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    SEGUNDA PARTE

    Para um Conceito de Poltica: A Teoria daPublic Choice, o

    Estratgico e o Institucional

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    1. A abordagem dapublic choice. Racionalidade, utilitarismo e conflito de

    interesses

    A interao estratgica, tal como discutida no captulo anterior, o objeto por

    excelncia de anlise, nos dias que correm, da teoria dos jogos. Os elementos

    fundamentais da abordagem, porm, so caractersticos do veio dominante da cincia

    econmica, remontando economia clssica e distinguindo, ainda hoje, a forma tpica

    da teoria econmica (especificamente no campo da chamada microeconomia) do que

    tradicionalmente se designa como teoria em reas tais como a sociologia, a

    antropologia e a cincia poltica, com o carter mais proposicional que o postulado deracionalidade faculta primeira. Fora da rea estrita da cincia econmica, paralelos e

    afinidades com essa abordagem podem ser encontrados desde o sculo XVIII em

    certos ingredientes da tradio filosfica do utilitarismo, por exemplo.

    Contemporaneamente, por outro lado, verifica-se o empenho, por parte das demais

    cincias sociais, de reproduzir em seus prprios campos os aparentes xitos obtidos

    pela cincia econmica, com a conseqncia de que vamos encontrar postulados einstrumentos prprios da abordagem em questo crescentemente aplicados a problemas

    substantivos alheios ao domnio clssico da cincia econmica. Assim, figura

    clssica do homo economicus, que aparece como resultado pioneiro da aplicao dos

    supostos da abordagem rea da economia, somam-se hoje as do homosociologicus e

    do homo politicus, criados imagem e semelhana do primeiro. Mas a afinidade

    histrica dessa abordagem com a cincia econmica continua a marc-la em grandemedida, de tal forma que ela com freqncia designada, em suas aplicaes a estes

    novos campos, como a abordagem econmica dos problemas correspondentes.1

    1 Referncias clssicas com respeito teoria dos jogos so: John von Neumann e Oskar Morgenstern, TheTheory of Games and Economic Behavior, Princeton, Princeton University Press, 1944, e R. Duncan Luce eHoward Raiffa, Games and Decisions,Nova Iorque, John Wiley, 1957. Vejam-se tambm, para extenses ourevises de alguns aspectos das propostas iniciais da teoria, Thomas C. Schelling, The Strategy of Conflict,

    Nova Iorque, Oxford University Press, 1963 (publicado pela primeira vez em1960); e Anatol Rapoport,Fights, Games and Debates, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1960. De relevncia para a

    questo geral de uma abordagem econmica dos fenmenos sociais, embora situando-se em perspectivapor diversos aspectos oposta que aqui se destaca, o clssico The Structure of Social Action, de TalcottParsons (Glencoe, III., Free Press, 1937), onde se empreende a crtica do utilitarismo tal como floresce na

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    No caso particular do estudo dos fenmenos polticos, d-se o fato adicional de

    que boa parte do trabalho realizado na perspectiva destacada, que corresponde

    corrente dapublic choice mencionada anteriormente, se deve a economistas de

    profisso que se mostram interessados em temas polticos.2 A suposio principal de

    que partem, explicitada por um dos autores que mais se distinguiram nesse campo, a

    de que a economia como disciplina cientfica no se ocuparia de uma espcie particular

    de bens ou transaes caracterizadas por sua natureza intrnseca, mas antes de qualquer

    espcie de situao ou processo onde esteja envolvido um problema de escassez. Isso

    tornaria a teoria econmica equivalente a uma teoria do comportamento racional comotal, aplicvel a qualquer arena (seja ela convencionalmente designada como

    econmica, poltica, social) em que tenhamos um. problema de utilizao de

    meios escassos para a realizao de objetivos de qualquer natureza.3Assim, o homo

    politicus, no sendo seno o homo economicus transposto para certa arena especial de

    problemas, se caracterizaria pela busca de manipulao eficiente das condies que lhe

    Inglaterra do sculo XVIII e primeira metade do sculo XIX.Utilizao recente e explcita da idia do homosociologicus tal como apresentada no texto pode ser encontrada, por exemplo, em Raymond Boudon,EffetsPervers et Ordre Social, Paris, Presses Unversitaires de France, 1977; um exemplo menos recente da mesmaperspectiva Herbert A. Simon, Models ofMan,Nova Iorque, Jobn Wiley, 1957.

    2 Exemplo de aplicaes iniciais da teoria dos jogos a temas polticos se tem em Martin Shubik (ed.,),Readings in Game Theory and Political Behavior, Garden City, Doubleday, 1954. Algumas das refernciasmais importantes na perspectiva da public ch.oice so: Anthony Downs, An Economic Theory of

    Democracy, Nova Iorque, Harper & Row, 1957; James M. Buchanan e Gordon Tullock, The Calculus ofConsent, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1962; e Mancur Olson, Jr., The Logic of Collective

    Action: Public Goods and the Theory of Groups, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1965.William H. Riker e Peter C. Ordeshook, An Introduction to Positive Political Theory, Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, 1973, uma til condensao e sistematizao de muito da literatura pertinente. BrianM.Barry, Sociologists, Economists and Democray, Londres, Collier-Macmillan, 1970, confrontacriticamente, de maneira lcida e interessante, a perspectiva mais convencional da sociologia poltica comalgumas das contribuies mais importantes na perspectiva da public choice. Alguns exemplos notveis de

    proveitosa aplicao da mesma perspectiva e do mesmo instrumental analtico por parte de um autor deinspirao marxista a temas que tm interessado sobretudo a estudiosos marxistas se encontram nostrabalhos recentes de Adam Przeworski: vejam-se, por exemplo, Material Bases of Consent: Economics andPolitics in a Hegemonic System, Political Power and Social Theory, vol. 1, 1980, pp.21-66; MaterialInterests, Class Compromise, and the Transition to Socialism, Politics & Society, vol. 1, 1980, pp. 125-53;The Ethical Materialism of John Roemer", Universidade de Chicago, outubro de 1981, mimeografado; eAdam Przeworski e Michael Wallerstein, The Structure of Class Conflict in Democratic Capitalist

    Societies, The American Political Scence Review, vol. 76, no. 2, junho de 1982, pp. 215-38.3 Mancur Olson, Jr., As Relaes entre a Economia e as Outras Cincias Sociais: A Esfera de um RelatrioSocial, em Seymour M. Lipset (org.),Poltica e Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972.

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    oferece o ambiente de maneira a viabilizar a realizao de seus objetivos.

    Portanto, a perspectiva dapublic choice tem como recurso fundamental a noo

    de racionalidade, tomada em sentido preciso que remete inequivocamente eficcia ou

    instrumentalidade de uma ao intencional. Por outro lado, se nos referimos

    discusso dos captulos precedentes, no s no h a preocupao de estabelecer a

    relevncia de qualquer distino do tipo da que se encontra em Habermas entre ao

    mais estritamente instrumental e ao estratgica, como se pode mesmo dizer que a

    pertinncia da perspectiva proposta do ponto de vista do estudo da poltica tem a ver

    com os problemas estratgicos que derivam do suposto de racionalidadeinstrumental aplicado a agentes diversos em interao. Isso no significa, porm, que

    o recurso aos supostos prprios dapublic choice no se mescle com confuses

    importantes mesmo entre aqueles que propalam os mritos da abordagem, e o exame

    de algumas dessas confuses permitir introduzir de maneira adequada o

    esclarecimento dos principais problemas substantivos e metodolgicos suscitados pela

    discusso anterior.

    Tomemos, por exemplo, as questes que surgem nas relaes entre a abordagem

    dapublic choice e o estudo de polticas pblicas.4 Esta uma aproximao natural,

    pois o florescimento do estudo de polticas pblicas entre os cientistas polticos

    freqentemente se associa com a esperana, por parte destes, de virem a ser capazes de

    emular os economistas quanto a rigor e preciso, surgindo da o que parececorresponder a um ponto de afinidade bvio com os esforos no campo dapublic

    choice. Dois aspectos ou caractersticas dos estudos de polticas pblicas mostram

    conexes com tal expectativa de rigor. Em primeiro lugar, o fato de que a rea de

    polticas pblicas tem sido amplamente receptiva a certas tcnicas aparentemente

    rigorosas, tais como a anlise de sistemas, a anlise de custo-benefcio, oprogram-

    4 Veja-se a respeito Fbio W. Reis, Poltica e Polticas: A Cincia Poltica e o Estudo de Polticas Pblicas,Cadernos DCP, no. 4, agosto de 1977, pp. 167-86, de onde so tomados alguns dos pargrafos que seguem.

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    budgetingetc. Em segundo lugar, o interesse pelo estudo de polticas pblicas tem sido

    vinculado ao objetivo de se alcanar novo equilbrio no volume de esforos dedicados

    respectivamente ao lado do inpute ao do outputdo processo poltico: tendo a cincia

    poltica sustenta-se se ocupado tradicionalmente sobretudo dos aspectos da vida

    poltica relacionados ao input, teria chegado a hora de inclinar-se a balana em favor

    do estudo do outputou das decises governamentais e estas seriam, presume-se, mais

    diretamente suscetveis de avaliao rigorosa e racionaldo que as lutas e tensas formas

    de interao entre demandas e apoios (para usar a linguagem de David Easton) que

    constituem o lado dos inputs do processo poltico.

    Por a comeam a introduzir-se algumas das confuses mencionadas, que

    redundam, no caso em questo, em pretender a existncia de afinidade especial entre a

    perspectiva dapublic choice e a anlise de polticas pblicas com base na nfase em

    consideraes de eficincia e racionalidade. Ilustrao bem clara se tem em artigo de

    William Mitchell publicado h alguns anos, onde se procura contrastar a cincia

    poltica ou a sociologia poltica convencionais com a abordagem dapublic choice. sugestivo observar que as questes bsicas a serem tratadas por esta ltima so a

    formuladas, em grande parte, precisamente em termos de problemas que tm merecido

    especial ateno dos especialistas em polticas pblicas, incluindo o volume e a

    composio dos oramentos pblicos, a magnitude dos bens e servios pblicos

    produzidos etc.5

    Dois supostos relacionados se revelam associados a essa aproximao entre o

    estudo de polticas pblicas e a teoria dapublic choice. Em primeiro lugar, observa-se

    a tendncia a considerar os problemas que tm tradicionalmente sido tratados pela

    cincia poltica ou pela sociologia poltica convencionais como o locus da

    irracionalidade na vida social e poltica, como a regio da mesma em que foras e

    5 William C. Mitchell, A Forma da Teoria Poltica Vindoura: Da Sociologia Poltica Economia Poltica,em Lipset,Poltica e Cincias Sociais, p. 153.

