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 11 2012 -  maio.-ago. - n. 2 - v . 22 - A LETRI A C  HICO BUARQUE  E O  FUTEBOL C  HICO BUARQUE  ET LE  FOOT BALL  Ana Mar ia Clar k Peres* Universidade Federal de Minas Gerais  / CNPq R R R R R ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a importância do futebol na vida, nas canções e em al gumas crônicas de Chico Buarque. P P P P P ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS - - - - CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE Chico Buarque, futebol, canções e crônicas (...) há certos momentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relances que acontecem no futebol, que artista nenhum conseg ue produzir. (Chico Buarque entrevista publicada  no jornal O Globo, 10 maio 1998.) É notória a paixão de Chico Buarque pelo universo futebolístico, e muito já se comentou a respeito. Neste trabalho, intento apontar alguns fatos que assinalam sua importância na vida do compositor (relatados em diversas reportagens e entrevistas concedidas por ele) e, sobretudo, verificar como o futebol aparece em suas crônicas e em suas canções. 1 O MOLEQUE MOLEQUE MOLEQUE MOLEQUE MOLEQUE E  A A A A  BOLA BOLA BOLA BOLA BOLA Desde cedo, Chico jogava bola: (...) eu fui um moleque de rua normal, de jogar bola e ter muitos amig os, além de muitos irmãos (seis). Nunca fui uma criança fechada, nem mesm o introvertida. Pelo contrário, * [email protected] 1  Com relação aos romances, ressalto tão somente que em Budapeste nomes de personagens e lugares foram extraídos de nomes dos jogadores da lendária seleção húngara de 1954, vice-campeã mundial e uma das mais importantes da história do futebol. Já em Benjamim, as personagens são nomeadas de forma bastante incomuns; trata-se, na verdade, de nomes e sobrenomes do antigo time de futebol de botão do autor do romance. Cf. MACHADO. A vida dupla de Chico Buarque.

PERES Ana Maria Clark_Chico Buarque e o Futebol

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Chico Buarque e o Futebol

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    CHICO BUARQUE E O FUTEBOLCHICO BUARQUE ET LE FOOTBALL

    Ana Maria Clark Peres*Universidade Federal de Minas Gerais / CNPq

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OEste trabalho tem como objetivo refletir sobre a importnciado futebol na vida, nas canes e em algumas crnicas de ChicoBuarque.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V EChico Buarque, futebol, canes e crnicas

    (...) h certos momentos de genialidadedo futebol, daquela capacidade deimproviso, alguns relances queacontecem no futebol, que artistanenhum consegue produzir.

    (Chico Buarque entrevista publicada

    no jornal O Globo, 10 maio 1998.)

    notria a paixo de Chico Buarque pelo universo futebolstico, e muito j secomentou a respeito. Neste trabalho, intento apontar alguns fatos que assinalam suaimportncia na vida do compositor (relatados em diversas reportagens e entrevistasconcedidas por ele) e, sobretudo, verificar como o futebol aparece em suas crnicas eem suas canes.1

    O O O O O MOLEQUEMOLEQUEMOLEQUEMOLEQUEMOLEQUE EEEEE AAAAA BOLABOLABOLABOLABOLA

    Desde cedo, Chico jogava bola:

    (...) eu fui um moleque de rua normal, de jogar bola e ter muitos amigos, alm de muitosirmos (seis). Nunca fui uma criana fechada, nem mesmo introvertida. Pelo contrrio,

    * [email protected] Com relao aos romances, ressalto to somente que em Budapeste nomes de personagens e lugaresforam extrados de nomes dos jogadores da lendria seleo hngara de 1954, vice-campe mundial euma das mais importantes da histria do futebol. J em Benjamim, as personagens so nomeadas deforma bastante incomuns; trata-se, na verdade, de nomes e sobrenomes do antigo time de futebol deboto do autor do romance. Cf. MACHADO. A vida dupla de Chico Buarque.

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    eu era at extrovertido em demasia, mas tinha todo um mundo particular e imaginrio,que preenchia meu tempo livre. Eu gostava de narrar jogos de futebol de boto. (...)Joguei muita bola, no tempo do ginsio e do Cientfico, mas quando entrei na faculdade,parei de jogar bola por um bom tempo.2

    Seu time de futebol de boto se intitulava Politheama, nome esse que adotou maistarde para um time real, e tinha at um hino composto por ele.3 O garoto jogava sozinhoe tambm propunha campeonatos com amigos:(...) era no cho de madeira, na casados meus pais, e p, p, p, horas jogando boto.4

    Nascido no Rio de Janeiro em junho de 1944, aos 2 anos de idade Chico e afamlia se mudaram para So Paulo e, nessa cidade, o garoto jogava bola com amigos narua em que residiu inicialmente, a Haddock Lobo; j em frias no Rio, jogava na praia.Sabe-se que, na adolescncia, ele at pensou em seguir a profisso de jogador:

    Mas eu queria mesmo ser jogador. Cheguei a tentar fazer um teste no Juventus l em SoPaulo. Fui Rua Javari, levei chuteira, fiquei na arquibancada horas e horas e no mechamaram. Acho que o physique du rle no convenceu o tcnico. Passou o tempo todo eele mandou eu voltar outro dia. Eu no voltei. No cheguei a colocar prova o meutalento...5

