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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTTICA E FILOSOFIA DA ARTE
PATRCIA BIZZOTTO PINTO
PENSAMENTO-MSICA E A FILOSOFIA DE GILLES DELEUZE
Ouro Preto 2017
Patrcia Bizzotto Pinto
PENSAMENTO-MSICA E A FILOSOFIA DE GILLES DELEUZE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Esttica e Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura, da Universidade Federal de Ouro Preto, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre. Linha de Pesquisa: Esttica e Filosofia da Arte Orientadora: Prof. Dr. Cntia Vieira da Silva
Ouro Preto 2017
Catalogao: www.sisbin.ufop.br
B625p Bizzotto Pinto, Patrcia. Pensamento-msica e a filosofia de Gilles Deleuze [manuscrito] / PatrciaBizzotto Pinto. - 2017. 135f.:
Orientador: Prof. Dr. Cntia Vieira da Silva.
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deFilosofia, Arte e Cultura. Departamento de Filosofia. Programa de Ps-Graduaoem Esttica e Filosofia da Arte. rea de Concentrao: Filosofia.
1. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2. Msica . 3. Ritmo. 4. Pensamento. 5.Criao. I. Vieira da Silva, Cntia. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III.Titulo.
CDU: 1:78
Pro meu pai, pensador-ouvinte assduo e generoso
AGRADECIMENTOS
A todos com quem pude conversar, criar, tocar, compor, dividir espaos, casas,
ideias, cafs, dvidas, angstias, livros, filmes, msicas e silncios, desde quando
comecei esta pesquisa, permeada de golpes, absurdos e tropeos.
Aos mais prximos - com quem convivo intensamente -, pelo imediato e por tudo.
Ao Gilson Iannini, pela fora e incentivo desta pesquisa desde o seu comeo.
Cntia Vieira, minha orientadora, por todos os momentos de pacincia, de risos,
de carinho e pela escuta estimulante, respeitosa e atenta de todo percurso deste trabalho.
CAPES e aos governos Lula e Dilma pelo incentivo e fomento s pesquisas dos
brasileiros e dos residentes no Brasil.
Ao Thiago Borges, por assumir (com carinho e humor singulares) boa parte da
reviso e da formatao deste texto.
professora Virgnia Figueiredo, por incentivar a colaborao e trnsito livres nas
universidades pblicas e receber de forma acolhedora pesquisadores de outras
comunidades acadmicas nos laboratrios e grupos de estudo em filosofia da UFMG.
Fundao de Educao Artstica colegas e alunos com quem pude
experimentar e trocar algumas ideias sobre pensamentos-msica.
A todos da comunidade IFAC professores, colegas e funcionrios - com quem
pude conviver em Ouro Preto, mesmo que rapidamente, ao longo dos dois anos. Agradeo,
principalmente, ao Guilherme Paoliello, por todos os estmulos.
Nathlia Fragoso, pelo convite a Pulsaes e suas decorrncias. Ao Matthias
Koole, por sua persistncia com as Quartas de Improviso (e por ter me incentivado a
participar).
cidade de Belo Horizonte, por suas ruas, por aquilo que ela tem de mais
acolhedor, surpreendente e poltico.
(...) cest lide que le temps et lespace forment une unit (...).
Autrefois, on pensait en catgories musicales telle que la polyphonie, la mlodie,
lharmonie, etc. Je pense en structures et formes musicales dans lesquelles le temporel est
conu en fait de manire spatiale comme si tout tait prsent en mme temps.
Gyrgy Ligeti
(Changement de paradigme des annes quatre-vingt, 1988)
RESUMO
Esta dissertao pretende apresentar a ideia de um pensamento-msica. Ela parte da
filosofia de Gilles Deleuze desde algumas primeiras publicaes, como Diferena e
Repetio, at obras em parceria com Flix Guattari, como Mil Plats, Kafka - por uma
literatura menor e O que filosofia? sob uma perspectiva esttica e sua relao com o
musical e o sonoro. Pretende-se investigar, dentro desta perspectiva, a relao e os limites
entre o sonoro-musical, a sensao, a criao e o pensamento. Para tanto, foram rastreados,
no contexto do encontro de Deleuze com as artes e de seu encontro com Flix Guattari, a
incidncia (articulaes, modulaes, relaes de vizinhana) de conceitos que na
perspectiva desta dissertao entendem-se como musicais. Tais conceitos so aqui
analisados e discutidos junto com a noo de movimento do ato de pensar/sentir/criar,
compondo um plano que problematiza de forma subjacente alguns limites da filosofia.
Palavras-chave: Gilles Deleuze, msica, dinamismos espao-temporais, ritmo, diferena,
repetio, filosofia, criao, pensamento-msica.
RSUM Ce mmoire de master cherche prsenter lide dune pense-musique. On part de la
philosophie de Gilles Deleuze depuis ses premiers ouvrages, comme Diffrence et
Rptition, jusquaux uvres crites avec Flix Guattari, comme Milles Plateaux, Kafka
pour une littrature mineure et Quest-ce que la philosophie ? sous une approche
esthtique et son rapport avec le musical et le sonore. On prtend investiguer, dans cette
perspective, le rapport et les limites entre le sonore-musical, la sensation, la cration et la
pense. Pour cela, il a t investigu loccurrence (cest dire, les articulations, les
modulations, les rapports de voisinage) de concepts qui selon la perspective de ce mmoire
sont-ils entendus comme musicaux . Tels concepts sont ici analyss et discuts partir
de la notion de mouvement de lacte de penser/sentir/crer, en composant, ainsi, un plan
qui problmatise de manire sous-jacente certaines limites de la philosophie.
Mots-cls : Gilles Deleuze, musique, dynamismes spatio-temporels, rythme, diffrence, rptition, philosophie, cration, pense-musique.
LISTA DE FIGURAS
Fig. 01 Sesso A de Pulsaes (2015), para piano preparado e luz, de Nathlia Fragoso Rossi ............................................................... 31 Fig. 02 Exemplo de um rallentando simtrico........................................... 32 Fig. 03 Exemplo de um rallentando assimtrico, desigual......................... 33 Fig. 04 Panasz, em Fr kinder (1908-1909), Vol. I/II, de Bla Bartk......... 122
SUMRIO
APRESENTAO ................................................................................................. 11
1 PENSAMENTO-MSICA ........................................................................ 14
1.1 Introduo de um pensamento-msica ........................................................ 14 1.2 Deleuze e a msica ...................................................................................... 16 1.3 Ritmo, velocidades e lentides .................................................................... 20 Exemplo: Velocidades e lentides na pea Pulsaes,
de Nathlia Fragoso Rossi .............................................................. 30 1.4 Clusters e dissonncias ................................................................................ 34 1.5 Caos, catstrofe, material-fora, plano de composio ............................... 35 1.6 Pequenas impresses particulares sobre audiovisual, imagtico,
sonoro e a confuso das multimdias ........................................................... 48 1.7 Sensao, regimes de signos, corpo, pensamento......................................... 51 1.8 Lembranas... Lembranas e devires... Devir-msica ................................. 70 2 ALGUNS PONTOS DE ANLISE PARA
A PERGUNTA O QUE FILOSOFIA? ............................................. 73
2.1 O que filosofia? ...................................................................................... 73 2.2 Diferena e Repetio .................................................................................. 76 2.3 Dois, vrios ou um s mtodo?
Desterritorializao e dramatizao no pensamento nmade ...................... 84 2.4 De novo: (...). E o corpo .............................................................................. 99 3 O TEMPO E OS TERRITRIOS: O RITORNELO ............................ 109 3.1 Tempo, espao, movimento ........................................................................ 109 3.2 A emancipao do tempo ............................................................................ 110 3.3 Territrios, agenciamentos, expresso: a geografia sonora do ritornelo .... 116 CONSIDERAES FINAIS 125
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 130
11
APRESENTAO
Esta dissertao parte da intercesso entre msica e filosofia. Dizemos intercesso
pois o objeto (se que podemos definir, assim, nestes termos) que pretendo analisar parece
se localizar naquilo que se pode dizer ser filosfico e musical, ao mesmo tempo. O
contexto de elaborao desse objeto mvel ou talvez dubio. o risco que se corre quando
nos encontramos nos domnios transdisciplinares e interdisciplinares. Evitarei usar estes
dois termos. So empregados neste trabalho esta nica vez. Falaremos de intermezzos,
entre meios. Entre filosofia e msica pode-se ter a sensao de que o trabalho se encontra
insuficiente de um lado e do outro. Todavia, o que se procura aqui de alguma forma
percorrer, deslocar, ir e vir, confluir fronteiras que separam o territrio em dois lados.
Partimos, essencialmente, dos trabalhos de Gilles Deleuze, filsofo francs do
sculo XX. Nesse sentido, pode-se dizer que nos situamos mais na filosofia do que na
msica. Assim, considero a possibilidade de que parte dos leitores deste trabalho sero
no-msicos (ou msicos, sem saber que os so). Espero ter dado a pensar e tornado
algumas das noes musicais aqui trabalhadas prximas e acessveis, de alguma maneira.
O trabalho pretende apresentar a ideia de um pensamento-msica. Pensamento-
msica comea no encontro de uma perspectiva da filosofia de Deleuze em sua relao
com o musical e o sonoro; essa perspectiva, diremos j de uma vez, resumidamente,
aquela que configura a lgica da diferena e da repetio. Para tanto, ser analisada uma
parte do encontro de Deleuze com as artes, bem como alguns conceitos trazidos por ele,
que, ao nosso ver, esto em consonncia com certas musicalidades. O debate sobre a noo
de movimento subjaz toda a pesquisa e nos servir como uma espcie de ponto nodal
recorrente.
12
Assim, no primeiro captulo, denominado Pensamento-msica, sero
apresentadas ao leitor algumas problemticas e noes que iro compor um plano sonoro-
musical com a filosofia de Deleuze, tendo em vista a constituio de seu conceito da
multiplicidade e da diferena e a sua formulao sobre o conceito de sensao.
Esboaremos, assim, uma primeira leitura sobre as noes de dinmica e de cintica no
pensamento desse autor. Nesse captulo, o leitor ir perceber a incidncia quase incessante
de outras vozes - compositores, msicos, matemticos, pesquisadores, acadmicos. Elas
vo constituir boa parte da bibliografia secundria desta dissertao.
No segundo captulo, o pensamento-msica estar subjacente a uma localizao da
filosofia, enquanto objeto de pesquisa, mais explcita e emergente. A msica e a anlise da
musicalidade na filosofia de Deleuze traaro, de maneira mais abstrata talvez, outros
lugares possveis para a pergunta perseguida pelo filsofo ao longo de sua trajetria, a
saber, o que filosofia?.
Expresses relacionadas ao menor (isto , relacionadas s ideias de intensidade,
imperceptvel, molecular, micropolifonia, rudos indesejados, escapulidas) estaro
presentes em toda a dissertao. O sentido de menor compreendido atravs do conceito
de desterritorializao e em sua ligao imediata com o poltico. por este vis que menor
remete ao micro, ao molecular, aos devires.
