336
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MÔNICA PEREGRINO Desigualdade numa escola em mudança: Trajetórias e embates na escolarização pública de jovens pobres NITERÓI 2006

peregrinot2006.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO DOUTORADO EM EDUCAO MNICA PEREGRINO Desigualdade numa escola em mudana: Trajetrias e embates na escolarizao pblica de jovens pobres NITERI 2006MNICA PEREGRINO Desigualdade numa escola em mudana: Trajetrias e embates na escolarizao pblica de jovens pobres Tese apresentada ao Curso de Ps-GraduaoemEducaoda UniversidadeFederalFluminense, comorequisitoparcialpara obteno do Grau Doutora. Campo de Confluncia: Educao Brasileira Orientador: Prof. Dr. Osmar Fvero Niteri 2006 2MNICA PEREGRINO Desigualdade numa escola em mudana: Trajetrias e embates na escolarizao pblica de jovens pobres Tese apresentada ao Curso de Ps-GraduaoemEducaoda UniversidadeFederalFluminense, comorequisitoparcialpara obteno do Grau Doutora. Campo de Confluncia: Educao Brasileira Aprovada em: BANCA EXAMINADORA ________________________________________________ Prof. Dr. Osmar Fvero Universidade Federal Fluminense ________________________________________________ Profa Dr.a Marilia Pontes Spsito Universidade de So Paulo ________________________________________________ Prof. Dr. Gaudncio Frigotto Universidade do Estado do Rio de Janeiro _________________________________________________ Prof. Dr. Nilton Bueno Fischer Universidade Federal do Rio Grande do Sul _________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Csar Rodrigues Carrano Universidade Federal Fluminense _________________________________________________ Profa Dra La Paixo Universidade Federal Fluminense (Suplente) Niteri 2006 3 Eu desejo te compreender Tua lngua obscura aprender Puchkin (Versos compostos numa noite de insnia) 4 Agradecimentos Forammuitasaspessoasqueseenvolveramcomigoneste empreendimento.Atodas,minhagratido.Masalgumasem especial precisam ser referenciadas.Desta forma, aqui vai. UERJ e, em especial, ao Departamento de Educao da Faculdade de Formao de Professores, que me deram o suporte eascondiesnecessriasparaarealizaodapesquisae escritura desta tese. UFF,minhaescolanaeducao,emespecialaos professoresdoProgramadePs-GraduaoemEducao,pela formao recebida. AosprofessoresOsmarFveroePauloCarrano,pela acolhida,companheirismoe,claro,pelasfundamentais contribuiestericasemetodolgicascontidasneste trabalho. AosprofessoresMarliaSpsitoeGaudncioFrigotto, pelagenerosidadeeacuidadenaanlisedemeuexamede qualificao. Da tirei rgua e compasso para a produo da pesquisa que deu origem tese. Victor Valla, mestre no ofcio de colocar em causa os prpriospressupostoseinspiraoparaasperguntasmais fundamentais ( e tambm as mais difceis) deste trabalho. sprofessorasepesquisadorasRoselyMagalhesde OliveiraeAnaCristinaReis,daEscolaNacionaldeSade Pblica,peloauxlioinestimvelnaorganizaoe sistematizao dos dados referentes ao ano de 2005. 5professoraDoloresKappel,pelaorientaoeapoio para a construo do banco de dados que me permitiu realizar a anlise de boa parte dos dados colhidos durante a pesquisa. AEvelineAlgebaileeEstelaScheinvar,parceirasde trabalho,pelosconselhosfundamentaisnashorasmais crticas do doutorado. AMartinhoPauloRosa,amigoquemeiniciounos mistrios do corredor. AAntonioVerssimoeRobertoMarques,professores, companheiros, que me instigaram a pensar, o tempo todo, desse lugar tenso e difcil que o de quem pensa e faz a educao escolar. AMarizeBastosdaCunha,amiga,parceiraintelectual, queusaateoriaparadesvendaraexistncia.As contribuies so tantas que j no possvel distinguir. ALeon,Anna,Gabriela,Alessandra,Srgio,Sylvia, Aldary.Companheiro,filhas,irm,pais,sogro,que carregaramavidapormimenquantoeuescreviaeste trabalho. A todos aqueles, inspetor, professores, ex-professores, alunos,ex-alunos,paisdealunos,superviso,coordenao, direo,que,comgenerosidade,partilharamcomigo conhecimentos,vivncias,pedaosdavida,ementrevistase conversas informais. Finalmente,escola,objetodestapesquisa,queme acolheudemuitasediferentesmaneiras,abrindo-meas portas, arquivos e experincias. 6 Resumo Estatesebuscadesvendarumarelao:entrea instituio escolar e os jovens pobres que passam a habit-la,nosmarcosdesuaexpanso.Aquesto:comose universaliza o sistema pblico de ensino fundamental num pas quevemhistoricamenterecusandoaincorporaodesuas maiorias, percorre toda a anlise.Na investigao de uma escola pblica tratada como caso particulardopossvel(Bourdieu),arecuperaodetrs dcadas de trajetrias escolares, e um mergulho nos modos deescolarizaodostemposquecorrem,buscamfazer-nos entenderasvelhasenovasdesigualdadesquemarcama instituio.Seleo,segregao,enraizamentoeregulaosoas categorias,eixosparaodesenvolvimentodestaanliseque coloca a escola como um mirante de onde se podem apreender alguns dos elementos que compem a dinmica social. Palavraschave:Desigualdade/juventude/processosde escolarizao 7 Abstract This thesis proposes to unmask the relationship between thescholarinstitutionandpooryoungstersthatbeginto inhabit the school due the dmarche of its expansion. The questionputis:howdoweuniversalizethepublicschool systeminacountrythathassystematicallyrefusedthe completeintegrationofthemajorproportionofthepoor population? Theresearchoccurredinapublicschoolfacedasa particular case of what is possible (Bourdieu) brought into analysisthreedecadesofthestudentstrajectoriesand performed a deep journey through different styles of scholar processes.Throughthisaxlesitbecamepossibleto understand, at the same time, old and new inequalities that mark the recent history of Brazilian urban schools. Selection,segregation,belongingandregulationare categoriesthatsupportthedevelopmentofthisanalysis, that turns the scholar institution into a sigh seeing from whichitispossibletocapturesomeelementsthatcompose the social dynamics. Key words: inequalities, youth, scholar processes 8Sumrio Apresentao.............................................13 Parte I - Do Campo e da Teoria Captulo 1 O campo da pesquisa: uma primeira aproximao - Algumas consideraes sobre minha posio em relao ao objeto pesquisado........................................21 - A Escola como Mirante..................................26 - O Bairro e as Relaes Sociais locais..................29 - A Praa................................................31 - As Enchentes de 1988...................................36 - A Escola...............................................44 Captulo 2 A Teoria: Ferramentas e Pressupostos - De onde partimos?......................................53 - A Delimitao do campo da discusso....................60 - As Armadilhas da excluso..............................63 1)Excluso, noo indefinida.............................64 1.1) Percorrendo alguns autores para enfrentar a questo: a excluso como problema analtico.........................70 2) A Recusa de Direitos no Brasil........................81 2.1) A Escola e a negao do direito cidadania.........85 2.2) A escola dos pobres na ditadura militar.............91 2.3) A expanso escolar a partir da dcada de 90.........95 2.4) Um recuo estratgico e uma breve sntese para a retomada da discusso.............................................101 3) Para finalizar o quadro terico.......................105 Parte II Desigualdade numa escola em mudana - A Escola como Espao Social............................108 Captulo3 Seleo e Segregao nas trajetrias escolares das dcadas de 70, 80 e 90. 1)De como foi realizado o levantamento das turmas.............................................117 2)Estabelecendo os desiguais em cada uma das dcadas............................................119 2.1) Moradia...........................................120 2.1.1) As favelas representadas........................123 2.2) Categorias profissionais dos pais.................127 92.2.1) Peculiaridades das categorias profissionais em cada uma das dcadas...................................131 2.2.2) Algumas tendncias: precariedade e desqualificao........................................133 2.3) Separando os desiguais: extremos e no-extremos..............................................134 2.4) Em sntese........................................137 -Um Quadro da desigualdade: o levantamento das dcadas 3) A dcada de 70......................................139 3.1) A seletividade na dcada de 70....................144 3.1.1) A presso da seleo escolar e os mecanismos de segregao ............................................149 4) A dcada de 80......................................153 4.1) A transio da escola(o caso particular do Rio de Janeiro)...............................................155 4.2) evaso na dcada de 80..........................159 4.3) A seleo na dcada de 80.........................161 4.3.1) A seleo escolar e sua ao sobre os grupos sociais................................................165 4.3.2) Segregao......................................166 5) A dcada de 90......................................168 5.1) Duas caractersticas da escola que vai surgindo...............................................174 5.2) Seleo e segregao na dcada de 90..............177 6) Em sntese..........................................183 Captulo 4 Uma escola em 2005 (uma escola em 2005?) - O levantamento de 2005...............................187 - A anlise 1) Distinguindo os pobres: locais de moradia e faixas etrias................................................192 2) Escolarizao primria...............................208 2.1) Os registros precrios de escolarizao primria...............................................209 2.2) Os percursos regulares e os percursos acidentados na escolarizao primria.................................212 2.3) Repetncias, freqncia a projetos e modos de escolarizao primria.................................213 2.3.1) Breve histria dos projetos.....................216 2.3.2) A mesma histria contada de um outro ponto de vista: as trajetrias dos alunos no curso primrio...............................................225 2.3.3) Um modo precrio de escolarizao...............229 3) As trajetrias no ginsio............................229 103.1) Migraes e Abandonos.............................231 3.2) Repetncia........................................233 3.3) As turmas do ginsio e os modos de escolarizao..........................................239 4) Enraizamento........................................241 4.1) Enraizamento, Desenraizamento, Turnos.............248 Captulo 5 No corredor 1)A fragilidade institucional e os mecanismos de controle............................................257 1.1)Esqueceram de combinar com os Russos............261 2)Breve pausa para uma explicao necessria: por que o corredor? ..........................................267 3)Uniformes: Distino e Transgresso.................270 4)O trabalho do inspetor..............................275 