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VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar A EXPRESSÃO LIVRE DE UM VISION Á RIO Especialista conta como Arthur Bispo do Rosário enfrentou a opressão do sistema psiquiátrico. Páginas 10 e 11 Apocalipse poético Entrelinhas AUTORA NINA SANKOVITCH MOSTRA COMO OS LIVROS A AJUDARAM A SUPERAR A DOR DA PERDA. Página 3 Filme A MÚSICA SEGUNDO TOM JOBIM TEM HARMONIA, BELEZA E FALHAS. Página 5 Memória BIOGRAFIA E COLETÂNEA LEMBRAM A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE MÁRIO GURGEL. Página 8 Ficção CONTO INÉDITO DE ISABEL VASCONCELLOS DESCREVE MULHER ENTRE A RAZÃO E A EMOÇÃO. Página 12 PREVISÕES SOBRE O FIM DO MUNDO EM 2012 INSPIRAM CRIAÇÕES DE TRÊS POETAS Páginas 6 e 7 DIVULGAÇÃO Pôster do filme 2012”, de Roland Emmerich: a destruição do planeta é retratada com frequência pelo cinema norte-americano

Penar Completo0203

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Suplemento de Cultura de A Gazeta

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VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012www.agazeta.com.brPensar

A EXPRESSÃOLIVRE DE UMVISIONÁRIOEspecialista contacomo Arthur Bispodo Rosárioenfrentou aopressão dosistemapsiquiátrico.Páginas 10 e 11

Apocalipse poético

EntrelinhasAUTORA NINASANKOVITCHMOSTRA COMOOS LIVROS AAJUDARAM ASUPERAR A DORDA PERDA.Página 3

FilmeA MÚSICASEGUNDO TOMJOBIM TEMHARMONIA,BELEZA EFALHAS.Página 5

MemóriaBIOGRAFIA ECOLETÂNEALEMBRAM ATRAJETÓRIAPOLÍTICA DEMÁRIO GURGEL.Página 8

FicçãoCONTO INÉDITODE ISABELVASCONCELLOSDESCREVEMULHER ENTREA RAZÃO E AEMOÇÃO.Página 12

PREVISÕES SOBRE O FIM DO MUNDO EM 2012INSPIRAM CRIAÇÕES DE TRÊS POETAS Páginas 6 e 7

DIVULGAÇÃO

Pôster do filme “2012”, de Roland Emmerich: a destruição do planeta é retratada com frequência pelo cinema norte-americano

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:52:26

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,3 DE MARÇODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Maria Amélia DalviéprofessoradaUfes,mestreemLetrasedoutoraemEducaçã[email protected]

LúciaCausédiretoradoVitóriaCineVí[email protected]

AndréAndrèsécríticodevinhosdaRevista.AGegostadebossanova. [email protected]

ErlonJoséPaschoalégestorcultural,diretordeteatro,[email protected]

MarcosTavareséautorde“GEMAGEM”(poemas)ede“NoEscuro,Armados”(contos)[email protected]

WaldoMottaépoeta,ator,numerólogo,curadorespiritual.Blog:http://www.waldomotta.blogspot.com/

TatianaBrioschiépoeta, [email protected]

AntôniodePáduaGurgeléjornalistaeorganizadordaColeção“GrandesNomesdoEspíritoSanto”[email protected]

NayaraLimaéescritoraegraduandaemPsicologiapelaUfes.www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

História Noturna –Decifrando o SabáCarlo GinzburgO autor relaciona o ritual dosabá – encontro noturnoem que mulheres e homensacusados de feitiçariacelebravam banquetes,

orgias e profanações diante da presença dodiabo – com um antigo estrato de mitos eprocessos de exclusão social que envolvevivos e mortos, o visível e o invisível.

480 páginas. Companhia das Letras. R$ 29,50

Quando LisboaTremeuDomingos AmaralO violento terremoto queatingiu Lisboa em 1755 é ocenário deste romancehistórico em que ashistórias de vida de quatro

personagens se cruzam em meio a umacontecimento real que os deixa intrigados:terá sido punição divina ou casualidade?

480 páginas. Casa da Palavra. R$ 48

Grandes Lendasdo PensamentoHenri Pena-RuizO voo do homem-pássaroÍcaro, o amor-paixão deTristão e Isolda e o dilúvioque submerge o mundoantigo estão entre as

imagens e os relatos usados pelo autor paramostrar que a filosofia está presente emmomentos-chave da existência humana.

224 páginas. Difel. R$ 35

O Valor do AmanhãEduardo GiannettiNeste ensaio, o economistaEduardo Giannetti destacasituações práticas em quese manifesta a realidadedos juros, como o hábitode fazer dieta, a dedicação

aos estudos e os exercícios físicos.

208 páginas. Companhia das Letras. R$ 32

CampusUfes terá I Jornada de Literatura e EducaçãoO encontro, que reunirá conferências, debates e palestras,será nos dias 23 e 24 de abril. As inscrições para o Fórum dePesquisas podem ser feitas até 10 de março. Já os ouvintespodem se inscrever até 10 de abril. Informações:http://leituraliteraturaemateriaisdidaticos.blogspot.com/.

Eu Sou o SambaMúsicos locais e homenagem a Pery na TVEO “Eu Sou o Samba” deste sábado, às 16h30, exibe umaretrospectiva de músicos capixabas que passaram pelo programa,além de uma homenagem ao cantor Pery Ribeiro, que morreu noúltimo dia 24. Reprises no domingo (13h30) e na terça (22h).

12Aula com SérgioNazar DavidO professor daUniversidade do Estado doRio de Janeiro (UERJ) eensaísta, autor de diversoslivros, fará a aula inauguraldo semestre letivo daPós-Graduação em Letrasda Ufes, com o tema“Intimidade e política nacorrespondência familiar deGarrett”. Informações: (27)4009-2515.

31de marçoExposição de livros rarosAté o próximo dia 31, a Biblioteca Pública Estadual abriga aexposição “Divisão de Coleções Especiais: Acervo do setor JoséTeixeira de Oliveira”, com livros raros doados pela família dohistoriador. Visitação de segunda a sexta-feira, das 09 às 19h.

José Roberto Santos Nevesé editor doCaderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] SOBRE FIM E RECOMEÇO

Desde que omundo existe, o homem convive com o temore o fascínio do fim dos tempos. A profecia finalista descrita peloevangelista João no “Livro do Apocalipse”, por volta do ano 90da Era Cristã, volta à tona cercada de uma série de evidênciasreligiosas e científicas. Entre elas estão o fim do calendáriomaia, em 21 de dezembro de 2012, e as previsões decatástrofes provocadas por tempestades solares. Representadonas artes em geral, o tema inspirou os escritores Waldo Motta,Marcos Tavares e Tatiana Brioschi a produzir textos com basepoética e numerológica sobre esse fenômeno que acompanha

a evolução da humanidade. Na apresentação dos poemas,Erlon Paschoal chama a atenção para as mudanças climáticasprofundas que castigam a Terra, sinal de que o pior está por vir.Nesta edição, o leitor também confere o ensaio de RenataBomfim sobre Arthur Bispo do Rosário, o artista diagnosticadocomo esquizofrênico-paranoico que colocou o Brasil no mapada arte mundial, e a resenha de André Andrès para “A MúsicaSegundo Tom Jobim”, filme sobre o maestro cuja obramonumental nos dá a certeza de que, no apagar das luzes,sempre haverá uma bela melodia para anunciar o recomeço.