No terceiro captulo, retornaremos superfcie o pensamento-msica, em uma
espcie de ritornelo, ou coda, do que fora discutido nos captulos anteriores. um captulo
breve e em certa medida conclusivo. A este captulo foi dado o nome de: O tempo e os
territrios: o ritornelo.
Trouxe para a dissertao alguns exemplos musicais e situaes da vida para nos
auxiliarem na formao de algumas crticas. No pretendo formular nenhum tipo de
censura com esses exemplos, tampouco traar um caminho de redeno, mas, muito antes,
13
compartilhar impresses vividas ao longo da pesquisa e tentar dividir um processo de
elaborao. Alguns destes exemplos esto nas notas de p de pgina desta dissertao, que
ocorreram de ser muitas.
14
1. PENSAMENTO-MSICA
1.1 Introduo de um pensamento-msica
Muito provavelmente, as expresses pensamento-(...) nasceram depois do curso
que Deleuze deu sobre o cinema, em 1984, intitulado Cinema e Pensamento, dcada em
que ele publicou os dois tomos: A imagem-movimento - Cinema I (1983) e A imagem-
tempo - Cinema 2 (1985). Dentro de uma densidade de questes que Deleuze buscou
aprofundar com o cinema, o curso de 1984 parece ter tido como eixo central a
problemtica da imagem do/no pensamento - tema que j o perseguia desde os anos 1960,
quando ele publicou, em um s ano, Lgica do Sentido e Diferena e Repetio, em que
aparecem submersas questes sobre o pensamento em si mesmo, a durao, o movimento e
o corpo. De Cinema e Pensamento para um pensamento-cinema. Em uma entrevista
dada em 1986, sobre Foucault, Deleuze conta que v a obra foucaultiana como um amplo
projeto sobre o ato de pensar e considera que, em seus ltimos livros, Foucault passa a
pensar a existncia no sob uma perspectiva do sujeito, mas, usando uma expresso de
Nietzsche, como uma obra de arte: esta ltima fase o pensamento-artista1. De qualquer
forma, o que interessa nas formulaes pensamento-arte uma premissa de que h uma
operao de pensamento que construda com/nas artes e que as artes, s suas maneiras,
nos foram a pensar. Isso motivou minha pesquisa sobre a possibilidade de um
pensamento-msica, uma vez que a msica , comparando grosseiramente s artes visuais,
sem imagem. Em determinado momento da pesquisa, encontrei um livro que havia
1 DELEUZE, Gilles. Conversaes. A vida como obra de arte. Trad. Peter Pal Pelbart. So Paulo: Editora 34, 2013 (3a edio). (Coleo TRANS), pp. 123, 124.
15
acabado de ser publicado, organizado por Pascale Criton (compositora e ex-aluna de
Deleuze), intitulado, justamente: Gilles Deleuze, o pensamento-msica 2.
A maior dificuldade em uma pesquisa em filosofia sobre pensamento-arte a partir
da obra de Deleuze se encontra, ao meu ver, em uma tendncia de se concentrar a pesquisa
na primazia de um possvel contedo filosfico dos artistas, ora parafraseando seus
escritos, ora restringindo-se leitura que Deleuze faz deles. Esse procedimento pode ter a
sua utilidade em determinados momentos, mas acaba se distanciando um pouco da arte,
isto , as msicas, as pinturas, os filmes, mesmo que estes possam estar ali, como
inspiraes subjacentes. Para alm disso, noto que alguns filsofos leitores de Deleuze
incorrem nisso que eu vejo como uma armadilha. Ao buscarem traar paralelos, em uma
pesquisa sobre Deleuze e msica, entre o pensamento do filsofo e o do compositor Pierre
Boulez, por exemplo, restaurando o que este ltimo escreveu sobre msica, sua poca,
retornam a Deleuze, entendendo o seu pensamento sob um princpio de semelhana e
identidade. Por este motivo, busquei pesquisar junto com o pensamento deleuziano,
incluindo as suas obras com Guattari e textos de seus leitores, pesquisas de compositores e
outros artistas atuais, ainda vivos, que produzem com a histria da msica do sculo XX as
suas prprias pesquisas e pensamentos musicais, como por exemplo Silvio Ferraz e os
colegas Nathlia Fragoso Rossi, Igor Reyner, Mrio Del Nunzio, entre outros; na tentativa,
assim, de escapar de uma anlise estritamente comparativa em favor da criao de zonas de
vizinhana e confluncias.
Assim, de uma maneira geral e ainda introdutria, pressupe-se uma estreita
relao entre a arte, mais especificamente a msica, e o lugar da filosofia deleuziana, no
mbito da crtica do pensamento representativo e de sua imagem dogmtica. Essa
intercesso entre arte e pensamento como forma de crtica autoridade da representao j
2 Org. CRITON, Pascale. CHOUVEL, Jean Marc. Gilles Deleuze, la pense-musique. CDMC: Paris, 2015.
16
se esboava em Deleuze desde seus primeiros trabalhos, como em Nietzsche e a filosofia,
publicado em 1962. O que est em jogo para Deleuze , justamente, um pensamento
forado a pensar, isto , movido por foras intensivas, e que possa, s assim, engendrar
sensibilidades e conceitos intempestivos e inatuais, tentando por essas vias uma abertura
para a escuta de outras racionalidades, dos devires-imperceptveis da histria3.
A musicalidade que pretendemos analisar no pensamento filosfico de Deleuze
possui mais de um sentido. Como pressuposto, Deleuze faz uso de determinados conceitos
provindos do lxico musical como parte do seu vocabulrio filosfico, como por exemplo:
ritmo, ressonncia, dissonncia, melodia, ritornelo, timbre. Nota-se, para alm disso, uma
tentativa de incorporao de tais conceitos na expresso do seu pensamento, na maneira de
empreender parte de sua atividade enquanto filsofo... Pensamento-msica seria, por um
lado, destinado a pensar operaes musicais a partir da msica, isto , sobre a msica e,
por outro, um interesse quilo que a msica coloca em movimento no pensamento4. De
algum modo, esses dois sentidos parecem funcionar bem juntos.
1.2 Deleuze e a msica
Sabemos que ao longo de sua vida Deleuze teve um grande interesse pela msica e
pelos problemas musicais. Algumas pistas biogrficas mostram que, em determinado
momento de seu denso percurso filosfico, o at ento ouvinte de Edith Piaf e do famoso
Bolero, de Maurice Ravel5, passou a pesquisar msica de forma mais intensa e imersiva,
3 O pensador exprime assim a bela afinidade entre pensamento e vida: a vida fazendo do pensamento algo ativo, o pensamento fazendo da vida algo afirmativo. Essa afinidade em geral, em Nietzsche, no aparece somente como o segredo pr-socrtico por excelncia, mas tambm como a essncia da arte . DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris: PUF, 1983. (6a ed.), p.116 (Traduo minha). 4 Expresso de Pascale Criton em Gilles Deleuze, la pense-musique, p. 10 (Avant-propos). 5 DOSSE, Franois. Gilles Deleuze e Flix Guattari: biografia cruzada. Trad. Fatima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010.
17
como parte de sua investigao e metodologia filosficas. Para tentar entender alguns
conceitos musicais, Deleuze se aproximou de alunos compositores e instrumentistas (como
a compositora Criton), produzindo com os seus seminrios encontros diversos para debates
e dilogos sobre a msica6. Passou a frequentar o repertrio da msica de concerto,
incluindo a escuta e leituras de textos de compositores maduros, contemporneos a ele, tais
como Olivier Messiaen e Pierre Boulez, para citar alguns. Notamos, portanto, que o
interesse de Deleuze pelas problemticas ditas musicais parece ter sido progressivo,
acompanhando, de certa forma, toda sua pesquisa sobre demais produes artsticas
(literatura, teatro, cinema, pintura).
Ento, mesmo no tendo escrito nenhuma obra especfica sobre msica, Deleuze
incorporou, ao longo de sua trajetria, diversos conceitos musicais. Em sincronia com o
aprofundamento de suas investigaes, estes furtos tambm se deram de maneira
progressiva. Talvez a suspeita de um percurso progressivo com msica na obra de Deleuze
proceda, para alm de sua biografia, da anlise de Anne Sauvagnargues em seu livro
sobre Deleuze e a arte (Deleuze et lart). A autora prope uma panormica sobre a questo
da arte na obra de Deleuze que percorre um itinerrio, um tanto quanto polmico pois
cronolgico , que parte primeiramente da literatura (momento em que Deleuze escreve
sobre Zola, Tournier e publica Proust e os signos e Apresentao a Sacher-Masoch);
depois, dedica-se crtica da interpretao e lgica das multiplicidades (a partir do
encontro com Guattari e a virada pragmtica do pensamento com Anti-dipo, Kafka,
Artaud, Rhizome e Superpositions, com o ator, dramaturgo e cineasta Carmelo Bene); e,
um terceiro momento, quando, a partir de Mil plats, Deleuze se consagra, segundo
6 Segue link de um registro de uma aula sobre Leibniz e a harmonia, dado em Vincennes, em 1987, com a participao de Pascale Criton que poca pesquisava o cromatismo, assunto que tornou-se de significativo interesse para Deleuze: https://www.youtube.com/watch?v=_JBMX6uECxc (ltimo acesso em fevereiro de 2017).
18
Sauvagnargues, questo da semitica da imagem e da criao artstica7. O que
percebemos, com Deleuze et lart, que h uma espcie de progresso da filosofia de
Deleuze com a arte que se sustenta por um eixo que parte do discursivo ao no discursivo,
s artes no discursivas, por assim dizer. Desde seu encontro com Guattari, a tenso entre
discursivo e no discursivo percorrida pelo estatuto da interpretao em defesa de uma
semitica do assignificante (como parte, certamente, de toda crtica dos dois
psicanlise)8. Assim, poderamos dizer com outras palavras, ainda sob a elaborao de
Sauvagnargues, que o primeiro perodo da filosofia deleuziana inaugura uma reflexo
sobre a imagem do pensamento. No segundo perodo, com o encontro com Guattari e os
escritos de Artaud, Deleuze constitui uma crtica lingustica, transformando o estatuto da
literatura; vale lembrar que neste momento que ele escreve Lgica da sensao, a lgica
do signo no discursivo, dos traos assignificantes9. Depois disso, seus trabalhos se
concentrariam, de acordo com Sauvagnargues, em torno do problema da criao (nas artes,
nas cincias, nas filosofias), quando a semitica da imagem toma toda a sua importncia.
