o Direito Penal atue somente contra as leses mais graves praticadas contra bens jurdicos valiosos. Determina, assim, na dico de Damsio Evangelista de Jesus (2001, p. 10), que o Direito Penal intervenha (...) somente nos casos demaior gravidade, protegendo um fragmento dos interesses jurdicos. Partindo dessa concepo do Direito Penal como ltima ratio, muitos doutrinadores passaram a criticar a interveno penal nas relaes de consumo por considerar que, embora dotada de valor fundamental para a sociedade19Cf Luiz Luisi (2002)54contempornea, elas poderiam ser eficazmente protegidas por outros ramos de proteo jurdica. Neste passo, embora reconhea a premente necessidade de efetiva proteo aos consumidores na sociedade atual, que se apresenta como eminentemente consumerista, Luiz Regis Prado (2003, p. 98) critica os dispositivos penais insertos no Cdigo de Defesa do Consumidor, aduzindo que:(...) fica assentado em matria penal o carter altamente criminalizador da Lei 8.078/1990, visto que erige categoria de delito uma grande quantidade de comportamentos que, a rigor, no deveriam passar de meras infraes administrativas, em total dissonncia com os princpios penais da interveno mnima e da insignificncia.Da mesma forma, Srgio Chastinet Duart Guimares (2004. p. 11) entende que os delitos de consumo extrapolam os limites do Direito Penal tradicional, ferindo o princpio da interveno mnima. Para ele, a tutela penal no se mostra como meio estritamente necessrio para a proteo da relao de consumo, aduzindo que: Tal posio fica reforada pelo enfoque estritamente civilstico da matria, que encerra todo o garantismo na idia de proteo contratual e contribui para tornar o sistema penal ainda mais irracional e violento. Contrapondo tal posio, Eliana Passarelli (2002, p. 35-36) defende a absoluta necessidade de criminalizao de condutas atentatrias s relaes de consumo, sob o argumento de que os demais ramos de tutela jurdica seriam incapazes de proteger eficazmente o bem jurdico relaes de consumo, em virtude do poderio econmico apresentado pelos fornecedores, infratores por excelncia das normas estampadas no Cdigo de Defesa do Consumidor. Antnio Herman de Vasconcellos e Benjamin (1995, p. 39) tambmdestaca a importncia da interveno penal nas relaes de consumo, aduzindo que:(...) em face do valor normalmente irrisrio do dano individual e da diversidade do interesse dos consumidores, com a pulverizao das vtimas, cabe exatamente ao Direito Penal atuar no sentido de no deixar impunes comportamentos imensamente danosos e socialmente condenveis, quando considerados de modo global, ou seja, quando enxergados no contexto da sociedade de consumo como um todo.55Importante contribuio sobre o tema foi trazida pelo doutrinador espanhol Silva Snches20 que, em sua obra A Expanso do Direito Penal procurou analisar essa tendncia que vem se mostrando dominante em todas as legislaes penais, no sentido da criao de novos tipos penais para a defesa de interesses supra-individuais, e as sensveis mudanas que isso vem causando no mbito da dogmtica penal. Destacou, desta forma, algumas causas do que denominou de expanso do direito penal, dentre as quais podemos citar: o surgimento de novos interesses (referindo-se aos interesses coletivos ou difusos); o efetivo aparecimento de novos riscos, decorrentes do avano tecnolgico; a sensao soc