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    PRIMEIRA PARTE

    Para um Conceito de Poltica:

    Trabalho, Interao, Estratgia

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    1. H. Arendt: a vida ativa e a concepo aristotlica da poltica

    Hannah Arendt, especialmente emThe Human Conditione Between

    Past and Future,1

    expe sua distino, inspirada no pensamento grego daescola socrtica e particularmente em Aristteles, entre trs dimensesconsideradas fundamentais davita activa, ou trs atividades humanas bsicas. No original em ingls de A Condio Humana, tais atividades sodesignadas comolabor, work e action; prescindindo de qualquer querela quese poderia talvez criar em torno da forma apropriada de se traduzirem para o portugus as duas primeiras expresses, utilizarei simplesmente os termoslabor, trabalho e ao para corresponder respectivamente a cada umadaquelas palavras inglesas. Eis como a prpria autora nos introduz s trsdimenses, logo nas primeiras pginas deThe Human Condition:

    O labor a atividade correspondente ao processo biolgico do corpohumano, cujo crescimento, metabolismo e decadncia final, a se processaremespontaneamente, acham-se vinculados s necessidades vitais produzidas eintroduzidas no processo vital pelo labor. A condio humana do labor a prpriavida. O trabalho a atividade correspondente ao carter no natural da existnciahumana, que no se encontra imersa no ciclo vital sempre recorrente e cujamortalidade no por este compensada. O trabalho produz um mundo artificialde coisas, que se diferencia marcadamente de todo e qualquer meio natural. Cadavida individual abrigada dentro das fronteiras desse mundo, embora ele estejadestinado a sobreviver e transcender a todos os indivduos. A condio humana dotrabalho a mundanidade (worldliness).

    A ao, a nica atividade a ter lugar diretamente entre os homens sem amediao das coisas ou da matria, corresponde condio humana da pluralidade,ao fato de que so os homens, e no o Homem, que vivem na Terra e habitam o

    mundo. Embora todos os aspectos da condio humana estejam de alguma formarelacionados poltica, tal pluralidade especificamente a condio no apenas aconditio sine qua non, mas tambm aconditio per quam de toda vida poltica.2

    1 Hannah Arendt,The Human Condition, Chicago, The University of Chicago Press, 1958 (9impresso 1975); e Hannah Arendt,Between Past and Future: Eight Exercises in Political Thought , Nova Iorque, Viking Press, 1968 (traduo brasileira, Entre o Passado e o Futuro, SoPaulo, Perspectiva, 1972).2 Arendt, Human Condition, pp. 7-8.

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    A cada uma dessas dimenses, Arendt faz corresponder certaconcepo do homem, descrito seja comoanimal laborans, comohomo

    faber ou como zoon politikon. O primeiro estaria aprisionado fatalidadedas necessidades biolgicas e ao carter a um tempo cclico e de resultadosnecessariamente fugazes da atividade destinada a atend-las. aqui,relativamente ao labor, que encontramos mais claramente a idia do trabalhohumano (tomada a expresso no amplo sentido corrente) como sujeio,condenao ou alienao, como algo de cujo jugo seria necessrio aohomem em alguma medida escapar para que possa pretender ascender a umavida propriamente humana, enquanto distinta da mera sobrevivncia animal,e na qual os produtos de sua atividade no estejam destinados aodesaparecimento imediato atravs do consumo e de sua incorporao aos processos biolgicos ligados preservao fsica do indivduo e da espcie.

    J com ohomo faber , por seu turno, trata-se do homem como

    fabricante de objetos de qualquer natureza, os quais contrastam com osresultados da atividade do homem comoanimal laboranspor sua capacidadede durar e conseqentemente de constituir um mundo artificial e, como tal, propriamente humano. Estamos aqui, em princpio, diante de uma maneirade conceber o trabalho humano em geral em que ele se mostra antes comoexteriorizao e autoprojeo do que como alienao e sujeio noobstante o potencial de alienao contido na reificao dos produtos daatividade humana que de certa forma define mesmo o trabalho dohomo faber . O fazer do arteso ou do artista, que domina umatechnestabelecida e com as regras e medidas vlidas nessa arte particular produzum objeto a ser utilizado ou desfrutado, constitui o exemplo por excelncia.3

    3 Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 152.

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    tema da autoridade. Ele consiste em mostrar as dificuldades deparadas pelo pensamento clssico grego, e por Aristteles em particular, ao pretender introduzir um ingrediente de poder ou autoridade no domnio pblico e na

    vida da polis, dificuldades estas correspondentes incongrunciafundamental que tal tentativa requer de Aristteles. Pois a concepoaristotlica da polis(na qual, segundo Arendt, Aristteles no faz mais doque articular a opinio pblica grega da poca)6 assenta-se na distino bsica entre uma esfera pblica (a prpria polis) e a esfera privada oueconmica do lar (oika). E o fundamento crucial dessa distino resideem que a polis a comunidade de homens iguais e livres precisamente por se constituir na reunio de patriarcas ou tiranos privados: a diferenaessencial entre a comunidade poltica (a polis) e uma casa privada (aoika)est em constituir esta uma monarquia, o governo de um nico homem,enquanto a polis, ao contrrio, composta de muitos governantes.7 Taisgovernantes, os patriarcas que se estabelecem como monarcas em casaantes de se juntarem para constituir o domnio pblico-poltico da cidade,8

    tm em sua prpria posio de monarcas privados o fundamento da liberdadeque lhes garante o acesso aos negcios pblicos e a dedicao a eles. Poisera a comunidade familiar, aoika(cuja relao com a idia de economia,como se sabe, est longe de ser acidental), que se ocupava em manter-seviva como tal e enfrentar as necessidade fsicas (...) inerentes manutenoda vida individual e garantia da sobrevivncia da espcie.9 Por outras palavras, era a, na comunidade familiar, onde se congregavam os escravos eos familiares controlados patriarcalmente, que se executavam o labor e otrabalho e se criavam assim as condies para o domnio da necessidade

    6 Entre o Passado e o Futuro, p. 158.7 Ibid., p. 158.8 Ibid., p. 158.9 Ibid., pp. 158-9.

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    e o acesso liberdade por parte do cidado da polis. Como sintetiza Arendtem passagem que merece ser transcrita pela maneira esclarecedora em queculmina no paradoxo acima destacado,

    O domnio sobre a necessidade tem ento como alvo controlar asnecessidades da vida, que coagem os homens e os mantm sob seu poder. Mas taldomnio s pode ser alcanado controlando os outros e exercendo violncia sobreeles, que, como escravos, aliviam o homem livre de ser ele prprio coagido pelanecessidade. O homem livre, o cidado da polis, no coagido pelas necessidadesfsicas da vida nem tampouco sujeito dominao artificial de outros. No apenasno deve ser um escravo, como deve possuir e governar escravos. A liberdade nombito da poltica comea to logo todas as necessidades elementares da vidatenham sido sujeitas ao governo,de modo tal que dominao e sujeio, mando eobedincia, governo e ser governado, so pr-condies para o estabelecimento daesfera poltica precisamente por no fazerem parte de seu contedo.10

    Dificilmente se poderia exagerar o interesse dessa formulao, queencerra em poucas palavras o paradoxo da organizao scio-polticaateniense e o ponto de partida de inmeras concepes influentes na histriado pensamento poltico, includas algumas que nos estaro interessando de perto. O que tem de surpreendente, luz dos manuais correntes de cincia

    poltica, a idia de que as experincias de governar e ser governado so pr-condiesda poltica ealheiasao seu contedo mesmo patente e encerrauma singular dignificao da esfera poltica em que a ao desenvolvida em pblico atravs de um processo de comunicao livre entre iguais passa a ser constitutiva dela, ou seja, em que liberdade e igualdade passam a integrar a prpriadefinioda poltica. No menos claro, porm, como esse lado brilhante da concepo aristotlica da polisse assenta numa desigualdaderadical, supondo a violncia e a sujeio dos escravos e da famlia e fazendodo reino da poltica, para recorrer ao conhecido paradoxo de Orwell, noexatamente o reino dos iguais, mas dos mais iguais, isto , daqueles que

    10 Ibid., p. 159; grifos de FWR.

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    renem, atravs da violncia contra os demais, as condies para seisentarem das necessidades associadas ao labor e ao trabalho e para surgiremem pblico como aptos para a comunicao desimpedida e para a ao

    prprias desta esfera.

    Naturalmente, constatado o paradoxo e a contradio inerentes concepo, duas opes so possveis. A primeira, que se querer realista,mas de um realismo cujos limites se evidenciaro adiante, correspondetalvez, em suas formulaes mais banais, perspectiva dos manuais decincia poltica acima aludidos. Ela envolve a substituio da definioigualitria e libertria da esfera poltica que prope Aristteles por outra emque se reconhece e afirma com nfase o papel exercido pelas relaes de poder e dominao como constitutivas da poltica: poltica antes de tudo poder, e portanto tem a ver com relaes assimtricas ou de desigualdade. Asegunda postura possvel incorpora a denncia da desigualdade e daviolncia em que se baseia a auto-imagem libertria da democracia

    ateniense, sem, contudo, jogar fora, por assim dizer, a criana com a gua do banho. Se critica a concepo aristotlica da polis, ela no deixa de enxergar seu lado brilhante, e a crtica se dirige vigncia restrita dos valores que aconcepo afirma, dadas as condies que exigiam que a escravizao deuns fosse o requisito para a liberdade de outros. Reconhecendo o ingredientede poder e dominao contido na distino aristotlica entre a esfera do pblico e a do privado, esta segunda perspectiva assinala nisso algo problemtico e dispe-se a explorar as conexes do problema a deparadocom a questo da emancipao do homem da generalidade dos homens face necessidade e sujeio correspondentes a sua condio biolgica es contingncias da organizao coletiva do labor e do trabalho, comosubstrato para o desenvolvimento da ao. Tratar-se-ia, enfim, de indagar

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    sobre as condies para a expanso da esfera poltica nos termos do prprioAristteles tal como lido por Arendt, ou seja, da esfera da liberdade e daigualdade, do acesso fala, ao e histria participao, na

    linguagem mais convencional de nossos dias.

    2. J. Habermas: trabalho e interao. A crtica a Marx e a tipologia das

    cincias

    Algumas das mesmas intuies bsicas que vemos discutidas por Hannah Arendt com base na distino entre as diferentes dimenses da vitaactiva vamos encontrar retomadas e reelaboradas em Jrgen Habermas. Naverdade, Habermas reconhece explicitamente seu dbito para comThe Human Condition, de Arendt, cujo estudo (juntamente com o deWahrheit und Methode, de Hans-Georg Gadamer) teria sido responsvel por atrair suaateno sobre a distino aristotlica entre tcnico e prtico e suaimportncia capital.11 A essa distino ele atribui mesmo o papel de fio

    diretor em suas reflexes, no plano da histria do pensamento, sobre os problemas centrais de que se ocupa emTeoria e Prtica12 e, poder-se-iaacrescentar, em sua obra em geral.