7 SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et lart. Paris. PUF. 2009. 8 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia, vol.1. Trad. Aurlio Guerra Neto e Clia Pinto Costa. - So Paulo: Ed.34, 2007, p. 85: Assim como h expresses assemiticas ou sem signos, h regimes de signos assemiolgicos, signos assignificantes, simultaneamente nos estratos e no plano de consistncia. Tudo o que se pode dizer sobre a significncia que ela qualifica um regime, nem o mais interessante, nem o mais moderno ou atual, simplesmente talvez mais pernicioso, mais canceroso, mais desptico que os outros, por ir mais fundo na iluso. DELEUZE. GUATTARI. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Trad. Aurlio Guerra Neto. - So Paulo: Ed.34, 1999, p. 24: Tomemos agora o estrato de significncia: a ainda, existe um tecido canceroso da significncia, um corpo brotando do dspota que bloqueia toda circulao de signos, tanto quanto impede o nascimento do signo assignificante sobre o "outro" CsO. Ou ento, um corpo asfixiante da subjetivao que torna ainda tanto mais impossvel uma liberao porque no deixa subsistir uma distino entre os sujeitos. DELEUZE. GUATTARI. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Trad. Suely Rolnik. - So Paulo: Ed.34, 2008, p. 72: Devir imperceptvel quer dizer muitas coisas. Que relao entre o imperceptvel (anorgnico), o indiscernvel (assignificante) e o impessoal (assubjetivo)?. DELEUZE. GUATTARI. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. Trad. Ana Lcia de Oliveira e Lcia Cludia Leo. Rio de Janeiro, Ed.34, 1995, p. 81, nota de p de pgina de nmero 53: Semiotize voc mesmo, ao invs de procurar em sua infncia acabada e em sua semiologia de ocidental. 9 Pois essas marcas, esses traos so irracionais, involuntrios, livres, ao acaso. Eles so no representativos, no ilustrativos, no narrativos. Mas no so significativos nem significantes de antemo: so traos assignificantes. So traos de sensao, mas de sensaes confusas (as sensaes confusas que trazemos ao nascer, dizia Czanne) . DELEUZE, Gilles. Francis Bacon - Logique de la sensation. Paris. Seuil, 2002 (Lordre philosophique), p. 94. (A verso brasileira que esta dissertao usa a de Annita Costa Malufe e Silvio Ferraz, documento extrado da internet, sem referncias. Algumas citaes do original so traduzidas por mim. (p. 51, Malufe e Ferraz).
19
Mas, curiosamente, neste mesma fase que Deleuze dedica, com Guattari, todo um plat
ao conceito de ritornelo, este cristal de espao-tempo, sonoro por excelncia10.
Alguns outros comentadores de Deleuze salientam que tenha sido justamente a
partir de seu encontro com Guattari que os seus trabalhos tenham se dirigido de forma mais
assumida s artes e criao, quando ele escreveu as suas duas obras sobre o cinema, uma
sobre a pintura, outras sobre o barroco, sobre Verdi, sobre Beckett e, finalmente, O que
Filosofia?, de novo em parceria com Guattari, em que o tema da criao se estabelece
como ponto nodal. Para alm disso, o que notamos que tal encontro de Deleuze com a
arte, concomitante ao seu encontro com Guattari, coincide com um trabalho mais explcito
e assumido sobre poltica.
No entanto, o presente trabalho no considera que a fora de um pensamento resida
necessariamente no grau de explicitez sobre a coisa a qual se deseja pensar. Acreditamos
que o alcance de um pensamento engendrado polifonicamente e muitas vezes se faz ali,
em uma dissonncia ou outra, nos microtons, nos sons indesejados trazidos com o acaso.
Talvez seja sob tal perspectiva, a da lgica de um devir-imperceptvel (devir que no
menos intensivo, ressoante e propositivo), que Deleuze leia alguns filsofos ilustres,
constrangendo algumas consonncias da histria da filosofia11.
Considero que seja sob essa mesma perspectiva, a de uma micropolifonia, digamos
assim, que Deleuze frequente alguns pintores, dramaturgos, msicos, cineastas,
escritores. De qualquer forma, na pesquisa sobre o encontro da filosofia de Deleuze com a
msica, os trabalhos em parceria com Guattari no exercem necessariamente uma
10 DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol. 4, pp.166-167. 11 Em mais de uma passagem Deleuze reivindica um estatuto s ideias obscuras na filosofia (lugar de um sem fundo, do caos, da crise, de uma instabilidade) primazia das ideias iluminadas, claras e distintas , sentido de Verdade para Iluminismo. Mas, para alm desses termos, falaremos mais adiante nesta dissertao sobre o papel da dissonncia atribudo por Deleuze, e por Guattari, na efetivao da consistncia (dos planos, dos ritornelos, das criaes). A dissonncia presente nos acordos discordantes, nos devires-imperceptveis, nas snteses disjuntivas, nas polifonias, nas heterogneses, nas multiplicidades.
20
primazia. Pois, por mais que Deleuze tenha escrito sobre ritornelo, sobre o devir-msica,
Messiaen e os personagens rtmicos, Schumann, Boulez, o liso e estriado, Varse, etc. s a
partir de 1980, nota-se que desde o comeo, ainda na dcada de 1960, Deleuze investiga o
problema da durao, da multiplicidade, do movimento e da repetio (e da diferena,
conceito fundamental), com Espinosa, Proust, Bergson, Simondon, Uexkll, Nietzsche... A
provocao de um pensamento-msica tambm se localiza nos limites de tais problemas,
uma vez que eles so preciosos para msica. Portanto, embora seja perceptvel que
Deleuze tenha em determinado momento se apaixonado pela msica, convocando-a para
suas investigaes mais profundas, no adoto plenamente a leitura de Sauvagnargues, de
uma progresso da filosofia de Deleuze. Em 68, ano em que ele tambm escreve Lgica do
sentido, Deleuze publica Diferena e Repetio, obra que, na perspectiva do presente
texto, rene e condensa muito do que prope o pensamento deleuziano, as suas filosofias
(como adota Sauvagnargues), ou a sua filosofia12.
1.3 Ritmo, velocidades e lentides
isso que a velocidade relativa do pensamento. A razo exige que haja um ritmo do pensamento (). Mais uma vez, isso vai muito mais longe do que dizer-nos: O pensamento toma tempo . O pensamento toma tempo, Descartes o teria dito, eu lembrei disso da outra vez, Descartes o teria dito. Mas o pensamento produz velocidades e lentides e ele mesmo inseparvel de velocidades e lentides que ele produz. Existe uma velocidade do conceito, existe uma lentido do conceito. O que que isso? Ento bom. Do que falamos ser rpido ou lento habitualmente? bem livre isso que estou dizendo agora. para dar a vocs vontade de ir ver esse autor (Espinosa). No sei se eu consegui, talvez eu obtive o contrrio. Eu ainda no estou fazendo um comentrio ao p da letra. Eu fao de vez em quando, como acabei de fazer mas vocs me entendem13
12 Desta forma, tomo como um ponto de partida primeiro referindo-me cronologia da minha pesquisa - a investigao trazida por Silvio Ferraz em sua leitura pioneira (pelo menos no Brasil) sobre diferena e repetio e a msica. Consideramos que a pesquisa deste compositor-filsofo trouxe, tanto para os estudos filosficos quanto para as pesquisas musicolgicas e composicionais, uma riqussima contribuio. 13 Curso de Deleuze sobre Espinosa, dia 02/12/1980, Paris. Disponvel em: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=91 ltimo acesso em 13/02/2017. (Traduo minha.)
21
Se partirmos do pressuposto que a durao, a cintica e a dinmica compem parte
significativa do arcabouo terico da filosofia de Deleuze, natural que a noo de ritmo
aparea em seus textos de forma recidiva. Porm, nesta recorrncia temos muitas vezes a
impresso que Deleuze emprega o ritmo para substituir algum conceito ou acrescentar
sentido a alguma outra expresso. Por estas recorrncias entrelaadas, bem tpicas em
Deleuze, pode ser difcil identificar isoladamente o ritmo enquanto um conceito preciso ao
qual ele se debruou. Todavia, o ritmo parece exercer um papel elementar para as lgicas14
da filosofia deleuziana, alm de trazer uma instigante contribuio para a msica.
Ritmo e repetio. Por fora de determinadas tradies, podemos associar o ritmo
quela repetio dada por uma relao de simetria, que reproduz o retorno de elementos
idnticos em intervalos idnticos de tempo. No entanto, o que percebemos com Deleuze
que o ritmo funciona como uma espcie de modulador, estando sempre atrelado s
variaes e diferena, conferindo repetio um sentido intensivo, sentido este
determinante da natureza da repetio. Ento, ao invs de se apresentarem como
regularidades e como elementos associados a um tempo cronolgico (concepo abstrata
de ritmo, para Deleuze), os ritmos aparecem em sua obra, justamente, como elementos
diferenciais e atualizadores; como moduladores de foras; como multiplicidade; como
elementos articuladores de heterogneos (corpsculos, meios, espaos-tempos); como um
meio para dissimetrias; como incomensurveis; como operadores da variaes contnuas;
como vetores da sensao; como marcas de coexistncia de meios (transcodificao);
como criadores de pontos notveis, que marcam o desigual como uma positividade.
14 David Lapoujade, em seu mais recente livro, Deleuze, os movimentos aberrantes, identifica na filosofia deleuziana a primazia da lgica, da produo de lgicas e de todas exigncias a elas inerentes. Nas palavras de Lapoujade, Deleuze , antes de tudo, um lgico, e todos os seus livros so Lgicas . LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. - So Paulo: N-1 edies, 2015, p.11.
22
Os acontecimentos rtmicos so, portanto, desigualdades, produzidas por valores
tnicos e intensivos, em um espao-tempo. E, segundo Deleuze, esta a condio da
durao. Ele diz que a durao s existe determinada por um acento tnico, comandada
por intensidades15. Mas ao considerarmos essa repetio, a repetio-durao, como a
repetio do movimento verdadeiro, interrogamos sobre o estatuto do espao na cintica e
dinmica trazidas por Deleuze. Nota-se que, com Espinosa, Deleuze recorre s velocidades
e lentides. E que ao se referir ao espao ele se servir de expresses como territrio,
terra, meio, plano, praia, plat, diagrama, liso e estriado. Estes dois ltimos so trazidos
por Deleuze e Guattari, em Mil plats, por influncia do pensamento musical do
compositor Pierre Boulez, que em 1968 publica o livro Pensar a msica hoje16, onde ele
explora o par liso/estriado para se referir a modos de tempo na msica. Um espao
sempre povoado e ocupado por individuaes intensivas. Mas, como se d a diferena de
natureza entre espao e tempo para Deleuze?
Uma fonte possvel para responder a esta pergunta Bergson, filsofo francs, da
virada do sculo XX, sobre quem Deleuze escreveu um livro ainda no seu primeiro
momento filosfico (se formos adotar aquela abordagem de Sauvagnargues sobre as fases
do pensamento deleuziano com a arte). notvel a influncia de Bergson na obra de
Deleuze, na sua formulao do conceito de diferena. Apesar desta dissertao no abarcar
um estudo aprofundado em Bergson, arrisco dizer, atravs de minhas pequenas leituras de
textos dele e de Deleuze sobre ele, que uma das maiores preocupaes de Bergson residiu
na distino necessria entre as diferenas de natureza e de grau. Para ele, a compreenso
desta diferena (natureza/grau) possibilitaria a formulao de problemas filosficos reais;
sem termos claramente tal distino entre os elementos que compem um problema
15 DELEUZE, G. Diferena e Repetio. Traduo Luiz Orlandi/Roberto Machado. - Rio de Janeiro: Graal, 2006 (2a edio), p. 46. 16 BOULEZ, Pierre. Penser la musique aujourdhui. Paris. Gonthier, 1963.
