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1
UNAMA - UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO,
LINGUAGENS E CULTURA – TURMA 4 - 2011
Jorge Paulino Duarte de Araújo
Pentacantos de Paes Loureiro: Um discurso lírico
com ressonância clássica
Belém - Pará
2013
2
Jorge Paulino Duarte de Araújo
PENTACANTOS DE PAES LOUREIRO: Um discurso lírico
com ressonância clássica
Dissertação apresentada à Universidade da
Amazônia – UNAMA como requisito à
obtenção do título de Mestre no Programa de
Mestrado em Comunicação, Linguagens e
Cultura.
Orientadora: Profª Drª Amarilis Tupiassu
BELÉM - PARÁ
2013
3
SBU
Sistema de Bibliotecas da Unama
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Xxxxxxxxxxx
__________________________________________________
xxx.x
xxxx
Araújo, Jorge Paulino Duarte de.
Pentacantos de Paes Loureiro: um discurso lírico com ressonância clássica / Jorge Paulino Duarte de Araújo – 2013
xxxx x; xx:xxx yx cm.
Dissertação (Mestrado) – Universidade da Amazônia,
Programa de Pós-Graduação em Comunicação,
Linguagens e Cultura, 2013.
Orientadora: Profª Drª Amarilis Tupiassu
1. Pentacantos 2. Paes Loureiro 3. Literatura
Brasileira 4. Poética I. Tupiassu, Amarilis
II. Título
_____________________________________________
4
Jorge Paulino Duarte de Araújo
Pentacantos de Paes Loureiro: Um discurso lírico com ressonância clássica
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profª Drª Amarilis Isabel Alves Tupiassú
_______________________________________________________________
Profª Drª Elizabeth de Lemos Vidal
_______________________________________________________________
Profº Dr. José Guilherme de Oliveira Castro
Apresentado em: __ / __ / __
Conceito: ___________
BELÉM
2013
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, doador da vida e das infinitas criações.
À minha família, que doou seu apoio permanente.
À professora Amarilis Tupiassu, pelas suas correções precisas e agudas.
Ao poeta Paes Loureiro pela atenção que deu ao desenvolvimento do estudo.
7
“... Ouvir essa voz é ouvir o próprio
tempo, o tempo que passa e que,
apesar disso, volta transformado em
umas quantas sílabas cristalinas.”
Octávio Paz
8
RESUMO
O trabalho em foco objetiva investigar a prática poética do poeta
paraense João de Jesus Paes Loureiro assente no livro Pentacantos, com
destaque às ressonâncias épico-líricas que a coletânea encerra. O poeta Paes
Loureiro utilizou no seu processo criador tanto uma escrita impulsiva como o
trabalho com a palavra, próprio do poeta artesão. Já a intercalação do
elemento épico com as facetas poemáticas líricas indica o entendimento das
formas vérsicas clássicas utilizadas pelos poetas Homero, Virgílio, Dante, com
as quais dialoga o poeta abaetetubense. A relação poesia e mito abriu um
espaço reflexivo, em que ficou evidente que as formas simbólicas, desde
aqueles ancestrais, foram agregadas em Pentacantos especificamente no
Canto IV que subentende a passagem do mito greco-romano para o mito
amazônico. Há na prática poética de Paes Loureiro um diálogo com o seu
tempo, diálogo que se forma na matriz greco-latina. A matéria poética trazida à
espacialidade amazônica é herança da poesia épica em dimensão convergente
com o sentimento lírico, configurando o Pentacantos como totalidade e não
como aglomerado de versos.
Palavras-chave: Pentacantos, Épica, Lírica, Ressonância, Dialogismo, Mito.
10
SUMÁRIO
RESUMO..............................................................................................8
ABSTRACT.........................................................................................................9
PRIMEIRO ENUNCIADO...................................................................................11
CAPÍTULO 1......................................................................................................13
A POÉTICA PAESLOUREREANA...................................................................13
1.1 O POETA E SUA OBRA.............................................................................13
1.2 PERFIL DO PENTACANTOS.....................................................................16
1.2.1 TÍTULO, CAPA, EPÍGRAFES E ORELHAS............................................17
1.3 ARQUITETURA DO PENTACANTOS .......................................................19
CAPÍTULO 2......................................................................................................27
DIÁLOGO INTERTEXTUAL NOS CÂNTICOS.................................................27
2.1 RESSONÂNCIA HOMÉRICA.....................................................................31
2.2 RESSONÂNCIA VIRGÍLICA......................................................................36
2.3 RESSONÂNCIA DÂNTICA..........................................................................40
2.4 POESIA E MITO: UMA COMUNICAÇÃO POSSÍVEL.................................45
2.4.1 O MITO E SUA RELAÇÃO COM A POESIA............................................45
2.4.2 TEMPO MÍTICO NO TAMBATAJÁ...........................................................53
2.5 IMAGEM METAFÓRICA: UMA TRANSPOSIÇÃO POÉTICA.....................61
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................80
APÊNDICE A...................................................................................................85
APÊNDICE B..................................................................................................100
11
PRIMEIRO ENUNCIADO
Em 1991, finalizamos o curso de Letras e Artes na Universidade Federal
do Pará, com o trabalho sobre o Canto V de Os Lusíadas, do poeta português
Luis Vaz de Camões. Na especialização em Teoria Literária, na mesma
instituição, em 1993, apresentamos a monografia centrada na temática o amor
na obra poética Pelas Mãos do Vento, do poeta paraense Alonso Rocha. Já
publicamos cinco livros, três coletivos e dois individuais. Essa trajetória reflete
nosso interesse pelo estudo da poesia, e, mais especificamente nesta
Dissertação, pelo livro Pentacantos, do poeta João de Jesus Paes Loureiro.
A relação com a poesia constitui-se num estímulo para pensarmos num
poeta-artesão, aquele que não está preocupado simplesmente com os insights
inspirativos e tampouco nega o valor da inspiração, da impulsão. No
Pentacantos, captam-se as duas vertentes mais abrangentes do modo de
criação. Nesse livro, a palavra também surge como instrumento a ser refinado.
João de Jesus Paes Loureiro tem uma poesia, como se disse, atravessada por
vozes provenientes dos mitos greco-romanos e amazônicos. Estamos nos
debruçando sobre essa poesia desde 1996, e ao lermos o conjunto da obra
poética desse poeta fomos atraídos pelas marcas intertextuais flagrantes no
Pentacantos.
O foco de questionamentos desta investigação é o diálogo lírico-poético,
acerca do qual pretendemos averiguar: (I) como o diálogo intertextual está
instaurado no corpo do Pentacantos? e (II) de que maneira esse diálogo
promove a ressonância do verso clássico no verso lírico?
Assim, repita-se, o objetivo geral pretende entender o processo de
criação poética a partir do diálogo lírico-épico. Já as intenções específicas
buscam entender a estrutura do Pentacantos.
O primeiro passo dessa investigação é desvelar o processo de criação
poética em si, o que para Redmond (2000, p. 59) é “... a inspiração [...] um
processo passivo em que o poeta espera com paciência pelo momento da
12
criação. Durante o longo período de incubação nem sabe nem sonha o que
escreverá”.
Elencam-se alguns aspectos sobre a biografia do poeta amazônida para
em seguida ser abordada a estrutura textual do Pentacantos, além de ser
analisado o livro desde a capa até sua estrutura global.
Adianta-se que o teórico Maingueneau (2009, p. 261), acerca de diálogo
intertextual, ressalta que: “Um discurso quase nunca é homogêneo: ele mistura
diversos tipos de sequências textuais, faz variar a modalização, os registros de
língua, os gêneros dos discursos, etc.”. É justamente nessa diversidade
dialogal que o tecido textual será estudado.
Este pensar pode situar-se na realidade mitopoética amazônica,
reforçada pelo pensamento de Freye (2000, p. 17) “... cada poeta tem sua
mitologia particular, sua própria faixa espectroscópica ou formação de símbolos
peculiar, da qual ele não é consciente em grande parte”. A partir dessa
proposição percebemos que o poeta Paes Loureiro não dialoga somente com
as grandes obras da literatura universal; cria símbolos particularizados, como
se evidenciará no decorrer deste estudo.
A metodologia desta pesquisa fundamenta-se no levantamento
bibliográfico, na análise dos ecos no Pentacantos e dos textos de autores da
literatura clássica: Homero, Virgílio, Dante. Esses procedimentos foram
fundamentais para o desenvolvimento das ações centrais anteriormente
mencionadas a fim de atingirmos o propósito desta investigação.
13
CAPÍTULO I
A POÉTICA PAESLOUREREANA
1.1 O POETA E SUA OBRA
Evidenciaremos, inicialmente, alguns aspectos da vida do poeta Paes
Loureiro para apresentarmos, em perspectiva conjunta, a obra literária em que
se encaixa o livro Pentacantos. Nesse aspecto mais abrangente, procuraremos
demonstrar a prática estética do poeta amazônida, nascido em 23 de junho
de1939, em Abaetetuba, município do Pará. Cidade ribeirinha que, na infância
do poeta, estava isolada de Belém. Naquela época, o acesso entre essas duas
cidades demandava uma travessia somente por meio de canoas à vela ou de
lanchas a motor. Esse isolamento imergiu o poeta no veio da gente dos rios e
das matas da Amazônia e contribuiu para que o poeta entrasse em contato
com as primeiras histórias sobre o imaginário da floresta.
Aos doze anos de idade, Paes Loureiro veio para Belém, a fim de
cumprir os graus de estudos inexistentes em sua cidade. Paes Loureiro
formou-se em Direito e em Letras, e optou pelo magistério.
Foi Secretário de Educação e Cultura de Belém, Presidente-fundador da
Fundação Tancredo Neves, Secretário de Cultura e Educação do Estado do
Pará, Presidente-fundador do Instituto de Artes do Pará e criador do projeto
Multicampiartes da Universidade Federal do Pará.
Seu mestrado em Teoria da Literatura foi realizado na Universidade de
Campinas e o doutorado, na Sorbone, em Paris.
Atualmente, é professor de Estética, História da Arte e Cultura
Amazônica na Universidade Federal do Pará.
A presença do imaginário amazônico aparece na obra de Paes Loureiro
como extensão do real, resultado dos contatos que teve ao ouvir as lendas na
sua infância e adolescência. Suas tarefas escolares eram realizadas como
14
práticas relacionadas com a natureza, ao tomar banho no rio ou tomar banho
na chuva.
Muitos teóricos já se debruçaram sobre alguns textos de Jesus Paes
Loureiro. O reconhecimento das qualidades dessa obra já foi estabelecido por
críticos, como Benedito Nunes. O filósofo paraense, logo na introdução das
Obras Reunidas, (2000, p. 15), de Paes Loureiro, afirma, por exemplo, o valor
estético, o caráter universalizante do Pentacantos.
A Doutora Kathrin Nissel (2001, p. 26), no ensaio “A eternidade perdida
em calendários: mito e memória na poesia amazônica de João de Jesus Paes
Loureiro”, enfatiza o mito como suporte à criação de uma criação poética que
entrelaça em uma memória caudal em que se contemplam dicções poéticas da
Antiguidade e do presente.
Octavio Ianni, depois de um percurso refletindo sobre a Amazônia e
seus habitantes, refere-se ao eldorado desejado: “Aqui Deus ainda não
terminou sua criação”, nas Obras Reunidas, (2000, p. 15). E situa a obra de
Paes Loureiro como “narrativa plural”, assim como declara que sua poesia
perpassa o mito.
O sociólogo projeta seu olhar sobre a obra global do poeta, e percebe-a
como contribuição para o entendimento das “configurações marcantes” de uma
região na qual se espelha muito do que tem sido o continente, do que foi e não
é mais o novo mundo.
Já Relivaldo Pinho, que teve sua dissertação de mestrado premiada pelo
Núcleo de Altos Estudos da Amazônia com o Prêmio NAEA-
Teses/Dissertações de 2003, e publicada com o título Mito e Modernidade na
Trilogia Amazônica, João de Jesus Paes Loureiro, pesquisou três livros:
Porantim, Deslendário e Altar em Chamas, contribuindo assim para o desvelar
de mais uma porção da grande obra do poeta amazônida.
A obra do poeta Paes Loureiro está dividida em: poesia:Tarefa (1964),
Cantigas de amar de amor e de paz (1966), Epístolas e Baladas (1968), Remo
Mágico (1975), Enchente amazônica (1976), Porantim (1979), Deslendário
(1981), Pentacantos (1984), Cantares amazônicos (1985), O Ser Aberto (1987),
15
Romance das três flautas ou de como as mulheres perderam o domínio sobre
os homens (1987), finalista do Prêmio Jabuti do referido ano, O Poeta Wang
Wei (699-759 AD) Na visão de Sun Chin e João de Jesus Paes Loureiro
(1988), Iluminações/Iluminuras (1988), Artesão das Águas (1989), Altar em
chamas e outros poemas (1989), obteve o prêmio Nacional de Poesia da APCA
em 1984, Cinco palavras amorosas a Virgem de Nazaré (1989), Cantares
Amazônicos (1990), Do Coração e suas amarras (2001), Fragmento (2003),
Água da Fonte (2008), Para ler como quem anda nas ruas (2012); antologia:
Literatura Brasileira em curso (1968), II Brasile Atraverso La Poesia (1969),
Antologia da Cultura Amazônica, Gesange des Amazonas (1931); revista:
Gaceta do Instituto colombiano (1982), Religião e Sociedade (1983); teatro:
Ilha da Ira (1976), Pássaro da terra (1999), A Procissão do Sayrê (1997); tese:
Cultura Amazônica: uma poética do Imaginário (1991); Obras Reunidas (2000);
ensaio: Elementos de Estética (1989), A poesia como encantaria da
linguagem/Hino dionisíaco ao Boto (1992), A Conversão Semiótica na Arte e
na Cultura (2007), A Arte como Encantaria da Linguagem (2008), Da Cor do
Norte - Brinquedos de Miriti (2012); novela: Au-delà du meandre de ce fleuve -
Além da curva daquele rio (2002); romance: Café Central – O tempo submerso
nos espelhos (2011); outros trabalhos: Inventário Cultural e Turístico do Pará,
Proposta Modular de Educação e Cultura – SEMEC, 1985, Proposta Contextual
de Educação Infantil – SEMEC (1986), Projeto PREAMAR: O Pará e a
Expressão Amazônica – Boletim da fundação Cultural “Tancredo Neves”
(1986), totalizando quarenta publicações.
Portanto, atentamos neste texto que a passagem foi um marco na vida e
na obra do poeta. Desde a sua vinda para Belém até as anotações, seguindo-
se em sua formação nos cursos de Direito e de Letras na Universidade Federal
do Pará, no Mestrado na Universidade de São Paulo, UNICAMP, no Doutorado
na França e no Pós-doutorado em Portugal. Essa experiência foi determinante
para fortalecer as matrizes poéticas do poeta Paes Loureiro e contribuíram
para a feitura da sua visão poética futura.
16
1.2 PERFIL DO PENTACANTOS
O Pentacantos foi escrito pelo poeta entre os anos de 1982 e 1983,
quando este realizava seu mestrado em São Paulo, na Universidade de
Campinas, orientado pelo crítico literário paulista Joaquim Brasil.
O livro apresenta cinco cantos(C.) com o número respectivo de
fragmentos(F.), os quais serão descritos minuciosamente na seção 1.3 (p. 19)
do presente trabalho.
O crítico literário Fábio Lucas, autor do prefácio do “Pentacantos” (1984)
declara ser esse livro “o poema dos poemas”. Fábio Lucas afirma que o livro do
poeta paraense faculta a reconciliação do leitor com a poesia, e enfatiza o
caminho em que pode ser percorrido pelo livro “[...] dentro da labiríntica
produção literária do País”:
A grande metáfora que a atravessa é a palavra fundadora da poesia. Habilmente o poeta explora os signos da retórica, conciliando-os com os códigos do amor e da vida. Fica proposto, portanto, um jogo intenso entre as palavras e seus referentes, como se o poeta, ave canora, brincasse de errar em pautas diferentes, puxando os significados ora para a sua expressão literal, ora para seu universo simbólico. (...) E como se trata de uma viagem no mundo encantado da palavra, há de o leitor precaver-se contra o canto das sereias, o embalo hipinótico da música. Além do apelo gráfico e da sedução conceitual, os poemas de Paes Loureiro se apoiam no efeito sonoro: “(...) os versos fiam a seda em que a poesia / tecendo e destecendo / fidelíssima / aguarda seu senhor / -- o leve e alado ser alado e leve ... (canto I, frag. XI). (...) Tempo e eternidade, poesia e amor: eis os temas de sempre, iluminados por uma concepção singular de Paes Loureiro. A poesia, entre nós, retoma o seu leito eterno e Pentacantos é um exemplo.
Nos quatro fragmentos extraídos do prefácio do crítico paulista,
observa-se que ele enfatiza o uso da metáfora, como uma prática que
potencializa o vínculo vida-arte. A poesia paeslourereana registra o aspecto
transitivo do poetizar, e a fronteira em que o poeta se encontra
constantemente: entre o real e o imaginário. Fábio Lucas frisa o jogo com as
palavras que remetem à sonoridade própria dessa poesia, desembocando nos
seus dois grandes pares temáticos: “Tempo e eternidade, poesia e amor”.
Ressalvamos que o referido livro ainda não foi analisado, por este
motivo consta na nossa proposta de trabalho. Porém, constatamos que, ao
17
inscrever o discurso lírico com ressonância épica, o poeta instaura na sua
escrita poética o mito na tradição da antiguidade poética ocidental, e da cultura
clássica. É essa carga poética, sutil e difusa, sublinearmente, assume nos
contornos estéticos ao agregar-se à mitologia amazônica. Essa apropriação
espelha a modernidade do Pentacantos, assim como a eterna
contemporaneidade da epopeia clássica.
Pentacantos dialoga com Homero, Virgílio e Dante. Não se trata de um
entrosamento linear e explícito. Mas uma conjugação velada, sugerida nos
cinco cantos. As ressonâncias dos fragmentos épicos na lírica
paeslourereana podem ser identificadas por referências sutis a cenas
encontradas nas epopeias.
Em cada canto do Pentacantos, há a indubitável presença das três
epopeias: I Canto: Odisséia, (Homero); II Canto: Eneida (Virgílio); III Canto:
Divina Comédia (Dante); IV Canto, uma passagem, tipo de intervalo, do
universo mítico greco-romano para a cena amazônica, plasmada na lenda do
Tambatajá; e finaliza com o V Canto, no qual o poeta procura construir um
caminho poético mais particular. Esses pontos serão detalhados
posteriormente.
No final do Pentacantos, há notas explicativas referentes ao IV C., F. I:
Tambatajá: “lenda dos índios Macuxi, do vale do Rio Branco, Território Federal
de Roraima, xincuã: “Ave cujo cantar é considerado agourento, isto é,
anunciador de desgraças, de mortes” e do V C., F. V: Maindeua: “Ilha rodeada
de praias, em frente à praia de Marudá, no Estado do Pará.
1.2.1TÍTULO, CAPA, EPÍGRAFES E ORELHAS
No título do livro Pentacantos, apreende-se a sinalização dos cinco
cantos que norteiam o percurso da poesia. O termo “penta” é de origem grega,
e significa “pénte”, elemento que significa cinco.
18
Na capa, há cinco colunas gregas, enfileiradas e num plano
decrescente. Essas colunas remetem a uma referencialidade metafórica, ou
seja, cada coluna representa um canto do livro, numa disposição que se refere
a um tempo específico, ao destacar uma coluna maior, instaura a sensação de
que a estrutura maior de uma construção poética está ligada a outra estrutura
não menor, mas distante do presente, e, apesar desta distância, não
menosprezada, sugere a ideia de que o fazer poético está crivado de muitas
vozes.
Nessa via, em que se instituem jogos de significados semióticos, a
ocorrência subtendida do tecido intertextual vinca em Pentacantos os laços que
prendem e associam o mitológico grego ao amazônico.
As epígrafes do Pentacantos assinalam três pensamentos: “A harmonia
invisível é mais forte do que a visível” (Heráclito); “O tempo é invenção, ou não
é nada” (Bergson); “... aqui um mundo escondido geme num búzio perdido”
(Jorge de Lima). Há nas três meditações a presença de três temas recorrentes
no Pentacantos: a força do invisível, o entendimento do tempo como um
grande dilema, e o mistério próprio da poesia, inscrevendo-se, na frase de
Jorge de Lima, o pronome aqui, em sua condição dêitica, a assinalar um
espaço-tempo indefinido, facultado tanto à Antiguidade homérica, quanto à
contemporânea Amazônia e sua mitologia intemporal.
Três escritores destacam aspectos relevantes da obra de Paes Loureiro
nas duas orelhas do Pentacantos:
A poesia de João de Jesus Paes Loureiro traz à nossa mente uma seriação de ideias que nos levam ao que realmente somos como indivíduos e como povo, como homens situados num contexto material em são o próprio trabalho da vida em busca de humanizar-se nas coisas que a cercam e nos atos que nela se praticam. Este seu Altar em Chamas deve ser lido como complementação final de uma trilogia cujas outras duas partes são os livros Porantim e Deslendário. (Moacyr Félix)
Nada fácil poetizar na Amazônia, se se diz dessa região que, por sua natural grandeza, subjuga e abate o homem, pode-se afirmar também que, enquanto tema de poesia, costuma sufocar, aturdir e confundir os poetas. Até o aparecimento de Paes Loureiro, o maior poeta amazônico era o gaúcho Raul Bopp. A Cobra Norato aumentou, agora, de dimensão: a de ordem social. Quem a impõe é autor de Deslendário. (Mário da Silva Brito)
19
O segredo da poesia de Porantim é a tensão permanente, crescente e renovada entre o homem e a natureza. É dessa tensão que arranca a poesia de Jesus. Tanto como a humanidade presente nesta poesia, o poeta se debate diante do dilema primordial: submeter-se ou dominar a natureza. Seria ilusório pensar numa acomodação pacífica de iguais. As forças da natureza e as força do homem não se medem, são desiguais, desmedidas. Daí a luta que atravessa toda a Amazônia, desde o primeiro instante da chegada do outro homem no lugar.
Não se resolve a tensão entre os homens e a natureza, porque não se resolve a tensão entre os homens. É esta tensão que transfigura a natureza; e os próprios homens. A mesma tensão que levou os homens à busca das drogas do sertão e à caça dos índios, leva-os a buscar com o olho infravermelho os retirantes e os colonos, os peões e os posseiros; que poderão recriar a harmonia da sociedade com a natureza e dos homens entre si. Esta é a humanidade que está presente na poesia de Jesus, desde o começo da história. (Octávio Ianni)
Os três depoimentos dos escritores, mesmo não tratando do
Pentacantos, mas agregados ao corpo do referido livro, ampliam a visão da
obra literária, na qual se encaixa o livro em exame neste estudo.