    Abrindo mo do matiz introduzido e elaborado por Arendt com adistino entrelabor e work , Habermas estabelece, contudo, uma distinofundamental que perfeitamente paralela distino aristotlica recm-mencionada e contraposio que se pode fazer, em Arendt, entre o planoda ao ou praxis, por um lado, e o do trabalho em geral, por outro. Taldistino encontra-se formulada de maneira explcita em seu ensaio Tcnica

    11 Jrgen Habermas,Thorie et Pratique, Paris, Payot, 1975, 1o. volume, p. 105, nota 5.12 Ibid., p. 34.

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    e Cincia como Ideologia13 ,onde posta em termos de trabalho einterao. Nas palavras do prprio Habermas:

    Entendo por trabalho ou ao racional-intencional ( purposive-rational action) seja a ao instrumental, seja a escolha racional, seja a combinao deambas. A ao instrumental governada por regras tcnicas baseadas noconhecimento emprico. Elas implicam, em cada caso, predies condicionais sobreeventos observveis, fsicos ou sociais, predies estas que podem se revelar corretas ou incorretas. O comportamento de escolha racional governado por estratgiasbaseadas no conhecimento analtico. Elas implicam dedues com baseem regras de preferncia (sistemas de valores) e procedimentos de deciso, e as proposies correspondentes podem ser deduzidas de maneira correta ou incorreta.A ao racional-intencional realiza fins definidos em condies dadas. Mas, ao passo que a ao instrumental organiza meios que so apropriados ou inapropriadosde acordo com o critrio de um efetivo controle da realidade, a ao estratgicadepende apenas da avaliao correta de possveis escolhas alternativas, que resultado clculo ou deduo feita com o auxlio de valores e mximas.

    Por interao, de outro lado, entendoao comunicativa, interaosimblica. Ela governada por normas consensuaisrevestidas de obrigatoriedade,as quais definem expectativas recprocas de comportamento e devem ser entendidase reconhecidas ao menos por dois sujeitos agentes. As normas sociais so impostasatravs de sanes. Seu significado objetivado na comunicao que se d atravsda linguagem corrente. Ao passo que a validez das regras tcnicas e das estratgiasdepende da validez de proposies empiricamente verdadeiras ou analiticamentecorretas, a validez das normas sociais se funda apenas na intersubjetividade dacompreenso mtua das intenes e se garante pelo reconhecimento geral dasobrigaes. A violao de uma regra tem conseqncias diferentes conforme o tipo.O comportamentoincompetente, que viola regras tcnicas ou estratgias vlidas,condena-se por si mesmo ao fracasso; a punio , por assim dizer, inerente a suarejeio pela realidade. O comportamentodivergente, que viola normasconsensuais, provoca sanes que se relacionam com as regras de maneira apenasexterna, isto , por conveno. A aprendizagem de regras de ao racional-intencional nos fornecehabilidadesouqualificaes( skills), ao passo que ainteriorizao de normas nos dota deestruturas de personalidade. As qualificaesnos capacitam para resolver problemas; as motivaes nos permitem seguir normas.14

    13 Esse ensaio existe em traduo brasileira, feita por Zeljko Loparic, em W. Benjamin, M.Horkheimer, T. W. Adorno e J. Habermas,Textos Escolhidos, So Paulo, Abril Cultural, 1975.Tambm de fcil acesso a verso em ingls, sob o ttulo Technology and Science asIdeology, encontrada emToward a Rational Society, Londres, Heinemann, 1971 (reimpressoem 1977). Essas duas verses apresentam algumas ligeiras diferenas, e tomaremos adiantesobretudo a verso inglesa.14 Toward a Rational Society, pp. 91-2.

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    Essa distino encontra correspondncia em certas formulaesconhecidas de Marx, cuja inspirao aristotlica em diversos pontos deinteresse para as questes que nos ocupam destacada tanto por Arendt

    quanto por Habermas. Mas ela serve a Habermas, ao mesmo tempo, como ponto de referncia para assinalar e criticar em Marx certa indeciso ouambigidade de conseqncias importantes e para fundar uma concepoauto-reflexiva da teoria da sociedade que se pretende capaz de superar asdificuldades encontradas por Habermas no pensamento de Marx. Taisdificuldades tm a ver, em ltima anlise, com a falta de convergncia e aomesmo tempo a interdependncia (que Marx procurou em vo apreender,segundo Habermas, na dialtica entre as foras produtivas e as condies de produo)15 entre a expanso de um saber tcnico e a idia do acesso daespcie humana a uma conscincia de si no distorcida pela ideologia. Asanlises mais explcitas de Habermas a respeito encontram-se provavelmenteemConhecimento e Interesse, particularmente no captulo III.16 A seevidencia (com recurso aosManuscritos Econmico-Filosficos,

    Introduo Crtica da Economia Poltica, aosGrundrissee mesmo aoCapital ) como Marx oscila, ao tratar de apreender o processo deautoconstituio da espcie humana na histria da natureza, entre duas posies. De um lado, um postulado cientificista que privilegia o ponto devista da atividade instrumental, da produo e do trabalho, e que v aautocriao da espcie como algo que se cumpre to logo o sujeito social seemancipa do trabalho necessrio e toma lugar como que ao lado do processo de produo ou como mero supervisor dele, o que se torna possvel pelo carter cientfico que essa produo adquire.17 A autoconstituio pelotrabalho social concebida,ao nvel das categorias, como processo de15 Cf. Jrgen Habermas,Connaissance et Intert , Paris, Gallimard, 1976, p. 89.16 Ibid.17 Ibid., pp. 79 e seguintes.

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    produo, e a atividade instrumental, o trabalho no sentido dc atividade produtiva, designa a dimenso na qual se move a histria da natureza.18 Deoutro lado, porm, encontra-se igualmente com clareza a concepo segundo

    a qual a transformao da cincia em maquinaria no tem de maneiraalgumaipso factopor conseqncia a liberao de um sujeito totalconsciente de si e em controle do processo de produo. Segundo esta outraverso, a autoconstituio da espcie no se cumpre somente no contexto daatividade instrumental do homem face natureza, mas ao mesmo tempo nadimenso das relaes de poder que determinam as interaes dos homensentre si.19 Assim, ao nvel de suas pesquisas materiais, (...) Marx semprese apia sobre uma prtica social que compreende o trabalhoe a interao(...).20

    Por contraposio s ambiguidades de Marx, atribuveis a seuempenho em estabelecer a cincia do homem em sociedade sobre o modelodas cincias da natureza e em fundar uma cincianatural do homem,

    Habermas que v a uma tentativa tingida de positivismo21

    buscavincular a teoria da sociedade a uma teoria do conhecimento que comea por distinguir decididamente entre o contexto tcnico e o prtico e associa a essadistino uma teoria da comunicao competente. Esta, em conexo com acorrespondncia que vimos anteriormente estabelecer-se entre o contexto prtico ou da interao e a ao comunicativa (referida fala, linguagemcotidiana), baseia-se na suposio de uma situao ideal de discurso, aqual, por sua vez, se caracterizaria por corresponder comunicao pura,suspensos todos os constrangimentos da ao e envolvendo mesmo a ruptura

    18 Ibid., p. 85; grifo de Habermas.19 Ibid., pp. 83-4.20 Ibid., p. 85; grifo de Habermas.21 Ibid., p. 79.

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    com o contexto normal da prpria interao (que, com seu carter prtico,incluiria necessariamente certa premncia de decises, ainda que fosse possvel despoj-la inteiramente dos critrios ou ingredientes caractersticos

    do fazer ou do "tcnico). Ademais, a situao de comunicao puraenvolveria, em grau extremo, algo que seria em princpio prprio docontexto da interao como tal, a saber, o fato de que os participantes do processo de comunicao se consideram mutuamente como sujeitos. Comoformula Thomas McCarthy na introduo edio americana deA Crise de Legitimao, de Habermas, essa suposio envolve a idia de que cada participante presume, com respeito ao outro, que ele sabe o que faz e porque o faz; (...) que ele mantm intencionalmente as opinies que mantme segue intencionalmente as normas que segue, e que capaz de justific-lasdiscursivamente se necessrio.22 Assim, a cada comunicao enunciada,quer se refira existncia de certo estado de coisas (o que teria a ver com odiscurso terico) ou correo ou validez de certa norma (o quecorresponderia ao discurso prtico), se aplicar sempre a expectativa de que

    venha a ser discursivamente justificada.

    Mas como, atravs do discurso, saber se uma alegao efetivamentese justifica? Naturalmente, o acordo ou consenso a nica resposta possvel,e, dado que existe a possibilidade de falso consenso (isto , de consensoresultante seja de coero ou de manipulao), a nica sada para o dilemaleva a buscar os critrios do verdadeiro consenso e da prpria verdade naestrutura mesma de comunicao, de tal forma que possamos estar segurosde que a fora do melhor argumento ser a causa nica do resultado da

    22 Cf. Thomas McCarthy, Translators Introduction, em Jrgen Habermas, Legitimation Crisis,Boston, Beacon Press, 1975, p. xiv.

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    discusso, em vez de constrangimentos acidentais ou sistemticosimpostos a ela.23 Nos termos de McCarthy,

    a estrutura isenta de constrangimentos quando existe, entre os participantes, umadistribuio simtrica de oportunidades para selecionar e empregar atos dediscurso, quando existe efetiva igualdade de oportunidades para assumir papis nodilogo. Em particular, todos os participantes devem ter igual oportunidade deiniciar e perpetuar o discurso, de manifestar-se, questionar e dar razes contra ou afavor de proposies, explicaes, interpretaes e justificaes. Alm disso,devem ter as mesmas oportunidades para expressar atitudes, sentimentos, intenese assim por diante, bem como para ordenar, objetar, permitir, proibir etc. Essasexigncias se referem diretamente organizao da interao, uma vez que libertar o discurso dos constrangimentos da ao s possvel no puro contexto dainterao. Em outras palavras, as condies da situao ideal de discurso devemassegurar no apenas discusso ilimitada, mas tambm discusso livre de todoconstrangimento resultante de dominao, quer sua fonte seja o comportamentoestratgico consciente ou barreiras comunicao enraizadas na ideologia e naneurose.24

    bastante claro o elemento ideal ou utpico presente em taisconcepes, elemento este que o prprio Habermas reconhece no quedesigna como o carter contrafatual do modelo da situao ideal dediscurso ou da ao comunicativa pura. Sabemos que as aesinstitucionalizadas no se ajustam normalmente a essemodelo de aocomunicativa pura, apesar de que no podemos evitar proceder contrafatualmente como se os modelos correspondessem realidade nessafico inevitvel se assenta o carter humano do intercmbio entre homensque ainda so homens.25 O modelo da situao ideal de discurso outra coisano seno o ideal da sociedade radicalmente transparente e democrtica, ao

    qual se contrapem, no plano das sociedades concretas e

    23 Ibid., p. xvi.24 Ibid., p. xvii.25 Jrgen Habermas, Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der KommunicativenKompetenz, em J. Habermas, e N. Luhmann,Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie?,Frankfurt, 1971, p. 120; citado conforme McCarthy, Translators Introduction, em Habermas, Legitimation Crisis, pp. xiv e xv.