23
estaremos diante de um falso problema. Deleuze no v nessa aparente clivagem um
dualismo em Bergson. Pois, da divergncia realizada atravs do ento mtodo de
intuio, que discerne as diferenas de natureza (em contraposio s diferenas de grau),
Bergson parece dizer de forma monista que: tudo o que presena pura diverge por
natureza. E tudo isto que se diferencia alterando a natureza faz parte da durao. Portanto
a durao que altera. Porm, para alm da viravolta da experincia, necessrio haver
um ponto de convergncia que permita dar-se conta do misto, que faz do misto uma
unidade: a atualizao da memria que o ponto de encontro entre diferena de natureza
e diferena de grau. Se o que cabe matria (em contraposio memria e durao
pura) a percepo, Bergson funda atravs da ideia de contrao da memria a
possibilidade de um novo monismo: no fundo da memria-lembrana existe uma memria
contrao mais profunda (j que o passado coexiste necessariamente com o presente)17.
Sendo a memria, portanto, tambm durao: A cada instante, nosso presente contrai
infinitamente nosso passado: os dois termos que tnhamos separado inicialmente vo
soldar-se intimamente18. E, portanto, poderamos dizer que a durao bergsoniana
define-se, finalmente, menos pela sucesso do que pela coexistncia. Desta forma, com os
estudos sobre Bergson, Deleuze comea o que mais tarde se chamar de lgica (ou teoria)
das multiplicidades19.
Olivier Messiaen, compositor e organista francs do sculo XX, realizou uma
ampla pesquisa sobre ritmo, noo que lhe parecia como uma das mais complexas de
definio na msica. Interessado em fazer nascer a verdade com a msica e contra os
17Jules Lachelier, filsofo francs contemporneo de Bergson, retoma de Leibniz uma relao entre fora, multiplicidade e percepo: O movimento concentrado na fora precisamente a percepo tal como a definiu Leibniz, isto , a expresso da multiplicidade na unidade. (LACHELIER, Jules. Du fondement de linduction. Paris, ed.1924, p.94). 18 DELEUZE, Gilles. Bergsonismo, Trad. Luis Orlandi. So Paulo: Ed. 34. 2012. p. 58 19 Anne Sauvagnargues (2009) considera que a lgica das multiplicidades ser efetiva no encontro de Deleuze com Guattari.
24
hbitos , ele foi um compositor que, como tantos outros de seu sculo, teve grande
interesse sobre a natureza do tempo. Para alm da formao em msica, Messiaen era
tambm ornitlogo e devoto da vida crist. Para ele, uma msica rtmica no aquela em
que identificamos rapidamente o seu pulso, seus perodos (com divises simtricas), e as
repeties iscronas. Em oposio s msicas de ritmos militares, por assim dizer, uma
msica rtmica se inspira, segundo Messiaen, nos movimentos da natureza, nas suas
complexidades, e possui assim duraes livres, desiguais e simultneas. Aquilo que
entendemos habitualmente por ritmo pode sugerir um domnio do tempo; uma falsa
ordem que privilegia um certo tipo de repetio, a falsa repetio, para Deleuze. Nesse
sentido, a msica militar para Messiaen a prpria negao da noo de ritmo20.
Em Mil plats, obra de Deleuze com Guattari, a desigualdade inerente ao ritmo, j
apresentada pela lgica do par Diferena e Repetio, retomada em sua relao com o
caos, de onde tambm nascem os meios e os cdigos:
O que h de comum ao caos e ao ritmo o entre-dois, entre dois meios, ritmo-caos ou caosmo: Entre a noite e o dia, entre o que construdo e o que cresce naturalmente, entre as mutaes do inorgnico ao orgnico, da planta ao animal, do animal espcie humana, sem que esta srie seja uma progresso.... nesse entre-dois que o caos torna-se ritmo (...), tem uma chance de tornar-se ritmo. H ritmo desde que haja passagem transcodificada de um para outro meio, comunicao de meios, coordenao de espaos-tempos heterogneos. (...) A medida dogmtica, o ritmo crtico, ele liga os instantes crticos, ou se liga na passagem de um meio para outro. Ele no opera num espao-tempo homogneo, mas com blocos heterogneos. Ele muda de direo21.
20 SAMUEL, Claude. Permanences dOlivier Messiaen. Dialogues et commentaires. Paris. Actes Sud, 1999. Por muitos anos, Messiaen foi o organista da igreja Sainte-Trinit, em Paris, e conseguiu incorporar s Eucaristias de meio-dia a sua prtica de improviso, momento onde ele experimentava tambm alguns materiais composicionais prprios. Devem ter sido verdadeiros concertos-happenings, visto a complexidade de suas obras e as maneiras como ele pensava ritmo, harmonia e timbre, maneiras no muito ortodoxas para os ouvidos catlicos daquela tradio. Para entrarmos um pouco na obra deste compositor, tomamos como exemplo a Sinfonia Turangalla, mais precisamente o 6 movimento O Jardim do sono de amor. Podemos perceber ali com muita clareza a sobreposio de dois grandes planos, desiguais e simultneos. Em uma boa performance da obra pode-se notar que o piano no est nem ao fundo nem solista, apesar de estar de alguma forma em um outro tempo em relao dramaticidade expressa pelo conjunto das cordas. E sempre aparece um elemento ou outro - clarineta, flauta, vibrafone - que descola daquele todo uniforme escoante. Mas o piano est ali independente, quase o tempo inteiro. E no creio que seria forado dizer que sua linha nos faz pensar no canto de um pssaro. https://www.youtube.com/watch?v=0RGhq0m7bxI 21DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol.4, p. 119.
25
Vimos que em Bergsonismo reside uma primeira anlise de Deleuze sobre a
multiplicidade, noo que ele retomar com novos flegos em outros trabalhos, como em
Mil plats. Existe uma multiplicidade na durao que definida por andamentos espao-
temporais. Em um dos seus cursos sobre etologia, em Vincennes, Deleuze retoma o
conceito de normatividade vital de Canguilhem. Em O normal e o patolgico, Canguilhem
relaciona as normas da vida com aquilo que ele chama de allures de la vie para se
referir s doenas, considerando estas ltimas no como uma negatividade, mas como uma
mudana de direo. Encontramos vrias tradues em lngua portuguesa para a expresso
allures da vida: modos da vida, modos de ser da vida, comportamentos da vida,
ritmos da vida e modos de andar da vida. Segundo o filsofo francs Guillaume
Sibertin-Blanc, Deleuze busca com a noo de allure de vie designar esse novo sentido do
esquematismo, produo de espao-tempo irredutvel ao conceito de um ser vivo
(compreendido como organizao morfolgica e funcional), e assinalar sua importncia
para uma etologia dos modos de existncia culturais22.
Em Diferena e Repetio determinaes espao-temporais so os aqui-agora, ou
um Erewhon de onde saem, inesgotveis, os aqui e os agora sempre novos,
diversamente distribudos23. O ritmo opera, portanto, nos dinamismos que determinam
espao e tempo intensiva e simultaneamente, condies para os processos de individuao,
22 Sobre as tradues para allures de vie: AYRES, Jos Ricardo de Carvalho Mesquita. Georges Canguilhem e a construo do campo da Sade Coletiva brasileira. (Intelligere, Revista de Histria Intelectual - So Paulo, v. 2, n. 1 [2], p. 139-155. 2016. Disponvel em http://revistas.usp.br/revistaintelligere). SIBERTIN-BLANC, Guillaume. Politique et Clinique. Recherche sur la philosophie pratique de Gilles Deleuze. Tese de doutorado sob a direo de Pierre Macherey. Universit Charles de Gaulle Lille 3. UMR 8163 Savoirs, textes, langage . Frana, 2006. Volume 1, na nota 277, pginas 213-214, onde est transcrita uma parte da aula onde Deleuze diz: Il y a des rythmes spatiotemporels, il y a des allures spatio-temporelles. On parle parfois du territoire dun animal et du domaine dun animal, avec ses chemins, avec les traces quil laisse dans son domaine, avec les heures o il frquente tel chemin, tout a cest un dynamisme spatio-temporel que vous ne tirerez pas du concept. [] Lethnologue construit bien des schmes dhommes dans la mesure o il indique des manires : une civilisation se dfinit entre autres par un bloc despace-temps, par certains rythmes spatio-temporels qui font varier le concept dhomme. Cest vident que ce nest pas de la mme manire quun Africain, un Amricain ou un Indien vont habiter lespace et le temps. Aula DELEUZE in https://www.webdeleuze.com/textes/57 23 Erewhon, expresso de Samuel Butler, citado por Deleuze no prlogo de Diferena e Repetio, p. 17.
26
e torna expressiva e crtica a coexistncia e a interao intrnsecas noo de
multiplicidade. Os ritmos so atualizadores.
Em um texto intitulado A Heterognese Sonora, a compositora Pascale Criton diz
que desde Diferena e Repetio a procura por um modelo dinmico de formao de
corpos - de curvaturas variveis e no simtricas aparece enquanto acontecimentos
rtmicos24. Vale ressaltar que o problema dos corpos, que Deleuze recupera da etologia,
mas tambm atravs da noo de individuao de Simondon, no concerne apenas o
corpo vivo, nem rgos ou objetos parciais extrados sobre o organismo, mas toda
multiplicidade corpuscular, toda matria no formada inserida nas relaes cinemticas
que determinam as posies e usos, a um nvel onde as partilhas entre natural e artificial e
entre vivo e tcnico caem.25 Criton chama a ateno para o fato de que a partir de Mil
plats, Deleuze e Guattari se dedicaro ao sonoro, qualidade trazida conjuntamente
ideia de uma multiplicidade de regimes de ateno para o encadeamento do pensamento.
O ento projeto de uma heterognese semitica transversal, como expressa a autora,
trazido por Deleuze e Guattari sob a sensibilizao/expresso de um conjunto de sinais
sonoros, entendendo sonoro em seu aspecto vibratrio (e oscilatrio). Para ela, a
introduo progressiva do musical nas obras de Deleuze est associada ao processo de
consistncia, suscetvel de religar o sensvel, coletivo, com distribuies intensivas26.