1.3 ARQUITETURA DO PENTACANTOS
O Pentacantos é composto de cinco cantos, com um total de cinquenta
e três fragmentos distribuídos da seguinte maneira: I Canto, treze fragmentos;
II Canto, onze fragmentos; III Canto, onze fragmentos; IV Canto, três
fragmentos e o V Canto com quinze fragmentos.
Cada canto concentra uma celebração. No caso dos três primeiros, há
um diálogo com três epopeias clássicas, seguidos de uma parte intermediária
concentrada no IV Canto, e a finalização com o V Canto. Para melhor
especificar, as exaltações estão assim detalhadas: I Canto, diálogo com a
epopeia Odisseia de Homero; II Canto, diálogo com a epopeia Eneida de
Virgílio; III Canto, diálogo com a Divina Comédia, de Dante Alighieri; IV Canto,
um intervalo que funciona como a passagem do espaço mítico grego-romano
para o espaço mítico amazônida; V Canto, uma celebração ao desprendimento.
Nos cinco cantos, o poeta Paes Loureiro articula o tema do amor que
atravessa toda a arquitetura do Pentacantos. Com a delicadeza e a
20
concentração de sentidos em palavras de forte apelo sêmico, entra no
Pentacantos o desejo de Ulisses de reencontrar-se com Penélope, passando
pela tragédia de Dido até a descida ao inferno de Dante com Beatriz. A
dialogação com o mito indígeno-amazônico se dá quando o livro de Paes
Loureiro expressa a dedicação do índio à cunhã Macuxi. No final, há um hino à
criação poética.
Detalhe-se a arquitetura do Pentacantos a partir do I Canto. Neste,
especificamente no F. II, o poeta faz referência ao livro de Homero, Odisseia:
“Olhar voltado para seu destino, / e persistente rosto chora pelas horas. [...] Na
coxa a cicatriz dormindo em brasa [...]”. Observa-se o momento da revelação
de Ulisses: “[...] oh! incerteza / da seta antes do arco retesado [...]” quando num
halo de sutileza o eu poético chega a citar o livro de Homero, C.I, F.IV: “[...]
alvo do mar / entre odisseias me salvo.”, o nome que guarda uma acumulação
significativa de que ressai a nominação, o termo titular e os vários sentidos de
dor os quais se aninharam na palavra odisseia e esta, pluralizada, dá os termos
de extensão e intensidade do sofrimento. Veja-se que a redução do título
epopeia homérica, a nome comum, não impede a introdução, no Pentacantos,
de um Homero vibrante. E o nome próprio, feito comum (dores) e o próprio (a
epopeia) no termo pluralizado (odisseias), um modo notável de acumulação
semântica.
No início do Pentacantos, Paes Loureiro registra que a poética participa
de um ciclo, saindo de um remoto antes homérico à atualidade: “[...] Viagem /
que iniciei anterior a mim / e que refaço agora, / tanto que todo começo é
recomeço, / toda partida é regresso [...]”, esta é uma questão que será
retomada no seu Canto V.
No I C. F. II, identificamos o arco do Ulisses como recorrência
permanente: “[...] O arco do poema / retesando estrofes / as suas sonoras
flechas [...]”. A reiteração de um modo de acumulação semântica segue. Fita-
se que o arco da arma literal de Ulisses se cola ao trabalho de refazer, ao
“refaço agora”, a que se entrega o demiurgo, e se move em retro ao discurso
“anterior a mim”, preso ao presente do recomeço”, quando o intento do poeta
amazônida é estar lá, no recomeço, da Antiguidade clássica e cá, aqui, no
21
agora amazônico, estabelecendo-se assim o compasso plural do Pentacantos
e sua temporalidade também plural, intensa, tensa, acumulada. E o que dizer
dessa “minha lira”? Não é remissão clara ao lírico instalado no seio do épico?
São louváveis as “sacadas” poéticas do poeta paraense ao reconfigurar,
atualizar / localizar, contemporaneizar, “amazonizar’ a cosmovisão grega, o
intemporal Homero. É o que se estende ao F. XIII: Entre as traves do teto /
prende o arco sagrado / e a seta arma / o bote: / palavra sobre a imagem. / O
que dizer, Heróis, com tantos comensais [...] Estranho ao cão, o cão, o cão, o
teu fiel amigo, / hás de fritar os rins em paladar de urina / e na latrina ler as
últimas notícias?... O poeta não perde a oportunidade de verter-se a um outro
Ulisses, outro mesmo acumulados ao Pentacantos.
Esta recorrência continua no V C., e, nos últimos versos do F. XIII, há
uma alusão evidente ao Ulisses de James Joyce: “hás de fritar os rins em
paladar de urina e na latrina ler as últimas notícias”, a referência ao manjar
preferido do personagem joyciano.
Podemos encontrar as marcas do diálogo instaurado no Pentacantos,
com a epopeia Eneida de Virgílio na totalidade do F. VIII: Oh! / Cartago / barcos
/ velados/ velas vê-las vê/ Solimões / solidões / em preamares de amor /
desardonados. / Só lutos soluços só / Ouço / Dido: sonhos velados sobre /
patamares./ oh! primícias/ pelúcias/ ânsias lunares / catamênios / auroras sobre
o mar / Enéias! Eia! Espada! / Ruga de velas ao vento [...] rosto em fuga / para
sempre / verso cravado ao ventre / didespero / tempo vento mar/ oh!
descartado amor... A cidade de Cartago que tem Dido como rainha é o cenário
que agrega aos enunciados poéticos do Pentacantos toda uma carga lírica pelo
fato de recordar o naufrágio de Eneias, antes de chegar à cidade citada, e na
sua fuga juntamente com o suicídio de Dido, Eneias confecciona seu “rosto em
fuga”.
O ideal da jornada de Eneias no II C. F. XI é marcado pela repetição dos
versos: “[...] A cidade é fundada no poema / [...] A cidade é fundada no poema”,
e na visão poética de Paes Loureiro aparece como fonte de poetização.
O III Canto apresenta versos que demonstram as marcas do diálogo de
Loureiro com o livro Divina Comédia do poeta italiano Dante Alighieri: F.II: “E
22
tantos tantos / sem descer ao fundo [...] e nos degraus [...]; F.IV: Eis, porque,
na primeira espiral / do labirinto / desce profundo em outra / e na segunda [...].
É clara aqui, a presença da marcha que Dante empreende em direção ao
centro da terra ao passar pelos círculos espirais.
Nos próximos fragmentos do III Canto, há versos que confirmam o
diálogo do poeta Paes Loureiro com o referido livro do poeta italiano: “Teu
gesto de regência vara o espaço / pássaro lábaro em chamas [...] na
carruagem de fogo do poema”. F. IX: “E Beatriz caminha na memória / onde em
alvas infâncias me banhava”. F. X: “Inferno-me no mar,” [...] F.X: “Desde meia
viagem que sabias [...] e a selva treva, / embora em círculos nascendo de
outros círculos [...].
O espaço sombrio e infernal da Divina Comédia está registrado nos
fragmentos acima, bem como a possibilidade purificadora desta passagem: “a
resgatar o morto para o eterno”.
No IV Canto, é patente a poetização da lenda do Tambatajá, e o
desenvolvimento mais intenso do tema amor pontuado nos Cantos anteriores,
F. I: “Pelo tempo. Pelo vento. Pelo tempo / Naveguei Navegar. Dei à cunhã
Macuxi um pé de tambatajá e juramos / para sempre amor”. O fazer poético,
aqui ao contrário do poema de abertura do Pentacantos, adensa-se numa
prosa poética e retoma realidades vivenciadas em cantos passados: “[...] e no
círculo segundo de estuários da cruenda viagem, / onde a dor punge mais
fundo a alma / alarga-se nos ecos de outras almas / como círculo em água se
ampliando. / [...] e Dido nos lençóis de chamas recordados [...]”. Até o
sofrimento de Orfeu ilustra o sofrimento do índio pela cunhã Macuxi, como se
pode notar: “[...] Lábios de Orfeu clamavam por Eurídice. / Nas brenhas e
confins / e ecos esse nome repetiam: Euridice [...]”, comparado ao sofrimento
do índio [...] E nos ecos desse nome, como conchas, meus lamentos /
clamavam Macuxi, ao reino amaro...”
O último fragmento deste IV Canto desvela o sofrimento do índio que é
elevado à categoria transcendente de Cristo: “Por que me abandonaste / nas /
palavras, / oh! vós que sois meu verbo / em minha voz? / Por que me /
abandonaste / a sós verso, / posto que nele estou / (oh! cruz, palavras) / E
23
que / não é sem mim / pois infinito sou / e palavra e poeta / estou no mundo? /
Por / que me abandonaste / com minha lança solar de alegorias, / para surdir o
reino / das palavras? / O reino das palavras...”
O V Canto expressa o desafio do poeta diante da sua jornada, quando
cessa o diálogo que vinha mantendo com outros poetas e assume a direção da
sua jornada e uma visível identificação amorosa com o fazer poético. Não se
dá o diálogo com os grandes poetas do passado; agora o poeta vivencia a
experiência da liberdade e não nega as marcas de sua excursão anterior, F. I:
“[...] após o longo retorno que é partida / e de a cidade fundar / (em epos
celebrar a mesa e a cama...) / vendo-a pedra após pedra destruída / em busca
de memória canto e glória [...]”.
Mas as marcas daquele diálogo retornam na trajetória final ao enfatizar o
recurso pelo qual este diálogo acontece: “[...] Oh! intertextual cidade!”.
No V Canto, temos também uma espécie de revisão memorial. E
juntam-se, fundem-se Odisseu e o mito amazônico: “[...] rever-me rei / e erguer-
me em estandartes [...] e, atado ao mastro, escuto a Uiara / e remo...”. É
explícito esse percurso do intemporal mito clássico ao mito amazônico.
E o tema do amor tece as teias da finalização do F. I: “[...] o teu amor, /
gamada rota de mim / para contigo, / o agora o sou o fui [...]”. Instaura-se uma
desagregação temporal, quando o antes alinha o posterior e este, o antes.
O poeta identifica o seu viajar solitário, F. II: “Tripulante que sou de
migomesmo / nauto-me / canto-me / hasteio velas de mim [...]”. Este caminhar
carrega um cansaço: “[...] pois cansei de buscar-me [...] em mim-comigo”. A
ideia de que a poesia é a contemplação do “eu” entre o antes e o depois fica
posta de maneira clara nos versos citados em que a linguagem em
avassaladora travessia como que se alucina, com o que se desagrega, e
percorre também uma odisseia e travessa jornada.
O enunciado poético denuncia o transcender desejado do fazer poético,
e o universo plural que se encontra envolvido, F. III: ”Ah! este buscar além,
além do que se busca, / em brusca alegoria / mar de signos [...]”.
24
A concretização estética está determinada por outras vozes que
estabelecem os compassos de uma extensa memória. É o que se evidencia no
F. III: “[...] versos a repetir o eco de outros versos / a ser o verso antes do eco /
e ecoar no amplo vasto verso / o verso único / o universo...”. E aflora de novo o
instrumento de guerra da Odisseia de Homero, F. IV: “O solto verso / no
encalço de outro verso / devoluto / que o mistério, arco, disparou...”.
No F. V, a prática poética aparece como trabalho heroico, e a extração
que o poeta faz de tantas realidades revela a força dos “signos”: “[...] Herói em
armadura de sentidos / músculos de signos / sanguessignos [...]”, adornado por
esta “sacada”, o neologismo que ecoa o verbo sugar (da sanguessuga) e a
intensidade que é, sempre foi e será, o signo.
Esta longa viagem verbal é um retorno também à memória do eu
poemático: “[...] poeta sou no verso, / o reino a que regresso --- e me refaço
[...]”. Vê-se a concretização de uma prática poética que só se realiza no seu
fazer ao dizer o outro e dizer-se a si, o poeta e seu eu poemático volvidos ao
tempo sem tempo da ação estética.
A trajetória lírica ocupa um espaço líquido, F. VI: “A luz cria metáforas no
mar. / Oh! mar! / Oh! recorrente mar! / Oh! grito oval azul / Oh! largada frase
líquida / oceana língua!”. E alude à poesia também como um desabafo, um
grito que vem da interioridade humana, lá, homérica e cá, paeslourereana.
Este caminhar pode ter seu momento de perda da visibilidade, F. VII:
“Negro jaguar / caminha o infinito. Crepúsculo. Repuxo de signos / o corpo do
poema se desvela. / Em palavras escuras afloram dedos róseos [...]. E retoma-
se a consciência do trajeto poético, em que o poema é sujeito e sujeita-se à
prática poética. Constate-se com o F. VII: “Horizonte de lanças caminhando,
bandeiras de alvoradas desfraldadas / rimas, ecos / o poema invade a página
[...] Poesia / silabação de letras face ao canto / campo de ressonâncias / [...]
travessia atravessada / [...] A página invade o poema / ecos, rima / desfralda
alvorada de bandeiras [...] lanças de horizontes...” Como se percebe, o
estabelecimento poemático contém mesmo “lanças caminhando” sobretudo
ecos, ecos das vozes intertextuais que a “silabação de letras” enforma e
informa o texto.
25
Este andamento não esquece o tema do amor, F. IX: “[...] Ventres a
mover-se na palavra amor [...]”, acompanhado da fonte líquida, da
contemplação poética e do mito, a repisar a temática do amor, anexa ao desejo
de nomear-se, F. X: “quando aos confins do rio eu fui / havia o mar [...] no a /
mar / capitulares ... / Boto arisco / então amei / e amo. / Sou corrente. / Poeta /
arrisco / os gritos do poente [...]”.
O tema vinculado do mito e que deixa transparecer quadros mítico-
culturais amazônidas é fortalecido no V Canto F. XI: “Esta miragem é nossa e
sou seu guia. / A Uiara, entre nós dois, aclara o sonho, / e armadilhas armas
em suas ilhas”. O poeta fortalece o pensamento de que este último percurso
registrado no Pentacantos apresenta uma singularidade; é o próprio eu textual
que se guia, pelos caminhos que a escrita arquiteta. Entretanto, há uma
memória que ecoa múltiplos idos e não quer calar, ao relembrar a fuga dos
Ulisses das “armadilhas” enfrentadas nas “ilhas” de todos os mares e rios
intemporais, sejam da Grécia, sejam da Amazônia e de onde possam ser.
Todo o F. XII, do V Canto, é uma celebração ao amor, executada pela
orquestração sonora, semântica, numérica e metafórica: “Amor / (Oh! A veloz /
Primeira letra sonante no alfabeto / preposição mais vaga / estrela do desmaio /
flor de argônio. / Oh! M afiado / décima segunda letra do alfabeto / som labial,
nasal, constrito, brando / entre as vogais do espanto. / Oh! desmaiado O sem
voz / décima quarta letra do alfabeto / antífona do advento / variação átona do
pronome pessoal. / Oh! R línguo dental, serra do som / décima sétima letra do
alfabeto / a sentença do réu no fim do amor / a herança de rei no fim de amar.)
/ em solo de milênios semeado, / nascido núcleo, em / cardos, / em quebrantos,
/ perdido entre mamíferos ferozes. / O sempre em / meio às odes / celebrado. /
O sempre entre virilhas / Repontando / Sempre a procura de si / no ser amado.
No V Canto F. XIII, o poeta lança-se ao seu seguir em retro, em avante
pelo tempo e relembra o sofrimento de Dido, da Eneida de Virgílio: “Estamos
neste final de século / e outros séculos mais já são passados. / O caos anterior
se move ante o poema. / É como e quando e onde te incluir: / entre os vivos /
ou mortos? / Tempo: estás onde não estás! / Não choras os punhais varando
as horas, [...] Tempo. Estás onde não estás!”. Esta travessia está posta como
26
um passar sacrificial, entre “vivos” e “mortos”, atestada a impossibilidade de
alcançar em sua totalidade o tempo.
Esse enquadramento poético estende-se ao F. XIV, quando se atém à
transcendência do tempo: “Vozes de anjo circundam o calendário [...] e faz um
desabafo do seu desejo num plano metafórico: [...] ah! se pudesse domar esse
cavalo amarelo...”
Nesse canto, é flagrante que as temporalidades todas e que todos os
locus se montam à formação de uma totalidade em cujo centro se situa o
humano em sentido unitário. A casa dos seres figurados e o ser em senso
genérico e ao esmo tempo as personagens chamadas à cena de Homero e ao
poeta de Abaetetuba.
Ao finalizar o V Canto, com o fragmento XV, o poeta pensa no ciclo da
vida: “A existência é sempre igual / embora engano? / A gaivota às vezes / ai! /
volta um albatroz [...]”, ficando latente que o fazer poético é uma eterna procura
da beleza e da lealdade do ser: “[...] no amanhecer / que é busca / oh! busca /
eterna busca...”
As oitenta e sete páginas do Pentacantos evidenciam que o projeto
desse livro objetiva religar espaços e temporalidades. É a esse fim que os
versos se agregam e formam cadeias que se equivalem e significam
organizados por arranjos orquestrados entre e nos cantos compostos dos
versos livres à formulação dos cantos.
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CAPÍTULO 2
DIALOGISMO INTERTEXTUAL NOS CÂNTICOS
Para gerarmos um pensamento sobre a participação de outros textos no
Pentacantos, ou de outra maneira, inquerirmos como o enunciado épico ressoa
no enunciado lírico, recorremos ao arcabouço do teórico russo Mikhail Bakhtin
que projetou um conjunto de questionamentos sobre a presença de vozes
diferenciadas nos textos, além de Charaudeau, Maingueneau e Harold Bloom.
A utilização feita por Bakhtin vai além da nossa fronteira, mas nos
apropriamos das vozes discursivas como realidade suficiente para darmos
conta do nosso trabalho, principalmente por entendermos que a “interação” é
uma realidade determinante para constituição não só do discurso poético como
também para todos os discursos.
A própria história da proliferação humana é o testemunho, ao se verificar
que um homem nasce de outro homem, resultando num conjunto social, e este
gera o signo arbitrário que se transfigura em cada língua. Neste percurso
temos o ingresso dos sujeitos que geram os enunciados, estes por sua vez
recebem camadas mutantes, é o caso do livro Pentacantos, objeto de nossa
investigação. É justamente a partir deste conjunto de signos que iremos
procurar entender a ressonância do enunciado épico no lírico nesse livro.
Bakhtin juntamente com Voloshinov acentuaram na Revista Zvesdan
nº 6, em 1926, com o título Discurso na vida e discurso na arte, sobre poética
sociológica, algumas inquisições referentes à poesia que são importantes para
atrelarmos ao nosso cogitar sobre a ressonância do verso épico no verso lírico.
Para Bakhtin, o “discurso verbal” assume uma proporção eventual:
Na poesia, como na vida, o discurso verbal é o um “cenário” de um evento. A percepção artística competente representa-o de novo, sensivelmente inferindo, das palavras e das formas de sua organização, as interrelações vivas, específicas, do autor com o mundo que ele descreve, e entrando nessas interrelações como um terceiro participante (o papel do ouvinte). Onde a análise lingüística vê apenas palavras e as interrelações de seus fatores abstratos (fonéticos, morfológicos, sintáticos, etc.), a percepção artística viva e a análise sociológica concreta revelam relações entre pessoas, relações meramente refletidas e fixadas no material verbal. O discurso verbal é
28
o esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa conseqüentemente, só no processo da comunicarão social viva. (1926, p. 17)
O discurso não é simplesmente uma produção verbal. No dizer do crítico
literário russo (Idem, 1926, p. 18), “[...] na percepção artística há uma
renovação do referido discurso, pelo fato de o mesmo imprimir na vida do
artista uma nova dimensão, e envolve também o ouvinte”.
Bakhtin chega num momento decisivo para nossa ponderação:
A forma de uma obra poética é determinada, portanto, em muitos de seus fatores, pelo modo como o autor percebe seu herói – o herói que funciona como o centro organizador do enunciado. A forma da narração objetiva, a forma da saudação ou apóstrofe (oração, hino, algumas formas líricas), a forma da auto expressão (confissão, autobiografia, declaração lírica – uma forma importante da lírica amorosa) são determinadas precisamente pelo grau de proximidade entre autor e herói. (1926, p.20)
Ao considerar “a forma” como estrutura geral da obra poética, Bakhtin
(1926, p.20) evidencia o papel da percepção do “herói”, ou seja, o enunciado
lírico, distingue essas duas realidades da composição poética, e transfere para
o herói a responsabilidade da criação enunciativa, e, além disso, sinaliza a
“declaração lírica” como “auto expressão”.
A tentativa de Bakhtin de compreender o que define a formação artística
sai de uma dualidade para visibilidade tripla, ao frisar o ouvinte, como se pode
constatar:
Os dois fatores que indicamos – o valor hierárquico do herói e seu grau de proximidade com o autor – são até agora insuficientes, tomados independente e isoladamente, para a determinação da forma artística. O fato é que há um terceiro participante tomando parte também – o ouvinte, cuja presença afeta a interrelação dos outros dois (criador e herói). (1926, p.20)
Portanto, Bakhtin toma a presença do ouvinte como uma realidade que
impõe ao diálogo um peso, e amplia a disputa, estabelecendo um parâmetro
entre os dois. Sendo assim, as anotações impressas neste espaço pretendem
nos levar a uma compreensão mais abrangente sobre o diálogo intertextual.
Antes de seguir na análise do Pentacantos que dialoga com a literatura
clássica, especificamente com as epopeias Odisseia, Eneida e o poema
29
alegórico Divina Comédia, apresentamos algumas considerações acerca do
dialogismo.
Depreenda-se imediato o aspecto plural da intertextualidade, a presença
de um texto A num texto B. É uma linha de compreensão que se engendra a
intertextualidade que para Kristeva (1974, p. 60 apud Jenny, 1979, p. 13), não
é uma simples redução:
O termo ‘intertextualidade’ designa essa transposição de um (ou vários) sistema(s) de signos noutro, mas como este termo foi frequentemente tomado na acepção banal de ‘crítica das fontes’ dum texto, nós preferimos-lhe um outro: transposição, que tem a vantagem de precisar que a passagem dum a outro sistema significativo exige uma nova articulação do estético, da posicionalidade enunciativa e denotativa.
Como se vê, “uma nova articulação do estético” ou criatividade é uma
marca da ‘transposição’ e não se constitui na mera acoplagem de textos.
A recordação é uma realidade que não pode ser esquecida neste estudo
pelo fato de ser um dos procedimentos fundamentais para a formação da
intertextualidade. Neste percurso do diálogo intertextual, primeiramente o poeta
já tem na sua memória um reservatório formado pelas leituras dos livros
clássicos, e ao produzir seus versos, o que se constata no Pentacantos é uma
nova articulação estética, quando o texto poético de Paes Loureiro se firma e
costura-se com pontos e matéria cuja substância está nos clássicos citados e,
ao mesmo tempo, na cosmovisão amazônica.
Nessa perspectiva, a poética paeslourereana relaciona-se com a dos
outros poetas ao estabelecer uma prática intrapoética. Repito. Bloom (2002, p.