5)No turno da manh...................................281 5.1) Alguns elementos que marcam as aes dos alunos neste turno..................................................281 5.2) O jogo..........................................284 5.2.1) A iniciao no jogo.............................285 5.2.2) As feras no jogo do turno da manh: a turma 605....................................................286 5.2.3) A ritualizao do jogo..........................292 5.2.4) Outra face do jogo performtico: a formalidade da instituio............................................294 6) No turno da tarde...................................297 6.1) O jogo no turno da tarde........................302 6.2) Quando o jogo deixa de ser jogo.................306 7) Uma breve comparao entre os turnos................308 - Concluso............................................314 - Bibliografia.........................................326 - ndice de grficos e tabelas.........................334 11Apresentao Narecentefilmografiafrancesa,Quandotudocomearetrataaspequenase grandesmisriasdavidafrancesanofinaldosanos90,comoefeitosdosprocessosde DemissodoEstado1.Umapr-escolaocentrodatramaquedenunciadesemprego, desinvestimento,desesperana,depresso,injustia.Aescolanoondetudocomea, porqueelanoaorigemdosproblemas.Elaapenasosreflete.Masdestelugar,da escola, que temos uma compreenso, digamos, mais humana do problema. ali, quando tudocomea,quepercebemosasinterdies,degradaeseinjustiasquepassaroa demarcaroscontornosdessasvidasemseuincio.Assim,seaescola,noproduzas condiesquedelimitarodapordianteasvidasquecomeam,ela,comcerteza,as reproduz.Aescolaportantonooinciodocicloondetudocomea,masdemarcao espao de conservao e de perpetuao do movimento: quando tudo re-comea. Apesar detudoofilmenoumacrticaescolafrancesa(talvezumacrticaaosistema educacionalfrancs,masnoescolacomoinstituio).Aocontrrio,ele,aomesmo tempo,umalertasociedadesobreadesestruturaodestainstituioeumapotica declarao de adeso a ela.Recuperoofilmeporquemeparecequeseuprojeto(obedecidasasdevidas propores)muitosemelhantequelequemepropusrealizarnestetrabalho.Aproposta aqui foi tomara escola como espao a partir do qual se possa pensar a sociedade brasileira, sem que para isso se tivesse de abrir mo de realizar uma reflexo especfica sobre a escola. Oprojetorealizadofoiodemergulharnumaescolaparaentenderalgunsdosimpasses queacometemasescolas,etambmodemergulharnumainstituio,paraentender algunselementosquedeterminamasrelaestensasentreinstituiesesociedadeneste pas. Masaquiademarcaodequandotudocomeabastantediferentedaquelado filme. L tudo comeava na origem mesma da vida escolar das crianas. A pr-escola, no 1DemissodoEstadofoiexpressocunhadaporBourdieuparadenunciararetraodosinvestimentosdo Estado nos complexos mecanismos de reproduo da fora de trabalho, a partir da articulao entre as novas formas de acumulao do Capital e as polticas nacionais de gesto de seus efeitos.12filme, quando tudo comea. Neste trabalho, no. Comeamos, aqui, no segundo segmento do ensino fundamental. Lugar dos mais difceisna escola brasileira.A populao de jovens gira em torno de 20% da populao brasileira. Nos ltimos anos houve um crescimento efetivo da taxa de escolarizao destes jovens. De acordo com o censo 2000, ela passou de 55,3% para 78,8% (Carrano e Dyrell, 2003) Os jovens tm hoje maior acesso escola, permanecendo nela por mais tempo. Mas estaestadiapreenchidaporreprovaessistemticas,abandonosepisdicos,e,em determinadas circunstncias, sadas definitivas. Essapermannciavemdesafiandoassriesfinaisdoensinofundamental.nelas que se encontram mais da metade dos jovens com idades entre 15 a 17 anos. E se levarmos em conta que a escolarizao fundamental deveria atender os alunos na faixa dos 7 aos 14 anos,perceberemosqueaquiloquevemsendochamadodeuniversalizaodoensino fundamental,refere-se,noantigocursoginasial,aoprolongamentonotempodeseu perodo de habitao.Essaextensodotempodepermanncianaescolavemcolocandoemcontato cadavezmaislongo,doissujeitos,atpoucotempoatrs,apenassuperficialmente conhecidos: os jovens pobres e a escola pblica.Por outro lado, no toa que Mello (1999) chamou o ensino mdio brasileirode ensino das minorias sobreviventes. Assim, a coabitao forada no ensino fundamental (e em especial em seu segundo segmento) no tem garantido o acesso (seja por repetncia e abandono, seja por escassez de vagas) ao ensino mdio. E se verdade que a finalizao do ensino fundamental no garante a entrada no ensino mdio, igualmente verdadeiro que a interrupodaescolarizaonestepatamarcondenasub-escolarizao,eaumfuturode provvel precariedade2. Aqui o ginsio3 quando tudo comea. Este trabalho trata exatamente desta relao, s vezes delicada, s vezes tensa, entre juventude pobre e escola pblica no Brasil. Ele o faz a partir de um lugar de observao: a escola pblica . Essa instituio j se consolida na literatura especializada como espao de 2 No a toa que programascomo o pr-jovem , lanado pelo governo federal em 2005 mo pblico alvo exatamente aqueles que no lograram finalizar o ensino fundamental. 3Estetrabalhopercorrerquatrodcadas.Nodecorrerdesteperodo,onomedacategoriadeensinoque sucedeoprimrio,mudardefuno,statusenomealgumasvezes.Esperoincorporaressasmudanasna anlise. Mas para dar maior fluncia ao texto, tratarei, neste trabalho, o perodo de escolarizao referente ao segundo segmento do ensino fundamentalpor ginsio. , tem co13reproduodasclasses,masvemnosltimostemposapresentandodesafiosquea posicionam como instituio fundamental tambm na reproduo das geraes no pas.Do aparecimento da escola como espao de socializao dos jovens, que apontou os seus primeiros contornos ainda durante o renascimento, passando pela generalizao deste processonosculoXIXesuauniversalizaonosculoXX,nospasesdecapitalismo avanado,muitasguasrolaram.NoBrasil,osprimrdiosdageneralizaodeste processodatadofinaldaprimeirametadedosculoXX.Osjovenspobres,porm,s comeam a ter seu processo de socializao mediado pela escola pblica, a partir do incio de sua entrada em massa para o ensino ginasial, no incio da dcada de 70. Mesmoassim,aentradadosjovenspobresnaescolatemsidoacompanhadade mecanismosvariadosdeadaptaodestaaumaclientelacadavezmaisexclusivade determinadosestratossociais,mudandooperfildainstituioeducativa,especialmente da dcada de 90 para c.Sendoassim,nopodemosdeixardeperguntar:sejuventudepodeserdefinida porsuacondioliminaremrelaosociedadeondeseinscreve-liminaridadeessa expressa na emancipao parcial do campo de sociabilidade da famlia, acompanhada de buscasdeinscrioemoutrosespaos,grupos,instituiespreferenciaisdeproduode sociabilidade - ento, em sociedades de agudas desigualdades como as nossas, as condies de inscrio dos jovens em grupos, espaos ou instituies capazes de socializ-los (ou, na melhordashiptesesdeproduzir,nainteraocomeles,formasoutrasdesociabilidade) esto desigualmente dispostas para os diferentes grupos sociais.Aescolaumadestasinstituies,eaperguntaquedevemosnosfazer:emque medida a expanso da escola pblica aos jovens pobres, expanso ao mesmo tempo lenta e degradadadaescola,queafazsercadavezmaishabitadaecadavezmenos experimentada(comoinstituio)pelosseususurios,noadescredenciacomoespao possvel de construo de sociabilidades juvenis? Poroutrolado,aliminaridadedacondiojuvenil,esseestadodeoutsiderem relaosociedade,essainexperincia,queManheimavaliavacomoumadesuas 14potencialidades4, d a eles uma posio de visibilidade das questes sociais, extremamente importante na anlise das instituies, e em especial daquele de que tratamos: a escola. 4 Manheim, K.The problem of generations, (in) Essays on the sociology of knowledge, pag 296 ( in)Foracchi, 1977. 15Oproblema,asformasgeraisdorecorteea realizao da pesquisa. Estetrabalhobuscadesvendarosnexosexistentesentreareproduodasrelaes sociaisdeproduo(eseusdesdobramentosnareproduodasgeraesedasclasses), instigadapelasatuaispolticasdeexpansodegradadadaescola,easformasde escolarizao da resultantes. Nossoproblemabuscacompreenderasdesigualdadesnovas,marcadaspela expansodaescolarizaonoBrasilnostemposquecorrem,assimcomoaspossveis atualizaesdeantigasformasdeproduodelugaresdiferenciadosnombitodos processos de escolarizao, tomando como base as dcadas de 70, 80, 90, e o ano de 2005.Faremosissoapartirdoestudodasrelaesestabelecidasemumaescola,tratada aquicomoaquiloqueBourdieunomeiacomocasoparticulardopossvel.Emoutras palavras,oestudoprofundodeumcasoespecfico,emnossocasoumaescola,mas realizadodemaneiraadesvendarpossveistendncias,formasemecanismospassveisde generalizao. Importa nesta formulao, menos as caractersticas intrnsecas, internas do objeto a ser pesquisado, e mais a construo, no processo de investigao, das relaes que o objeto mantm com as condies que o determinam5.Paratransformarmosaperguntainicialemferramentasdepesquisa,operamoso recorte da pesquisa a partir de dois mbitos, que, esperamos, articulam-se ao final. Por um lado buscaremos conhecer a escola a partir dos processos de escolarizao dos jovens que nelahabitam.issoqueparticularizaopontodevistaaquidescrito.apartirdos percursosdosjovensnaescolaqueasformasdedesigualdadepresentesemtempos passadosepresentesseroanalisados.Circunscrevendotodaaprimeirapartedatese,os percursos nos permitem perceber os impasses e contradies dos processos educativos, no diretamente pelo ponto de vista expresso pelo jovem, aluno da escola, mas pela tentativa de 5 O caso particular do possvel no se refere, portanto a qualquer atributo do objeto , mas sim a uma forma de construir o objeto durante a pesquisa. 16recriao de parte fundamental de sua experincia de escolarizao, expressos naquilo que chamaremos, durante o trabalho, de modos de escolarizao. Em outras palavras, buscamos aquiperceberosimpassesepossibilidadesinscritosnaescolarizaodosjovenspobresa partir da recriao das trajetrias percorridas por eles na escola, fundamentalmente a partir das desigualdades que marcam esses percursos; inquirir a lgica e os efeitos da organizao daescolasobreosprocessosdeescolarizaoaosquaisestesjovensestosubmetidos, parte fundamental desta pesquisa.Poroutrolado,apartirdaprimeiraabordagem,umaoutrasefaznecessria.Nela busco entender as relaes entre os alunos, jovens pobres que habitam uma escola pblica emespecial,eainstituioescolar.Masfaoissolevandoemconsideraoqueesses jovens ocupam um espao delimitado, neste caso, no s por sua posio na sociedade e na cidade,mastambmporsuaposio na escola. Tento entender as formas de regulaoda escola atravs das relaes entre os alunos e a instituio escolar, a partir da observao de um espao em particular: o corredor do ginsio da escola. 17 Parte I Do campo e da teoria 18 Captulo 1 O campo de pesquisa:uma primeira aproximao 19Algumas consideraes sobre minha posio em relao ao objeto da pesquisa Converterofamiliaremexticoeporentreespaosjmilvezes percorridoserostosannimosdamultidosercapazdearrancar banalidade do cotidiano o frescor de uma paisagem redescoberta, o brilho fugidiodeuminstante,oesboodoperfildedesconhecidosque,no entanto, tm como ns nomes prprios, sonhos, ansiedades e projetos, eis o que constitui tarefa de no pouca monta.