Outros autores que se dedicam ao, ento, pensamento-msica deleuziano tambm
costumam emergir o sonoro do musical. De todo modo, o que percebemos por ora que o
sonoro traz consigo, aparentemente de maneira mais fidedigna que o musical, o 24 CRITON, Pascale. Lhtrogense sonore in Org. CRITON. CHOUVEL. Gilles Deleuze, la pense-musique, p.52. Traduo e grifo meus. 25 Guillaume Sibertin-Blanc sobre os estudos de Deleuze do modelo embriolgico: ne concerne pas seulement le corps vivant, ni des organes ou objets partiels prlevs sur lorganisme, mais toute multiplicit corpusculaire, toute matire non forme entrant dans des rapports cinmatiques qui en dterminent les positions et les usages, un niveau o les partages entre le naturel et lartificiel et entre le vivant et le technique tombent . SIBERTIN-BLANC, G. Politique et Clinique. Recherche sur la philosophie pratique de Gilles Deleuze, p. 214. 26 CRITON, P. Lhtrogense sonore, p. 56.
27
conceito de sensao, e a sensibilizao das intensidades. O sonoro nos provocaria a sentir.
Sendo o som uma espcie de vibrao, sonoro uma qualidade percebida no s pelos
ouvidos, mas pelos corpos, entre os corpos corpsculos, molculas... como um meio e
como elemento metaestvel27. A vibrao evoca a sensao de algo que est vivo.
Inclusive, a sensao em si mesma definida por Deleuze como vibrao28. De todo modo,
sonoro se diz do modelo dinmico, ao qual se refere Criton, por onde valores diferenciais
coordenam modos de vida, blocos de espao-tempo heterogneos. Em um texto
denominado Ocupar sem contar: Boulez, Proust e o tempo29, Deleuze observa que o
pensamento musical de Boulez nos faz perceber blocos de espao-tempo, onde corte e
continuidade deixam de ser antagnicos: No mais uma Srie do tempo, mas uma Ordem
do tempo. Esta grande distino de Boulez, o liso e o estriado, vale menos como separao
do que como perptua comunicao30.
Para tratar das relaes contnuas entre heterogneos Deleuze utiliza o termo
involuo, movimento que ocorre em todo e qualquer devir. Nessas relaes, no existe
propriamente uma correspondncia entre os elementos, eles coexistem disjuntivamente,
formando zonas de vizinhana. A involuo articulao de dentro31 o movimento
27 O termo metaestvel vem da pesquisa de Deleuze sobre individuao em Simondon. A no estabilidade do ser, ou sua metaestabilidade, definida da seguinte forma: o ser , ao mesmo tempo, estrutura e energia. (SIMONDON, Gilbert. Lindividu et sa gense physico-biologique, Paris, PUF, 1964, p.285). Retomaremos este conceito no subcaptulo Sensao, regimes de signos, corpo, pensamento desta dissertao. 28 DELEUZE. Francis Bacon Logique (...), p. 47. 29 DELEUZE. Ocupper sans compter: Boulez, Proust et le temp in Deux rgimes de fous. Texts et entretiens (1975-1995). dition prpare par David Lapoujade. Paris. Minuit, 2003 (utilizarei em parnteses a numerao de pgina da edio brasileira: Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas (1975-1995. Edio preparada por David Lapoujade; traduo de Guilherme Ivo; reviso tcnica de Luiz B. L. Orlandi. So Paulo: Editora 34, 2016 (1a edio). Coleo TRANS). 30 ibidem, p.275 (p.314). Citao completa: No mais uma Srie do tempo, mas uma Ordem do tempo. Esta grande distino de Boulez, o liso e o estriado, vale menos como separao do que perptua comunicao: h alternncia e superposio de dois espaos-tempos, troca entre as duas funes de temporalizao, seria apenas no sentido onde uma repartio homognea em um tempo estriado d impresso de um tempo liso, j que uma distribuio muito desigual em tempo liso introduz direes que evocam um tempo estriado, atravs da densificao ou acumulao de vizinhanas. (...) E toda a Busca que deve deve ser lida em liso e estriado, dupla leitura a partir da distino de Boulez. 31 No h uma forma ou uma boa estrutura que se impe, nem de fora nem de cima, mas antes uma articulao de dentro, como se molculas oscilantes, osciladores, passassem de um centro heterogneo a outro, mesmo que para assegurar a dominncia de um (DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol.4, p. 139).
28
do devir pelo qual compe-se toda a teia comunicativa. A noo de devir, amplamente
percorrida pela filosofia de Deleuze em sua parceria com Guattari, mas j presente, sob
outros termos, ali em Diferena e Repetio, consolida a atrao desse filsofo pelos
processos de despersonalizao/dessubjetivao que ao contrrio do que se costuma pensar
no significam processos engendradores de individuaes indeterminadas ou imprecisas.
que Deleuze est mais interessado na questo do devir, na plasticidade do ser, do que no
Ser fundamentado. No nos interessamos pelas caractersticas; interessamo-nos pelos
modos de expanso, de propagao, de ocupao, de contgio, de povoamento32. Devir-
imperceptvel, devir-multiplicidade.
Em Mil plats o ritmo amplamente abordado no captulo sobre o Devir e em
Acerca do ritornelo, curiosamente em dois grandes momentos da obra onde a noo de
territrio exerce fundamental papel. Consideramos que os meios devam ser tambm
entendidos luz da noo de territrio. Segundo Sibertin-Blanc, os meios so
determinaes espao-temporais de modos de existncia.33 Os blocos de espao-tempo,
presididos por relaes moventes, que tambm aparecem na obra de Deleuze sob formas
de diagrama, dizem respeito aos devires, aos rizomas, aos plats, ao Corpo sem rgos,
aos planos de consistncia34. A consistncia nasce sempre entre, a consistncia
expresso e se d, ento, atravs dos acontecimentos rtmicos35.
E dessa mesma forma, Deleuze (com Guattari) compreender o pensamento; o
pensamento como um modo de vida, modo de existncia imanente:
32 p.20 33 SIBERTIN-BLANC, G. Politique et Clinique. Recherche sur la philosophie pratique de Gilles Deleuze, p. 219. 34 O plano de consistncia o corpo sem rgos (DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol.4, p. 60). 35 Precisamente por isso, vale ressaltar aqui, que embora tais expresses (corpo sem rgos, rizoma, plano de consistncia) sejam em alguns pontos correlatas, elas no operam metaforicamente. A fora dos conceitos reside, ao contrrio, em seus sentidos literais. O Plano de consistncia a abolio de qualquer metfora; tudo o que consiste Real(DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol. 1, p. 87).
29
O pensamento no arborescente e o crebro no uma matria enraizada nem ramificada. O que se chama equivocadamente de "dendritos" no assegura uma conexo dos neurnios num tecido contnuo. A descontinuidade das clulas, o papel dos axnios, o funcionamento das sinapses, a existncia de microfendas sinpticas, o salto de cada mensagem por cima destas fendas fazem do crebro uma multiplicidade que, no seu plano de consistncia ou em sua articulao, banha todo um sistema, probabilstico incerto, um certo sistema nervoso.
Ao considerarmos a interao e a comunicao dos elementos (meios, cdigos,
corpsculos, individuaes), em um territrio qualquer, a partir de modelos arborescentes
de organizao somos inevitavelmente, segundo Deleuze e Guattari, conduzidos a uma
lgica onde predominam a binaridade, o centralizante, o linear36. Com a ideia de rizoma,
em contraposio ao arborescente, Deleuze e Guattari no esto interessados em destituir
toda e qualquer linearidade e forma, mas, antes, chamar ateno para o fato de que
mesmo num agenciamento territorial, talvez o componente o mais desterritorializado, o
vetor desterritorializante, como o ritornelo que garante a consistncia do territrio37.
Nessa dobra, ou anomalia ressaltando que para ns as anomalias no so privadas de
sentido, muito antes pelo contrrio, so especialmente vetorizadas , nas assimetrias,
densificaes, intensificaes, reparties de desigualdades, superposio de
ritmos disparatados, que os planos ganham suas consistncias. O mais
desterritorializado, que pontua a relao de repetio e diferena, este elemento
essencialmente ritmador, ponto notvel, ele quem marca o signo no territrio, isto , o
torna expressivo. Podemos levar esta ideia para vrias composies artsticas, a
36 notvel o uso da ideia de oscilao em Mil plats. Suspeitamos que seja um recurso lingustico dos autores para evitarem cair na expresso de qualquer binaridade. No entanto, o termo oscilao (quando no pensada musicalmente) pode tornar ambgua a noo de coexistncia que muito importante para a filosofia de Deleuze. Talvez as expresses de binaridades, como alternncia sejam paradoxalmente mais fieis a determinados movimentos corpreos. Pois pode-se ter em um mesmo espao-tempo um jogo infinito de alternao moleculares. Isto princpio da dinmica, lgica das foras. A alternncia, ao contrrio do que costumamos pensar, no excludente quando se trata dos movimentos corporais e corpusculares. 37 DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol.4, p.138. Sob a perspectiva de uma geofilosofia, os autores dizem o seguinte, em O que filosofia?: Pensar no nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revoluo de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relao entre o territrio e a terra. (...) Ela (a terra) se confunde com o movimento daqueles que deixam em massa seu territrio, lagostas que se pem a andar em fila no fundo da gua, peregrinos ou cavaleiros que cavalgam numa linha de fuga celeste. DELEUZE. GUATTARI. O que filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. So Paulo: Editora 34, 1992. p. 113.
30
composio de uma msica, de uma montagem cinematogrfica, de uma performance, de
um improviso. A consistncia criadora38.
Exemplo: Velocidades e lentides na pea Pulsaes, de Nathlia Fragoso Rossi39
Pulsaes (2015), para piano preparado e luz, um dos trabalhos escritos pela
compositora Nathlia Fragoso ao longo de sua pesquisa de mestrado que teve como
referncia a obra de John Cage. Para a composio de Pulsaes foram utilizados
diferentes mtodos de sorteio (chance operations) e em sua notao so encontrados
diversos elementos indeterminados. A pea relaciona msica e elementos visuais: uma
fonte luminosa inserida dentro do piano controlada pela intrprete. Os gestos realizados
pela luz traam uma relao direta com as alturas e com os timbres criados pela preparao
do piano. Pulsos de som, luz e silncio se combinam e se chocam, em movimentos
aleatrios que compem, assim, a constelao da performance.
Pude estudar e tocar Pulsaes algumas vezes nos anos de 2015 e 2016. A partir
dos elementos indeterminados, que obrigam o intrprete a entrar em jogos de
experimentao, algumas reflexes foram levantadas sobre alguns conceitos/parmetros do
pensamento musical, a saber: escritura, ritmo, densidade, velocidade, intensidade. No
exemplo que se segue, irei analisar um pequeno gesto da pea atravs de algumas
possibilidades de execuo.
38 que o comeo no comea seno entre dois, intermezzo (DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol. 4. p. 141). E todo ritmo nasce da articulao entre (entre dois, entre trs, entre partes, etc.). 39 ROSSI, Nathlia Angela Fragoso. Pulsaes. Belo Horizonte, 2015. Para piano preparado e luz. https://www.youtube.com/watch?v=5BdPFNOGEXs&feature=youtu.be
31
Fig. 01 - Nathlia A. Fragoso ROSSI. Pulsaes (2015), para piano preparado e luz. Sesso A (como trata-se de uma obra aberta, os compassos no possuem uma ordem pr-determinada, eles no so numerados).