    O O O O O BRASILIANOBRASILIANOBRASILIANOBRASILIANOBRASILIANO

    Tendo interrompido suas peladas, primeiro em razo do curso de Arquiteturana USP (logo abandonado) e depois, de sua carreira musical alavancada pelo sucessode A banda, vencedora do II Festival de Msica Popular Brasileira promovido pela TVRecord em 1966, Chico voltou a jogar por um tempo durante seu autoexlio na Itlia, de1969 a 1970, no Mentana, time que disputava o Campeonato Italiano de Diletantes.6

    L, chegou, inclusive, a servir de motorista para Garrincha:

    Eu morava em Roma, quando o Garrincha chegou com a Elza Soares, que foi fazer umatemporada de shows. Eles foram esticando por l, fizemos amizade. Fiquei mais prximodo Garrincha, mesmo porque, ao contrrio da Elza, ele no tinha muito o que fazer. Ele jno podia atuar profissionalmente, mas era muito popular e ganhava algum dinheiro parajogar bola nos arredores de Roma. Eram pequenos estdios, cujas arquibancadas lotavampara ver o Garrincha. Eu tinha muito orgulho de lev-lo para cima e para baixo no meupequeno Fiat.7

    2 CALADO. O eterno mistrio.3 Eis o refro do hino: Politheama, Politheama, o povo clama por voc/Politheama, Politheama, cultivaa fama de no perder. Em grego, o nome do time significa muitos espetculos.4 REVISTA CAROS AMIGOS.5 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque.6 Tudo ia bem at que o tcnico, ao final de um treino, lhe estendeu uns trocados guisa de pagamento.O qu?! indignou-se o craque brasiliano: embolsar dinheiro, ainda que simblico para jogar futebol?!WERNECK. Agora eu era heri, p. 18.7 ANDREATO. Papo cabea pra pensar.

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    Na Itlia, o compositor criou ainda um jogo de tabuleiro inspirado no futebol ebatizou-o de Ludopdio. Ao retornar ao Brasil, a Grow lanou-o comercialmente,com esse mesmo nome, e mais tarde o relanou, de forma simplificada, intitulando-oEscrete, ambos fora de linha atualmente.

    O O O O O MSICOMSICOMSICOMSICOMSICO-----JOGADORJOGADORJOGADORJOGADORJOGADOR

    Comenta-se frequentemente que so dois os hbitos prediletos do compositor:caminhar e jogar bola. Em entrevista publicada em 1995 no Jornal do Brasil, mencionandoo fato de que seu cachorro (Miguilim) gostava de ter sempre uma bola de tnis na boca,ele afirma: Jogar bola isso, voc volta a ser aquele cachorro que no fundo voc [risos]. Existe uma certa mania de intelectualizar o futebol, mas eu acho isso umabobagem, no consigo falar mais de dois minutos sobre futebol. Eu gosto de jogar.8 Equando est no Rio, ele joga trs vezes por semana no campo de seu time, o Politheama,time esse, alis, que nunca teria perdido uma partida.9

    Como jogador, a posio que mais detesta atualmente a de goleiro. Tendo optadopelo ataque, tem prazer em servir o centroavante. E acrescenta: Eu gosto de fazergol, mas essa coisa que chamam de assistncia formidvel. Entregar uma bola debandeja e fingir que no foi voc que fez o gol. Foi voc que fez o gol, claro.10

    Quando est fora do Rio, no abandona a prtica do futebol, uma vez que, aorealizar shows no exterior, seu contrato normalmente inclui uma pelada:

    (...) tenho jogado por a: Paris, jogo bastante em Portugal, em Angola, em toda parte. Atem Cuba consegui jogar futebol... No jogam nada! (...) L em Paris tem um campinhoque eu jogo sempre, aqueles campinhos da Prefeitura na periferia, com grama sinttica.Sempre tem uma pelada, com latino-americanos e africanos o francs de uma formageral no gosta muito de pelada. Eu no cheguei a largar nenhuma reunio para jogarfutebol, mas deixei de ir a algumas.11

    Sua paixo tanta, que ele chega a se apresentar como jogador:

    A ltima vez eu estava no Marrocos. O que o pessoal l gosta de futebol impressionante.Essa coisa de que brasileiro gosta de futebol, brasileiro gosta de mulher, brasileiro gosta decarros... No Marrocos, pelo menos de futebol eles gostam mais do que brasileiro. S falamde futebol. A ltima vez que eu falei que era jogador de futebol no Brasil foi no txi. Ao motorista olhou para minha cara e disse: Ex-jogador, n? Mas eu menti bastante. Faleiat que tinha ido para a Copa de 82. S que o cara sabia todos os jogadores. A eu falei:No, eu fiquei no banco, estava machucado. Eu era reserva do Scrates.12

    8 NOGUEIRA. Jogando por msica.9 Trata-se, na verdade, de trs campinhos que Chico batizou de Centro Recreativo Vinicius de Moraes.SILVA. Chico Buarque, p. 109.10 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque.11 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque.12 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque.