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    comportamentos no-racionais se manifestam. Em segundo lugar, esse trao de

    irracionalidade tende a ser vinculado aos elementos de tenso e de conflito na vida

    poltica que recebem nfase em longa e importante tradio de pensamento poltico,

    enquanto a mesma correspondncia se estabelece entre a racionalidade, de um lado, e

    os elementos de consenso e coeso social, de outro. Isso se nota claramente, por

    exemplo, no artigo de Mitchell acima mencionado, onde a sociologia poltica e a

    abordagem dapublic choice, com a nfase desta na racionalidade, so explicitamente

    vistas como ligadas pelo fato de que, mais recentemente, a sociologia poltica seguiu

    a liderana de Lipset, Parsons e Kornhauser na nfase dada ao consenso, por

    contraposio viso da poltica como o produto de foras no-racionais a serencontrada no realce dado por autores tais como Mosca, Marx, Pareto, Weber e

    Michels aos aspectos de desigualdade, luta, subordinao, divergncia de interesses e

    todos os aspectos mais speros e desagradveis da vida poltica.6 Em um contexto de

    interesse mais direto por problemas de polticas pblicas, a mesma tendncia pode

    igualmente ilustrar-se com um trabalho de Vernon Van Dyke, no qual, depois de

    passar em revista diversas tentativas de apreender a natureza do poltico, o autorchega s seguintes definies:

    ...Chamamos uma poltica ou deciso de no-poltica quando ela adotada (...) atravs daaplicao racional do conhecimento pertinente sobre a base de valores ou princpiosconsensuais; e chamamos uma poltica ou deciso de poltica quando ela resulta de barganha,ou luta, ou desejo ou opinio arbitrria...7

    Podem perceber-se facilmente as razes de tal tendncia a vincular o racionalcom o consensual do ponto de vista do especialista em polticas pblicas. A

    possibilidade de se tratar uma deciso ou poltica em termos de eficcia ou

    racionalidade requer a adoo do ponto de vista de determinado ator, de maneira que

    se possam estabelecer com clareza os objetivos da poltica em questo para se

    discutirem em seguida os problemas relativos s condies de sua adequada realizao

    6 Ibid., pp. 156-7.7 Vernon Van Dyke, Process and Policy as Focal Concepts ln Political Research, em Austrin Ranney (ed.),Political Science and Public Policy, Chicago, Markham, 1968, pp. 33-4

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    num ambiente dado. A perspectiva caracterstica dos estudos de polticas pblicas

    tende inevitavelmente a dar nfase eficciaglobaldas polticas ou decises, mesmo

    quando se tem em mente a diversidade de categorias sociais ou de focos de interesses

    para os quais tais decises podem ser relevantes. Assim, se se tem de considerar

    problemas de racionalidade do ponto de vista da sociedade como um todo, tende-se

    naturalmente a salientar aqueles fatores que permitem ver as relaes entre as

    diferentes categorias ou focos de interesses como sendo relaes do tipo soma

    varivel, em que todos tm a possibilidade de realizar ganhos simultneos, bastando

    para isso que se tomem as decises corretas (racionais). -se levado, portanto, a eleger

    o ponto de vista daquele ator que pode ser considerado como expressando o objetivocomum de maximizao geral. O estado, ou alguma agncia particular do mesmo em

    dados casos, surge como o candidato bvio, manifestando-se a propenso a favorecer

    aquelas dimenses da estrutura e do comportamento do estado que permitem v-lo

    como o instrumento de objetivos compartilhados, em detrimento dos traos mediante

    os quais ele se mostra antes como o resultado ou a expresso da luta entre interesses

    opostos.

    O que temos, assim, que muito do que se faz no estudo de polticas pblicas

    pode ser diretamente vinculado a uma tradio utilitria de pensamento, qual se

    mais naturalmente levado, como sugerido por John Rawls, pelo procedimento de

    adotar para a sociedade como um todo o princpio da escolha racional efetuada pelo

    indivduo tomado isoladamente

    8

    O estado, devidamente assistido pelo analista depolticas, assume o lugar do espectador imparcial e capaz de identificao simptica

    ao levar avante a necessria organizao das aspiraes de todos em um sistema

    coerente de aspiraes.9 Nessa concepo da sociedade, diz Rawls,

    os diferentes indivduos so considerados apenas como diversas linhas ao longo das quais osdireitos e deveres sero distribudos e os meios escassos de satisfao sero assignados de

    8 John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1971, pp. 26-7.9 Ibid., p. 27.

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    acordo com regras destinadas a assegurar o maior grau de atendimento dos desejos. A naturezada deciso tomada pelo legislador ideal no , portanto, significativamente diferente da doempresrio ao decidir como maximizar seu lucro pela produo desta ou daquela mercadoria,ou da do consumidor ao decidir como maximizar sua satisfao pela aquisio deste ou daqueleconjunto de bens. Em cada um dos casos h uma nica pessoa cujo sistema de desejos

    determina a melhor distribuio de recursos limitados. A deciso correta essencialmente umaquesto de administrao eficiente.10

    possvel que o utilitarismo e a perspectiva de eficincia global sejam

    precisamente o que se faz necessrio para assegurar a peculiaridade da anlise de

    polticas pblicas como campo de estudos, e podemos encontrar na literatura tentativas

    de defini-la que se orientam expressamente nessa direo. o caso, por exemplo, da

    abordagem de Yehezkel Dror, onde a anlise de polticas explicitamente entendidacomo um instrumento prescritivo e heurstico destinado identificao de polticas

    preferveis.11 O preo que essa soluo exige, contudo, claramente a despolitizao

    do estudo de polticas pblicas, impondo a opo entre fazer anlise de polticas ou

    fazer cincia poltica. Observe-se de passagem que a anlise de polticas pblicas

    assim entendida corresponde plenamente ao modelo ciberntico da anlise global de

    sistemas que encontramos, no captulo anterior, como objeto das denncias deHabermas.

    Importar a proposio recm-enunciada em reivindicar os direitos do irracional,

    ou em aceitar a viso que faz da irracionalidade a marca distintiva do poltico? Longe

    disso. Pois, diversamente do que sugere Mitchell, no h qualquer afinidade especial

    entre o privilgio concedido ao consenso, por um lado, e, por outro o recurso suposio de racionalidade ao se tratar de construir uma teoria abstrata e proposicional

    da poltica, como se d no campo dapublic choice. Ao contrrio, os supostos em que

    se baseiam os esforos tericos desta ltima, como sustentam expressamente vrios

    dos que a ela se filiam, tm suas razes precisamente na tradio contratualista do

    pensamento poltico, que postula a divergncia de interesses entre agentes capazes de

    10 Ibid., p. 27.11 Yehezkel Dror,Design for Policy Sciences,Nova Iorque, American Elsevier Publishing Co., 1971, p. 55,nota.

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    racionalidade como seu ponto de partida 12 Suspendendo, por ora, a avaliao dos

    mritos de tais razes contratualistas a outros respeitos, o objetivo de preservar ou

    recuperar a dimenso propriamente poltica, como quer que seja, no acarreta de forma

    alguma a proposio de que faramos melhor atendo-nos aos antigos e frouxos

    esquemas conceituais da cincia poltica ou da sociologia poltica e abandonando o

    objetivo de erigir uma teoria mais afirmativa e proposicional da poltica, a qual parece

    requerer a suposio de racionalidade de sorte a poder alcanar a forma lgica que

    permite predies tericas rigorosas. Para diz-lo sem rodeios, minha inclinao

    pessoal (com as qualificaes relativas considerao do contexto institucional e

    sociolgico que surgiro adiante) de grande simpatia abordagem econmica doprob1ema da teoria poltica, apesar do sabor de imperialismo de parte dos

    economistas, jque me parece que a referncia escassez e, portanto,

    racionalidade prov efetivamente umachave unificadora para a cincia social em

    geral.

    O ponto a ser destacado, contudo, que o que caracteriza a poltica enquantodistinta do objeto da cincia econmica (ou do campo geral da cincia econmica,

    para. ser conseqente com o que acabo de dizer acima) o fato de que a escassez

    poltica, a forma politicamente relevante da escassez, tem a ver com a interferncia dos

    objetivos (ou preferncias, ou interesses) de umapluralidade de indivduos ou grupos

    entre si, o que nos transpe para o plano da racionalidade propriamente estratgica.

    12 Para a elaborao explcita das razes contratualistas da teoria da public choice em um dos trabalhosimportantes no campo, bem como o rechao explcito da viso orgnica (utilitria) do estado, veja-seBuchanan e Tullock, The Calculus of Consent, pp. 11 e seguintes, e especialmente o Apndice 1 aovolume, sob o titulo Marginal Notes on Reading Political Philosophy, de autoria de James M. Buchanan.Para o contraste entre contratualismo e utilitarismo no que se refere a suas implicaes para concepes da

    justia social, veja-se Rawls,A Theory of Justice. de notar-se, neste contexto, certa ambigidade no usoda prpria expresso utilitarismo, que ora indica a maximizao do bem-estar coletivo, permitindo o

    paralelismo aqui estabelecido entre utilitarismo e organicismo, ora (para utilizar a formulao de Boudonem Effets Pervers et Ordre Social, p. 271, nota 15) a axiomtica do indviduo calculador que procurarealizar da melhor forma possvel suas preferncias. V-se que o problema substantivo que se considera notexto precisamente o da definio dos agentes aos quais se atribuir tal clculo e a denncia do

    utilitarismo feita por Rawls, como fica claro na passagem que se acaba de citar, tem a ver justamente com atransio mecnica ou ingnua do nvel do agente individual para o da sociedade como um todo tomadacomo agente ou sujeito.