A ltima linha da partitura acima corresponde fonte luminosa inserida dentro do
piano. Apesar de no estar especificado na partitura como a luz deve estar inserida,
achamos mais interessante que o pblico no visse a fonte, mas sim a luz, como sendo
parte dos harmnicos produzidos pelo piano. As cabeas de notas que esto entre
parnteses correspondem a pequenos improvisos. O intrprete pode escolher qual (is) nota
(s) tocar dentro do mbito proposto. Deve-se obedecer a indicao de velocidade (+V/-V),
densidade (+D/-D), dinmica (p/pp/f) e a durao do improviso (20 segundos, 30
segundos, aproximados). Os clusters tocados junto ao improviso no so especificados no
tempo do improviso. Mesmo assim, entendi que cabe ao intrprete pensar a proporo. Em
um segundo momento, ocorreu-me outra pergunta. Como se distingue velocidade e
densidade? Ou, velocidade e densidade podem ser inversamente proporcionais? No
exemplo acima, em ambos os improvisos entre parnteses a densidade reduzida
juntamente com a diminuio de velocidade. Mas, h um outro momento na pea em que
se pede o contrrio. Nas conversas que tive com a compositora ela disse que pensava, na
verdade, que densidade e velocidade eram a mesma coisa em msica. No entanto, penso
32
que no tenha sido por acaso (sem querer fazer um jogo de palavras com o pensamento de
Cage) que ela tenha escrito e distinguido os dois parmetros. Movida por tal provocao,
resolvi adotar o critrio de ressonncia. Pensar na unidade de nuvem sonora, e no apenas
nas unidades de ataque. Assim, quanto maior a participao do pedal, quanto mais
harmnicos e mais ressoante for a nuvem em composio, maior ser a possibilidade de se
sentir um acrscimo de densidade, mesmo em dinmica pp e velocidade lenta. Mas, este
ponto ainda no est claro para mim.
No caso da relao ritmo e velocidade (acrscimo e decrscimo de velocidade),
tambm levei em considerao a ideia de gesto, mais precisamente a sobreposio ou
mutao de gestos. Quer dizer, pensar que no necessariamente reduzir velocidade seja
reduzir, de forma estritamente proporcional, os intervalos de tempo entre um ataque e o
outro. Isto seria uma espcie de simetrizao virtual da diminuio da velocidade. Seria
pensar tempo como distncia.
Fig. 02 exemplo de um rallentando simtrico
Eu posso, por exemplo, selecionar um som mais brilhante, que me servir como
uma espcie de polo. Ele pode se configurar como mais brilhante, ou polo, na estrutura
de uma repetio (ser um som um pouco menos incidente que os demais, ou o mais
repetido, ou a nota de comeo), ou um timbre (um timbre mais distante no conjunto de
sons do piano preparado), etc. e reduzir a velocidade dele de forma mais dramtica que as
demais notas. Isto pode se configurar uma diminuio gradativa da velocidade e nos
interrogar sobre a noo de conjunto. Posso tambm comear com um bolo de notas,
indiscernveis, aleatrias. E gradualmente uma melodia vai se formando. Esta melodia,
33
medida que a velocidade cai, vai se deformando, perdendo a relao rtmica que a
configurava antes, quando se estabeleceu. Alguns ritmos mais rpidos se mantm, outros
no. Ela pode demorar cada vez mais para recomear, etc.
Fig. 03 exemplo de um rallentando assimtrico, desigual
Dentro de infinitas possibilidades rtmicas, a compositora poderia ter criado uma
para ser escrita (uma sugesto menos abstrata e menos aberta de gesto). A escrita de
quilteras complexas provocaria outros tipos de esforos e tenso, no menos interessantes
e contingenciais, na compositora e na performance da intrprete. No entanto, a
compositora optou por um tipo de liberdade para quem for tocar a pea que possibilita
expressar tendncias, impulsos, escutas e afeces de cada um e a cada momento em que
ela for tocada, escapando de uma definio formal de obra.
Da mesma forma, os clusters, do trecho musical em referncia, so moduladores do
tempo e podem contribuir para carter no absoluto das quedas de velocidade e densidade.
Eles podem obedecer a proporo do tempo proposto para o improviso entre parnteses, ou
no, obedecendo somente as suas propores internas (entre os trs clusters, e entre os dois
clusters). Se por exemplo, no primeiro gesto entre parnteses, os clusters durarem
tambm 20 segundos, teremos um aumento de dificuldade de execuo, visto que uma das
mos deve permanecer no controle da fonte luminosa, produzindo um decrscimo de luz.
Que, alis, exerce uma funo muito interessante na pea.
De toda forma, a brincadeira est em se desfazer a expectativa que criamos (ns,
msicos intrpretes e ouvintes) com os decrscimos ou acrscimos, num processo
constante de deformao do tempo, com permisses para alguns roubos (de repente um
trilo espcie de sobrevida, em um ponto baixo da queda de velocidade ou energia),
34
surpresas, desvios. Este processo nos faz dissociar hbitos e alguns vcios (quanto mais
piano, mais lento), e nos faz refletir sobre relaes de tempo e som, atravs do
entrelaamento dos parmetros j esboados, ritmo, velocidades, lentides, ataques, notas -
considerando nota como som, isto , ponto notvel que articula, marca, impele e
impulsiona o tempo, cria dobras, elsticos.
Existem inmeras maneiras de produzir modulaes de velocidade e lentido,
modulaes de densidade, modulaes de expresso.
1.4 Clusters e dissonncias
Mas ainda, na sucesso das estaes, e na superposio de uma mesma estao de anos diferentes, a dissoluo das formas e das pessoas, a liberao dos movimentos, velocidades, atrasos, afectos, como se algo escapasse de uma matria impalpvel medida que a narrativa progride. E talvez tambm a relao com uma "real poltica"; com uma mquina de guerra; com uma mquina musical de dissonncia. Kleist: como, nele, em sua escrita como em sua vida, tudo se torna velocidade e lentido. Sucesso de catatonias, e de velocidades extremas, de esvaecimentos e de flechas. Dormir em seu cavalo e galopar40.
*
Como se algo escapasse de uma matria impalpvel. Deleuze e Guattari
analisam, assim, a constituio do plano, noo que aparece nos estudos de Deleuze sobre
Espinosa (o plano de imanncia) e ser retomada, com Guattari, em O que filosofia? e,
tambm, em Mil plats. O plano o princpio que permite o desenvolvimento (princpio
composicional) e, ao mesmo tempo, aquilo por onde e atravs do que nada se desenvolve,
mas coisas acontecem41.
Velocidades, lentides, catatonias, galopes, dissonncia. 40 DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol. 4, p.57. 41 pp. 54-63. So as lembranas de um planejador, Espinosa, expressas no plat sobre Devir.
35
1.5 Caos, catstrofe, material-fora, plano de composio
Dizamos que a consistncia criadora. Mas, este ponto ainda nos obscuro. Numa
outra passagem de Mil plats, no captulo sobre o conceito de ritornelo, Deleuze e Guattari
dizem o seguinte: No se trata mais de impor uma forma a uma matria, mas de elaborar
um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir da a captar foras
cada vez mais intensas.42
Em seus cursos sobre a pintura, que preparam a escrita de Francis Bacon Lgica
da sensao (1981), Deleuze convoca a noo de catstrofe para refletir sobre a criao
pictrica e a operao do pensamento criador a ela inerente. Tal operao ter muito a
contribuir no s com a pintura e as artes, mas com a filosofia. Notamos que a pergunta O
que filosofia? percorre toda a obra de Deleuze, inclusive nos seus textos sobre as artes,
mesmo quando ela no aparece de forma explcita. Dentro desta pergunta, ele interroga o
que o contedo prprio da filosofia e como ela opera, como o pensamento pensa
filosoficamente e cria conceitos. Percebemos que nessa empreitada, h um interesse sobre
o movimento do pensamento em si, que, como vimos, endossado nos estudos de Deleuze
sobre diversos autores, mas sobretudo em Espinosa, resgatado tambm para pensar o
Cinema (imagem-movimento, imagem-tempo). No entanto, ao invs de realizar um duplo
pensamento, ou um meta-pensamento o pensamento sobre o pensamento, instaurando
consequentemente uma ltima instncia para o ato de pensar o movimento ao qual se
refere Deleuze o movimento do corpo, dos corpos, dos afectos, da lgica da sensao,
dos ritornelos. Deleuze est interessado nos processos produzidos por uma heterognese,
tendncia que tambm caracteriza os campos operatrios do pensamento.
42 DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol. 4, p. 141.
36
Segundo a filsofa Cntia Vieira, em Diagrama e catstrofe: Deleuze e a produo
de imagens pictricas, a relao entre pintura e catstrofe, caracterizada por Deleuze nas
referidas aulas sobre pintura
no apenas produtiva, mas, de maneira ao menos aparentemente paradoxal, condiciona seu sucesso. Isso quer dizer que um quadro que tenha perdido a relao com a catstrofe um quadro fracassado. Ao entreter uma relao com a catstrofe, a pintura empreende uma luta contra os clichs, e a ausncia de tal relao marcaria a recada na reproduo de imagens-clich43.
Em 1976 foi ao ar, na Frana, uma maravilhosa srie televisiva de seis programas
divididos em dois episdios de 50 minutos cada um dirigidos por Jean Luc Godard e
intitulados 6x2. notvel que Godard tenha trazido contribuies preciosssimas para
Deleuze. Em um dos episdios da srie, o diretor apresenta, sua maneira, o matemtico
francs Rn Thom, nome que se destacou entre os matemticos da poca quando publicou
a sua Teoria das Catstrofes, em 1972. Nessa emisso, Thom explica que a catstrofe
uma modificao da forma que conduz apario de uma descontinuidade. Por exemplo,
aquela de uma dobra quando fechamos uma folha sobre ela mesma. Deste conflito,
geram-se (outras) formas. Para o matemtico Jean-Pierre Bourguignon, boa parte da obra
de Thom consiste em um estudo das singularidades. Compreender porque uma coisa no
lisa, comporta arestas, pontos de cspide. Ele estabeleceu uma ligao entre as
singularidades e o nascimento das formas, aquilo que batizamos de morfognese. Thom
enxerga uma necessidade de perceber as coisas enquanto formas/situaes geomtricas.
Toda a ideia de morfognese contida na teoria das catstrofes passa pela geometria. A
linguagem tambm resultado de um conflito e deve ser entendida assim, segundo o
43 VIEIRA, Cntia. Diagrama e catstrofe: Deleuze e produo de imagens pictricas. Viso Cadernos de esttica aplicada. Revista eletrnica de esttica. No 15, 2014. http://revistaviso.com.br/visArtigo.asp?sArti=141
37
matemtico, geometricamente. Na lgica da informao que a linguagem carrega, gerada
por catstrofes, Thom diz estar interessado pela geometrizao da noo de captura44.