Pensar na webTrailerde “AMúsicaSegundoTomJobim”,filmes inspiradosno fimdomundo,galeriade imagensdeArthurBispodoRosárioetrechosde livroscomentadosnestaedição,nowww.agazeta.com.br

PensarEditor: José Roberto Santos Neves;EditordeArte:Paulo Nascimento;Textos:Colaboradores;Diagramação:Dirceu Gilberto Sarcinelli;Fotos:Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações:Editoria de Arte;Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

MáriaSantosNeveséredatorapublicitáriaeescrevenoblogTodososlivrosdomundo.http://todolivro.blogspot.com

RobertoPassosdoAmaralPereiraémédico-pediatra.EscrevenositeRecantodasLetras.http://dosesdeprosaseversos.blogspot.com

RenataBomfiméescritora,mestreedoutorandaemLetraspelaUfes.www.letraefel.com

IsabelVasconcelloséescritoracom9 livrospublicados.www.isabelvasconcellos.com.br

ColetivoPeixariareú[email protected]

de março

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:45:49

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3PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

3 DE MARÇODE 2012

entrelinhaspor MARIA AMÉLIA DALVI

365 LIVROS PARA DARNOVO SENTIDO À VIDA

DIVULGAÇÃO

O ANO DA LEITURA MÁGICANina Sankovitch. Tradução:Paulo Polzonoff. Editora: Leya.1ª edição, 2011. 232 páginas.Quanto: R$ 35

TRECHO“Minha irmã tinha quarenta eseis anos quando morreu.Durante os poucos meses entreo diagnóstico e a morte, eu fuie voltei várias vezes de NovaYork a Connecticut para vê-la.Geralmente, eu viajava detrem. No trem eu podia ler. Eulia pelos mesmos motivos quesempre me fizeram ler, porprazer e como fuga. Mas agoraeu também estava lendo paraesquecer – durante mais oumenos meia hora – arealidade pela qual minhairmã estava passando. Elafora diagnosticada com câncerno tubo bílico. O cânceravançou incansável erapidamente. Pelo caminho,deixou um rastro de dor,impotência e medo.”

Olivro de Nina Sankovitch,“O ano da leitura má-gica”, publicado original-mente nos Estados Uni-dos, chegou ao Brasil nocatálogo da Leya, como o

primeiro de quem há muito vem es-crevendo sobre suas leituras literárias: aautora manteve – e ainda mantém – umblog em que compartilha suas impres-sões sobre livros que vão de Liev Tolstoia Mia Couto, passando pelos clássicosromances de Agatha Christie e por JoséEduardo Agualusa. Menos de dois anosdepois de ler 365 livros em 365 dias, aautora nos brindou, em 2011, com umaprova de que a literatura jamais poderáser um ato de complacência ou (auto)piedade: ler (e escrever) como rotina,como exigência e como diversão é estarcada vez mais próximo do abismo, aponto de encará-lo com insuspeita in-timidade e, claro, respeito.Diário? Relato? Romance? Livro de

resenhas? As fronteiras de gênero sãorelegadas a segundo plano; assim, pas-seando pelos livros e conectando-os ex-plicitamente ao ordinário da experiên-cia, a caçula de uma família de imi-grantes bielo-russos nos narra a história

do pai que escapa da morte na SegundaGuerra, da infância feliz com sorvetes nacalçada, da passagem rica e tensa pelafaculdade de Direito, do encontro com oatual marido, dos quatro filhos, da con-vivência acidentada com a enteada, dasduas irmãs, da vida de dona de casa emConnecticut, e da poltrona roxa fedendo– insuportavelmente – a urina felina: olugar onde ela encontra alegria lendodurante algumas horas diárias os livrosque tem, que ganha e que toma em-prestados, para depois resenhar por es-crito e publicar na internet.

TerapiaSe a tradução e a revisão emperram a

fluência de “O ano da leitura mágica”em alguns momentos, por outro lado,são vinte e um deliciosos capítulos,organizados em torno de temas queSankovitch elege a partir do rumo dashistórias que lhe chegam às mãos, du-rante o tempo emque resolve abrir umajanela na vida e dedicar-se à leituraliterária como parte de um processoterapêutico de enfrentamento do luto:depois da morte precoce e repentina deuma irmã, Nina decide ler integral-

mente um livro por dia, ao longo de umano (de outubro de 2008 a outubro de2009), para encontrar consolo, fuga,prazer, esquecimento, coragem, intros-pecção, inteligência e solidariedade.É uma celebração à leitura, à literatura

e, enfim, à humanidade – incluindo avida, a morte, as bibliotecas, a dor, asuperação, a miséria, a família, a im-potência diante das doenças, a beleza, asguerras, a maternidade: com tudo o quehá de tosco e sublime nesse conjunto. Sópor isso, “Oanoda leituramágica” jáéumprojeto sedutor (e, reconheçamos, ar-riscado). A autora resvala, sim, no tom daautoajuda e peca pelo excesso de di-datismo: deste modo reduz em algunsmomentos a complexidade estética dasobras que comenta e desvia o rumo davivência literária para o ensino ou aheroicização de si e de sua opção, aindaqueo tomsejadehumore ironianamaiorparte das páginas; no entanto, partilhaconosco uma descoberta que tem algo demuito banal e, no entanto, necessário: lerapaixonadamente é um modo de ex-ceder-se e– comoavisa a epígrafe retiradade uma carta de Franz Kafka – de dilatara rachadura no oceano congeladoque temos dentro de nós.

Em “O ano da leitura mágica”, Nina Sankovitch relata a experiência de ler um livro por dia, ao longo de um ano, para enfrentar a dor pela morte precoce de uma irmã

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:35:02

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,3 DE MARÇODE 2012

Em um país dominado pelas grandes distribuidoras norte-americanas, os festivaisrepresentam, em muitos casos, o único elo entre o espectador e a produção nacional

cinemapor LÚCIA CAUS

QUANDO A SÉTIMAARTE VAI AO PÚBLICO

GUSTAVO LOUZADA

Exibição do Vitória Cine Vídeo Itinerante em Conceição da Barra: caminhão-projetor leva sessões de cinema gratuitas a moradores de várias regiões do Estado

Atualmente, segundo dadosdo Fórum dos Festivais,existem no Brasil mais de200 eventos audiovisuais,de pequenas iniciativas re-gulares e consistentes de

exibição até festivais maiores.Esses eventos em geral propiciam

uma oportunidade para cineastas des-conhecidos mostrarem seus filmes parauma plateia de verdade e serem ana-lisados por críticos profissionais, alémde atrair a atenção da imprensa es-pecializada e de agentes e compra-dores. Filmes de cineastas desconhe-cidos ou iniciantes podem se tornarsucesso de público após serem pre-miados nesses festivais.Mas será só isso? Não, mesmo. Num

país dominado pelas grandes distribui-doras norte-americanas, os festivais re-presentam, em muitos casos, o único eloentre o público e grande parte da pro-dução cinematográfica brasileira.Paramuitos, os festivais são o grande

e, muitas vezes, o único meio de exi-bição de um filme, nãomais apenas seu

divulgador.Os festivais têm cumprido o papel de

distribuidor – na forma mais literal dapalavra – dos filmes brasileiros. Isso valeprincipalmente para as produções au-torais e documentáriosmenos populares,quemesmo nas grandes capitais ocupamuma ou duas salas de cinema.Há também filmes que chegam a levar

de dois a três anos para conseguir espaçono circuito comercial, depois de estrear emfestivais. E é graças ao bom desempenhonos festivais – que trazem visibilidade nãosó de público como de mídia – que essesfilmes chegam ao “circuitão”.Por outro lado, se os festivais são uma

forma de desaguar a crescente produçãobrasileira – estimulada por processoscada vezmais baratos –, do pontode vistada população também sãomuitas vezes aúnica oportunidade de acesso a filmessem grande apelo comercial. Vale lem-brar que muitos festivais, como o VitóriaCine Vídeo, são gratuitos.Em 18 anos de festival, milhares de

pessoas passaram pelas sessões de cinemado Vitória Cine Vídeo. Para os que não

podem ou não estão acostumados a sedeslocar para ir ao cinema, montamos o“Cinema Itinerante”, que através de umcaminhão-projetor circula de norte a sulpelos municípios capixabas, levando ses-sões de cinemagratuitas aosmoradores decada região. Em sua 18ª edição, o VitóriaCine Vídeo Itinerante passou este ano por11 cidades do litoral do Espírito Santo,como Aracruz, Anchieta, Serra (Mangui-nhos), Guarapari, Linhares, Conceição daBarra (Itaúnas), entre outras localidades.A valorização da formação também é