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    O mesmo j ocorreu numa chegada a Paris:

    Um funcionrio do aeroporto notou que havia uma certa movimentao em torno deChico e perguntou se ele era alguma estrela. Sou um famoso jogador de futebol, afirmou,estufando o peito. E aquela caixa de violo na esteira?, perguntou, ctico, o funcionrio. o disfarce para as minhas chuteiras.13

    O O O O O TORCEDORTORCEDORTORCEDORTORCEDORTORCEDOR

    No Rio de Janeiro, o time predileto do compositor o Fluminense; na capitalpaulista, torce para o So Paulo. Em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 1995,ele declara sobre o time carioca:

    Sou tricolor e vou ser a vida inteira, mas no me identifico com a torcida do Fluminense.At hoje no consigo entender por que cantam aquela msica da bno, Joo deDeus. Eu ouvia cantar aquilo, morria de vergonha. Deixei de ir ao Maracan. Alm domais, gosto do futebol ofensivo, o que foge tradio do Fluminense. (...) Voc noescolhe um time. Voc escolhe um time por influncia de algum, ou para contrariaralgum. Fui levado por minha me, que era tricolor, e passei a torcer pelo clube. Ou voc ou no . Sou tricolor, e acabou.14

    Mas seu grande dolo no futebol um ex-jogador da fase urea do Santos, nadcada de 1950: Pago, o centroavante Paulo Csar de Arajo. Alis, a camisa 9 queele usa nas partidas que disputa uma homenagem a Pago, que vestia essa camisa:

    Eu morava em So Paulo. Tive meus dolos do Fluminense desde 1949 e adorava oCastilho. No princpio queria ser goleiro. Aos 12 anos, j moleque peladeiro, mudei dedolo e queria ser Pago. Todo jogo ia v-lo. Quando voltava para casa, tentava imitaraquele seu drible de calcanhar. Passou o tempo e ficou o apelido de Pago no futebol,assinava a smula como Pago, at que, em dezembro, quando gravei um especial paraTV, finalmente o conheci. Ele me deu uma camiseta autografada e eu lhe prometi queainda o convidaria para dois dias aqui no Rio comigo.15

    O especial para a TV ao qual Chico se refere, transmitido pela TV Bandeirantesem 1984, acabou por ser includo no DVD Chico: o futebol, e nele registrado esseencontro com o dolo. O compositor afirma, no documentrio, que sempre teve loucurapelo ex-craque, comparando-o a Tom Jobim, na msica.16 Alm de Pago, o DVD tambmregistra a visita de Pel ao estdio do Politheama e elogios eloquentes de Chico a outrosdolos: Garrincha e Canhoteiro. Numa entrevista concedida em 1998, ele declara:

    Canhoteiro era um gnio. As pessoas o comparam ao Garrincha. Ele jogava na pontaesquerda, era um driblador, s que tinha um drible na corrida, mais veloz, no paravacomo o Garrincha. Ele tinha essa coisa ldica igual ao Garrincha: voc ria vendo o

    13 ZAPPA. Chico, canto e verso, p. 48.14 NOGUEIRA. Jogando por msica.15 O GLOBO. Chico vai passando para o clima da Nova Repblica.16 Se aqui um jogador comparado a um msico, mais tarde, na cano O futebol, o jogador superariao artista, na percepo de Chico.

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    Canhoteiro jogar. O ataque do So Paulo era Maurinho, Dino Sani, Gino, Zizinho eCanhoteiro. Naquele ataque dos meus sonhos falta o Zizinho, que s no est porque nosobrou espao. Ele o tcnico desse meu ataque.17

    No apenas Pago e Pel passaram pela sede do Politheama; outros jogadores ilustresa visitaram, igualmente, como Zizinho, Nilton Santos, Silva, Tosto, Zico, Jnior, Leandro,Reinaldo, Scrates, Romrio e Ronaldo.18

    Na Itlia, em 1970, Chico tambm j tinha escolhido seus times prediletos:

    (...) eu toro pra Florentina, mas no tem nada que ver. Toro, mas sem entusiasmo. Esseano eu estou torcendo para o Cagliari porque a Florentina est fora do preo. Ento euestou torcendo furiosamente pela Cagliari por uma questo de mrito e depois pelo Nen,que joga no Cagliari, um brasileiro que joga pra burro. (...) E o Riva, que excepcional.19

    Por tudo o que se l a respeito, tem-se a impresso de que, quando se refere a ChicoBuarque, o futebol no pode deixar de se intrometer no comentrio. Alis, o prprio Chicoconfirma essa impresso. Por exemplo, numa das raras entrevistas concedidas por ele nosltimos tempos, revista Brazuca, editada em Paris at um tempo atrs, seus entrevistadoresrelatam: Se tiver bola, eu dou a entrevista. Essa foi a nica exigncia do nosso companheirode pelada, Chico Buarque, numa caminhada entre o metr e o campo. Uma bola.20

    O O O O O CRONISTACRONISTACRONISTACRONISTACRONISTA

    Se numerosas so as entrevistas de Chico Buarque sobre o futebol, curiosamenteo restante de sua produo sobre o assunto no to vasto. Iniciemos pelas crnicas.

    Enquanto permaneceu na Itlia, de 1969 a 1970, ele foi correspondente do extintojornal O Pasquim. Numa crnica intitulada Um tricolor em Roma, fala, por exemplo,da emoo de, morando fora do pas, ter recebido a notcia de que o Fluminense ganharao campeonato carioca daquele ano. No incio da crnica, h uma reflexo potica sobreas paixes de um torcedor do Rio de Janeiro, com a criao de um neologismo: o verboflamengar. Para o cronista, torcer pelo Fluminense fugir do comum:

    Ser antiflamenguista ostentar no meio da cara um diploma de ressentido. detestarMangueira, o carnaval e tudo o que cheire a popular e unnime. O nenm desmamado,o menino asmtico e o homem trado, esses tero sempre o direito de gritar contra oFlamengo. Por isso mesmo muito fcil ser rubro-negro. Fcil de mais. como ser a favordo sol no meio do deserto, ou comemorar o Dia da rvore no corao da Amaznia.Alis, nunca existiu um flamenguista. Flamengar verbo imperfeito que s se conjuga noplural. Por exemplo: E advogo, tu bates o ponto, ele mata mosquito; ns flamengamos, vsflamengais, eles flamengam. Mas torcer pelo Fluminense, modstia parte, requer outrostalentos. Precisa saber danar sem batucada. O tricolor chora e ri sem ningum por perto.Ele merece um campeonato, ele merece.21

    17 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque.18 Cf. HOMEM. Histrias de canes: Chico Buarque, p. 261.19 O PASQUIM. Meu compadre Chico Buarque ou dos prazeres e vantagens de ficar pobre.20 CARIELLO; ARAJO. Chico Buarque, na Brazuca: Podendo eu vou at os 95.21 BUARQUE. Um tricolor em Roma, grifo nosso.

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    Vrios anos mais tarde, Chico relativiza sua paixo pelo Fluminense ao afirmar quegosta mais de futebol do que do clube do corao.22

    Mas em 1998 que o compositor vai se estender longamente sobre o assunto, emcrnicas instigantes, como colunista dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, durante40 dias, por ocasio da Copa do Mundo realizada na Frana. Ainda que tivesse comofuno justamente comentar as partidas, Chico insiste em declarar que no umespecialista no assunto:

    A gente gosta das coisas que no entende; as coisas que entende a gente no gosta. Euentendo de qu? De gramtica, de trigonometria! Mas eu no gosto dessas coisas... Futeboleu sou um apreciador, mas eu nem acompanho muito bem uma partida. Estou prevenindosobre isso porque eu vou escrever sobre futebol e quero que as pessoas saibam que vo lertextos de quem no observa talvez muito objetivamente um jogo de futebol. Eu gostotanto de futebol que, muitas vezes, assistindo a uma partida, eu me desligo inteiramentedo que est acontecendo. Uma jogada bonita, por exemplo, que interrompida, eu ficoimaginando o que que poderia acontecer e fico ainda um tempo parado naquilo. E a a bolaj est no outro lado do campo, e se me perguntarem o que aconteceu eu no sei reproduzir,porque estava pensando em outras possibilidades. Ento isso: eu no quero que esperemde mim uma anlise muito objetiva.23

    De fato, em suas crnicas, Chico opta muitas vezes pela ficcionalizao dos fatos, comoser visto mais adiante. No site oficial do compositor,24 esto registradas seis crnicas, asaber: Nossos craques so todos mais artistas; Com meus botes; O moleque e abola; Gritos e sussurros; At a prxima; e Os melhores momentos.

    No primeiro texto, o tom saudosista. O autor se recorda de copas passadas queacompanhou por meio de seu radinho de pilha, na infncia e na adolescncia, como ade 1950, no Maracan, em que o Brasil foi derrotado, na partida final, pelo Uruguai. Afigura de Pel, em diversas copas, ressaltada poeticamente:

    A parede de vidro, suspeito agora que foi o Pel quem a espatifou a socos, no gesto que aosnossos olhos desentendidos parecia solto no ar. E a impulso com que Pel celebrava o golchegava a superar aquela, j extraordinria, com que subira para cabecear. Era como se,na celebrao do gol, o homem saltasse de dentro do atleta. No s com a alegria, massobretudo com o orgulho que fez falta a Garrincha, Pel impunha-se ao estdio, antesmesmo que o estdio o aclamasse. Ou coroava a si prprio, como Napoleo ao deixar oPala de mos abanando.25

    Na crnica Com os meus botes, Chico relembra seu time de futebol de boto(botes, para a garotada daquele tempo, eram venerados como cones, beijados, polidoscom flanela, concentrados em caixa de charuto e inegociveis), alm de perpetuar, nafantasia, seus dolos do passado:

    22 CHICO O futebol.23 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque, grifo nosso.24 Disponvel em: .25 BUARQUE. Nossos craques so todos mais artistas.

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    Desde j discordo de quem, concordando comigo, sustenta que o futebol era muito maisbonito no passado. Ao contrrio de ns mortais, que ramos todos mais bonitos no passado,os craques do passado so ainda melhores hoje. Penduraram as chuteiras, mas napermanente edio da nossa memria vo produzindo novos lances memorveis. Possov-los sempre de uniforme, uniformes diferentes uns dos outros, num vestirio com o tetocheio de chuteiras penduradas. Renem-se em torno do tcnico, ouvem a preleo emsilncio, mas no prestam muita ateno. Dispensam alongamentos, entram em campo ej comeam a jogar. No do entrevistas. No fazem cera, no atrasam a bola, no cobramlateral, no ficam na barreira, faz cada qual o que lhe d na telha. E no entanto exibemum belo conjunto, mantendo-se invictos h anos e anos, mesmo porque contra eles noh quem se atreva a jogar.26

    J a crnica O moleque e a bola chamada por Jos Miguel Wisnik de artigoiluminador, tendo em vista a maneira como Chico distingue os donos do campo dosdonos da bola, pela maneira de se jogar futebol em pases ricos e em pases pobres:

    Os pobres so os folgados, os esbanjadores, os exibicionistas, matam a bola no peito, a bolagruda ali que nem uma goma e o locutor francs faz , bien jou, magnifique! Ou,como diz o locutor brasileiro, eles tm intimidade com a bola. De fato controlam, protegem,escondem, carregam a bola para cima e para baixo, e em vez de intimidade, talvez tenhamcimes dela. J os ricos so alunos de outra escola, uma escola prtica. Recebem a bola eum-dois, tocam, recebem, desprendem-se dela, no fazem questo dela, correm soltos portoda parte. Parecem conhecer e ocupar melhor o espao de jogo, podendo se dizer quetm intimidade com o campo. Assim, quando se enfrentam pases ricos e pases pobres(...) esto se enfrentando os donos do campo e os donos da bola.27