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    institucionalizadas, os mecanismos que asseguram a distoro sistemticado processo de comunicao e que correspondem s ideologias. D-se aquium processo circular no qual a pretenso de que as normas podem ser

    justificadas se apia em vises do mundo legitimadoras, a validade dasquais, por sua vez, se sustenta numa estrutura de comunicao que exclui aformao de vontade atravs do efetivo intercmbio discursivo. [A]s barreiras comunicao que transformam em fico a imputao recprocade capacidade de autojustificao (accountability) sustentam ao mesmotempo a crena legitimadora em que se baseia a fico e que a impede de ser desvendada. Essa a proeza paradoxal das ideologias, cujo prottipoindividual a perturbao neurtica.26

    Assim se esclarece ou surge, pelo menos, mais nitidamente como problemtico um ponto em que se tocou de passagem acima, quandovimos Habermas, ao tentar contrapor e aclarar em Marx respectivamente o papel da atividade instrumental e o da interao, aproximar esta ltima das

    relaes de poder . De resto, a ambigidade das relaes entre interao(comunicao, linguagem) e poder expressamente tomada e elaborada por Habermas em Lgica das Cincias Sociais, onde se distinguemlinguagem, trabalho e domnio e se destaca que a linguagem tambm um meio de domnio e de poder social, ou um instrumentoideolgico.27 Segundo interpretao proposta por Jean-Ren Ladmiral emLe Programme pistmologique de Jrgen Habermas, o que temos que,no plano conceitual, a interao e a linguagem tendem a se confundir,enquanto a referncia dominao, ao lado do trabalho e da linguagem, noindica um terceiro quase-invariante, mas as condies de fato scio-26 Ibid., p. 120; citado conforme McCarthy, ibid., p. xv.27 Veja-se Jrgen Habermas, Logica delle Scienze Sociali, Bologna, Societ Editrice Il Mulino,1970, especialmente pp.261-63.

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    histricas de uma restrio atividade comunicacional que convmsuperar.28 esse desgnio de superao das restries ou distoresimpostas comunicao que Habermas v como consistindo no interesse

    emancipatrio a guiar as cincias crticas, a saber, o marxismo, entendidocomo crtica da ideologia, e a psicanlise cuja aproximao com o primeiro (despojada tambm a psicanlise do que Habermas considera comoa viso cientificista que teria o prprio Freud de seu trabalho)29 deimportncia decisiva para as concepes epistemolgicas de Habermas e para o alcance crtico e poltico que a elas se associa.

    Para elucid-lo, tomemos a tipologia habermasiana das cincias. O primeiro caso o das cincias emprico-analticas, com relao s quais no parece haver qualquer problema quando referidas distino entre o tcnicoe o prtico, entre trabalho e interao: sem pretender separar de maneiraestrita diferentes campos concretos do conhecimento em termos dasorientaes metodolgicas que tm a ver com essa distino (pois dentro das

    prprias cincias sociais, por exemplo, como destacado por Habermasmesmo, podemos encontrar orientaes diferentes nesses termos), tratar-se-ia aqui, em princpio, de disciplinas ou orientaes movidas pelo interessetcnico e referidas ao modelo da atividade instrumental ou do trabalho. Aomarco de referncia da interao, entretanto, correspondem dois tipos decincias, as cincias histrico-hermenuticas e as cincias crticas, o queacarreta ambigidades e certa fluidez. Com efeito, as cincias histrico-hermenuticas so guiadas por um interesse que visa a manter e estender aintersubjetividade da compreenso entre indivduos, elas se encontram

    28 Jean-Ren Ladmiral, Le Programme pistemologique de Jrgen Habermas, introduo aHabermas,Connaissance et Intert , p. 24.29 Veja-seConnaissance et Intert , esepcialmente o captulo 11, La Mcomprhension Scientistede la Mtapsychologie par Elle-Mme.

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    voltadas para a possibilidade de consenso entre sujeitos que atuam noquadro de uma concepo de si que lhes vem da tradio.30 Como destacaLadmiral, esse interesse denominado prtico corresponde sem dvida

    racionalidade comunicacional da interao que se constitui no fundamentoda idia de prtica (...) oposta tcnica.31

    Ora, no que concerne s cincias crticas, da mesma forma, o interesseque se acha em jogo busca realizar (mais precisamente, como observaLadmiral, restabelecer) a racionalidade comunicacional da interao. Isso sedaria, na crtica da ideologia e na psicanlise, atravs da auto-reflexo emque coincidem, num contexto eminentemente comunicacional e de dilogo,conhecimento e interesse cuja unidade se confirma numa dialtica que, a partir das marcas histricas do dilogo reprimido, reconstri aquilo que foireprimido.32 Essa auto-reflexo tem, por assim dizer, uma dupla dimenso:de um lado, a de uma retrospeco reflexiva (expresso que utiliza Ladmiral, para, no entanto, a meu ver equivocadamente, negar-lhe importncia na auto-

    reflexo habermasiana)33

    em que se leva algo anteriormente inconsciente ase tornar consciente,34 atravs da reconstruo do reprimido; e, de outrolado, a da antecipao dos resultados de uma teraputica bem sucedida ou deuma emancipao a auto-reflexo, quando bem sucedida, resulta numconhecimento que satisfaz no apenas s condies de uma discusso queresponde aos critrios deverdade(ou de exatido), mas, alm disso, s da

    30 Jrgen Habermas, La Technique et la Science comme Ideologie, Paris, Gallimard, 1973-1975; citado conforme Ladmiral, Le Programme pistemologique de Jrgen Habermas, p. 23.Vejam-se tambm, por exemplo, Jrgen Habermas, Conhecimento e Interesse, em Benjamin eoutros,Textos Escolhidos; e Habermas,Thorie et Pratique, volume I, pp. 39 e seguintes.31 Ladmiral, Le Programme pistemologique de Jrgen Habermas, p. 23.32 Habermas, La Technique..., citado conforme Ladmiral, Le Programme pistemologique deJrgen Habermas, p. 23.33 Ladmiral, ibid., p. 23.34 Habermas,Thorie et Pratique, volume I, p. 52.

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    exigncia deautenticidade(...). Uma interpretao verdadeira garante aomesmo tempo ao sujeito a autenticidade de formulaes que at agoratinham sido iluses (...). Os critrios de autenticidade no se deixam

    verificar seno nos contextos de ao. A comunicao por excelncia, aquelaem que as deformaes das estruturas de comunicao podem ser superadas, a nica a permitir verificar ao mesmo tempo pela discusso a pretenso verdade e a pretenso autenticidade (ou elimin-la se ela injustificada).35

    Seria possvel, assim, uma interpretao tal como a adotada por Ladmiral, segundo a qual

    ...a oposio entre cincias histrico-hermenuticas e cincias crticas nodesignaria seno dois aspectos das mesmas cincias humanas. A tipologiaepistemolgica de J. Habermas, assim, no seria seno a ttulo provisrio umaclassificao das cincias em trs ramos. O lugar dasGeisteswissenschaftennessaclassificao no seria mais que residual, e elas deveriam ser retomadas numa perspectiva crtica. As cincias crticas designam, portanto, menos um terceirogrupo de cincias propriamente dito do que uma alternativa progressista s cinciashumanas tradicionais.36

    A verdadeira diferena entre cincias histrico-hermenuticas e cincias crticasdiria respeito ento ao que denominamos a sobredeterminao poltica daepistemologia geral proposta por J. Habermas: aquelas estariam marcadas por umcoeficiente de conservadorismo e estas ornadas de uma aurola revolucionria, ouao menos progressista. A epistemologia das cincias humanas reproduziria aambigidade da idia de prtica, a um tempo depositria de uma heranatradicional e portadora de uma antecipao emancipatria .37

    Contudo, essa interpretao no parece inteiramente consistente com

    certos enunciados de Habermas a serem encontrados na introduo edioalem de 1971 deTeoria e Prtica. Tais enunciados, em confronto com ainterpretao acima, introduzem matizes no pensamento de Habermas que se

    35 Ibid., p. 53.36 Ladmiral, Le Programme pistemologique de Jrgen Habermas, pp. 25-6.37 Ibid., p. 24.

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    mostram relevantes face a certos pontos a serem considerados adiante. Comefeito, na introduo mencionada Habermas certamente mantm, por umlado, a concepo da crtica como caracterizada pelo fato de que ela

    integra conscincia que tem de si mesma o interesse que comanda seuconhecimento, e isso sob a forma de um interesse emancipatrio que superao interesse de conhecimento tcnico e o interesse prtico.38 Mas, por outrolado, a discusso que a se faz do estatuto das cincias emprico-analticas edas cincias hermenuticas no apenas aproxima esses dois campos demaneira que se mostra curiosa quando comparada com a oposio maisntida entre eles a ser encontrada em outros textos,39 mas tambm pareceenvolver e isto mais importante uma avaliao do papel cumprido por aquelas cincias no processo de conhecimento do social em geral, bem comodos interesses a elas correspondentes, que proibiria a atribuio, nos termosde Ladmiral, de um carter residual s cincias histrico-hermenuticas, e permitiria ver pelo menos como simplificao a contraposio rgida entre ascincias criticas e as demais em termos de conservadorismo e progressismo.

    Assim, observa Habermas, os objetos das cincias emprico-analticas e das cincias hermenuticas tm por fundamento as objetivaesda realidade que realizamos cotidianamente, seja do ponto de vista damanipulao tcnica ou do ponto de vista da compreenso intersubjetiva.40

    Os interesses correspondentes a esses dois domnios

    ...derivam (...) de imperativos scio-culturais que tm a ver com a forma de vida ese ligam ao trabalho e linguagem. Esta a razo pela qual os interesses deconhecimento prtico e tcnico no so elementos diretores da cognio que seja

    38 Habermas,Thorie et Pratique, volume I, p. 40.39 Veja-se, por exemplo, Conhecimento e Interesse, em Benjamin e outros,Textos Escolhidos,especialmente pp. 295 e seguintes.40 Habermas,Thorie et Pratique, volume I, p. 39.