destaque no evento, que apresenta,anualmente, uma programação de ofi-cinas, debates, palestras e encontrosvoltados para a capacitação e a re-ciclagem, incentivando a troca de co-nhecimentos entre realizadores locais eprofissionais do mercado nacional.O festival representa, para além de

cultura e educação, geração de rendapara milhares de capixabas, desde oscoladores de cartazes, passando pelosmotoristas, designers gráficos, promo-tores, cenógrafos, carpinteiros, recepcio-nistas, jornalistas, ajudantes em geral e

operadores cinematográficos. Isso só pa-ra citar alguns dos profissionais. Semfalarnos restaurantes, bares, hotéis, táxis,operadores de turismo e comércio emgeral que são envolvidos durante a se-mana em que acontece o festival.Realizado entre os meses de novem-

bro e fevereiro, o Vitória Cine Vídeotambém é porta de entrada para o tu-rismo do Estado. O festival atrai pessoasde todo o Brasil – e até mesmo pro-fissionais de cinema de fora do país – e agrande maioria estende sua visita paraconhecer as belas praias ou os acon-chegantes roteiros serranos do EspíritoSanto, movimentando o nosso turismo.Sabe-se que o Brasil tem hoje um

número grande de festivais de cinema –principalmente se comparado com ou-tros países -, mas não podemos esquecero tamanho geográfico do nosso país e oabismo cultural nele existente. Festivaiscomo o Vitória Cine Vídeo são alicercespara a cultura e a economia e levam apessoas de lugares esquecidos pela in-dústria cultural, emoções que só asétima arte pode proporcionar.

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:21:23

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5PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

3 DE MARÇODE 2012

falando de músicapor ANDRÉ ANDRÈS

UM FILME COM BELEZAE FALHAS FORA DO TOM

Algumas raridades...Elizete Cardoso - “Eu Não Existo Sem Você”A Divina aparece ao lado de alguém queparece ser João Gilberto. Histórico.Agostinho dos Santos - “A Felicidade”Agostinho era um de nossos maiores cantores.Morreu precocemente.Pierre Barouh - “Água de Beber”Barouh revisita a paixão pela música brasileira,já registrada no documentário “Saravah”.Gary Burton - “Chega de Saudade”A versão para vibrafone do grande jazzistaamericano é simplesmente espetacular.Sylvia Telles - “Samba de Uma Nota Só”Sylvia arrasa na interpretação do samba deTom. Simplesmente isso.Sammy Davis Jr. - “Desafinado”Sammy Davis abandona a letra e brinca muitocom a melodia. Curioso.Mina - “Garota de Ipanema”Impagável a coreografia da cantora italianapara a música mais famosa de Tom.Maysa - “Por Causa de Você”Gravação feita pela TV Cultura de São Paulo.Maysa e uma música que é a sua cara.Birgit Brüel - “Águas de Março”A versão da dinamarquesa para a obra de Tomsurpreende pela fidelidade à melodia original.Caetano, Chico, Gil, Gal, Milton e Paulinho daViola - “Lamento no Morro”Registro histórico: seis dos maiores artistas dopaís reunidos em torno da música de Tom.

DIVULGAÇÃO

Como se sabe, há muitosanos João Gilberto travauma briga judicial com aEMI. O cantor acusa a gra-vadora britânica de ter de-turpado suamúsica ao jun-

tar num só disco (“O Mito”) três obrasfundamentais da BossaNova (“Chega deSaudade”, “OAmor, O Sorriso e a Flor” e“João Gilberto”), destruindo, como dizele, a “sequência harmônica das mú-sicas” e as gravações originais, muitasdelas alteradas e reduzidas para ca-berem no disco. A família de João im-pediu o uso de imagens do cantor nodocumentário “A Música Segundo TomJobim”. Não se sabe exatamente o mo-tivo. É de se lamentar a ausência domaior intérprete da obra de Tom. Mas,mesmo sem saber, a família fez bem: épossível que João, ao ver o filme, de-cidisse armar outra briga judicial...“A Música Segundo Tom Jobim” é

belo, tocante, emocionante, curioso... eincompleto, apressado. Se “O Artista”conquistou o público com a ausência depalavras, o documentário sobre Tominova ao buscar narrar a história domaestro num documentário sem de-poimentos. Sob esse aspecto, é umadelícia, porque a biografia começa a sernarradaapartir do sobrevoodeumaviãoda Pan Air e de uma câmera nervosacolocada num carro andando pelas ruasdo Rio dos anos 50. A partir daí, asmúsicas se sucedem, em ordem nãoexatamente cronológica, sem mais ne-nhuma interferência. Não há entrevistas,relatos, depoimentos. “A linguagem mu-sical basta”, sempre ensinou Tom.Impossível contestar omaestro, ainda

mais diante do encantamento provo-cado por sua obra. No cenário damúsicado século XX, Tom está naquele patamarde gênios como Gershwin, Duke El-lington, Cole Porter. E é impensável nãose emocionar com a delicadeza de “Din-di” ou “Insensatez”. Assim como é difícilconter a vontade de cantar “Águas deMarço” junto com ele e Elis. Ou deixarde se embalar pelo romantismode “AnosDourados” e “Luiza”. É uma demons-tração de harmonia, melodia e belezaquase incomparáveis.Essa beleza ganhou o mundo. O

documentário de Nelson Pereira dosSantos e Dora Jobim (neta do maestro)mostra isso. E justamente aí reside suafalha. Émuito curioso ver Judy Garlandentoando “How Insensitive”. É arre-batador ver Dizzy Gillespie tocando“Chega de Saudade”. É engraçado ver oarranjo e a coreografia da italianaMinapara “La Ragazza de Ipanema”. A lista é

enorme porque é gigantesca a relaçãode cantores se sucedendo na tela. Nototal, incluindo as repetições (Elis, porexemplo, aparece mais de uma vez),são 56 intérpretes para pouco mais de30 canções em 88 minutos de filme. Háraridades (como a grande Sylvia Telles,talvez a responsável pelo “mood” dascanções da Bossa Nova, cantando“Samba de Uma Nota Só”), há ex-centricidades (Sammis Davis Jr. temuma versão muito própria de “Desa-finado”), e há, óbvio, muita músicabonita. Mas a necessidade de mostrartantas facetas da obra de Tom em um

prazo relativamente curto levou a umacerta deturpação das canções ou dasinterpretações. Apenas em alguns mo-mentos um mesmo cantor inicia e ter-mina uma canção. Para mostrar como“Garota de Ipanema” ganhou omundo,os produtores fizeram uma coletâneade nove interpretações. Ela começacom Tom e Vinicius e depois passa porErrol Garner, Pat Harvey, Marcia, Lio,Mina, uma apresentação na BBC, re-toma com Tom, novamente, e terminacom a famosíssima cena dele comFrank Sinatra, fumando e cantandodivinamente. Essa colagem acaba se

repetindo em outras músicas e, emalguns momentos, as interpretaçõessão cortadas abruptamente. É uma pe-na, por exemplo, não podermos ver eouvir, de forma completa, a espetacularinterpretação de Nana Caymmi para“Sem Você”. E a também famosa cenade Tom ensinando Gerry Mulligan abossa das notas finais de “Samba deUma Nota Só” fica sem sentido, porquenão chega até o final. Há, também,algumas opções questionáveis, como aescolha da gravação de CarlinhosBrown para “Luiza”.Nenhuma dessas observações pre-

judica o conjunto da obra, mesmo por-que qualquer um sai mais feliz e maisleve do cinema após ouvir 88 minutosde excelente música. Mas fica a im-pressão de que, se fosse um pouco maisextenso, o documentário poderia sermais completo. É de se lamentar, óbvio,a ausência (talvez providencial, comodito no início desse texto) de JoãoGilberto. E de se elogiar a escolha dacena final, do desfile de Tom pela Man-gueira, amajestosa parceira do carnavalde 1992. Ali se deu a concretização daunião entre a cultura popular e a so-fisticação damúsica criada pelomaestrosoberano, autor de uma obra bo-nita, criativa, perfeita. E eterna.