No consideramos que haja uma precisa identificao da noo de catstrofe, tal
como pensada pelo matemtico, com aquela trazida por Deleuze em suas aulas sobre a
pintura. No entanto, notvel o encontro entre os vocabulrios de Deleuze e de outras
grandes figuras de seu tempo. Catstrofe, captura, dobra, bordas... De qualquer forma,
reside na teoria das catstrofes um estatuto engendrador para o conflito, para o choque, que
parece ir ao encontro do interesse de Deleuze sobre a ao das foras sobre as formas45.
Pois o que Deleuze ressalta na relao entre pintura e catstrofe no diz respeito
representao pictrica da catstrofe. Segundo Vieira, por mais belos, interessantes ou
marcantes que possam ser os quadros com imagens de catstrofes (avalanches,
tempestades, dilvios, e assim por diante), h um tipo de catstrofe que diz respeito no ao
tema dos quadros, mas ao prprio ato de pintar46. Para a autora, o pensamento criador lida
com a mesma angstia com a qual lida o pintor-artista ao se confrontar com as imagens
que nos levariam a uma simples recognio. O que est em jogo o choque catastrfico,
choque de foras, que forar a criao de novas maneiras de sentir. O que o pintor-
artista parece mostrar para Deleuze, portanto, o alcance da pintura em forar a
sensibilidade a uma sensao nova; menos a recognio da forma do que uma
deformao47. Assim,
O esforo para produzir imagens pictricas alia-se ao projeto deleuziano de uma filosofia que toma o pensamento como atividade produtiva que produz a cada nova empreitada suas condies de produo, experimentando uma gnese que no se limita ao mbito dos conceitos, mas que atravessa todas as instncias nele
44 Rn Thom au pont de non-retour. Denis DELBECQ, para o jornal francs Libration. 31 de outubro de 2002. Link: http://www.liberation.fr/sciences/2002/10/31/rene-thom-au-point-de-non-retour_420173 (ltimo acesso em 09/05/2016). GODARD, Jean Luc. 6X2. LInstitut Nacional de Audiovisuel, Frana, 1976. https://www.youtube.com/watch?v=B1t_o_CMA_E 45 VIEIRA, Cntia. Diagrama e catstrofe: Deleuze e produo de imagens pictricas. 46 Ibidem 47 DELEUZE. Francis Bacon Logique de la sensation, pp. 25-26, 57-65 (captulo VIII: Pintar as foras)
38
envolvidas, a comear por aquela que vem a se configurar como sensibilidade. Desse ponto de vista, no h mundo sensvel dado (como o que ocorre na atividade de recognio), mas mundos produzidos em cada empreendimento do pensar48.
Alguns crticos de Deleuze manifestam certo incmodo com a assuno do novo
por parte de seus estudiosos. Ressaltamos, portanto, que o novo no diz respeito
novidade, ao original, ao diferento. Da mesma forma que Deleuze reformula a
diferena j que citamos o diferente , o novo diz respeito repetio: a repetio
intensiva, condio da diferena. No Brasil, e provavelmente em outros pases de lngua
portuguesa, usamos a expresso de novo! quando desejamos repetir uma experincia.
Sabemos que a cada uma dessas repeties, a sensao que temos que provamos daquele
prazer intempestivamente, fora do tempo, no como se fosse a primeira vez, mas como se
fosse absoluto. Mais, mais uma vez, o aqui-agora, novamente.
A durao altera. Em Francis Bacon - Lgica da sensao, Deleuze observa,
atravs dos quadros de Francis Bacon, que a deformao na pintura traz um aspecto da
durao, testemunha da ao da fora sobre as formas. A durao de um deformar-se. A
fora do tempo mudando, por variao alotrpica dos corpos, ao dcimo de segundo, que
faz parte da deformao49. Diferentemente do matemtico Rn Thom, Deleuze est
menos interessado em uma morfognese do que nas cosmogneses, caos-germe, caosmos,
diagramas, sistemas nervosos, mquinas abstratas. Tais campos operatrios trazem por
princpio a durao, o movimento, os moventes, as multiplicidades. So campos de foras.
A gnese/causa residiria, assim, nos modos de produo e criao; modos de vida; xtases
do caos, territorializados. Nascendo do caos (o obscuro, o sombrio...), do movimento de
uma catstrofe, os meios e os ritmos fazem territrio a uma composio. este lugar
diagramtico que Deleuze atribui s criaes, seja na pintura, na msica, nas demais
48 VIEIRA, Cntia. Diagrama e catstrofe: Deleuze e produo de imagens pictricas. 49 DELEUZE, G. Francis Bacon Logique (...), p.63 (Traduo minha. Na traduo de Malufe e Ferraz ver p.33)
39
expresses artsticas, nas filosofias, nas cincias: na relao do pensamento com as foras
do caos. A forma no mais separvel de uma transformao (...). Uma composio, a
organizao, mas a organizao se desagregando (...). uma vida, mas a mais bizarra e
intensa vida, uma vitalidade no orgnica50. O diagrama, ento o conjunto operador de
linhas e de zonas, de traos e tarefas assignificantes e no representativos51.
Notamos que no no figurativo h msica. So desigualdes percorrendo os
campos operatrios, articulando meios e cdigos, garantindo a coexistncia de suas
heterogeneidades, fazendo vibr-los, tornando-os sensveis. Movimento das duraes.
Movimento do ritornelo52. Nessa escuta-captura, escuta intensiva, o corpo sem rgos se
territorializa. Eis ento a criao do territrio e de seus agenciamentos e ressonncias:
plano de composio, diagrama de foras, plano imanente, plano de consistncia.
A msica envia fluxos moleculares. Certamente, como diz Messiaen, a msica no privilgio do homem: o universo, o cosmo feito de ritornelos; a questo da msica a de uma potncia de desterritorializao que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os desertos no menos do que o homem. Trata-se, antes, daquilo que no musical no homem, e daquilo que j o na natureza.53
Portanto, no lugar da forma/estrutura/organismo prefiguram-se campos operatrios,
planos (territrios, ritornelos), corpo sem rgos. No plat sobre o Devir, Deleuze e
Guattari entrelaam essas noes em suas anlises sobre o corpo sem rgos: A questo
no a da organizao, mas da composio; no do desenvolvimento ou da diferenciao,
mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentido.54 Referncia filosofia de
50 DELEUZE. Francis Bacon Logique (...), p. 120-121. (pp. 67-68). 51 p. 95. 52 Sobre o ritornelo, conceito onde a relao entre som/msica e territrios amplamente explorada por Deleuze e Guattari, iremos investigar mais adiante nesta dissertao na parte o tempo e os territrios: o ritornelo. 53 DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol.4, pp. 112-113. 54 p. 41. Mais adiante, os autores escrevem: Mas, ainda aqui, quanta prudncia necessria para que o plano de consistncia no se torne um puro plano de abolio, ou de morte. Para que a involuo no se transforme em regresso ao indiferenciado. No ser preciso guardar um mnimo de estratos, um mnimo de formas e de funes, um mnimo de sujeito para dele extrair materiais, afectos, agenciamentos? Assim, devemos opor os
40
Espinosa. Em sua tese de doutorado, Guillaume Sibertin-Blanc reafirma que todas essas
noes plano de imanncia, corpo sem rgos, corpo comum, etc., chamam para uma
mesma coisa. Pois no cerne desses termos, naquilo que os tornam equivalentes ou
unvocos (no mundo no pr-estabelecido, naquilo que pr-formal e pr-individual), que
reside a questo prtica-poltica da filosofia de Deleuze: a imanncia, verdadeiro sentido
da experimentao.
Assim, os agentes composicionais de um plano de imanncia, condies regidas,
portanto, por uma lgica de foras de velocidades e lentides, de afectos, devires,
intensidades, duraes possibilitam a criao e a composio dos agenciamentos. Na
verdade, em O que filosofia? (ltimo trabalho escrito pela dupla Deleuze e Guattari, em
1991) so distinguidos trs planos: de imanncia, que d consistncia ao infinito, com
conceitos-acontecimentos consistentes (plano filosfico); de coordenadas, que se renuncia
ao infinito, com funes, estados e referncias (plano cientfico); de composio, que cria
um finito que restitui o infinito atravs de sensaes (plano artstico). Estes planos podem
se misturar, em maior ou menor grau, se alterando e mudando suas naturezas. De todo
modo, todos os trs planos dependem do ato de criao.
Como j sugerido anteriormente, suspeitamos que resida uma musicalidade nos
planos de imanncia, no movimento com o qual eles operam e se agenciam, isto , em suas
composies e na maneira como se expressam as relaes entre seus componentes.
dois planos como dois polos abstratos: por exemplo, ao plano organizacional transcendente de uma msica ocidental fundada nas formas sonoras e seu desenvolvimento, opomos um plano de consistncia imanente da msica oriental, feita de velocidades e lentides, de movimentos e repouso. Mas, segundo a hiptese concreta, todo o devir da msica ocidental, todo devir musical implica um mnimo de formas sonoras, e at de funes harmnicas e meldicas, atravs das quais se far passar velocidades e lentides, que as reduzem precisamente ao mnimo. Beethoven produz a mais espantosa riqueza polifnica com os temas relativamente pobres de trs ou quatro notas. H uma proliferao material que no faz seno uma com a dissoluo da forma (involuo), sendo ao mesmo tempo acompanhada de um desenvolvimento contnuo dessa forma. Talvez o gnio de Schumann seja o caso mais chocante, onde uma forma no desenvolvida seno para as relaes de velocidade e lentido pelas quais ela afetada material e emocionalmente. A msica no parou de fazer suas formas e seus motivos sofrerem transformaes temporais, aumentos ou diminuies, atrasos ou precipitaes, que no se fazem apenas de acordo com as leis de organizao e at de desenvolvimento (DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol. 4, pp. 60-61).
41
Deleuze e Guattari dizem que o construtivismo exige que toda criao seja uma
construo sobre um plano que lhe d existncia autnoma55. O termo construtivismo,
apesar de se referir construo de um agenciamento e evocar uma pragmtica, parece
trazer alguns problemas, ao nosso ver, frente s coexistncias de heterogneos com as
quais lidam os planos, com as quais eles so traados, e com a prpria ideia de composio
e devir. A construo remete a partes, a unio de partes que edifica um todo. Tal edificao
parece-nos carecer de intensidade, de tenses e de uma estruturao movente (uma no-
estrutura), assinalada pelos dinamismos espao-temporais. Talvez a expresso
montagem/dcoupage, utilizada pelo cinema, seja mais fiel do que construo. Um corte
do caos. Mas, ficaremos, por ora, com a composio. A composio de um plano
imanente, ou plano imanente de composio. Plano dinmico, sem imagem, intensivo, e
por isso aberto para a experimentao56; com alternncias complexas, no excludentes por
natureza, e por isso simultneas, dissonantes e ruidosas, por que no? Partindo da assuno
de uma teoria das multiplicidades, preferimos no referenciar a filosofia sob a perspectiva
do termo construtivista na tentativa de resguardar tambm a ideia de experimentalismo, da
no-estrutura, inerente s consistncias. De qualquer maneira, nesse momento, o que nos
chama a ateno na referida citao diz respeito autonomia. Pois, o que, de fato, confere
autonomia criao, vida da instabilidade do devir? O que seria, precisamente,
autonomia e o que isso teria a ver com uma possvel musicalidade do plano de
imanncia?
