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Percepção e imaginação

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Percepção e imaginaçãoSílvia Faustino de Assis Saes

FILOSOFIAS: O PRAZER DO PENSARColeção dirigida por

Marilena Chaui e Juvenal Savian Filho

São Paulo 2010

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Copyright © 2010, Editora WMF Martins Fontes Ltda.,São Paulo, para a presente edição.

1.ª edição 2010

Acompanhamento editorialHelena Guimarães Bittencourt

Revisões gráficasLetícia Braun

Maria Fernanda AlvaresEdição de arte

Katia Harumi TerasakaProdução gráficaGeraldo AlvesPaginação

Moacir Katsumi Matsusaki

Dados Internacionais deCatalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Saes, Sílvia Faustino de AssisPercepção e imaginação / Sílvia Faustino de Assis Saes. –

São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2010. – (Filosofias :o prazer do pensar / dirigida por Marilena Chaui e JuvenalSavian Filho)

ISBN 978-85-7827-344-6

1. Filosofia 2. Imaginação (Filosofia) 3. Percepção (Filoso-fia) I. Chaui, Marilena. II. Savian Filho, Juvenal. III. Título. IV.Série.

10-10695 CDD-100

Índices para catálogo sistemático:1. Imaginação e percepção : Conceitos : Filosofia 1002. Percepção e imaginação : Conceitos : Filosofia 100

Todos os direitos desta edição reservados àEditora WMF Martins Fontes Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP BrasilTel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042

e-mail: [email protected] http://www.wmfmartinsfontes.com.br

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SUMÁRIO

Apresentação • 7Introdução • 9

1 Como e o que percebemos? • 112 A imaginação: poderes especiais

e limites indefinidos • 38

Ouvindo os textos • 53Exercitando a reflexão • 66Dicas de viagem • 72Leituras recomendadas • 74

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APRESENTAÇÃOMarilena Chaui e Juvenal Savian Filho

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O exercício do pensamento é algo muito prazeroso, eé com essa convicção que convidamos você a viajarconosco pelas reflexões de cada um dos volumes da co-leção Filosofias: o prazer do pensar.

Atualmente, fala-se sempre que os exercícios físi-cos dão muito prazer. Quando o corpo está bem treinado,ele não apenas se sente bem com os exercícios, mas temnecessidade de continuar a repeti-los sempre. Nossa ex-periência é a mesma com o pensamento: uma vez habi-tuados a refletir, nossa mente tem prazer em exercitar-see quer expandir-se sempre mais. E com a vantagem deque o pensamento não é apenas uma atividade mental,mas envolve também o corpo. É o ser humano inteiroque reflete e tem o prazer do pensamento!

Essa é a experiência que desejamos partilhar comnossos leitores. Cada um dos volumes desta coleção foiconcebido para auxiliá-lo a exercitar o seu pensar. Os

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temas foram cuidadosamente selecionados para abor-dar os tópicos mais importantes da reflexão filosóficaatual, sempre conectados com a história do pensamento.

Assim, a coleção destina-se tanto àqueles que de-sejam iniciar-se nos caminhos das diferentes filosofiascomo àqueles que já estão habituados a eles e queremcontinuar o exercício da reflexão. E falamos de “filo-sofias”, no plural, pois não há apenas uma forma depensamento. Pelo contrário, há um caleidoscópio decores filosóficas muito diferentes e intensas.

Ao mesmo tempo, esses volumes são também ummaterial rico para o uso de professores e estudantes deFilosofia, pois estão inteiramente de acordo com asorientações curriculares do Ministério da Educaçãopara o Ensino Médio e com as expectativas dos cursosbásicos de Filosofia para as faculdades brasileiras. Osautores são especialistas reconhecidos em suas áreas,criativos e perspicazes, inteiramente preparados paraos objetivos dessa viagem pelo país multifacetado dasfilosofias.

Seja bem-vindo e boa viagem!

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INTRODUÇÃOPerceber e imaginar…

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Você saberia dizer qual é a diferença entre “perce-ber” e “imaginar”? Você diria que só percebe coisas queexistem concretamente ao seu redor e ao seu alcance?E, quanto às coisas ausentes ou inexistentes, você diriaque pode imaginá-las? Você seria capaz de imaginar oque nunca percebeu antes?