Sinatra e Tom na gravação de “Francis Albert Sinatra e Antonio Carlos Jobim”

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:19:46

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7PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

3 DE MARÇODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,3 DE MARÇODE 2012

TRÊS POETAS E UM ENSAÍSTA FAZEM SUA LEITURA DO JUÍZOFINAL, TEMA QUE VOLTA AO DEBATE COM CONTORNOS REAIS

ensaiopor ERLON JOSÉ PASCHOAL

E O MUNDOVAI ACABAR?

Em todos os tempos falou-sesobre o fim do mundo. Deum lado trata-se de um te-mor atávico, arquetípico; deoutro, talvez, de uma de-dução lógica de que tudo o

que teve início, um dia terá fim. Sa-bemos todos que a vida é um átimoquase imperceptível em meio a um uni-verso de grandezas infinitas e, portanto,inimaginável. Religiões e culturas di-versas sempre apregoaram o fim dostempos. A cultura ocidental, tendo comouma de suas matrizes formadoras bá-sicas o cristianismo, perpetua desde suasorigens o anúncio do juízo final e daredenção. João, no Apocalipse, recebeua revelação de que “aqueles que leem eaqueles que ouvem as palavras da pro-fecia e guardam as coisas nelas escritas”sabem que “o fim está próximo”.No início do século XXI, com as mu-

danças climáticas profundas, a super-população, as guerras intermináveis, aprodução intermitente de armas de des-truição em massa, o uso indiscriminadode recursos esgotáveis da natureza, asameaças de fome coletiva e a profundadesigualdade no planeta, acentua-se apercepção de que o pior está por acon-tecer. Em outras palavras, o fim domundo adquire hoje contornos bastantereais, previsíveis e mensuráveis.No catálogo da exposição da 2ª Bienal

do Fim doMundo, ocorrida em 2009, emUshuaia, na extremidade da América doSul, o curador Alfons Hug escreveu: “Odiscurso do clima é apocalíptico, cate-górico, e não admite qualquer contes-tação. Cada novo relatório sobre o clima éuma última advertência. Este climatismoalarmista, que já atingiu um grau de

consenso preocupante, provoca grandesentimento de culpa em cada habitanteda Terra: desde o caboclo do Amazonas,que queima mata para seu roçado, até omotorista europeu, o pecuarista indiano eo petroleiro do Golfo Pérsico. O climaatingiu status de guerra. Parece um Deusvingativo que se prepara para destruirtudo o que tem vida.”Evidencia-se, então, de que ou mu-

damos nossa forma de viver e organizar avida, ou iremos sucumbir àquilo quepoderia ser evitado enão foi e, por isso, aoinevitável. E dessemodo impõe-se a ques-tão: como transformarapossível renúncianecessária à produção e ao acesso in-discriminado a todo tipo de mercadoria,em melhoria de qualidade de vida econstrução de um mundo baseado emvalores solidários e universais? Afinal, oschamados tipping points, pontos dedesequilíbrio, nos quais o clima mundialpoderia entrar em colapso, parecem estarmuito próximos, segundo as análises decientistas e ambientalistas.

DestruiçãoO cinema, por sua vez – sobretudo o

americano–, fazdo fimdomundoumfilãoque sempre atrai, amedronta e encanta opúblico. Independentemente das visõespuritanas, racistas e reacionárias quemui-tos dos filmes propagam, eles cultivam emsua maioria a sensação de que ver tudo seacabar é sublime. Uma espécie de estéticadadestruição, tal comoconstatar a “belezamajestosa” de um cogumelo atômico seformando ou se deliciar com a visão deNova York ruindo, Los Angeles sendoengolida pela terra, meteoros colidindocom a Terra ou máquinas destruidoras e

sem controle matando a tudo e a todos.Nesse contexto, o compositor alemão Kar-lheinz Stockhausen proferiu uma frasepolêmica, referindo-se às imagens do ata-que ao World Trade Center: “É a maiorobra de arte possível”.A partir desse tema três escritores do

Espírito Santo –Marcos Tavares, TatianaBrioschi e Waldo Motta – elaboraramtextos poéticos e numerológicos, ten-tando compreender e expressar esse mo-mento da consciência universal. Paramuitos, 2012 é um ano fatídico, no qualas forças do universo e da naturezalevarão a humanidade ao caos e à ani-quilação. Waldo Motta faz então a lei-tura, a partir da mítica e do simbolismodos números, do que está por vir.DesdePitágorasosnúmeros sãomuitas

vezes considerados a expressão da ordemcósmica e suas infinitas combinações po-

dem indicar a correlação de forças uni-versais que terão uma intensa influênciano planeta e na vida humana. Na Cabala,as relações entre números e letras trans-formam-se em chaves que abrem as por-tas dos mistérios do universo. Na as-trologia, os números se associam às in-fluências dos corpos celestes de nossosistema solar na vida terrestre. Comoestudioso do tema, Waldo Motta nosfornece elementos e palavras-chave paraa compreensão do futuro próximo.Marcos Tavares, fazendo uso de as-

sonâncias, aliteraçõeseda sonoridadedossons anasalados, deixa reverberar e vibraro fim, que nada mais seria do que umrecomeçar, colocando o tempo como algocíclico e permanente. Ou seja, amatéria eo espaço, tal como os conhecemos, po-dem ter fim, mas não o tempo. Con-trapondo-se ao tempo linear da tradiçãojudaico-cristã, Marcos opta poeticamentepela ideia cíclica do tempo, pelo eternoretorno elaborado na Antiguidade grega.No texto de Tatiana Brioschi, o Eu

poético funde-se comos quatro cavaleirosdo Apocalipse montados em seus cavalos– um branco, um vermelho-fogo, umnegro e o outro esverdeado – que surgemapós a abertura do quarto selo, dentre ossete que continham os segredos e osdesígnios divinos, que os autorizava aespalhar a fome na Terra. Mas logopercebe que colocar-se no lugar dos qua-tro instrumentos da destruição não cor-responde a sua natureza humana, cons-tatando, assim, as suas fraquezas e ainutilidade de seu grito diante do queseria inevitável. E transformando o ter-rível em arte destaca a fugacidade e abeleza da vida.Que os textos agora falem por si.

DIVULGAÇÃO

Nova York destruída no filme “O dia depois de amanhã”: o cinema, sobretudo o dos EUA, faz do fim dos tempos um filão que sempre atrai, amedronta e encanta o público

Para representar o futuro próximo, Waldo Motta usa a mítica e o simbolismo dos números; Marcos Tavares opta pela ideia cíclica do tempo; e Tatiana Brioschi destaca os cavaleiros do Apocalipse

Versos de caos e recomeço

O clima atingiustatus de guerra.Parece um Deusvingativo que seprepara paradestruir tudo o quetem vida”—Alfons HugCurador da exposição da 2ª Bienal doFim do Mundo

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NOVA EVAMarcos Tavares

O fim do mundoé o fim.

O fim do mundoé o fimdo imundo.

O mundo, findo,é o fimdo filme.

O fim do humanodomado, o simdo ora não-uno.

O fim do mandoe do medo.O fim da fimose.

O fim do mundoé, enfim, o final:o tal sinaldo começo.