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    necessrio suprimir em nome da objetividade do conhecimento, mas definem, aocontrrio, o aspecto sob o qual a realidade objetivada e se torna por isso mesmoacessvel ao conhecimento. Trata-se, para sujeitos que falam e atuam, dascondies de possibilidade necessrias a toda experincia que se queira objetiva. Aexpresso interesse tem na verdade por objeto o de indicar a unidade do meiovital no qual se insere a cognio: formulaes dotadas de valor de verdade serelacionam a uma realidade que objetivada, isto ,ao mesmo tempodescoberta econstituda como realidade, em dois contextos de experincias ativas diferentes; ointeresseque se encontra na base de tal objetivao instaura uma unidade entre essecontexto de constituio ao qual o conhecimento se liga de maneira reflexiva e aestrutura das utilizaes possveis do conhecimento.41

    Habermas faz seguir essas proposies de uma seo dedicada, naoportunidade da nova edio da obra citada, apresentao sinttica da

    maneira pela qual sua postura metodolgica pode ser delimitadarelativamente a quatro atitudes concorrentes, a saber, o objetivismo dascincias do comportamento, o idealismo caracterstico da hermenutica dascincias sociais, o universalismo pretendido pela teoria global de sistemas ea herana dogmtica da filosofia da histria. Retomaremos, a propsito dediferentes aspectos de nossa discusso, alguns dos pontos destacados por Habermas nessa seo. Registre-se agora somente que as proposies acima

    transcritas parecem claramente interpretveis como um reconhecimento dascincias emprico-analticas e hermenuticas, ou das orientaes que lhescorrespondem, como momentos legtimos do processo pelo qual se tornaeventualmente possvel chegar a conhecer a realidade social e humana,reconhecimento este que no seno a conseqncia de outro, isto , o deque os interesses prtico e tcnico que se associam a elas so momentosnecessrios da constituio daquela realidade e este, por sua vez, um ponto de partida e um fio diretor das reflexes de Habermas.

    41 Ibid., p. 40.

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    analisar de maneira apropriada um complexo, isto , a decomp-lo em seuselementos, e que com a insistncia retrica sobre a unidade da produo ouda praxisse trataria antes de marcar posies do que de esclarecer os

    problemas.43

    Habermas tem certamente razo nessa resposta: diante da realidadehistrica complexa e multifacetada, a tarefa do conhecimento impe que seanalise e distinga. Contudo, no que diz respeito especificamente s relaesentre trabalho e interao, tanto a crtica tal como apresentada na passagemem questo do posfcio de Habermas quanto a resposta deste situam-se emcerto nvel que no esgota o alcance do problema. Com efeito, trata-se a daconstatao de que as sociedades histricas organizam socialmente suasatividades produtivas, de que estas se desenvolvem sempre em determinadoquadro institucional. Para retomar as expresses utilizadas na abertura do pargrafo anterior, a idia seria propriamente a de que a dimensocomunicacional ou de interao propicia ocontexto, dentrodo qual o

    trabalho, a atividade estritamente instrumental capaz de eficcia tcnica,se desenvolve.

    Mas a mesma crtica pode ser lida, ou formulada, em sentido mais profundo (e mais analtico, precisamente). Neste sentido, o que a crtica prope me parece quase totalmente ausente do campo de viso de Habermas,apesar de ter ramificaes ou conseqncias da maior importncia para o papel por ele atribudo distino entre trabalho e interao e para asligaes entre teoria do conhecimento e teoria da sociedade. Refiro-me ao problema de at que ponto as prprias caractersticasintrnsecasdo trabalhoenquanto atividade instrumental, racional e capaz de eficcia tcnica so43 Ibid., p. 344, nota 27.

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    dependentes do carter ou aspecto social e comunicacional das aeshumanas, ou (para evitar a sugesto de determinismo em certa direo)vinculam-se inextricavelmente com esse aspecto.

    Seria possvel, sem dvida, fazer certa leitura do problema, mesmoformulado nesses termos, que o diluiria numa proposio genrica algo banalse apreciada do ponto de vista em que nos situamos no momento: a de que, para diz-lo de maneira reminiscente de Rousseau, tudo o que especificamente humano social, carter social este que teramos fatalmentede encontrar,a fortiori, naquelas atividades do homem carregadas da marcade nobreza que se associa a qualificativos tais como eficiente eracional (ainda que se trate de uma racionalidade que algum umHabermas se disponha a considerar como meramente tcnica). Veremosadiante que essa proposio, na verdade, contm implicaes que a tornamde suma importncia em outro contexto. Mas o que se pretende sugerir a estaaltura so alguns pontos bem mais especficos e precisos, que tm a ver com

    os estudos de Piaget mencionados anteriormente.

    Com efeito, os trabalhos de Piaget no campo da epistemologiagentica e da psicossociologia da inteligncia tm como verificao central ado estrito paralelismo existente entre o processo de desenvolvimentointelectual e o processo de socializao gradual do indivduo. Oestabelecimento da relevncia de tal paralelismo para a proposio que aquise sustenta relativamente aos vnculos entre trabalho e interao supe,naturalmente, que aquilo que Piaget trata em termos de desenvolvimentointelectual corresponde ao que Habermas tem em mente quando se refere aotrabalho e ao instrumental. Ora, a eficcia tcnica associada noohabermasiana de trabalho e de instrumentalidade da ao envolve

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    expressamente certa concepo de racionalidade que o que fornece aHabermas a justificao para colocar aquela noo em correspondncia comas cincias emprico-analticas, e outra no essa racionalidade seno a

    prpria lgica formal aplicada ao mundo emprico (veja-se a caracterizaode trabalho ou de ao racional-intencional anteriormente transcrita). Pois bem: Piaget v nas operaes lgicas a culminao de um processo dedesenvolvimento que pode ser descrito como envolvendo duascaractersticas bsicas: (1) a transposio para o plano simblico deoperaes que so em primeiro lugar operaes concretas; (2) essatransposio contm como requisito ou contrapartida indissocivel, e queconcorre mesmo para defini-la, o fato de que, por assim dizer, tais operaesse coletivizam e surgem propriamente como o resultado de um processode co-operao.

    Se se adota provisria e artificialmente um ponto de vista estritamenteindividual (como o faz o prprio Piaget em As Operaes Lgicas e a Vida

    Social, por exemplo),44

    pode-se dizer resumidamente, com Piaget, que algica um sistema de operaes, isto , de aes tornadas ao mesmo tempocompostas e reversveis. Raciocinar , com efeito, reunir ou dissociar,segundo encaixes simples (adio ou subtrao) ou mltiplos (multiplicaoou diviso), trate-se de classes (reunio de objetos segundo suassemelhanas), de relaes assimtricas (seriao de objetos segundo suasdiferenas ordenadas) ou de nmeros (semelhanas e diferenasgeneralizadas) . , pois, efetuar sobre os objetos as aes mais gerais possveis, material ou mentalmente, e agrupando estas aes segundo um princpio de composio reversvel45 .Piaget mostra como o estdio

    44 Jean Piaget, As Operaes Lgicas e a Vida Social, em Jean Piaget, Estudos Sociolgicos,Rio de Janeiro, Forense, 1973.45 Ibid., pp. 172-3.

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    correspondente s operaes lgicas propriamente ditas precedido por todauma srie de etapas regularmente percorridas no desenvolvimento doindivduo.

    Tais etapas comeam com as funes sensrio-motrizes iniciais, emque, antes mesmo de qualquer linguagem, as estruturas perceptivas emotrizes so suficientes para levar a descobrir os esquemas do objeto prtico permanente, da organizao espacial dos deslocamentos prximos(com idas e vindas), da causalidade e do tempo elementares,46esquemasestes cuja organizao, sem ser estruturalmente comparvel ao pensamentoconceitual posterior, o anuncia entretanto do ponto de vista funcional econstitui assim uma espcie de lgica dos movimentos e das percepes.47

    Em seguida, entre os dois e os sete anos, as aes efetivas do perodo precedente se duplicam de aes executadas mentalmente, isto , de aesimaginadas, dirigindo-se s representaes das coisas e no mais somenteaos objetos materiais mesmos.48 A forma superior deste pensamento

    representativo ou figurativo o que Piaget denomina pensamentointuitivo, que consegue, aos 4-5 e 7-8 anos, evocar configuraes deconjunto relativamente precisas (seriaes, correspondncias, etc.), masunicamente a ttulo de figuras e sem reversibilidade operatria.49

    Piaget destaca o fato de que, como caracterstico da transio queocorre de qualquer das etapas a outra, a passagem da inteligncia sensrio-motriz ao pensamento figurativo ou intuitivo significa a passagem de umaforma de equilbrio inferior das aes a uma forma superior. Assim, o

    46 Ibid., p. 173.47 Ibid., p. 174.48 Ibid., p. 174; introduziu-se ligeira modificao na traduo.49 Ibid., p. 174.

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    pensamento intuitivo, por contraste com a inteligncia sensrio-motriz, aoinvs de deter-se no que dado atualmente percepo e ao movimento,ultrapassa o atual por meio de antecipaes e de reconstituies

    representativas.50

    Mas, comparado ao equilbrio prprio da fase seguinte, oequilbrio realizado pelo pensamento intuitivo permanece instvel eincompleto, pois carece de reversibilidade: assim que a criana de 5-6anos poder fazer corresponder seis fichas vermelhas a seis fichas azuis econsiderar estas colees como iguais quando esto sob a vista, mas no crmais na sua equivalncia desde que se afastem os elementos de uma dasfileiras: no h, pois, conservao do todo, por falta desta reversibilidadeelementar que faria compreender ao sujeito a volta configurao inicial por uma operao inversa do afastamento das fichas.51

    Aos 7-8 anos, pelo contrrio, as aes efetuadas mentalmente, que so os julgamentos intuitivos, alcanam um equilbrio estvel, definido pelareversibilidade e constituindo assim o comeo das operaes lgicas mesmas.Reunir ou dissociar, seriar num sentido ou noutro, fazer corresponder, etc.,adquirem, pois, a posio destas aes componveis e reversveis que permitem aantecipao e a reconstituio, no mais somente pela imagem ou intuio, mas pela deduo necessria. Donde a grande descoberta que marca, na criana, ocomeo do pensamento operatrio: a conservao de um todo (de um conjunto deelementos ou de uma quantidade de lquido, de massa para modelar, etc.) quaisquer que sejam as transformaes internas efetuadas sobre as partes.52

    Mas as operaes no so ainda compreendidas, entre 7 e 11 anos, a no ser noterreno concreto, isto , quando a deduo se acompanha de manipulaes efetivasou imaginadas. As operaes constituem efetivamente, v-se, a forma de equilbrioterminal do pensamento intuitivo, pois se apiam ainda, elas mesmas, emmovimentos reais ou possveis. Aos 11-12 anos, em compensao, sua

    simbolizao termina, no sentido de que podem ser efetuadas pelo sujeito no planodas simples hipteses verbais: a lgica das proposies sucede finalmente lgicadas operaes concretas.53

    50 Ibid., p. 174.51 Ibid., p. 174-5.52 Ibid., p. 175.53 Ibid., p. 177.

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    Piaget conclui salientando que, mesmo na forma de lgica das proposies, em que se trata de operaes hipottico-dedutivas referidas a puras implicaes enunciadas na qualidade de supostos, a lgica permanece,

    em sua essncia psicolgica, um sistema de aes virtuais. Ou a linguagemno seno puro psitacismo, ou anuncia uma transformao possvel do real,e o sistema dessas transformaes, compostas, reversveis e associativas,que anuncia toda a lgica e toda a matemtica elementar.54 Odesenvolvimento da lgica , assim, uma passagem progressiva da aoefetiva e irreversvel operao ou ao virtual e reversvel. Pode-se, pois,interpretar a lgica como a forma de equilbrio terminal das aes, forma deequilbrio para a qual tende toda a evoluo sensrio-motriz e mental, porque no h equilbrio seno na reversibilidade.55 As condies desseequilbrio esto dadas com preciso na estrutura do agrupamento lgico,de que Piaget se ocupa em diversos textos. Elas so, segundo Piaget, quatrono caso dos grupos de natureza matemtica e cinco no dosagrupamentos qualitativos, e vale talvez a pena apresentar aqui a

    formulao sinttica que delas faz Piaget em Psicologia da Inteligncia:

    1a. Dois elementos quaisquer de um agrupamento podem compor-se entre si eengendram de tal maneira um novo elemento do mesmo agrupamento; duas classesdistintas podem ser reunidas em uma classe de conjunto que as engloba; duasrelaes A

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    5a. No domnio dos nmeros, uma unidade agregada a si mesma d lugar a umnovo nmero (...): h iterao. Ao contrrio, um elemento qualitativo repetido nose transforma: h ento tautologia: A + A = A.56

    Ora, estabelecida a natureza da lgica como forma terminal deequilbrio reversvel das aes tornadas simblicas ou virtuais ao cabo de um processo de desenvolvimento individual, o ponto crucial para o presenteargumento o carter definitivamente social, co-operativo e interacionalque corresponde a essa natureza e que Piaget mostra afirmar-se com nitidezcrescente medida que o indivduo chega s operaes lgicas como tal.