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    Assim, enquanto podemos com propriedade falar de um aspecto econmico do

    comportamento do solitrio Robinson Cruso em sua ilha (que teria a ver, para usar a

    linguagem de Hannah Arendt, com sua atividade como labor e trabalho), somente

    temos um problema poltico quando Sexta-feira entra em cena, e na medida em que os

    interesses ou objetivos de cada qual tm agora, de alguma forma, que levar em conta

    os do outro. Para usar as palavras de uma tentativa recente de consolidao e

    sistematizao da teoria que se tem desenvolvido no campo dapublic choice:

    Comeamos com as pessoas, que, para nossos propsitos, so feixes de opinies sobre anatureza e de preferncias sobre as alternativas que a natureza lhes oferece (...)Algumas das

    preferncias em cada feixe dizem respeito a coisas essencialmente privadas (...).Taispreferncias privadas so em geral de pouca relevncia para a poltica, embora de relevnciacrucial para a cincia econmica. (...) Outras preferncias, porm, so essencialmente pblicas,no sentido de que sua realizao diz respeito no apenas aos que tm tais preferncias, mastambm a outras pessoas. Neste caso, a realizao da preferncia de um pode dependercrucialmente da negao a outro da possibilidade de realizar a sua prpria. (...)As prefernciascuja realizao envolve outras pessoas, e especialmente aquelas que s se realizam atravs dacooperao com outros ou da negao da possibilidade de que outros realizem as suas

    preferncias, constituem a matria-prima da poltica.13

    Como sugerido pela referncia cooperao no texto citado, essa abordagem,

    que leva a questes relativas s implicaes para a realizao (racional) dos objetivos

    de certo agente que derivam da existncia de outros agentes com objetivos

    possivelmente incompatveis (ou seja, questes relativas ao que se poderia designar

    como a economia da coexistncia, isto , a poltica), aponta fatalmente para um

    problema de coordenao e organizao se se pode supor que os agentes em questo

    no querero viver num estado de guerra de todos contra todos. Em outras palavras,h sempre um problema constitucional um problema de minimizar as

    externalidades que o comportamento de uns acarreta para os outros e de se alcanar,

    pelo menos neste sentido, o bem coletivo a ser enfrentado, em diferentes nveis, por

    qualquer conjunto de feixes de preferncias que devam coexistir ou, o que

    crucial, por qualquer conjunto de tais conjuntos. Mas este um problema importante

    na verdade, o problema bsico da poltica e da cincia poltica precisamente porque,13 Riker e Ordeshook,An Introduction to Positive Political Theory, pp. 1-2.

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    para recorrer a uma redundncia talvez sugestiva, a existncia e a ubiqidade do

    desacordo e de interesses divergentes fazem dele algo essencialmenteproblemtico,

    um problema cuja soluo no sobrevm naturalmente ou espontaneamente. Se se

    pretende fazer cincia poltica, portanto, seria totalmente imprprio pretender resolver

    tal problema por hiptese, isto , pela simples adoo do que se caracterizou

    previamente como a abordagem utilitria no estudo de polticas pblicas.

    Posta a questo noutros termos, v-se que o que falta a Mitchell no artigo acima

    citado precisamente a noo da ao ou interao estratgica ou seja, da ao

    racional e instrumental desenvolvendo-se no contexto da interao, num contextoque os outros se fazem presentes em princpio como sujeitos autnomos. Note-se o que

    h de sugestivo no ponto de contato que essa carncia acarreta entre as idias que

    Mitchell expe nesse artigo e o pensamento de Habermas: tambm em Habermas que

    minimiza, como vimos, o lugar da ao estratgica e pretende contrapor

    racionalidade que lhe prpria uma concepo distinta de racionalidade referida pura

    comunicao o verdadeiro racional corresponde, como em Mitchell, ao consensual. claro que seria imprprio exagerar a significao desse ponto de contato, pois em

    Habermas se trata de um consenso a ser obtido atravs do irredutvel compromisso

    com a autonomia de cada participante no processo de comunicao, enquanto em

    Mitchell, e no pensamento conservador em geral, se trata de um consenso postulado,

    ou resultante de um processo de auto-regulao ciberntica ao nvel global de um

    sistema concebido organicamente, e no qual se ignora por completo a possibilidade dofalso consenso que reside no centro das preocupaes de Habermas enquanto

    expresso precisamente de domnio. Contudo, tal ponto de contato no deixa de ser

    expressivo das dificuldades de uma conceitualizao adequada da poltica que resultam

    da falha em apreciar de maneira apropriada a articulao entre os contextos da ao

    instrumental e da interao, e sobretudo o papel cumprido nessa articulao pela

    categoria da ao ou interao estratgica.

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    2. O problema constitucional. Ao coletiva, externalidades e efeitos

    compostos

    Temos, pois, o problema constitucional entendido como o problema de

    minimizar as externalidades que o comportamento de uns acarreta para os outros e

    envolvendo por definio aspectos de cooperao (comunicao) em jogo com

    aspectos de luta e divergncia de interesses, ou aspectos estratgicos em sentido

    estrito. Este , como se disse, o problema central. Na apreenso de certas dimenses

    essenciais desse problema reside o que provavelmente a contribuio fundamental da

    perspectiva dapublic choice at o momento, e buscar-se- agora avanar noesclarecimento de algumas de nossas principais questes substantivas e metodolgicas

    pelo esforo de complementar a discusso da primeira parte com o exame crtico da

    maneira pela qual aquela corrente se tem situado perante as ramificaes dele.

    O lugar de especial relevo ocupado por Mancur Olson Jr. na literatura dapublic

    choice, com seu clssico sobreA Lgica da Ao Coletiva,deve-se precisamente aofato de o volume dirigir-se a alguns importantes aspectos de tal problema e perseguir

    suas conseqncias para a teoria social e poltica.14 Como se sabe, Olson critica, nesse

    volume, um postulado consagrado da sociologia tradicional (ou das cincias sociais em

    geral), postulado este segundo o qual as coletividades agem para a promoo de seus

    interesses grupais ou coletivos. Dado um conjunto de indivduos cuja situao objetiva

    os leva a terem em comum determinado interesse, o postulado conduz suposio deque tais indivduos agiro, espontnea e naturalmente, de forma a procurar assegurar a

    realizao de seu interesse comum. De acordo com Olson, a vigncia de tal postulado

    estaria baseada em sua suposta congruncia com a premissa do comportamento

    egostico e racional por parte dos indivduos: dado que se presume que os indivduos

    so egostas e racionais, e dado que o interesse comum corresponde ao interesse de

    todos, caberia presumir igualmente que os grupos compostos de tais indivduos agiro

    14 Olson, The Logic of Collective Action.

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    na defesa de seus interesses. Olson revela o que h de logicamente inconsistente na

    extrapolao para o plano coletivo da premissa relativa ao comportamento individual,

    sustentando que, na medida em que sejam egoisticamente motivados e racionais, os

    indivduos no agiro naturalmente para a promoo do interesse comum. Isso se deve

    a que se trata, com o interesse comum, de um bem pblico ou bem coletivo, o qual, por

    sua prpria natureza, se assegurado para uma parcela qualquer de uma categoria de

    indivduos em relao qual ele se apresenta como tal, estar necessariamente

    assegurado para os demais. Da que o bem pblico no represente por si mesmo, para

    indivduos egostas e racionais, um estmulo suficiente ao dispndio de recursos ou de

    energia necessrio para sua consecuo. Em conseqncia, a presuno deve ser que aao coletiva no se realizar, a menos que haja coero ou o que Olson denomina

    incentivos separados, que atuem seletivamente em termos individuais e

    correspondam a ganhos ou benefcios individuais, derivados da participao na ao

    coletiva mas independentes da realizao do prprio bem coletivo como tal.

    O problema assim posto, que redunda no conflito entre interesses particulares einteresse comum para o caso da conduta racionalmente orientada, tem formulao a

    um tempo dramtica e esquematizada no que se tornou conhecido na literatura

    dedicada teoria dos jogos como o dilema do prisioneiro, expresso que veio a se

    transformar numa espcie de designao genrica para as situaes em que o problema

    em questo se acha envolvido. A, dois indivduos que tm a possibilidade de ganho

    conjunto atravs da adoo de determinada linha de ao inscrita entre as alternativasque deparam so levados, dados os estmulos existentes ao guiada pelo interesse

    particular, a adotarracionalmente estratgias que redundam em desastre para ambos.

    Um ponto adicional de interesse evidenciado pelo jogo do dilema do prisioneiro o de

    que, ainda que a forma usual de apresentar a situao em que os agentes se vem

    envolvidos suponha a impossibilidade de comunicao entre eles, a possibilidade de

    que se comuniquem e cheguem eventualmente ao estabelecimento de um pacto de ao

    condizente com o interesse comum no vir seno a significar, dada a estrutura da

    129

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    situao, que cada qual ter motivos adicionais para agir de forma a promover seu

    interesse pessoal e a frustrar o interesse coletivo, e o pacto estabelecido estar

    destinado a no ser observado, a menos que os agentes venham a ser coagidos a

    observ-lo.

    Apesar da elaborao e formalizao que lhe dada na literatura contempornea

    dapublic choice e da teoria do jogos, a formulao em si do problema e no de hoje.

    Ele pode ser encontrado, por exemplo, como subjacente a algumas das dificuldades

    que marcam a teoria hobbesiana da obrigao no contexto da passagem do estado de

    natureza para a sociedade civil, dificuldades que so objeto de intenso debate ainda emnossos dias15. Alm disso, como assinalou recentemente Raymond Boudon, ele se

    encontra formulado de maneira perfeitamente clara, e com plena conscincia das

    implicaes, noDiscurso sobre a Origem da Desigualdade, de Rousseau, cumprindo

    papel essencial na teoria poltica deste autor.16 Por outro lado, discusses recentes,

    como as realizadas pelo prprio Boudon emEffets Pervers et Ordre Social,procuram

    situar o dilema do prisioneiro como caso especial do problema geral dos efeitosperversos (ou efeitos agregados, ou efeitos compostos). Tal problema foi tratado

    de maneira pioneira, contemporaneamente, em um clssico artigo de Robert K.

    Merton, tendo, porm, na sua forma genrica, antecedentes em autores tais como

    Mandeville, Adam Smith e mesmo Marx, alm de Rousseau. Ele se caracterizaria,

    nessa forma genrica, por envolver efeitos coletivos e individuais que resultam da

    justaposio de comportamentos individuais sem estarem includos nos objetivosbuscados pelos atores.17

    15 Vejam-se, por exemplo, Howard Warrender, The Political Philosophy ofHobbes, Oxford, OxfordUniversity Press, 1957; John Plamenatz, "Mr. Warrenders Hobbes", Political Studies, vol. V, no. 3,outubro de 1957; e A. E. Taylor, "The Ethical Doctrine of Hobbes", em Keith Brown, (ed.), HobbesStudies, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1965.