2012 – AugúriosWaldo Motta*

ANO DA LUA: agitação dos povos, nações;acessos de loucura; águas em fúriaNÚMERO DE MARTE: terror, violência, guerra;rigor, severidade, justiça implacável

2012> 20+12 = 32 = coração, âmago da Terra5 – transformações, mudanças gerais; agitação

30 – ferir, derrubar2 –casa, palácio, templo5 – violência, terror, guerra

20– governante, líder, cabeça12 – ferir, golpear, atingir5 – violência, terror, guerra

20 – governante, líder, cabeça12 – atingido, golpeado, ferido; preso, detido,retido, limitado; enforcado,executado

5 – terror, violência

20 – retorno, ressurgimento12 – reviravolta, revolta

Lua – imaginação, inspiração, criatividade5 – cultura, arte, comunicação, comércio

Lua – mulheres; fertilidade5 – mulheres; fertilidade

2012 – ascensão e valorização das mulheres;mais grávidas e mães que o normal

Luae 5 – inconstância, incerteza, indefinição,enrolação

5 – violência, terror, guerra5 – o Papa, o Hierofante, o Orientador, o GuiaEspiritual

2012 – Lua

2012>2+0+1+2 = 5 – Marte, Mercúrio

Lua e Marte – roubo, corrupção, mentira,enganação; violência noturnaLua e Mercúrio – ladrões, roubo, noite

Lua – loucos, dementes, loucuraMarte – terror, violência, guerra

Lua – águaMarte– terror, violência, destruição5 – vento, água; agitação, violência, guerra;violência das águas, nas águas

Lua, Marte, Mercúrio – criatividade,inventividade; ciência, arte, comércio, negóciosLua, Marte e Mercúrio – conflito entre nações,discussões, enrolação, embromação

* O "texto “2012 – Augúrios” foi publicado em meu blogem 31 de dezembro de 2011, em redes sociais e doisgrupos virtuais de teatro e literatura".

2012Tatiana Brioschi

cavalariço vireide mim mesmae com nano esmeronuma quimerafundi-me com os quatronas quatro no cincoporque inteira não suportariao fim desta conta longa maiaem que o mundo vai acabarmelhor ser a criatura

que o criador, a cobaiado Dr. Frankensteinuma centaurade pelos lustrosos e ocrespatas para as nuvense bafo de enxofrea galopar fogo e fumaçagritos sufocantesrelinchos e palavrões,mesmo que seja assimmetade fomemetade pestemetade guerra

metade mortenas quatro estações que enfrentareineste ano cinco

Masa quem quero enganar?centaura não soumuito menos centúria,nem metade esquálidanem metade chagasnem metade sanguenem metade póad seculum seculorumserei somente a que grita

sou eu, sou eu, c'est moi!porque talvez o mundo vai acabar

Finito esttransformarei os quatroem artistas de circocavalgarei em pésobre a selaporque daqui vejo a plateiaem círculose quando terminado o showo mundonão acabou.

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:19:08

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,3 DE MARÇODE 2012

memóriapor ANTÔNIO DE PÁDUA GURGEL

DIVULGAÇÃO

O ex-prefeito de Vitória, vereador e deputado completaria 90 anos em 2012

A HISTÓRIA DE UM LÍDER POPULARPerseguido pela ditadura militar, Mário Gurgel foi protagonista de episódios que marcarama cena política capixaba; reedição de biografia e coletânea de artigos lembram sua trajetória

No excelente trabalho deretrospectiva históricaque o jornal A GAZETArealiza com a coluna“Há 50 anos”, de vez emquando tem sido lança-

da alguma luz sobre a carreira políticade Mário Gurgel, que em 2012 com-pletaria 90 anos de idade.Em comemoração, será lançada uma

edição de sua biografia dentro da Co-leção Grandes Nomes do Espírito Santoe outra do livro “Crônicas de Vitória”,com textos publicados por ele na im-prensa capixaba durante as décadas de1940 a 1960.Mário Gurgel dedicou sua vida à luta

por justiça social, tendo se constituídonum exemplo de coragem e integridade.Filho de umoperário e de uma lavadeira,elegeu-se o vereador mais votado deVitória nas eleições de 1950 e 1954, anoemquepresidiu aCâmaraMunicipal. Em1957, foi indicado pela totalidade dosvereadores para ser o prefeito de Vitória,indicação aceita pelo governador Fran-cisco Lacerda de Aguiar.Ao deixar o cargo em 3 de agosto de

1958 por ser candidato a deputadoestadual em 3 de outubro seguinte,alguns adversários tramaram um atoque poderia acabar com sua carreirapolítica. A ideia era soltar buscapésquando ele deixasse a Prefeitura. In-formado do plano, o prefeito telefonoupara a Ilha do Príncipe, pedindo ajuda.O estivador Pedro Tenório o tranqui-lizou: “Mário; pode deixar que a Ilhavai descer”.A transmissão do cargo contou com a

presença do governador e “outras au-toridades civis,militares e eclesiásticas”,alémde grande número de empresários.A “nata da sociedade”, todos vestidosluxuosamente. Na hora da solenidade,Pedro Tenório – trajado com sua ca-miseta regata de estivador – pegou omicrofone e disse: “Mário. Fala o que seupeito sentir. Aqui ninguém lhe encostaum dedo. Porque, se encostar, não ficauma parede em pé. Só dinamite nóstrouxemos 200. Em cada porta dessastem um homem nosso”.Com tal autorização, Mário pronun-

ciou um violento discurso denunciandoos sonegadores de impostos que im-pediam o trabalho social da Prefeitura elembrando que essa atitude acabaria

resultando numa quantidade cada vezmaior de marginalizados e criminosos.Em lugar dos buscapés, o que houve

foi uma carreata até o então longínquobairro de Maruípe, onde o prefeitomorava numa casa alugada. Um grupode congo apareceu e foi iniciada acampanha para deputado estadual.Mário foi o deputado mais votado de

Vitória, feito que repetiu em 1962.Naquele ano, presidiu a AssembleiaLegislativa, tendo protagonizado al-guns episódios quemarcaram a históriapolítica do Espírito Santo.Foi a única voz na Assembleia a

insurgir-se contra um voto de louvor àsForças Armadas no início de abril de1964. Naquela fase de delações, prisões

arbitrárias e muito medo, ninguém po-deria imaginar qualquer dificuldadepara a aprovação do projeto. Toda aoficialidade das três Armas foi à As-sembleia em farda de gala para recebera homenagem. Mas o que se viu foi umlongo discurso de Mário Gurgel queterminava com a seguinte frase: “Comohumilde parlamentar de província queo presidente constitucional deste País,João Belchior de Marques Goulart,honrou com sua amizade e seu com-panheirismo, não posso permitir maisuma agressão a um homem que nãopodemais se defender. E, como líder daMaioria, voto contra o projeto”. Na-turalmente, saiu da Assembleia preso.

Comissão EspecialEm 1965, impediu missão do coronel

Dilermando Gomes Monteiro (mais tar-de comandante do II Exército), que foraenviadoaoEspírito Santoparadestituir oentão governador Francisco Lacerda deAguiar (Chiquinho). Relator da Comis-são Especial criada para legitimar a de-cisão militar, Mário redigiu o voto ven-cedor que absolvia Chiquinho. Indig-nado, o coronel ameaçou: “O senhor vaipagar caro por isso”. Ao que ele res-pondeu: “Não importa. Mesmo porque osenhor e os seus colegas de farda vãopagarmuitomais caro perante aHistóriapelo que estão fazendo neste País”. Pre-vidente, naqueles tempos de chumboMário costumava ter na Assembleia umamaleta comalgumaspeças de roupaparao caso de ser preso.Em 1966, elegeu-se deputado fe-

deral com votação consagradora quepermitiu a eleição de Dirceu Cardosocomo seu colega de bancada. Um jornalregistrou na primeira página: “Gurgel,a esquerda triunfante”. Tendo parti-cipado das articulações para criação deuma Frente Ampla que unisse as forçasde oposição, foi cassado logo após oAI-5, em janeiro de 1969.Cronista, poeta e orador brilhante,

classificou-se em 2º lugar num con-curso nacional de oratória realizado emSão Paulo na década de 1940.Fundador e dirigente da Casa do

Menino, foi autor da lei que criou oDepartamento Social do Menor, pri-meira instituição dedicada ao as-sunto em nível estadual.