Em O que o ato de criao?, Deleuze diz que inerente a todas as
55 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Flix. Quest-ce la philosophie ? Les dition de Minuit, Paris, 1991/2005, p. 12 (p. 16). 56 Voltaremos sobre o tema da abertura (ou o Fora), sobre regimes abertos e experimentao, ao longo da dissertao.
42
disciplinas/atividades criativas a constituio de espaos-tempos57. Em um primeiro
momento, consideramos que toda composio lida com intensidades, foras do caos, que
determinam (ou tornam perceptvel) a durao58. A noo de autonomia, correlata
consistncia, contgua composio de espaos-tempos, modos de vida, ritmos de vida,
andamentos, blocos de heterogneos intempestivos. Deleuze evoca no ato de criao uma
presena pura que, por divergir por natureza, est atrelada percepo. Em Ocupar sem
contar ele diz:
que o problema da arte, o problema correlativo criao, o da percepo e no o da memria: a msica pura presena, e reclama um alargamento da percepo at os limites do universo. Uma percepo alargada, esta a finalidade da arte (ou da filosofia, segundo Bergson)59.
Nos perguntamos se a pura presena da msica, identificada por Deleuze,
correlata ao sonoro, quele carter vibratrio que define a sensao e que na msica parece
estar no mais elevado grau. Se o ritornelo, sonoro por excelncia, criador de territrios, o
sonoro - ou o musical - parece exercer nesse momento da filosofia de Deleuze um
importante papel, que alcana, inclusive, uma dimenso tico-poltica inusitada. Ao dizer
que a msica reclama um alargamento da percepo, Deleuze interroga sobre os limites
desta faculdade e sobre uma possvel seleo que toda escuta faz, e que muitas vezes de
ordem verificacionista. Deleuze convoca o sonoro-musical pois o sonoro-musical atravessa
espaos e corpos, arrebata, rompe, invade, expande: potncia de desterritorializao. O
sonoro-musical torna-se agora ritornelo. A terra e o territrio assinados pelo ritornelo
reivindicam assim um novo povo por vir.
57 DELEUZE, Gilles. O que o ato de criao?, trad. Joao G.A. Domingos, in O Belo Autnomo: textos clssicos de esttica. Org. Rodrigo Duarte, 2a Edio. Belo Horizonte: Autntica Editora; Crislida, 2012. (Coleo Fil/Esttica;3). 58 Sobre tornar sensvel a durao, veremos logo mais neste mesmo captulo e nas partes onde exploro Diferena e Repetio. 59 DELEUZE. Occuper sans compter: Boulez, Proust et le temps in Deux rgimes de fous, p. 276 (p.315).
43
A msica est cheia disso. Para tanto preciso no memria, mas um material complexo que no se encontra na memria, mas nas palavras, nos sons: "Memria, eu te odeio. S se atinge o percepto ou o afecto como seres autnomos e suficientes, que no devem mais nada queles que os experimentam ou os experimentaram: Combray, como jamais foi vivido, como no nem ser vivido. 60
Ressaltamos que existe na desterritorializao um trao de assignificncia um
pouco de tempo em estado puro, aquilo que no musical no homem, e que j o na
natureza , que garante, inclusive, a consistncia, mesmo em composies no abstratas,
como exemplifica Deleuze com Em busca do tempo perdido, de Proust; aquilo que nas
individuaes, nos acontecimentos, racha com a identidade qual a memria fixa61. O
que Deleuze diz sobre o alargamento da percepo diz respeito tambm identificao de
uma variao, ou deformao, de uma transformao perptua, movimento do qual
emerge, usurpando o termo de Boulez, uma diagonal.
Toda a obra de Proust feita assim: os amores sucessivos, os cimes, os sonos, etc., se descolam dos personagens de modo que eles devm eles mesmos personagens mutantes, individuaes sem identidade, Cime I, Cime II, Cime III...Uma tal variao que se desenvolve na dimenso autnoma do tempo, chamaremos de bloco de durao, bloco sonoro incessantemente variante.62
*
Falvamos anteriormente de um pensamento sem imagem e do signo
assignificante. A individuao sem identidade, este bloco sonoro incessantemente
variante, tambm chamada por Deleuze e Guattari de hecceidade, termo que eles
recuperam de Duns Scott, filsofo medieval. De acordo com a reformulao do termo, uma
hecceidade um acontecimento, uma expresso de um devir, a individuao, sem sujeito, 60 DELEUZE. GUATTARI. O que a filosofia?, p. 218. 61 Deleuze usa a frase de Proust un peu du temps ltat pure - ao se referenciar ao tempo no como fora, mas o tempo em si mesmo (Occuper sans compter: Boulez, Proust et le temps, p.278). Assim, tornar sonoras as foras do tempo no quer dizer necessariamente que o tempo, em si, seja uma fora. Na pgina 276 do original: Or un tel but ne peut tre atteint que si la perception brise avec lidentit laquelle la mmoire la rive (p. 315). 62 p. 273 (p.312).
44
de uma vida63. Percebemos, portanto, que a autonomia reside em um acontecimento que
no configura um princpio de identidade, muito antes pelo contrrio, diz-se menos de uma
representao do que de uma modulao. Mas reiteramos, isto no confere indeterminao
s hecceidades. O exemplo dos Cimes em Proust fiel preciso de tais individuaes-
personagens. A autonomia e a consistncia de toda e qualquer composio garantida por
aquele tempo de natureza intensiva no pelo instante, ou pela brevidade mas por esse
bloco de durao ao qual Deleuze atribui a qualidade de sonoro. Parece que o som, ao
desterritorializar-se, afina-se cada vez mais, especifica-se e torna-se autnomo(...). O som
no deve essa potncia a valores significantes ou de comunicao64. E, assim, o
problema torna-se realmente musical, tecnicamente musical, o que o torna a tanto mais
poltico.
No por acaso Deleuze convoca para sua filosofia os personagens rtmicos, de
Messiaen, entendidos como tais atravs da autonomia e independncia que eles exercem e
dramatizam em uma composio. O ritmo, como vimos, distncia crtica intermezzo -
que participa da modulao dos corpos, corpsculos, molculas. Nos dinamismos do
pensamento, o ritmo seria uma articulao; dobra por onde desviamos de uma autoridade
da representao. A consistncia, assim, desloca a percepo, em um processo de
desterritorializao, atravs dessas foras/variaes at ento imperceptveis, individuaes
intensivas sem identidade que foram a perceber. De novo, jogo da repetio e da
diferena. E a msica sempre teve este objeto: individuaes sem identidade, que
constituem os seres musicais65.
O compositor Silvio Ferraz diz, a partir da, que escutar ento se colocar diante
63 DELEUZE. PARNET, Claire. Dilogos. Trad. Eloisa Arajo Ribeiro. - So Paulo: Escuta, 1998. Psicanlise, Morta Anlise. DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol. 4. 64 DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol.4, p. 166. 65 DELEUZE. Occuper sans compter: Boulez, Proust et le temps, p. 276 (p.315).
45
das foras de modulao, fazer repetir a modulao ela mesma66. Um pensamento-msica
lida com tal escuta: uma escuta que captura foras atravs de uma desterritorializao, isto
, sem imitar, reproduzir ou variar um mesmo, mas permitindo um certo devir molecular,
permeado de duraes novas.
Trata-se antes, portanto, de limiares de percepo, de limiares de discernibilidade, que pertencem a este ou quele agenciamento. s quando a matria suficientemente desterritorializada que ela prpria surge como molecular, e faz surgir puras foras que no podem mais ser atribudas seno ao Cosmo. Isto j estava presente "desde sempre", mas em outras condies perceptivas. preciso novas condies para que aquilo que estava escondido ou encoberto, inferido, concludo, passe agora para a superfcie67.
Parece ento que a msica, para Deleuze, criadora de novas condies para
percebermos em dilatamento e expanso aquilo que aparece. Ela atravessa. Devir-
molecular da msica. A escuta cria; faz repetir na criao e risco daquele novo territrio,
a diferena. Deleuze e Guattari, ao trazerem a msica e o sonoro, e o conceito de ritornelo
como mquina musical que fabrica tempo e cria e agencia territrios, no esto
circundando o tema msica somente, mas endossando uma proposta de um pensamento-
msica que, ao nosso ver, vai ao encontro de toda filosofia das multiplicidades.
*
Como vimos, assim como nos estudos sobre a pintura, em Mil plats tambm se
estabelece uma parceria entre as noes de caos, ritmo e meios. Segundo Ferraz, em sua
anlise sobre o Ritornelo, o Cosmo nada mais que o caos velocidade lenta. Ele
ressalta que
66 FERRAZ, S. La formule de la ritournelle in CRITON. CHOUVEL. Gilles Deleuze: la pense-musique, p. 150 67 DELEUZE. GUATTARI. Mil plats, vol.4, p. 165.
46
Deleuze e Guattari denominam contraponto csmico a sobreposio de permutaes irregulares dos termos de vrios territrios, micro-termos, micro-modulaes oriundas disso que, para nossa percepo ordinria, ainda caos 68.
Para os autores, o artista compe seus planos contrapontisticamente, como um
arteso csmico, lidando no mais com uma matria-forma, mas com um material-
foras69. A ideia de um material-foras constantemente evocada por Deleuze em suas
pesquisas sobre arte. H algo que parece sempre ser selecionado por ele em suas leituras:
na sua pesquisa sobre a pintura, Deleuze descobre que Bacon haveria dito que o que ele
buscou ter pintado com suas pinturas foi antes o grito que o horror; Paul Klee, por sua
vez, dizia em no mais trazer o visvel, mas tornar visvel; da mesma forma na msica,
Messiaen haveria dito que os sons no so mais do "que vulgares intermedirios destinados
a tornar as duraes apreciveis"70 e que a tarefa da composio consistiria, assim, em
tornar sonoro o tempo. Todas essas expresses significam uma s e mesma coisa: tornar
sensvel o insensvel71.
Existe um pequeno, porm significativo, texto publicado dentro do conjunto Dois
regimes de loucos, preparado por David Lapoujade, onde Deleuze explora a noo de
material-foras a partir da msica. O texto chama-se Tornar audveis foras no
audveis. Este texto foi escrito por Deleuze para uma conferncia no IRCAM, na ocasio
de uma jornada de seminrios sobre o tema O tempo musical, em fevere