14
1 PENSADORES AFRICANOS E DA DIÁSPORA: NEGRITUDE, PAN- AFRICANISMO E PÓS-COLONIALISMO. WALTER GÜNTHER RODRIGUES LIPPOLD Professor do Curso de História e de Letras da FAPA. [email protected] “Interroguemos o próprio colonizado: quais são seus heróis populares? Seus grandes líderes populares? Seus sábios? Mal pode dar-nos alguns nomes, em completa desordem, e cada vez menos à medida em que descemos de gerações. O colonizado parece condenado a perder progressivamente a memória”. Albert Memmi O presente artigo está fundamentado em minha prática como educador e pesquisador que busca superar o eurocentrismo na pesquisa e formação de professores. Desde 2002 participando do Coletivo Fanon, grupo de estudos sobre pensadores africanos e da diáspora, aprofundando e sistematizando as teorias e conceitos destes intelectuais em minha especialização e mestrado continuei nesta tentativa de utilizar conceitos de Frantz Fanon, Albert Memmi, Kwame N´Krumah, Leopold Senghor, Aimé Cesáire, Stuart Hall e Edouard Glissant para compreender as relações étnico-raciais construídas no Brasil. Há poucas décadas atrás, os estudos da história e do pensamento africanos eram fortemente marginalizados, quase inexistentes na historiografia brasileira. Recentemente estes estudos começam a florescer no Brasil, incentivados pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, mas ainda temos que avançar principalmente na crítica ao conteúdo e a forma eurocêntrica de muitas pesquisas que buscam compreender o nosso País. Digo conteúdo e forma pois mesmo pesquisas que visam criticar o eurocentrismo acabam utilizando somente ou majoritariamente - autores europeus para compreender as realidades africanas e afro-diaspóricas. Não estamos propondo a não utilização de autores europeus, mas sim valorizar e conhecer o pensamento africano e da diáspora na América.

PENSADORES AFRICANOS E DA DIÁSPORA: NEGRITUDE, … · 1 PENSADORES AFRICANOS E DA DIÁSPORA: NEGRITUDE, PAN-AFRICANISMO E PÓS-COLONIALISMO. WALTER GÜNTHER RODRIGUES LIPPOLD Professor

  • Upload
    vukiet

  • View
    220

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

1

PENSADORES AFRICANOS E DA DIÁSPORA: NEGRITUDE, PAN-

AFRICANISMO E PÓS-COLONIALISMO.

WALTER GÜNTHER RODRIGUES LIPPOLD

Professor do Curso de História e de Letras da FAPA.

[email protected]

“Interroguemos o próprio colonizado: quais

são seus heróis populares? Seus grandes

líderes populares? Seus sábios? Mal pode

dar-nos alguns nomes, em completa

desordem, e cada vez menos à medida em

que descemos de gerações. O colonizado

parece condenado a perder

progressivamente a memória”.

Albert Memmi

O presente artigo está fundamentado em minha prática como educador e

pesquisador que busca superar o eurocentrismo na pesquisa e formação de professores.

Desde 2002 participando do Coletivo Fanon, grupo de estudos sobre pensadores

africanos e da diáspora, aprofundando e sistematizando as teorias e conceitos destes

intelectuais em minha especialização e mestrado continuei nesta tentativa de utilizar

conceitos de Frantz Fanon, Albert Memmi, Kwame N´Krumah, Leopold Senghor, Aimé

Cesáire, Stuart Hall e Edouard Glissant para compreender as relações étnico-raciais

construídas no Brasil. Há poucas décadas atrás, os estudos da história e do pensamento

africanos eram fortemente marginalizados, quase inexistentes na historiografia

brasileira. Recentemente estes estudos começam a florescer no Brasil, incentivados

pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, mas ainda temos que avançar principalmente na

crítica ao conteúdo e a forma eurocêntrica de muitas pesquisas que buscam

compreender o nosso País. Digo conteúdo e forma pois mesmo pesquisas que visam

criticar o eurocentrismo acabam utilizando somente – ou majoritariamente - autores

europeus para compreender as realidades africanas e afro-diaspóricas. Não estamos

propondo a não utilização de autores europeus, mas sim valorizar e conhecer o

pensamento africano e da diáspora na América.