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:32:38

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9PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

3 DE MARÇODE 2012

poesias

DELEITO-MECOM VOCÊROBERTO PASSOS DOAMARAL PEREIRAna cauda do cometa das letrasdeito minha carne cruana boca faminta do desejo

assoviobalbuciosalivo seu nome

debruçado na curva no tempopoema transborda ternurafaz lua para o seu olhar

MINHACANÇÃODO EXÍLIOTuas terras não têm palmeiranem canto de sabiámas vegetação rasteiracheiro de mare frutos pra sonhar

peço a Deus que me permitano bosque de tua vidaeu morar

bem-te-vi exclamochamodou florestudo porque te amo

crônicas

NÃO FOI AMORpor NAYARA LIMA

Foi olhar a estrada de barro, e ver que naverdade era de terra boa, com flores deponta aponta.Não foi amor. Foi o coraçãoque acelerava na nuvem não por poesia,mas porque havia realmente nuvem nocéu que atravessa o destino de embarquedo avião. Foi, além do coração voltando aacelerar, o conforto de saber que a tur-bulência viria sem que nos matasse. Não,não foi amor. Meu carnaval esteve an-tecipado, dentro de uma Bahia que aindaexiste no mapa, embora os jornais não arevelem tanto. Dentro de uma Bahia queme pôs em frente a mares e coqueiroslivres, bonitos. Uma amiga esses dias veiome dizer que meu texto tem estado“muito bossa nova”. O tom dela foi decrítica construtiva, embora para mim fos-se nada mais que um dos melhoreselogios a quem chega em março es-perando que suas águas fechem o verão.O “muito bossa nova” me encheu de

orgulho, me deu vontade de contar maisainda o que foi ver os barquinhos co-loridos, no Rio Vermelho. Não foi amor,foram os barquinhos coloridos no RioVermelho. A noite em samba pleno, o diaque entardecia meio azul e meio corado,como se sentisse amesma vergonha que aminha diante de tanta beleza. Não foiamor. Foi tanta beleza, foram olhos tãonítidos, foi boca tão bonita. Foi ele.Retorno pronta, comunico aos senho-

res que o ano acaba de começar. Sepensam que ontem foi sexta-feira, en-ganaram-se. Foi domingo, o primeiro diados tantos meses em que trabalharemos,iremos aos restaurantes, às escolas dascrianças, aos alegres shows que nossaVera da Matta nos oferece na Ilha que énossa. Se pensam que o carnaval chegouao fim, devo ainda avisá-los: há ser-pentinas caindo sobre a Terceira Ponte,marchinhas antigas dentro de todos os

carros que passam nela. Minha máscarade Colombina, meus senhores, aindaestá bem longe da gaveta.Informo, convicta, aos taxistas: é

necessário sorrir como fazem na-turalmente quando em fevereiroseus clientes entram no táxi vestidosde bailarina, bruxa, marinheiro oupalhaço. Aos que vestem terno parao trabalho, lembro-os: é só uma fan-tasia. De executivo. Não vai acre-ditar que é de verdade esse mundode suor ao meio-dia na sala de reu-nião do departamento só porque énecessário, só porque é trabalho.Não é. É carnaval.Devo confessar que quando o avião

me deixou de volta em Vitória, tivecerteza de que férias são permanentes,para quem percebe. E seria impossível,para mim, não perceber. É que, sabecomo é? Não foi amor. Foi um copodágua com gosto de água da fonte. Umabraço com gosto de tropicalismo. Nãofoi amor. Que me desculpe a amigapreocupada com meus textos, mas foium beijo totalmente bossa nova. Foipromessa de vida no meu coração.

E SE..por MÁRIA SANTOS NEVES

Já pensou poder rebobinar a vida?Rewind, reset, voltar atrás, começarde novo.Dar pause, seguir em frente.Colocar um freeze nos momentos

mais importantes. Paralisar.Pra poder saborear cada ruguinha do

sorriso, cada sinalzinho do rosto.Já pensou poder congelar a imagem

enquanto pensamos se vale a penaprosseguir naquele caminho ou virarem outra direção?Voar pra Inglaterra ou plantar la-

ranjas em Iconha?Ter cinco filhos ou uma grande

empresa?Pedir um time break antes de es-

colher qual vida você quer ter, comodiria aquele antigo compositor: – Pare omundo que eu quero descer!Quantas vezes tentei imaginar como

seria a vida que não vivi, usando aquelaexpressão mágica: – E se...E se ao invés de responder, eu tivesse

me calado?E se ao invés de chorar, eu tivesse

sorrido.Se ao invés de partir, houvesse per-

manecido?E se eu tivesse perdoado? E se eu não

tivesse esquecido?Quantas vezes pedi por outra rea-

lidade, como naquele lindo verso deBeto Guedes – Oh, minha estrela ami-ga, por que você não fez a bala parar?Mas a bala não parou. E o sonhoacabou.Já imaginou poder dar rewind antes

das torres gêmeas caírem?Ou mover o relógio para trás antes

que alguém insano jogasse uma lindamenina do alto de um prédio?Bastaria um mísero segundo, uma

única e definitiva chance de fazercerto.Chame de qualquer coisa: a mão de

um anjo ou o toque de uma cam-painha.

Chame de acaso, sorte ou destino.Chame de obra de Deus.Saber que o que vai não volta, dói.

Mas é isso que nos dá ainda maisvontade de fazer certo, desta vez.Porque só existe esta vez.Só existe esta vida.A outra, se houver, será a outra.A que passou, ninguém traz de

volta.Não vai existir outro você.E já que não dá pra rebobinar, quero

poder dizer o que tiver que ser dito.Amar o que tiver para amar.Sentir todas as emoções como o

Roberto.Chorar todas as lágrimas de amor,

alegria, dor.Viver, respeitar, errar por inocência e

não por vontade – e ser verdadei-ramente humana.Porque não tem jeito de se escrever

uma vida nova e nem há borracha queapague uma vida mal vivida.

LÁGRIMADE MARa voz do marondula teu nome

bate nas pedraságuas de saudade

na praiaentre areia e estrelasmareja meu olhar

MÃOS &LUVASChuvarego tuas terrascavalgo curvas.Nas linhas do infinitosomos mãos e luvasno azul de nós dois

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 20:08:13

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11PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

3 DE MARÇODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,3 DE MARÇODE 2012

visuaispor RENATA BOMFIM

TECENDO PARA ENCONTRAR DEUS: AARTE DE ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO

DIVULGAÇÃO

Classificado como esquizofrênico-paranoico, artista que viveu cinco décadas em um hospícioacreditava estar cumprindo uma missão divina: representar tudo o que existe no mundo

Não faço isto paraos homens, maspara Deus”—Arthur Bispo do RosárioARTISTA PLÁSTICO

Éuma aventura lúdica adentraro “mundo” criado por ArthurBispo do Rosário, ícone daarte contemporânea brasilei-ra. Comparado com AndyWarhol e Marcel Duchamp,

Bispo do Rosário representou o Brasil na46ª Bienal de Veneza, um dos mais pres-tigiados eventos internacionais de artesplásticas do mundo, juntamente com oartista Nuno Ramos. Suas obras con-tinuam sendo expostas nos mais variadospaíses.As802obrasdeixadasporBispodoRosário foram produzidas sob condiçõesadversas e motivadas por uma fé in-flexível. Ele acreditava estar cumprindouma missão divina: representar tudo oque existe nomundo.O artista recriou ummundo em miniatura, mantos bordados,estandartes, assemblages (técnica queconsiste na justaposição de elemento), ereuniu, em séries, muitos objetos. Se-gundo o próprio Bispo do Rosário, estenovo mundo seria apresentado ao Todo-Poderoso no dia do juízo final, e seria ummundo “sem trevas, planalto ou pre-cipício”, “sem miséria e nem pobreza”.A criatividade era abundante, enquan-

to os materiais eram escassos. Bispo im-provisou os recursos de que necessitavapara a realização de sua obra; ele desfiouo próprio uniforme azul da colônia, sím-bolo máximo da despersonalização, parabordar com os seus fios uma arte devanguarda, irmanada com movimentoscomo a Pop Art e o Novo Realismo. Assucatas recolhidas pelo artista nas suasperambulações pela Colônia Juliano Mo-reira, ironicamente, colocariam o Brasilno mapa-múndi das artes plásticas. Aspalavras também desempenharam umimportante papel na obra de Bispo doRosário: elas foram pintadas, escritas, eemergiram, especialmente e emprofusão,em bordados, na forma de nomes depessoas célebres e anônimas, registros deideias, e extratos poéticos.