    16 Boudon,Effets Pervers et Ordre Social, pp. 20-21, por exemplo.17 Ibid., pp. 7 e seguintes., citao da p. 10. O artigo de Merton mencionado "The Unanticipated

    Consequences of Purposive Social Action",American Sociological Review, 1936, vol.1, pp. 894-904. Comrespeito a Marx, como sustenta Boudon no volume citado, o uso feito da idia de contradio correspondeclaramente noo de efeitos perversos.

    130

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    Seja como for, do ponto de vista do que aqui nos interessa, o importante que se

    trata sempre de situaes em que temos como aspecto saliente as conseqncias que

    derivam para cada participante, e para os interesses ou objetivos por ele buscados, do

    fato de que h outros participantes atuando com vistas realizao de seus prprios

    interesses ou objetivos, supondo-se, ademais, que a ao destinada realizao dos

    interesses que a motivam se guia por consideraes de eficcia ou seja, uma ao

    passvel de ser tratada em termos de racionalidade. Naturalmente, podem considerar-se

    toda uma srie de situaes diversas, nas quais o grau de complexidade resultante da

    interdependncia das aes pode variar enormemente, indo desde os casos que

    corresponderiam mais estritamente ao modelo da interao estratgica na formasimplificada da interao entre dois indivduos (que pode ainda variar conforme se

    trate de interao disciplinada por regras estabelecidas, cujo prottipo seria o de um

    jogo de estratgia, ou de indivduos que se confrontem num suposto estado de

    natureza) at o da interao entre grande nmero de indivduos e de agentes coletivos

    de natureza variada, e envolvendo uma trama grandemente complicada de conjecturas

    de parte de cada qual sobre os provveis efeitos das aes dos demais e um grauelevado de incerteza. O prprio Olson estabelece algumas distines importantes nesse

    sentido, como a que se d entre os grupos pequenos e os grupos ou categorias de

    grandes dimenses, denominados grupos latentes, derivando da distino

    proposies em que se afirma a existncia de probabilidades diversas de obteno do

    interesse comum em cada caso. Parece bastante claro, porm, que o caso de situaes

    em que tenhamos efeitos perversos em sentido mais estrito, resultantes da agregaoou composio da ao de numerosos indivduos, pode ser tratado como um caso

    particular das externalidades que derivam das aes de uns para os objetivos de

    outros, as quais incluiriam tambm o caso de situaes em que tais externalidades se

    do nas interaes entre grupos menos numerosos de agentes ou mesmo entre apenas

    dois agentes, e em que a interferncia dos objetivos de uns com os de outros resultam,

    de maneira mais ou menos casual, da simples co-presena; e que ambos os casos

    acima podem ser reunidos aos casos especiais em que, independentemente do nmero

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    de participantes, os resultados positivos ou negativos para uns que advm das aes

    dos outros no so conseqncias inadvertidas ou casuais de um efeito de composio

    ou da simples co-presena, mas so antes efeitos deliberadamente buscadosem tais

    aes. O crucial, portanto, do ponto de vista do objetivo de marcar o domnio da

    poltica pois disso que se trata , que tenhamos a interferncia recproca dos

    objetivos de uns com os objetivos de outros, sendo secundrio, apesar da importncia

    do reconhecimento do carter sempre intencional das aes, o fato de que certos

    efeitos sejam buscados como tais ou no.

    Isso permite explorar de maneira esclarecedora alguns aspectos usualmentedestacados em conexo com a problemtica prpria da poltica. Um deles a ligao

    freqentemente estabelecida entre poltica e territorialidade, que encontra expresso

    mais clara na literatura de inspirao jurdica, com a nfase que a se costuma dar ao

    territrio como um dos elementos a comporem a prpria definio do estado.18 Sem

    entrar a discutir o mrito ltimo de abordagens que destaquem de maneira especial

    esse aspecto, inegvel a relevncia de que efetivamente se reveste a dimensoterritorial para a poltica, concorrendo de maneira decisiva para delimitar o mbito ou

    alcance das unidades mais abrangentes que se impem como pontos de referncia,

    usualmente, no exame de qualquer processo poltico concreto aquilo que em ingls

    se designa como apolity. O que pretendo salientar, na tica fornecida pelos pargrafos

    anteriores, que a relevncia da dimenso territorial tem a ver com o fato de que a

    ocupao em comum de determinado territrio constitui a forma mais bvia de seproduzir a co-presena (o que mesmo um enunciado tautolgico) de interesses ou

    objetivos diversos e, conseqentemente, a interferncia necessria de uns com os

    outros. Naturalmente, fatores de natureza variada (geogrfica, ecolgica, econmica,

    tecnolgica, militar ou, se se quiser, sociolgica em sentido amplo) contribuem para

    emprestar carter relativo a essa idia de co-presena ou co-territorialidade e para

    18 Herman Heller, Teoria do Estado, So Paulo, Mestre Jou, 1968, um exemplo um tanto especial,combinando a tradio jurdica com uma abordagem mais sociolgica na noo de "cooperao social-territorial".

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    configurar em cada caso o mbito efetivamente relevante de uma contiguidade

    territorial que, vista de certa forma, pode ser percebida como estendendo-se escala

    planetria e como sofrendo solues de continuidade meramente artificiais. Essa

    reserva no afeta, porm, o ponto bsico contido naquela proposio.

    Outro aspecto tem a ver com a evidncia de que certos tipos de grupos, tais

    como as classes sociais (tomada a expresso em sentido amplo) e os grupos tnicos

    (independentemente de contarem ou no com uma base territorial determinada), se

    mostram relevantes para a vida poltica de maneira peculiar, que os reveste de singular

    importncia. Com efeito, tais grupos no apenas fornecem com grande freqncia osubstrato ou o ponto de referncia para a ao poltica, como tambm costumam ser

    objeto de formas de ao poltica caracterizadas por envolvimento especialmente

    intenso dos participantes. Pois bem: constata-se que esses dois tipos de grupos

    compartilham certas caractersticas entre si e com as coletividades de base territorial

    que tm conseqncias importantes do ponto de vista da questo da interferncia

    recproca dos interesses uns com os outros. Isso se torna claro quando os confrontamoscom os grupos que certa literatura terica no campo da sociologia tem designado como

    grupos funcionais, os quais so grupos dedicados a objetivos especficos e

    caracterizados pela participao voluntria e segmentar de seus membros. Por

    contraste, os grupos tnicos e as classes sociais so grupos multifuncionais de

    objetivos difusos (na medida em que caiba realmente falar de objetivos com respeito

    a tais grupos), caracterizando-se ainda pelo fato de que a participao dos indivduosno objeto de deciso voluntria (sendo de natureza adscrita, para usar a

    terminologia introduzida na primeira parte) e assume tipicamente a forma de uma

    insero total de seus membros: trata-se aqui de microcosmos ou subculturas

    capazes de condicionar as orientaes e as aes dos indivduos de maneira abrangente

    e complexa.

    Ora, v-se que as caractersticas de adscrio, insero envolvente e

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    multifuncionalidade (formando, claramente, uma sndrome de traos cuja associao

    no acidental) distinguem tambm as coletividades de base territorial, que podem

    mesmo ser vistas, de certa forma, como o caso por excelncia de agrupamento

    multifuncional um certo elemento de territorialidade estando tendencialmente

    presente nos outros dois tipos de grupos multifuncionais considerados. Da o

    significado poltico especial de grupos como as classes e etnias, a participao nos

    quais no pode ser objeto de uma segmentarizao ou compartimentalizao de

    objetivos, donde a conseqncia de que sero naturalmente focos ou fatores de

    interferncia recproca ou confronto de objetivos diversos, e particularmente de

    competio com as demandas provenientes da coletividade territorial politicamenteorganizada em que se integrem.19 Da tambm algo que ajuda e esclarecer a relevncia

    poltica da prpria dimenso territorial, salientando na multifuncionalidade que

    inerente s coletividades territoriais os aspectos que as tornam por si mesmas

    propensas a engendrar o entrechoque de interesses ou objetivos e que fazem da

    ocupao em comum de determinado territrio a condio, por assim dizer, em que

    no se escapa dos outros ou, por outras palavras, em que fatalmente se produzemexternalidades.

    3. Sujeitos coletivos versus individualismo metodolgico: critica a M. Olson.Interesses e solidariedade, o estratgico e o organizacional.

    Outra dimenso ou ramificao importante do que se descreveu acima como o

    problema constitucional a que tem a ver com o jogo entre aspectos de cooperao e

    luta, comunicao (interao pura) e estratgia. Naturalmente, este , no fundo, o

    19 Quanto s classes, se partimos, com Marx, da suposio de afinidade entre a forma assumida pelasrelaes entre classes e as idias dominantes na sociedade como um todo, o que se diz no texto seaplicaria. naturalmente, s classes subordinadas.

    134

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    mesmo problemas das externalidades (e de sua internalizao) abordado acima, e

    s o interesse do esclarecimento analtico dos problemas que permite (e requer) sua

    decomposio em dimenses observao que se aplica, de resto, a outros aspectos a

    serem considerados.

    Percebe-se que o que se encontra envolvido na concatenao dos aspectos de

    cooperao e luta , em ltima anlise, a questo do sujeito, no segundo dos sentidos

    que se fixaram para essa questo ao final da primeira parte, ou seja, o de quais so os

    sujeitos coletivos reais do processo poltico, o que equivale a indagar como se

    constituem como sujeitos e eventualmente como deixam de s-lo. Se se examina aquesto do ponto de vista da literatura dapublic choice e do instrumental analtico a

    que recorre usualmente, dois itens relacionados merecem provavelmente destaque a

    respeito: o de egosmo versus altrusmo nos supostos que caracterizam a

    abordagem e o do individualismo metodolgico tambm a encontrado.

    O individualismo metodolgico, isto , a postura metodolgica que consiste emconsiderar os indivduos como ponto de partida e como os nicos verdadeiros agentes

    (ou verdadeirossujeitos) no processo scio-poltico, sem dvida um suposto

    explcito e crucial na literatura dapublic choice. Ele pode ser ilustrado com The

    Calculus of Consent, de J. Buchanan e G. Tullock, onde se contrape uma concepo

    orgnica do estado a outra individualista e contratualista e se argumenta em favor desta

    ltima; ou comEffets Pervers et Ordre Social, de Boudon, onde o individualismometodolgico posto em correspondncia com as prprias vantagens que o autor

    enxerga numa abordagem interacionista s cincias sociais capaz de atentar para os

    aspectos intencionais da ao, por contraste com o determinismo estrutural prprio da

    abordagem denominada sociologismo.20 O individualismo metodolgico tem o

    mrito inegvel de recusar-se a resolver por hiptese, em qualquer nvel (vale dizer, no

    20 Buchanan e Tullock, The Calculus of Consent, partes citadas na nota 12 acima; Boudon,Effets Pervers etOrdre Social, pp. 12-15 e especialmente p. 57.