2

Existiu um pensamento africano e afro-diásporico descolonizador coerente em

suas ideias? Que contradições se manifestam entre os movimentos da Negritude, Pan-

africanismo e os recentes estudos pós-coloniais, há continuidade entre eles? Ao

contrário das teses eurocêntricas que afirmam não haver reflexão interna sobre os

problemas africanos e dos negros na América, existiram pensadores que se dedicaram a

análise de seu continente de origem e do movimento dos povos africanos pelo

continente americano, o que chamamos de Diáspora Africana. Podemos citar alguns

como Leopold Sedar Senghor, Aimé Cesáire, Albert Memmi e Kwame N´Krumah,

além de Frantz Fanon, que formaram um pensamento interligado que pode ser chamado

de pensamento africano anticolonial. A influência destes nomes, principalmente de

Fanon nos chamados estudos pós-coloniais é crucial, sendo explícita a sua teoria na

questão da identidade, da linguagem e da crítica ao que se conveniou chamar de

colonialidade do saber.

Leopold Sedar Senghor foi presidente do Senegal, e além de ser professor e

escritor, foi um dos defensores e teóricos da negritude, juntamente com o martiniquense

Aimé Cesáire. Este movimento caracterizava-se pela busca da valorização da cultura

africana, suas civilizações, seus feitos, sua essência. Defendiam que o “comunitarismo

inerente” aos povos da África seria a base do socialismo africano. Acreditavam que a

“sociedade africana tradicional [...] é por natureza coletivista; o socialismo é, portanto,

já presente dentro da sociedade africana, onde o capitalismo é o elemento estranho

trazido pela colonização1” (BÉNOT, 1969, p.174, tradução minha). Era uma tentativa

de rebater a ideologia racista-eurocêntrica que ditava que os negros eram eternos

submissos e não possuíam história. Os poetas da negritude exaltavam o ser-negro, sua

emoção e sua sensibilidade, seu ritmo. Para Senghor “a emoção é negra, como a razão é

grega” (apud FANON, 1967, p.127). Esta visão levou a uma tese essencialista do ser-

negro, mas, apesar de seus limites, configurou-se em uma tentativa de resgate da cultura

negra contra o universalismo assimilador da ideologia metropolitana e influenciou os

pensadores anticoloniais africanos. Fanon que antes defendia a negritude, mais tarde

passou a criticá-la, mesmo com a influência que Cesáire e Senghor tiveram no seu

pensamento. Quanto a isso Fanon (1968, p. 196) diz que:

1 “[...]la société africaine traditionnelle [...] est par nature collectiviste; le socialisme est donc déjá présent

dans la société africaine, où le capitalisme est l´élément étranger apporté par la colonisiation.”

3

“[...]Senghor, que também é membro da Sociedade Africana de

Cultura e que trabalhou conosco na questão da cultura africana, não

receou, tampouco, dar ordem à sua delegação de apoiar as teses

francesas sobre a Argélia. A adesão à cultura negro-africana, à

unidade cultural da África, passa primeiramente pelo apoio

incondicional à luta de libertação dos povos. Não se pode querer o

esplendor da cultura africana se não se contribui concretamente para a

existência das condições dessa cultura, isto é, para a libertação do

continente.

A face contraditória da negritude foi criticada também por Adotevi (apud

MANCE, 1995) que defendia:

[...]uma concepção do negro que articula de maneira indissociável a

identidade e a história dos povos negros.[...] Não há como tratar de

nenhuma particularidade negra fora desta particularidade histórica.

Sendo a história e a identidade do homem intrinsecamente vinculadas,

a identidade negra constrói-se historicamente e historicamente deve

ser compreendida.

O africano Kwame N’Krumah foi o líder da Independência de Gana e o primeiro

presidente do país, além da atividade política, desenvolveu uma teoria sobre as novas

formas em que colonialismo moribundo metamorfoseava-se para se perpetuar. Foi

também, um dos defensores do pan-africanismo que visava unir a África para libertar-se

do jugo neocolonialista e dos restos do colonialismo ainda resistentes. Em sua obra

Necolonialismo – último estágio do Imperialismo (N’Krumah, 1967a) ele focaliza que

além da dependência econômica – e consequentemente política – a ex-colônia continua

a ser vítima da alienação cultural. N’Krumah era um crítico da metafísica da negritude,

principalmente do socialismo africano proposto por Senghor. Em um discurso proferido

no Cairo, Nkrumah (1967b, tradução minha) deixa clara sua visão de que o socialismo

não pode ter como base qualquer racialismo, tribalismo, que podem levar ao

chauvinismo:

Senghor tem realmente dado uma explicação da natureza do retorno

para África. Sua conta é iluminada por declarações usando algumas de

suas palavras próprias: que o Africano é “um campo de sensação pura

“ ; que ele não mede ou observa, mas “vive” uma situação; e que este

caminho de adquirir “conhecimento” por confrontação e intuição é

negro-Africana ; a aquisição de conhecimento pela razão, " Helênica "

4

. [... ] Está claro que socialismo não pode ser fundado neste tipo de

metafísica do conhecimento.2

Nascido na Martinica, o pensador Frantz Fanon (1925-1961) foi para a França

lutar contra o nazismo. Após se destacar como combatente, estudou medicina em Lyon,

tornando-se psiquiatra. Concomitantemente estudava filosofia em cursos de Jean

Lacroix e Merlau-Ponty aprofundando-se nas obras de Hegel, Marx, Lênin,

Kierkegaard, Husserl, Heidegger e Sartre.

Logo após seus estudos, Fanon vai trabalhar na Argélia como médico-

chefe da Clínica de Blida-Joinville, onde, a partir do seu contato com

a realidade colonial, se engaja na luta pela independência argelina,

tornando-se argelino. Após sua entrada na Frente de Libertação

Nacional argelina, ele torna-se representante do Governo Provisório

em vários encontros entre países africanos e do Terceiro-Mundo em

geral. Em 1961 Fanon descobre que está com leucemia e escreve em

10 meses Os Condenados da Terra,, vindo a morrer no mesmo ano. A

obra de Fanon está inserida no contexto das independências africanas

e no chamado terceiro-mundismo, exercendo bastante influência em

movimentos negros radicais nos Estados Unidos, como os Panteras

Negras e principalmente nos movimentos anticoloniais. (LIPPOLD,

2005, p.10)

O tunisiano Albert Memmi era de origem judaica. Judeu de língua árabe que

estudou em escolas francesas, vivenciou a situação do intelectual fendido culturalmente.

“Albert Memmi vivenciava três culturas diferentes, como judeu que fala árabe e que foi

educado pelos franceses.” (LIPPOLD, 2005, p.10). Escritor e professor na Carnot High

School em Tunis, absorveu esta condição de intelectual fendido: “[...]judeu criado no

modo ocidental no interior de uma cultura magrebina, postulou um modo de ser que

permitisse uma negação do aniquilamento sócio-econômico e cultural do colonizado.”

(LIPPOLD, 2005, p.10)

Antes de partir para a análise dos estudos pós-coloniais vamos adentrar em

alguns aspectos da teoria de Fanon. Em Pele Negra, Máscaras Brancas(FANON, 1967)

é analisado o mundo da alienação cultural em que se encontra o colonizado, que

negando sua própria identidade, absorve os ideais europeus de cultura, vivendo um

2 “Senghor has, indeed, given an account of the nature of the return to Africa. His account is highlighted

by statements using some of his own words: that the African is “a field of pure sensation”; that he does

not measure or observe, but “lives” a situation; and that this way of acquiring “knowledge” by

confrontation and intuition is “negro-African”; the acquisition of knowledge by reason, “Hellenic”.[...] It

is clear that socialism cannot be founded on this kind of metaphysics of knowledge.”

5

verdadeiro processo de embranquecimento. O colonizado é obrigado a aprender a língua

do opressor e desse modo, segundo Fanon, nasce um verdadeiro complexo de

inferioridade cultural, já que “falar uma língua é apropriar-se de um mundo, uma

cultura. O negro antilhano que deseja ser branco vai ser mais branco quanto mais ele

ganha maestria no instrumento cultural que a língua é3” (FANON, 1967, p.38, tradução

minha). O negro colonizado ao assumir o francês como língua internaliza também parte

da consciência coletiva do francês que relaciona o negro com o mal e o sujo. Memmi

(1977, p.96-97) está em concordância com o pensamento de Fanon quanto à questão

língua, quando afirma que:

O colonizado não se salva do analfabetismo para cair no dualismo

lingüístico.[...]Munido apenas de sua língua o colonizado é um

estrangeiro dentro de seu próprio país.[...] A posse de duas línguas não

é apenas a de dois instrumentos, é a participação em dois reinos

psíquicos e culturais. Ora aqui, os dois universos simbolizados,

carregados pelas duas línguas, estão em conflito: são os do

colonizador e do colonizado.