    Assim, nos estdios iniciais do desenvolvimento a criana se encontracentrada em si mesma, condio esta designada como egocentrismo por

    56 Jean Piaget, Psicologa de la Inteligencia, Buenos Aires, Editorial Psique, 1960, pp. 61-3. Nomesmo texto, Piaget exrime essas cinco condies num esquema logstico: 1a. Composio: x +x = y; y + y = z; etc. 2a. Reversibilidade: y x = x ou y x = x. 3a. Associatividade: (x + x)+ y = x + (x + y) = z. 4a. Operao idntica geral: x x = 0; y y = 0; etc. 5a. Tautologia ouidnticos especiais: x + x = x; y + y = y; etc. (Pp. 63-4.) Igualmente esclarecedora acaracterizao do conceito de grupo encontrada em Jean Piaget,Structuralism, Londres,Routledge & Kegan Paul, 1971, pp. 19-20:

    ...o conceito de grupo, ou a propriedade correspondente, obtido (...) por meio de um modo de pensamento caracterstico da matemtica e da lgica modernas a abstrao reflexiva , a qual noderiva propiedades dascoisas, mas de nossas maneiras deagir sobre as coisas, as operaes querealizamos com elas; ou antes, talvez, de vrias maneiras fundamentais decoordenar tais atos ouoperaes reunir, ordenar, colocar em correspondncia de um a um e assim por diante. Assim,quando analismos o conceito de grupo, deparamos as seguintes coordenaes muito gerais entreoperaes:

    1. a condio de que um retorno ao ponto de partida seja sempre possvel (atravs da operaoinversa);

    2. a condio de que o mesmo objetivo ou termo possa ser alcanado por rotas alternativas esem que o itinerrio afete o ponto de chegada (associatividade).

    Devido a essas duas condies restritivas, a estrutura de grupo assegura uma certa coerncia oque quer que esteja dotado dessa estrutura governado por uma lgica interna, um sistema auto-regulador. Essa auto-regulao , na verdade, a aplicao continuada de trs dos princpios bsicos doracionalismo: o princpio de no-contradio, que est contido na reversibilidade das transformaes; o princpio de identidade, que garantido pela permanncia do elemento de identidade; e o princpio menos frequentemente citado mas igualmente fundamental segundo o qual o resultado final idependente do caminho adotado. Para ilustrar o ltimo ponto, considere-se o conjunto dosdeslocamentos no espao. Ele constitui um grupo (dado que quaisquer dois deslocamentos sucessivos produzem novo deslocamento, um determinado deslocamento pode sempre ser cancelado por umdeslocamento inverso ou retorno, etc.). V-se o que tem de absolutamente essencial a associatividadedo grupo dos deslocamentos espaciais (equivalente a nossa noo intuitiva de usar um desvio) to logo sereconhece que, se os pontos de chegada variassem com as vias percorridas para alcan-los, o espao perderia sua coerncia e seria conseqentemente destrudo; o que teramos seria antes uma espcie defluxo perptuo maneira de Herclito.

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    Piaget e caracterizada pelo fato de que no h diferenciao sistemtica entreas realidades subjetivas e exteriores: nem o objeto se acha constitudo comotal, nem o indivduo tem conscincia de si prprio como sujeito. Dessa

    forma, o universo se achar centrado na ao mesma, permanecendo osujeito tanto mais dominado por essa perspectiva egocntrica quanto mais semantenha seu eu inconsciente de si mesmo.57 Note-se que a construo deuma estrutura de agrupamento caracterstica, em sua forma mais realizada,das operaes lgicas supe precisamente a noo de objeto e adescentrao dos movimentos pela correo do egocentrismo inicial. Claroest, diz Piaget, que a reversibilidade prpria do grupo supe a noo deobjeto, e vice-versa: fornecendo exemplos do nvel sensrio-motor e dosrudimentos de agrupamento que a se vo formando, pela organizao progressiva dos movimentos que tendem estrutura de grupo, Piagetassinala como encontrar de novo um objeto defrontar a possibilidade deum retorno (por deslocamento, seja do objeto mesmo ou do prprio corpo): oobjeto no outra coisa seno o invariante devido composio reversvel

    do grupo.58

    A prpria noo de deslocamento, por outro lado, como notaPiaget citando Poincar, supe, como tal, a diferenciao possvel entre asmudanas de estado sem retorno e as mudanas de posio caracterizadas precisamente por sua reversibilidade (ou por sua correo possvel, graasaos movimentos do prprio corpo). evidente, pois, que sem a conservaodos objetos no poderia existir grupo, j que tudo apareceria comomudana de estado: o objeto e o grupo dos deslocamentos so, pois,indissociveis, constituindo um o aspecto esttico e o outro o aspectodinmico da mesma realidade.59

    57 Psicologa de la Inteligencia, p. 153.58 Ibid., p. 152.59 Ibid., pp. 152-3.

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    No obstante, o egocentrismo marca no apenas as fases sensrio-motrizes anteriores linguagem (onde no h qualquer socializao dainteligncia, e a respeito das quais Piaget recorre formulao paradoxal de

    que mesmo durante este perodo inicial que se pode falar de inteligncia puramente individual).60 Tambm o perodo que vai do aparecimento dalinguagem at os 7 ou 8 anos de idade, ou seja, a fase do pensamentofigurativo ou intuitivo, ainda que a criana seja a capaz de intercmbiointerindividual e que haja um comeo significativo de socializao de certotipo, apresenta-se caracterizado por um egocentrismo que permanece ameio caminho do individual e do social e que se pode definir por umaindiferenciao relativa do ponto de vista prprio e do ponto de vista dooutro. assim que a criana fala tanto por si quanto pelos outros, que nosabe discutir, nem expor seu pensamento segundo urna ordem sistemtica,etc. Nos jogos coletivos dos pequenos, v-se cada um jogar por si, semcoordenao de conjunto.61 Como no caso da etapa anterior, tambm nonvel do pensamento intuitivo temos que qualquer relao percebida ou

    admitida se acha sempre vinculada ao do sujeito e no descentrada numsistema objetivo. Reciprocamente, e pelo prprio fato de que o pensamentointuitivo se acha centrado a cada instante sobre uma relao dada, esse pensamento fenomenista e s toma do real sua aparncia perceptiva; ele seacha, pois, merc das sugestes da experincia imediata, as quais, ao invsde corrigir, copia e imita.62 Da que, no plano mais estritamente social,como conseqncia da indiferenciao entre oegoe oalter , o apogeu doegocentrismo coincide, no desenvolvimento, com o da presso dos exemplose opinies do meio, e to explicvel a mescla de assimilao ao eu e de

    60 As Operaes Lgicas e a Vida Social, p. 178.61 Ibid., p. 179.62 Psicologa de la Inteligencia, p. 210.

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    adaptao aos modelos ambientes quanto a de egocentrismo e fenomenismo prprios da intuio inicial das relaes fsicas.63

    Assim, em ambos os nveis, o egocentrismo intelectual no constituinada mais (...) que um defeito de coordenao, nada mais que uma ausnciade agrupao das relaes com os outros indivduos e com as coisas.64 Eum ponto crucial o de que, na ausncia de agrupao, as presses domeio prprias das fases egocntricas no bastariam para engendrar umalgica no esprito da criana mesmo se as verdades impostas por tais presses fossem racionais em seu contedo (...). Ao contrrio, para aprender dos outros a raciocinar logicamente indispensvel que entre eles e acriana se estabeleam essas relaes de diferenciao e reciprocidadesimultneas que caracterizam a coordenao dos pontos de vista.65

    Em poucas palavras, quando se trata dos nveis pr-operatrios que seestendem desde a apario da linguagem at os 7-8 anos aproximadamente, asestruturas prprias do pensamento nascente excluem a formao das relaes decooperao, as nicas que determinariam a constituio de uma lgica: oscilandoentre o egocentrismo deformante e a passiva aceitao das presses intelectuais, acriana no experimenta ainda o processo de uma socializao da inteligncia que possa modificar profundamente seu contedo.66

    Tais relaes de cooperao, precisamente, se tornam possveis a partir dos 7 ou 8 anos e, em correspondncia com ela, a coordenao, no plano das aes concretas ou das operaes simblicas, dos pontos de vista.A criana se torna capaz de discusso e desta discusso interiorizada, econduzida consigo mesmo, que a reflexo , de colaborao, de exposiesordenadas e compreensveis para o interlocutor. Seus jogos coletivos

    63 Ibid., p. 212.64 Ibid., p. 211.65 Ibid., p. 212.66 Ibid., pp. 212-3.

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    testemunham regras comuns. Sua compreenso das relaes dereciprocidade (por exemplo, a inverso da esquerda e da direita sobre umindivduo colocado diante de si, a coordenao das perspectivas espaciais,

    etc.) mostra a generalidade destas novas atitudes e sua conexo com o pensamento mesmo.67 Da mesma forma que h estreita ligao entre oegocentrismo e a inteligncia sensrio-motriz ou o pensamento intuitivo, htambm ntima conexo entre a capacidade de cooperao e ascaractersticas do pensamento lgico. Como se viu, um agrupamentooperatrio um sistema de operaes com composies isentas decontradio, reversveis e conduzindo conservao das totalidades.68 Ora,o intercmbio com os outros precisamente o que permite a descentraonecessria realizao dessas condies. bastante claro como o pensamento em comum, como observa Piaget, favorece a no-contradio: muito mais fcil nos contradizermos quando pensamos por ns somente (oegocentrismo) do que quando os parceiros esto l para lembrar o quedissemos anteriormente e as proposies que j admitimos. A reversibilidade

    e a conservao, por outro lado, so contrrias aparncia das coisas e s setornam rigorosas com a condio de substituir os objetos por sinais, isto , por um sistema de expresses coletivas.69 De maneira mais geral, oagrupamento , em seu princpio mesmo, uma coordenao dos pontos devista, e isso significa, na realidade, uma coordenao entre observadores,vale dizer, uma cooperao de vrios indivduos.70 Essa conexo entre olgico e o social ressalta com tal fora das investigaes de Piaget que eleno hesita, em passagem sugestiva, em descrever em termos de sociedadea agrupao de seus prprios diferentes pontos de vista que viesse a ser