104) referenda o nome de Montaigne para registrar a ampliação do desejo que
se manifesta no outro: “Montaigne pede-nos que procuremos dentro de nós
mesmos, para ali ficar sabendo ‘que nossos desejos privados, em sua maior
parte, nascem e se alimentam à custa de outros’”. Bloom faz com esta
declaração de Montaigne uma confirmação de que o diálogo intertextual não é
uma simples troca de palavras, mas sim uma ampliação do próprio ser. João
de Jesus Paes Loureiro bem o exemplifica: nutre-se, absorve, digere os
clássicos e aflora outro, dotado de outras vozes que, ao ecoar a Antiguidade,
institui o outro em si. Esteticamente. E vem ao caso falar de influência.
30
Bloom (2002, p. 106), refletindo sobre a “angústia da influência” aponta
para o poema com uma analogia humorística, ao destacar a resposta
poemática: “... Os poemas, podemos especular analogicamente, podem ser
encarados (humoristicamente) como descargas de motores em resposta ao
aumento de excitação da angústia da influência”.
No processo de procura das melhores palavras, ou melhores palavras
para compor o seu poema, o poeta inevitavelmente vai encontrar na sua
memória outros poemas fortes que marcaram a sua história de leitor. É o que
podemos depreender na leitura do Pentacantos.
Os anseios profundos instaurados no corpus do Pentacantos
materializam-se a partir da visibilidade que o poeta Paes Loureiro tem dos
outros poetas, e Bloom (2002, p. 113) nega a possibilidade de a poesia ser
mera repetição: “Não podemos supor que a poesia seja uma neurose de
compulsão”. Mesmo com esta negação não conseguimos negar a presença
maciça do processo compulsivo na elaboração poética.
Para fortalecer o seu pensamento sobre a angústia da influência, Bloom
(2002, p. 117) convoca o pronunciamento do filósofo francês Rosseau:
“... Rosseau observa que ninguém pode desfrutar plenamente de seu próprio
eu sem a ajuda de outros...”. Isso para a poesia é muito importante, porque
ressalta o valor de uma criação do presente que reconhece a sua importância a
partir de uma relevância anterior.
A “Kenosis”1, sendo uma das seis formas da angústia da influência,
incita a confirmar a ressonância dos versos de Homero, Vírgílio e Dante no
Pentacantos, por um processo que toma o livro do poeta amazônida, como
fruto outro revigorado, renovadamente instituído, a partir de uma leitura
internalizada, motivada à recriação, porque se marcou com os timbres
indeléveis dos clássicos:
_______________________________
1 Segundo Harold Bloom, a Kenosis é um dispositivo de decomposição semelhante aos
mecanismos de defesa que nossa mente emprega contra as compulsões de repetição; é um movimento de descontinuidade em relação ao precursor.
31
A repetição como recorrência de imagens de nosso passado, imagens obsessivas contra as quais nossas afeições atuais lutam inutilmente, foi um dos primeiros antagonistas que os psicanalistas, com coragem, enfrentaram. A repetição, para Freud, era basicamente um modo de compulsão, e reduzida ao instinto de morte pela inércia, regressão, entropia... (BLOOM, 2002, p. 128).
O depoimento de Bloom alimenta nossa discussão sobre o diálogo
intertextual, pela sua angústia da influência:
[...] Todo poema é uma interpretação distorcida de um poema pai. Um poema não é uma superação de angústia, mas é essa angústia. As interpretações distorcidas ou poema dos poetas são mais drásticos que as interpretações distorcidas ou críticas dos críticos, mas trata-se apenas de uma diferença de grau, e de modo algum de espécie. Não há interpretações, mas apenas interpretações distorcidas, e portanto toda crítica é poesia em prosa. (Idem, 2002, p. 141)
O crítico literário americano parte do princípio de que um poema em si
surge a partir de outro poema, como distorção que pode ser perfeita distorção.
E esta elaboração não compõe uma “angústia”, mas forma-se na base da
própria ansiedade e estabelece a dor da influência acentuada, maior até que a
do crítico.
No pensamento de Bloom (2002, p.143), “Poesia é angústia de
influência, é apropriação, é uma disciplinada perversidade. Poesia é
compreensão distorcida, interpretação distorcida, aliança distorcida...”. Bloom
não esquece, na sua reflexão, de compor um conceito de poesia que nasce a
partir da consistente concepção de que a poesia não deixa de ser o estímulo
proveniente de uma dor.
2.1 RESSONÂNCIA HOMÉRICA
Na abertura desse tema acentuaremos duas questões estruturais não só
do Pentacantos, mas também dos três livros com os quais o poeta paraense
dialoga: Odisseia, Eneida e Divina Comédia, que é o canto e a viagem. Para
Chevalier (1989, p. 176):
O canto é o símbolo da palavra que une a potência criadora à sua criação, no momento em que esta última reconhece sua dependência de criatura, exprimindo-a na alegria, na adoração ou na imploração. É o sopro da criatura a responder ao sopro criador.
32
Tanto no Pentacantos quanto nos livros citados, o canto assume um
papel determinante pelo fato de tecer simbolicamente os conteúdos contidos na
poesia de Paes Loureiro, costurados com a substância das poesias de
Homero, VIrgílio e Dante. A ocorrência dessa celebração contempla o diálogo
dos “eus”.
E a viagem, por sua vez, no dizer de Chevalier (1989, p. 951),
representa uma trajetória alvissareira: “O simbolismo da viagem,
particularmente rico, resume-se, no entanto, na busca da verdade, da paz, da
imortalidade, da procura e da descoberta de um centro espiritual...”
Como se disse, a poesia de Paes Loureiro sustenta-se pela manutenção
do diálogo com outras vozes. Também, além de suas próprias vozes e
intensidades estéticas, do diálogo com outras vozes...
Atentemos ao conjunto de versos do I C. F. III em que há uma nítida
relação do Pentacantos com a Odisseia de Homero: “Olhar voltado para seu
destino, /o persistente rosto chora pelas horas, / Os pés ardendo em asas. / Na
coxa a cicatriz dormindo em brasa / Enquanto em casa, casa, sua casa, / a
casa, a nossa casa, minha casa, / pretendentes urinam em nossa honra / e
bebem vinho e pastam nos lençóis”.
Para melhor aclarar as instâncias desse diálogo, atente-se, no
Pentacantos a referência à Odisseia especificamente na Rapsódia XIX:
A velha, que tomara na palma da mão a perna de Ulisses, ao apalpá-la, reconheceu a cicatriz; largou o pé, que caiu dentro da bacia, o bronze ecoou, o vaso oscilou e a água entornou-se pelo solo. Então, seu coração, a um tempo, foi tomado de tristeza e alegria, os olhos se lhe encheram de lágrimas, a voz se lhe tolheu na garganta. E, tocando no queixo de Ulisses disse: ‘Sem dúvida, tu és Ulisses, meu filho querido! E eu não te reconheci! Foi preciso ter tocado no corpo do meu amo!’ (2003, p. 254)
Entendemos que nos versos líricos do I C. F. III há uma conjugação de
trajetos. Um está relacionado com o Ulisses do Homero, e, outro, com o poeta
amazônida, que faz do seu percurso poético uma forma de estar no mundo,
uma maneira de existir por meio da poesia.
“Na coxa a cicatriz dormindo em brasa”, este verso do Pentacantos
monta-se à rapsódia XIX, em que a serviçal Euricleia reconhece o seu senhor
33
pela marca de um ferimento na coxa deste (Ulisses) provocado por um javali
durante uma caçada.
O diálogo da poesia lírica com a poesia épica não segue a mesma
ordem cronológica das Rapsódias. A busca do outro recai nas últimas
rapsódias e na apresentação que Homero faz do seu heroi: Ulisses.
Abramos um parêntese para destacar os temas contidos nas vinte e
quatro rapsódias da Odisseia: R. I: Invocação à Musa. – Assembleia dos
Deuses. – Exortação de Atena a Telêmaco. – Banquete dos pretendentes; R. II:
Assembleia dos Itacenses. – Partida de Telêmaco; R. III: Estada em Pilo; R. IV:
Estada em Lacedemônia; R. V: A gruta de Calipso. – A jangada de Ulisses;
R. VI: Chegada de Ulisses a terra dos Féaces; R. VII: Entrada de Ulisses no
palácio de Alcino; R. VIII: Recepção de Ulisses pelos Féaces; R. IX: Narrações
de Ulisses: Cícones. – Lotógafos. – Ciclopes; R. X: Éolo. – Os Lestrigões. -
Circe, R. XI: Evocação dos mortos; R. XII: Sereias. – Cila. – Caribdes. – Vacas
de Hélio; R. XIII: Partida de Ulisses da ilha dos Féaces. – Sua chegada a Ítaca;
R. XIV: Diálogo de Ulisses e Eumeu; R. XV: Chegada de Telêmaco à choupana
de Eumeu; R. XVI: Telêmaco reconhece Ulisses; R. XVII: Regresso de
Telêmaco à cidade de Ítaca; R. XVIII: Pugilato de Ulisses com Iro; R. XIX:
Colóquio de Ulisses e de Penélope. – A lavagem dos pés; R. XX: Antes da
matança dos pretendentes; R. XXI: O Arco de Ulisses; R. XXII: A matança dos
pretendentes; R. XXIII: Penélope reconhece Ulisses; R. XXIV: Na morada de
Hades. – A Paz.
No F. IV [...] “entre odisseias me salvo / e as naus do meu destino [...]
Viagem / que iniciei anterior a mim / e que refaço agora / tanto que todo
começo é recomeço / toda partida regresso.” Há um diálogo obsessivo que
segue a criação poética paeslourereana, essa fixação é um marco dessa
escrita poética pelo fato de o poeta amazônida sentir uma agonia de estar
atrelado à Odisseia, conforme exemplificamos acima.
A poética paeslourereana relaciona-se com a dos outros poetas ao
estabelecer uma prática intrapoética. Bloom (2002, p. 104) referenda o nome
de Montaigne para registrar a ampliação do desejo que manifesta-se no outro:
“Montaigne pede-nos que procuremos dentro de nós mesmos, para ali ficar
34
sabendo ‘que nossos desejos privados, em sua maior parte, nascem e se
alimentam à custa de outros’ [...]. Bloom torna a declaração de Montaigne uma
confirmação de que o diálogo intertextual não é uma simples troca de palavras.
É justamente com o I C. F. V que o poeta paraense registra uma
satisfação salvífica na Odisseia de Homero.
E no mesmo F. V [...] “A me obrigar às tramas da viagem, / após lutar
pela infiel beleza / contra as troias do estilo [...] / às ítacas do canto ora retorno
/ com meu arco, neste barco, e minha lira”, essa recordação lírica intensifica a
anterioridade da Odisseia e chega até a Iliada. Esse esforço memorial fortifica
o jogo entre as palavras no interior da poética paeslourereana ao associar
metaforicamente a batalha da terra, “troias” e o retorno ao espaço líquido das
“ítacas”, ao reforçar o movimento do verso.
O I C. F. VI, oferece-nos um fragmento do sentimento lírico e uma
cenografia : [...] “As tramas da viagem: / os lemes em pedaços / onde pulsa /
avulso coração despedaçado... [...] que um dia amanheceu em róseos
dedos...”, que faz alusão à rapsódia XII (2003, p. 157): “Aurora de róseos
dedos”. Na projeção do verso lírico se encontra a substituição do substantivo:
“[...] Aurora” de Homero, pelo verbo “amanheceu” de Paes Loureiro.
A melancolia aparece na relação que o poeta instaura das mulheres no I
C. F. VII [...] “Há multidão de mulheres degradadas / De sua ilhas de circe: /
marílias sem dirceus, / penélopes tecendo a longa espera, / icamiabas
arfando abstinências, / iaras entre iras do sexo sem eco. [...] / Armadilhas
ardidas em lençóis [...] / E o herói, ouvidos cegos, sem pousada, / destroço de
seu último navio / a regressar” [...], e Paes Loureiro estabelece o diálogo com a
rapsódia XII:
Quando já a distância de alguém, gritando, se faz ouvir, redobraram de velocidade, mas a nau que veloz singrava sobre as ondas e perto das Sereias não lhes passou despercebida. Súbito, entoaram este harmonioso canto: ‘Vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para escutares nossa voz. Jamais alguém por aqui passou em nau escura, que não ouvisse a voz de agradáveis sons que sai de nossos lábios; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas coisas, que nós sabemos” [...] (2003, p. 161).
35
A ancoragem dialogal neste texto é pertinente. Mostra o maravilhamento
que é próprio da poesia e avança cronologicamente ao citar não a
singularidade da “Marília de Dirceu” livro de autoria do poeta Tomás Antonio
Gonzaga, mas a possibilidade plural desta lembrança, e a contingência de
perder o amor desejado.
O I C. F. IX: [...] “Em campo de bravura / alegorias / acordam semibreves
multidões de arcos mudos. / assim alados / os amores pequenos e os grandes
amores”, é uma referência ao “arco” de Ulisses que passou um tempo sem
ser arqueado, em torno de vinte anos, e a ativação do arco foi proposta por
Penélope, orientada pela deusa Atena, na rapsódia XXI:
Então, Atena, a deusa de olhos brilhantes, inspirou à prudente Penélope, filha de Ícaro, que apresentasse, no palácio de Ulisses, aos pretendentes, o arco e o ferro pardo, para celebração do concurso que daria início ao morticínio. Ela dirigiu-se à alta escada do palácio, tomou na mão a chave de bronze, recurva e bem forjada, com o cabo de marfim. Em seguida, encaminhou-se com as escravas para a câmara mais retirada, onde estavam reunidos os tesouros do rei, ouro, bronze e ferro artisticamente trabalhado. Aí se encontravam igualmente o arco retesável e o cárcas cheio de sibilantes flechas [...] (Idem, 2003, p. 268).
Uma referência à viagem de Ulisses, seu reino, e à estratégia de
Penélope são mencionadas liricamente no I C.F. XI: [...] “E os ventos a soprar.
No olhar tremente / um reino de palavra / dispersas / onde --- larvas --- / os
versos fiam a seda em que a poesia / tecendo e destecendo / fidelíssima /
aguarda o seu senhor”. É fácil ver. João de Jesus submerge no íntimo estético
de Homero, refaz seu ganho e emerge enriquecido para enriquecer seu
Pentacantos.
E Paes Loureiro repete sua submersão lírica centrada em Penélope:
procura no simbolismo do “arco” e do reino de Ulisses “Ítaca” concentrar o seu
esforço lírico, I C. F. XII: [...] O arco do poema / retesando estrofes / as suas
sonoras flechas proliferam / na ítaca retangular que o verso mira / --- o reino
que deliro em minha lira!
O F. XIII do I C. estabelece mais um diálogo intertextual com a poesia
épica de Homero: “ / Entre as traves do teto / pende o arco sagrado / e a seta
arma / o bote: / palavras sobre a imagem. / O que fazer, Herói, com tantos
començais / fartando-se em tua mesa / a repartir teus ouros / tormentar tuas
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tribos [...] Estranho ao cão, o cão, o teu fiel amigo, / hás de fritar os rins em
paladar de urina / E na latrina ler as últimas notícias?”
O poeta Paes Loureiro focaliza a palavra “cão” duplicada e seguida, para
fortalecer o ser que, na Odisseia, é nomeado argos, o primeiro que identificou
a presença de Ulisses no seu palácio.
E para relembrar a cena da matança arrolamos um fragmento da
rapsódia XXII:
Então o industrioso Ulisses despojou-se de seus andrajos e avançou para o grande limiar da porta, levando o arco e o carcás repleto de flechas. Colocou aos pés os rápidos dardos e, em seguida, disse para os pretendentes: ‘Terminou a luta tão difícil; agora tenho em mira outro alvo, por ninguém ainda atingido: quero ver se acerto e se Apolo me concede esta glória’.
O último poema do Pentacantos dialoga com uma das últimas rapsódias
da Odisseia, já citada, e faz ecoar a ressonância lírico-greco-amazônica,
marca do livro em estudo do poeta amazônida.
2.2 RESSONÂNCIA VIRGÍLICA
Antes de passarmos para a verificação da ressonância clássica da
Eneida no Pentacantos, fazem-se necessárias algumas observações sobre o
diálogo de Virgílio com Homero. No parecer de D’Onofrio, pode-se comprovar
esta relação pelos pontos de confluência:
Quanto à imitação dos poemas épicos anteriores, especialmente dos dois atribuídos a Homero, seria relativamente fácil salientar os pontos de convergência entre poesia épica grega e latina. Realmente, vários tópicos, temas e motivos (o valor militar dos heróis, as viagens aventurosas em frágeis embarcações, a descida ao inferno para o conhecimento do passado e do futuro, o sentimento de amizade, a paixão amorosa, a confecção das armas por Vulcano, as intervenções dos deuses nos acontecimentos humanos, a força do destino que impõe ao protagonista uma missão predeterminada, e outros assuntos, além das imitações de estilo) são tirados do contexto de A Ilíada e de Odisséia e transferidos para a Eneida. (1997, p. 116)
A remissão a D’Onofrio é importante porque enfatiza o aspecto
dialogante existente no texto poético, ou seja, historicamente uma poesia
produzida num determinado tempo busca em datas remotas e em outros
37
períodos inspiração para ser renovada, para alargar-se esteticamente, caso do
Pentacantos.
A sensibilidade humana e poética de Eneias pode ser entendida na
avaliação que o heroi faz da crueldade do destino visto na cenografia trágica da
rainha Dido, e, para encetarmos o exame da ressonância dos versos da
epopeia Eneida de Virgílio no Pentacantos, afirma-se que os temas estão
concentrados nos doze cantos do poema épico: Chegada de Eneias a Cartago
e a história de Dido (Canto 1); Narração da destruição de Tróia (Canto 2); As
viagens de Eneias (Canto 3); Amor e morte de Dido (Canto 4); Viagem rumo
à Itália: estadia na Sicília (Canto 5); No reino dos mortos (Canto 6); No Lácio,
terra prometida (Canto 7); Preparativos de guerra (Canto 8); Vitória parcial dos
rútolos (Canto 9); Enéias volta com os aliados (Canto 10); Trégua para a
sepultura (Canto 11); Vitória final de Enéias (Canto 12). Acentuamos com
negrito o Canto 4 pelo fato de ser a ressonância principal no Pentacantos.
A substituição ou equivalência, o mesmo paradigma é uma marca deste
diálogo intertextual, que é utilizada pelo poeta amazônida, como recurso
estilístico. Esse procedimento ocorre em vários versos, que serão
exemplificados posteriormente.
O Canto II, F. I, do Pentacantos: ”Ardem navios de ouro na memória, [...]
toda vida / procura / de velar a vela certa / verbo / em mar de texto incerto... [...]
no revoar de signos pressagos / a glória de fundar neste deserto / uma cidade
de sílabas” [...], apresenta uma relação direta com o Canto V da Eneida (2005,
p. 128): “Firme o herói já ao meio a frota, / com o / Aquilão talhando as negras
vagas / Olha atrás, e da pobre Elisa os muros / Em chamas vê luzindo. A causa
os Teucros / De tanto incêndio estranham; mas conhecem / O amor poluto dói
o que ousa / Femínea raiva, e triste agouro tiram.
Ressaltamos que essa ressonância vem desde Homero e reflete-se em
Virgilio, no caso, os dois signos “arco” e “infernos”: F. II [...] “arco [...] em seus
infernos.” Depreendemos aqui, uma intensificação do dialogo intertextual que
passa de uma obra clássica a outra. E dessa à contemporaneidade de
Pentacantos.
38
E a percepção lírica desdobra esta cenografia em vários fragmentos: F.
III [...] “o fundador sabe que em dor / é a cidade fundada na cobiça.”; F. IV [...]
“troias de beleza na memória / em dor de morte / e vida. / Em dor do amor / Em
dor / de ser feliz. [...] As naus em fuga / turbam o horizonte: / eterna ida.....”
F. VII – “As coisas, pelo tempo / murcham e reverdecem / como cantos / a
ecoar nos ecos de outros cantos.”; F. VIII “Oh! / Cartago / barcos velados [...]
solimões / solidões / mares herdados / em preamares de amor / desadorados. /
só lutos soluços só [...] Dido: sonhos velados sobre patamares. / Oh! / primícias
/ pelúcias / ânsias lunares [...] Enéias! Eia! Espada! / Ruga de velas ao vento
[...] rosto em fuga / para sempre / verso cravado ao ventre / didespero / tempo
vento mar / oh! descartado amor...”
O renovado uso do étimo clássico no Pentacantos distende as palavras
como se fossem ilhas, ideia que se reforça pelo emprego dos signos
desagregados, sem amparo sintático “tempo vento mar” (F. VIII). Ou seja, João
de Jesus, apegado a uma prática poética de modernidade, concentra o
significado no âmbito do substantivo, na frase nominal, no nome solto liberto e
hiper-significativo.
Há nesses fragmentos uma substancial carga lírica proveniente do
apresentar épico antigo e impresso inconscientemente na matriz da recordação
poética de Paes Loureiro e transporta ao Pentacantos. Constata-se na
elaboração desses versos não só a angústia de Eneias, como também o
resultado de uma leitura feita pelo poeta amazônida que ficou impressa na sua
alma, e foi reestabelecida como derramamento lírico. Para Moirand (1990, p.
75 apud Maigueneau, 2008, p. 162), ao conceituar o dialogismo intertextual:
“... qualquer gênero de texto, já que o dizer dos outros (dizer anterior ou dizer
imaginado do interlocutor) vem justificar ou autenticar o dizer do locutor, ou
servir de apoio a uma contra-argumentação”. O que interliga textos clássicos e
o contemporâneo de Paes Loureiro é a percepção aguda da cenografia trágica
reelaborada esteticamente como voz hodierna no Lírico-mítico-amazônico, com
encustrações trágicas, claro, no Pentacantos.
Fortalecemos o diálogo do Canto 4 de Eneida com a totalidade do F. X,
deste II Canto do Pentacantos, e vamos assim afunilando o diálogo intertextual:
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“Rola placenta o deus: óvulo pranto. / O herói lançado contra si / entre
epopeias! / Eia! Velames / Mar em chamas / barco em fuga [...] refluxo / homem
remando em demorso [...] oh! amor desertante deserdado / de si mesmo / si do
/ ao desespero / de ventres se ofertando a fio de espadas / na alvoca outrora
luz agora trevas.” A interjeição “eia!” é assimilada por Paes Loureiro,
proveniente de Virgilio, que tende mais para o estímulo do que para o espanto.
A matéria épica, que serve de fonte inspiradora e dialogal para a
concepção dos versos do Pentacantos, é assimilada a partir da apreensão
piedosa manifestada por Virgilio no seu livro. Desse modo, o épico no lírico, o
clássico no contemporâneo, o mítico antigo no mítico atual, tudo se concentra
no verso de Paes Loureiro.
O jogo de palavras é inscrito no corpo do poema do amazônico, de
maneira diferente, como indicativo da combinação de vocábulos que também
são feitos por Virgilio: “635 Mal Dido alvorecer e arfar em cheio” (2205, 123).