(Maria Lucia Aparecida Montes, 2000) NolivroOlhosdemadeira:noveensaiossobreadistncia,CarloGinzburgnos brindacomdoisensaiosemparticular,que,penso,sodefundamentalimportnciapara compreendermosastensesqueenvolvemoconjuntodeproblemasquedelimitamo presente trabalho. Numdelesoautornosfaladasdificuldadesencontradaspelossujeitospara estranharaquiloquelhesfamiliar.Esteartigo,quetransitaentreosescritosdo imperadorromanoMarcoAurlioeanarrativadeTolstoi,convida-nosaumexercciode alteridadefazendo-nosperceberqueaartedodesvendamentopodeseescondersoba transposio das posies narrativas. Aqui arte estranhamento. Nooutroensaio(naverdadeoltimodolivro)Ginzburgnosprovocacomuma situaoqueencarnaaanttesedaprimeira.Destafeita,mostra-nososperigosquese escondemportrsdodistanciamento.Nolimite,aponta-nos,distanciar-sepodesignificar deixar escapar a dimenso humana do objeto que se distancia. A perda da humanidade tem um significado: a morte do objeto. Estetrabalhotransitanestatenso:eleumatentativadereflexosobrequase quinzeanosdetrabalhoemescolaspblicasnomunicpioenoEstadodoRiodeJaneiro. Particularmente, sobre os seis anos de trabalho (1996-2002) numa escola em especial . Mas ele tambm a sntese de quatorze anos de pesquisa na rea de educao. 20Ele , portanto, um trabalho onde se faz necessrio o dilogo entre duas posies : a do pesquisador e a do agente diretamente ligado ao campo da ao. Dilogo que tensiona os dois pontos de onde feita a observao.Antesdemaisnada,necessriodizerqueocampodaaonaescolanunca reflete uma posio simples. Implica, no mais das vezes, estar inserido numa multiplicidade deposiesquevaidesdeaadministraodeconhecimentosealunosnumasaladeaula, atrepresentarturmasjuntoaconselhosdeprofessores(eportantoumaposiode interlocuodiferentedaquelaocupadanassalasdeaulas,dentrodamesmainstituio), participardeconselhosligadosaocampodagestoedaparticipao(oqueimplicauma outra funo dentro da mesma instituio) e militncia (com graus variados de adeso) em sindicatos e outras organizaes que produzam aes no mbito da sociedade..Amultiplicaodasposiestrazproblemasquandotransitamosnombitoda intervenodireta.Quandomultiplicamosoespectrodasposiesqueocupamos, comprometemo-noscomumadiversidadedeagentes,algunsdelesemposies antagnicas.Mas tal multiplicao de extrema fecundidade para a reflexo. Porque ela implica num estado permanente de liminaridade , obrigando a incorporao ou, ao menos, o contato com pontos de vista e com posies outras que diversificam o olhar , tornando matizada a anlise. Neste sentido, estar na escola, conhecer esta instituio e seu cotidiano a partir das posiesmltiplasqueesteestadoimplica,configurasempreumrisco,aomesmotempo dolorosoefecundo.Aquiamultiplicidadedeposiesinduzocontatocomuma multiplicidade de pontos de vista. Masseriaredutornoafirmarosproblemasdaposioocupadapelopesquisador que,aomesmotempo,umatornaescola.Porquenocompromissoassumidocoma instituio(espciedeadesoinvoluntriadaquelesque,aomesmotempo,compartilham uminfortnio,masdiferemquantoaosignificadodadoaeste,nestelugarambguo)os problemas enfrentados no possuem dimenses diminutas.Atquepontodenunciarcorporativismos?Comoabordar,semcairnaestratgia fcildeculparosagentes,asdeterminaesinstitucionaisquelimitamaaodaescola? Comotornarvisvelarealidadedosmecanismosinstitucionaisqueseescondemsobas virtualidadesdasrelaesentrepessoas?Comodenunciaracruezadosprocessosde 21marginalizaoaosquaisagrandemaioriadosusuriosdasescolasdeperiferiaesto sujeitos,semalimentarperigososeancestraispreconceitos?Comopenetrarno,svezes, tensocotidianodoslugaresesquecidosdasmetrpolesbrasileiras,ondelegalidadee legitimidadetornam-sematizadasporformasambguaseporvezesdegradadasde sociabilidade, sem colocar em risco processos e sujeitos que desejamos pesquisar?O que expor? O que calar? Como tecer as relaes entre a tica da ao e a tica de reflexo ?Os problemas tornam-se ainda mais difceis quando pensamos na relativa autonomia dequegozaocampodareflexo.Essaautonomia,porm,envolveriscos.verdadeque, porumlado,configurapossibilidadesdeavanonoconhecimentoeanlisedarealidade; permite percebermos os fragmentos de realidade com os quais convivemos cotidianamente e que, no mais das vezes, aprendemos apenas a administrar e operacionalizar em suas provveisconexeserelaes;oferecesentidosimpensadoserazesescondidaspara aquilo que nos aparecia como simples repetio. Por outro lado, contudo, capaz de munir-nosdeverdadeirosantolhostericos,impedindo-nosdeenxergaraemergnciade problemas reais pela ausncia de ferramentas capazes de aparelhar nossos referenciaisEnfim,nossaposiolimtrofesitua-seexatamentenestelugar(naverdadeuma fronteira)entreaproximidadequedificultaoestranhamento,facilitaaadesoacrticaao objetoestudado,interditaqualquermiradageral,masquepermiteaocupaode posiesmltiplas,aexperinciadepapisdiversos,apontandoumacomplexidadena construodequadrosqueumavisodeforadificilmenteconseguiriaincorporar;eum distanciamento que se arriscar sempre a imobilizar o objeto e a burocratizar a anlise. na aposta em uma proximidade que estranhe e numa distncia que no imobilize que construo o espao de onde observo. Aocupaodestafronteiratensanonosredime,porm,deenfrentarmos,ainda quedeformapreliminar,umaoutraquesto:arelaoentresujeitoeobjetonapesquisa, assimcomosuasimplicaesparacomoprocessodeproduodeconhecimentoeseu produto. Hellersublinhaasutile,aomesmotemporadical,passagemdo homem da condio de objeto condio de objetivo. Na produo intelectualessapassagemsignificaemanciparooutrodacondio deobjeto;pormeiodanossaprpriaemancipao,como intelectuais,dacondiodetutoresdoconhecimento(Martins, 1989)22 Esomentemedidaqueele(ointelectual)capazdese objetivarasimesmoquepode,ficandonolugarquelhe inexoravelmentedestinadonomundosocial,transportar-seem pensamento ao lugar onde se encontra seu objeto (que tambm, ao mesmotempo,emcertamedida,umalterego)etomarassimseu pontodevista,isto,compreenderqueseestivesse,comosediz, noseulugar,eleseriaepensaria,semdvida,comoele. (Bourdieu, 1998) Buscamos auxlio neste momento da empreitada, nos dois autores aos quais fizemos refernciaemtodoestetrabalho.Asdeclaraesquasecomplementaresque propositadamenterecortamosparaestadiscussometodolgica,noescondemsuas nuances e diferenas. O paradigma compreensivo que Bourdieu anuncia para sua sociologia d um acento reflexivo compreenso dos processos de reproduo social. A ao do intelectual tomaria assento na construo dos pontos de vista possveis6 em relao ao objeto de pesquisa. A tarefadocientistasocialseriaade,emltimainstncia,nocompromissofirmadocomo objeto da investigao, re-construir na teoria, a complexidade da dinmica social. ParaMartinsoconhecimentoconstrudonocompartilhamentodoprocesso investigativo entre o sujeito ( que se torna objeto para a compreenso do outro) e o objeto (quesetornasujeitodoprocessodeconversodoinvestigador).Nesteautor,temoso acentonadimensodaaodadaconstruodoconhecimentosociolgico.Uma sociologiaativa,emsuaperspectivademudanadarealidade.Umasociologiamilitante, que, desvendando para si a complexidade da realidade, desvenda tambm para seus agentes o sentido de suas aes no mundo. Aproxima-os uma abordagem dos fenmenos sociais como relaes (para Bourdieu) ecomoprocessos(paraMartins),quenospermitemumtrnsitoentreamicroea macroestrutura.Esoessasabordagensenviesadasdosobjetosquerompemcoma 6 Bourdieu, P. O poder simblico, RJ, Bretrand, 1989. 23dicotomiaentreagnciaeestrutura,quenospermitemanalisarasprimeirascomo constitutivas das ltimas e no como simples pontos de apoio para as mesmas7. Essasabordagens,porm,permitem-noscompreenderainda,queoprocessode produodeconhecimentosobreomundosocial,envolvesempreumaposiode dilogocomoobjetopesquisado.Abrirmodesteprincpiopodesignificaro embotamentodaspossibilidadesemancipatriascontidas(empotncia)noprocessode pesquisa. Temosclareza,porm,queestenoconstituiprocessosemriscos.EuniceDurham (1986)alerta-nossobreosperigosdaarmadilhapositivistaquepodeinsinuar-sesobos processosdeidentificaoentreopesquisadoreoobjetodepesquisa,referindo-se, especificamente, s pesquisas de cunho qualitativo com populaes urbanas. Tal armadilha, montadanabuscaporapreenderdedentroascategoriasculturaiscomasquaisa populaoarticulasuaexperinciadevidasocialeordenasuaprticacoletiva,vem implicando uma reduo: a de explicar a sociedade atravs de categorias nativas, ao invs de explicarmos essas categorias atravs da anlise. Esteperigoagrava-senosestudosdesociedadescomplexas,cujomovimento contraditrio e fragmentado, no se apresenta para a apropriao de populaes particulares de maneira imediata. Aqui, conclui Durham, a sociedade, obscura para o grupo pesquisado, torna-se obscura para o pesquisador (obscura, portanto, para a prpria teoria) . Converter o familiar em extico, recuperando a inverso do cnoneinstigada por MariaLuciaMonte,buscandoaviabilidadedeumaantropologiadofamiliar,a disposionecessriaparaaquelesquesepropemaestudarasrelaesmaisamplas,as conexesmaisprofundaseasrazesescondidasnosespaosquesoconstitutivosdesua prpria experincia. Entenderqueaproduodoconhecimentorealiza-se,nocampodascincias humanas e sociais, no dilogodo pesquisador para com o objeto de pesquisa, admitir que olimitedoestranhamentopodeinscrever-senocompromissotcitodeemancipao recprocaestabelecidoentreocampodateoriaeocampodaprtica.Masassumiresse 7EssainclusivearupturadeclaradaporBourdieunaconstituiodeseuconceitodehabitus,rompendo comoestruturalismo,semcairnavelhafilosofiadosujeitoedaconscincia.Bourdieu,P.Opoder simblico, RJ, Bertrand, 1989 (p. 61) 24dilogoemsuasconseqnciasltimasimplica,contudo,fugirdaarmadilhapositivista de que nos fala Durham, espcie de seduo populista, que reduz a teoria ao restringir o campo s suas dimenses imediatamente visveis. A escola como mirante Entrar no campo da pesquisa no foi, portanto, tarefa fcil. Moradora do local, ex-professoradaescola,faziaotempotodooesforodeestranharofamiliar.Resolvi comearminhaentradanocampoobservandooentorno.Poroutrolado,omovimentode estranharoquemeeradecertaformatofamiliaraescolaimplicavaenxerg-laa partir de uma nova perspectiva.Quando enxergamos um objeto, no podemos deixar de levar em considerao que estamosobservandoumafrao,umrecorte,queemverdadeestinseridonumespectro muito mais amplo de relaes do que aquele para o qual direcionamos o nosso olhar. Desta forma,olharaescoladeumaoutraformadevesempresignificartomaresseespaocomo lugardeobservao,comopontoeposiodeondesovisveisfenmenosquenose esgotam, em absoluto, ao lugar que tomamos como mirante.Emnossocaso,tomarofatodaobservaodestaforma,significatomaraescola comoformaparticulardeexpressoderelaessociaismaisamplas.Significatambm, entenderqueseestelugarexpressarelaes,eletambmasproduz,numaelaborao especfica.Aqui,portanto,tomaraescolacomoobjeto,significatom-lacomoespaode observao. Estudar a escola olhar, ao