    135

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    nvel de grupos parciais de qualquer tipo, bem como no da sociedade global), aquilo

    que precisamente o problema decisivo de quais vm a ser os sujeitos coletivos do

    processo scio-poltico. As posturas alternativas, com efeito, tendem a bifurcar-se

    entre, de um lado, a postulao de um carter orgnico no plano da sociedade global

    como um todo, omitindo ou minimizando os elementos de tenso e luta entre unidades

    coletivas parciais; e, de outro, a nfase na importncia de tais unidades parciais e da

    tenso entre elas, mas freqentemente sem maior sensibilidade para o que h de

    problemtico, no apenas na constituio de um consenso orgnico ao nvel global,

    que se nega de partida, mas tambm na constituio das prprias unidades parciais

    como tal, ou seja, como sujeitos capazes de agir coletivamente em unssono. Ointeresse central da obra de Olson acima mencionada (The Logic of Collective Action)

    reside exatamente na fora com que adverte para esse carter problemtico, que

    ocorreria, de resto, no somente no caso da passagem do estritamente individual para o

    coletivo, mas, em geral, em qualquer caso de passagem do particular para o comum ou

    compartilhado, embora com variedade de matizes. Note-se, ademais, o ponto de

    contato entre o privilgio metodolgico concedido ao indivduo na anlise, de um lado,e, de outro, a necessidade, que deparamos anteriormente a propsito de Habermas,

    Arendt e Marx, de se tomar o indivduo como ponto de referncia na perspectiva

    orientada por um interesse emancipatrio comprometido com a eliminao da

    dominao.

    Ocorre, porm, quanto adeso ao individualismo metodolgico no campo dapublic choice, que ela evidencia algo que se poderia descrever como o defeito de sua

    virtude. De fato, o elemento saudvel de cautela contra a simples postulao da

    existncia de certas entidades como correspondendo a sujeitos coletivos reais se

    transforma com freqncia praticamente em vedar a possibilidade de se atribuir a

    grupos ou coletividades a capacidade de ao intencional, ou seja, de se constiturem

    em sujeitos. Tal proibio aparece, por exemplo, como implicao direta da

    assimilao feita por Boudon entre o individualismo metodolgico e a considerao

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    dos aspectos intencionais da ao. Embora de maneira mais nebulosa, tambm em

    Olson a contribuio inestimvel contida na anlise do carter problemtico da ao

    coletiva se faz acompanhar de inconvenientes anlogos, trazendo como contrapeso a

    negao quase total da relevncia analtica dos aspectos de qualquer natureza que

    possam ser vistos como produtores desolidariedade e, conseqentemente, de ao em

    comum que no seja o resultado direto da simples coero ou da remunerao ao

    interesse individual como tal (os incentivos separados ou seletivos).Este um

    ponto de grande importncia, pois permite transitar para a questo de egosmo ou

    altrusmo e para o esclarecimento do alcance da ligao acima assinalada entre o

    individualismo metodolgico e uma perspectiva crtica que tenha a autonomiaindividual como referncia.

    Com efeito, a indagao bvia que as proposies de Olson sugerem a do

    papel eventualmente desempenhado na ao coletiva por motivos de ordem moral,

    afetiva ou ideolgica que sejam capazes de engendrar solidariedade e aosolidria

    em sntese, vistas as coisas em certa tica, por motivos de natureza altrustica.Claramente, a sugesto bsica de Olson pode ser vlida como crtica extrapolao,

    para o caso da ao coletiva, de princpios que supostamente regeriam a ao

    estritamente individual em certas esferas sem que isso determine a resposta a ser dada

    questo de como se desenvolve a ao coletiva. Esta poderia dar-se, se deixamos de

    lado o caso da coero pura e simples, seja atravs de incentivos seletivos ao interesse

    individual para o caso da adoo de formas de conduta compatveis com o bemcoletivo, seja pela presena de motivos como os que acabamos de mencionar. Seria

    essa uma distino relevante? No a julgar pelo que diz Olson, que se desembaraa do

    problema da motivao moral ou ideolgica em simples nota de p de pgina, com

    base na possibilidade de interpret-la como correspondendo a condicionantes da ao

    que variariam individualmente e proveriam estmulos distintos dos representados pela

    prpria realizao do bem coletivo, podendo ser descritos em termos do objetivo de

    alcanar determinados estados psicolgicos (estar em paz consigo mesmo, sentir-se

    137

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    solidrio) e subsumidos, em conseqncia, sob o rtulo de incentivos seletivos ou

    incentivos separados. Dito de outra forma, no seria em si o benefcio associado

    realizao do bem coletivo que levaria ao conducente ao mesmo, mas a obteno

    de um objetivo que seria ainda interpretvel como individual.

    Contudo, essa interpretao corresponde precisamente a negar o carter

    inexorvel do dilema de Olson, pois ela implica a admisso de que existe a

    possibilidade de compatibilizar objetivos coletivos e individuais. Admitida essa

    possibilidade ou seja, admitido que, por motivos de ordem moral ou ideolgica, os

    indivduos podem ser levados a se prescreverem objetivos que remetem realizao dointeresse coletivo , a natureza do problema bsico se modifica. Naturalmente, Olson

    poderia contestar que o objetivo de sua anlise seria precisamente revelar as condies

    de conciliao entre interesses individuais e interesses coletivos e que a noo de

    incentivos seletivos seria aquela atravs da qual se poderia enunciar genericamente tais

    condies, que encontraramos no apenas no caso da ao compatvel com o bem

    coletivo moral ou ideologicamente motivada, mas tambm no caso em que essa ao motivada por expectativas de ganho ou pelo estrito interesse individual. O ponto

    importante, porm, consiste em salientar a diferena entre esses dois casos, diferena

    que a colocao de ambos sob a rubrica de incentivos seletivos deixa na sombra: no

    segundo caso temos o indivduo atuando em prol do interesse coletivo em funo de

    uma barganha em que este lhe alheio, enquanto no primeiro o vemos atuando em

    funo de uma norma interior que lhe prescreve o interesse coletivo como objetivomanifesto de sua ao, ainda que o cumprimento das aes correspondentes possa ter

    para traduzir em termos de Robert Merton o que Olson sustenta a respeito funes

    latentes para o indivduo em questo.

    A importncia da diversidade de implicaes desses dois casos bastante clara.

    O caso em que o indivduo age em funo de uma norma interior que lhe prescreve o

    interesse coletivo corresponde, em terminologia weberiana, ao comunal ou

    138

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    comunitria, fundada em sentimentos de solidariedade. E a introduo da idia de

    solidariedade e da ao nela inspirada que altera os termos do problema discutido por

    Olson, permitindo situar fenmenos que a estrita perspectiva de interesses individuais

    tende a obscurecer. Basicamente, o problema se transpe ento para o nvel de algumas

    questes empricas: (1) Existem ou no efetivamente, nesta ou naquela categoria de

    indivduos que represente uma coletividade potencial, laos ou sentimentos reais de

    solidariedade? (2) Tais sentimentos so de molde, dados sua intensidade e outros

    aspectos da situao (tais como os que tm a ver com a distino de Olson entre grupos

    pequenos ou privilegiados e grupos latentes; ou, para tornar o contraste mais

    extremado, os que distinguem um grupo latente, no sentido de Olson, de uma famliaharmoniosa e coesa), a produzir ao condizente com os objetivos comuns (solidrios)

    de maneira natural e automtica? (3) Em qualquer caso, quais so os elementos de

    natureza organizacional portanto, voluntria e instrumental, e mesclando

    componentes estratgicos e comunicacionais ou de deliberao coletiva que se

    superpem ou procuram superpor-se base de solidariedade potencial ou real com

    vistas a assegurar os objetivos comuns? Naturalmente, um enfoque como este supe,por parte do analista, no apenas a possibilidade de diagnosticar a existncia de bases

    potenciais de solidariedade (o que no envolveria qualquer problema relativamente a

    Olson, pois aqui se incluiriam precisamente seus grupos latentes, bem como qualquer

    outro caso em que seja possvel apontar o compartilhamento objetivo de certa

    condio), mas tambm a de apreender de alguma forma o grau em que essas bases

    se traduzem na existncia de coletividades ou grupos sociais efetivos, com objetivoscompartilhados e aptido a mobilizar-se em funo deles, eventualmente em

    correspondncia com o compartilhamento de atitudes, vises do mundo comuns e

    elos afetivos reais (que o que Olson se recusa a enxergar ou salientar).

    Tudo isso j fornece certas pistas com respeito questo de egosmo-altrusmo.

    Mas boa via de acesso ao melhor esclarecimento dessa questo, que nos permitir toc-

    la em conexo com outros aspectos do problema geral, consiste em tomar a maneira

    139

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    pela qual ela surge no texto do prprio Olson. Com efeito, apesar de Olson ter em

    mente em geral o caso do comportamento egosta ouself-interested,justamente o

    exame do caso dos grupos latentes, que correspondem ao caso mais tpico do dilema

    olsoniano, introduz um matiz importante. Trata-se de que, neste caso, conforme Olson

    afirma expressamente,21 as dificuldades para a realizao do interesse comum derivam

    no tanto da oposio entre interesses coletivos e interesses particulares de indivduos

    egostas, mas antes do problema de coordenao que resulta, dadas as dimenses do

    grupo, da irrelevncia da ao de qualquer indivduo considerado isoladamente para a

    realizao do interesse comum, uma vez que a contribuio que as aes de cada

    indivduo aportam para o efeito global infinitesimal: isso levaria, supe Olson,mesmo indivduos altruisticamente motivados, se racionais, a no investirem recursos

    ou esforos para a obteno do interesse comum. O suposto crucial de Olson na

    caracterizao do problema da ao coletiva de que se ocupa no consistiria, portanto,

    na motivao egostica das aes, mas antes na racionalidade.