Quando se preocuparam com a descrição dos con-ceitos de percepção e imaginação, muitos filósofos for-mularam questões como essas e procuraram respondera elas. Na verdade, os modos de entender esses concei-tos variam muito ao longo da história e dos sistemas deFilosofia, e, a cada vez, as perguntas se modificam. Apercepção, por exemplo, é um conceito que ora pendemais para o sensível, ora mais para o intelectual. Assimcomo aparece ligado às noções de sensação, sensibili-dade ou intuição sensível, o conceito também envolveo campo das ideias e da intuição intelectual.

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Algo semelhante ocorre com o conceito de imagi-nação, que vem sempre acompanhado de uma famíliade conceitos interligados, tais como os de imagem,imaginário, fantasia e representação mental. Para quevocê possa conhecer essa rica diversidade de significa-dos, apresentaremos um roteiro ilustrado de problemasque foram formulados por certos pensadores de ma-neira tão genial e frutífera que até hoje nos dão muitoa pensar.

Embora os filósofos tenham admitido a existênciade percepção nos animais (Aristóteles, por exemplo),nas plantas (Leibniz) e até mesmo em Deus (Berkeley),nosso alvo será a percepção humana. A partir de agora,você conhecerá diferentes maneiras de trabalhar, in-vestigar e descrever os conceitos de percepção e ima-ginação. Escolhemos autores e obras que consideramosmarcos inquestionáveis da história desses conceitos eda própria Filosofia.

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1. Como e o que percebemos?

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1. A resposta antiga de Aristóteles

Aristóteles (385-322 a.C.) diz que percebemos os“sensíveis” pelos “sentidos”. A percepção sensível ousensação (em grego, aísthesis) é um modo de contato ede conhecimento da realidade por meio dos cinco sen-tidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. A percep-ção sensível é concebida como uma forma de vidacomum aos seres humanos e aos animais, sendo au-sente nas plantas, que têm uma vida meramente vege-tativa, pois nada sentem.

Em Aristóteles, a percepção sensível é uma capaci-dade complexa e intrinsecamente ligada aos órgãos docorpo. No ato de perceber, há uma articulação entre osobjetos sensíveis (cores, sons, cheiros etc.) e as partesdo corpo capazes de percebê-los (olhos, ouvidos, narizetc.). Por isso, com a expressão “os sentidos” são desig-

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nados tanto os órgãos corporais quanto as capacidadesperceptivas de que dispõem: os sentidos são os olhos ea visão. Embora potencialmente tenhamos capacidadesvariadas de percepção, estas apenas entram em ação –só se atualizam, na linguagem de Aristóteles – quandosão postas em contato com os objetos sensíveis.

Aristóteles nomeia os objetos sensíveis que são es-pecíficos de determinado sentido como “sensíveis pró-prios”. Assim, a cor é sensível próprio da visão, o somé sensível próprio da audição, o quente e o frio são sen-síveis próprios do tato etc. Mas há também os “sensí-veis comuns”: são objetos que, por não serem exclusivosde um sentido específico, podem ser percebidos pormais de um sentido, como o movimento, que pode serpercebido pela visão e pelo tato. Além do movimento,o repouso, o número, a figura e a grandeza são exem-plos aristotélicos de sensíveis comuns.

No livro II da obra Tratado da alma (De anima),Aristóteles opera uma classificação dos sensíveis emdois grandes gêneros: os sensíveis percebidos “por simesmos”, e os sensíveis percebidos apenas “por aci-dente”. Os sensíveis próprios e os sensíveis comuns dosquais acabamos de falar pertencem ao gênero dos que

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são percebidos “por si mesmos”. Mas também percebe-mos certas coisas “por acidente”, por acaso. Isso ocorrequando, por exemplo, reconhecemos alguém pela per-cepção da cor de uma vestimenta. Nesse caso, a pessoareconhecida é o “sensível por acidente”, pois foi reco-nhecida de maneira meramente acidental, casual. Con-tudo, apenas os sensíveis que são percebidos “por simesmos” (e não de modo casual) são considerados, porAristóteles, os genuínos objetos da percepção.

Mas como percebemos? A resposta de Aristóteles éa seguinte: recebemos as “formas sensíveis sem a ma-téria”, do mesmo modo que a cera recebe o sinal do si-nete sem o ferro ou o ouro (cf. Tratado da alma, livroII, cap. 12). Aristóteles pressupõe que o indivíduo quepercebe é afetado por objetos compostos de matéria ede forma. Além disso, pressupõe que os órgãos corpo-rais sofrem alterações quando recebem as formas dasqualidades sensíveis dos objetos. Se alguém, por exem-plo, vê uma pedra, algo se altera em seus olhos, poiseles recebem as formas sensíveis da pedra, sem que as-simile também a sua matéria. Aristóteles diz que “nãoé a pedra que está na alma, mas a forma” (cf. Tratadoda alma, livro III, cap. 8).