mesmo tempo, dela para o mundo e do mundo para ela.tom-la,comonosensinaBourdieuinspiradoemBachelard,comoumcaso particular, constitudo em caso particular do possvel. o proveito cientfico que se retira de se conhecer o espao em cujo interior se isolou o objeto estudado (por exemplo, uma dada escola) e que se deve tentar apreender, mesmo grosseiramente, ou ainda, faltademelhor,comdadosdesegundamo,consisteemque, sabendo-se como a realidade de que se abstraiu um fragmento e o que dela se faz, se podem pelo menos desenhar as grandes linhas 25deforadoespaocujapressoseexercesobreoponto considerado(umpoucomaneiradosarquitetosdosculoXIX, quefaziamadmirveisesboosdecarvodoconjuntodoedifcio nointeriordoqualestavasituadaapartequeelesqueriamfigurar em pormenor). E, sobretudo, no se corre o risco de procurar (e de encontrar) no fragmento estudado mecanismos ou princpios que, defato,lhesoexteriores,nassuasrelaescomoutrosobjetos. (Bourdieu, 1989, pp 31-32) Ocasoparticulardopossvel , portanto, uma forma de recortar o objeto. No umatributooucaractersticadoobjeto,masumaformadeabord-lo,comoprodutoe,ao mesmo tempo, agente de relaes sociais.Oqueestamosquerendodizeraquiqueaescolaescolhidacomoobjetodesta pesquisanopossui,emsi,atributostosingularesquejustifiquemsuaescolha,nem tampoucoqueelasejaespecialmenterepresentativadedeterminadacaractersticaquese precisedescrever.Nossotrabalho,portanto,noserestringeaexecuodeumaboa escolha,aliadaacuidadenecessriaaumadescriosatisfatriadeumobjeto,emsi, precioso. Por outro lado, ela efetivamente possui peculiaridades que a tornam especial (como de resto todas as escolas que nos dispusermos a estudar) .Seumobjetoalgoqueseexpressaparaalmdelemesmo,ouparaalmdaquilo quepodemosconstataremsuaobservaoprimeiraeemsuadescriomaisligeira,o estudoexaustivodeumcaso(sejaeleparticularougeral)noesgotaaspossibilidades analticas contidas no objeto. Seoobjetosempreexpressoderelaessociais,entonecessrioestud-lo como produto e tambm como agente das relaes sociais que expressa; como campo onde se entrecruzam as presses externas e internas que o delimitam, ampliando a compreenso, no s do objeto em si, mas tambm de seu entorno. na combinao entre os instrumentos metodolgicos e analticos que adotaremos, por um lado, aliados s caractersticas dessa instituio em particular (em suas relaes com as foras sociais que a determinam), por outro, que radica a potncia desta abordagem. 26natessiturapermanenteentreaquiloqueobservveldentrodaescolaesuas determinaes externas, e ao mesmo tempo, entre aquilo que, de fora, manifesta-se, com determinadascaractersticas,nointeriordoespaoescolar,queestfundadanossa possibilidadedecompreenderessainstituiocomoespao,lugar,mirante,postode observao das relaes sociais. Porisso,apresenteanlisenonomeiaseuprincipalator:aescola.Ela determinada pelas relaes que estabelece: com a localidade (no tempo e no espao), com as polticas que delimitam a direo das aes em seu interior, e finalmente, pelas relaes queestabelececomsuapopulaousuria.Osagentesescolaresseroreconhecidos,no porseusnomes(ouporqualquernome),maspelaposioqueocupamnointeriorda instituio. Tomaremoscomopontodepartidadaanlisedesteespaoaescoladuas dimenses deste campo. Uma delas, a dimenso espacial. Comearemos a ampliar nossa viso sobre a escola observando seu entorno mais imediato: o bairro e a praa onde esta fica localizada.Destaformabuscaremoscompreender,nasrelaessociaismaisamplas(mas peculiaresaestebairro),oselementosgeraisquenospermitemcompreenderalgumas caractersticas das relaes sociais estabelecidas no interior da escola. Por outro lado, as histrias recentes da escola e da localidade cruzam-se num evento que,assimcomoapraa(ampliaoespacialdasrelaessociaisexpressaspela escola),ajuda-nosacompreenderacomplexidadedestesrelaesnainstituio:as enchentesde1988eautilizaodasinstituiespblicaslocais(inclusiveaescolaem estudo neste trabalho) como abrigos, mais ou menos temporrios, para os desabrigados. Utilizaremos,portanto,essasduasdimenses.Apraa,comoampliaoda dimensoespacial,easenchenteseseusefeitos,comoampliaodadimensotemporal, paraacompreensodasrelaessociaislocais,paraalmdoslimitesdeterminadospelos muros escolares. 27O Bairro e as relaes sociais locais Estamos tratando aqui de um bairro do Rio de Janeiro, localizado na Zona Norte da cidade.Sua origem remonta uma rea doada aos Jesutas em 1565, maior proprietria da rea da capitania, at a sua expulso em 1759. L, junto com os ndios locais, agregados e escravos, foram implantados dois grandes engenhos, que acabaram por dividir a regio emEngenho Velho e Engenho Novo. Asterrasforamdesmembradase,emespecialasmaisprximasdocentro,foram arrendadas, surgindo a fazendas e chcaras de abastadas famlias brasileiras e estrangeiras, que buscavam o local na tentativa de fugir do calor e das epidemias do centro. Paraumcertotenenteingls,talpedaodeterrapodiasercomparadaSintra brasileira:lugarcombonshotis,belasresidncias,grandesplantaeseponto obrigatrio de visitantes estrangeiros para piqueniques e excurses.(Rose e Aguiar, 2004, p. 19). Consideradoumlugarsaudvelefresco,cortadoporrioseprximofloresta, situado a 2 mil ps da cidade, onde, considerava-se ento, o germe da febre amarela no conseguia chegar, essa era uma terra abundante em plantaes de caf o que possibilitou uma ocupao intensiva do bairro pelas famliasdos ricos plantadores. Nem s os brasileiros aproveitavam as condies climticas da regio. Aos poucos o localtornou-seuma concentrao de nobres e comerciantes franceses que se dedicavam principalmente cultura do caf. Somando os novos mtodos de plantio trazidos por esses estrangeiros qualidade da gua do solo e do clima, os stios e fazendas alcanaram um grande desenvolvimento na poca (Rose e Aguiar, 2004, p. 24) AFreguesiadoEngenhoVelho,comoerachamadotrechosignificativodobairro ento,era,portantoumlugarnobre,deseletosocupantes.Toseletosqueem1892 registra-senobairro,juntomunicipalidade,algunsproprietriosdecarruagensdeluxo, numapocaemqueoalugueldeanimaisdemontariaedeveculosjconstituauma extravagncia. Nestebairro,emquetrafegaramosprimeirosbondesdaAmricadoSul,so implantadastambmalgumasdasprimeirasfbricasdacidade.Enestelugar,cercadode 28morroseflorestas,juntocomasprimeirasfbricassurgemtambmasprimeirasfavelas. Elas datam dos primeiros anos do sculo vinte, acompanhando o crescimento do bairro.Masobairroocupadoemseusprimrdiosporfazendeirosdecaf,redutodos distintoscasaresdaelite,vseuprestgiodesfazer-secomamigraodestamesmaelite paraasregiesmaisprximasdomar8,temposdepois.Adecadnciadestatusvaise tornando mais intensa na medida em que vo sendo estabelecidos os cortes que comeam a separaracidadeemZonaNorteeZonaSul.Essainferioridaderelativaquefazdeste tradicional bairro o mais distinto da Zona Norte, mas irremediavelmente aqum da Zona Sul, essa marca, de tal modo determinante, que identifica seus moradores (este o nico bairro do Rio cujos moradores merecem uma alcunha). Mas no s de suas dimenses externas se pode identificar este lugar peculiar. Neste bairrodegrandesdimensesetopografiairregular,nesteespaocortadopormorrose elevaes, o nmero de favelas conta-se entre os maiores da cidade (so ao todo 13 hoje em dia).Sabemosastensesquemarcamasrelaesentrefavelaeasfaltodesdeo surgimento destas.Aspolticasderemoo,aslutascomunitriaspelalegalizaodosespaosde moradia,passandopelosembatesparaaconquistadeequipamentospblicosdeconsumo coletivo para as favelas deixaram (e deixam) suas marcas na histria desta cidade.Nadcadade80,ainvasodasfavelaspelomercadodasdrogas,eaidentificao preconceituosadeseusmoradorescomotalmercado,vemfazendodaseparao favela/asfalto algo prximo apartao social.Por fim, a descoberta de outros espaos nobres para a expanso da cidade, em conjunocomoimpactotrazidopelaentradadasdrogasnasfavelas,numaregio cercadaporelas,esvaziouaindamaisobairro,perdendoeste,porfim,asfaixasmais dinmicas da classe mdia local. Estudando uma pequena comunidade na Inglaterra, Norbert Elias (1994) nos ajuda a entenderqueosmecanismosdedistinonoacometemapenasaquelesposicionadosnos extremosdoespaosocial.Elenosmostraqueformasmltiplas,decisivasemesmo 8 Especialmente com a construo do tnel Rebouas. 29radicais de diferenciao podem ser postas em ao para distinguir aqueles localizados em posies semelhantes. ComoumaWinstonParva9carioca,atensoquemarcaasrelaesentrefavelae asfalto neste bairro, s podem encontrar explicao na busca desesperada de distino entre sujeitosque,posicionadosdeformamedianamente10desigual,sosubmetidosaum mesmo processo de degradao espacial (e portanto social). As instituies pblicas locais expressam essa tenso. As escolas (pblicas) as expressam de maneira particular. Aescoladequetratamosencarnaosconflitosentrefavelaeasfaltodemaneira singular.Localizadanumaregiobastantevalorizadadoditobairro,ainstituio, coordenadaedirigidapormoradoresdaregio,comumquadrodeprofessores predominantementeformadopormoradoresdolocal,habitadaemsuaquasetotalidade poralunosprovenientesdasfavelasdoentorno.Aqui,osrituaisdediferenciaoso atravessadospelasdistnciashierrquicasquemarcamasrelaesentreprofessorese alunos, fazendo com que os embates travados expressem , s vezes de forma quase caricata, as contradies profundas que marcam as relaes locais. A praa Como j se deve ter percebido, a escola fica situada em frente a uma grande praa, um dos principais espaos pblicos de lazer da localidade. uma praa antiga, cercada de rvores frondosas, opulentas, e velhas como devem ser as rvores. No centro da praa, um chafariz centenrio faz as honras da casa. O conjunto cheira a tradio. Umparquinhocombrinquedosparaascrianas,umaraiadebochaparaosmais velhos, mesas e cadeiras protegidas por toldos completam os equipamentos de lazer, cheios durante os dias de bom tempo. Nos finais de semana, cavalos, bodes, bicicletas, ambulantes vendendo brinquedos e bugigangas, pula-pulas, disputam os espaos da praa com aqueles que somam os finais de semana s suas caminhadas e corridas dirias. 