Esta confecção aparece no Pentacantos de outra maneira: [...] “homem
remando em demorso.” Enquanto Virgilio dá a impressão de que a palavra
“maldito” está separada no seu poema, para lembrar o suicídio da Rainha Dido,
no Pentacantos a letra ( r ) foi substituída pela ( d ), que gera o neologismo e a
intensificação do sentimento de remorso contido em Eneias.
O diálogo intertextual segue o seu curso não com uma finalidade de
dependência do texto de Virgilio. Pelo contrário, imprime sua força ao lembrar
da marca que não está ligada ao ideal romano de Eneias de fundar uma nova
cidade; porém, traz à singularidade poética, o seu ofício de poeta, qual seja,
gerar no papel um novo poema: F. XI [...] “O amor goiva [...] a cidade é
fundada no poema. / O herói / notável de piedade [...] segue a levar na mão /
ramos dourados [...] que o amor é outra roma em si gerada [...] A cidade é
funda da no poema”. Essa prática de escrita poética não deixa de jogar com a
combinação dos signos: “amor” e “roma”. Jesus Loureiro lança mão de todos
os recursos verbais. Utiliza o palíndro assente em amor é também Roma
reinvestida, ao ser lida de trás para frente. Amor é Roma, Roma é amor. A
palavra amor suscita a assimilação de outro sentido, o que é uma interpretação
40
da troca operada por Eneias, que deixou o amor da rainha Dido pela fundação
da cidade de Roma. Daí, insista-se “amor e roma”.
2.3 RESSONÂNCIA DÂNTICA
Para encetarmos o diálogo do Pentacantos com A Divina Comédia
apresentaremos a seguinte divisão composta pelo poeta italiano: I Parte,
Inferno, Cantos, I: A selva escura, II: Intervenção de Beatriz, III: A barca de
Caronte, IV: No Limbo, com as grandes figuras do paganismo, V: Os lascivos,
VI: Os glutões, VII: Os avaros e os pródigos, VIII: A barca de Flégias, no lago
Estige, IX: Entrada na cidade de Dite, X: Os heréticos, XI: Distribuição e
gradação das penas no Inferno, XII: Os tiranos, assassinos e salteadores, XIII:
Os suicidas e os dissipadores, XIV: Os blasfemos, XVI: Gerión, símbolo da
fraude, XVII: Os usuários, XVIII: Os rufiões, sedutores e aduladores, XIX: Os
simoníacos, XX: Os mágicos e adivinhos, XXI: Os prevaricadores e trapaceiros,
XXII: Luta entre dois demônios, XXIII: Os hipócritas, XXIV: Os ladrões, XXV:
Metamorfose dos ladrões e das serpentes, XXVI: os maus conselheiros, XXVII:
Um pérfido conselho, XXVIII: Os cismáticos e semeadores de discórdia, XXIX:
Os alquimistas, XXX: Os impostores e falsários, XXXI: O Poço dos Gigantes,
XXXII: Os traidores, XXXIII: O martírio de Ugolino, XXXIV: Regresso à
superfície da terra; II Parte, Purgatório, Cantos, I: A ilha e o Monte do
Purgatório, II: encontro com as almas recém-chegadas, III: Os excomungados,
nas imediações do Purgatório, IV: Os indolentes e omissos, no Ante-Purgatório,
V: Os mortos pela violência, no Ante-Purgatório, VI: Decadência e ruína da
Itália, VII: Os grandes do mundo, no Ante-Purgatório, VIII: A serpente, na vala
florida, IX: A porta do Purgatório propriamente dito, X: Os soberbos e os
orgulhosos, no primeiro terraço, XI: A precariedade da glória, XII: A soberba
castigada, XIII: Os invejosos, no segundo terraço, XIV: A decadência na
Toscana e da Romanha, XV: A razão da inveja, XVI: Os iracundos, no terceiro
terraço, XVII: A distribuição dos pecados no Purgatório, XVIII: Os omissos e
negligentes, no quarto terraço, XIX: Os avarentos, no quinto terraço, XX: Os
crimes da dinastia dos Capetos, XXI: A causa do abalo da montanha, XXII:
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Conversão de Estácio ao cristianismo, XXIII: Os glutões no sexto terraço, XXIV:
A gula castigada, XXV: A geração do homem e a sobrevivência da alma, XXVI:
Os lascivos, no sétimo e último terraço, XXVII: Chegada ao Éden ou Paraíso
terreal, XXVIII: A selva edênica, XXIX: O préstito dos sete candelabros, XXX: O
aparecimento de Beatriz, XXXI: Censura de Beatriz a Dante, XXXII: Agressões
ao carro da Igreja, XXXII: Restauração do Império e da Igreja; III Parte,
Paraíso, Cantos I: Início da ascensão, II: Chegada ao primeiro céu (da Lua), III:
ruptura do voto religioso, IV: Efeitos da violência sobre a vontade, V:
Comutação do voto, Ascensão ao segundo céu (de Mercúrio), VI: As glórias do
Império Romano, VII: O milagre da redenção da humanidade, VIII: subida ao
terceiro céu ( de Vênus), IX: Os lascivos redimidos, X: ascensão no quarto céu
(do sol). Os teólogos, XI: Vida de São Francisco de Assis, XII: Vida de São
Domingos, XIII: A sabedoria de Salomão, XIV: Ascensão ao quinto céu (de
Marte). Os heróis, XV: Florença antiga. Origens dos Alighieris, XVI: As famílias
florentinas de antanho, XVII: Revelação do destino do poeta, XVIII: Ascensão
ao sexto céu (de Júpiter). Os reis justos, XIX: A proscrição dos pagãos, XX: A
predestinação das almas, XXI: Subida ao sétimo céu (de Saturno). Os
contemplativos, XXII: A terra, vista do oitavo céu (das estrelas fixas), XXIII: A
alegoria do triunfo de Cristo, XXIV: Conceito da Fé, XXV: Conceito da
Esperança, XXVI: Conceito da Caridade, XVII: ascensão ao nono e último céu
(Primo Mobile), XVIII: Os coros angélicos à rota da Divindade, XIX: A criação e
a natureza dos Anjos, XXX: Ascensão ao Empíreo, a sede da Divindade, XXXI:
A visão de Maria, na rosa paradisíaca, XXXII: As almas, na rosa paradisíaca,
XXXIII: Visão final de Deus, num total de cem cantos, e o canto X da I parte
do Inferno pode ser tomada como porção expressiva com que o poeta Paes
Loureiro dialoga.
A cenografia do Pentacantos logo no I Canto é sombria, e na sua
intermitência indica o vazio: F. I: [...] “Oh! quem avança / raiz do ser / sobre a
miragem / Certeza de que a noite, noite [...] O sol nascente: suplício de
esquecer / cíclicos / nada”. A palavra de Dante habita o livro do poeta paraense
ao espelhar o espaço soturno da sua Divina Comédia.
A repetição como recurso estilístico intensifica o sentido dos círculos
contidos na Divina comédia, e uma alusão à chuva de fogo, que Paes Loureiro
42
transplanta para estrelas F. II: E tantos tantos tantos / sem descer ao fundo [...]
e nos degraus [...] recolhendo [...] Até que após os círculos de chuva / retorne a
caminhar sob as estrelas...”
Essa retomada faz referência ao reencontro do outro mundo da visão de
Dante, ou seja, o início do Pentacantos, especificamente o seu F. II é um
diálogo com o C. XXXI da Divina Comédia (1979, p. 411) “Seguimos pelo trilho
penumbroso, / à terra a regressar, clara e radiante, / sem de uma pausa
usufruir o gozo. / Íamos, eu atrás, ele distante, / quando, por uma fresta, as
coisas belas / nos sorriam, do espaço deslumbrante: / E ao brilho caminhamos
das estrelas.”
A jornada de Dante é aqui concentrada como um tipo de esquecimento.
Paes Loureiro concentra nesses versos não o caminhar de Dante, mas seu
próprio caminhar. Não há um apagamento do diálogo intertextual, e sim, a
fundamentação do próprio caminho do verso lírico que abre uma clareira no
mundo escurecido de Dante, F.III: “Nós somos o caminho que escolhemos. / O
caminho por onde passo / guarda-me / e eu sou o caminho aonde passo / e /
embora passe / eu fico no caminho aonde passo / e vai o caminho comigo /
caminho que fica / por onde passo. / E passa. / E passo. Ficamos”. Dante no
seu percurso pelos três reinos imaginários: Inferno, Purgatório e Paraíso, imita
a jornada do homem na terra em busca de sua perfeição espiritual.
A poesia é uma travessia que não acontece sozinha; por mais que o
poeta coloque um “eu” no palco do universo, outros “eus’ são chamados para
incorporar o pensar por meio de verso sobre a vida. A poesia constitui-se,
assim, um princípio da vida.
O labirinto no Pentacantos é apresentado como metáfora do inferno: F.
IV: “Eis, porque, na primeira aspiral / do labirinto / desce profunda em outra [...]
e a esfinge propõe a alegoria / de chamas elevando-se entre cânticos. / Porém
não cessa a volta labirintica [...] ‘-- O labirinto é o único caminho?’ / Rosa
cravada de espinhos...”. Como se pode constatar, é evidente o encontro de
quatro poetas: Homero, Virgílio, Dante e Paes Loureiro, a estética anterior se
presentificando para fortalecer a qualidade artística do Pentacantos.
43
A redução da sonoridade é traduzida no Pentacantos como o resultado
da escassez de sons na Divina Comédia F. V: “Oh! surda selva. [...] serpentário
de sílabas [...] O verso / nauta de sentido a melodia: / E embora tenha ao
inferno resgatado [...] ante à amada imortal cantou suas odes / e das comédias
do amor não me salvou.” Aqui o poeta amazônida faz alusão à selva de Dante,
destacando o seu guia (1979, p. 101): “A meio caminho desta vida / achei-me
a errar por uma selva escura, [...] era o instante em que a aurora ia surgindo,
[...] Na verdade, és meu mestre e meu autor; / ao teu exemplo devo, / o belo
estilo que é meu só valor”.
O “serpentário de sílabas” que aparece já transformado para o verso
lírico é um eco do verso épico. Na sétima vala do oitavo círculo, os dois poetas
Virgílio e Dante andam por um perigoso caminho, e a cenografia é terrível;
ladrões são picados por enormes serpentes, inclusive com suas respectivas
nomeações, e os furtadores depois que morrem, renascem para uma nova
bateria de sofrimento, C. XXIV (1979, p. 308) [...] “Toda a extensão ali era
coalhada / por milhares de víboras gigantes / lembrá-las, só, me torna a alma
gelada [...] Nunca da Líbia os areais flamantes / produziram tão pérfidas
serpentes, / jáculas, hidras, najas sibilantes, / fareias e anfisbenas repelentes; /
mais não se viram na Etiópia, um dia, / e nem do mar Vermelho às praias
quentes.”
Na percepção lírica emitida pelo Pentacantos encontramos um parecer
que ao dialogar com o poema alegórico de Dante demonstra não a fixidez, mas
um mundo em transformação do ser, e uma referência ao gigante Nemrode, F.
VII: [...] “De ti / cujos cabelos / as mãos da tempestade convolaram [...] Teu
gesto de regência vara o espaço / pássaro lábaro em chamas / Tempo / em
cujo fogo pira [...] E um ser, um ser se move / ente as palavras: / eis a menina
das sílabas aladas / a resgatar o morto para o eterno, / na carruagem de fogo
do poema.”, e uma referência ao gigante Nemrode, C.XXXI (1979, p. 372) no
poço dos gigantes: “Virgilio lhe bradou: ‘fera maldita! / tens a trompa, e por ela,
tão somente, / te deves exprimir, se algo te excita!”. É interessante notar que o
referido gigante só podia se expressar por meio da trombeta.
44
Verificamos, então, que a passagem pelos círculos do inferno e suas
respectivas valas não organizam o triunfo de uma viagem como aconteceu nas
epopeias Odisseia e Eneida em que, respectivamente, o resultado do percurso
de Ulisses foi a conquista da sua esposa e do seu reino e, de Eneias, a
fundação de Roma. No enunciado lírico, é mantida a apreciação lírica, cuja
consequência desemboca na contemplação poética, F. VIII: [...] “Amor por
quem retorno a caminhada / sem glórias, sem escudos, sem medalhas, só
tendo a lira em minha mão pousada.”
A experiência amorosa que Dante obteve na infância aqui é lembrada
no F. IX: [...] “E Beatriz caminha na memória / onde em alvas infâncias me
banhava.”, e a apresentação da mesma confirma-se no C. II, da Divina
Comédia (1979, p. 114) “sou Beatriz, que te peço sustenta-lo, / tu o ajudes,
ficando eu consolada”.
A perda de Beatriz por parte de Dante ecoa nos versos do Pentacantos
e sua dualidade: fogo e água, F. X: [...] “ Inferno-me no mar / -- a vala, a
escória -- / e glória o amor que salvo assim tão alvo / d’heranças de abusões,
penas de abutre. / Ledo engenho de amor despertencido...”
O último fragmento deste III Canto é um exemplar do diálogo que o
poeta Paes Loureiro estabelece não só com Dante, mas com outros poetas, F.
XI: “[...] Desde meia viagem que sabias / que este caminho é sem volta / e a
selva treva, / embora em círculos nascendo de outros círculos / aquela fonte
bebe noutra fonte / bebe noutra fonte, bebe noutra fonte / e, enquanto bebe,
olha-se no espelho, / e nele se vê outro / o outro que é si mesmo / neste reino
de amor / --- poesia --- / um reino doce amaro”.
Por fim, no Pentacantos, inexiste enumeração dos “círculos” de Dante.
No entanto, há nomeação da palavra “círculos” que articula o encadeamento
dos versos, como foi citado no III Canto F. XI do Pentacantos.
45
2.4 POESIA E MITO: UMA COMUNICAÇÃO POSSÍVEL
A poesia, desde os seus primórdios, compartilhou com o mito um diálogo
constante. O tema citado também intenciona verificar a presença do tempo
mítico no Canto IV, do Pentacantos do poeta paraense João de Jesus Paes
Loureiro.
A relação da poesia com o mito é estabelecida primordialmente pelo fato
de as duas formas de expressão participarem de uma representação simbólica,
em que a marca de cada uma tem na linguagem seu ponto de partida. Ou seja,
num tempo passado, o homem, ao se relacionar com a natureza, não fazia
distinção entre uma manifestação poética e outra mítica. Só com o passar do
tempo, com a racionalização do conhecimento, essas duas formas de
expressões simbólicas foram desmembradas.
Busca-se, então, um exercício de particularização e aproximação no
sentido de deslocar, distanciar essas formas simbólicas, dando a cada uma as
particularizações apropriadas, para depois tentar uma atividade de
aproximação dessas partes simbólicas.
Vai-se de uma realidade mais abrangente para outra singularizada. A
linguagem como necessidade e capacidade humana tem-se prestado à
particularização segundo o grupo de falantes, isto é, a linguagem do popular,
às da ciência, da filosofia, da arte, da religião.
Nosso enfoque prioriza no universo citado, duas utilizações linguísticas:
uma representada pela poesia e outra encrustada na filosofia, espaço onde o
mito tem lugar de discussão garantido.
2.4.1 O MITO E SUA RELAÇÃO COM A POESIA
Para Freye (2000, p. 7) “ ... o mito é um elemento estrutural na
literatura porque a literatura como um todo é uma mitologia deslocada...”,
[o negrito é nosso]. O parecer de Freye aponta para a formação da literatura e
acentua que a literatura solicita a realidade mítica, levando-a a uma
46
aproximação das identidades literárias e míticas. O mesmo crítico não deixa de
enfatizar que: “... cada poeta tem sua mitologia particular, sua própria faixa
espectroscópica ou formação de símbolos peculiar, da qual ele não é
consciente em grande parte.” (2000, p. 17).
A declaração do crítico canadense identifica na ação poética a
possibilidade de o poeta criar um código próprio que é formado pelos
“símbolos” do seu ato poético, com estruturas também inconscientes. A
simbolização é tanto utilizada pela poesia quanto pelo mito, e as duas
realidades são auxiliadas.
Strauss estuda a natureza do mito e, principalmente, o estímulo que o
mesmo pode proporcionar ao gerar pensamentos desconhecidos:
Estão lembrados de que eu escrevi que os mitos despertam no Homem pensamentos que lhe são desconhecidos. Esta afirmação tem sido muito debatida e até criticada pelos meus colegas de língua inglesa, porque entendem que, dum ponto de vista empírico, é uma frase que, em última análise, não possui significado. Mas para mim ela descreve uma experiência vivida, porque exprime precisamente o modo como eu percebo a minha própria relação com a minha obra. Ou seja, a minha obra desperta-me pensamentos desconhecidos para mim. (STRAUSS, 1978, p. 13)
Há na afirmação de Strauss pelo menos duas questões importantes à
leitura do Pentacantos : a primeira diz respeito à influência do mito no homem
em geral, o qual aparece como um estimulante para despertar as realidades
desconhecidas que o ser humano pode descobrir no seu interior.
Esta constatação evidencia uma aproximação da poesia com o mito,
uma instância do imaginário em que podem vibrar redes insuspeitas de
possíveis. De fato, para Strauss:
[...] Cada um de nós é uma espécie de encruzilhada onde acontecem coisas. As encruzilhadas são puramente passivas; há algo que acontece nesse lugar. Outras coisas igualmente válidas acontecem noutros pontos. Não há opção: é uma questão de probabilidades. (STRAUSS,1978, p. 14)
Recorramos a uma metáfora para poder aclarar e fundamentar o
pensamento acima: o homem é encontro. Essa metáfora se refere à forma que
nos aproxima daquilo que o mito enuncia como possiblidade de o ser não só
pensar numa humanidade, o que engendra o mito assim como o poeta, e este
ao transformar a realidade e revelar experiências e outras realidades.
47
Ao discorrer sobre a linguagem em transposição mítica-poética, Paz
(1982, p. 48) assinala que [...] “por obra da poesia, a linguagem comum se
transforma em imagens míticas dotadas de valor arquetípo”. O protótipo
apreendido pelo poeta é intensificado, e é possível a partir do ato poético.
Na apresentação da obra de Meletínski (1998, p. 14), a tradutora Aurora
Bernardine identifica uma das finalidades do mito, no campo social e também
nas dimensões da interioridade humana e sua exterioridade: [...] “a função do
mito é a de harmonizar as relações do homem com a sociedade e o mundo que
o envolve e não apenas a consciência individual com a subconsciência
coletiva”.
Há uma centralidade que diz respeito à relação do homem com a
exterioridade dada pelo entendimento de Meletínski (1998, p. 23), ao conferir a
projeção que o ser humano lança no espaço exterior: “Acredita-se que a mútua
correlação entre o mundo interior do homem e seu ambiente são tanto objeto
da imaginação poética e mitológica”
Segundo Cassirer: [...] “Tudo aquilo que no mito é intuição imediata e
convicção vivida, ela converte num postulado do pensar reflexivo para a ciência
da mitologia, ela eleva em sua própria esfera, ao nível de exigência
metodologica a intima relação entre o nome e a coisa, e sua latente identidade”
(CASSIRER, 1986, p. 17). Esse parecer de Cassirer fortalece a recomendação
proposta pela ação mítica.
O mito participa de uma natureza similar à da poesia que reside no
caráter sugestivo. E essa sugestão está atrelada à intuição mencionada por
Cassirer. Entende-se que existem fios que ligam a poesia ao mito, num jogo de
cobrir e descobrir.
No último pronunciamento de sua obra Linguagem e Mito, Cassirer diz:
Entre todos os tipos e formas da poesia, a lírica é aquela que mais claramente reflete este desenvolvimento ideacional, pois a lírica não somente se arraiga, desde seus começos, em determinados motivos mítico-mágicos, como mantém sua conexão com o mito, até em suas produções mais altas e puras. Os maiores poetas verdadeiramente líricos, por exemplo Hölderlin ou Keats, são homens nos quais a visão mítica se desdobra novamente em toda a sua intensidade e em todo o seu poder objetivamente. Esta objetividade desembaraçou-se, porém, de toda coação objetal. O espírito vive na palavra da linguagem e na
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imagem mítica, sem ser dominado por esta nem por aquela. O que chega à expressão em tal poesia não é o mundo mítico dos demônios e deuses nem a verdade lógica das determinações e relações abstratas. (CASSIRER, 1986, p. 117)
A poesia lírica tem na sua raiz as sementes do mito. Extrai-se de suas
palavras pontos para o objetivo presente, com a aproximação da poesia lírica,
que é priorizada no meio das diversas espécies poéticas numa particularidade
ideal, e essas ligações são “altas e puras”.
Cassirer propõe uma categorização de poetas “verdadeiramente líricos”
auscultando suas intensidades e objetividades, e nessa identificação que não é
muito nítida separa realidades vinculadas como a vivência do espírito na
palavra e na “imagem mítica”.
Por outro lado, Paes Loureiro no seu livro Elementos de Estética,
especificamente no texto Poesia como encantaria da linguagem, aponta:
[...] Mas reconhecemos a dimensão poética do mito, na medida em que, mesmo tendo o primado da intuição semântica, o mito também revela uma configuração formal significante, que é o princípio essencial da consciência poética. (LOUREIRO, 2002, p. 110)
O poeta afirma a relação da poesia com o mito primeiramente numa
dimensão que pode indicar a vida da poesia no mito, ou vice-versa, e, no seio
das duas realidades, uma “intuição semântica”, priorizando nos dois a esfera
interpretativa.
Portanto, Loureiro identifica:
E cada vez mais, em nosso tempo, a poesia assume o papel de catalizadora de significações coletivas, equivalente ao mito nas sociedades das origens. Com isso, percebe-se que a diferença entre mito e poesia (para lembrar uma vez Gilbert Durant) é uma simples diferença de graus de evolução semiológica e linguística da sociedade ambiente ... O mito torna-se poesia quando de forma oral ou escrita, passa a ser narrado no domínio da linguagem, como matéria de linguagem. Essa mesma linguagem que Hölderlin diz ser ‘o mais inocente e mais perigoso de todos os bens’. E mais, tanto a poesia quanto o mito testemunham o nosso acontecer em diálogo, para lembrar, ainda, o poeta da poesia. É no acontecer em diálogo que a vida deixa de ser um destino solitário. (LOUREIRO, 2002, p. 113)
Loureiro refere-se à possibilidade de o mito “tornar-se poesia” e sua
diferença repousa no campo linguístico. Essa identificação percebida pelo
poeta nos faz pensar sobre o ofício da poesia nos nossos dias, ao canalizar o
49
pensamento coletivo para a sua interioridade, e, neste fazer, exprimir uma das
característica do mito que é a de instituir uma realidade coletiva.