Origem humildeBispo do Rosário foi um homem de

origem humilde. Nasceu em 1909, emuma cidadezinha sergipana chamadaJaparatuba. Filho de Adriano Bispo doRosário e de Blandina Francisca deJesus, o artista foi marinheiro, pugilistae, entre outros trabalhos, prestou ser-viços para uma família tradicional ca-rioca, os Leoni. Bispo se recusava a

receber salário – trabalhava em troca demoradia e alimentação.A “outra” origem de Arthur Bispo do

Rosário, não a do nordestino negro epobre, mas, a do “eleito”, “Filho do Ho-mem”, começou às vésperas do Natal de1938, quandoa cortina que revestia o tetodo mundo se rasgou e ele recebeu, porparte de sete anjos, o chamado para seapresentar. Bispo vagou por dois diaspelas ruas do Rio de Janeiro, seguindo oexército angelical, e chegou ao Mosteirode São Bento. Ao adentrar a capela eleanunciou que era “o juiz dos vivos e dosmortos, o Cristo”. Bispo esperava serreconhecido pelos religiosos, porém, en-quantoos sinosdas igrejasdobravamparareceber “o enviado de Deus”, arqueti-picamente, tal como aconteceu com oCristo, Bispo caiu nasmãos da autoridadeterrena. Preso por policiais militares, foienviado para o hospício da Praia Ver-melha. No dia 25 de janeiro de 1939,Bispo do Rosário adentrou o portão daColônia JulianoMoreira, que continha naentrada a profética frase:praxix omniavincit (o trabalho tudo vence).Classificado pela psiquiatria como es-

quizofrênico-paranoico, Arthur Bispo do

Rosário conheceu a realidade nua e cruadavidano sistemamanicomial.AColôniaJuliano Moreira, instituição destinada aabrigar “expurgados da sociedade”,doentes considerados crônicos, “casosirreversíveis” auscultados pela psiquiatriacarioca da década de 30, foi a morada deBispo por cinco décadas. As visões “mís-ticas” e os “delírios de grandeza” fizeramcom que o artista fosse encaminhadopara o pavilhão 11 do Núcleo UlissesViana, lócus privilegiado da geografia daexclusão, ocupado pelos internos con-siderados mais “perigosos”.Os limites geográficos da colônia

compreendiam uma área verde de cer-ca de sete milhões de metros qua-drados, com grutas e cachoeiras queintegravam a antiga Fazenda EngenhoNovo, desapropriada para abrigar ohospício. Em meio à Mata Atlântica,havia uma raridade arquitetônica doséculo XIX, a Igreja de Nossa Senhorados Remédios.Ex-lutador de boxe e possuidor de

grande força física, Bispo do Rosário pas-sou a ajudar os enfermeiros na con-tenção dos pacientes mais violentos,conquistando, assim, um lugar para si

na colônia: ele era o “xerife”. O artistafez amigos no manicômio, onde em-

preendia algumas tarefas e usufruía depequenos privilégios, como o de “tomarcafé com os guardas nos bastidores dopoder”. Com o passar do tempo, os en-fermeiros passaram a respeitar os pe-ríodos nos quais Bispo submergia nooceano particular de vozes que lhe diziamo que precisava fazer. Eram épocas derecolhimento e produção frenética.

IsolamentoO cunho místico que orientou o pro-

cesso criador de Bispo do Rosário exigia oisolamento. Foi com o seu mundo par-ticular que ele confrontou o poder opres-sor do sistema psiquiátrico vigente. Umainfinidade de artigos de consumo dohospício segregados em blocos: galochas,colheres, fivelas de cintos, cabides, se-ringas, pentes, ferramentas, pipas, cha-péus, rodos, bolas, capacetes, foram reu-nidos e utilizados numa ação criativa,uma “obra-escudo”. Essa foi, de certaforma, uma expressão de resistência.A visada psicanalítica chegou à co-

lônia após 1981, e os pacientes pas-saram a ser estimulados a falar. Foinesse período que Rosângela, estudan-te de Psicanálise, chegou à colônia, eum forte vínculo se estabeleceu entreela e Bispo. Nessa época o artista pas-sou a construir as miniaturas em dobropara presenteá-la, e Rosângela tor-nou-se para Bispo uma personagemidealizada, ela era o seu anjo redentor,tanto que ele escreveu: “Rosângela Ma-ria Diretora tudo eu tenho”.Enquanto, na clausura do seu “quar-

to-forte” (cubículo minúsculo que abri-gavaumcolchoneteeumburaconosolo),e longe dos olhares curiosos, Bispo doRosário escondia os mistérios do seu“novomundo”emformação,nomundo, aarte explodia em novos conceitos. NaItália de 1962, Piero Manzoni seguia atendência do New Dada, explorando adesordem dos materiais e expondo, emgalerias, objetos do cotidiano. Pães e ovoscozidos deram forma a obras que, depoisde expostas, eram consumidas pelo pú-blico. Manzoni expôs caixas com as pró-prias fezes numa obra denominada “Mer-de d’artiste”. Criações de Manzoni, comoa assemblage de pãezinhos, encon-traram eco nas obras de Bispo do Rosário,tanto nas peças que agrupavam “bu-

gigangas” em série, quanto nas garrafasplásticas preenchidas com fezes e urina,organizadas pelo artista.O sistema social opressor era con-

frontado por obras escatológicas e im-prováveis e muitos artistas se engajaramna tentativa de enterrar a tradição. Ofrancês Arman, por exemplo, artista plás-tico representante do Novo Realismo,passou a tomar os bens de consumo dasociedade moderna para reorganizá-losem repetições aleatórias. Suas obras maisconhecidas intitulam-se “Latas de lixo” e“Montes de detritos”. Outro francês, ÍrisClert, produziu obras como “Retrato deSonny Liston” (1963), que consistia numamontoadode ferrosdepassar roupasquealcançava 85 centímetros de altura. Umferro de passar roupas, daqueles antigos epesados, também integrou as assem-blages de Bispo do Rosário. Ironica-mente, enquanto os artistas denunciavam

a compulsão capitalista no mundo, Bispoestava alheio a movimentos artísticos,galerias de artes, marchands e mecenas;ele era um excluído do sistema.“O senhor do labirinto” não gostava de

falar sobre a sua história de vida. Quandolhe perguntavam sobre sua origem, elerespondia apenas: “Um dia eu simples-mente apareci”. Muito do passado doartista emergiu na sua obra do recônditoda memória: os signos da infância e astradições de um lugar (Japaratuba) quetem como centro a Igreja de Nossa Se-nhora da Saúde. Nela estavam os bor-dados, as fantasias do Dia de Reis, acoroação do Rei e da Rainha em vestescravejadas de bordados e franjas, ambosnegros, nos Folguedos, bem como a pres-são cultural representada no nome quereúne dois termos imantados pela re-ligiosidade católica (Bispo + Rosário).Em um dos bordados do artista apa-

rece a inscrição “Missão Japaratuba”,fragmento que comprova a riqueza cul-tural herdada, que foi poeticamente tra-balhada em fardões tecidos, adornos,rebordos costurados. Variações estéticastambém incorporaram temas marítimos;embarcações com mastros, boias, botessalva-vidas, âncoras e bandeiras, remi-niscências da época de marujo. Bispo sedesignava “Rei dos Reis” e, para si, teceuum manto avermelhado, salpicado debordados com o qual seria coroado, o“Manto da Apresentação”, peça consi-

derada a sua obra-prima.Bispo esperava que os mesmos sete

anjos que lhe transmitiram “o cha-mado” viessem buscá-lo “com poderese glórias”, para levá-lo “para cima”, evisando à salvação do mundo, ele cons-truiu uma obra intitulada “A arca deNoé”, um barco feito com papelão epano. O sagrado e o profano perpassamtoda a obra de Bispo: bandeirolas ju-ninas, a bandeira do Brasil, signosreligiosos, como um coração de Cristo(entalhado na madeira), imagens desantos, medalhinhas da Virgem Maria,cruzes e crucifixos ilustraram a suavia-crúcis estética.Bispo, já idoso, passou atrair olhares

forasteiros, especialmente dos jorna-listas. Foi a partir de 1985 que a suaobra ganhou visibilidade e começou ase projetar nacionalmente. Ele posavaaltivo para as câmeras, vestindo o“Manto” e empunhando estandartes.