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Assim, perceber é acolher e assimilar a forma sen-sível dos objetos. É desse modo que o nariz recebe aforma sensível do café – o seu cheiro –, mas não a suamatéria, pois o nariz não fica cheirando a café. Tam-bém é assim que os olhos recebem o vermelho da rosa– a sua cor –, mas não a sua matéria, pois os olhos nãose tornam vermelhos.

Ora, ao entrar em contato com a forma sensíveldos objetos, os sentidos não recebem algo indefinido,indistinto ou confuso. Exatamente por serem adaptadosàs formas, eles são capazes de discriminar, notar dife-renças, discernir os sensíveis entre si. Desse modo, é noâmbito dos próprios sentidos que somos capazes de dis-tinguir o doce do salgado, o branco do preto etc.

A percepção sensível não é, pois, somente merapassividade; ela atua como uma capacidade articuladae capaz de fazer discriminações sem que para issotenha de recorrer a operações do pensamento ou da re-flexão. Pela ação articulada, os sentidos podem, inclu-sive, perceber que percebem. Portanto, é pelos sentidosque alguém percebe que vê, que ouve etc. Não seriapossível encontrar, nos escritos aristotélicos, nenhumtraço característico da noção moderna de “consciência”ou “autoconsciência”.

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Ao conferir à percepção sensível o poder de deter-minar seus próprios objetos, Aristóteles se contrapõeao seu mestre Platão (428-347 a.C.), que acreditavahaver discriminação e comparação dos sensíveis so-mente no âmbito das operações intelectuais (isto é, nãosensíveis) da alma. Mas essa espécie de funcionamentoautônomo dos sentidos em relação ao intelecto ourazão (em grego, noûs) só é possível devido à notávelexpansão que Aristóteles opera no campo da percepçãosensível.

Os “sensíveis comuns”, tais como número e gran-deza, por exemplo, não eram considerados por Platãosensivelmente perceptíveis, e sim objetos intelectuais.Devido à ampliação do conceito, Aristóteles pode afir-mar que, dispondo somente de percepção sensível, osanimais são capazes, por exemplo, de associar deter-minado cheiro a certa direção, sem que se pressupo-nha qualquer espécie de elaboração racional. Podedizer, portanto, que os animais conhecem pela sensa-ção, mesmo não sendo dotados de razão. Para nós,animais racionais, os conteúdos perceptivos são con-siderados bases seguras e confiáveis para o conheci-mento objetivo em geral.

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2. Algumas respostas modernas: Descartes, Hume,Kant

2.1. René DescartesNa filosofia de René Descartes (1596-1650), en-

contramos uma grande mudança quanto ao modo deconceber o conceito de percepção.

Segundo seus ensinamentos, “o que” percebemosnão são diretamente as coisas, mas as representações quetemos delas em nossa mente. Uma representação podeser um pensamento ou uma ideia. Em resumo, pode serum conteúdo mental através do qual alguma coisa seapresenta à nossa consciência.

Qual é a grande mudança com relação a Aristóteles?Diferentemente da concepção aristotélica, o verbo

“perceber” (em latim, percipere), para Descartes, não serefere de maneira exclusiva a processos ou atividadesdos sentidos. Quando quer falar das sensações, Descar-tes emprega o verbo “sentir” (em latim, sentire). Otermo “perceber” é preferencialmente utilizado para de-signar um ato puramente mental do intelecto (ou en-tendimento). A percepção é intelectual. É uma inspeção

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do espírito, uma capacidade de intelecção e, por ela, oeu pensante tem acesso imediato aos seus pensamentos,especialmente aos que dão lugar a representações cla-ras e distintas.

Como o pensamento, porém, é o atributo essencialdo eu pensante, todas as atividades mentais se encon-tram submetidas a ele e são concebidas como seus dis-tintos modos. Isso significa que duvidar, querer, julgar,imaginar e sentir são diferentes modalidades do pensar.Intelectualista convicto, Descartes afirma que sentir épensar; sendo a sensação uma atividade pressuposta naprodução de qualquer ideia ou representação sensível.Na linguagem de Descartes, em vez de dizer que “vejouma cor”, o correto seria dizer que “penso que vejo umacor”, pois não basta o corpo ser afetado em seus ór-gãos. É preciso, além disso, que eu tenha a consciênciade que ele foi afetado. Sentir implica, portanto, a cons-ciência de sentir.