Fanon completa este pensamento sobre a língua e a cultura dizendo que:

Todo povo colonizado - em outras palavras, todo povo em que em sua

alma um complexo de inferioridade foi criado pela morte e enterro de

sua originalidade cultural local – acha-se face a face com a linguagem

da nação civilizadora, ou seja, da cultura da metrópole. O colonizado é

elevado acima de seu status selvagem na proporção que ele adota os

valores culturais da metrópole. Ele será tanto mais branco quanto mais

tiver rejeitado sua negrura[...]4. (FANON, 1967, p.18, tradução minha)

Um sonho de um negro, contado a Fanon(1967, p.99), levou o psiquiatra a uma

interpretação, que de certo modo é a ideia central de sua obra Pele Negra Máscaras

Brancas:

Eu estava caminhando a um longo tempo, eu estava extremamente

exausto, eu tinha a impressão que algo estava esperando por mim, eu

escalei barricadas e muros, eu fui até um salão vazio e, atrás de uma

porta, eu ouvi barulho. Eu hesitei antes de entrar lá, mas finalmente

3 “To speak a language is to take on a world, a culture. The Antilles Negro who wants to be white will be

the whiter as he gains mastery of the cultural tool that language is.” 4 Every colonized people – in other words, every people in whose soul an inferiority complex has been

created by the death and burial of its local cultural originality – find itself face to face with the language

of the civilizing nation; that is, with the culture of the mother country. The colonized is elevated above his

jungle status in proportion to his adoption of the mother country´s cultural standards. He becomes whiter

as he renounces his blackness[...]

6

eu[...] abri a porta. Nesta segunda sala haviam homens brancos, e eu

achei que também era branco5. (tradução minha)

Para Fanon este sonho representa um desejo inconsciente, que por sua vez é

produto de um complexo de inferioridade sofrido pelo negro e que perigosamente pode

desintegrar a sua estrutura psíquica. Se ele tem o desejo de ser branco é porque ele vive

numa sociedade que faz seu complexo de inferioridade possível, “numa sociedade que

deriva sua estabilidade da perpetuação de seu complexo, numa sociedade que proclama

a superioridade de uma raça6[...]”(FANON, 1967, p.100, tradução minha). Neste terreno

de imagens é que Fanon se detém com maior profundidade, ele busca o inconsciente

coletivo europeu, que em grande parte é absorvido pelo negro, e que desde épocas

medievais faz a analogia da cor preta com o pecado, o mal e o feio. (MACEDO, 2001)

Pretidão, escuridão, sombras, noite, os labirintos da Terra,

profundezas abismais, pretear a reputação de alguém; e do outro lado,

o olhar brilhante da inocência, a pomba branca da paz, mágica, luz

celestial. Uma magnífica criança loira – quanta paz há nesta , quanta

alegria, e acima de tudo quanta esperança! Não há comparação com

uma magnífica criança preta[...] Na Europa, e isto deve ser dito, em

todo país civilizado e civilizador, o Negro é o símbolo do pecado. O

arquétipo dos valores mais baixos é representado pelo Negro7.

(FANON, 1967, p.189, tradução minha)

Ele continua sua exposição explicitando também sua visão de que o inconsciente

coletivo não é fruto do biológico, mas sim da cultura. Assim o pensador explica o

mecanismo que impõe a visão eurocêntrica e racista no próprio colonizado:

No inconsciente coletivo do homo occidetalis, o Negro – ou, se

preferir, a cor preta – simboliza o mal, pecado, maldição, morte,

guerra, fome. Todos os pássaros predatórios são pretos. Na Martinica,

onde o inconsciente coletivo faz desta um país europeu, quando um

5 “I had been walking for a long time, I was extremely exhausted, I had the impression that something

was waiting for me, I climbed barricades and walls, I came into an empty hall, and from nehind a door I

heard noise. I hesitated before I went in, but finally I[...]opened teh door. In this second room there were

white man, and I found that I too was white”. 6 “[...]in a society that makes his inferiority complex possible, in a society that derives its stability from

the perpetuation of his complex, in a society that proclaims the superiority of one race[...]”. 7 “Blackness, darkness, shadow, shades, night, the labyrinths of the earth, abysmal depths, blacken

someone´s reputation; and, on the other side, the bright look of innocence, the white dove of peace,

magical, heavenly light. A magnificent blond child –how much peace there is in that phrase, how much

joy, and above all how much hope! There is no comparison with a magnificient black child[...]In Europe,

that is to say, in every civilized and civilizing country, the Negro is the symbol of sin. The archetype of

the lowest values is represented by the Negro.”