    Essa anlise contm a particularidade curiosa de negar-se a si mesma. Pois, seela correta, o racional para o altrusta agir altruisticamente, isto , de maneira

    condizente com a realizao do interesse comum, sob pena de reduzir por suas prprias

    aes as chancesde realizao de seus objetivos (altrustas). A anlise s seria vlida

    na suposio de que o analista (Olson, no caso) pode alcanar um grau superior de

    racionalidade no diagnstico dos aspectos relevantes da situao que estaria vedado

    aos prprios agentes do processo social. O que ela tem de problemtico ficaparticularmente evidente se a transpomos para a estrutura simplificada da historieta

    que normalmente acompanha a descrio do jogo do dilema do prisioneiro, em que

    temos apenas dois indivduos a decidirem, cada um procurando levar em conta a

    provvel deciso do outro: todo o interesse do jogo consiste, como vimos, em mostrar

    como, em decorrncia de se orientarem as decises por motivos egosticos de parte a

    parte, o resultado, ainda que deva ser tratado como advindo de comportamentos

    21 The Logic of Collective Action, pp. 64-5.

    140

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    racionais em termos de objetivos individuais e egosticos, claramente o fruto de uma

    irracionalidade em termos de objetivos passveis de serem tomados como comuns e

    que a estrutura da situao define com clareza. Se transpomos para este nvel a

    proposio de Olson reproduzida no pargrafo anterior, v-se que ela equivale a supor

    que prisioneiros que fossem por definio solidrios e altrustas continuassem a agir

    como se tivessem objetivos individualistas e egosticos, o que seria, naturalmente,

    rombuda irracionalidade contrariando frontalmente o prprio suposto de

    comportamento racional que se alega ser o postulado fundamental da anlise.

    Por certo, a considerao do problema no nvel das categorias sociais numerosasque correspondem aos grupos latentes altera os seus termos justamente ao introduzir os

    efeitos resultantes do grande nmero e do carter infinitesimal (em casos extremos,

    naturalmente) da contribuio de cada um. Mas o que aqui importa estabelecer que

    tais efeitosso, se Olson tem razo, inequivocamente um fator de irracionalidade no

    comportamento dos agentes se supomos objetivos solidrios e motivao altrustica e

    fica bastante claro que Olson no inteiramente conseqente com o que afirma tomarcomo postulado no que se refere a egosmo-altrusmo, de um lado, e a racionalidade,

    de outro. Registremos de passagem a observao interessante, no contexto da

    referncia polmica a Habermas no correr do presente trabalho, de que esta

    precisamente uma das variantes do sentido em que cabe falar de irracionalidade de

    determinada sociedade (capitalista, tecnocrtica): o de objetivos reais que se frustram.

    Na variante em questo, tal frustrao decorreria da prpria maneira como sedesenvolvem as atividades que visam a realizar os objetivos, correspondendo

    estritamente idia dos efeitos perversos, de Boudon, e contradio de Marx.

    Que dizer, nessa perspectiva, do problema geral do carter egosta ou altrusta da

    motivao dos agentes e de seu papel na anlise? Esse problema desperta

    tradicionalmente grande celeuma, associando-se com disputas em torno do maior ou

    menor realismo de concepes supostamente propensas a salientar seja os elementos

    141

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    de conflito (interesses, luta, coero), seja os elementos de consenso (valores,

    normas, equilbrio) na realidade social e poltica.22 A celeuma no maior, porm,

    do que as confuses de que se carrega. Destaquemos apenas, como exemplo mais

    sugestivo, em nosso contexto, dos equvocos envolvidos, a nfase simultnea, por parte

    da literatura que melhor corresponderia perspectiva conflitual, nos elementos

    realsticos de interesse e luta, por um lado, e, por outro, nos elementos de coeso

    necessrios seja para dar conta das solidariedadesparciais (que so um requisito para o

    conflito se cristalizar e se tornar efetivo), seja para propor a meta de uma sociedade

    racional, no-conflitual ou no-contraditria em sntese, o problema mesmo das

    relaes complexas entre o comunicacional e o estratgico a respeito do qualvimos antes as vacilaes de Habermas. Diante dos matizes de tal problema, qual seria

    a motivao adequada a se postular, egosta ou altrusta?

    Formular a indagao nesse contexto evidenciar o que ela tem de imprprio.

    Pois torna-se bastante claro que a caracterizao de determinado motivo ou ao como

    sendo egosta ou altrusta algo que depende inteiramente do ponto de vista que seadote. Assim, quando atuo em benefcio dos interesses de minha famlia, de meu

    partido, de minha classe, de meupas, sou egosta ou altrusta? Ou egosmo aplica-se

    apenas atuao motivada por interesses estritamente individuais? Neste caso, como

    avaliar, digamos, o burgus que atue em prol dos interesses de sua classe? Ainda que

    por hiptese essa ao vise deliberadamente a consolidar ou aumentar a explorao de

    outra classe mais numerosa e se traduza diretamente na defesa de seus interessespessoais, ela um exemplo de altrusmo tanto quanto de egosmo. E o proletrio que

    trate de promover os seus prprios interesses atravs da ao coletiva de classe, ao se

    tornar consciente e perceber a identificao de seus interesses com os de sua classe,

    um exemplo de egosmo tanto quanto de altrusmo. V-se, para evitar elaborar

    excessivamente algo perfeitamente bvio, que a questo do carter egosta ou altrusta

    22 Veja-se especialmente Ralf Dahrendorf, Class and Class Conflict in Industrial Society, Stanford, Cal.,Stanford University Press, 1959.

    142

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    da motivao como tal simplesmente irrelevante, e o que importa a existncia real

    na sociedade de propostas para express-lo assim de definio de fins coletivos

    (ou individuais, naturalmente) e de ao em funo deles, bem como o grau de

    viabilidade ou as chances de xito efetivo de tais propostas, chances estas

    condicionadas pelas respostas s indagaes empricas acima formuladas a respeito do

    papel dos fatores de solidariedade em Olson. Do ponto de vista da questo da

    racionalidade, que aquela onde o problema da motivao egosta ou altrusta surge

    reiteradamente de maneira explcita, o que importa de fato, como sustenta Olson, a

    adequao da ao a fins dados de qualquer natureza contanto que no se jogue,

    precisamente, com respeito natureza dos fins,descrevendo como racional umaao egosta num contexto em que se postulam fins altrustas.

    Mas, apesar de mal posta e irrelevante em sua colocao tradicional em termos

    do realismo, em geral, da suposio relativa ao carter egosta ou altrusta da

    motivao como tal, a questo de egosmo-altrusmo toca, por certo aspecto, no cerne

    mesmo da questo mais bsica da poltica. Pois ela remete ao problema do maior oumenor alcance ou abrangncia coletiva dos fins que se perseguem em qualquer ao

    dada, ou seja, do grau em que tais fins so efetivamente compartilhados por um

    conjunto mais ou menos extenso de membros de determinada coletividade territorial

    (ou mesmo, naturalmente, de mais de uma coletividade territorial). No so casuais,

    certamente, as ressonncias que a contraposio altrusmo-egosmo contm em comum

    com outras que temos aqui considerado em sua relevncia para a temtica poltica, taiscomo a dicotomia amigo-inimigo de Schmitt, ou cooperao-luta e comunicao-

    estratgia. Desse ponto de vista, o importante captar em termos sociolgicos a

    dialtica que se exprime em abstrato, de certa maneira, na contraposio e no jogo de

    egosmo e altrusmo na rea da motivao.

    A intuio talvez mais perceptiva dessa dialtica, que permite situar em sua

    fluidez o que anteriormente se denominou o problema do sujeito no que tem de

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    relevante especificamente para a esfera da poltica, surge na descrio fornecida por

    Alessandro Pizzorno das relaes entre sistemas de solidariedade e sistemas de

    interesse.23 Como sugere Pizzorno, o interesse de um ator significa a ao pela qual

    ele se distingue de outros atores, visando a melhorar sua posio relativa no confronto

    com estes. (...) Para que tal ao seja possvel necessrio que seus resultados sejam

    mensurveis isto , passveis de serem avaliados em termos de melhoroupior, de

    mais ou menos e que o critrio de mensurao seja comum ao ator e queles com

    respeito aos quais o ator pretende melhorar sua posio. (...) Um sistema de interesses

    comporta, portanto, um sistema de avaliaes comuns que servem a um conjunto de

    atores...24 ou seja, ele requer um sistema desolidariedade subjacente, ainda que osobjetivos que em tal sistema se compartilham correspondam apenas s condies que

    permitem aos atores empenhar-se no jogo de vantagens comparativas. Por outro lado,

    contudo, a constituio de um sistema de solidariedade se d pela referncia aos

    valores de um sistema de interesses, atravs do processo de formao do que Pizzorno

    denomina reas de igualdade. Com efeito, aqueles que participam numa

    coletividade solidria colocam-se, enquanto membros da mesma, como iguais peranteos valores de um determinado sistema de interesses. Em outras palavras, um sistema

    de solidariedade se constitui pela negao, ainda que numa rea mnima, das

    desigualdades correspondentes a determinado sistema de interesses.25

    Temos, pois, clara relao de implicao mtua entre os dois conceitos, qual

    corresponde, no plano real, um jogo dialtico de crucial importncia. Tal como no casodo exame feito h pouco das relaes entre egosmo e altrusmo, aqui tambm, por

    contraste com a simplria oposio usual entre interesses e solidariedade ou

    conceitos correlatos a ser encontrada em certo tipo de confronto de orientaes nas

    cincias sociais, importante notar que a distino entre ao interessada e ao

    23 23 Alessandro Pizzorno, "Introduzione allo Studio della Partecipazione Politica", Quaderni di Sociologia,

    vol. 15, nos. 3-4, julho-dezembro de 1966, pp. 235-288.24 Ibid., pp. 252-3.25 Ibid., p. 256.