    E Chico prossegue, fazendo elucubraes poticas sobre a pelada:

    (...) a pelada a matriz do futebol sul-americano e, hoje em dia mais nitidamente, doafricano. praticada, como se sabe, por moleques de ps descalos no meio da rua, empirambeira, na linha de trem, dentro do nibus, no mangue, na areia fofa, em qualquerterreno pouco confivel. (...) O que conta mesmo a bola e o moleque, o moleque e abola, e por bola pode se entender um coco, uma laranja ou um ovo, pois j vi fazeremembaixada com ovo. Da, quando o moleque encara uma bola de couro, mata a redondano peito e faz a embaixada com um p nas costas. E quando ele corre de testa erguida nogramado liso feito um mrmore, com a passada de quem salta poas por instinto, umaelegncia. Mas se a bola de futebol pode ser considerada a sublimao do coco, ou areabilitao do ovo, ou uma laranja em xtase, para o peladeiro o campo oficial s vezesno passa de um retngulo chato. Por isso mesmo, nas horas de folga, nossos profissionaiscorrem atrs dos rachas e do futevlei, como o Garrincha largava as chuteiras no Maracanpara bater bola em Pau Grande. a bola e o moleque, o moleque e a bola.28

    A quarta, Gritos e sussurros, reproduz o ttulo do clssico filme de Ingmar Bergmann,cineasta admirado por Chico. Aps comentar diferenas de hbitos entre o brasileiro e ofrancs (por exemplo, brasileiros no compreendem um povo que pode se afeioar a caracis,bem mais do que a um jogo de bola), o cronista passa a tecer consideraes sobre a cidadede Paris, as quais culminam na admirao por seus dolos futebolsticos de todos os tempos,que ele compara de alguma forma a grandes escritores e artistas:

    26 BUARQUE. Com meus botes.27 Cf. WISNIK. Veneno remdio: o futebol e o Brasil, p. 60.28 BUARQUE. O moleque e a bola.

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    Bebi um conhaque, e agora sou tomado de carinho por esta cidade. A noite propciapara uma caminhada, tendo cessado a chuva. Brilham as pedras do calamento antigo,pedras arredondadas tipo p-de-moleque, o que me traz sbito desejo de sapatear. Sapateioe, sinceramente, consigo tirar um belo som, que repercute na rua estreita. Vejo ento umajanela que se abre, vejo surgir a cabea de uma senhora de touca, sua cara nada boa,posso ver sua garganta, j sei o que ela vai gritar, mas dobro a esquina e aperto o passo.Atravesso o Sena, deso as Tulherias, deslizo p ante p por ruas cheias de glria, deplacas, de luto. Aqui nasceu Voltaire, aqui viveu Victor Hugo, Czanne pintava nestacasa, Debussy morreu aqui, e l vou eu mais orgulhoso que Paris, pensando em NiltonSantos, Zizinho, Pago, pensando em Castilho, Pndaro e Pinheiro.29

    Em Os melhores momentos, deparamo-nos com um pequeno conto em que seassiste s deambulaes de um brasileiro solitrio em Paris durante a Copa, dividido entreos jogos, a lembrana da mulher que permaneceu no Brasil (e que odeia futebol) e asvisitas aos locais tursticos da cidade.30 J na sexta crnica, At a prxima, Chico retomaa narrao em primeira pessoa, relatando suas prprias deambulaes por bares, restaurantese ruas francesas, nos quais colhe comentrios os mais diversos sobre a seleo brasileira.31

    O O O O O COMPOSITORCOMPOSITORCOMPOSITORCOMPOSITORCOMPOSITOR

    Em mais de uma ocasio, Chico Buarque afirmou que comps menos canesabordando o futebol do que gostaria de ter feito. Mas a verdade que, mesmo nosendo to numerosas, h diversas composies a respeito.

    Nos anos 1960, uma breve meno ao futebol (ou pelada) j aparece em trechode Meu refro (1965):

    J chorei sentidoDe desilusoHoje estou crescidoJ no choro noJ brinquei de bolaJ soltei baloMas tive que fugir da escolaPra aprender essa lio

    Quem canta comigoCanta o meu refroMeu melhor amigo meu violo.

    Nesse momento, o compositor canta a rotina do homem comum; aqui se trata deum sambista: Eu nasci sem sorte / Moro num barraco / Mas meu santo forte / E osamba meu fraco. Lembremos que, mesmo sendo filho de um dos maiores intelectuaisbrasileiros, Srgio Buarque de Holanda, na infncia o menino Chico compartilhavacom o sambista de Meu refro o prazer em jogar bola na rua.

    29 BUARQUE. Gritos e sussurros.30 BUARQUE. Os melhores momentos.31 BUARQUE. At a prxima.

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    Alguns anos mais tarde, em Com acar e com afeto (1968), composta a pedidode Nara Leo e primeira cano de Chico que apresenta um eu lrico feminino, o futebolentra para ilustrar o lazer do brasileiro-padro: Sei que algum vai sentar junto / Vocvai puxar assunto / Discutindo futebol. No mesmo ano, em Bom tempo, so aindaretratadas as distraes do brasileiro comum, com a intromisso do time do corao docompositor em determinado trecho:

    No compasso do sambaEu disfaro o cansaoJoana debaixo do braoCarregadinha de amorVou que vouPela estrada que d numa praia douradaQue d num tal de fazer nadaComo a natureza mandouVou satisfeito, a alegria batendo no peitoO radinho contando direitoA vitria do meu tricolor.