7

Negro “azul” – um preto-carvão – vem visitar, alguém reage no

momento: ‘Que má sorte ele está trazendo?’ O inconsciente coletivo

não é dependente da hereditariedade cerebral; ele é resultado do que

eu chamarei de imposição irrefletida da cultura8.(FANON, 1967,

p.190-191, tradução minha)

Eis que deste emaranhado de imagens que ligam o negro ao mal, à feiúra e a

preguiça, surge no próprio negro a vontade de fugir desta analogia imposta pelo

racismo. A ideologia do colonizador acaba por penetrar na consciência do colonizado

que, alienado, identifica-se com as imagens míticas criadas:

“Não terá um pouco de razão? – murmura ele. Não somos, de certo

modo, um pouco culpados? Preguiçosos, já que temos tantos ociosos?

Medrosos, já que nos deixamos oprimir?” Desejado, divulgado pelo

colonizador, este retrato mítico e degradante acaba, em certa medida,

por ser aceito e vivido pelo colonizado. (MEMMI, 1977, p.83)

O tunisiano Memmi continua a explorar esta despersonalização, este

estranhamento-de-si:

“Em nome daquilo que deseja vir a ser, empenha-se em empobrecer-

se, em arrancar-se de si mesmo. [...] O esmagamento do colonizado

está incluído nos valores dos colonizadores. Quando o colonizado

adota esses valores, adota inclusive sua própria condenação. Para

libertar-se, ao menos é o que pensa, aceita destruir-se. O fenômeno é

comparável à negrofobia do negro, ou ao anti-semitismo do judeu. As

negras se desesperam alisando os cabelos, que anelam sempre, e

torturam a pele a fim de embranquecê-la um pouco. (MEMMI, 1977,

p. 107)

Temos muitos outros exemplos de pensadores africanos e afro-diáspóricos mas

vamos trazer mais dois nomes ligados a crítica ao essencialismo universalista

inaugurada por Fanon. Para o jamaicano Stuart Hall as identidades estão sendo

descentradas e fragmentadas e deste processo emerge o sujeito pós-moderno. Para Hall,

[...] O sujeito pós-moderno[é] conceptualizado como não tendo uma

identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma

‘celebração móvel’[...]O sujeito assume identidades diferentes em

diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de

8 In the collective unconscious of homo occidentalis, the Negro – or, if one prefers, the color black –

symbolizes evil, sin, wretchedness, death, war, famine. All birds of prey are black. In Martinique, whose

collective unconscious makes it a European country, when a ‘blue’ Negro – a coal-black one –comes to

visit, one reacts at once: ‘Waht bad luck is he bringing?’ the collective unconscious is not dependent on

cerebral heredity; it is the result of what Ishall call the unreflected imposition of a culture”.

8

um ‘eu’ coerente.[...]A identidade plenamente unificada, completa,

segura e coerente é uma fantasia.” (HALL, 1999, p.12-13)

A afirmação da identidade – segundo alguns anti-essencialistas que absolutizam

a afirmação de Hall - torna-se um jogo de cartas, onde o indivíduo utiliza-se de suas

múltiplas identidades/coringas conforme o lugar onde está. Se a identidade é uma

escolha meramente individual, sem determinações e condicionantes externos ao

indivíduo, que os internaliza, a questão racial seria igual a diferença de gostos, por

exemplo, entre os admiradores de Mozart e de Charlie Parker.