Faz-se também uma crítica à relação da poesia com o mito, um tanto
quanto infantilizada, no parecer de Meletínski :
Para Vico a poesia heroica de tipo homérico surge do ‘divino’, ou seja, da mitologia, sendo a originalidade desta determinada em grande medida por formas atrasadas e específicas de pensamento, que podem ser comparadas à psicologia infantil. (MIELIETINSKI, 1987, p. 13)
O teórico do mito recorre ao pensamento de Giambattista Vico. Essa
demonstração paradoxal sofre de uma verificação axiológica, pois, ao perceber
que a poesia de Homero tem na sua fonte um beber divino, ressalta um
aspecto valorativo.
Para Meletínski:
... A poesia é um princípio figurado da matéria como a arte no sentido mais restrito da forma, na medida em que a mitologia é a poesia absoluta, por assim dizer, uma poesia espontânea. É a matéria eterna a partir da qual todas as formas aparecem com tamanho esplendor e diversidade. (MELETÍNSKI, 1987, p. 17)
O teórico do mito procura potencializar o caráter figurado da poesia,
utilizando-se de um princípio metafórico: “a mitologia é a poesia absoluta”, essa
proeminência do ponto de vista poético recorre a uma naturalidade da “poesia
espontânea”, fundando a primazia poética como responsável pela luminosidade
originária das formas, e não simples aparências da realidade, mas sim,
eminentes superfícies da materialidade humana. E a mitologia como um estudo
de um mito específico ou conjunto de mitos aparece como poesia num plano
elevado.
Para Schelling (apud MIELIETINSKI, 1987, p. 18) “... a mitologia grega é
o mais elevado protótipo do universo poético.” Extrai-se dessas palavras um
conjunto cultural que pode ser interpretado como um carregamento, elevação
de uma realidade a outra, que não muda sua essência, porém adquire, por
meio de um aspecto ligado diretamente à linguagem, a marca de Schelling
parece que inverte o pensamento de Meletínski, ao seguir o sentido mitologia –
poesia, em vez de poesia-mito.
E em outro momento Meletínski volta a citar Schelling:
50
Todo grande poeta tem a missão de transformar em algo integral a parte do mundo que se lhe abre e da matéria deste criar sua própria mitologia; esse mundo (o mundo mitológico) se encontra em formação, e a época contemporânea ao poeta pode lhe revelar apenas uma parte desse mundo. Assim será até que se chegue ao ponto situado numa distância indefinida no qual o espírito universal terminará o grande poema por ele criado e transformará em simultaneidade a mudança sucessiva dos fenômenos do mundo novo. A título de exemplo, Schelling cita poetas como Dante (que criou seu mito a partir do horror da história e da matéria da hierarquia vigente), Shakespeare (que criou o mito com base na história nacional dos costumes do seu tempo), Cervantes, Goethe enquanto autor de Fausto. ‘Tudo isto são mitos eternos’, diz Schelling. Essa concepção foi ressuscitada no século XX pela crítica literária mitológica-ritualística. Schelling se dispunha a procurar a possibilidade de uma nova mitologia e da simbólica até na ‘alta física especulativa’, posição que não parece estranha no século XX. (SCHELLING apud Meletínski, 1987, p. 19)
Schelling inicia seu discurso destacando a prática transformadora dos
grandes poetas e atrela, imediatamente, a relação do artesão à mitologia,
considerando que a criação não é uma realidade acabada, pelo contrário, está
em permanente transformação, a apontar para a atuação do poeta em
determinada sociedade, atentamos para o aspecto transcendente operado pela
prática poética que pode elevar a concretude de uma sociedade a um fato de
existência mitológica.
O poeta na sua humanidade singular, com esforço criacional é
responsável pela clarificação de uma realidade. Na singularidade poética, o
poeta revela uma porção do universo. No discurso do filósofo, verifica-se uma
capacidade, quando este percebe a “distância indefinida”, e, então, uma
espiritualidade concluirá o poema universal.
Essa constatação pode ser confirmada quando Schelling elenca os
poetas Dante, Shakespeare, Goethe e a criação de mitos que cada um gerou a
partir das suas experiências históricas e culturais.
Brooks (1970, p. 830) fortalece e desdobra a discussão: “... J G Herder,
que foi um jovem contemporâneo de Kant, ousadamente derivou a linguagem
do processo mítico, e fez residir o caráter especial da poesia no facto de a
poesia reservar a qualidade do mito”. Essa constatação amplia a relação do
mito com poesia, pelo fato de ter no mito um parâmetro que ancora a realidade
poética.
51
Giambattista Vico, ao inverter estes valores, enfocando a poesia em
primeiro lugar, afirma que é o mito “uma espécie de linguagem poética”. Em
seu parecer distingue a poesia do mito. (BROOKS, 1970, p. 830)
Pode-se afirmar a relação da poesia com o mito por vários vieses,
todavia se esquadrinha por essa perspectiva e enfatiza-se a primazia da poesia
que, ao conservar a dinâmica do mito, tem neste o seu depositário e fonte de
prolongamento.
Por mais que se procure dar um ar de primitividade ao mito e à arte uma
“... nova forma simbólica” (LANGER apud BROOKS, 1970, 836) não se pode
negar a possibilidade de aventar que, em um tempo remoto, essas duas formas
poesia e mito, tenham nascido no mesmo tempo. E convivido dali em frente. O
que se tem hoje nas artes são fórmulas mais sofisticadas de lidar com o mito.
Exemplo dessa confirmação está registrado nas palavras de Brooks
(1970, p. 840): “... o mito, o ritual e a poesia se encontram no começo de todas
as culturas ...”
E, ao comentar a obra de Richard Chase, The Quest for Myth, publicada
em 1949, faz as seguintes pontuações:
A poesia e o mito nascem das mesmas necessidades humanas, representam a mesma espécie de estrutura simbólica, conseguem dar à experiência a mesma espécie de veneração e de admiração mágica,
e exercem a mesma função catártica. (BROOKS, 1970, p. 843)
Essa relação indica, na trilogia mito, ritual e poesia, a possibilidade de
uma anterioridade cultural no sentido de inauguração cultural, que, ao chegar à
carência do homem, tem a mesma estruturação.
A riqueza e criatividade das duas linguagens foram enunciadas por
Cassirer:
Porque a linguagem não pode ser vista como um material que se encontra presente, que pode ser apreendido e abarcado como um todo ou particularmente comunicado: ela deve ser compreendida, como algo que está eternamente produzindo o eu que as lei que regem a produção são definidas, enquanto o alcance e, de certa maneira, a natureza do produto permanece totalmente indefinidos... (CASSIRER, 2001, pp. 40,41)
52
O fato de Cassirer identificar a dimensão da linguagem como uma
realidade que não pode ser apreendida na sua totalidade, evidencia o aspecto
plural da sua utilização.
Cassirer (2004, p. 4) aponta para algumas direções que chamam nossa
atenção: “... A questão sobre a origem da linguagem está indissoluvelmente
entrelaçada à da origem do mito. As duas só podem ser formuladas se unidas
em relação recíproca uma com a outra...”
Nesse trajeto há um espaço para pensar-se na origem do mito, e
recorre-se para isso à experiência de Cassirer:
[...]“o mito surge de um jogo da fantasia subjetiva ou, em cada caso singular, remonta a uma intuição real na qual se funda? Ele desempenha o papel de uma forma primitiva de conhecimento e é nessa medida, essencialmente uma produção do intelecto, à espera da paixão e da vontade?” (CASSIRER, 2004, p. 45)
Essa combinação de “fantasia” com “intuição real” propõe integrar um
questionamento em que Cassirer está inserido, e estas duas formas aparecem
no jogo primitivo do conhecer, e não fogem da realidade psíquica.
Acrescentamos a esta trajetória o pensamento de Schelling:
A mitologia é inevitável; ela é uma necessidade inerente à linguagem, se reconhecemos na linguagem a forma externa do pensamento; ela é [...] a sombra escura que a linguagem projeta sobre o pensamento e que nunca desaparecerá enquanto linguagem e pensamento não se recobrirem completamente, o que nunca será o caso. Mitologia, no sentido mais elevado da palavra, é o poder exercido pela linguagem sobre o pensamento, a saber, em cada espera possível da atividade espiritual. (SCHELLING apud CASSIRER, 2004, p. 48)
De acordo com Schelling, a amplitude do mito projeta na linguagem uma
necessidade inerente e controladora.
Para mais compreender esse par poesia e mito, recorre-se a Cassirer:
[...] “A fonte e a origem de todo sentido mítico é o duplo sentido da linguagem –
o próprio mito, com isso, não é senão uma espécie de adoecimento do espírito
que tem como causa última uma doença da linguagem.” (CASSIRER, 2004, p.
49).
53
Siga-se com Cassirer:
“Todo começo do mito, especialmente toda concepção mágica de mundo, está impregnado dessa crença na essência objetiva é na força objetiva do signo. A magia da palavra, a magia da imagem e a magia da escrita formam o acervo fundamental da atividade mágica e da visão mágica de mundo.” (CASSIRER, 2004, p. 52)
O signo carrega uma alentada carga de objetividade e subjetividade.
Cassirer ampara seu pensamento no pressuposto de que a materialidade da
palavra, da imagem e da escrita molduram a esfera semântica do mito:
[...] a configuração poética e mítica não se encontram numa relação de ‘causa’ e ‘efeito’, tampouco uma simplesmente precede a outra, mas ambas são apenas expoentes variados de um mesmo desenvolvimento. A liberdade que coube à consciência mediante a diferenciação das representações dos deuses’ – diz Schelling – ‘deu aos helenos seus primeiros poetas e inversamente, apenas a época que lhes deu poetas também lhes proporcionou a história dos deuses completamente evoluída. A poesia não tem a precedência, pelo menos não à verdadeira poesia e não foi a poesia que produziu propriamente a história expressa dos deuses. Nenhuma precede a outra, mas as duas são o fim comum e simultâneo de um estado, anterior, um estado de involução e silêncio” [...] (SCHELLING apud CASSIRER, 2004, p. 331)
A simbolização é tanto utilizada pela poesia quanto pelo mito, e as duas
realidades são servidas de uma existência representativa. A poesia e o mito
participam de um tipo particularizado de revelação. A palavra mítica instaura a
consciência humana de um estar no mundo, e a poesia vem do interior de um
homem chamado poeta.
2.4.2 TEMPO MÍTICO NO TAMBATAJÁ
O desdobramento do tempo mítico na lenda do Tambatajá2 é matéria
poetizada no Canto IV, do livro Pentacantos. Destacamos duas questões
___________________________________
2 Tambatajá é uma lenda dos índios Macuxi, do Vale do Rio Branco, Território Federal de
Roraima. Representa o amor mais puro, fiel e que tenta transcender à própria morte. Vendo
que sua amada não mais podia caminhar, o índio passou a levá-la aos ombros para toda parte.
Até que, um dia, ambos desapareceram em um lugar, onde nasceu um pé de tajá, cujas folhas
duplas assemelham-se a um sexo de mulher: O tambatajá.
54
pertinentes nesse desenrolar: a primeira centra-se no tema do amor de um
índio à cunhã Macuxi3 e a segunda volta-se para a ação do tempo no tecido
mítico.
A utilização do tempo mítico pode ser entendida no Pentacantos como
exercício da intelectualidade. Esse esforço congrega uma avaliação aguda não
só do ser-mito, mas principalmente da temática elaborada ao longo de todos os
cinco cantos da referida obra.
O universo poético de Paes Loureiro está impregnado de uma sensação
de liberdade. Ao buscar no tempo da sua leitura um (re) encontro com as
matrizes da literatura universal, não propõe um pacto de equivalência.
Observa-se no exercício poético do Tambatajá, uma explicação: a forma da
folha do tajá provém da fantasia gerada pelo mito em foco.
Paes Loureiro concretiza uma síntese cultural-amorosa, ou seja, imprime
no seu livro cenas da cultura amazônica atreladas ao tema do amor. Isso pode
ser percebido na sua insistente performance poética ao incluir na sua poesia as
várias faces do mito amazônico. A realidade local mantém-se num permanente
diálogo com a universalidade, percebida nas alusões, claras ou subentendidas
nos versos do poeta.
Esquadrinha-se neste tipo de interpretação o todo dos poemas
paeslourereanos, ou seja, juntar o conjunto dos significados que estão
espalhados ao longo deste Canto IV. Esta ordem é norteada pelo tempo que
escoa numa única fluidez: “Pelo tempo. Pelo vento. Pelo tempo. / Naveguei. /
Naveguei. Naveguei. / Dei à cunhã Macuxi um pé de tambatajá e juramos /
para sempre amor.”
Na abertura do Canto IV, F. I (LOUREIRO, 1984, p. 59), há um par de
versos que esboçam duas classes gramaticais, o substantivo e o verbo, num
paralelismo gramatical que funciona como peças introdutórias do Canto IV, e
___________________________________
3 Macuxi – Os macuxi são um subgrupo dos pemon, de filiação linguística Caribe. Habitam a
região compreendida entre as cabeceiras dos rios Branco e Rupununi, território partilhado entre
o Brasil e a Guiana. No Brasil, os macuxi se localizam no leste de Roraima.
55
vertidas a duas constituições do mito, vinculado ao ato de nomear: ação e
concretização da nomeação, a substantivação.
Na doação feita pelo eu lírico, materializada no canto do índio, anuncia-
se o destino que desemboca na cunhã, uma eternidade lendária no verso:
“Navegamos depois pelo tempo pelo sempre”.
E cada verso acentua o passar mítico, como forma potencializadora,
acentuando o grau da eficácia artística: “Pescamos juntos” / “Caçávamos
juntos” / “Dormíamos juntos” / “Sonhávamos juntos”.
Depois do amor temporal, aparece um momento trágico interrompido
pelo caminhar amoroso (LOUREIRO, 1984, p. 59): [...] “Caminhou até a beira
do rio. / E lá pariu o menino nosso filho. / Mas, a criança nem chorou, nem
mexeu. / E arquejava. / E todo o seu corpo tremia. / O xincuã4, que não
engana, cantou / perto em árvore / De agouros”.
Uma realidade sombria surge na consagração deste instante funesto. O
tempo mítico que é um atravessar, aqui brota sua cadência mortal, não passa
na manutenção da vida, porém acolhe o desabrochar do fenecer.
Um tom catastrófico acentua o narrar poemático e alimenta a
possiblidade de enxergar nas camadas densas do poema a vivacidade do
verbo, depois que a cunhã Macuxi não pode mais andar (LOUREIRO: 1984, p.
60): “Eu a levava nos ombros para a caça” [...] “Eu a levava nos ombros para a
pesca” / “Eu a levava nos ombros para a roça”.
O tempo mítico não recusa na sua constituição o transcorrer cíclico
(LOUREIRO, 1984, p. 60): “Eu a levava sempre nos ombros” / “O sol partia no
céu. A lua vinha. E vinha o sol.” / “Depois a lua ia e vinha.” / “E assim
aconteceu centenas de luas e de sóis...”
Na adversidade o canto poético registra a sua agonia numa adjetivação
apropriada na densidade do poema que, ao sondar o universo animal, encontra
______________________________
4 Ave cujo cantar é considerado agourento, isto é, anunciador de desgraça, de mortes.
56
no som do pássaro resposta à sua angústia (LOUREIRO, 1984, p. 60): “Até
que um dia seu corpo anoiteceu para sempre nos” / “cantos do xincuã”.
A caminhada do índio, que metaforicamente, representa o percurso do
próprio tempo, esconde-se no escuro, pelo fato de ter sua jornada impedida. É
preciso depreender, nesse impedimento, um símbolo da saga trágica do
indígena nos embates com a colonização. O sentido criado pela forma do
tempo mítico pode ser também entendido como unidade inseparável, no
parecer de Paz: “O tempo não está fora de nós, nem é algo que passa à frente
de nossos olhos como os ponteiros do relógio: nós somos o tempo, e não são
os anos, mas nós que passamos. O tempo possui uma direção, um sentido,
porque ele nada mais é que nós mesmos” [...] (PAZ, 1982, p. 69)
Paz concentra na sua avaliação sobre o conceito de tempo uma
internalização do mesmo, a ponto de não estabelecer diferença entre
interioridade e exterioridade; é o que podemos verificar nos versos abaixo: “Saí
pelo tempo sem retorno a procurá-la. / Saí a procurá-la nesse império de
sílabas e sombras / Onde a entrada é vedada a quem espera. / Havia no
caminho uma pantera, / leão e curupiras / boiúnas e uma loba emperdenida / a
impedir na livre caminhada ...”
A caminhada vai ficando cada vez mais perdida. Este esvair-se no
tempo é típico do processo de criação mítica que ao recordar, busca um tempo
que não é cronometrado, e, entretanto, mescla-se com os anseios do homem.
Multiplicado no sofrimento feminino, há exemplo em Semírames, Cleópatra,
Helena, Dido, e identifica-se com a perda de Orfeu: “Como círculos em água se
ampliando. / Os ventos espalhavam sombras súplices / de uirapurus e cânticos
castrados / Semírames5 com lacraus no sexo ferroando / Cleópatra6 no agônico
_____________________________
5 Semírames – Semíramis foi uma rainha mitológica que segundo as lendas gregas e lendas persas
reinou sobre a Pérsia, Assíria, Armênia, Arábia, Egito e toda a Ásia, durante mais de 42 anos, foi fundadora da Babilônia e de seus jardins suspensos. Subiu ao céu transformada em pomba, após entregar a coroa ao seu filho, Tamuz.
6 Cleópatra - foi a última rainha da dinastia de Ptolomeu, general que governou o Egito após a conquista
daquele país pelo rei Alexandre III da Macedônia. Era filha de Ptolomeu Auletes. O nome Cleópatra significa "glória do pai", Thea significa "deusa" e Filopator "amada por seu pai".
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leito de serpentes / Helena7 recortando o rosto com espelhos; / e Dido8 nos
lençóis de chama recordados. / Assomos de boiúnas, / olhares sem amores, a
espalhar / A festa dos venenos. / De cada boca saía um / som nefando jeito
mugidos de / touros afogados. / Em cabeleiras de ondas, / insepulta, / a cabeça
de Orfeu9 vagava entre piabas ... / Lábios de Orfeu clamavam por Eurídice10. /
Nas brenhas e confins / os ecos esse nome repetiam: / “Eurídice” ... / E nos
ecos desse nome, como conchas, meus lamentos / Clamavam Macuxi / ao
reino amaro...”
O mito nas palavras de Paz assume várias faces, e apesar de ter a
capacidade elástica de ser e não ser pode distanciar e unir os tempos:
O mito não se situa numa data determinada, mas em ‘uma vez...’ – nó em que o espaço e o tempo se entrelaçam. O mito é um passado que é também um futuro. Pois a região temporal onde os mitos acontecem não é o ontem irreparável e finito de todo ato humano, mas um passado carregado de possibilidades, susceptível de se atualizar. O mito é tempo arquétipo, capaz de se re-encarnar? O calendário sagrado é ritmo porque é arquétipo. O mito é um passado que é um futuro disposto a se realizar num presente. Em nossa concepção cotidiana do tempo, este é um presente que se dirige para o futuro mas que fatalmente desemboca no passado. [...] (PAZ, 1982, p. 76)
______________________________
7 Helena – na mitologia grega era filha de Zeus e de Leda, irmã gêmea da rainha Clitemnestra de
Micenas, irmã de Castor e de Pólux e esposa do rei Menelau de Esparta. Quando tinha onze anos foi raptada pelo herói Teseu. Porém seus irmãos Castor e Pólux a levaram de volta a Esparta. Era considerada a mulher mais bela do mundo. Helena tinha diversos pretendentes, que incluíam muitos dos maiores heróis da Grécia.
8 Dido. A rainha Dido, segundo a Eneida de Virgílio, após ouvir a narração do fim de Troia e das viagens e
peripécias de Eneias, influenciada por Vênus, deusa do amor e mãe de Eneias, vê-se completamente apaixonada pelo herói. Ela convida os troianos (Eneias e seus companheiros) para uma caçada. No meio de uma tempestade, abrigados em uma caverna, Dido e Eneias se amam. Entretanto Júpiter envia Mercúrio a Eneias para lhe lembrar que seu destino e encontrar o Lácio e fundar uma nova cidade que substitua a cidade de Troia destruída e que governe as demais cidades do mundo. Eneias tenta sair de Cartago sem que Dido se aperceba. Sentindo-se abandonada, enganada e vilipendiada, furiosa e ensandecida pelo amor não retribuído, ela se suicida enquanto partem os navios troianos e Eneias ainda pôde ver a fumaça da pira funérea saindo de seu palácio hesitava tomar uma decisão em favor de um deles temendo enfurecer os outros.
9 Orfeu. Na mitologia grega, Orfeu era poeta e médico, filho da HUGO e de Apolo ou Eagro, rei da Trácia.
Era o poeta mais talentoso que já viveu. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para escutar e os animais selvagens perdiam o medo. As árvores se curvavam para pegar os sons no vento. Ganhou a lira de Apolo.
10 Eurídice foi mordida por uma cobra, e morreu, sendo levada ao Hades. Orfeu, seu marido, filho da
musa Calíope e de Apolo ou de Oeagrus, desce ao Hades e convence Plutão a deixar que ela voltasse ao mundo dos vivos. O deus deixa, mas com a condição de que Orfeu não olhasse para trás até que ele chegasse à sua casa, mas Orfeu desobedece, vê sua esposa, e ela volta ao Hades.
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O tempo mítico para Paz é um deslocamento permanente, em que o
“espaço” e o “tempo” assumem uma única forma, assinalando para o autor de
O Arco e a Lira, um problema de difícil resolução.
O par temporal passado-futuro comparece na sua apreciação como um
jogo metafórico: “[...] o mito é um passado, que é também um futuro”. Este
jogar pretende focar o aspecto: o passado do mito que não se deixa perder no
esquecimento, mas, dilata as possiblidades permanentes de atualização.
Paz nomeia o mito como tempo. Não está em combinação uma
comparação; contudo, abre o espaço da transposição metafórica: “... o mito é
tempo arquétipo”. A especificidade contida no seu dizer remete a um modelo
contido na estrutura do mito, proveniente das formas simbólicas absorvidas e
formadas nas camadas culturais.
Nos versos de (LOUREIRO, 1984, pp 62, 63), o sofrimento lírico
intensifica-se ao fortalecer a instabilidade do ser na edificação mítica, e na
errância do tempo: “Agora estou outrora / nesta e noutra hora, [...] Operário
do raro [...] Venho / Boiando na linguagem / Por que ser / é o que fui / no que
serei / o que me veste o agora / despescado no rio / onde navegam / cardumes
em meus passos / Ser vazante / entre os dedos do nada / o que disponho. /
Poesia e cruz: a encruzilhada?”
O tempo mítico participa do processo poético ao instaurar o trabalho do
poeta: “Operário do raro”, e intensifica a participação do passar, e do
permanecer no presente, no passado e no futuro: “Por que ser” / “é o que fui” /
“no que serei” ...