    67 As Operaes Lgicas e a Vida Social, p. 180.68 Ibid. p. 181-2.69 Ibid., p. 181.70 Psicologa de la Inteligencia, p. 215.

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    capaz de realizar um indivduo que hipoteticamente os mudasseconstantemente agrupao esta que precisamente a que se d nas formassuperiores de raciocnio, quando conduzido pelo indivduo isolado:

    Suponhamos, porm, com o sentido comum, que um indivduo superior, aomudar indefinidamente de pontos de vista, consiga por si mesmo coorden-lostodos de maneira que possa assegurar sua agrupao. Mas como um indivduo s,embora dotado de uma experincia suficientemente ampla, poderia recordar-se deseus pontos de vista anteriores, isto , do conjunto das relaes que percebeu, mas j no percebe? Se fosse capaz disso, teria logrado constituir uma espcie deintercmbio entre seus estados sucessivos e diversos, ou seja, dotar-se, medianteconvenes contnuas consigo mesmo, de um sistema de notaes suscetvel deconsolidar suas lembranas e de traduzi-las numa linguagem representativa: teriarealizado, pois, uma sociedade entre seus diferentes eu!71

    Assim, um pensamento lgico necessariamente social. E dizer queum indivduo no chega lgica a no ser graas cooperao vem a ser como supor simplesmente que o equilbrio de suas operaes se achasubordinado a uma capacidade indefinida de intercmbio com o prximo,isto , a uma reciprocidade total.72

    Essa singela leitura das condies que Piaget associa ao pensamentolgico ter sido suficiente, por diversos aspectos, para que o leitor note ontimo paralelismo existente entre tais condies e as caractersticasatribudas por Habermas ao modelo da situao ideal de discurso ou decomunicao pura. Tal paralelismo, que se evidencia com mais clarezaquando se tm em vista outros desdobramentos explcitos das anlises de

    Piaget, d margem a vrias consideraes do maior interesse.

    71 Ibid., pp. 215-6.72 Ibid., pp. 216-7.

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    1. Em primeiro lugar, o paralelismo entre as duas concepes ocorreno obstante o fato de que a situao de comunicao pura de Habermascorresponde como que ao caso limite da interao, enquanto Piaget se

    ocupa de algo que no se pode pretender dissociar das condies de eficciada ao instrumental ou do trabalho e cuja origem nas manipulaesconcretas do objeto ele prprio destaca incessantemente. De fato, um dos pontos de grande interesse das verificaes de Piaget consiste em que demaneira inteiramente surpreendente luz de certas concepes vulgaressobre a natureza do pensamento formal e de suas relaes com o chamadopensamento dialtico elas mostram a lgica como a um tempo oresultado e um ingrediente de um processo de natureza eminentementedialtica, que descrito como tal pelo prprio Piaget.73 No carter dialticodesse processo destacam-se: (a) a dimenso histrica e gentica daconstituio do pensamento lgico como conseqncia de um processo deestruturao progressiva, no qual, ademais, a integrao ou estrutura prpriade cada fase, apesar da veco ou direo que orienta o processo como um

    todo rumo ao equilbrio reversvel, sempre passvel de se tornar o objeto denova integrao em formas superiores de equilibrao ou estruturao ;74 e(b) o reconhecimento que crucial para o ponto que aqui se salienta nos do papel do sujeito, contra o positivismo ou empirismo lgico, mas dasformas complexas de se relacionarem e interagirem sujeito e objeto ao longodo processo. Assinale-se, em relao com essa complexidade, precisamenteo alcance da constatao do que o sujeito que se relaciona com o objeto,superadas apenas as etapas mais primitivas da inteligncia sensrio-motriz,

    73 Veja-se, por exemplo, Jean Piaget, Les Mthodes de lpistmologie, em Jean Piaget (dir.), Logique et Connaissance Scientifique, Paris, Gallimard, 1967; veja-se igualmente o captulo VIIde Piaget,Structuralism.74 Veja-se, por exemplo,Structuralism, captulo IV (especialmente seo 12, Structure and theGenesis of Intelligence), bem como a concluso geral do volume. Igualmente relevante JeanPiaget, A Equilibrao das Estruturas Cognitivas, Rio de Janeiro, Zahar, 1976.

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    antes de tudo um sujeito plural e de que esse carter plural, o fato de quese trata de sujeitos e no de sujeito, condiopara o relacionamentoeficazcom o objeto, ou seja, para as operaes descentradas da razo e para o

    pensamento lgico.

    2. Note-se, em segundo lugar, o papel crucial que desempenha, naconvergncia entre a ao comunicativa de Habermas e o carter social dalgica apontado por Piaget, a concepo da autonomia radical dos participantes no processo de interao, ou dos sujeitos do processo deconhecimento. Com efeito, em Habermas, como vimos, a situao ideal dediscurso ou de comunicao pura sedefinemesmo pelo fato de que os participantes surgem reciprocamente como sujeitos aos olhos uns dos outros.E a estrutura da comunicao se caracteriza por garantir a autonomia de cadaum a tal ponto que a unanimidade isenta de qualquer forma de manipulaoou coero se torna o nico resultado vlido do intercmbio que se processa,enquanto o interesse emancipatrio que distingue e orienta a cincia crtica

    consiste precisamente na superao das restries comunicao que advmde relaes de dominao.

    Ora, em Piaget, por sua vez, a superao do egocentrismo tambm asuperao da heteronomia que sua contraface indissocivel, e as fasesmaduras do processo de desenvolvimento intelectual pressupem oestabelecimento da identidade estvel do indivduo e, assim, seu surgimentocomo sujeito autnomo. Isso no tudo, porm. O pensamento lgico nosomente pressupe autonomia de parte de qualquer indivduo que se queiratomar como ponto de referncia, mas, ao incluir requisitos tais como acapacidade de reconhecer a pluralidade e a reciprocidade dos pontos de vistae ao se efetivar em operaes distinguidas por reversibilidade e conservao

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    intersubjetivas, pressupe tambm a existncia e a autonomia radicaldosoutros. Na verdade, ao examinar, em As Operaes Lgicas e a VidaSocial, as condies do equilbrio prprio do agrupamento lgico e

    estabelecer sua ntima correspondncia com a cooperao social (condiesque se estudam a atravs de uma anlise formal dos mecanismos dointercmbio intelectual), Piaget mostra no apenas os fatores dedesequilbrio que se prendem ao egocentrismo, mas tambm, o que deespecial interesse no presente contexto, o desequilbrio devido coero.Tal desequilbrio ocorrer, ainda que o intercmbio possa desenvolver-se emcondies em que exista uma escala comum de valores (no caso, por exemplo, em que se trate da coero exercida pela opinio dos mais velhosou dos ancestrais), em decorrncia precisamente da falta de reciprocidade ede suas conseqncias para a estabilidade na conservao dos valores, ou davalidade das proposies admitidas. Essa estabilidade, sendo determinada pelo fator exterior da coero, s durar enquanto um dos participantesesteja submetido ao outro, e ao equilbrio resultante (que no se constituir

    em equilbrio interno estvel mesmo que a estrutura da coletividade sejacapaz de assegurar-lhe durao indefinida) Piaget aplica a designao defalso equilbrio, de maneira perfeitamente anloga ao falso consenso deque fala Habermas para referir-se ao consenso resultante de manipulao oucoero e pelas mesmas razes.75

    3. Ao anterior se associa um desdobramento da maior importncia nocontexto de nossa discusso, desdobramento este que tambm elaboradoexplicitamente por Piaget. Refiro-me ao paralelismo desvendado pelosestudos de epistemologia gentica entre o desenvolvimento das normasmorais e o das normas intelectuais. Ele se revela, por exemplo, no fato de75 As Operaes Lgicas e a Vida Social, pp. 181 e seguintes.

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    que aos 7-8 anos, quando se desenvolvem relaes novas de reciprocidade(no sentido lgico do termo), em conexo com a formao das operaesreversveis, que se constata um enfraquecimento dos efeitos do superego

    e da autoridade em proveito dos sentimentos de justia e de outros aspectosda reciprocidade moral ou afetiva; da mesma forma, relaes semelhantesentre as transformaes ocorridas nos dois planos se do no nvel daadolescncia, quando da insero do indivduo na vida social dos adultos.76

    Na possibilidade de situar o estudo desse paralelismo reside mesmo, comodiz Piaget explicitamente emSabedoria e Iluses da Filosofiaem resposta aobjees formuladas por R. Schaerer, parte importante do interesse de seutilizarem termos como autonomia e reciprocidade a propsito de fenmenoscognitivos.77 Do exame do paralelismo em questo ressalta algo que pode,com algum artifcio, ser formulado em termos de duas constataesintimamente relacionadas. Em primeiro lugar, a de que a lgica, consideradado ponto de vista psicolgico, na medida em que no apenas um sistemade operaes livres, mas se traduz por um conjunto de estados de

    conscincia e de condutas caracterizados por certas obrigaes nas quais nose pode deixar de reconhecer um carter social, implica regras ou normascomuns e uma moral do pensamento, imposta e sancionada pelos outros.Assim que a obrigao de no contradizer-se no constitui simplesmenteuma necessidade condicional (um imperativo hipottico) para quem quer ater-se s exigncias das regras do jogo operatrio: tambm um imperativo

    76 Veja-se Jean Piaget, Inconsciente Afetivo e Inconsciente Cognitivo, captulo II de JeanPiaget, Problemas de Psicologia Gentica, So Paulo, Abril Cultural, 1978 (includo no volumededicado a Piaget da srie Os Pensadores); citaes da p. 234.77 Jean Piaget,Sabedoria e Iluses da Filosofia, So Paulo, Abril Cultural, 1978 (volumededicado a Piaget da srie Os Pensadores), especialmente p. 195. Tambm de particular interesse a respeito so dois textos includos em Piaget, Estudos Sociolgicos, a saber, Ensaiosobre a Teoria dos Valores Qualitativos em Sociologia e As Relaes entre a Moral e oDireito, onde Piaget explora analiticamente vrios aspectos das conexes entre fenmenosintelectuais e morais.