Para adquirirmos conhecimento dotado de certeza,no entanto, temos de afastar a mente dos sentidos, poiseles podem nos enganar. Para Descartes, a verdade e aevidência estão presentes apenas nas percepções clarase distintas do intelecto puro e incorpóreo. As ideias que

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provêm das sensações, sejam elas internas, como afome e a sede, sejam externas, como o calor e o frio,não apresentam conteúdos que sejam confiáveis.

Em uma célebre passagem da obra Meditações me-tafísicas, Descartes compara duas ideias de Sol, inteira-mente distintas: aquela que vem dos sentidos, pela qualo Sol aparece como extremamente pequeno, e aquelaque vem da astronomia, pela qual o Sol se mostra mui-tas vezes maior do que a Terra (Meditações metafísicas,segunda meditação, § 13). Seu intuito é mostrar quesomente a ideia proveniente da astronomia, matemati-camente fundamentada (e não sensivelmente), poderepresentar o sol de maneira adequada ao astro verda-deiramente existente.

Em outro ilustre exemplo, estão as ideias do calore do frio. Do ponto de vista cartesiano, tais ideias sãotão pouco claras e tão pouco distintas, que por meio delasnão podemos discernir o ser que as causa. Não pode-mos discernir se o frio é somente uma privação do calorou o calor uma privação do frio, ou se calor e frio sãoqualidades reais e positivas. Para entender a dificul-dade, suponhamos que o frio seja privação de calor.Neste caso, a ideia pela qual o frio se mostra como algo

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real e positivo representa o que nada é – uma privaçãoou ausência – como se fosse alguma coisa. O intuito deDescartes é mostrar que diante das ideias de calor ou defrio não temos certeza quanto ao tipo de realidade ouser que está sendo representado. Isso o leva à convic-ção de que as causas das ideias sensíveis jamais têmum estatuto ontológico plenamente inteligível.

2.2. David HumeNa obra de David Hume (1711-1776), o conceito de

percepção passa por uma nova e grande ampliação:todos os conteúdos da mente humana são percepções,que se distinguem por graus de força e vivacidade.

Seguindo esse critério, Hume classifica as percep-ções em duas classes ou espécies: as impressões são per-cepções mais fortes e vívidas; os pensamentos ou ideiassão percepções mais tênues, menos fortes e vivazes.

Quando vivenciamos, por exemplo, uma sensaçãode dor, experimentamos um grau de força e de vivaci-dade que jamais estará presente quando pensarmosnisso. A experiência imediata de um sentimento ou de-sejo é sempre mais intensa, penetrante e vigorosa doque sua lembrança. Os tumultos e as agitações reais de

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uma paixão (do latim passio, passividade, sensaçãopassiva) não se conservam na reflexão do pensamento.Este só pode trazer à mente uma cópia da percepçãooriginal. Mesmo quando o pensamento atua como umespelho fiel, a cópia ou a imitação que ele produz deuma sensação é sempre uma imagem pálida, sem o bri-lho da sensação primitiva.

Ora, essa distinção, à primeira vista muito fácil deser entendida, consiste apenas no primeiro passo em di-reção à tese filosófica fundamental de Hume acerca daorigem de nossas ideias. Segundo ele, todas as nossasideias, na qualidade de percepções mais tênues, são có-pias de nossas impressões ou percepções mais vívidas.

Há, portanto, dois movimentos argumentativos: emprimeiro lugar, estabelece-se uma distinção de grau (e nãode natureza) entre duas classes de percepções; em segundolugar, estabelece-se uma relação de derivação em que aspercepções mais vívidas são concebidas como elementosoriginais e das quais as menos vívidas são as cópias.

As ideias dependem das impressões para existir. Aimportância desse princípio fica clara quando Humeafirma que um cego não pode ter ideias das cores, domesmo modo que um surdo não pode ter ideias dos

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sons. O defeito no órgão que recebe as sensações acar-reta, no entender do filósofo, uma incapacidade paraformar a ideia correspondente. Os sentidos são comocanais de recepção dos materiais de que são feitas asideias. Quem nunca experimentou o vinho não tem a ideiade seu sabor.

Essa tese geral é ampliada para todo o domíniomental: uma pessoa serena ou de espírito tranquilo nãopode formar a ideia de um espírito perturbado por umdesejo cruel de vingança, do mesmo modo que é difí-cil para um coração egoísta conceber a generosidadeextrema. As ideias são condicionadas por experiênciassensíveis efetivamente vividas.