9 Nome fictcio da comunidade estudada por Norbert Elias (1994) 10medianamenteaquiindica:nemtoprximosquantonasregiesperifricasdazonanorte,nemto afastados quanto nos lugares mais distintos da Zona Sul 30Apraaopedaomaisprximodaescola.Masnosempreomesmo, mudandodejeitodeacordocomashorasdodia.Pelamanh,tomadapelos caminhantes e corredores que se exercitam ao seu redor, pelo grupo animado, que , no centro da praa faz ginsticanas primeiras horas da manh, ou da turma zen praticante de Tai Chi .Amanhavanaeosginastassosubstitudospelascrianas,suasmes,avse babs,epelosidososquejogamdamaebaralhonasmesasembaixodostoldos.Atarde cai,ejuntocomosambulantesvendendochurrasquinhosepipocas,chegamosjogadores de bocha. Por fim, em algumas noites mais animadas, grupos de capoeira se apresentam no pedao. Comoespaopblicodobairro,olugartomado,principalmente,pelos moradores do lugar. E, apesar da localizao muito prxima de trs das favelas locais ( as mesmas que fornecem os alunos da escola), a presena de moradores destas na praa s se d em momentos especficos , ou na ocupao de posies particulares. O que no de se estranhar, pois a relao que a cidade (e por extenso, os bairros que a formam) estabelece para com a favela, essa relao de clandestinidade, se estende aos seusmoradores.Comoclandestinos,comoinvasores,nosofacilmenteadmitidoscomo usurios dos espaos do bairro. A praa em questo no exceo. E a no ser em algumas ocasies,aestadiadosfaveladosnapraasadmitidacomolegtimaemuma circunstncia: trabalho.Aparentemente,porm,osjovensestudantesdaescola,emsuamaioriamoradores dasfavelaslocais,noaceitamousimplesmentedesconsideramasregrasda convivncialocale,emalgumasocasies,rompemoacordotcitoestabelecidoentre os regulares e os clandestinos do lugar. Oshorriosdesadadaescolaconfiguramalgunsdestesmomentos,emquea ocupaodapraapelaclassemdiaficaobscurecidapelaentradaemcampodas crianasejovensdasfavelaslocais.Nestesmomentospossvelnotaradistnciaque separaasclassesnestelugar.Muitasvezesvemosoolharreprovadordosocupantes habituais s trocas de carcias entre os jovens, ou em vista de uma brincadeira coletiva mais animada entre os alunos.31Os jovens estudantes parecem no notar (ou parecem no ligar) para o isolamento emuitomenosparaosolharesadmoestadores.Tomamapraanoshorriosdeintervalo, fazendo dessa o seu pedao. Os jovens ocupantes da praa nem sempre vm p, e nem sempresaemdedentrodaescola.Comachegadadofinaldasaulasdamanh,praa comeam a acorrer uma infinidade de bicicletas, que, circulando pelo pedao, vm somar-se queles que em breve deixaro escola, assim como queles que iniciaro seu turno de estudos.esseexrcitodeestudantes,namorados,paqueras,zoadores,amigos,e,em algumasocasies,adversrios,espiasealemes,queinvadeolugar,lembrando classe mdia local, que pelo menos naquele momento, a praa tem novos donos. Nosapresenafsicadosjovensqueapraarejeitaouignora.Suas manifestaes culturais recebem o mesmo tratamento. Num dos dias em que fazia campo nolocal,rolava,dentrodaescola,umprojetodemsicaque,nestedia,ofereciauma oficina que tratava do Funk. interessanteesclarecerqueumadaslateraisdaescolaabre-separaumadas faces da praa. A oficina acontecia no auditrio da escola, que funciona no terceiro andar, e pela posio que ocupa, aliado qualidade e altura do som utilizado durante a atividade, permitia a audio perfeita do que acontecial dentro, por parte significativa da praa. Aoficinainicia-secomahistriadofunk.Comaemergncia,nacionale internacional desta manifestao musical. O dinamizador trazia msicas, os clssicos do estilo,evocandooreconhecimentodosalunos.Durantetodootempo,observeiasreaes locaisentradadofunknapraa.Elaseramsemprereaesdereprovao,podendo expressar formas mais ou menos contundentes de manifestao. Aparentemente, o que mais chocavaosocupanteshabituaisdapraaeraofatodequeamsicamalditapartiade dentro de uma escola pblica! O mais paradoxal nesta histria que a condenao local da msica marginal( da msicademarginais)queemanavadaescola,aconteciaaomesmotempoemqueo dinamizadordaoficinaadicionavahistriadoFunkumdiscursoquepropunhaa utilizaodesteestiloemproldeumaculturadapaz.Propunha,portanto,paraofunk, um propsito que era, exatamente, o avesso daquele que constitua o cerne da condenao local ao estilo em questo. No sei qual foi a reao dos alunos. Mas para os ocupantes da 32praa,odiscursocaiunovazio.Ascondenaescontinuaram,enquantoamsica extravasou a escola.Em contraste com o caso da oficina de Funk, temos a oficina de percusso, ocorrida porcassemanasantes,eobservadapormimdomesmoposto.AocontrriodoFunk,a percussonocausounosfreqentadoresdapraa,arevoltapresenciadapormimno episdio anterior, mas sim surpresa, e penso que posso dizer, sem o risco de estar enganada, um certo encanto. Atodiadaoficinadepercusso,asnicasmanifestaesqueapraatinha presenciado em relao escola, eram o barulho permanente dos recreios que se sucedem, e as ordens e repreenses da direo da escola no sistema de alto-falantes. Assim, penso que foicomsurpresaaprincpioeencantamentoaofinalqueobatuquedosmeninosfoi recebidonapraa.Aperguntaquemefiz,foi:oqueseencontranesseespaoentreo encantoearevolta?Porqueseaceitasemproblemasotoquequasequefolclricodos tamboresquemarcamapercusso,masserecusa,svezescomviolncia,qualquer expresso mais contundente da vida dos jovens nas favelas? Porfim,nosfinaisdesemana,apraaespaodelazer.Masaindaaquidevemos nosperguntar:lazerparaquem?Encaminharaperguntanosfazentraremcontatocom outra forma de ocupao da praa pelos alunos da escola. Nos finais de semana, eles so trabalhadores na praa.Puxam cavalos, bodes, charretes, cuidam dos animais, vendem bugigangas junto aos ambulantes,almdepipocas,sorvetes,gua,refrigerantes....Fazempartedacorlocal. So parte da mo-de-obra que transforma a praa em palco de pequenos negcios nos finais de semana e feriados. Nestes momentos so invisveis. No so jovens pobres, nem alunos, nem funkeiros. Sotrabalhadores.Situaomuitodiferentedaquelaquesedesenroladuranteasemana, quando tomam a praa, durante as trocas de turnos da escola.Continuam sendo forasteiros e subalternos, no espao de lazer em que se transforma a praa, durante os finais de semana. So, porm, infinitamente menos poderosos do que nas ocasies em que protagonizam a tomada do pedao nos dias de semana. Essa , em sntese, a praa, entrada da escola. Entrada fsica, na medida em que, deformageral,apraafuncionacomoumaespciedeante-saladaescola.Masapraa 33significou para ns, a entrada simblica na escola, na medida em que, em suas mudanas, emsuasalteraes,foipossvelentenderalgumasdasrelaesqueseestabelecemno interior da instituio.Neste caso, a praa funcionou quase como que o microcosmo do bairro, que em sua misria de posio encarna, como poucos espaos, o abismo que pode ser construdo entre sujeitosemposiesdeligeiradesigualdade(osfaveladosenofaveladosdobairro), submetidos processos comuns de degradao (aquele a que est submetida, tanto a cidade, quanto o bairro, em particular, de onde realizamos estas observaes). Apraanosajudouaentenderessebairro(etambmessaescola)emquejovens pobres so admitidos como trabalhadores subalternos, mas no como sujeitos coletivos; so admirados tocando tambores, mas so rechaados quando expressam seu estilo de vida. 34As enchentes de 198811 Rosa liderana comunitria no morro da Formiga desde que se conhece por gente. Filhadepaiemeativosnaslutasrelativascomunidade,participantedogrupoque resistiutentativaderemoodafavelapoucoantesdadcadade60,militantenos movimentoscomunitrios,tendoocupado,emsuasprpriaspalavras,todososcargos existentesemumaassociaodemoradoresdadcadade80parac,elatem,almde tudo, vasta experincia na relao com as escolas da regio. Estudou na mais tradicional escola pblica primria do bairro no final da dcada de 50.Participoudalutapelaimplantaodeduasoutrasescolaspblicasprimrias,asduas conquistadas. Uma delas construda no mesmo terreno da escola em que cursou o primrio. Aoutra,construdanadcadade60,dentrodomorroondemora.Foime representante,12duranteoprocessodeescolarizaodeseusquatrofilhos,nasescolas pblicas da localidade, incluindo a aquela que objeto de nossa pesquisa. Durante toda a entrevista realizamos uma espcie de queda de braos. Eu tentava circunscrever as perguntas (e, portanto, as respostas) ao mbito da experincia de Rosa em relao escola a que fazemos referncia neste trabalho. Ela, ao contrrio, expandia sempre ombitodaexperinciarelatada,ampliandoaesferadarespostaatrsescolaspblicas locais:aquelaondeelamesmaestudoueondeestudarameestudamtrsgeraesdesua famlia;aquelaqueobjetodenossapesquisa,ondeseusfilhoscursaramoginsio;e aquelaquefuncionadentrodafavela-segundoelaumaespciedeescolapblica comunitria. 11 A histria das enchentes de 1988 e seus efeitos sobre as relaes sociais locais, neste trabalho, ser tratada a partirdeentrevistasrealizadascomdiversosatoresque, dealgumaforma,edeposiesdiversas, testemunharam o fato. Para estruturar esta anlise amos por cotejar os depoimentos de dois dos atores, que pelas posies mltiplas que ocupam em relao escola que nosso objeto de estudos e localidade onde essaseinsere,fossemcapazesde,aomesmotempo,ampliaracompreensodoeventoeminvestigaoe expor de forma clara os conflitos subjacentes a tais interpretaes. importante ainda declararmos que nossa atenonoestvoltadaaquiparaadescobertadequalquerverdadeltimasobreofatodasenchentese seus desdobramentos. Mais do que entendermos o evento, queremos dar acento ao conflito de interpretaes queoenvolve.Conflitoessequeexpeosimpassesqueenvolvemasrelaessociaislocais.Porfim, importante apontar que os nomes utilizados aqui para identificar as entrevistadas so fictcios. 12 A me-representante uma figura tradicional nas escolas pblicas do Rio de janeiro. Escolhida ou votada em cada uma das turmas, sua funo a de mediar as relaes entre os pais e a escola, intermediando coletas de assinaturas e de pequenas quantias de dinheiro. Em algumas ocasies, porm, e em determinados perodos, essarepresentaopodemudarosentidodasuaaoepassaramediarasdemandasdospaisdianteda escola. opt35S na transcrio da entrevista, e depois, durante a escritura deste trabalho, percebi que, se para mim era possvel isolar uma instituio como objeto de estudos (mesmo que esseisolamentoseja,porprincpio,relativoeparcial),paraelaesseisolamentoera impossvel, porque o que ela relatava para mim era o processo de escolarizao, no s dela oudesuafamlia,masdocoletivoqueelarepresentara,eporquemlutara13.Paraeste coletivo, a escolarizao no se d numa escola, mas num circuito de escolas.LiladeveteramesmaidadequeRosa.Ambasestudaram,namesmapoca,em escolasvizinhasdamesmaregiodobairro.Lilamoravanapocanumacasaelegante, beira da praa onde fica localizada a escola de que tratamos. Sua av dava aulas na escola. Suametambm.Elamesmaestudounaescoladuranteocursoprimrio.Maistarde,na dcada de 70, foi professora na instituio. Elamorahojenumdosprdioselegantesbeiradapraa,prximodeondeviveu na infncia. De seu apartamento podemos ver a escola. Durante toda a entrevista fala com saudadesdestaexperinciadesuainfncia.Eueraumacrianaquetinhatudo,eassim mesmoaescolameencantava.Lembradasfestasjuninasedeprimeiracomunho. Quando pergunto sobre as diferenas sociais entre os colegas, lembra que essas eram mais visveis nos sapatos e casacos. Ossinaisdedistino,indicandoopertencimentoaumaverdadeiradinastia escolar14,ficamabsolutamenteclarosquandoLilaselembradeumaprofessoraem especialdequemnogostavaequeaadulavacompresentes.Elaselembravaem especialdeumacaixadefinosbombonsedeumdelicadoconjuntodexcaras,feitode loua, para bonecas. 