E, a partir de sua argumentação, Hall chega a conclusão que

Nenhuma identidade singular – por exemplo, de classe social- podia

alinhar todas as diferentes identidades com uma “identidade mestra”

única, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura, basear uma

política. As pessoas não identificam mais seus interesses sociais

exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como

um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da

qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das

pessoas possam ser reconciliadas e representadas” (HALL,1999, p.20-

21)

Edouard Glissant cria o conceito de Poética da Relação e de antilhinidade

criticando também o essencialismo universalista da posição adotada pela negritude de

Cesáire. Nascido na Martinica, vê na poética da relação uma

[...]abertura para a complexidade do diverso, em ruptura com

qualquer essencialismo, com qualquer pensamento de sistema porque

dá conta da fragilidade das construções identitárias, sempre em

constante mutação, numa multiplicidade de possibilidades

combinatórias[...] (FIGUEIREDO, 1998, p.79)

A obra de Fanon tem sido analisada, comentada e criticada por alguns

pensadores atuais ligados aos estudos pós-coloniais. Estes pensadores – como o

palestino Edward Said e o indo-britânico Hommi Bhabha – foram influenciados pelo

pensamento de Fanon e vêem neste um dos teóricos mais importantes, senão pioneiros,

na desconstrução do universalismo eurocêntrico, desta visão de Homem, que nunca

condisse com a realidade nas colônias. Estes pensadores pós-coloniais são influenciados

pela teoria de Foucault, mas Said (1995, p. 343) critica o pensador francês por este ter

se emaranhado na microfísica do poder sem dar atenção para o colonialismo, pois para

ele “a experiência colonial não tem quase nenhuma pertinência, numa omissão teórica

9

que constitui norma nas disciplinas cientificas e culturais do ocidente[...]” (SAID, 1995,

p.77).

Tanto Said como Hommi Bhabha, se aproximam de Fanon porque assim como

ele vivenciaram um mundo cultural fendido, contraditório, pois estavam transitando

entre suas origens não-européias e a sua educação ocidentalizada. São intelectuais que

conheceram a despersonalização do Outro não-europeu e sua constante negação como

ser humano.

Bhabha (1998, p.72) pergunta:

Qual é a força específica da visão de Fanon? Ela vem, creio, da

tradição do oprimido, da linguagem de uma consciência

revolucionária de que, como sugere Walter Benjamin, “o estado de

emergência em que vivemos não é a exceção, mas a regra”.

Continuando em seu capítulo específico sobre Fanon, Bhabha (1998, p.98)

afirma que:

Em seu modo analítico, Fanon explora questões afins da ambivalência

da inscrição e da identificação coloniais. o estado de emergência a

partir do qual ele fala demanda respostas insurgentes, identificações

mais imediatas. Fanon freqüentemente tenta estabelecer uma

correspondência próxima entre a mise-em-scènce da fantasia

inconsciente e os fantasmas do medo e ódio racistas que rondam a

cena colonial; ele parte das ambivalências da identificação para as

identidades antagônicas da alienação política e da discriminação

cultural. (BHABHA, 1998, p.98)

Said cita muito a obra de Fanon em seu livro Cultura e Imperialismo, onde ele

desenvolve o seu conceito de orientalismo (SAID, 1990), ou seja, este discurso

ocidental criado para representar o oriente médio, para o restante da Ásia e para África.

Este pensador tenta compreender o discurso imperialista na literatura metropolitana,

como são construídas pelos europeus as visões mistificadas dos não-ocidentais.

Se venho citando Fanon com tanta freqüência, é porque, ao meu ver, é

ele quem expressa da forma mais intensa e decisiva a imensa guinada

cultural do terreno da independência nacionalista para o domínio da

libertação. Essa guinada ocorre sobretudo nos países onde o

imperialismo subsiste, depois que a maioria dos outros Estados

coloniais já conquistou a independência: por exemplo, Argélia e

Guiné-Bissau. Em todo caso, só é possível entender Fanon se

compreendermos que sua obra é uma resposta a elaborações teóricas

produzidas pela cultura do capitalismo ocidental tardio, recebida pelo

10

intelectual nativo do Terceiro Mundo como uma cultura de opressão e

escravização colonial. (SAID, 1995, p.332)

Persistindo no mundo atual mazelas decorrentes do colonialismo, devemos

estudá-las e para este objetivo é necessário buscar em pensadores como Fanon e

Memmi uma visão que negue o Homem abstrato do universalismo liberal-burguês e o

eurocentrismo decorrente desta. Fanon lança, naquela época, questões bastante

pertinentes aos dias de hoje como a análise do cinema e da literatura em busca do

racismo, “é preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os

níveis de sociabilidade” diz Fanon (1980, p.40) em sua intervenção no I Congresso de

Escritores e Artistas Negros em Paris, em setembro de 1956. Said acatou o pedido de

Fanon, pois Orientalismo (1990) e Cultura e Imperialismo (1995) são obras que buscam

o racismo, nos discursos que o ocidente cria para representar os árabes, os negros, os

orientais na literatura ocidental.