No final do Canto IV, F. III (LOUREIRO, 1984, p. 64), há um habitar lírico
com a finalidade de fortalecer a prática poética proveniente de uma
materialidade chamada: “palavras”, e esta constatação é ampliação de uma
essência, a existência do “verbo” que habita na voz, duas realidades
alimentadas pelo dizer, e pela nomeação da realidade: “Por que me
abandonaste” / “Nas palavras,” / “Oh! Vós que sois meu verbo” / “em minha
voz?”
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Um tom solene marca o fragmento: “Oh! Vós que sois meu verbo”. Essa
veemência é proporcionada pela força provocada pelas palavras no percurso
mítico.
No corpus dos versos: “Por que me abandonaste”11 / “a sós no verso”
“posto que nele estou” / “(oh! Cruz, palavras)” / “e que não é sem mim” / “pois
infinito sou” / “e palavra e poeta” / “estou no mundo.”, apreende-se uma
presença no mundo, e expõe ao leitor a realidade particularizada, merecedora
de ponderação que trata a solidão sacrificial como depuração da consciência
mítica infinita, recurso instaurador da permanência do tempo.
A poesia aparece no fragmento III como o produto da solidão no bojo de
um sofrimento que só existe a partir das “palavras”, e amplia sua existência
num tempo sem fim, que edifica o estar “no mundo”.
Constatamos nas palavras de Paz (1982, p. 77) um aprofundamento à
primazia do poema: [...] “Nem todos os mitos são poemas, mas todo poema é
mito. Como no mito, o tempo cotidiano sofre uma transmutação no poema:
deixa de ser sucessão homogênea e vazia para se converter em ritmo”, é o que
assistimos nos versos: “Por que me abandonaste”; “Com minha lança solar de
alegorias,”; “Para surdir o reino das palavras?”; “O reino das palavras [...]” O
poema instaura uma realidade proveniente do abandono, solidão apropriada à
criação poética.
A tripla escritura do verso “Por que me abandonaste” reforça uma
intenção poética abrangente num sentido duplo; o primeira toca numa ação
bem mais antiga, aquela que está registrada nos evangelhos, e a outra
funciona como reforço, ou proliferação do sofrimento em si.
O sofrimento de Jesus Cristo é agregado ao sofrimento lírico, escrita
aflora como plano metafórico; “lança solar de alegorias”.
______________________________
11 A expressão “Por que me abandonaste”, fala de Jesus Cristo, que está registrada em duas
passagens do Novo Testamento, a primeira no Evangelho de Mateus 27:46, e a segunda em Marcos 15:34, aparecem no poema de Paes Loureiro como elaborações poéticas.
60
Uma combinação de valores culturais ingressa neste poema: o mito
grego, a realidade cristã e o mito amazônico, combinados para avigorar o
prazer estético.
A combinação de poesia com mito pode gerar um pensamento
relacionado ao termo mitopoética, quer dizer, fazer mitos, não só na prática
poética, como também na incorporação de mitos à poesia.
A prática de combinar poesia com mito ao longo do percurso da criação
poética vem mostrando-se satisfatória, e isto planifica os pares simbólicos. Ao
juntar materialidades míticas com poéticas, o poeta embrenha-se num campo
misterioso e eleva os anseios das obras poéticas.
Esse exercício de ajustar os tempos simbólicos, de um passado remoto
com um presente imaginado, adequando-os a uma realidade poética, faz gerar
uma dinâmica que altera a maneira de pensar a realidade circundante.
A reflexão de Paes Loureiro, na possibilidade relacional entre poesia e
mito, identifica duas realidades: pensar a teoria do mito e a poesia e aplicar o
mito na poesia.
O conceito paeslourereano esbarra numa intuição semântica. Essa
avaliação relacional concentrou-se na linguagem, o corpus participante das
duas realidades simbólicas.
A prática mitopoética assistida, na qual o poeta Paes Loureiro juntou
ingredientes da cultura greco-romana com o mito amazônico, quer ressignificar
a realidade por meio do imaginário simbólico.
Não só a poesia, mas o mito também é uma forma de pensar sobre o
homem amazônida e a construção dos seus saberes, sendo fundamento
gerador de cultura. Paes Loureiro entende que a mitopoética é o elemento de
conservação da cultura, em suas simbologias, uma maneira de totalização
cultural, não só de preservação, mas, sobretudo, de transformação.
61
No caso do poeta Paes Loureiro, a revelação proposta não é a da
simples poetização de um mito já existente; intenta explorar o tempo mítico na
consciência do “índio” e na animação da natureza, verificada no espaço
amazônico e nos valores eternizantes, ao tonificar a presentificação da tradição
poética.
A equação obtida entre a poesia e o mito levou-nos a pensar que as
duas realidades simbólicas ao longo da história da linguagem foram
retroalimentando-se, fundindo nas suas funções o poder imaginativo de cada
uma e, ao mesmo tempo, ampliando os horizontes da arte e do homem, no
tempo mítico.
2.5 IMAGEM METAFÓRICA: UMA TRANSPOSIÇÃO POÉTICA
As imagens metafóricas utilizadas e criadas em Pentacantos,
constituem-se numa tentativa de realizar um inventário das metáforas
construídas como recurso linguístico, numa temática resultante do processo
estético.
Segundo Joly (2007, p.13), há uma substância invisível nas palavras,
proveniente de uma fonte denominada sujeito, que constrói e interpreta.
Para Joly (2007, p.14), a imagem participa de um processo mimético na
sua formatação participando de um conjunto de normas; “[...] A imagem seria
um objeto segundo com relação a um outro que ela representaria de acordo
com leis particulares...” Isto pode ser remetido a um certo tipo de reformulação
mental que é gerado a partir da verossimilhança, relação com um elemento
anterior, aproximado a uma cópia da realidade, uma espécie sensível de
perceber a realidade, tanto exterior quanto interior.
Por outro lado, Lúcia Santaella investe na divisão e existência das
imagens:
O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e imagens cinematográficas, televisivas, infográficas pertencem a esse domínio. Imagens, nesse sentido, são
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objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens da nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou em geral como representações mentais. Ambos os domínios da imagem não existem separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese. Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não existem imagens mentais que não tenham alguma origem no concreto dos objetos visuais. (2001, p. 15)
Observa-se na elaboração de Santaella um jogo entre os domínios:
externos e internos. O primeiro das representações visuais apresenta uma
materialidade visual, nomeada de “objeto material” participantes de um espaço
concreto. E o segundo concentra-se na espacialidade mental, própria do
mundo da abstração, que na sua divisão consegue especificar: um ato de ver
internalizado; uma representação abstrata da realidade; um produto da
imaginação combinações criativas; invenção; relações; funções; e paradigmas.
Para Gaston Bachelard:
... A imagem poética nova – uma simples imagem torna-se assim, simplesmente, uma origem absoluta, uma origem de consciência. Nas horas de grandes achados, uma imagem poética pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio de um poeta. A consciência de maravilhamento diante desse mundo criado pelo poeta abre-se com toda ingenuidade [...] A imagem poética é uma imagem psíquica. (1996, p. 1)
Bachelard deixa vazar uma questão fundamental para o curso da
reflexão: a novidade da imagem poética. Essa imagem pode aparecer em um
momento muito especial, o que faz perceber a geração de uma imagem,
questão de momento, sendo extensão de uma monumentalidade e a fonte de
descoberta é de origem abstrata.
Segundo Bachelard (Idem, 1996, p. 6), “Todos os sentidos despertam e
se harmonizam no devaneio poético. E essa polifonia dos sentidos que o
devaneio poético escuta e que a consciência poética deve registrar...”
Sobre a metáfora, recorra-se a Paul Ricoeur. Os estudos produzidos por
Ricoeur foram extraídos do seminário realizado na Universidade de Toronto no
outono de 1971, sob a coordenação do departamento de literatura comparada,
tendo como ponto inicial a retórica clássica, passando pela semiótica e
semântica, culminando na hermenêutica, correspondentes à palavra, à frase e
finalizando com o discurso, e refutando a tese de Roman Jakobson
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preconizador do atrelamento da semelhança com a substituição, Ricoeur
aponta:
É o trabalho da semelhança que deve ser, com efeito, atribuída a inovação semântica, pela qual uma ‘proximidade’ inédita entre duas idéias é apercebida não obstante a sua distância lógica. Metaforizar, correctamente dizia Aristóteles, é aperceber o semelhante. Assim, a semelhança deve ser ela própria compreendida como uma tensão entre a identidade e a diferença na operação predicativa accionada pela inovação semântica. ( RICOEUR, 1983, p. 8)
Para definir a metáfora, Ricoeur sublinha quatro traços:
1º: a metáfora é algo que acontece no nome; 2º: a metáfora é definida em termos de movimento: a epífora de uma palavra é descrita como uma espécie de deslocamento de ... para ...; 3º: a metáfora é a transferência de um nome que Aristóteles chama de estranho (allotrios), isto é, ‘que ... designa uma outra coisa (1457 b7), ‘que pertence a uma outra coisa; 4º: uma transferência, diz-se, vai do gênero a espécie, da espécie ao gênero, da espécie à espécie, ou efetua-se segundo a analogia’ ou proporção)”. (Idem, 1983, p. 26)
O ponto de partida desta constatação repousa no nome. É justamente a
partir da nomeação, particularização do processo metafórico que Ricoeur
posiciona-se para poder avançar no sentido de alcançar a meta da metáfora,
relacionada com o transporte.
Ricoeur entende que:
A metáfora é apenas uma das tácticas que dimanam de uma estratégia geral: sugerir o contrário do que se diz ao retratar a afirmação no próprio movimento em que é feita. Em todas as tácticas dimanadas desta estratégia, o problema consiste em fornecer índices que orientam para o segundo nível de significação... (Idem, 1983, p. 145)
A proposta do hermeneuta no seu início parece reforçar a ideia de que a
metáfora participa do início de uma ironia. Essa constatação transfere para a
segunda palavra a responsabilidade de produzir os ‘índices’ que vão promover
novas significações.
O fundamento emblemático de Ricoeur (Idem,1983, p. 148) construído
no próprio título de sua obra A Metáfora Viva, pode ser confirmado nas suas
palavras: “[...] não há metáfora no dicionário, apenas existe no discurso; neste
sentido, a atribuição metafórica revela melhor que qualquer outro emprego da
linguagem o que é uma fala viva; constitui por excelência uma instância de
discurso”.
64
As palavras de Ricouer são reveladoras, pelo fato de perceberem a
transcendência metafórica em relação ao dicionário, revelando o aspecto plural
na formação da metáfora. Como no dicionário as palavras aparecem
cristalizadas nos seus significados e isolamento próprio, não geram outros
significados, pois sua estrutura dicionarizada não promove o deslocamento das
mesmas.
Há uma essencialidade da ação metafórica percebida por Ricoeur (Idem,
1983, p. 165): “... O essencial da metáfora está noutro lugar. O seu objetivo é
de criar a ilusão, principalmente, ao apresentar o mundo sob um aspecto
novo...”
Ocorre a esta reflexão, o livro de Francisco Filipak: Teoria da Metáfora,
em que se discutem as teorias basilares do processo metafórico utilizado na
poesia. A obra propõe um registro evolutivo da metáfora partindo de
Aristóteles, passando por Górgias, Platão, Cícero, Longino, Quintiliano,
Jacques Dubois, Frontamier e Lausberg.
Filipak aponta para as Metáforas de invenção, observando seus traços
distintivos:
As metáforas de invenção, ditas do escritor ou de 2º grau (Cohen), são fruto do gênio criativo, de ordem sincrônica, uma propriedade particularportanto inalienável. As metáforas de invenção não se baseiam na analogia objetiva, mas numa analogia referencial, de ordem subjetiva, psicológica, externa ao campo das idéias. O poeta não se apóia em similaridades reais ou ontológicas, mas as faz ver (fanopéia de Ezra Pound) não como elas são, mas como ele quer que as mesmas sejam. (FILIPAK, 1983, p. 11)
O poeta neste caso não se constitui em refém da retórica clássica, pelo
contrário, tem a possibilidade de movimentação criativa no interior do texto
podendo gerar a sua imagem desejada, em estado de pura liberdade do
poético.
Essas constatações de Filipak podem ser entendidas como jogo
metafórico no qual há uma ordem, o primeiro elemento com sentido próprio na
transferência passa a ter um sentido figurado. Observa-se que no processo
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metafórico há uma passagem de campo significcional, o signo A que vai em
direção ao B, e esse choque gera o terceiro campo sígnico.
Filipak não nega o aspecto transladativo e sua realização compacta no
pensamento de autores modernos:
A metáfora é uma figura na qual, por assim dizer, se translada a significação própria de uma palavra a outra, distante que lhe convém em virtude de uma comparação que se opera na mente [...] Os autores modernos afirmam que a metáfora vê duas coisas numa só, portanto o papel da metáfora é ser sintética e da comparação analítica, ou como dissemos supra, discursiva ... (Idem, 1983, 91)
Richards apud Filipak (Idem, 1983, p. 97): “insiste que a metáfora é mais
que um material verbal e uma transferência de palavras: ela é um intercâmbio
de idéias...”, e acrescenta com o pensamento de G. Esnault “... sustenta que a
metáfora não é uma transferência de palavras, mas ‘uma intuição que se
transfere”.
No entendimento de Filipak (Idem, 1983, p. 113), a metáfora é: “... a
fonte suprema de expressividade imperiosa da comunicação humana e um
recurso mental rico de expressão.”
Filipak cita o poeta Reverdy, ao se referir à metáfora como criação pura:
“O poeta Reverdy tentou explicar a metáfora sem recorrer a expressões metafóricas: ‘A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação mas da aproximação de duas realidades distintas e apropriadas, a imagem será mais forte - ela será dotada de maior poder emotivo e consistência poética.(REVERDY apud Filipak, 1983, p. 114)
Identifica-se no pronunciamento de Reverdy uma dimensão
psicologizante da metáfora, levando a metáfora acima da comparação, e
pontuando que a formação da metáfora depende de uma tensão, relação,
choque, entre duas realidades.
Segundo Hansen (2006, p. 33), “... Os retóricos antigos [...] costumam
escrever que a comparação atinge a imaginação do leitor através do intelecto,
ao passo que a metáfora o faz através da própria imaginação...” Hansen abre
um espaço interessante para uma avaliação distintiva entre a comparação e a
metáfora.
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Uma das características primárias da comparação é a busca de uma
realidade que se expressa didaticamente, recorrendo a semelhanças próximas,
operando o prolongamento do significado do signo linguístico, estabelecendo
uma parecença entre dois signos e a metáfora trabalha com o transporte de
significado, a partir de um signo aproximado de outro, concretiza-se em
terceiros ou outros significados.
Ramos (2011, p. 91), ao tratar na sua obra a reificação do signo no
contexto da palavra-objeto, faz a seguinte consideração: Como bem antes
observara Raíssa Maritan, as palavras poéticas ‘sendo antes de tudo objetos
(objetos-imagens), elas permanecem mais do que nunca como sinais, ao
mesmo tempo em que objetos, constituindo a matéria do poema.
Nas suas confirmações daquilo que é poético, e em particular no
reconhecimento confuso, Baumgarten (1993, p. 29) destaca neste
reconhecimento a poeticidade da combinação: conhecido desconhecido:
Logo, se for preciso representar coisas admiráveis, a representação, (das mesmas) há de conter certos elementos que provoquem um reconhecimento extremamante poético mesclar habilmente o
conhecido e o desconhecido, nas próprias coisas admiráveis. (BAUMGARTEN, 1993, p. 29)
No que tange à imaginação Baumgarten sinaliza:
Eu sou consciente do meu estado passado e, também sou consciente do meu estado passado do mundo. A representação do Estado passado do mundo e, portanto, também de mim mesmo é representação imaginária (imaginação, imagem, visão). Logo, eu concebo imagens, ou seja, eu imagino. Isto me é possível graças a forma que minha alma possui de representar para si mesma o universo, segundo a posição do meu corpo. (Idem, 1993, p. 72)
Isto é uma marca da consciência poética. O que se coloca em jogo
inclina-se para uma consciência do estado poético, e estas representações
mentais provenientes de um exercício poético, dão conta do universo de
possibilidades, combinações exercidas, resultantes do fazer poético.
Para Meletínski (1987, p. 13), “são singularmente profundas as opiniões
de Vico segundo as quais cada metáfora ou metonímia é por origem um
pequeno mito”. Apesar de a poesia seguir uma espacialidade construtiva,
acontecendo em pequenos espaços, ofusca o pensamento de quem imagina
que na sua pequenez não há uma grandeza.
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Segundo Cara, a expressão lírica participa de um desregramento lógico
e gramatical, propiciando ao leitor uma experiência singular:
Na expressão lírica, portanto, há uma espécie de tensão e luta contra qualquer intencionalidade lógica e gramatical, contra qualquer explicação da emoção e do sentimento. Se a poesia lírica pode ser uma forma de conhecimento é porque ela faz conhecer, no momento da leitura, a própria linguagem, distanciada do hábito e revivida como nova pela invenção poética. (1986, p. 58)
A compreensão da utilização metafórica no texto poético passa por uma
reflexão relacionada com a alegoria. Para o crítico literário Flávio Kothe:
Nos primeiros textos gregos em que a palavra metáfora foi usada ela designava o movimento contínuo em que a pata traseira vai tocar o mesmo ponto deixado pela dianteira. A tradição retórica posterior esqueceu, contudo o caráter dinâmico da metáfora para ficar apenas com a identidade que originariamente, era apenas um átimo tangido por algo diverso, (a pata traseira, não mais a dianteira.). (1986, p. 10)
Kothe, na sua investigação, aponta para a perda das identidades
sígnicas no processo metafórico:
Ao se afirmar que ‘Aquiles é um leão, quer-se dizer que nem o homem é mais apenas um homem, nem o animal é apenas animal. Não só o primeiro termo adquire a identidade do segundo, mas cada um também perde o que não é. Apropriando-se da identidade do outro [...] não há simplesmente um adendo, uma soma, um acréscimo: há uma transformação da própria identidade. Cria-se uma nova identidade composta da união de pólos contraditórios. Esta altera a identidade anterior de cada um dos componentes, assim como na montagem cinematográfica ou literária – também se alterarmos elementos postos em conexão. (Idem, 1986, p. 11)
Como as metáforas estão conscientemente postas no Pentacantos
(1984, p.13). O poeta imprime uma espécie de velocidade na imagem
metafórica proveniente de um estímulo que provavelmente reforça o conjunto
das metáforas criadas no espaço poético, como pode ser visto no primeiro
canto, F. III “Eros é dança”. Esta designação latina que no vocabulário grego
significa cupido, o deus alado do amor, é transportado para a dança,
aparecendo em meio a uma reflexão sobre o nada: “em cada hora, para tudo,
há um nada? / E para o nada tudo sempre avança?
A criação poética em destaque tem uma dimensão que dialoga com o
próprio plano da obra. O surgimento estimulado das imagens que está
destacando pode ser entendido na sua dimensão criacional como um fator
determinado pela sugestão do F. IV (Idem, 1984, p.14): “Caminho / entre
68
escrituras de pés / em praias, páginas / entre róseos / tornolozelos / entre as
pétala / róseas de teus passos” [...].
Uma consciência circula na obra, que chega ao ponto de não só
metaforizar os versos, como também de aparecer na própria nomeação
metafórica, F. V (Idem, 1984, p. 32) “contra as Tróias do estilo”.
No universo das representações metafóricas não se busca um
reconhecimento daquilo que é poético, mas uma avaliação da intensidade da
construção metafórica. Essa intensificação pode ser muito bem percebida no
seguinte verso, pois, observa-se uma altivez no trato dado à imagem
construída, F. VI (Idem, 1984, p.16): “que um dia amanheceu em róseos
dedos”. A cor assume neste universo imagístico um suporte material
formalizador, exemplificado com a palavra “róseos”.
O que não está explicitado imediatamente na metáfora, e aqui se pode
observar a sua condição não instantaneamente reveladora, pode-se atribuir às
suas formulações no transporte dos signos que assumem a partir de um
conjunto, ou seja, campo semântico diferenciado da realidade aproximada,
gerando certo desregramento dos sentidos como pode ser examinado nos
versos, F. VIII (Idem, 1984, p.18): “A eternidade calça os pés nas pedras”.
E da metáfora vai-se à desmetaforização, uma prática que não é
unificada no plano geral da obra, mas que aparece isoladamente, F IX (Idem,
1984, p.19): “A letra não é pluma / O canto é cantochão / -- Clavenário de
ossos”. Este deslocamento metafórico é proposital, pois nos primeiros
momentos desvinculam-se da formação imagética para retornar para o seu
eixo concreto.
É lícito dizer que as metáforas do poeta são representações mentais,
investidas também de certo toque onírico. Imagina-se que outro tipo de
representação pode ser abstraído das combinações, por exemplo, quando o
poeta pretende aproximar opostos: F. X (Idem, 1984, p. 21): “O sono é sono /
-- pluma sobre pedra.”
A imagem poética amplia os horizontes, tanto do autor quanto do leitor.
Esta dilatação fundamenta sua visibilidade por meio de um processo que passa
69
pela razão e depois é desrealizada como se percebe nos versos próprios desta
representação F. X (Idem, 1984, p. 21): “Verbossonante o poema / Concha,
búzio [...] -- prudentíssima poesia – / Sempre a espera que o heróico / verso /
-- seu consorte”.
O mundo representado no Pentacantos, via processo metafórico,
constitui-se numa realidade poética própria, tecido com a própria linguagem e
marcha para a reflexão. Suas indagações são de ordem metalinguística,
quando a voz lírica se expressa nos versos abaixo em que se verifica uma
transposição espacial, F. XII (Idem, 1984, p. 22): Voa na sala uma palavra /
Águia / tímida sílaba a levar [...] / Na Ítaca retangular que o verso mira...
Na descoberta das imagens metafóricas permite-se depreender que as
metáforas como estão postas na obra não configuram unidades isoladas; pelo
contrário, harmonizam-se pela sua indicação imagística F. XIII (Idem, 1984, p.
24) “ e a seta arma / o bote: / palavra sobre a imagem”.
No segundo canto F. I (Idem, 1984, p. 27: “Arde-se navios de ouro na
memória” (...) / Todo ser é linguagem (...) / Onde a poesia desfralda suas
imagens / as imagens”, verifica-se no segundo elemento da metáfora: “ouro”
um indicador, pelo fato de gerar na imaginação do leitor uma imagem
transcendente. O estímulo memorialmente gera todo um conjunto de
referencialidades próprias do imaginário.
A novidade da imagem poética. A leitura destas imagens promove uma
abertura para a interioridade ao inaugurar para o leitor painéis (áreas) a que o
mesmo nunca chegaria se não fosse a leitura destas imagens.
As metáforas utilizadas por Paes Loureiro projetam uma relação
renovada entre os signos, pelo fato de ser um produto da imaginação poética,
F. II (Idem, 1984, p. 29): “[...] Navegação em mar de espelhos, / máscaras de
Deus o sol sorri nas velas... [...] Arco / de azul cavossonante violoncelo, / onde
azuis violam céu [...]”.