    Em 1966, ele j revelara: O meu samba das coisas cotidianas e urbano.32

    Durante sua temporada na Itlia, logo aps o nascimento da filha Slvia, Chicocompe uma cano endereada ao cantor Ciro Monteiro:

    [Ele] ameaou mandar uma camisa do Flamengo pra minha filha. Disse que uma coisaque ele faz sempre que nasce filho de amigo, mas acho que ele no encontrou portador eacabou no mandando a camisa. A eu fiz a msica de resposta, dizendo que ela recebeua camisa, trocou as cores e teve a sabedoria de se tornar tricolor desde tenra idade.33

    Trata-se da composio intitulada Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra virar casacade nenm (1969):

    Amigo CiroMuito te admiroO meu chapu te tiroMuito humildementeMinha petizAgradece a camisaQue lhe deste guisaDe gentil presenteMas caro negoUm pano rubro-negro presente de gregoNo de um bom irmoNs separadosNas arquibancadasTemos sido to chegadosNa desolao

    32 MIS MUSEU DA IMAGEM E DO SOM.33 NOTA sobre Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra virar casaca de nenm.

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    Amigo velhoAmei o teu conselhoAmei o teu vermelhoQue de tanto ardorMas quis o verdeQue te quero verde bom pra quem vai terDe ser bom sofredorPintei de branco o teu pretoFicando completoO jogo de corVirei-lhe o listrado do peitoE nasceu desse jeitoUma outra tricolor.

    Os anos 1970 provocam mudanas nas composies de Chico Buarque: o sambaingnuo e prazeroso de suas canes inaugurais cede vez a uma crtica contundente aoregime poltico vigente. O brasileiro que ele cantou anteriormente no tem mais muitosmotivos de alegria e descontrao, uma vez que sofre os efeitos de uma feroz ditadura.O futebol passa, pois, a ter outra funo que no a de ilustrar o lazer descompromissadodo homem comum. Em Deus lhe pague (1971), por exemplo, o eu lrico j o mencionano contexto de uma crtica irnica ao po e circo promovido pelo governo.34 Eis umtrecho da letra:

    Por esse po pra comer, por esse cho pra dormirA certido pra nascer e a concesso pra sorrirPor me deixar respirar, por me deixar existirDeus lhe paguePelo prazer de chorar e pelo estamos aPela piada no bar e o futebol pra aplaudirUm crime pra comentar e um samba pra distrairDeus lhe pague.

    Partido alto (1972), ao caracterizar o brasileiro sofrido, contempla tambm, naestrofe final, sua paixo pelo futebol:

    Deus me fez um cara fraco, desdentado e feioPele e osso simplesmente, quase sem recheioMas se algum me desafia e bota a me no meioDou pernada a trs por quatro e nem me despenteioQue eu j t de saco cheioDeus me deu mo de veludo pra fazer carciaDeus me deu muitas saudades e muita preguiaDeus me deu perna comprida e muita malciaPra correr atrs de bola e fugir da polciaUm dia ainda sou notcia.

    34 Lembremos-nos do uso poltico que os militares fizeram da vitria da seleo brasileira na Copa doMundo de 1970.

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    Em Jorge Maravilha (1974), com o pseudnimo de Julinho da Adelaide, adotadopelo compositor para escapar dos constantes vetos s suas canes efetuados peloscensores da ditadura, Chico faz uma breve meno ao futebol, ao falar do Flamengo,vulgo Mengo:

    Voc no gosta de mimMas sua filha gostaVoc no gosta de mimMas sua filha gostaEla gosta do tango, do dengoDo Mengo, domingo e de ccegaEla pega e me pisca, beliscaPetisca, me arrisca e me enroscaVoc no gosta de mimMas sua filha gosta.35

    Na cano Meu caro amigo (1976), composta em parceria com Francis Himepara o teatrlogo Augusto Boal, na poca, exilado em Lisboa, a meno ao futebol,insistentemente apresentada no refro, funciona como uma senha para que o compositorse permita aludir quilo que no podia ser dito, a saber: os graves problemas por que passavaa populao brasileira em tempos de ditadura: Aqui na terra to jogando futebol / Temmuito samba, muito choro e rocknroll / Uns dias chove, noutros dias bate sol.

    Em 1978, At o fim, que dialoga com o Poema das 7 faces, de Carlos Drummondde Andrade, o futebol retorna. Para provar que mesmo gauche na vida, o eu lricoafirma nas duas primeiras estrofes:

    Quando nasci veio um anjo safadoO chato dum querubimE decretou que eu tava predestinadoA ser errado assimJ de sada a minha estrada entortouMas vou at o fim

    Inda garoto deixei de ir escolaCassaram meu boletimNo sou ladro, eu no sou bom de bolaNem posso ouvir clarimUm bom futuro o que jamais me esperouMas vou at o fim.