13Lutaacategoriaqueexpressatodaasuaexperinciaparacomaescola.Foiumalutaentrarparaa escola. eu me lembro que quando minha me matriculou, matriculou 5 filhos. E quando ela matriculou os 5 filhos, ela foi pra fila pra fazer a matrcula, a minha me foi pra fila da matrcula na 5. Feira, pra inscrever ofilho(), a matrcula ia ser segunda. Quintafeira pela manh , ela foi pra fila da escola. Ela dormiu esses diastodos.Diaenoite,diaenoitenarua.Arevezavacomofilho.Quandoela vinhaemcasatomavaum banho, o outro ia ficar l de dia (isso j na dcada de 50).A luta tem dimenses mltiplas: uma, cotidiana, incluindoamanutenodouniformeimpecvel,domaterialemdiaduranteolongoedifcilprocessode escolarizao das famlias. Outra, pblica, mais ampla, que inclui a luta por mais escolas ainda na dcada de60,pelaampliaodaescolapblicacomunitriaesuaextensoparaaeducaodeadultose, atualmente, pela transformao de uma grande fbrica de cigarros desativada da regio em escola de ensino mdio . 14Equeemseucaso,fundamentava-se,noapenasemsuaposiodeclasse(derestopossivelmente semelhanteainmerosoutrosalunosdaescolanapoca)masdesuaposionahierarquiainstitucional (como filha e neta de duas conceituadas professoras da escola). 36Apesardasdistnciassociaisqueasseparam,equeseparamespecialmenteas experinciasqueacumularamemseusprocessosdeescolarizao,LilaeRosase aproximamnumponto:emsuasdescriesdasescolasprimriasquefreqentaram, separadasporpoucosmetrosdedistncia,oconflitoentreasclassesficou,emambosos casos , escondidosob a descrio comum de experincias felizes. Mesmo quando a escola passa a ser encarada a partir das muitas outras posies que ambas ocuparam nesta instituio (Lila como professora, e Rosa como me representante e lideranacomunitria)ficavammuitomaisacentuadosostraosdecolaboraoentreas classesnointeriordainstituio,doqueaquelesquedenunciassemalgumaformade conflito entre as partes. Acoisacorreudestaforma,emambasasentrevistas,atqueumeventofoi mencionado: as enchentes que atingiram duramente o bairro em janeiro do ano de 1988 e, maistragicamente,ostrsmorrosqueacomodamastrsfavelasdaregio,eaindamais especificamente (pelo tipo de solo, de topografia, e pela forma especfica de construo das moradias) aquela onde Rosa reside. Deste momento em diante, no s o conflito entre as classes fica evidente em ambas as entrevistas, produzindo, em cada um dos casos verses diferentes sobre o mesmo evento, comoficamclarasasdiferenasatribudasaospapisdesempenhadospelaescolaeseus professores no episdio . Ficam claras ainda, as divergncias relativas s expectativas que envolvem a instituio, para os grupos sociais representados nas entrevistas15.Emdeterminadomomento,faoaLilaaperguntaaparentementebvia,masque reivindica explicao exatamente para aquilo que se tenta mascarar durante todo o processo de entrevista. A ex-professora da escola, ex-aluna, filha e neta de ex-professoras da escola, moradoradasproximidadesdapraaondeainstituioficasituada,quegenerosamente dedicouparteimportantedaentrevistadescrevendocomsaudadesaexperinciadetoda umavidaderelaocomainstituioemquesto,emdeterminadomomento,aofinalda 15 importante declarar que o escamoteamento do conflito entre as classes, na escola ou fora dela, no foi, em todootrabalhoenvolvendoasentrevistasrealizadas,prerrogativadeRosaeLila.Estafoi,naverdade,a tnica das entrevistas realizadas por ns. Foi sempre a evocao de um evento como aquele de que tratamos nestemomento,umfato,ouumaperguntaestrategicamenteposicionada,quetrouxetonaocarter conflituoso que pode envolver as relaes entre as classes. 37entrevista, quando pergunto se seu nico filho (hoje um jovem universitrio) havia tambm estudado na escola, responde: Deus me livre! No quero que meu filho entre naquela escola, nem para votar! Osilncioqueseseguiueraaexpressomaisconcretadoabismoqueseformava entre a descrio da escola como buclica lembrana da infncia sem conflitos e o presente, testemunha de tal averso quilo em que a instituio se transformara.No meio do caminho a professora evoca a enchente de 1988 , a utilizao da escola como abrigo para os moradores das favelas locais que perderam suas casas, e a decadncia daescolanadcadade90,quandodasadadosmesmosdainstituio.Aquia decadnciatomasubstncianossujeitos,consideradososagentesdadegradao,e objetiva-se nas relaes locais: Os desabrigados esperavam a mo-de-obra do professor. Naescola,aversoquecorrenodiferemuitodaquelamanifestadapelaex-professora. Em entrevista, a supervisora da escola (que trabalha na instituio desde 1984) afirma que um dos momentos de maior esvaziamento da escola se deu exatamente quando esta serviu de abrigo para aqueles que perderam suas casas nas enchentes de 1988 . Nestaocasio,deacordocom a supervisora da escola, a instituio, ocupada pelos desabrigados,passouafuncionar,espalhadaportrsescolaspblicas,maisoumenos prximasdolocal.Quandoem1990aescolavoltouafuncionar,ocontingentedealunos haviasereduzidoa60%desuacapacidade.Osequipamentosescolareshaviam desaparecido. Entrardavamedo!Aprefeiturasdesalojou.A...(grandefbrica decigarrosentosediadanalocalidade)queentrou,desinfetou e 38pintou.Oqueosdesabrigadospuderamlevar,eleslevaram! Cadeiras,mesas,quadros,trsmimegrafoseltricos,um piano...muitacoisafoi,ensfomosrepondoaospouquinhos,com festas.OMunicpiomandoualgumascoisas,masamaiorians compramos. Adescriodistantedospercalosinstitucionais(aindaqueverdadeiroseatsob certo ponto de vista, decisivos e dramticos para a instituio) feita pela classe mdia local, dedentrooudeforadaescola,no nos livra, porm, de buscarmos compreender a verso daqueles que na histria da instituio e em sua relao com as enchentes so percebidos e nomeados como os desabrigados. a descrio de Rosa que nos ajuda a entender o acontecimento: Foiaquebateuumtemporal,aveiovindo,trazendotudo!A soltouumapedraldecima,veiotrazendocasa,gente,avoc escutavaaquelagritaria,ggggennnntequeTERROR!Eudigoque parece que o mar voltou TODO pro Morro... O meio dessas pedras , aqui no macio, descia assim, cachoeira de gua! A que comeou. Que desespero! QUE DESESPERO que foi ! O que que aconteceu? Jtinhaumgrupodesabrigado,aquilotriplicou!Aoqueque aconteceu? Encheu TODAS as escolas,encheu TODAS as Igrejas, encheuoPostodesade....OpostodesadedaquidoMorrono tinha ainda sido inaugurado. Ele foi inaugurado na enchente de 88, nopeito!Aquandoinauguroudeuumtemporalquearrancouo teto do posto e o posto alagou, e a sai aquelas pessoas machucadas, doentes, gente que quebrou perna, que quebrou brao, que amputou brao,aquelafofocatoda,entrouTUDOpradentrodaIgreja Batista.AaIgrejaBatistaENTOPEquenotinhamaislugar.A teve que abrir a Igreja Catlica. A Igreja Universal no deixou. Por issoquehojeelavaipagarumpreo.Acomeou...eaentupia maisgente,maisgente,maisgente,maisgente,maisgente,mais 39gente....Aoquequetevequefazer?Comeouadescer,um bocado de gente pra escola A e pra Escola B, que a comeou: gente do Borel gente da Indiana, gente do Salgueiro, gente da Formiga, a comeou a ir gente do asfalto.... essas ladeiras assim, porque que nemvoc.Vocpodemorarnumarua.Oprimeirosocorroquetu tiver,lquevocvaientrar!Notemjeito.Aentropradentro daquilo ali, e dali comeou a briga. importanteentenderqueotemporalavassaladorquederrubouosmorrosem 1988 tinha sido precedido por densas chuvas que haviam causado srias avarias regio,j no final do ano anterior, sem que grandes providncias por parte do poder pblico tivessem sidotomadas.Jnestapocavinhamseestabelecendodivergnciassobreopapeleouso dosequipamentospblicosporpartedapopulaonosepisdiosdedesabamentose desabrigo.Aschuvasde88,portanto,noforamasnicascausadorasdodesastrequese abateusobreapopulaolocal.Elasforamagota(equegota!)quefeztransbordaro pote.Ocoroamentodeumacrnicatrgicaquevinhaseanunciandopelomenosdesdeo final do ano anterior. DafaveladeondeRosafazseurelato,aescolapblicacomunitria,localizada dentrodomorro,jestavacheiadedesabrigados,desdeofinalde1987.Desdeentoj haviadivergnciasentreosmoradoresmaisorganizadosdolocal,quereivindicavama responsabilidadedaprefeituranaremoodosdesabrigados,eadireodaescola,que defendia simplesmente a sada dos mesmos da instituio. Omorrocomeouadesabar,tvendocorpopassar,gente quebrada,genterebentada,crianagritandoCadminhame, genteenterrado,Numvabriraescola...Foiaquens... Comeouarixa.Masali,euea...(diretoradaescolanapoca) rachamos.Euea...rachamosali.Ahistriaquetinhaaescola,a histriadelutaquetinhaaDonaMariaJos(primeiradiretorada escola),DUVIDOQUEFOSSECOMAD.MARIAJOS! DUVIDO! Era a primeira coisa que ela ia fazer. Ela abria a escola. 40Vamosbotaraquidentro.Vamosbotaraquidentro,amanha gente resolve pra onde a gente vai levar. Em 66, 65, que teve uma enchente terrvel, 68, Dona Maria Jos pegou todo mundo que tava precisando, e botou dentro da escola. E no deixou de dar aula! At os pais que tava l...Vai todo mundo estudar! Opapeldesempenhadopelosmoradoresnalutaenaconstruodaescola,assim comoohistricodedireescomprometidascomaslutaslocais,eraosubstratoque legitimavaodireitoreivindicadopelapopulaoaoabrigoconstitudoporumadas poucas instituies pblicas locais. Atempestadede88noarrasouapenasobairro,omaisatingidosnumdosmais intensostemporaisquedesabousobreacidade,desabrigandomilharesdemoradoresdas favelaslocais.Atragdiatornouevidentetambmafragilidadequemarcaarelaodo poderpblicocomospobreslocais.Emespecial,foramexpostas,nesteembate,as divergnciasediscordnciassubterrneasenvolvendoopoderpblico,seusagentese usurios, por um lado, e as classes e suas desigualdades , por outro. Nas escolas pblicas a questo tornava-se ainda mais aguda. Havia, por um lado, a reivindicao, pelos movimentos populares, da educao como direito e no como benesse, que tornava legtima no s a luta por escolas e a participao das comunidades nas gestes escolares, mas trazia ao mbito dos movimentos sociais uma experincia de pertencimento, de identidade para com a instituio, raras at ento nas relaes entre as classes populares eaescolanestepas.Poroutrolado,haviaumaespciedeideologiapopulista,noRiode Janeiro,daescolapblicaparaospobres,queabafavaosconflitosefetivamente existentesnainstituioebuscavaconstruiraidiadeumacomunidadeescolar, harmnica e cooperativa.Asenchentesde88atingiramambososmovimentos:naslutaspordireitos, mostrou-seoslimitesinscritosnosprocessosdeidentificaodasclassespopularesem relaoinstituioescolar.Poroutrolado,areaodasgestesescolarestragdiados desabrigadosferiuseriamenteaideologiadacomunidadeescolarharmnicae cooperativa. 41Aquilodesabou.Euacheiquenaquelemomentoadireoda escolaperdeuumpoucoopulso,porquenahoraavaidadedelas faloumuitoalto.Euachoquenummomentodessequet desabando tudo, voc v , que nem eu vi, a criana da Escola...(uma dasescolasprimriaslocais),queeradopelotodebandeira,o alunonmero1daescola,perdeutudo!Sficouelevivo!Eles lembrava,nahora,daescoladeleedaprofessoradele.Porque morreuame,morreuoirmo,morreuopai,eleslembravada professora!Quandoagentetirouele,elesqueriaaprofessora dele!Euacheiquenaquelemomentoali,pradireonoperdero rumo,elasprpriaspoderiam...ataprpriadireo...T desabandooMorro...!Osalunosnossos...vamosabriraescolae esperareleschegar.Nofizeramisso.Aescolaabriunopeito! Porque quem abriu a escola pblica daqui da comunidade, no peito, foi eu! Eu com outro grupo daqui.(...) Acomeouoseguinte:adiretorano,tiradaqui,ebotalna EscolaA!,adaescolaA,diz:no,tiradaqui,botalnaescola B,adaEscolaB,diz:tiradaquibotalnaEscolaC,ada Escola C, diz:Aqui, no! Manda pra l(...)