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    moral (categrico), desde que exigida pelo intercmbio intelectual e pelacooperao.78 Em segundo lugar, e como uma espcie de reverso damedalha, as condies logsticas da deciso e da ao moral no apenas no

    excluem em nada a utilizao de operaes reversveis,79

    mas na verdade asincluem por sua natureza mesma, como demonstra Piaget ao examinar asignificao do universal moral kantiano e a exigncia de reciprocidade queele implica.80 Assim, o equilbrio mvel dos sistemas de noes ou devalores [caracteriza] ao mesmo tempo os mecanismos cognitivos e os davontade, e (...) apresenta para o sujeito uma significao normativa e nosomente instrumental.81 certamente ocioso procurar salientar, em conexocom tais proposies, a maneira pela qual elas nos colocam em cheio noterreno da interao habermasiana, onde se trata de comunicao e denormas consensuais vinculantes, bem como a ponte que elas assim lanamentre a interao e a ao instrumental ou o trabalho. As condies para aao racional, pode-se dizer em sntese, se superpem em grande medidano apenas s condies para a ao autnoma, mas tambm para a

    comunicao, a colaborao, a ao solidria e moral tudo isso sem que aao racional deixe de ter como substrato ltimo a experincia da operao(da co-operao) concreta, da atividade instrumental ou do trabalho.

    * * *

    Antes de nos dedicarmos explorao do segundo aspecto dasconexes entre trabalho e interao anteriormente anunciado, destaquemosainda, de passagem, dois pontos importantes para o que vem a seguir e cuja

    78 Psicologa de la Inteligencia, p. 214.79 Sabedoria e Iluses da Filosofia, p. 196.80 As Relaes entre a Moral e o Direito, Estudos Sociolgicos, especialmente pp. 227-8.81 Sabedoria e Iluses da Filosofia, p. 196.

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    meno se torna oportuna face ao que acabamos de ver. O primeiro deles dizrespeito a certas formulaes de Habermas sobre problemas metodolgicosdas cincias sociais, a serem encontradas na introduo acima mencionada

    edio alem de 1971 deTeoria e Prtica. Tratando, em particular, dedelimitar seu prprio esforo perante o que chama o objetivismo dascincias do comportamento sob sua forma mais estrita, Habermas destacaque a sociologia crtica se probe reduzir o ato intencional aocomportamento e que, quando o domnio tomado como objeto constitudode estruturas simblicas produzidas sobre a base de sistemas normativos,faz-se necessria uma forma de acesso aos dados que permita compreender-lhes o sentido.82 Habermas coloca esse recurso tradicional prescriometodolgica da compreenso em seu quadro de referncia de interaoou comunicacional, e escreve:

    Em lugar de uma observao controlada, garantida pelo anonimato dosujeito que observa (isto , pela sua substituio possvel por outro sujeito) eigualmente pela possibilidade de reproduzir a observao, intervm a participaodo sujeito que compreende em decorrncia de sua relao com um parceiro (umalter ego). O paradigma no mais a observao, mas o questionamento ou, por outras palavras, uma comunicao na qual o sujeito que compreende deveintroduzir elementos de sua subjetividade que sejam de uma forma ou de outracontrolveis para poder reunir-se a seu parceiro sobre o terreno intersubjetivo deuma possvel compreenso.83

    Habermas tem em mente aqui o intercmbio psicanaltico, ao qual serefere de maneira explcita imediatamente em seguida e cuja importncia para sua concepo de uma cincia crtica j se assinalou anteriormente.Teremos adiante algumas oportunidades para tentar avaliar sucintamente oalcance do recurso ao modelo psicanaltico de mais de um ponto de vista. luz da discusso precedente sobre a maneira complexa de se relacionarem,

    82 Habermas,Thorie et Pratique, volume I, p. 41.83 Ibid., pp. 41-2.

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    na maturao das formas avanadas do pensamento, o operatrio ouinstrumental, o subjetivo e o intersubjetivo, registre-se apenas, a este ponto,o carter equvoco que adquire a proposta metodolgica contida nas

    proposies em questo de Habermas. De fato, no se v facilmente comoacomodar a prescrio da busca de uma compreenso intersubjetiva a umtempo com a exigncia de que ela se processe atravs da introduocontrolada de elementos da subjetividade do sujeito que compreende, por um lado, e com a proibio, por outro lado, do recurso observaocontrolada e, como tal, passvel em princpio de ser reproduzida por outrossujeitos. Pareceria antes que garantir a intersubjetividade da compreensoalcanada (ou que se julga ter alcanado) e a forma controlada da introduode elementos subjetivos necessariamente acarreta o recurso a todos osingredientes da forma lgica de que se valem as cincias emprico-analticase que, como a discusso anterior ter provavelmente contribudo paraesclarecer e como espero mostrar com mais nitidez adiante, no tem porqueser vista como comprometida, no plano das cincias sociais, com um

    behaviorismo estreito e com o negligenciamento do carter intencional dasaes.

    O outro ponto tem a ver com um aspecto particular da questo docondicionamento social do desenvolvimento intelectual e moral. Esteaspecto tem ramificaes importantes se avaliado do ponto de vista dasafinidades acima destacadas entre as condies associadas por Piaget fasemadura do pensamento lgico e as caractersticas atribudas por Habermas situao ideal de discurso e sobretudo se se tem em mente a relevncia domodelo da situao ideal de discurso ou de comunicao pura para amotivao poltica e crtica de Habermas, ou para o interesse emancipatrioda cincia social crtica. Refiro-me ao fato (mencionado de passagem h

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    pouco, a propsito da anlise de Piaget quanto aos efeitos da coero sobreas condies de equilbrio no intercmbio intelectual) de que parte decisivado contexto social em que tem lugar o processo de desenvolvimento

    intelectual e moral constitudo por relaes de natureza intergeneracional.A importncia crucial desse fato se prende a vrias razes.

    Assim, se se evoca o papel cumprido pelas relaes de poder oudominao como fatores de restrio atividade comunicacional quecumpriria superar (de acordo com o interesse emancipatrio que Habermasdestaca), teramos notoriamente como que um resduo irremovvel dedominao no processo pelo qual cada gerao molda em ampla medida agerao seguinte e estabelece com ela relaes de assimetria e ascendncia.Por um aspecto no teramos a maiores problemas, pois Habermasreconhece explicitamente o carter contrafatual do modelo da situaoideal de discurso. Mas o que tem de especial a dimenso intergeneracionalse deve a que aqui no se trata de um obstculo entre outros comunicao

    pura, mas de algo que acarreta importante ambigidade no prprio plano dascategorias bsicas em jogo.

    Na tica do tipo de conexo entre trabalho e interao que tomamosem primeiro lugar (isto , a idia de que o trabalho se desenvolve nocontexto da interao), seria possvel destacar aqui a dificuldade introduzida pela constatao da colaborao prestada por relaes marcadas por dominao como o so as relaes intergeneracionais ao plenoflorescimento da lgica, em que caberia ver a forma por excelncia daracionalidade pelo menos no plano da ao instrumental ou do trabalho(adiemos os problemas envolvidos na sugesto contida no pelo menos). -se tentado a pr de lado essa dificuldade, j que se pode sustentar que a

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    dominao ou ascendncia intergeneracional no , como tal, fator deencaminhamento do desenvolvimento intelectual no rumo dos genunosequilbrios reversveis que caracterizam o pensamento lgico, o qual se

    deveria antes ao fato em si mesmo de que o indivduo se torne social eadquira no processo o sentido de autonomia e reciprocidade. As coisas setornam mais complicadas, porm, quando nos damos conta de que adefinio da identidade, e conseqentemente a possibilidade de acesso prpria idia de autonomia, envolve tambm aspectos afetivos e morais, bemcomo a necessidade de assuno, ainda que eventualmente lcida e seletiva,de ingredientesdadosda biografia individual e de que em tudo isso aopacidade das relaes intergeneracionais enquanto tal de importnciadecisiva. Por outras palavras, no s a sociedade cabalmente transparenteseria necessariamente uma sociedade a-histrica (instantnea,unigeneracional), mas a idia de autonomia, por si mesma, envolve, quer no plano individual ou no coletivo,identidadee memria.84 Donde asconseqncias de que a tradio no algo a ser objeto apenas de um

    interesse de emancipao, mas tambm de preservao(a ligaoestabelecida por Hannah Arendt entre a ao e o acesso lembrana e histria aqui iluminadora), e de que o prprio interesse emancipatrio seriadestitudo de significao se no estivesse associado a um interesse de preservao e afirmao (autnoma) de uma identidade existente (e em largamedida pr-existente). Sem dvida, a presena simultnea dessesingredientes aparentemente antagnicos no processo de auto-reflexocaracterstico do pensamento crtico tal como Habermas o concebe que permite a este ltimo, como vimos antes, falar de critrios deautenticidade,ao lado de critrios de verdade, como relevantes na apreciao dos84 Veja-se a respeito Karl W. Deutsch,The Nerves of Government , Nova Iorque, Free Press,1966, captulos 6 e 8. Veja-se tambm Fbio W. Reis, Academia, Democracia e Dependncia, Dados - Revista de Cincias Sociais, vol. 23, n. 1, 1980, pp. 59-77.

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    resultados da comunicao estabelecida entre psicanalista e paciente.85 Damesma forma, a complexidade dos meandros que assim se evidenciam naarticulao das diversas facetas do problema geral est subjacente fluidez e

    ambigidade anteriormente apontadas das proposies de Habermas emcertos pontos, tais como o fato de ao marco de referncia da interao sevincularem tanto as cincias crticas quanto as hermenuticas (estas ltimasreportando-se possibilidade de intersubjetividade que advm da histria eda tradio), ou o de depararmos o poder ou a dominao vistos comoingrediente a um tempo genuno e esprio do contexto da interao.

    4. A interao no contexto do trabalho. Atividade instrumental e

    emancipao, Arendt, Habermas e Marx

    Mas no apenas o trabalho se desenvolve no contexto da interao,como tambm a interao se desenvolve no contexto do trabalho. Essa proposio pode ser lida tanto no sentido de que a atividade produtiva

    (entendida como abrangendo o labor e o trabalho nas acepes propostas por Hannah Arendt) fornece o substrato necessrio sobre o qual seassentam as relaes sociais consideradas de maneira estrita o que, emnvel mais abstrato, poderia ser formulado em termos de que a interao ,em medida importante, co-operao quanto no sentido de que a interaose desenvolve num mundo artificial de artefatos de toda natureza, detrabalho (owork de Arendt) objetivado e cristalizado. Alguns dos problemas que surgem em conexo com o tema geral do trabalho, dequalquer forma, podem ser apreciados se tomamos a maneira pela qualHabermas e Arendt avaliam as posies de Marx sobre o assunto.