    Da pea pera do malandro, a cano Doze anos (1977-1978), parodiando oclssico poema Meus 8 anos, de Casimiro de Abreu, nos traz o futebol de rua, com

    35 Muitos vislumbraram nessa cano uma referncia ao general Ernesto Geisel, cuja filha, Amlia Lucy,afirmara ser admiradora do compositor. Mas Chico desmente essa inteno: Aconteceu de eu serdetido por agentes de segurana, e no elevador o cara me pedir um autgrafo para a filha dele. Algumtempo depois, ainda declara a respeito: Nunca fiz msica pensando na filha do Geisel, mas essashistrias colam, h invencionices que nem adianta mais negar. Cf. HOMEM. Histrias de canes:Chico Buarque, p. 127-128.

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    alguns traos biogrficos se misturando fico, uma vez que o compositor afirma seradepto das cidades e no do campo, como se viu.

    Ai, que saudades que eu tenhoDos meus doze anosQue saudade ingrataDar banda por aFazendo grandes planosE chutando lata(...)Ai, que saudades que eu tenhoDuma travessuraO futebol de rua.

    Da mesma pea, Tango do Covil (1977-78) menciona brevemente o futebol:

    Ai, quem me dera ser GardelTenor e bacharelFrancs e rouxinolDoutor em champinhomGarom em SalvadorE locutor de futebolPra te dizer febrilBem-vinda.

    No final da dcada de 1970, tambm em parceria com Francis Hime, Chico compePivete (1978), na qual se inicia a homenagem a dois de seus dolos futebolsticos(Pel e Garrincha):

    No sinal fechadoEle vende chicleteCapricha na flanelaE se chama Pel(...)E tem as pernas tortasE se chama Man.

    Nos anos 1980, algumas canes abordando o futebol antecedem sua mais importantecomposio sobre o tema (O futebol), que ser comentada mais adiante. So elas: Ese, de 1980, composta juntamente com Francis Hime, que trata de acontecimentosconsiderados improvveis (E se o Botafogo for campeo), numa crtica a um time rivalao do compositor; Piruetas, de 1981, em parceria com Enriquez Bardotti, feita para ofilme O saltimbancos trapalhes (No t bom de bola); Pelas tabelas, de 1984 (em quese alude ao Maracan) e Baticum, de 1989, em parceria com Gilberto Gil, que fala enpassant em Pel (Pel pintou / S no quis ficar). Nos anos 1990, temos Biscate, de1993 (Quem que te mandou tomar conhaque / Com o tquete que te dei pro leite /Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate). Segundo o compositor, o timeargentino entrou s por causa da rima. River Plate era para rimar com leite....36

    36 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque.

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    No ltimo CD do compositor (Chico), cujas canes apresentam um tomnitidamente autobiogrfico, duas delas trazem ainda o tema em questo. A primeira Barafunda (2010), em que fatos diversos se confundem nas lembranas do eu lrico:

    (...)Foi GarrinchaNo, foi de bicicletaJuro que vi aquela bola entrar na gavetaTiro de meta(...)Era Zizinho era Pel(...) Garrincha, Cartola e Mandela.

    A segunda Sem voc no. 2 (2011), em que o futebol entra novamente como lazer doprprio compositor, a retratado. Vejamos a terceira estrofe da letra:

    Pois sem vocO tempo todo meuPosso at ver o futebolIr ao museu, ou noPasso o domingo olhando o marOndas que vmOndas que vo.

    UUUUUMAMAMAMAMA POTICAPOTICAPOTICAPOTICAPOTICA DODODODODO COMUMCOMUMCOMUMCOMUMCOMUM37

    Se nessas vrias canes o futebol aparece com funes distintas, mas que giramsempre em torno do comum, em O futebol (1989) que o compositor parececoncentrar toda a sua paixo pelo tema, alm de abord-lo de forma incomum. Valedestacar na ntegra a letra da cano:

    Para Man, Didi, Pago, Pel e Canhoteiro

    Para estufar esse filComo eu sonheiSSe eu fosse o ReiPara tirar efeito igualAo jogadorQualCompositorPara aplicar uma firula exata

    37 Chico Buarque: uma potica do comum o ttulo de pesquisa em andamento, financiada peloCNPq, na qual procuro investigar a diversidade, plasticidade, mobilidade e insistncia do comum naobra buarquiana: suas figuraes e deslocamentos, sua no banalizao, sua estetizao, enfim, que mepermita apontar uma potica do comum. A reflexo sobre o papel do futebol na vida e na produo deChico constitui to somente um dos pontos que tm sidos considerados na investigao.

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    Que pintorPara emplacar em que pinacoteca, negaPintura mais fundamentalQue um chute a golCom preciso

    De flecha e folha secaParafusar algum jooNa lateralNoQuando fatalPara avisar a finta enfimQuando no SimNo contrapPara avanar na vaga geometriaO corredorNa paralela do impossvel, minha negaNo sentimento diagonalDo homem-golRasgando o choE costurando a linha

    Parbola do homem comumRoando o cuUmSenhor chapuPara delrio das geraisNo coliseuMasQue rei sou euPara anular a natural catimbaDo cantorParalisando esta cano capenga, negaPara captar o visualDe um chute a golE a emooDa idia quando ginga.