Na metáfora posta, encontra-se primeiramente, e logo na primeira
leitura, o “eu lírico” que parece compartilhar de uma diluição constante. Os
sentidos vão deslizando formando uma polissemia diluída, F. IX (Idem, 1984, p.
70
38): De tudo permanece o tempo sendo / em séculos de ser o amor talhado / o
círculo das águas / as vísceras da bússola / a tempestade do mar rompendo
alcovas ...
O exercício de transferência também com certo tipo de afastamento, o
eu lírico ao afastar-se do primeiro significado busca numa trajetória, o conjunto
de outros significados, isso só é possível pela ancoragem em outro termo, o
choque é o resultado de uma representação chamada imagem.
A poesia é transportante pelo fato de ingressar no interior da alma,
gerando permanentes possibilidades sugestivas, prontidão permanente da
essência poética, uma concatenação da atividade metafórica.
As duas zonas transplantadas para outro significado têm a fortalecer o
elemento primeiro a partir da concentração estabelecida pela concretude das
ondas sígnicas presentes nas constantes afirmações. F. XI (Idem, 1984, p. 40):
/ “que o amor é outra Roma em si gerada / tatuagem do verso em seu reverso.
/ A cidade é fundada no poema. / Entre oráculos, metáforas, versos, ruas /
leitores percorrendo estrofes, casas, / nasce a palavra cão e morde o olhar”.
O terceiro canto abre-se com um grande painel poético. O poeta elege
alguns recortes, pensando na possibilidade de poetização sobre temas
específicos, F. III (Idem, 1984, p. 45): “Nós somos o caminho que escolhemos /
[...] E eu sou o caminho aonde passo”. Logo, no primeiro momento do ingresso
neste poema a sensação impressa pelas palavras do poeta é a de uma
permanência em um labirinto, que não gera desconforto, mas uma sensação
amorosa e harmônica entre sentimentos, do eu lírico com o leitor.
Por outro lado, provoca instabilidade, um direcionamento para regiões
mais elevadas da alma, F. IV (Idem, 1984, p. 46) “ – O labirinto é o único
caminho? / Rosa cravada de espinhos ...”
A vista, percorrendo essa construção imagística, solicita um prazer
sensivelmente internalizado pela expectativa encantatória, F. VII (Idem, 1984,
p. 49): “Teu gesto de regência vara o espaço / pássaro lábaro em chamas, /
Tempo / e cujo fogo pira / jaz o amor. / --ave tão ávida -- / Ardido ardendo
arfando / em ofertórios ...”
71
A metáfora tão profundamente elaborada nos corredores da literatura
clássica provoca no leitor um estado de tranquilidade, uma beleza que só é
percebida pelo estímulo provocado pelas palavras, F. VIII (Idem, 1984, p. 51):
‘E sempre o amor / amante amor amaro / rara, raro / inumerável ômega e alfa /
Amor pensado em esperas / Oh! som anterior, orvalho / antes do verbo. [...]
Amor – vogal sem conta / som / consoante sempre / re (u) nascido / na imortal
amada ... / amaro amor amante / ser bifronte.”
Uma metapoesia aparece diligentemente quando o sujeito lírico pretende
engrandecer a infância, F. IX (Idem, 1984, p. 53): [...] “E a Beatriz caminha na
memória / onde em alvas infâncias me banhava” [...]
Percebem-se duas realidades na significação das metáforas: uma de
ordem lógica, outra de natureza intuitiva. A de ordem lógica está ligada à
clareza do resultado metafórico; a segunda aponta para um campo nebuloso,
não percebido imediatamente pelo leitor, necessitando de uma reflexão mais
apurada F. XI (Idem, 1984, p. 56): [...] / “Neste reino de amor / -- poesia – / Um
reino doce amaro”.
No quarto canto, a formação poética parte em alguns momentos do par
conhecido claro - escuro, melhor dizendo, a partir de uma realidade conhecida
para uma camada hermética. Este jogo nem sempre acontece nesta ordem,
por exemplo, nos versos a seguir, verifica-se um movimento inverso do escuro
para o claro, F. II (Idem, 1984, pp. 62,23): “O que me veste o agora /
despescado do rio / Onde navegam / cardumes em meus passos. [...] / Poesia
e cruz: a encruzilhada”.
Identifica-se, em outros versos, uma espécie de valorização apropriada
do signo, teológico-cristão, que solicita ao mesmo tempo uma temporalidade
exemplificada na concentração F. III (Idem, 1984, p. 70): “Por que me
abandonaste / nas palavras / Oh! vós que sois, meu verbo / em minha voz? [...].
No quinto canto, percebe-se no exercício interpretativo dos poemas,
superfície poemática, uma textura linguísticamente apropriada para o
norteamento da carnalidade dos gêneros. Os versos nesta estrofe vão
paulatinamente formando um universo prazeroso numa sequência dicotômica,
72
em que os gêneros são definidos pelos corpos metaforicamente postos:
masculino, feminino, desembocando numa linguagem fortalecida. A
caracterização das semelhanças pode ser entendida pelas aberturas e
envergaduras. O verso não só se fortalece, como também é fruto da
linguagem, F.V (Idem, 1984, p. 72): “Cópulas de consoantes e vogais / o verso
orgasma a página. / Herói em armadura de sentidos / músculos de signos [...]”.
A produção de imagens operada pelo poeta gera uma satisfação,
principalmente se esta imagem constitui-se numa novidade, um meio de clarão
instaurado na imensidão da obra, uma visão nitidamente clara das penumbras
da vida que surge pela busca imaginativa.
A estratégia marcante dessa poesia tecida com imagens e demais
recursos linguísticos, metáforas, pode ser percebida na força deste evento
poético.
A sensação provocada pela captação de uma imagem gera uma
impressão quase que permanente, a instauração de um lugar de permanente
ocupação. O que se impõe nestas metáforas é uma qualidade do dizer, a
maneira como o eu lírico prostra-se diante da criação.
Abre-se aqui um espaço para uma verificação referente à presença dos
sentidos na fabricação de imagens pelo poeta, e a primeira investigada será a
visão. Clássica e internalizada refeita, reinstaurada, renovada ao compasso de
dizer também da Amazônia, o poeta interessado em transmitir esteticamente
uma percepção que pode englobar o clássico ido e a contemporânea Amazônia
luxuriante, bela e degradada, como se verifica nos versos, F. VI (Idem, 1984,
p. 73): “A luz cria metáforas no mar. / Oh! Mar! / Oh! recorrente mar! / Oh! grito
oval azul! / Oh! larga frase líquida / Oceana linguagem!” [...]. É impossível
menosprezar a semântica pluri e plural do verso “Oh! Grito oval azul”.
No processo de redesrealizar operado pela linguagem metafórica, o
poeta propõe visualizar a partir dos signos linguísticos outra realidade,
descortinando outra paisagem sêmico-estético da palavra, F. VII (Idem, 1984,
p. 74): “Negro jaguar / Caminha o infinito. / (...), e um jogo metafórico, F VIII
73
(Idem, 1984, p. 75): “Horizonte de lanças caminhando / bandeiras de alvoradas
desfraldadas / rimas, ecos / o poema invade a página”.
Percebe-se que o primeiro signo, na sua transposição para o segundo,
formaliza propriamente dita a expressão metafórica fortalecida, a prática
subentendida desse jogo que pode ser identificado nos campos semânticos
diferenciados, F. VIII (Idem, 1984, p. 75): “Poesia / silabação de letras face ao
canto / campo de ressonâncias / videossigno / Travessia atravessada / vulva e
falo? [...] / A página invade o poema / ecos rima / desfraldadas alvoradas de
bandeiras / caminhando lanças de horizontes ...”
Por outro lado, no F. X (Idem, 1984, p. 77), percebe-se a construção
metafórica pautada numa combinação verbal e substantiva: [...] “ / Sou corrente
/ [...] os gritos do poente / sobre areias. [...] / sou em sido”.
No F. XI (Idem, 1984, p. 78), entende-se a concretização do jogo
metafórico determinante como peça fundamental dirigente da obra como “que
um cantar recordante preludia, / nesse útero da noite que é o dia”. A
semelhança pousa numa forma nascente.
A imagem é uma realidade pelo fato de, a partir de sua natureza
partícipe de um universo subjetivo, poder levar o leitor a universos não
imaginados e não vivenciados, F. XIII (Idem, 1984, p. 81): “Amor / Oh! A veloz
[...] Estrela do desmaio / Flor de argônio [...] Oh! desmaiado O som voz [...]
Antífona do advento [...] Oh! R língua dental, será do som [...] A sentença do /
réu no fim do amor, / a herança de rei no fim de amar” [...].
Essa prática não é levada a um reducionismo concreto; gera
confirmadamente uma expectativa. A imagem tem uma natureza própria, a de
representar por meio da imaginação uma realidade apreendida por um estado
poético, um tipo de predisposição para este fim, transportado para uma
estrutura, suporte material da poesia que é o verso, mas, mesmo vivenciado,
ou morando nesta espacialidade própria da poesia, não se esgota num único
significado.
Não há aqui imagens nítidas, todas participam de um campo
esfumaçado. Como um lance de dados, as possibilidades emergem a cada
74
leitura, por exemplo, no verso “estrela do desmaio” numa inclinação específica
do espaço imaginado.
Mesmo morando no campo do esfumato esta poesia pretende, ou
intenciona a clarividência dessas imagens tidas como aparato, F. XIII (Idem,
1984, p. 81): “Há o transparente olho / Debruçado na linguagem / A soletrar-se
em brusca de si mesmo. / Em sílabas que a si mesmas soletram” [...].
O verso escrito na porta das imagens que ora nomeamos como formas
de uma memória, refazem o efeito provocado pela percepção destas imagens
como prontidão, pode ser refeito pelo tempo, F. XIV (Idem, 1984, p. 82): “Vozes
de anjo circundam o calendário / Tempo. [...] / Embora apeies na página,
desse cavalo vermelho, [...] Tempo / Ah!, se pudesse domar esse cavalo
amarelo” [...].
Confirma-se nas metáforas certa gradação que vai da esfera terrena a
uma elevação, e por outro lado vivencia as internalizações, raizais da terra, ora
em cima, ora em baixo, F. XV (Idem, 1984, p. 83): “A existência é sempre igual
/ embora o engano? / A gaivota, / as vezes / ai! / volta em albatroz [...] / Ambas
mergulham em alba / gaia, atroz / no amanhecer / que é busca / busca / oh!
busca / eterna busca ...
Essas imagens metafóricas exprimem, em linhas gerais, desde a
primeira percebida no Pentacantos até a última, uma essência poética
particularizada que passa a rever a partir destas palavras finais.
O que aparece nestas metáforas não de imediato, mas de maneira
prolongada como manifestação extensiva sígnica, é a intenção lírica da
proliferação de significados construídos paulatinamente ao longo dos cinco
cantos, numa corrente gradativa e, apesar da sua particularização, dentro dos
cantos.
As metáforas não estão distribuídas aleatoriamente no Pentacantos.
Observou-se neste painel único uma configuração definida na sua propriedade
criativa, apresentando o poema como uma materialidade comunicativa, numa
fixidez sígnica, o signo aprisionado representa o olhar condicionado e
direcionado do produtor desta pesquisa, que no seu recorte, circunscreve a
75
extensão dos significados capturados na rede do tempo, cena imaginada pelo
afetamento do tecido linguístico, remetendo-se a conceitos náuticos,
mitológicos e culturais.
Um tipo específico de metáfora pode ser depreendido pelo fato de várias
metáforas, apresentarem duas fases: a primeira discursiva e a segunda visual.
Isto só pode ser verificado ou absorvido por esta escritura por via de uma
valorização.
Na primeira leitura o que se apresenta teoricamente para o leitor que
não tem em mente a dimensão, como totalidade interpretativa, global do
Pentacantos, é uma ilusão, sensação de ter percebido primeiramente o aspecto
discursivo da linguagem poética.
No processo de aproximação dos signos, há um ganho conceitual,
acréscimo na cadeia sígnica, um tipo de paradigmatização, na sua
verticalidade propensa a gerar signos próprios desta proximidade.
A unidade temática ou conceitual das imagens repousa na unidade
líquida, espaço escolhido pelo poeta, proveniente da estrutura dialógica com as
grandes obras de Homero, Virgílio, e a transcendência em Dante, participa de
outro conjunto, nomeado de espaços transcendentes das imagens metafóricas.
Cada núcleo poético particulariza-se por uma ação-temática. Os
conteúdos concentram-se conforme a circunscrição dos cantos, cada canto
mostra sua funcionalidade demarcada, gerando uma materialidade sígnica
daquele conjunto de poemas.
Encontram-se tempos específicos na temporalidade metafórica. Das
metáforas elencadas neste texto, observou-se que a maioria participa de um
passado, confirmando a essência da poesia como uma recordação energizada.
Observa-se, na organização das metáforas, uma preocupação do poeta,
melhor dizendo, dedicação, para realizar uma espécie de transferência que
pode destacar o aspecto essencial da metáfora, contido na emoção poética.
76
No conjunto metafórico, uma metáfora recebeu atenção particularizada
que se entende como matriz. A metáfora-matriz líquida e viajante está na base
de toda a arquitetura do Pentacantos.
As metáforas não aparecem simplesmente como instrumentalidade
retórica, mas fundamentalmente como referencialidade encantatória. Imagina-
se que essas imagens primeiramente encheram de encantamento os olhos do
poeta.
A possibilidade existencial da poesia no Pentacantos realiza-se por um
complemento constante. A palavra poética promove a extensão do enunciado
poético, na solicitude entendida, um encontro concretizador na própria criação
poética.
A realidade metafórica aparece no Pentacantos como um tipo de
substituição que, ao tomar a mutância como trajeto priorizado pela postura do
poeta, estabelece uma maneira particularizada de dizer, trabalha com esta
atitude referendando o propósito estabelecido, forma de pacto com a
linguagem poética.
No conjunto do Pentacantos, o universo metafórico das imagens é
harmônico pela sugestão poética contida nos fragmentos. Da maneira como as
metáforas estão postas no livro como um prato pronto para ser devorado,
percebe-se que essa forma de ser metafórico deixa a alma do leitor num
estado de expectativa, sem saber em primeira mão qual sensação será
estimulada pelo verso; há uma possibilidade de a poesia conter uma energia
que circula no interior e o leitor também circular no âmago do poema.
Há uma tensão permanente no Pentacantos. Essa forma de expressão é
possível pela revitalização constante que a obra vai sofrendo, não ancorada
numa semântica estagnada, pelo contrário, a cada tentativa de apreensão
imagística novos signos vão projetando-se nas lentes do leitor.
A beleza que o leitor experimenta na observação das imagens contidas
no Pentacantos pode ser observada por vários caminhos como no processo de
criação literária, utilizado pelo poeta, pelo diálogo que o mesmo estabelece
com outros poetas. Essas metáforas não só revelam profundidades sígnicas,
77
como também espelham uma qualidade do belo singular. Os versos passam na
retina do leitor, como luz cinematográfica.
Não foi fácil apreender imediatamente o conteúdo destas imagens. A
referida prática passou primordialmente pela compreensão do Pentacantos
como totalidade e a unidade das partes com fins próprios, este fim é uma
partícula do todo da obra, requerendo um manejo apropriado das partes
sígnicas.
78
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No que tange à organização do Pentacantos, verificou-se nas fórmulas
estéticas utilizadas, ou dos épicos antigos, na elaboração geral dos poemas,
uma retomada da mundividência clássica assentes nas repetições intercaladas
em fragmentos líricos do texto de Paes Loureiro propiciando o diálogo lírico
com o épico, o ontem e o hoje em conjunção. Em cada fragmento de que
Loureiro se apropriou, é flagrante o jogo do mesmo (os clássicos) com o outro
dizer (do Pentacantos), em que o timbre renovador reinstitui o tom das
epopeias antigas na marcação amazônicas, de que se afirma o clássico
contemporaneizado e os elementos do mundo amazônico investidos de novas
vozes clássicas, existência que se manifestou como provocação na elaboração
técnica do poema.
O poeta agiu como arquiteto dos seus versos, com uma proposta
dialogante. Não se trata de uma simples repetição lírica, sua técnica procura
mesclar culturas, no caso, a greco-romana com a amazônida, numa
interligação que potencializa o poético, esse fazer, propiciado pela liberdade da
linguagem estética, mesclando sentimentos líricos atuais com os épicos
modernos, dotando-se a palavra moderno de valores válidos a todos os
tempos. Daí, o greco-romano épico-mítico anterior a Cristo intercruzar-se a
vozes líricas da Amazônia do século XXI.
A poesia do Pentacantos reúne uma travessia de vozes. Os fragmentos
dos livros clássicos atravessam os poemas, mas este atravessar não integra só
o propósito de compor estruturalmente um livro de poesia. O poeta não
atravessou sozinho o seu livro, mesmo quando tenta escrever sua aventura
lírica no V Canto, imprime o intertextual.
O poeta se ateve à epopeia clássica, porém, apossou-se desse discurso
para concretizar o seu projeto poético, que é o de trazer à poesia clássica para
ao seio do universo amazônico.
79
É forte em Pentacantos a ressonância dos versos clássicos, enfim, com
o objetivo de produzir um efeito estético que visa ir ao encontro de tempos,
anterioridade e posterioridade, Antiguidade e Amazônia, o texto poético é
estendido, tendido ao intemporal, ao lócus que engloba o antes, o depois, o lá
e o cá.
O que está registrado no Pentacantos não é o resultado de uma
influência. Formaliza-se numa reescritura poética.
A ressonância é um parâmetro, uma instância que intermedia a literatura
clássica com a poesia gerada na região Amazônia, uma espécie de
reverberação, quando o poeta encontra nos livros de outros poetas uma das
fontes da sua criação e, ao mesmo tempo, um recurso intertextual de
renovação estética.
Os enunciados dos cantos têm uma circunscrição específica. Os versos
articulam-se, agregam-se com um fim determinado, e sua plenitude concretiza-
se no estabelecimento de cada unidade vérsica, como unidade real. Os
enunciados épicos alojam-se nos enunciados líricos, acoplam-se, e são
referendados pela memória e pela subjetividade lírica.
Como se disse, a dualidade poesia lírica-poesia clássica marca a
harmonia dos cantos. E há uma diferença entre a maneira como o poeta leu as
obras clássicas e a maneira como refundiu o lido no enunciado lírico. Na
passagem do lido ao registrado, há uma prática seletiva. O poeta selecionou as
imagens, reelaborou-as em sua poética.
Em suma, no Pentacantos, o épico-mítico da Antiguidade se liga à leitura
da poética amazônica atual.
80
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85
APÊNDICE A
ENTREVISTA COM O POETA JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO12
F O T O: JORGE PAULINO COM O POETA PAES LOUREIRO
Jorge Paulino: Qual é a ideia central do Pentacantos?
Paes Loureiro: A ideia do Pentacantos é de fazer uma recriação na
forma lírica de um percurso do poeta diante da poesia, desde os tempos
imemoriais, caminhando através de exemplos épicos que marcaram essa
trajetória do poeta diante do fazer o poema, de fazer a poesia.
J. P: Explique sobre a relação do poeta com a sua prática.
______________________________
12Entrevista com João de Jesus Paes Loureiro ( Belém,15/04/2004).
86
P. L: Há uma relação do poeta com o fazer poético, tendo como ponto
de contato de referências, grandes epopeias, fazendo a conversão do
sentimento épico num sentimento lírico. Portanto, o poeta que escreve o
Pentacantos, assume o timoneiro das epopéias escolhidas
J. P: Ao fazer uma leitura preliminar do livro Pentacantos percebo uns
fragmentos dos versos de Homero, Virgílio e Dante.
P. L: Pentacantos é um livro construído sobre o alicerce poético de três
grandes epopéias: Odisséia, Eneida, Divina Comédia, na medida em que os
versos são inspirados na atmosfera tópica desses livros.
J. P: O que significa Pentacantos?
P. L: Como é uma grande sinfonia o Pentacantos, o próprio nome já
indica esta conjunção de cantos, e ao mesmo tempo esta ressonância grega,
título, mas, também uma ressonância que remete a uma condição moderna
que é a do canto. Mas, ao criar essa palavra “Pentacantos”, cria-se na verdade
um conceito, ou seja, um livro que na verdade é um longo poema, dividido em
cinco cantos, mas eles todos são uma coisa só, assim como a palavra título:
livro, sintetiza ou sintetiza-se se quiser melhor.
J. P: Qual é a singularidade do Pentacantos?
P. L: Uma das originalidades eu pelos menos cito é o diálogo do lírico
com o épico, que é outro tema que esse livro propõe, não ostensivamente, mas
propõe na sua estrutura.
Pode-se muito bem estudar o diálogo entre o lírico e o épico, pela forma
como os poemas, temas líricos, aqui tem uma relação de ressonância com o
poema épico que lhe serve de âncora, de motivação, eu digo, de motivação
ontológica do que propriamente uma motivação de caráter puramente de
citação, é mais profunda a relação.
A relação é o diálogo entre seres, o ser épico grego e o ser lírico
brasileiro contemporâneo, com isso eu repito, quer dizer a exegese do poema,
o acrescentar de notas, que desdobrem explicitem, sugiram, alegorizem esta
relação enriquecerá muito a leitura do Pentacantos, porque na verdade
87
colaborarão para que o leitor também por sua vez enriqueça, abra a sua
percepção poética desse longo conjunto de cantos.
J. P: O conhecimento do leitor, referente às obras clássicas poderá
enriquecer a leitura do Pentacantos?
P. L: Eu me lembro, por exemplo, um livro, disto acontece e por assim,
esta intuição de que este tipo de conhecimento enriquece a leitura. Tenho uma
edição dos quatro quartetos do Eliot, onde as notas no final, nesse mesmo
sentido que eu estou sugerindo, elas enriquecem maravilhosamente a leitura,
quando você retorna a leitura do poema.
J. P: Como vê o seu livro em relação à outras obras e a aproximação
cultural?
P. L: Partindo do lugar de pertencimento abri-se o seu vôo para um
alcance universal não apenas no sentido de leitura, mas no sentido de
incorporar mesmo, de dialogar com a poesia da tradição épica, lírica ocidental
e com o pensamento universal. Esse foi um traço que procurei a partir de uma
certa época imprimir na minha poesia a reflexão poética e cultural, esse
desconfinamento dos temas locais, numa relação de paralelismo de integração
de ultrapassamento, com o chamado temas universais.
J.P: Pensou em fazer anotações, como nota de rodapé?
P. L: Encontro nesse livro a principal materialização desse pensamento
no plano exemplificativo, porque é claro nesse sentido.
Lamento que não tinha deixado mais explicito, em notas ou até talvez no
título, o que seria uma sugestão, um guia para o leitor, acho que nessa
situação é muito importante e é provável que o livro tenha sido recebido como
uma forma de abstração intenso, e exigindo de um leitor mais culto na tradição
poética ocidental a possibilidade de compreensão das intenções do livro.