LivroNuances da vida e da arte de Bispo do

Rosário têmsido trabalhadas por artistasem filmes, teatros e livros. A EditoraRocco, após 15 anos, reedita a obra“Arthur Bispo do Rosário: o senhor dolabirinto”, escrita pela jornalista LucianaHidalgo, vencedora do Prêmio Jabuti de1997. Essa obra revela um estudo apro-fundado que conta com pesquisas rea-lizadas na Colônia Juliano Moreira e emJaparatuba, bem como, com entrevistas.Luciana Hidalgo afirmou que, após tri-lhar o “labirinto de palavras, histórias ebordados” do universo de Bispo do Ro-sário, saiu “outra”.A morte de Bispo do Rosário, em

1989, suscitou a preocupação com odestino e a preservação de sua obra, oque gerou a fundação da Associação deAmigos dos Artistas da Colônia JulianoMoreira. Atualmente, Arthur Bispo doRosário dá nome ao únicoMuseu de ArteContemporânea do país cujas exposiçõesacontecem em galerias situadas nas de-pendências de uma instituição psiquiá-trica. O acervo do Museu Bispo do Ro-sário foi tombado pelo Instituto Estadualdo Patrimônio do Rio de janeiro (INE-PAC), e as obras ficam expostas per-manentemente. Municipalizado, o Hos-pício Juliano Moreira tornou-se InstitutoMunicipal de Assistência à SaúdeJuliano Moreira.

ARTHUR BISPO DOROSÁRIO – O SENHORDO LABIRINTOLuciana Hidalgo. EditoraRocco. 192 páginas.Quanto: R$ 49,50

A “Roda da Fortuna”, montagemproduzida com ferro e madeira

O “Manto da Apresentação”, obra-prima para o artista ser coroado “Rei dos Reis”

DIVULGAÇÃO

Bispo do Rosário: mundo particular confrontou a opressão do sistema psiquiátrico

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,3 DE MARÇODE 2012

para dentro da bolsa.Vai embora.Nãopodeamarumhomem

assim. Seusmundos são paralelos. Ele nãoa merece. Não merece a sua ternura tãobem guardada, um carinho que resistiu,resistiu, resistiu... Não merece este amortão grande e tão rico, fruto de toda a suavivência, fruto de tantos amores outros.Não. Não foi para ele que tanto ela se

guardou. Seu universo ilimitado – pensaela – nada significa para este homemmedroso, ancorado em seus valores fa-lidos, em sua vida sem surpresa ou es-perança; vida segura, povoada de rótulose estereótipos, onde tudo é previsível e háum lugar para cada coisa, cada coisa emseu lugar. No uísque e no futebol, su-focados a duras penas os fantasmas doimprevisível. Esquecido o risco do en-volvimento, do entendimento, da emo-ção, da descoberta, do encontro.Esquecida alegria.Chove.Escurece, lá embaixo, a cidade.Corajosa,elacalçaaspesadasbotas, joga

o xale sobre os ombros e prepara-se paraenfrentar a rua, a chuva, o frio, a briga pelotáxi. Depois, liberdade. Bemdepressa o diaa dia apagará qualquer lembrança destafelicidade tão fugidia, breve, estúpida.Um último olhar ao espelho, a ajeitar a

roupa, surpreende-o a observá-la do outrolado. Entre sono e espanto, ele pergunta:– Por que toda essa roupa?– Tenho frio.– Você quer ir agora?– Quero.Ele suspira. Estende a mão e apanha

o relógio sobre a mesa de cabeceira. Nomovimento, deixa expostos os mús-culos, o corpo. Bonito. Dez e dez.Chove. Escurece.Ela inventa compromissos. Com os

olhos, ele pede. Ela vai mentindo horáriosacumprirenquantoeleacendeumcigarro.Ela observa: as mãos dele, os lábios dele.De súbito, seu corpo perdoa todas as

mágoas.Ri de si mesma.– Eu ia embora – diz ela de manso –

deixar você aí sozinho, dormindo.Ele sorri para ela. Um sorriso con-

descendente tal qual pai ante traves-sura infantil.– Vem cá. – ele diz.O corpo dela se encaixa certinho

dentro do abraço dele. Se esconde eenterra o rosto no ombro dele, a vozdela sai sufocada:– Preciso esquecer você.E, lentamente, começa a se despir.

ficçãopor ISABEL VASCONCELLOS; ILUSTRAÇÃO DO COLETIVO PEIXARIA

DEZ MINUTOSEm outra noite qualquer voltarão a se encontrar, por acaso, no bar de sempre – supõea narradora deste conto, sobre uma mulher que acorda dividida entre o amor e a razão

ugiu-lhe a manhã.Janela embaçada, toda

branca: visão primeira de umdespertar abrupto; na porta acampainha insistente, o sonhointerrompido. Estranha sensa-

ção é acordar em cama desconhecida,olhos fora de foco, olhos de súbitoarregalados para a ausência do co-tidiano cenário matinal.Descalços, seus pés pisam o chão

frio, uma toalha qualquer enrola ocorpo nu. Abre a porta a um vago vultoque estende para ela a consciência dasituação: bandeja, pão, leite, café, la-ranja, geleia colorida.Dez horas.

O homem na cama ronca e resmunga.Pergunta-lhe se quer café, perguntan-

do por perguntar, cansada de saber queele não quer. Com o pão e o leite vaimastigando esta sua tristeza. Ele volta adormir.Chove.Roupas em desalinho no espaldar da

cadeira. Por que não se vestir e, comumbeijo silencioso, sair para sempre? Porque não?...A ideia fica brincando dentro dela,

marota. Imagina-lhe a surpresa a pro-curá-la naquele quarto, naquele hotelmeio pobre, bobo e inexpressivo.Frio.Quase sem perceber, vai se vestindo.

Enquanto se veste antecipa e imagina:Sairia sem ruído, um bom-dia seco aoporteiro espantado, espantado por vê-lasair só. Afinal, saíam sempre juntos... Elase vê na rua, na chuva, no táxi... Che-garia, por fim, ao estacionamento, pertodo bar, onde seu carro, abandonado pelamadrugada, a acolheria. Antecipa o vooseguro pela avenida brilhante de chuva ede carros, caminho de casa, e seu dis-farçado vingado riso ao pensar neleacordando sozinho, surpreso, um tantoridículo a zanzar pelo quarto, em suanudez absurda.Chove. Leva muito tempo diante do

espelho na inútil tentativa de arrumar oscabelos despenteados de tanto acari-ciados, embaraçados pelo amor furioso,faminto, louco, absolutamente feliz.Feliz.Olha para ele, no fundo do espelho

refletido. Há de acordar e levá-la até seucarro. Na despedida, aquele beijo frio, apromessadeumtelefonemaque–ela sabe– não haverá. Nenhum resíduo de calornas mãos, nenhuma ternura nos olhos.Em outra noite qualquer voltarão a se

encontrar, por acaso, no bar de sempre.Paraqueentão tudo se repita.Novamenteacordar sobressaltada, a campainha ainterromper-lhe os sonhos; novamentemastigar com pão e café a sua tristeza.Não.Não quer mais ouvi-lo, decide. Não

mais suportar-lheoridículomedodeamar.Fanfarronice demenino grande a gabar-sede seus trinta e cinco anos de liberdade,nãomais suportar. Nãomais desdobrar-se,ora em companheira, ora em potencialinimiga. Não mais obrigá-lo a pensar,reformular, contestar-se a si próprio.“Vocêbagunçaminhamente” – costuma

ele dizer, tentando, sem graça, gracejar.Atira com raiva a escova de cabelo

F

Documento:AGazeta_03_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:01 de Mar de 2012 19:54:22