Além do grau de força e vivacidade, que divide aspercepções entre impressões e ideias, Hume utilizaoutro critério para classificá-las: quer sejam impres-sões, quer sejam ideias, as percepções podem ser sim-ples ou complexas. As percepções simples são aquelasque não admitem nem distinção nem separação; ascomplexas são aquelas que podem ser distinguidas eseparadas em partes. A visão de uma superfície colo-rida, por exemplo, não pode ser dividida; portanto, éuma percepção simples.

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Na percepção de uma maçã, porém, já se podemdistinguir as percepções simples de suas qualidades, taiscomo a cor, o sabor, o aroma etc. Para Hume, as ideiassimples são reflexos diretos das impressões simples, e asrepresentam com exatidão. A ideia simples do verme-lho difere apenas em grau (de força e vivacidade) daimpressão simples do vermelho, sendo a cópia ou ima-gem da própria natureza do vermelho. Assim, comouma regra que não admite exceção, Hume afirma quetoda ideia simples tem uma impressão simples que a elase assemelha; e toda impressão simples tem uma ideiacorrespondente.

Quanto às percepções complexas, já não se podedizer que as ideias complexas sejam cópias exatas dasimpressões complexas. O fato de vermos uma cidade esermos capazes de formar uma ideia complexa dela nãosignifica que essa ideia represente exatamente suascasas e ruas nas proporções corretas. Mas essa falta decorrespondência não atinge a tese geral segundo a qualas impressões – sensações, sentimentos, emoções, de-sejos – são os materiais que a experiência sensível for-nece à mente para que, por sua mistura e composição,os pensamentos ou ideias sejam compostos.

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2.3. Immanuel KantA maneira como Immanuel Kant (1724-1804) con-

cebe a percepção não pode ser separada da crucial dis-tinção que ele traça entre fenômeno e coisa-em-si. Acoisa-em-si jamais é percebida, ela é suprassensível,pois está além de nossa capacidade sensível de apreen-são. A coisa em si não é para nós. O fenômeno, poroutro lado, encerra o aspecto da coisa tal como ela apa-rece para nós; por isso, podemos percebê-lo.

Kant radicaliza essa tese: as coisas que existem narealidade e que podem ser objetos da nossa experiên-cia somente aparecem para nós como fenômenos, nuncacomo coisas-em-si. Assim, o que podemos legitima-mente perceber são fenômenos, e só eles são os genuí-nos objetos da nossa percepção.

Mas como percebemos os fenômenos? Há umadupla condição: de um lado, é preciso que tenhamossensações, que são efeitos causados pelos objetos quandoafetam nossos sentidos; de outro lado, é necessário quetenhamos a consciência acompanhando e atuando juntoa essas sensações. Kant chega a definir a percepçãocomo sensação acompanhada de consciência (Crítica

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da razão pura, A 225), isto é, a percepção é um estadoda consciência (e não dos órgãos do corpo) em que há,ao mesmo tempo, sensação.

O que é a sensação?Segundo Kant, a sensação é meramente a matéria

da percepção, mas é preciso que existam formas de re-cepção dessa matéria. Ora, essas formas não estão nosobjetos percebidos, mas na consciência do sujeito quepercebe. Essas formas são o espaço e o tempo, que es-truturam e organizam os dados brutos e dispersos dassensações.

Tentemos entender melhor o raciocínio de Kant.As aparências das coisas causam em nós sensações

(de cores, sons etc.). Tais sensações consistem, no en-tanto, numa espécie de matéria bruta, múltipla e di-versificada, que necessita de ordenação.

A ordenação do múltiplo ou diverso sensível é ope-rada pelas formas do espaço e do tempo. Somentequando essa ordenação espaçotemporal ocorre é quetemos os fenômenos, que são os objetos da percepção.Quando, por exemplo, percebo uma árvore, a matériadas sensações produzidas já se encontra ordenada se-gundo as relações do espaço e do tempo. A tese crucial

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de Kant é, então, a seguinte: o espaço e o tempo são asúnicas formas pelas quais podemos perceber os fenô-menos ou objetos da experiência.

O conceito de percepção serve para iluminar umoutro conceito importante no sistema de Kant: o de in-tuição empírica. É empírica somente a intuição que serelaciona com os objetos por meio da sensação. A per-cepção é, pois, intuição empírica, intuição na qual setem consciência de um objeto, representado como realno espaço e no tempo. E falamos de intuição, aqui, nãono sentido de uma “inspiração”, como ocorre na lin-guagem comum. O sentido da intuição, em Filosofia, éo de um conhecimento direto, sem necessidade de ra-ciocínios. Em latim, o verbo intuo significa “ver”, e édele que provém nossa palavra intuição.