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    solidria no diz respeito seno ao ngulo a partir do qual focalizemos a ao em

    questo. Em certo sentido, no h diferena entre os conceitos de solidariedade e

    interesse, proposio esta que se esclarece pela observao de Pizzorno, em citao de

    Leopardi, de que um sistema de solidariedade corresponde condio em que o amor

    prprio dilata o quanto pode o seu objeto.26 Tudo depende, para um dado ator, da

    maneira pela qual ele define o sistema de interesses relevante para sua ao, o que

    equivale a definir o mbito de sua solidariedade relativamente aos interesses de que se

    trata. De outro ponto de vista, constatar a existncia de uma coletividadesolidria de

    qualquer tipo definir um foco coletivo de interesse. Assim, enquanto interesse diz

    respeito a qualquer fim ou objetivo prprio (prprio referindo-se seja a atoresindividuais, seja a atores coletivos), solidariedade refere-se ao compartilhamento de

    objetivos ou interesses (que pode dar-se, igualmente, em diferentes escalas).27

    Um ponto crucial, porm, para o argumento que aqui se desenvolve, ponto este

    que no destacado por Pizzorno, o de que sempre que uma coletividade ou

    categoria de qualquer natureza adquire os traos que permitem v-la como um sistemade solidariedade tornando-se uma rea de igualdadecom respeito a alguma questo

    relevante ,ela se torna ipso facto um sistema de interesses do ponto de vista das

    26 Ibid., p. 252.27 Poder-se-ia objetar que as relaes descritas entre solidariedade e interesses derivam precisamente da

    definio especial, e talvez imprpria, da noo de interesse, na qual ela reduzida a qualquer objetivode um agente, independentemente de sua natureza. No seria possvel definir interesse de maneira asustentar a relevncia da oposio entre interesses e solidariedade nos termos do confronto de orientaesmencionado no texto? Os critrios bvios que ocorrem teriam a ver com a natureza material oueconmica dos objetivos, ou com as possveis vantagens de se tomar a noo de interesse numa acepoem que ela venha a corresponder a objetivos materiais ou econmicos. Se tomamos objetivoseconmicos, de duas, uma: ou se aceita a posio, apresentada anteriormente no texto, que se recusa aidentificar o econmico com qualquer tipo de bens ou valores distinguidos. por sua natureza intrnseca,caso em que falar de objetivo econmico no altera os termos do problema; ou, ao contrrio, se recusaaquela posio, ligando-se a idia de interesse econmico precisamente de objetivo materialde algumtipo. Mas falar de objetivos materiais como critrio com base no qual estabelecer a distino entresolidariedade e interesses exigiria, naturalmente, que o compartilhamento de objetivos materiais no

    pudesse servir de fundamento para relaes solidrias, o que seria, claramente, impor uma restrioimprpria ao significado de solidariedade. De outro lado, nada h que permita sustentar que no se possaagir de maneira egosta ou interessada com respeito a objetivos no-materiais. Parece claro, portanto, que

    o nico critrio aceitvel o do grau em que se d o empenho de distinguir-se ou afirmar-se perante osoutros ou de identificar-se com os outros, qualquer que seja a natureza intrnseca dos objetivos em jogoquanto aos demais aspectos da ao.

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    relaes internas entre os seus membros. Estes sero levados, em tal condio, a

    competir ou se confrontar uns com os outros em termos de formas mais restritas de

    solidariedade, ou, num limite logicamente concebvel, de objetivos ou interesses

    estritamente individuais. Tal competio ou confrontao se dar seja em torno de

    novas questes, inteiramente parte daquela em torno da qual se constituiu

    originariamente a rea de igualdade e o sistema de solidariedade; seja em torno do

    grau em que os membros tm acesso a recompensas de qualquer natureza associadas a

    sua contribuio diferencial para os prprios objetivos comuns isto , aqueles

    objetivos mesmos em termos dos quais a coletividade em questo pode ser vista como

    um sistema de solidariedade, e com respeito aos quais se impe, naturalmente, umproblema de eficcia na atuao da coletividade relativamente ao sistema de interesses

    que constitui seu ambiente. O processo interno de confrontao ou competio pode

    assumir, por certo, formas mais intensas ou mitigadas de acordo com variados fatores,

    entre os quais adquire relevo o da prpria intensidade que assume a luta ou, mais

    genericamente, o relacionamento estratgico da coletividade com as outras (os

    outros mas de solidariedade) que ajudam a compor o ambiente (o sistema de interessesabrangente) em que todas atuam. fcil perceber a afinidade dessas proposies com a

    intuio bsica contida na famosa lei de ferro da oligarquia, de Robert Michels. E a

    explicitao dessa afinidade oferece a oportunidade para se destacar tambm

    explicitamente que a idia de sistemas de solidariedade envolvidos num processo de

    configurar-se como tal e atuar no mbito de sistemas de interesses em que objetivos

    variados se entrecruzam em choques e alianas, se, por um lado, coloca por definioum problema de relaes estratgicas entre sistemas de solidariedade, coloca tambm

    fatalmente um problema estratgico internamente a tais sistemas. Por outras palavras,

    o problema da constituio plena de um sistema de solidariedade capaz de

    desempenhar-se com xito perante os interesses em funo dos quais ele se diferencia

    e individualiza no bojo de um sistema geral de interesses , em ampla medida, um

    problema de organizao e tal problema de organizao envolve, concomitantemente

    com ingredientes de comunicao e na medida mesma em que visa ao xito e

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    afirmao de si correspondente definio do interesse como o distinguir-se, a

    presena importante de ingredientes estratgicos tanto externa quanto internamente. A

    perspectiva dapublic choice,em alguns de seus produtos (dos quais The Logic of

    Collective Actionseria o exemplo por excelncia), destaca este aspecto estratgico,

    organizacional e de interesses a um certo custo. Tal custo no seria, porm, inerente

    ao recurso aos instrumentos da abordagem por si mesmo.

    Voltemos a Olson. Diversos aspectos das proposies recm-formuladas (a

    implicao recproca entre interesses e solidariedade e certa diluio do contraste entre

    essas duas noes, a nfase de h pouco nos aspectos estratgicos e de interesses)pareceriam opor-se nfase anterior, contra Olson, na relevncia da idia de

    solidariedade como fator de emergncia da ao coletiva sob a forma de ao comunal.

    O ponto que importa destacar, contudo, contra Olson (ou, mais cautelosamente, como

    complemento a Olson), o de que, assim como seria enganoso falar de ao solidria

    sem ter em mente o que h nela de ao interessada, assim tambm imprprio falar

    de interesses e de ao interessada sem ter presente que tendem a corresponder afocos ou ncleos coletivosmais ou menos amplos e a implicar, portanto, a

    ocorrncia de solidariedade. Uso deliberadamente a expresso tendem a

    corresponder para reservar espao para a considerao de dois matizes. De um lado, o

    fato simples de que, afinal de contas, existe tambm a possibilidade de se falar de

    interesses estritamente individuais. De outro, as questes, anteriormente destacadas,

    que giram em torno da diferena entre o caso do simples compartilhamento de umacondio objetiva de qualquer tipo e o caso em que temos a existncia de algo que

    corresponde definio de umgrupo socialpropriamente, envolvendo a presena e o

    compartilhamento, em alguma medida, de elementos de natureza subjetiva, e muito

    especialmente de fins ou objetivos comuns reais. O ncleo da anlise de Olson se

    dirige, com os grupos latentes, a situaes que se ajustam antes ao primeiro desses

    dois casos, com respeito s quais a comunalidade de fins antes imputada do que real

    e s cabe falar de interesses num sentido em que essa noo se aproxima da

    147

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    problemtica idia de interesses objetivos. Noutros termos, Olson, como vimos, na

    verdade no coloca o problema da comunalidade real de fins como um problema

    emprico,presumindo que se trata de um problema que pode ser posto e solucionado

    no nvel meramente analtico. Essa presuno deriva claramente de que Olsonparte de

    supostos em que se eliminam os grupos sociais como entidades reais, e o dilema

    mesmo por ele situado tem a ver diretamente com isso: temos apenas indivduos (ou

    entidadesparticulares movidas sempre por objetivos prprios, mesmo quando se

    pretende que um interesse objetivocompartilhado com outros seriao motivo

    altrustico ou solidrio de sua ao), sendo necessrio coagi-los ou remuner-los

    enquanto tal para que o resultado de sua ao no seja o caos e aqueles elementosque entram na prpria definio dos grupos sociais (ou de entidades coletivas em

    qualquer escala) so transformados, numa simples nota de p de pgina, em

    remunerao particular ou separada.

    Ora, assim como queles quepostulam a transformao automtica ou

    natural de certas categorias que compartilham condies objetivas em grupos sociaisreais, tambm a Olson, se bem que pelas razes opostas, cabe lembrar que o problema

    da formao de sujeitos coletivos, capazes de agirem como tal, oproblema e que

    tudo aquilo que anteriormente consideramos atravs das referncias ao aspecto

    institucionalizado da sociedade humana tambm pertinente em seu estudo. Olson

    contribui para esclarecer certos aspectos importantes desse problema em determinado

    tipo de situaes, e no h dvida de que sua anlise se ajusta empiricamente a casosde falha na obteno de interesses comuns, como alguns que ele prprio examina em

    seu livro. A relevncia de sua anlise, alm disso, aumenta em decorrncia do fato de

    que alguns dos grupos de especial importncia poltica os grupos tnicos, as classes

    sociais e os agrupamentos de base territorial de que se tratou antes correspondem em

    geral, por suas dimenses, condio de grupos latentes. Mas, ao esclarecer

    determinados aspectos do problema, Olson escamoteia ou distorce outros aspectos

    relevantes, e tampouco h dvida de que sua anlise no tem condies de lidar

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    adequadamente com situaes empricas tais como o xito, por todos os aspectos

    improvvel luz de sua teoria, de um movimento revolucionrio como o de Fidel

    Castro na Cuba de Batista, ou com um Ir de nossos dias. E parece claro que o lado

    falho que se pode assim apontar em sua anlise se associa ao apego intransigente ao

    individualismo metodolgico.

    Retomemos agora o ponto de contato acima indicado entre o individualismo

    metodolgico, nos termos em que encontrado na teoria dapublic choice, e o

    indivduo como referncia necessria na concepo de um estado antecipado isento

    de dominao, na linha de Marx e Habermas, e procuremos avaliar desse ponto devista o contraste entre o enfoque de um Olson e o que vai aqui emergindo como

    proposta. Quanto a Olson, possvel dizer que ele, feitas as contas, tem a suposio de

    indivduos isolados como suposio imediata (tomada como se correspondesse a algo

    descritivo da prpria realidade dada a ser analisada) sobre a qual construir a anlise,

    indagando a partir da a respeito das condies para que tais indivduos venham a agir

    em conjunto. Para recorrer sugesto contida na inspirao contratualistaexpressamente reivindicada por alguns dos representantes da abordagem dapublic

    choice,postula-se, ao menos implicitamente, um estado de natureza em que no h

    instituies, no h histria, no h vnculos intergeneracionais, no h lealdades, mas

    apenas indivduos capazes de calcular em funo de interesses individuais que

    interferem uns com os outros. (Alis, a inspirao contratualista e o postulado do

    estado de natureza servem explicitamente a Boudon como fundamento para aelaborao de uma tipologia de paradigmas de anlise sociolgica.)28 Estamos, por

    outras palavras, no puro reino da estratgia.