(...) Foi ali! Foi ali! Foi ali! Pra voc ver que a escola que a diretora foidefrente,abriuaescola,quandoamechegoucomofilhono colo sangrando, a direo j estava ali com a porta da escola aberta. Pode ver que essa escola no foi depredada. Por fim,na contramo da perspectiva de classe, que colocava os desabrigados como aquelesquepretendiamserservidospelosprofessores,utilizando-oscomomo-de-obra;paraalmdaperspectivadosagentesescolares,quepercebiamosdesabrigados comoinvasoresdaescola,roubando-a,infectando-aedegradando-a,Rosatraza 42perspectivaproduzidaapartirdaslideranasdasfavelasqueinseriamofatodosroubos, queefetivamenteocorreram,edadegradaoqueaestadiadosdesabrigadosnaescola exps, no mbito das correlaes de foras em ao naquele momento, denunciando, enfim, aausnciadoagenteque,porsuaomisso,permitiuaocorrnciadasituaolimite,da degradao: o poder pblico. A verdade que foi um monte de patinho feio que foi pra l! E esqueceram que era VIDA que tava ali!Ficou tudo misturado! Teve morte, teve estupro, teve roubo, porque tinha de tudo! E a tinha os oportunistas,quenotavapassandopordificuldade.Porqu?Se tem a rea do servio social, se tem a rea da educao, se tem todo mundotrabalhandoemconjunto,oquequevociafazer?Voc faziaumesquema!Aoquequeaconteceu?Quandoogoverno tomou uma providncia...que a gente comeou a bater no governo. Queeraquemtinhaqueassumir,aquequeelefez?Tiroutodo mundoaquiebotounumCieplnaPraaSeca.Todomundopro Ciep da Praa Seca.(...) j era 89. Isso! A o que foi? Mandaram essepovotodopral.Asfoipral,realmentequemnotinha casa!QuehojeamaioriatmorandolnoMatoAlto,Napraa Seca, e l no Vila Nova Cruzado, l atrs na Cidade de Deus. Ficou porlsmesmoaquelequenotinhacondies.Opoderpblico demoroumuitoaagir.Acolocarnumlugardesseaondecolocava as pessoas. A comeou: depredar, comearam a roubar, a comeou tudoquenoprestava.Porqu?Porquenoteveumcontrole.Se tem um controle...E a verdade que os professores no quiseram se manifestar! A Escola Aescoladequetratamosfoifundadanodia22demarode1927,doada prefeitura pela viva de um comerciante portugus. No termo de doao fica declarado que 43a escola dever levar o nome de seu Patrono, devendo nela funcionar uma escola primria. Napoca,afamliacontratouoengenheiroarquitetoJosAmaralNieddermeyerparaa realizao do projeto, visando atender a deficincia de estabelecimentos educacionais. Umadasmarcasdestaescolaestexpressanoestilodesuaconstruo. Nieddermeyerrealizou-aemestiloneocolonial.Elafazpartedoconjuntodeescolas inauguradasde1926at1930,duranteagestodePradoJniornaPrefeituradoRiode Janeiro, e de Fernando de Azevedo, ento Diretor da instruo Pblica. necessrioesclarecermosaqui,queasescolas(primrias,secundriasede formaodeprofessores)construdasduranteagestodePradoJr/Azevedo,realizaram umareformaeducacionalnoDistritoFederal,nobojodomovimentodospioneirosda educao pblica. Nesteperodoemespecial,asescolasqueaquitratamos,construdassobabatuta destagesto,estabeleceramalgumasrupturasparacommodelosanteriores.Emprimeiro lugarporqueestasescolaseramconstrudasemlocaisespecficos,deformaaalcanarem reasmenosnobresdacidade,paraatenderasreasmaiscarentesdestainstituio.Em segundolugar,pelastendnciasarquitetnicasquerepresentavam:oestilomisses neocolonial,decunhonacionalista,equebuscavaseusmodelosnastradiesdopassado luso brasileiro, e em nossas razes no continente americano. Portanto, uma das marcas da escola que estudamos, a mais visvel, por expressar-se emseumodelodeconstruo,alia-a,dealgumaforma,quiloquedemaisvigorosose produziu em termos de educao ainda no perodo da Primeira Repblica. H,porm,umasegundamarca,digamos,deorigem:aocontrriodasoutras instituiesescolaresconstrudasnapoca,aescoladequetratamosnofoiprojetada, construdaerealizadapelosreformadores.Portersidoumadoaoaopoderpblico,ela ocupou,sempre,umaposioparte do conjunto de escolas construdas e implementadas durante a gesto de Fernando de Azevedo16. 16Essaposioparteexpressa-senosnamaneiracomqueestaingressanoconjuntodeescolasda poca,mastambmpordiferenasarquitetnicaspresentesnesta,emrelaoaoconjuntodasescolas construdas no perodo ( ainda que mantendo-se dentro do estilo ), e ainda no nome que a identifica. que o estilomissesneocolonial,eseuretornosnossasorigensamericanas,expressava-setambmnosnomes queasescolasrecebiam,homenageandopasesdocontinenteUruguai,Argentina,EstadosUnidosou personalidadesimportantesnaAmrica.Aocontrrio,comopartedoatodedoao,aescoladequeaqui 44Adoaocomomarcadeorigemaparece,inscritanamemriaenahistriada escola,aolongodostempos.Nohinooficialdaescola,commsicadePlnioBrittoe letra de Domingos Magarinos, do qual destacamos a segunda estrofe: Exalta a excelsa glria Do patrono deste templo Grave a infncia, na memria, O seu bello e nobre exemplo O seu devotamento No esquea o corao No existe sentimento Quese iguale gratido A gratido no foi esquecida! Por ocasio da festa de 70 anos da escola (1997), foi feitoumaespciedeconcursoparaaseleodetextos,escritosporalunos,paraserem lidos durante a solenidade. Os versos que se seguem foram selecionados para a leitura, pela escola.Note-sequenotexto(nocustalembrar,selecionadopelaescola)apalavra obrigado aparece vinte e uma vezes , sem contarmos o ttulo: Obrigado Obrigado Senhor ........(nome do Patrono da escola) Obrigado na entrada e na sada Obrigado professor, pelo carinho, Obrigado pelo amor, pelo caminho. Obrigado pela luz e o saber Saudamos a escola que nos guia Nos educa e prepara Vamos saudar nossa escola

tratamos recebeu o nome de seu doador, apartando-se, novamente, do conjunto de escolas que caracterizaram o movimento mais amplo. 45Com alegria Obrigado, obrigado Obrigado Senhor..... (nome do Patrono da escola) Obrigado, obrigado, obrigado Pelo sonho e a realizao Obrigado meus colegas e amigos Obrigado pela qualidade do ensino Obrigado pelo som, pelo silncio Obrigado porque eu sinto, porque eu penso Obrigado, obrigado Obrigado Escola ....(nome do Patrono) Obrigado, obrigado, obrigado Pelo sonho e a realizao Na festa de comemorao dos 75 anos da escola (2002), novo texto selecionado pela escola que destaca, ainda desta vez, a gratido ao patrono: Parabns Escola......(nome da escola) Pelos seus 75 anos, parabns pelos seus ensinamentos de educao, dignidade e felicidade, parabns pelas diretoras que j teve at hoje, diretoreseducados,trabalhadoresedebomhumor......(onomeda escola)faz75anosdeamor,respeitoecarinho,quemjestudou nesta escola sabe do que eu estou falando. Felizaniversrio,Escola......Vocexistegraasaumsenhorque se chama ....(nome do patrono) e que deu esta linda escola para muitos estudarem. 46 Naexposiodetextosedesenhossobreaescola,nafestadoPatrononoanode 2005 (os professores selecionaram os trabalhos considerados mais significativos), um aluno da stima srie, insere em seu texto um significativo comentrio sobre o ato de doao da escolaprefeitura,e,aofaz-lo,acrescentadoaoumcarteraindamaispessoal conexoentreaescolaeseupatrono.quenanovaversoparaaorigemdaescola, acrescenta-se ao ato um acento ainda mais pessoal. Nele o Patrono teria doado prefeitura noumprdioparaofuncionamentodeumaescola,masaprpriacasaondemorara. Coroando a verso, a viso personalista, que faz do Patrono o dono verdadeiro da escola, em detrimento da prefeitura da cidade.

Essa escola foi como um presente para a prefeitura. E foi passando da gerao dos donos verdadeiros da escola, que era a casa deles, e agora passou para a prefeitura Amarcadadoaosurteefeitosquevomuitoalmdagratidoexpressanos textoscuidadosamenteselecionadosparaasfestasesolenidadesescolares.Falamosagora doanode1997.Aescolafuncionavaentocomoinstituiodeensinofundamental, contendoosdoissegmentos:oprimeiro,contemplandooantigoprimrioeosegundo,o antigo ginsio. Neste ano uma determinao da prefeitura afirma que as escolas da rede no deveromaisabarcar,namesmainstituio,nomesmoespaofsico,osdoissegmentos que compem o ensino fundamental. Aescola,anicadaregioa comportar os jovens estudantes das favelas prximas no segundo segmento do ensino fundamental, indicada, pelos tcnicos da prefeitura , para comportar este segmento de ensino, dando-se um prazo para a realocao dos professores e dosalunosdoprimrioemescolasprximas(destinadasexclusivamenteparaesse segmento). A notcia recebida com revolta por pais, professores (especialmente os do primeiro segmento) e direo. Nas reunies pedaggicas, a notcia ecoa. A escola se mobiliza (a seu 47modo) , e tempos depois o projeto de transformao da escola em instituio exclusiva para ensino nosegundo segmento do ensino fundamental arquivado17. Porocasiodapesquisa,buscandodocumentoseregistros,encontramosdois despachos, ambos enviados da cmara dos deputados, ambos datados de agosto de 1997, e ambos emitidos pelo mesmo deputado , pertencente ao partido do prefeito. Um destinava-se ao prprio Prefeito dizendo: Venhosolicitarsuaespecialatenoparaquenosejafechadoo curso primrio da Escola Municipal..... Acomunidade,ondealisosenhorfoivencedornaseleiesde 1996, vem enfaticamente solicitar que no os decepcione O outro, destinado Secretria Municipal de Educao, afirmava: Queroagradecersuavaliosaintervenoquegarantiua continuidade do curso primrio da Escola..... As associaes de moradores representativas das sete comunidades locais e os pais dos alunos a convidam para uma visita Escola, em data e hora de sua convenincia, para prestar-lhe uma homenagem Anexado a cada um dos despachos, o Termo de doao do prdio da escola, feito pala esposa do patrono, afirmando ficar assim explcito que a doao do referido prdio feitaparanelefuncionarumaescolaprimriacomonomedeEscola......(nomedo Patrono), nunca podendo ser alterada os fins e o nome da referida escola. 17Nestaescolasevoltouatrs,masnoemoutras.Aseparaodossegmentoseminstituiesapartadas seguia uma diretriz das polticas municipais da poca, efetivamente posta em prtica em outras escolas. 48A doao, portanto, no utilizada nesta escola apenas como fonte de gratido. Ela retornacomooargumentolegtimo,evocandoafiguraeodesejo(privado)do doador, expresso no ato da cesso do prdio, voltando-se, neste caso, contra as polticas (pblicas) da mesma instncia beneficiada no ato da doao. Mashaindaumaoutrapeculiaridadedaescolaquebuscamosconhecerneste trabalho, e que entendemos ser necessrio destacar. Quarenta anos depois de sua fundao, o edifcio onde funcionou a escola primria, com planta em V, acompanhando o traado dasruasparaasquaissuasfachadassevoltamemapenasumpavimento,apresentando grande ptio interno circundado por avarandados que servem de acesso s salas de aula, biblioteca, sanitrios, e, originalmente, ao ptio de ginstica...18, perde, seu ptio externo, doado Secretaria Estadual de Educao, no final da dcada de 60, para a construo de um ginsio. Nolugardoptioexterno,paraginstica,surgeumprdiode4andares,para funcionamento de um ginsio estadual.Mas o prdio funcionou pouco tempo como ginsio da Secretaria Estadual de Educao. Nos primeiros anos da dcada de 70, a fuso do ento Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, transformando a ento cidade-estado em capital do Estado, alterou a correlao entre as instncias s quais as escolas (estaduais emunicipais)estavamsubordinadas.Porsuavez,odecretoqueestabeleceualei5692de 1971,anexandooginsioaoprimrio,criandooensinodeprimeirograu,acrescentou ainda outros problemas queles enfrentados com a fuso. Ofatoquenaescola,objetodenossapesquisa,taiseventostrouxeramcomo efeito, a anexao formal da escola ginasial escola primria. Trouxeram a anexao do prdiomoderno,quadrado,comoumcubodeconcreto,rasgadoapenaspelaspesadas persianas de madeira macia que permitem de m vontade a comunicao com o exterior, como um feio, grande, bruto e desengonado apndice, ligado ao bonito e estiloso prdio neocolonial, onde funciona a escola primria. Aanexaodoprdiodoginsioaodoprimrio,noinciodadcadade70,em sintonia com a lei que promulga a anexao pedaggica e burocrtica dos mesmos, marca o 18Inventrio Arquitetnico do Municpio do Rio de Janeiro. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ncleo de Pesquisa e Documentao49incio da entrada e manuteno, em volume cada vez maior, dos jovens pobres para a escola pblica (no s local) de primeiro grau (aquilo que hoje chamamos de ensino fundamental). Irnica coincidncia que faz com que, nesta escola, o ato de anexao, que marca a entrada e manuteno dos jovens pobres na escola(mesmo que no mais elementar de seus nveisdeensino),fiqueexpressoemsuaarquitetura.Maisespecificamente,na desconcertante desigualdade de estilos que separa os segmentos.Descaracterizaofoionomedadopeloarquitetoresponsvelpelaanlisee avaliao do prdio para fins de tombamento. Degradao o nome que tem sido utilizado paradescreverosefeitossofridospelaescolapblicanosprocessosquemarcaramsua expanso.exatamentedessaexpansoquetrataestatese.exatamenteoespaoentrea descaracterizaoeadegradaoaqueleondenosmovemos.Faremosissodestebairro, desta escola, por quarenta anos, na tentativa de entender, com maior acuidade, os caminhosque marcam a escolarizao dos jovens pobres no Municpio do Rio de Janeiro. 