Ocorre, porém, o seguinte: para haver conheci-mento de objetos, é preciso que haja intuições empíri-cas e conceitos. Ou melhor: é preciso que conceitos seapliquem às intuições, de modo a formar juízos, poissomente juízos podem conter e veicular conhecimentos.

É bastante conhecida a seguinte tese kantiana:conceitos sem intuições são vazios, intuições sem con-ceitos são cegas (Crítica da razão pura, A 51/B 103).

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A experiência requer intuições e conceitos, e o conhe-cimento só é possível quando as intuições são deter-minadas por conceitos nos atos do juízo.

Muita atenção, agora, para o seguinte: em Kant, afaculdade das intuições é a sensibilidade, e a faculdadedos conceitos é o entendimento. Essas duas faculdades,capacidades ou poderes têm funções e produtos espe-cíficos, mas sem a colaboração de ambas não há, rigo-rosamente falando, nem experiência, nem conhecimentoempírico.

Todos os conceitos que vínhamos tratando – sen-sação, percepção, intuição empírica – pertencem aocampo da sensibilidade. O que precisa ser enfatizado éque a sensibilidade possui elementos formais – o es-paço e o tempo – que a estruturam como faculdadecapaz de receber, assimilar ou captar o mundo dos fe-nômenos. Ou seja, ela é uma capacidade receptiva (enão espontânea), mas possui formas definidas por meiodas quais a receptividade que lhe é própria pode serexercida.

Além disso, convém lembrar que a separação entrea sensibilidade e o entendimento feita por Kant está li-gada à sua recusa em deixar que um desses poderes se

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subordine ao outro, pois é da combinação de suas ati-vidades e produtos que a nossa experiência se tornapossível. Grosso modo, pode-se dizer que Kant nãoaceita nem a subordinação do sensível ao intelectual,como vimos em Descartes, nem a subordinação do in-telectual ao sensível, como vimos em Hume.

3. As respostas contemporâneas de Merleau-Pontye Wittgenstein

3.1. Maurice Merleau-PontyMaurice Merleau-Ponty (1908-1961) está entre os

filósofos que mais contribuíram para inovar, na con-temporaneidade, o conceito filosófico de percepção.

Obra de referência para o assunto no século XX,seu livro Fenomenologia da percepção faz críticas con-tundentes a certas concepções clássicas, sobretudo aoempirismo e ao intelectualismo modernos.

Merleau-Ponty critica oposições dualistas (taiscomo mente e corpo, sujeito e objeto), recusa a expli-cação causal da percepção (que toma o sensível comomero efeito de estímulos externos) e nega que se podem

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encontrar regras estáveis de associação entre elemen-tos perceptivos, assim como também recusa a tese deque a percepção só ocorre mediante operações intelec-tuais de ordenação de um suposto mundo caótico dassensações.

Ora, você já deve ter notado que algumas das tesesque vínhamos expondo caem na linha certeira dessascríticas.

Merleau-Ponty concebe a percepção como umacesso originário ao mundo, um conhecimento de exis-tências pressuposto por todos os atos da consciênciahumana. A seus olhos, as empreitadas analíticas de al-gumas filosofias clássicas acabaram deixando de ladoo próprio fenômeno perceptivo. Mas essa perda ocorreuporque, em vez de dar atenção à experiência perceptivacomo um todo, tenderam a fazer do objeto percebidoum alvo quase exclusivo.

A ênfase sobre o objeto revela a adesão filosóficaao esforço geral de objetivação típico da ciência mo-derna. Segundo Merleau-Ponty, o impulso teórico parao objetivo acarretou o empobrecimento da noção depercepção, que ficou restrita às operações de conheci-mento, como se o sujeito perceptivo se pusesse diante

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do mundo do mesmo modo que um cientista se põediante de suas experiências.

Cabe, portanto, à investigação fenomenológica dapercepção reintegrá-la ao campo perceptivo no qual aconsciência vê um sentido brotar das coisas percebi-das, e reconhecer que estas são dadas sempre num ho-rizonte de sentido – e não isoladamente, por meio dedados sensíveis separados, que teríamos de ligar pelopensamento ou operações do intelecto.