    Por contraste, na perspectiva que aqui se propugna, trata-se sem dvida, por um

    lado, de ter em conta e de incorporaro aspecto institucional, histrico ou sociolgico,

    refugando o estado de natureza e o individualismo conseqente como supostos

    28Effets Pervers et Ordre Social, captulo VII, Dterminismes Sociaux et Libert Individuelle.

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    descritivos suficientes ou adequados anlise de situaes reais. Ao contrrio, o

    suposto imediato o da existncia de mltiplos processos mais ou menos

    consolidados ou bem-sucedidos de conformao de identidades coletivas e de

    definio de focos de solidariedade e interesses em coexistncia, e coloca-se como

    problema analtico o de apreender precisamente a imbricao entre aspectos

    estratgicos ou de clculo de interesses e aspectos sociolgicos de natureza variada

    para dar conta de tais processos e de suas conseqncias no plano global. De maneira

    especfica, para mencionar algo que toca diretamente em pontos destacados na

    discusso das teses de Olson, trata-se entre outras coisas de examinar como os aspectos

    sociolgicos em questo servem de substrato favorvel ou desfavorvel aos aspectosestratgico-organizacionais da constituio de sujeitos coletivos (de sistemas de

    solidariedade) e da deflagrao de ao coletiva.

    Por outro lado, contudo, a perspectiva que aqui se prope tem presente, em

    termos de Habermas, a ambivalncia de comunicao e domnio que prpria da

    dimenso institucionalizada da interao. Ela se recusa a desconhecer o aspectoestratgico expresso daquela ambivalncia que est sempre contido nas relaes

    estabelecidas entre os membros de qualquer coletividade, seja consolidada ou em

    formao, seja em escala microssociolgica ou macrossociolgica, como decorrncia

    de que se encontram, de alguma maneira, na presena uns dos outros. Dito de outro

    modo, supor a presena do elemento estratgico significa supor agentes cujos

    interesses ou objetivos contam, isto , de agentes que so pelo menos potencialmenteautnomos. Da que a prpria definio do problema analtico fundamental da poltica

    no possa seno remeter fatalmente concepo de um estado ou condio em que os

    indivduos, como unidades irredutveis do processo de interao social e poltica, se

    tornam o ponto de referncia necessrio. Evitando supor exclusivamente o interesse,

    suposio cujo limite lgico a violncia ou a beligerncia de todos contra todos; ou a

    solidariedade automtica, cujo limite lgico a concepo orgnica ou ciberntica da

    sociedade como um todo a abordagem proposta assim levada a conceber aquele

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    estado como equivalendo ao ponto em que a dialtica entre sistemas de solidariedade e

    sistemas de interesses se resolve no limite lgico da expanso mxima do mbito da

    solidariedade e igualdade e da correspondente instaurao de um sistema de interesses

    de igual amplitude, no qual (superadas mesmo as formas de domnio e de definio

    automtica de identidades coletivas correspondentes esfera familiar e privada, no

    sentido da temtica de Arendt) se confrontaro estrategicamente interesses puramente

    individuais (com a transformao de cada indivduo num monarca aristotlico). Tal

    estado, por outro lado, equivale tambm, como parece claro, ao problema

    constitucionalanteriormente mencionada e situa, assim, no apenas o problema

    analtico fundamental, mas tambm o problemaprtico fundamental; no apenas,como se disse anteriormente, o problema principal da cinciapoltica, mas tambm o

    problema principal dapoltica.

    No h aqui, portanto, o suposto individualista nos termos do individualismo

    metodolgico dapublic choice, adotado como algo que permitisse ignorar o contexto

    institucional e sociolgico da interao estratgica. Mas prope-se que a definiomesma do objeto da cincia poltica no tem como evitar a concepo de um estado

    antecipado (ou construdo) de autonomia individual, e a reside a intuio bsica

    comum concepo aristotlica-arendtiana dapolis, a Marx naIdeologia Alem, a

    Habermas com o anseio de individuao contanto que no se omita, precisamente,

    o carter estratgico que subsiste nas relaes de tal estado e que est presente em

    todos esses autores por implicao (ainda que nenhum se mostre totalmente explcito econseqente a respeito, havendo, ao contrrio, inconsistncias e hesitaes sobre este

    ponto). E a referncia a tal estado tem forosamente conseqncias para a anlise, no

    somente trazendo um foco analtico para o exame da poltica em sua dimenso

    institucionalizada e sociolgica, mas, o que decisivo, impregnando por si mesma a

    anlise de um contedo ou interesseprtico (ou crtico). O institucional aparece,

    assim, por um lado, em contraste com individualismo abstrato que caracteriza em geral

    apublic choice, como o contexto inelutvel em que se desenvolve a interao entre os

    151

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    agentes ou sujeitos e que condiciona sempre as formas de que se revestir essa

    interao. Mas aparece tambm, por outro lado, como objeto sobre o qual se exerce a

    ao dos agentes, traduzindo-se num esforo permanente e freqentemente s

    apalpadelas nas condies do jogo de comunicao e estratgia de organizao e

    construo institucional. E se o estado antecipado em que se resolve a dialtica entre

    sistemas de solidariedade e de interesses escapa s condies do estado de natureza

    dos representantes dapublic choice porque se presume que ele seja precisamente o

    resultado de um processo de organizao e construo institucional quesem cegar-se

    para o que h de inerentemente opaco na dimenso institucionalizada da vida scio-

    poltica e de propenso ao domnio ou poder na afirmao de si inerente interaoestratgica, e empenhando-se continuamente no esforo de minimizao das

    conseqncias de tais aspectos busque assegurar as condies para a vigncia

    simultnea da solidariedade ampliada e da autonomia individual.

    Do ponto de vista do problema do sujeito, finalmente, a nfase na articulao

    do esforo estratgico-organizacional, em diversos nveis ou escalas, com oscondicionamentos sociolgicos desse esforo e de suas possibilidades de xito que

    permite escapar aos equvocos e automatismos que tm freqentemente marcado as

    perspectivas perante o problema. Ela repudia, assim, o indivduo isolado da fico

    contratualista, permitindo tomar como sujeito real a entidade coletiva que resulta do

    processo de organizao em diferentes nveis e impondo ter em conta, mesmo nos

    casos em que o indivduo como tal o sujeito, o papel complexo do coletivo e doinstitucional no condicionamento de sua ao papel este que inclui a contribuio

    decisiva para a definio de sua prpria identidade individual. Repudia tambm

    (precisamente em conexo com a nfase no aspecto estratgico da interao do qual

    Habermas teme que decorra o universalismo de uma teoria global de sistemas e uma

    abordagem ciberntica) o foco natural na sociedade como um todo enquanto sujeito,

    como no utilitarismo e na viso orgnica que lhe seria prpria. E observe-se que, assim

    fazendo, ela se coloca tambm em condies de, com Habermas, questionaro

    152

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    consenso de fato sobreo qual repousam sempre as tradies em vigor e pesquisar as

    relaesde fora que se introduzem subrepticiamente nas estruturas simblicas

    pontos estes em que reside o foco da denncia habermasiana do idealismo

    caracterstico da hermenutica dascinciassociais. Mas a nfase na articulao

    mencionada rechaa tambm, finalmente, o automatismo que postula a transio

    espontnea e inevitvel de categorias parciais como as classes sociais do estado

    correspondente comunalidade de certas condies objetivas para o compartilhamento

    real de fins ou objetivos e a capacidade de ao concertada, da condio emsi para a

    condio parasi. Essa transio, ademais, Marx mesmo viu como problemtica,

    apesar de suas hesitaes sobre a noo de conscincia de classe, e em tal carterproblemtico, precisamente, est o ltimo ponto das preocupaes de Habermas nas

    notas metodolgicas anteriormente destacadas, no qual ele adverte sobre a herana

    dogmtica da filosofia da histria e a correspondente obrigao de pensar o mundo

    social como um conjuntoconstitudo freqentemente negligenciando-se, como se

    daria com o prprio Marx, que os atributos que distinguem as classes sociais (...) so

    antes maneiras de designar algo que no pode ser produzido seno no concertointersubjetivo de indivduos que vivem em comum.29 Assim, sem cair no

    individualismo abstrato, evita-se, atravs da nfase no aspecto organizacional, tratar

    em termos metafsicos a questo dos sujeitos coletivos do processo poltico,

    destacando-se, precisamente, o que tem sempre de problemtico a constituio dos

    agentes coletivos como sujeitos naquele processo.

    4. Intencionalidade da ao e racionalidade. Reavaliao da ao estratgica:

    intencionalidade abstrata, interao e poltica

    Restaria considerar com mais vagar os aspectos mais diretamente relacionados

    ao se da questo do sujeito tal como formulada ao final da primeira parte, com base

    exatamente nas notas metodolgicas de Habermas que se acaba de mencionar. Essa

    29 Habermas, Thorie et Pratique, vol. I, pp. 42-4.

    153

  • 8/6/2019 PeR5-2a. parte

    38/59

    questo refere-se, como vimos, ao problema do sentido e do carterintencionalde que

    se carrega a ao, redundando, em ltima anlise, na questo do carter dos agentes

    scio-polticos enquanto sujeitos, por oposio ao objetivismo de um behaviorismo

    estreito. Se bem que a discusso anterior torne suprfluo retomar tal questo no que diz

    respeito indagao mais bsica envolvida, o problema da intencionalidade apresenta

    ramificaes em duas direes cuja explorao se recomenda: de um lado, permite

    apreciar certa conexo especial entre o estratgico e o comunicacional, a qual ganha

    particular interesse ao surgir em outra passagem, at aqui no discutida, que o prprio

    Habermas dedica ao estratgica; de outro lado, ela se conecta com o problema da

    racionalidade e de seu papel numa perspectiva interessada em valer-se dos recursos dapublic choice. Essas ramificaes ajudam a esclarecer aspectos ou implicaes das

    proposies do captulo anterior.

    Partamos das ligaes entre intencionalidade e racionalidade. Prescindirei aqui

    do debate que se pode estabelecer conforme a idia de intencionalidade se vincule seja

    ao fato de que a ao perseguefins, seja ao fato de que ela se reveste de umsentidotomado em acepo supostamente mais complexa: por um lado, tal debat