Comparando a teoria de Fanon e Memmi podemos averiguar que suas teorias

aproximam-se bastante, são realmente coerentes entre si. Mas ao compararmos estas

teorias com o pensamento de Senghor vimos que estas possuem discordâncias, Fanon e

Memmi não se baseiam numa metafísica que afirma uma essência ahistórica no negro,

eles estão interligados com Senghor porque sofreram a influência da negritude, mas

Fanon, critica o socialismo africano de Senghor, que para este último era inerente aos

povos africanos. Fanon não quer que os novos países se baseiem, para a construção

nacional, nos modelos europeus, mas também em exemplos passados, muitas vezes

mistificados. É o que defende também N’Krumah, veemente crítico do socialismo

africano senghoriano.

Com tudo isso, posso afirmar que existiu um pensamento anticolonial africano,

mas a hipótese de que este era coerente, cai por terra, dadas as diferenças entre a

negritude de Senghor e as teorias de Fanon, Memmi e N’Krumah. Podemos falar de um

pensamento anticolonial africano interligado, mas não coerente, coeso. Mesmo assim

estes pensadores são um prova irrefutável que os africanos refletiram com profundidade

sobre a situação colonial, desbancado o pensamento eurocêntrico que afirma ser a

África um continente onde não houve reflexão teórica, onde não existiam pensadores

que buscassem compreender a realidade africana. Esta visão é fruto do desconhecimento

11

e do desprezo relegado aos povos negros; “me diga o nome de um pensador africano”

perguntou-me um dia um professor de filosofia totalmente eurocêntrico, eu pude

responder com vários nomes!

A condição colonial era marcada por duas chagas que se completavam: a

alienação/estranhamento e a violência. Fanon teve uma importância crucial para os

povos colonizados em luta pela libertação nacional: ele analisou como o colonialismo

cria a suposta inferioridade do colonizado, que enfraquecido e derrotado, acaba por

aceitar esta ideologia degradante. O racismo é o pilar ideológico do colonizador, é a

justificativa que ele criou para poder efetuar a colonização, vendo-a não como uma

violência, mas sim como um benefício aos colonizados. Hoje o racismo vai além dos

seus aspectos ideológicos, é uma estrutura objetiva e já abarca o subjetivo e o objetivo,

se é que podemos cair nestas armadilhas binárias e divisões cartesianas. Fanon e

Memmi ajudaram o negro, o árabe e os colonizados em geral, a compreender que a

construção da máscara branca era um sintoma grave da despersonalização fomentada

pelo colonialismo: o processo de embranquecimento que vivencia o colonizado, que não

quer ser negro/árabe, mas também não pode ser branco, ser assimilado totalmente, fende

o indivíduo, aniquilando-o. Nisto está o significado maior de Pele Negra, Máscaras

Brancas, este indivíduo que absorveu a língua do colonizador e com ela, como esta é

um instrumento cultural, muito das ideologias racistas vigentes na Europa, este

colonizado que foi aniquilado em sua identidade .

A Guerra de Independência na Argélia foi extremamente violenta, devido ao

grande número de colonos franceses que viviam no território argelino. O colonizador

sempre utilizou a violência para submeter o povo argelino, já que via este como sub-

humano, como pertencente ao reino da Natureza e não da Cultura, e como diz uma frase

do senso comum, “violência gera violência”. Fanon absorveu muito da realidade

argelina, foi na Clínica Psiquiátrica de Blinda-Joinville que ele presenciou

primeiramente a violência a qual os argelinos eram submetidos. Ele sofreu a influência

da realidade argelina na medida em que começou a defender o uso da violência contra o

colonizador: os nacionalistas argelinos que tentaram com métodos democráticos se

emancipar foram sempre barrados pela intolerância francesa, que defendia a Liberdade,

Igualdade, Fraternidade somente para a metrópole e nunca para a Argélia, apesar desta

ser considerada parte da França. Isto marcou Fanon profundamente. Ele, ao desenvolver

12

sua sociologia da violência, ajudou teoricamente o colonizado a compreender que para

destruir uma violência era necessária uma violência maior; aquelas colônias que se

emancipavam pacificamente puderam fazê-lo porque as metrópoles, principalmente a

inglesa, apavoravam-se com os conflitos que ocorriam nas colônias em que os europeus

não quiseram se retirar, a descolonização pacífica era fruto da violência vizinha.