Para Merleau-Ponty, há uma aderência inegável detodo percebido ao seu contexto, à situação em que eleaparece, à atmosfera que faz parte de sua vivência. Apercepção das qualidades se inscreve no cosmos daexistência em que afetos e valores se misturam no per-cebido. Diante da experiência sensível entendida comoparte integrante do processo vital, certas noções clás-sicas – tais como dado perceptivo isolado, impressãopura, sensação pura etc. – tornam-se ilusões teóricasde grande prejuízo. Merleau-Ponty salienta que o “algo”perceptivo está sempre no meio de outras coisas, emmeio a coexistências que podem se agrupar em dife-rentes constelações de sentido.

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Além dos ensinamentos de Edmund Husserl (1859--1938), Merleau-Ponty baseia-se nos resultados da Psi-cologia da Gestalt (Gestaltpsychologie, psicologia daforma ou teoria da forma, elaborada por psicólogos ale-mães no início do século XX). Nesse tipo de pesquisapsicológica, Merleau-Ponty encontra uma base sólidapara as suas convicções. Ele se apropria da tese se-gundo a qual uma figura sobre um fundo é o dado sen-sível mais simples que podemos obter. Ora, se a expe-riência perceptiva mais básica já envolve uma relaçãofigura-e-fundo, isso demonstra, para Merleau-Ponty,que toda percepção tem uma estrutura complexa quenão pode ser descrita como atos separados de ligaçãode uma consciência que forneceria aos dados sensíveisaquilo que eles mesmos não poderiam conter.

A investigação proposta por Merleau-Ponty invia-biliza a crença de que as sensações se reduzem a rela-ções pontuais de causa e efeito, como se fossem efeitosdeterminados (em certas partes do corpo) de causastambém determinadas (certas qualidades dos objetos).Com a análise lógica da percepção, diz o filósofo, dei-xou-se escapar o próprio fenômeno da percepção.

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Segundo Merleau-Ponty, o que sentimos e perce-bemos são totalidades dotadas de sentido. Assim,quando percebemos uma árvore, notamos ao mesmotempo as suas cores, suas folhas, seu tronco, sua som-bra, a posição que ocupa na paisagem, sendo essa umaexperiência que entrelaça todas essas vivências e en-globa todos esses aspectos. Se tentarmos dividir e or-denar a percepção e o percebido em suas partes, per-deremos sua unidade, o todo significativo que lheconfere sentido. As coisas percebidas não se doam comopartes, mas são vividas como totalidades que variamconforme as perspectivas, os recortes, os perfis com quesão tomadas. O que percebemos se organiza em formase estruturas. Examinemos os seguintes exemplos:

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Figura 1 Figura 2 Figura 3

Na Figura 1, percebemos ora um vaso branco sobreum fundo preto, ora dois perfis pretos sobre um fundo

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branco. Na Figura 2, percebemos a abertura do livroora côncava, ora convexa.

Em ambas as experiências perceptivas, o que vemosdepende da perspectiva com que tomamos formas e es-truturas das figuras. Não se trata nem de uma recepçãomeramente passiva dos traços, nem de uma interpreta-ção que liga dados isolados e que se acrescenta a eles,pois, quando percebemos a figura ora de um jeito, orade outro, não projetamos nela nada que já não esteja lá,desde o início.

Na Figura 3, percebemos a forma de um triângulo,mesmo que seu contorno apareça interrompido em al-guns pontos. Esse exemplo ilustra a tese de que, em vezde perceber a figura por uma sequência de sensaçõespontuais que percorreriam seus segmentos, nós a per-cebemos imediatamente como um todo, apesar das suasinterrupções.

3.2. Ludwig WittgensteinA percepção de aspectos é um conceito que ocupa

lugar de destaque na filosofia de Ludwig Wittgenstein(1889-1951). Sua investigação abrange várias noçõesligadas aos fenômenos perceptivos.

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Assim como Merleau-Ponty, Wittgenstein conferegrande importância filosófica à Psicologia da Gestalt.Ele se demora na análise do fenômeno da “revelaçãode um aspecto” ou da “mudança de aspecto”. Tal fenô-meno ocorre quando observamos certas figuras, taiscomo esta, da cabeça pato-lebre, do psicólogo ameri-cano Joseph Jastrow (1863-1944):

Pode-se vê-la como cabeça de pato ou como ca-beça de lebre. A figura – ou “objeto figurado”, comodiz Wittgenstein – pode ser vista sob mais de um as-pecto, e sua percepção varia conforme varia o aspecto.Quando notamos um aspecto que até então não tínha-mos notado, passamos a ver a figura como algo dife-rente. O fenômeno da revelação do aspecto chama aatenção de Wittgenstein porque envolve o seguinte pa-radoxo: existe uma só figura que permanece a mesma,

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Figura 4

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e, no entanto, a vemos ora como pato, ora como lebre.Ou seja: a figura parece alterar-se e ao mesmo tempovemos que ela não se altera.