50Captulo 2 A Teoria: Ferramentas e Pressupostos 51De onde partimos? Primeirodoentendimentodequeaescola,comoasdemaisinstituiesdeuma sociedadecapitalista,reproduz,emsuasrelaes,adinmicamaisamplaquepautaas relaesemsociedade.Partimos,portanto,doprincpiodequeescola(dentreoutras instituies) cabe a reproduo das relaes sociais de produo. EssaformulaodeBourdieu,produzidanadcadade70,juntamentecomoutras produes19,permitiamumarupturaparacomoparadigmafuncionalistanaanlisedas relaesentreescolaesociedade.Elasinseriamadesigualdadenombitodasrelaes necessrias reproduo das sociedades nos pases capitalistas.NateoriadeBourdieuePasseron,emparticular,ainserodadesigualdadecomo pedra de toque da escola, teve o significado de reposicionar as antigas categorias analticas quedinamizavam,atento,aanlisedainstituio.Seletividade,mrito,integrao, passamdeconceitoscentraisnoestudodaescola,anoesquestionadasouinterrogadas pelocampocrticoqueentoseconfigurava.Tevetambmumoutrosignificado,anosso verfundamental,queadiferenciadasoutrasformulaesdocampodateoriacrtica: mesmointroduzindodesigualdade,polticaeembateondeantesseoperavacommrito, integrao e adaptao, os autores incorporaram a formulao Drkheimiana de instituio como espao de coero, conferindo contundncia teoria resultante. Atravs da teoria de Bourdieu e Passeron, formulada no caso particular da sociedade francesa,erapossvelentendermoscomo,numpasondeaescolaprimriaerapblicae universal,asclassesocupavam,comalegitimaodoscertificadosescolares,posies desiguaisnasociedade.Comoosgruposeclassespopularesobtinhamsempreos certificadosmaisdesvalorizados?Porquetaisgruposseguiamsempreoscircuitosmais desqualificadosdocomplexoeestratificadosistemaescolarfrancs?Finalmente,deque forma a estrutura do sistema escolar francs imprimia escolarizao o necessrio efeito de desigualdade? 19 A teoria dos aparelhos ideolgicos de Estado de Althusser,assim como as formulaes de Bowles e Gintis (Schooling in capitalist Amrica) e Baudelot e Establet (Lcole capitaliste em France). 52Pararesponderaestaseoutras questes, os autores operaram com conceitos como os de violncia simblica e arbitrrio cultural, tornando claro para ns que, pela mediao doconhecimentoescolar(conjuntodeconhecimentosasspticoseneutros),queem teseasescolasdispunham-seadistribuirigualmentepelasclasses,estainstituio operavaaseleoativadosgrupossociaisquenelaadentravam.Fazia-oatravsdeduas mediaes : - Pela seleo dos conhecimentos cujos fundamentos apresentavam peculiar afinidade com osvaloreseamoraldasclassesdominantescomoosnicosconsideradoslegtimosna instituio. -Pelaavaliaodograudeapropriaogeraldesseconjuntodeconhecimentos(tomado pelaescolacomocritriogeraldeseleo)semlevaremconsideraoofatodeque heterogeneidadesocial(deorigem,declasse)dosgruposqueentravamnaescola, correspondia uma heterogeneidade no grau de proximidade dos diversos grupos em relao ao conjunto dos fundamentos necessrios apropriao dos conhecimentos escolares. Aoelegerumconjuntodeconhecimentos,assimcomoosfundamentosculturaise sociaisnecessriosparaasuaapropriao,comoosnicoslegtimosnainstituio;ao tomar como rgua de medio cognitiva o conjunto de saberes arbitrariamente estipulado (e afinado com uma das classes e suas fraes); com essas manobras, a escola transformava os diferentes (quanto s experincias culturais, sociais e valorativas) em desiguais. Assim, distncia demarcada entre os conjuntos culturais entrantes, se repunha a desigualdade de desempenhos, legitimados, certificados, pela instituio escolar.Masessaformulaoapresentalimites,apesardasimensaseaindavlidas possibilidadesanalticasqueabre.Poisapesardareproduodasdesigualdadessociais atravessar,emtodasasinstncias,adinmicainstitucional,elanoconsegueexplicarum significativonmerodemanifestaesescolares,que,mesmodeformatmida, descontnua e fragmentria, vm desafiando as interpretaes sobre a instituio. 53Talvezumadasinterpretaesparaofatoencontreexplicaonacircunscrio histricaesocialdascondiesdeproduodateoriadesteautor.FalamosdaFranada primeirametadedadcadade70,emplenavignciadaspolticasdewellfarestate. Imaginarquetalformulaopoderiasersuficienteparaaanlisedeformaessociais significativamentediversasdassociedadesdecapitalismoavanadodaEuropaocidental, sem mediaes, denotaria, no mnimo, inocncia.Poroutrolado,aFranaumpasdefortetradiorepublicana,enapocada produo da teoria bourdiana, estabelecia metas prximas para a universalizao do ensino mdio.Podemostomar,novamentesemasnecessriasmediaes,asteoriasconfiguradas paraumasociedadedefortetradiorepublicanaedensainstitucionalizao,emviasde universalizao do ensino mdio como termmetro para a medio da escola brasileira? Porfim,mesmonaFrana,asnovasformasdeacumulaodocapital,aliadas mecanismosemergentesderegulaoporpartedoEstado,vmcriandoaquiloqueo prprio Bourdieu (1999)nomeou como mecanismos de demisso do Estado. A situao implicouimpactonombitodasinstituies,configurandoofenmenoaoqualCastel (1999)chamoudedesfiliao,eproduziu,nointeriordaescola,seusefeitos: desinstitucionalizao.Diantedessequadro,devemosreporapergunta:asmudanasdos contextos histricos no implicam matizes em nossas formas de interpretao? necessrio esclarecer que no se pretende aqui refutar o paradigma da reproduo paraaexplicaodasrelaesdedesigualdadelegitimadaspelossistemasdeensinonos pasescapitalistasocidentais.Umamiradaligeiranasestatsticasdamaioriadospases mostra, ao contrrio, a absoluta atualidade desta formulao em seu mbito mais geral.Tambm no se trata aqui de buscar a teoria da reproduo brasileira, projeto que escapaemmuitoaosobjetivosdestetrabalho,nosporqueopresenteestudono apresentaoselementosquepermitiriamessaadequao,masprincipalmenteporque acreditamosqueaaplicaodeumateoriaarealidadeshistrica,socialepoliticamente diversasdaquelasondeateoriafoiproposta,amesquinha,nosateoria,mastambmo objeto que se busca compreender . 54A pergunta que pretendemos fazer aqui : em que medida a formulao de Bourdieu e Passeron20 capaz de contribuir para a compreenso das desigualdades geradas e repostas no sistema escolar brasileiro?Tomar a desigualdade como centro da questo que envolve osprocessosdeescolarizaonoBrasil,nosimpeleaperguntar:aidiadequeaescola reproduzasrelaessociaisdeproduosuficienteparaesgotaracompreensodos fenmenosadvindosdaexistnciadedesigualdadesnestainstituio?Notemosdvidas dequeaescolareproduzasrelaessociaisdeproduo.Aquesto:seressaanica forma de manifestao da desigualdade na escola?21

Martins (1996)22 nos esclarece, mostrando-nos o quanto Lefbvre pode nos auxiliar natarefa,aorecuperarcrticamenteanoomarxianadeformaoeconmico-social.Lefbvredefendeque,emAideologiaalem,aformulaodequearelaoentre homemenaturezacomomveldahistria,ganhaconsistnciananoodeformao econmico-social.Funda-se,paraisso,naidiadequeasrelaessociaisnoso uniformesenemtemamesmaidade.Narealidade,coexistemrelaessociaisquetm datas diferentes e que esto, portanto, numa relao de descompasso e desencontro. Nem todas as relaes sociais tm a mesma origem. Todas sobrevivem de diferentes momentos e circunstncias histricas23. As relaes sociais, so, portanto, datadas. 20 Deixemos claro: tratamos aqui da teoria contida no livro intitulado A Reproduo, mas no das categorias analticas presentes no projeto interpretativo de Bourdieu. Essas ferramentas, usamos e usaremos no decorrer deste trabalho. 21Falarnaescolabrasileiratambmumatemeridade.Numpasnosdesigual,comomarcadopor particularidades regionais, que, para alm da diviso das classes, segmenta estas a partir de outros cortes, falar em instituio escolar , sabemos, um desafio. Por outro lado, falar em desigualdade na escola igualmente desafiador.Emprimeirolugar,porqueamaneiracomque,noBrasil,adesigualdadetomouforma,vem realizando, atravs de mecanismos diversos, a segregao das classes em sistemas escolares diferentes. Desta forma a compreenso mais ampla dos mecanismos a partir dos quais a desigualdade se manifesta deve estar referida,sempre,demaneiramaisamplasrelaesentreossistemasescolaresqueescolarizamasclasses sociaisnopas.Poroutroladoessessistemasestosubmetidostambminternamente,aformasde desigualdade especficas. O desafio deste trabalho, , partindo da circunscrio da expanso da escolarizao fundamental aos estratos subalternos da populao, e aos sistemas pblicos de ensino, desvendar, no marco de desigualdades mais amplas, as mltiplas ou novas desigualdades realizadas no interior deste espao. 22 Martins, Jos de Souza, As temporalidades da histria na dialtica de Lefbvre (in) Henri Lefbvre e o retorno da dialtica, SP, Hucitec, 1996. 23 Martins, 1996 55Lninrecuperaessanoo,parafazeraanlisedaRssia,permitindo-lheassim, alargar a concepo de capitalismo, para alm dos limites circunscritos pela noo de modo de produo, incorporando, em sua elaborao, as relaes apoiadas na produo mercantil simples.ParaLefbvreanooemquestoenglobaduasdimenses,diversas,porm organicamentearticuladas:primeiramente,queasformasdedesenvolvimentodesiguais englobamasobrevivncia,naestruturacapitalista,deformaeseestruturasanteriores. Assim, as foras produtivas, as relaes sociais, as superestruturas (polticas, culturais) no avanam simultaneamente, no mesmo ritmo histrico24. Portanto,formaessociaisespecficasencarnamsujeitosdiversos,modelosdeenfrentamentoparticulares,questessingulares,coetaneidadedetemposesociabilidades distintas,quenenhumageneralizaosercapazdeabarcarcompletamente,aindaqueas formaeseconmico-sociaisdiversasrealizemtaismovimentosdelimitadasereferidasa uma forma em especial: a forma capital. Porfim,paraoautor,estadesigualdadeentreosritmosdodesenvolvimento histrico que produz, na prxis, o desencontro entre as possibilidades abertas pela ao do homemsobreanaturezaeascondiesdeapropriaodaspossibilidadescriadaspelo universo dos homens. precisamente isso que faz com que a obra humana ganhe vida prpria. essa transfigurao que posiciona o homem como objeto (e no sujeito) da prtica social. Essa, a mesmatransfiguraoquerepeaobracomoosujeitoqueassujeitaohomem.Mas tambm esse descompasso, que permite o surgimento do novo no movimento mesmo de reproduo das formas de produo25. O homem age sobre a natureza na atividade social de atender suasnecessidades.Constrirelaessociaiseconcepes, 24 Martins apud Lefbvre, L pense de Lenine . p. 231. 25 Segundo Martins (2000) , nas obras da juventude de Marx, o termo PRODUO adquire um sentido amplo e rigoroso. , ao mesmo tempo, produo material e espiritual. produo do ser humano por si mesmo, em seu desenvolvimento histrico. Portanto, produo de relaes sociais. Tomado em toda a sua amplitude, o termo envolve tambm reproduo. Assim,tomadasdialeticamente,asrelaesreproduo/produosepotencializam.Eseverdadequenaproduode nossas vidas cotidianas reproduzimos relaes e aes marcadas pela lgica de poder vigente, igualmente verdade que nesta mesma reproduo esto cravadas as sementes do inusitado, da criao . 56idias, interpretaes que do sentido quilo que faz e quilo dequecarece.Reproduz,mastambmproduzisto, modifica,revoluciona-asociedade,basedesuaatuao sobre a natureza. Ele se modifica, edifica a sua humanidade, agindosobreascondiesnaturaisesociaisdasua existncia, as condies propriamente econmicas (Martins, 1996, p.19) Portanto, nesta formulao, a reproduo (das relaes de produo) no pode ficar limitada apenas ao econmico. Ela social, e traz em seu cerne a possibilidade do diverso. No h reproduo sem a produo de novas relaes(Sposito, 1993). Lefbvrepermite,comessasreflexesacercadareproduo,oalargamentoda concepo Bourdiana sobre a escola. E se ele mesmo nunca intentou elaborar uma reflexo especficaacercadestainstituio,certamente,nonosimpededefaz-lo.Coma complexificaodoconceitodereproduoabertoporLefbvre,possvelintroduzirmos contradio onde antes encontrvamos a ao unvoca das estruturas; particularidade, onde antes se enxergava proposies gerais acerca de uma sociedade abstrata26 . Algumasconseqnciasdenossasconsideraesacercada reproduo e as possibilidades de anlise das relaes entre escola e sociedade. 1.)Ocarteraomesmotempou