    (Para Man para Didi para Man Man para Didi para Manpara Didi para Pago para Pel e Canhoteiro)

    Na tabelinha do final da cano, o compositor s lamenta ter deixado de fora, porquesto de mtrica, o atacante Zizinho.38

    Em Veneno remdio: o futebol e o Brasil, Wisnik faz uma cuidadosa leitura dessacomposio buarquiana, da qual destaco alguns trechos. Inicialmente, ele retoma aquesto da elipse, que, a seu ver, o procedimento potico ao mesmo tempo geral eespecfico que marca como trao a singularidade do futebol brasileiro.39 E que seriatambm a essncia do drible,

    38 Cf. HOMEM. Histrias de canes: Chico Buarque, p. 262.39 WISNIK. Veneno remdio: o futebol e o Brasil, p. 309.

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    drible como finta, negaceio, sugesto de um itinerrio que no se cumpre e que exploraimediatamente o efeito-surpresa advindo, promessa de movimento que no se d se dandoe se d no se dando, aluso a gestos que se insinuam e se omitem em frao de segundos,de modo a aproveitar a perturbao da expectativa provocada.40

    E o ensasta chega finalmente cano de Chico:

    Chico Buarque formulou com preciso essa lgica paradoxal em verso, ritmo e melodia nacano O futebol, com aluso especfica, na passagem, ao drible de Garrincha: parafusaralgum Joo / na lateral / no / quando fatal / para avisar a fita enfim / quando no / sim/ no contrap. (...) ao captar essa dialtica vertiginosa, Chico Buarque constri a fraseelptica em que, mais uma vez, a omisso dos verbos em torno do no e do sim que diz anatureza do movimento que se caracteriza por escapar percepo da sua instantaneidade,assim como sua nomeao explcita.41

    Ainda sobre a cano, ele declara:

    O fato de que o compositor faa uma apologia do fazer futebolstico, em detrimento deseu prprio, no deixa de ser a sugesto, elptica, de que est construindo atravs do futebolum modelo de sua potica e mimetizando-o nos seus prprios ritmos, slabas, sentidos, melodias suas razes e suas rimas.42

    Quanto aos aspectos poticos que envolvem o futebol, tambm nas crnicas escritasposteriormente, em 1998, eles so ressaltados. Por exemplo, como j se viu, em Nossoscraques so todos mais artistas, o cronista apreende (e intensifica) a poesia do gesto dePel ao comemorar um gol: A parede de vidro, suspeito agora que foi o Pel quem a espatifoua socos, no gesto que aos nossos olhos desentendidos parecia solto no ar.43 Em Com meusbotes, o potico reside na perpetuao, via fantasia, da genialidade dos jogadores dopassado que na permanente edio da nossa memria vo produzindo novos lancesmemorveis.44 Em Gritos e sussurros, Nilton Santos, Zizinho, Pago, Castilho, Pndaro ePinheiro fazem com que Chico sinta mais orgulho deles do que Paris sente de Voltaire,Victor Hugo, Czanne e Debussy.45 Reitera-se a, pois, a ideia de que (...) h certosmomentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relancesque acontecem no futebol, que artista nenhum consegue produzir,46 mas que, via cano,Chico mimetiza na construo de sua potica, como sublinhado por Wisnik. Vale ressaltar,igualmente, que mesmo a prtica do moleque peladeiro no deixa de ser estetizada pelocronista, que se encanta, em O moleque e a bola, quando ele corre de testa erguida nogramado liso feito um mrmore, alm de suas jogadas permitirem que se considere a bolade futebol como a sublimao do coco, ou a reabilitao do ovo, ou uma laranja em xtase.47

    40 WISNIK. Veneno remdio: o futebol e o Brasil, p. 310-311.41 WISNIK. Veneno remdio: o futebol e o Brasil, p. 311.42 WISNIK. Veneno remdio: o futebol e o Brasil, p. 317, grifo nosso.43 BUARQUE. Nossos craques so todos mais artistas.44 BUARQUE. Com meus botes.45 BUARQUE. Gritos e sussurros.46 FERNANDES. A paixo antiga de Chico Buarque.47 BUARQUE. O moleque e a bola.

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    Concluindo, foi possvel perceber que, fazendo parte fundamental da vida deChico Buarque e marcando, de alguma forma, sua produo musical desde o incio, ofutebol sofre deslocamentos significativos no percurso de suas canes: se nos anos 1960aponta para o lazer (despreocupado) do homem comum, em seu carter agregador,contribuindo para o viver junto, ele passa a ter uma funo de crtica ditaduramilitar nos anos 1970, at ser singularizado na dcada de 1980 e 1990 em crnicas esobretudo na composio musical: nesta, por meio de uma tcnica incomum, o compositoracaba por abord-lo de forma nica, estetizando-o e intensificando, assim, o poticoinerente a ele. Ou, como acredita ainda Wisnik: Chico capaz de poetizar os aspectospoticos do futebol.48

    R S U M S U M S U M S U M S U M Ce travail a pour but de rflchir sur limportance du footballdans la vie, dans les chansons et dans quelques chroniques deChico Buarque.

    M O T SO T SO T SO T SO T S ----- C L SC L SC L SC L SC L SChico Buarque, football, chansons et croniques

    RRRRR E F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A S

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    CHICO O futebol. Direo: Roberto de Oliveira, Manaus, 1 DVD, EMI Music BrasilLtda, 2005.

    CHICO vai passando para o clima da Nova Repblica, O Globo, 4 fev. 1985. Disponvel em:.Acesso em: 2 abr. 2012.

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    HOMEM, Wagner. Histrias de canes: Chico Buarque. So Paulo: Leya, 2009.

    48 Cf. WISNIK. Veneno remdio: o futebol e o Brasil, p. 317.

    AA

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    HOLLANDA, Chico Buarque de. At a prxima. O Globo/Estado, 12 jul. 1998. Disponvelem:.Acesso em: 1 mar. 2012.

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