Fanon foi muito criticado em sua concepção da violência, para a crítica ele

superestimou o papel da violência, esta por si só não podia levar à uma consciência

social, era necessária uma ideologia coesa, que segundo Chaliand (1977) , só podia ser

espraiada no povo por um vanguarda nos moldes leninistas, como ocorreu no Vietnã.

Mas Fanon nunca defendeu um espontaneismo cego, ele afirmava a importância de uma

liderança interligada com o povo, que assumisse seus erros e que não se colocasse

acima daqueles que representava. Fanon avisava em sua obra sobre a possibilidade da

independência não levar a consciência nacional ao patamar de consciência social, isto

devido principalmente às atitudes da burguesia “nacional”. Fanon desse modo anteviu o

neocolonialismo, com suas novas formas de dominação econômicas e culturais.

Notem que todos estes intelectuais eram indivíduos fendidos culturalmente, nascidos

colonizados se educaram nas metrópoles, estavam em um limbo de não-pertencimento e

talvez por isso tiveram a oportunidade de analisar de modo tão profundo o colonialismo

e suas continuidades no mundo atual. Glissant, Hall, Bhabba e Said se aproximavam de

Fanon em sua crítica ao universalismo essencialista do eurocentrismo, se unindo muitas

vezes ao pós-estruturalismo e ao desconstrucionismo derridiano.

Assim este estudo sobre o pensamento de Fanon e dos pensadores africanos e

afro-diáspóricos trouxe a tona uma série de questões pertinentes sobre o racismo e sobre

a alienação, inclusive nestes tempos pós-coloniais, pois passados anos da conjuntura em

que o pensador escreveu, o preconceito racial continua impregnando a sociedade atual,

inclusive a brasileira, que se esconde sob o véu mítico da “democracia racial”. Estudar

Fanon no Brasil é imprescindível para compreendermos melhor o racismo

assimilacionista que vigora aqui, buscando alternativas para aniquila-lo. Escutemos

Edward Said e Hommi Bhabha: é hora de trazer Fanon para a atualidade.

Referências Bibliográficas:

13

BÉNOT, Yves. Idéologies des indépendances africaines. Cahiers Libres 139-140. Paris:

François Maspero, 1969.

CHALIAND, Gerard. Mitos Revolucionários do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: F.

Alves, 1977.

BHABHA, Hommi. Interrogando a Identidade: Frantz Fanon e a prerrogativa pós-

colonial. In: O Local da Cultura. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1998.

FANON, Frantz. Black Skin, White Masks. New York: Grove Press, 1967.

________. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

________. Racismo e Cultura. Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Sá da

Costa, 1980.

FIGUEIREDO, Eurídice. Construção de identidades pós-coloniais na literatura

antilhana. Niterói: EDUFF, 1998.

LIPPOLD, Walter G. R.. O Pensamento Anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de

Indepêndencia na Argélia. Monographia : África Contemporânea e Estudos Afro-

Brasileiros, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p.1-20, maio 2005. Disponível em:

<http://www.fapa.com.br/monographia/artigos/1edicao/artigo5.pdf>. Acesso em: 10 de

junho de 2014.

MACEDO, José Rivair. Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval.

SIGNUM: Revista da ABREM, Vol. 3, p. 101-132, 2001. Disponível em:

<http://www.pem.historia.ufrj.br/arquivo/joserivair001.pdf> Acesso em: 15 de junho de

2014.

MANCE, Euclides André. As Filosofias Africanas e a Temática de

Libertação. Curitiba: 1995.

MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador. 2ª Ed.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

NKRUMAH, Kwame. Necolonialismo – último estágio do Imperialismo. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1967a.

_________. African Socialism Revisited. 1967b. Disponível em:

<http://www.marxits.org>

Acesso em: 25 de abril de 2014.

SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990.

_______. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

14