J.P: Pode destacar algum episódio que antecedeu a publicação do
Pentacantos.
P. L: Realmente hoje concluo que havia necessidade de um
procedimento mais indutor de compreensão daquilo que o livro compunha, e
88
propõe, porque tem um caráter de inovação muito grande, aproveito essa
circunstância, esse diálogo para poder deixar isso bem claro.
Foi editado pela Roswitha Kemp, e é uma coisa interessante, essa
referencia eu havia recebido o prêmio nacional de poesia pela publicação do
Altar em Chamas, através da editora Civilização Brasileira, e tinha sido vendida
para editora portuguesa Bertrand, que até hoje ficou com o nome de Bertrand
do Brasil.
A Bertrand queria manter o seu elenco de autores e fez uma seleção
muito pequena de autores brasileiros, principalmente aqueles que tinham uma
venda já bastante garantida, e mais no campo do ensaio, da antropologia, da
política, da sociologia, um pouco de romance, muito menos de poesia.
Paradoxalmente após os três livros que a Civilização havia publicado:
Porantim, Deslendário e Altar em Chama, tendo recebido o maior prêmio de
poesia com esse terceiro, estava sem editora.
A entrega do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APC),
sempre ocorre no Teatro Municipal de São Paulo, e na entrega do Prêmio,
fiquei sentado na platéia e ao meu lado sentou-se uma mulher já madura, muito
elegante, com ar estrangeiro, ficou do meu lado, e naquela conversa natural
dessas horas, uma vez que estávamos naquele setor da platéia reservado aos
premiados, ela me perguntou qual era o prêmio que iria receber, se era de
poesia.
Ficou satisfeita, me cumprimentou, e me disse que estava recebendo o
prêmio como editora daquele ano.
A cerimônia começou, fomos chamados ao palco para receber os
prêmios e ficamos lá, porque a idéia era que no final fossemos fotografados na
ribalta do palco.
Lá mesmo no palco ela recebeu primeiro, porque os prêmios mais
importantes para autores ficava para o final, quando recebi o prêmio ela já
estava ao lado do palco na coxia, nos bastidores. Então fui lá falar com ela.
89
E daí houve uma recepção, sentamos coincidentemente lado a lado, e
ela perguntou como é que eu ia ficar, porque a Civilização tinha sido vendida
para a Bertrand, disse que não sabia.
Ela me disse: -- “ Olha se você tiver algum livro inédito que queira me
enviar eu posso analisar a possibilidade de publicar pela nossa editora”. Fiquei
muito feliz porque a Roswitha Kemp Editora, era nesse tempo uma das mais
prestigiadas, não pelo tamanho da editora, mas pela qualidade do seu elenco e
pela qualidade das publicações e por ser uma editora que se dedicava muito a
publicar poetas, publicar poesia.
Fiquei extremamente feliz, disse que tinha um trabalho pronto e era
exatamente Pentacantos. Ao chegar em Belém enviei pra ela os originais, ela
imediatamente aprovou, e foi a primeira publicação de uma série minha que ela
fez, com muito cuidado, tinha um carinho pela minha poesia, inclusive
organizou uma lançamento na própria casa dela, lá no Broklin, uma casa muito
bonita, fez uma coisa muito carinhosa, um coquetel, convidou escritores,
críticos para o lançamento, estava presente, claro, o Fábio Lucas, que foi o que
fez o prefácio da obra.
O Pentacantos é muito curioso, teve uma oportunidade assim, cheia de
mistério, porque é uma coincidência em cima de uma coincidência.
Para receber o prêmio do Altar em Chamas ter sentado na platéia do
Municipal no lado de uma editora que também estava sendo premiada.
J.P: Qual é a diferença existente entre conversão semiótica e
intertextualidade?
P.L: Pela conversão semiótica tenho uma mudança de natureza do
signo e se aplica a qualquer tipo de relação transformadora dessa obra,
enquanto que a intertextualidade é na verdade um entrecruzamento de sentido
dos textos, não é a conversão de algo em outro. Mas é na verdade o diálogo
estabelecido entre eles.
No caso da conversão semiótica, se muda a natureza. Por exemplo, diria
que a motivação poética é através de poemas épicos para fazer poemas líricos,
90
faço uma conversão semiótica porque tenho uma mudança essência, do épico
para o lírico.
Embora devo salientar que não é um desentranhar do épico, trechos
líricos, não. Na atmosfera emocional suscitada pelo épico, ou por trechos
dessas epopéias, criar poemas líricos que manifestem essa relação dialogal.
J. P: Fale um pouco sobre a estrutura do Pentacantos, ou melhor, o
plano da obra.
P. L: O Pentacantos, ele está dividido em cinco partes, o nome
Pentacantos é bem indicador.
A primeira parte é inspirada, tem um diálogo, momentos líricos com a
com a Odisséia de Homero, o segundo canto tem diálogos com momentos da
Eneida de Virgílio, o terceiro ele tem um diálogo com a Divina Comédia do
Dante, o quarto canto que seria um intermezzo, o entrecruzamento de temas
mitológicos das epopéias pagãs, com a mitologia amazônica, é um canto
intermediário de passagem e finalmente o quinto canto, onde além de alusões
ao Lusíadas, é a epopéia do poeta construindo o poema.
Partindo de um diálogo com grandes epopéias, o Pentacantos no último
canto, é digamos assim, a epopéia do poeta com as palavras, com a
construção do poema. Essa é que é a estrutura do Pentacantos.
Por conseguinte é uma estrutura que você pode ler sem essas
referências, e fica uma leitura muito abstrata, que precisa de uma pessoa que
tenha uma iniciação poética, o gosto pelo poema para poder curtir.
Se você tem essas informações com relação a essas epopéias, é
evidente que acrescenta-se a emoção da leitura daqueles poemas uma
substância poética complementar.
Na Odisséia temos o retorno do Ulisses, busca de Penélope, da cicatriz
na coxa, quer dizer, são momentos pontuais, que a mim, me emocionaram, não
estou querendo fazer uma revisão lírica do poema, estou extraindo do poema
situações poéticas que me emocionaram para construí-la duma forma lírica,
91
quer dizer, em vez de tomar a realidade como ponto de partida, tomo essas
epopéias.
Teria que rever um pouco o livro pra poder situar melhor isso. No caso
da Eneida o episódio de Dido, é um episódio que parece claramente definido,
outras coisas não são episódios específicos, mas, são atmosferas decorrentes
do poema, e assim por diante no caso da Divina Comédia, as voltas na escada
ascendente, são marcantes como no caso do inferno. Enfim, teria que dar uma
olhada em cima disso pra poder ver diretamente.
Voltando a questão desse diálogo atual.
Esse tipo, por exemplo, de leitura intensiva de uma intensificação dos
sentidos do poema exigirá a presença de notas de pé de página.
J. P: Na época que o Pentacantos foi publicado, esses aspectos da obra
foram percebidos, e no conjunto da sua obra existem outros livros que
destacam algum tipo de diálogo?
P. L: Acho que plenamente não, porque talvez nele isso não estivesse
muito claro, também não queria fazer uma coisa clara, queria que pudesse ser
percebido pelas alusões feitas em cada um dos cantos.
Depois de algum tempo refletindo melhor, acho que deveria ater usado a
estratégia, por exemplo, que usei recentemente no Do Coração e suas Amaras,
quer dizer, cujas notas no final do livro intercorrentes a leitura do poema.
Você pode ler o poema sem uma procura do significado de certos
trechos no final nas notas, ou pode ler dialogando com as notas, é o que
chamo de intensificação do sentido poético, porque você vai penetrar no outro
nível de significação que um leitor erudito entraria espontaneamente, ninguem
tem obrigação de erudição poética, faz assim por um trabalho de pesquisa, não
necessariamente por um trabalho. Digamos de memória erudita da poesia, não
é fruto de minha experiência poética, fui buscar nos autores coisas que me
lembrava, coisas que intencionalmente queria encontrar para estabelecer um
diálogo com esses autores.
92
Não é por acaso que estou me lembrando Do Coração e suas Amarras,
poema mais recente, porque ele mantem essa linha, essa minha visão de um
diálogo com a tradição lírica, diálogo com a poesia contemporânea, ao mesmo
tempo uma universalização do pensamento particular, e realizando essa
localização dos poemas no ambiento puramente da cultura literária, são dois
livros o Pentacantos e o Do Coração e sua Amarras.
Poderia citar um livro de uma realização um pouco ainda inexperiente
nesse campo que foi o Cantigas de Amar de Amor e de Paz, são digamos
livros que procuram caminhar no território puro da poesia mesmo, dialogando
com outros versos, com outros poemas, com atmosfera da criação literária
épica e lírica, quer dizer, são livros que tem nesse aspecto uma relação muito
grande com aquilo que se chamaria poesia pura, essa poesia que se remete a
si mesma, ou que se remete a outros poemas, a uma tradição lírica ou
ocidental.
Creio que se fizer uma reedição do Pentacantos, exclusivamente dele.
Tenho o desejo de fazer essa indicação das referências poéticas que estão
semeadas ao longo do texto e cujo reconhecimento creio que será vantajosa
para o que chamo de intensificação de leitura poética do Pentacantos.
J. P: Há um trabalho especial com a linguagem?
P. L: A linguagem do Pentacantos, é uma linguagem que retomo o gosto
pela musicalidade dos versos, pelo caráter sonoro do encadeamento das
palavras. Comparo o Pentacantos como uma sinfonia poética, orquestrada em
cinco partes, e até a denominação que usei é uma alusão a epopéia e ao
mesmo tempo a música, o primeiro canto, o segundo canto, terceiro canto, o
quarto canto e o quinto canto, como se fosse parte alusiva a epopéia e partes
alusivas a uma sinfonia. Há um caráter sinfônico, há um entrelaçamento de
poemas que se desdobram ao longo dos versos e que vão se espraiando, se
multiplicando, através de cada um desses cantos que são partes dos poemas.
O quarto canto tem um lugar estratégico do livro, porque há uma
transição da tradição épica ocidental para a amazônica, não só para a
Amazônia, mas para o poeta na luta dele mesmo com as palavras, com a
93
construção poética consigo mesmo, é a épica do poeta diante da palavra, o
quinto canto, que é preparado pelo quarto canto.
J. P: O que está proposto pelo quarto canto?
P. L: O quarto canto é um intermezzo, transição, há um poema que é a
lenda de Orfeu que se cruza com a lenda do Tambatajá, é um cruzamento de
lendas grega e outra amazônica que reforça junto com outros pequenos
poemas do intermezzo que é o menor dos cinco cantos. É mesmo uma
transição, mas ele acentua em todos eles esse caráter de miscigenação, de
hibridização ou de passagem.
Venho caminhando por uma tradição épica ocidental, com o estímulo de
outros poetas, pela sugestão de outros poemas, redimensiono e misturo tudo
isso,miscigeno tudo isso, no quarto canto que é o intermezzo, e o quinto canto
já é a liberdade pessoal do poeta trabalhando o poema com a sua épica
pessoal, e termino o livro sempre no sentido de busca, o poema termina com
um apelo a busca, e ao tempo, que é sempre constante na minha poesia de
modo geral.
Mas nesse livro é acentuada a presença do tempo, da cogitação sobre a
passagem e atuação do tempo.
J. P: Observo a sua preocupação com relação a construção da obra,
mas vejo no Pentacantos, uma intensificação do seu processo de criação
literária. Por que seleciona esses três clássicos. Pensou primeiramente no
Homero, foi trabalhando, depois os outros clássicos foram aparecendo
P. L: Veja bem, já tinha lido esses autores, antes de sair para o
mestrado em Campinas, isso por volta de 1970. Durante o curso de mestrado,
fiz algumas disciplinas que me fizeram reler essas epopéias, e relê-las
circularmente, foi na releitura dessas obras, já intercorrentes com a reflexão
sobre elas, é que me foi surgindo a motivação da construção desse livro com
se fosse uma expressão poética paralela a uma compreensão crítica intelectual
acadêmica desses poemas que escrevi esses poemas do Pentacantos, nesse
período que estava lá em Campinas fazendo o mestrado.
94
Daí, porque eles são muito carregados de uma intertextualidade, com
essas epopéias e marcados por uma poética muito abstrata quase que
deslocada do tempo e do espaço, no âmbito puramente da linguagem, e tendo
como uma espécie de erudição lírica decorrente exatamente da visão dessas
obras.
Inclusive no final do primeiro canto, faço uma pequena alusão ao Ulisses
do Joyce. Quer dizer o primeiro canto tem toda uma elaboração em torno do
Ulisses do Homero, mas há uma pequena alusão no final , a cena quando o
personagem do Joice esta lendo jornais, sentado numa latrina.
No fundo, também queria puxar um certo impacto, uma certa
surrealidade de imagem, aproximando esses tempos também.
Agora tens de compreender que são situações que você explica ou fica
difícil para a pessoa perceber, porque não quis fazer poemas que pudessem
encaminhar a leitura do leitor ou didatizar a leitura, por isso deixei incluído
como se fosse na verdade fatos do conhecimento do leitor.
O livro saiu com um nível de erudição lírica exigente para quem lê,
porque apela para que o leitor pudesse fazer a coleta dessas referências que já
fizesse isso de memória.
E que noto também, é o seguinte: os interpretes da obra literária, eles
também se deixam levar por certas motivações culturais, e as vezes não se
espera que um poeta de uma pequena cidade de Belém, dentro da Amazônia,
possa trabalhar os poemas num nível de diálogo com a literatura ocidental, ou
com a poesia, intenso e profundo.
A leitura às vezes dos nossos livros, às vezes é uma leitura um pouco
despreocupada dessas significações.
Às vezes você vê determinados autores, pelo nível que alcançam.
J. P: Houve algum impedimento por parte de alguma instituição, para
que sua obra não fosse divulgada?
95
P. L: Sempre houve, suponho, a maior intensidade e publicação,
coincidente, assim com um período assim muito negro da história do Brasil, da
Amazônia, porque foi em pleno ditadura, que já havia a restrição, a censura
estabelecida nas universidades, por exemplo, obras de autor como eu não
entrava nos programas , nem em vestibular, pelo próprio medo que as pessoas
tinham e pelo próprio impedimento, que a censura da ditadura impunha.
Já havia um recuo das instituições oficiais nas escolas, alguns
professores trabalhavam poemas meus, quase de uma forma clandestina.
A minha obra até 1970, foi muito prejudicada pela limitação que a
censura impunha como autores como eu, e a minha preocupação era
exatamente demonstrar para as pessoas que a minha poesia nunca foi de
caráter engajado, como se diz, tive que lutar contra o preconceito relativo a
cultura local, e o preconceito relacionado com uma poesia que tinha uma
temática que expressava uma realidade cultural, e a incompetência de muita
gente que mistura os temas, misturas as coisas, que não sabe fazer a
diferença entre poema temático, poema cultural, entre poema engajado,
colocado todos no mesmo saco.
De qualquer maneira foi uma fase difícil, de afirma de um conceito
poético, tanto que não me confinei, de ficar apenas na posição de poemas,
enveredei também pela teorização, porque como sei que cada obra poética
contém uma teoria poética implícita, quis saber explicitar não apenas aquilo
que era minha produção poética, concepção poética da literatura e da vida,
como também refletir sobre a poesia, pensar a sua relação com a cultura e daí
para refletir sua cultura amazônica foi um passo, onde procurava pelo lado
teórico científico demonstrar o nível de valor que essa cultura tem, coisa que já
tinha procurado trabalhar poeticamente nos meus poemas, quer dizer, uma
explicitação do valor e da riqueza simbólica dessa cultura aparecia
naturalmente na poesia motivada por isso, uma poesia que não queria ser
regionalista nunca no sentido de confinamento do seu entendimento.
Sempre entendi minha poesia como um ponto de partida dessa riqueza
simbólica da cultura amazônica para elencar uma dimensão universal, não
estava inventando, mas é o que João Cabral, Raul Bop, Drummond, é o que
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fez o Vinícius a partir do Rio de Janeiro, é que fez o Mário de Andrade de São
Paulo, todos eles fizeram uma poesia localizada, a partir de um lugar de
enunciação de uma fala, e quando você estuda todos esses autores não os
confina em regionalismos. Mas, no caso da Amazônia, por uma má
compreensão, muitas vezes você estuda uma forma localizada obras que
nasceram nessa realidade mas não tem nenhum sentido de regionalismo.
J. P: De que maneira a sua obra foi recepcionada pelos críticos
literários?
P. L: O Benedito Nunes é bem claro no prefácio que ele faz no livro
quando ele diz que em um certo momento eu optei por um aprofundamento da
cultura amazônica para fazer uma poesia que não é regionalista, mas uma
poesia que ele chama de “nativismo moderno”, a partir da conceituação do
Raul Bop.
O nativismo moderno é um nativismo que enraizado numa cultura não se
confina nela, ele se abre para outras realidades.
A compreensão da minha poesia de uma forma mais aberta e o sentido
que procurava imprimir nela, acabou vindo assim, primeiro de fora, é o caso do
Mário da Silva Brito, que reconheceu, falava que minha poesia, era uma poesia
que criava uma outra fase na literatura na Amazônia, na medida em que era o
homem que passava a ser o centro da questão poética, não a natureza, que
era o que prevalecia até então na tradição da região, era uma poesia que
incluía cidade, vinha do campo para a cidade, e a cidade passava a ser sua
temática, o que fazia com que segundo ele, Mário da Silva Brito, eu tivesse
iniciado a modernidade na poesia amazônica, a modernidade assumida nas
características que se reconhece na modernidade, e o Mário da Silva Brito é
considerado o maior historiador do modernismo brasileiro, e isso ele fez, essas
resenhas sobre a minha poesia, na Isto é, e na Civilização Brasileira.
Antes do Mário da Silva Brito, Octavio Ianni veio aqui em Belém, viu
minha poesia, levou-a e sugeriu a publicação na Civilização Brasileira, e fez
questão de prefaciar o livro Porantim, assumindo a sua postura diante da
minha poesia e que depois fez com que ele escrevesse um prefácio para as
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obras reunidas de iniciativa dele também, onde analisando as obras
globalmente situa minha obra no plano de uma obra cultural, com significações
sociais, antropológicas, filosóficas, equivalente a que fez, por exemplo: Cezar
Valhero, cita explicitamente lá no Peru, o Neruda na fase do Residence La
Terra, o próprio Eliot, cita também, tratou-a com uma certa dignidade, a minha
poesia, no sentido de estabelecer um diálogo com que ele achava merecedor,
com aqueles grandes corpos poéticos.
A minha obra poética não é de outros livros, é de um corpo poético que
tem várias fases, que tem uma significação buscada além das suas origens.
Depois você vai ter o reconhecimento do Moacyr Félix que fez,
empenhado em publicar a minha poesia pela Civilização Brasileira, fez orelhas
de livros onde ele fala seu ponto de vista, o próprio Enio Silveira.
Você tem mais recentemente o Joaquim Brasil, quando ele faz o prefácio
Do Coração e suas Amarras.
Lá na Alemanha pessoas fizeram teses sobre a minha poesia
encontrando paralelismos entre o modo de tratar o mito e o modo de tratar o
mito por Peirce, que nunca imaginei, na poesia dele.
Estou citando alguns exemplos de memória, mas de situações que
deram um mergulho na minha poesia com tanta dignidade.
O Fábio Lucas, conhecedor profundo, fez vários prefácios, escreveu em
revistas literárias sobre a minha poesia, e sempre aplicando aquela erudição
dele, e com muito conhecimento da poesia.
O Álvaro Alves de Farias, também fez trabalhos sobre a minha poesia,
algumas coisas que estou lembrando de memória, mas sempre na verdade
deslocados dessa relação de proximidade, esses intérpretes ai de fora, deram
um mergulho em que há de valorização temática, simbólica e cultural, que
digamos durante um tempo, não mais recente, mas na época crucial da minha
obra, ela não foi bem percebida, porque há um certo distanciamento da
intelectualidade local, da sua própria realidade, do seu próprio tema, um
distanciamento que no meu entender traduzia uma falta de conhecimento
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dessa realidade cultural, em segundo lugar um preconceito com relação à ela,
e uma rejeição a essa possibilidade de uma riqueza significativa, em algo que
era rejeitado, enfim, uma clássica submissão aos modelos de fora, ficar de
joelhos, admirando as realidades de fora sem na verdade refletir sobre sua
realidade, e, criar a partir dela, enfrentando os riscos da criação, mas buscando
algo que tivesse uma originalidade.
J. P: Na capa temos a impressão de uma intemporalidade.
P. L: A capa foi bolada pela Roswita Kemp, como era Pentacantos, ela
pegou cinco colunas gregas, ela isolou as colunas, num fundo azul, então deu
uma coisa assim, intemporal, cinco colunas, pentacantos, cinco cantos. Ela de
certa maneira essa alusão clássica do poema, o tempo todo na sua primeira
parte procede esse percurso do clássico para o contemporâneo, que está no
livro.
J. P: A composição do Pentacantos foi fragmentada?
P. L: Eu sempre gosto de compor os livros de forma íntegra, poucas
vezes eu fiz poemas separadamente, sempre de forma harmônica, pra mim o
livro é um objeto de arte poética íntegra, integral, todas as partes se
relacionam. Então, quase a totalidade, não é a totalidade, mas a maior parte da
minha obra, ela tem essa estrutura integradora dos poemas, dentro de uma
concepção de objeto maior que é o livro.
Pra mim, o livro de poesia é um objeto poético, em que os poemas
dentro dele, estão contidos como parte de um todo, que se interrelacionam,
que dialogam entre si, e seu conjunto forma uma significação maior.
J. P: Percebo na feitura do Pentacantos vários níveis de interpretação, e
a força do mito.
P. L: O Pentacantos, portanto, ele tem essa complexidade. Eu diria que
ele tem vários níveis de significação: ele tem um nível de significação imediato
que é o da leitura decodificando o que está escrito; você tem o nível da
significação da tradição da poesia ocidental, por essas relações de ressonância
existentes, mas uma intertextualidade ideológica, digamos uma
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intertextualidade poética não propriamente de linguagem, mas sim, de um
ethos poético; você tem as camadas de significações culturais, e que você
pode situar o poema no seu tempo, na história da poesia e numa da cultura
ocidental que evoluiu até chegar na modernidade, finalmente você tem nesse
poema um ícone, espelho do percurso mesmo do estilo poético da Grécia à
modernidade, atravessando canto por canto.
Porque também os poemas do Pentacantos, eles começam bastante
míticos até o intermezzo, aí eles se convertem no outro mito, no mito da
palavra, no mito da linguagem, mito do fazer poético, que está contido no final
dos fragmentos do V Canto.
São todas essas camadas de significação que percorrem o poema e que
estrutura esse poema, e que lhe dão essa densidade que eu falava no começo,
de poder ser entendido como uma leitura, poderá ser cada vez mais
enriquecida na medida em que o trabalho de exegese for realizado sobre esse
pequeno livro.