    85 Veja-se, por exemplo, Habermas,Thorie et Pratique, volume I, p. 53.

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    Assim, como vimos antes, encontramos em Habermas a idia de queMarx confunde, em alguma medida, o plano do prtico, que tem a ver comcomunicao e interao (a ao de Arendt), e o plano do tcnico, ou seja,

    da atividade instrumental e do trabalho. J Arendt, que destaca e elaboralongamente a distino entre labor e trabalho, detecta em Marx antesuma confuso entre esses dois aspectos da atividade humana.86 Dessaconfuso resultaria, de acordo com Arendt, a grande ambigidade que semanifesta no pensamento de Marx com respeito ao tema do trabalho,apresentado ora como sujeio ou alienao a ser suprimida com o plenodesenvolvimento das foras produtivas e com a organizao racional dasociedade comunista, ora como fator de exteriorizao e auto-realizaohumana (e condio mesmo da apropriao gradativa da natureza pelohomem que se traduzir no desenvolvimento das foras produtivas). Comoquer que seja, a concepo do homem comoanimal laboransseriasuficientemente importante no pensamento de Marx, ainda segundo Arendt, para condicionar o lugar a ocupado pelo que ela v como o nico elemento

    estritamente utpico dos ensinamentos de Marx, a saber, o objetivo deemancipao do homem perante o labor. O carter utpico desse elementoderivaria de que emancipao perante o labor, nos termos do prprio Marx, emancipao perante a necessidade, e isso significaria em ltima instnciaemancipao tambm perante o consumo, ou seja, perante o metabolismocom a natureza que a condio mesma da vida humana.87

    Num ponto, porm, concorrem Habermas e Arendt quanto questogeral: a idia de que a falta de clareza de Marx a respeito das relaes entreas diversas dimenses da atividade humana resulta em certa depreciao

    86 Arendt, Human Condition, especialmente captulos III e IV.87 Ibid., pp. 130-1.

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    (vista de maneira distinta nos dois casos) da dimenso correspondente interao ou ao vale dizer, da dimenso da poltica. No caso deHabermas, j vimos a que essa leitura do pensamento de Marx se associa: a

    tentativa de corrigir o laivo cientificista de Marx por meio da nfase noaspecto emancipatrio de um processo de auto-reflexo e de comunicao potencialmente desimpedida e isenta de distores neurticas ou ideolgicas tentativa esta que, nos trabalhos mais aplicados de Habermas, temtraduo mais convencionalmente poltica na anlise do tecnocratismo e desuas ligaes com o problema da legitimidade da dominao nas sociedadesde capitalismo avanado, por exemplo. Arendt, por seu turno, pretendeestabelecer uma conexo algo tortuosa entre diversos ingredientes do pensamento de Marx, e o exame dessa pretenso permitir situar certos pontos de interesse.

    Assim, a sociedade futura que Marx projeta e pela qual anseia inclui,com a abolio do estado, o que Arendt designa como o desaparecimento da

    esfera pblica (the withering away of the whole public realm). Arendt vnisso um ponto de contato entre o pensamento de Marx e a tradio crist, aqual, contra o esprito caracterstico da polisgrega, promove o recolhimento esfera privada e aponta na responsabilidade poltica e no envolvimento emassuntos pblicos algo a ser, no melhor dos casos, suportado por alguns nointeresse do bem-estar e da salvao dos demais, liberados para acontemplao e os assuntos da alma.88 Em Marx, a expectativa dodesaparecimento da esfera pblica se prende utopia da emancipao dohomem comoanimal laborans, o qual, liberado da necessidade atravs daabundncia, se veria transformado num ser produtivo capaz de dedicar-se a

    88 Ibid., p. 60.

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    formas mais altas de atividade.89 Arendt compartilha ou mais propriamente, como se indicou antes, contribui para inspirar a viso parcialmente crtica que Habermas manifesta relativamente a Marx quanto

    aos ingredientes do modelo de atividade produtiva para o qual o homemseria assim liberado, modelo este (o da atividade propriamente instrumental,tcnica) ao qual se refere, em passagens diversas, por meio de expressescomo a iluso de uma filosofia mecanicstica ou a instrumentalizao queimplica a degradao de todas as coisas em meios.90 Mas o ponto crucial desua insatisfao com a viso marxiana do processo de emancipao outro,apesar de relacionado com isso. Trata-se de que, na interpretao de Arendt,a concepo que tem Marx do processo de emancipao resulta em que oshomens socializados utilizariam sua liberdade face ao labor para dedicar-sequelas atividades estritamente privadas e essencialmente alheias ao mundo(worldless) que atualmente chamamoshobbies.91 Tal interpretao se baseiaem conhecida passagem de A Ideologia Alem , que tomada por Arendt para apoiar a afirmao de que

    Na sociedade comunista ou socialista, todas as profisses se transformariam, por assim dizer, emhobbies: no haveria pintores, mas apenas pessoas que, entre outrascoisas, gastam seu tempo tambm pintando; pessoas, vale dizer, que fazem istohoje e aquilo amanh, que caam de manh, pescam de tarde, dedicam-se criaode gado ao cair da noite, fazem crtica depois do jantar, como melhor lhes apraz,sem por isso se tornarem jamais caadores, pescadores, pastores ou crticos.92

    Note-se primeiro, de parte de Arendt, a inconsistncia envolvida em

    tratar como alheias ao mundo ou no-mundanas atividades quecorrespondem ao trabalho (work ) dohomo faber : como se viu89 Ibid., p. 133.90 Ibid., pp. 133 e 156. Na verdade, Arendt v nisso um dos fatores de inverses entre asdiversas dimenses da vida ativa a ocorrerem na poca moderna, as quais so discutidas noltimo captulo de Human Condition.91 Ibid., pp. 117-8.92 Ibid., p. 118, nota 65.

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    anteriormente, segundo ela prpria a condio humana do trabalho amundanidade,93 e do trabalho nessa acepo que resulta a construo deum mundo humano objetivado. A valorizao negativa dowork que resulta

    da leitura feita por Arendt da anteviso marxiana da sociedade comunistaderiva, claramente, do contraste com a especial dignidade por ela atribuda esfera poltica concebida como a esfera da ao e da fala, a qual noreceberia o reconhecimento adequado na utopia de Marx. Isso transparece bastante nitidamente em afirmaes em que, procurando estabelecer asrelaes entre as diversas dimenses da vida ativa, a relevncia dotrabalho instrumental para a esfera pblica vista em termos que odespojam, precisamente, de seu aspecto mais marcadamente instrumental:Se oanimal laboransnecessita a ajuda dohomo faber para facilitar seulabor e mitigar sua dor, e se os mortais a necessitam para erigir um lar naTerra, os homens que agem e falam precisam da ajuda dohomo faber em suafaculdade mais alta, isto , da ajuda do artista, dos poetas e historiadores,dos construtores de monumentos e dos escritores, pois sem estes o nico

    produto de sua atividade, a histria que eles protagonizam e relatam, estariainteiramente impossibilitada de sobreviver.94

    Parece claramente possvel sustentar, no entanto, que o que Marxantev e aquilo por que anseia nas formulaes em que Arendt destaca aapologia da esfera privada tem a ver antes com a superao do elemento dedominao nas relaes humanas, numa viso que, corretamente entendida,envolveria precisamente a realizao da poltica no sentido nobre e gregoque Arendt favorece. A prpria Arendt, alis, afirma, referindo-se aos ideaisda sociedade sem classes e sem estado, que esses ideais foram obviamente

    93 Ibid., p. 7.94 Ibid., p. 173.

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    concebidos pelo prprio Marx segundo o modelo da democracia ateniense,salvo que na sociedade comunista os privilgios dos cidados livresdeveriam ser estendidos a todos afirmao esta na qual ela pretende

    mesmo apoiar a tese de que, ao contrrio do que ocorre com o anseio deemancipao face ao labor, a idia de Marx da sociedade sem classes e semestado no seria utpica.95 Apesar da ambigidade introduzida por frmulascomo a da substituio do governo dos homens pela administrao dascoisas, tomada de Saint-Simon, a aproximao entre a democracia ateniensee o ideal do desaparecimento do estado em Marx parece congruente com acaracterizao que faz Arendt mesma da viso aristotlica da polis: namedida em que esta aparece a como o conjunto dos monarcas ou patriarcas privados, o que temos com as restries relativas aos que seencontram sujeitos ao domnio de tais patriarcas uma espcie desuperposio total entre estado e sociedade (a sociedade que conta), aqual se traduziria, no caso da eliminao das restries mencionadas, naeliminao cabal das barreiras entre o pblico e o privado, antes que na

    promoo da esfera privada como tal. As proposies de Marx em queArendt v com repulsa as profisses transformadas emhobbiestm, porm,um alcance ou desdobramento especial do ponto de vista do aspecto dedesaparecimento dasclasses, alcance este que parece escapar inteiramente anlise daquela autora.

    Trata-se do fato simples de que uma sociedade em que os indivduosestejam rigidamente vinculados cada um a determinada profissodificilmente poder ser concebida como correspondendo sociedade semclasses. Sem entrar em tecnicismos a respeito da definio precisa doconceito de classes sociais, certo que a intuio fundamental contida na95 Ibid., p. 131, nota 82.

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    concepo de uma sociedade sem classes envolve a idia de eliminaodaquilo que a literatura sociolgica contempornea de lngua inglesa temdesignado pelo termoascription, freqentemente traduzido por adscrio

    para o portugus (de maneira conveniente, embora talvez discutvel do pontode vista das acepes vernculas da palavra). Com efeito, as classes sociais,no sentido amplo em que o conceito pertinente neste contexto, so o fator ou a expresso por excelncia da adscrio, entendida esta como a predeterminao das chances vitais dos indivduos por condies queescapam ao seu prprio controle. precisamente na medida em que ascondies de vida diferenciais dos indivduos podem ser referidas ao fato deeles pertencerem a categorias sociais distintas e que no so objeto deescolha que se d a dominao de uma categoria por outra, e a eliminao dadominao corresponde eliminao daquilo que torna o indivduoadscrito a determinada categoria. Por certo, h toda uma gama de matizese uma grande distncia a se interporem entre as caractersticas intensamenteadscritcias que distinguem uma sociedade de castas, por exemplo, e uma

    sociedade em que, embora os indivduos se dediquem mais ou menosestavelmente a diferentes profisses, exista um grau aprecivel de possibilidade de livre escolha da profisso por parte de cada um deles. Noobstante, a proposio crucial reside em que a eliminao da dominao e daadscrio so processos paralelos e correspondentes, e o ponto-limite desses processos consiste na condio em que se eliminaria mesmo o resduo deadscrio contido na assignao estvel dos indivduos a diferentes profisses ou ocupaes e em que eles seriam deixados soltos e livres para buscar a realizao de suas potencialidades ou anseios de qualquer tipo. essa condio-limite que Marx visualiza coerentemente, embora talvez demaneira inapelavelmente utpica em sua verso extrema na passagem da Ideologia Alem que Arendt destaca, e a formulao extremada a

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    encontrada contm pelo menos a advertncia implcita, em conexo com seuutopismo mesmo, da tendncia a novas cristalizaes e introduo denovos fatores de adscrio, com o conseqente estabelecimento de relaes

    de dominao, que estaria sempre presente em qualquer distribuio estveldos indivduos por categorias ocupacionais distintas isto , na divisosocial do trabalho.

    Por outras palavras, a c