Tentando dar conta dessa dificuldade, o psicólogogestaltista Wolfgang Köhler (1887-1967) encontra umaexplicação que não poderá ser inteiramente aceita porWittgenstein. Observemos novamente a Figura 4 e ten-temos vê-la ora como pato, ora como lebre. Köhler nãodiria que vemos um único objeto sob diferentes aspec-tos, mas que vemos dois objetos diferentes ou duas rea-lidades visuais. O problema dessa explicação, aos olhosde Wittgenstein, está em que nela o aspecto se trans-forma em uma entidade psíquica exclusivamente pro-duzida pela mente do sujeito que percebe. Pois, consi-derando que há uma única figura desenhada no papel,e levando em conta também que a organização dos ele-mentos da figura não se altera, onde teriam de ser bus-cados os distintos “objetos” da percepção? A respostateria de ser: na mente do sujeito que percebe.

Wittgenstein rejeita a ideia de que a forma (Gestalt)percebida deve ser entendida como uma entidade real-mente existente, pois o aspecto não pode ser um “ob-jeto” no mesmo sentido em que um lápis é um objeto.

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Se o aspecto for tomado como um objeto, inevitavel-mente ele será considerado “objeto mental”. E, sendoassim, a variação do aspecto passa a ser explicada pelavariação meramente psicológica das entidades mentaisdos sujeitos que percebem.

Wittgenstein procura uma explicação que consi-dere a figura ponto de partida e critério para a visãodos aspectos. Por essa razão, em sintonia com a mu-dança de método que propõe para a Filosofia, ele in-vestiga não os fenômenos perceptivos como tais, maso uso das expressões que são utilizadas para a sua ma-nifestação ou para a comunicação do que é visto oupercebido. O que é percebido pode ser apresentado pormeio de uma exclamação, que escapa como um gritoem relação à dor. Mas também pode ser descrito, co-municado ou relatado.

Segundo Wittgenstein, a percepção de aspectos seencontra num campo conceitual bastante elástico, quevai desde vivências visuais em que não utilizamos con-ceitos até interpretações, que envolvem pensamentos,conceitos, hábitos e educação. É possível, por exemplo,que duas pessoas observem o mesmo objeto, do mesmolugar e sob as mesmas circunstâncias, mas não tenham

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percepções visuais idênticas, mesmo que em suas retinasas imagens sejam idênticas. Ou seja: algo, além dos olhos,determina a percepção. Nem todos veem os mesmos as-pectos: alguns porque não querem, outros porque nãoforam treinados, outros porque não conseguem mesmo.

Em toda parte, podemos encontrar a cegueira paraaspectos. A percepção de aspectos pode ser um estadopsicológico passivo, mas também uma ação, uma ati-tude, uma habilidade que se adquire, um poder situar--se sob pontos de vista distintos, pois percebemos re-lações distintas entre objetos, fatos e ações. Um casoparadigmático da revelação de um aspecto ocorrequando reconhecemos uma semelhança de família entrediferentes rostos.

As observações de Wittgenstein sobre a percepçãode aspectos formam o que pode ser chamado de gra-mática do “ver-como”, que integra a investigação geraldo uso das expressões que envolvem as experiênciasperceptivas. É importante notar que, embora tenha sededicado bastante a esse tema, sobretudo em seus últi-mos escritos, Wittgenstein jamais diz que o “ver-como”é a forma essencial de toda percepção. Nem toda per-cepção é uma percepção de aspecto.

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Como ele próprio adverte, não teria sentido algumolharmos para um garfo e uma faca e dizer que osvemos como garfo e faca. Ou seja: o fato de ter cha-mado a atenção para a possibilidade de um contrasteentre duas maneiras distintas – e igualmente legítimas– de ver uma mesma figura (no caso da Figura 4, oracomo pato, ora como lebre) não significa que esse fe-nômeno ocorre em todas as nossas percepções. E,quando vemos conforme uma interpretação, a inter-pretação não é um elemento isolado, que construímosmentalmente, e que se acrescenta a dados sensíveisbrutos, pois ela não é algo imposto de fora, nem é for-çada a entrar numa forma que não a contém.

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