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Perguntas Que Precisam De Respostas - Philip Yancey file~ 3 ~ Philip Yancey PERGUNTAS QUE PRECISAM DE RESPOSTAS Traduzido por Cláudia Ziller Faria Preparado por Amigo Anônimo Nossos

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Philip Yancey

PERGUNTAS QUE PRECISAM DE RESPOSTAS

Traduzido por Cláudia Ziller Faria

Preparado por Amigo Anônimo

www.semeadores.net

Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única finalidade de

oferecer leitura edificante a todos aqueles que não tem condições econômicas

para comprar.

Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo apenas para

avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os livros.

Semeadores da Palavra e-books evangélicos

Obs.: Algumas páginas não puderam ser recuperadas.

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PERGUNTAS QUE PRECISAM DE RESPOSTAS

Copyright © 1984, 1998 por Wm. B. Eardmans Publishing Co. Traduzido para a língua portuguesa com permissão da William B. Eardmans Publishing Company, USA Todos os direitos reservados. Titula original: I was just wondering Supervisão Editorial: Alzeli Simas Revisão: João Alves

Marcelo Miranda Capa: Next Nouveau — Divisão Publicidade

CATALOGAÇÃO NA FONTE DO

DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO

M152e Yancey, Philip, 1949. Perguntas que precisam de respostas / Philip Yancey; traduzido por Cláudia Ziller Faria. — Rio de Janeiro: Textus, 2001. ISBN 85-87334-20-4 1. Literatura cristã I. Título

CDD-820

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela; Associação Religiosa Editora Mundo Cristão Rua Antônio Carlos Tacconi. 79 — CEP 04810-020 — São Paulo — SP — Brasil Telefone; (11) 5668-1700 — Home page: www.mundocristao.com.br

Editora associada a: • Associação Brasileira de Editores Cristãos • Câmara Brasileira do Livro • Evangelical Christian Publishers Association

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Conteúdo

Prefácio ............................................................................................................................................... 6

1 Vida com Deus...................................................................................................................................... 7 Cônjuge rejeitado................................................................................................................................ 8 Metáforas misturadas ....................................................................................................................... 10 Faça de Novo!.................................................................................................................................... 12 Pensamentos sobre Jesus ................................................................................................................. 13 O espírito dos casamentos arranjados ............................................................................................. 15 JÓ e os enigmas do sofrimento ......................................................................................................... 17 A escada da tribulação ...................................................................................................................... 18 Deus escolhe os favoritos.................................................................................................................. 20 O segredo espiritual do rei Davi........................................................................................................ 22

2 No mundo........................................................................................................................................... 25 A igreja da meia–noite ...................................................................................................................... 25 A AIDS é um castigo de Deus............................................................................................................. 27 Um bom começo ............................................................................................................................... 29 Ética que vale a pena......................................................................................................................... 31 Escorpiões, vermes e mísseis ............................................................................................................ 33 Perdão e reconciliação ...................................................................................................................... 35 O valor de um ser humano ............................................................................................................... 37

3 Outro mundo...................................................................................................................................... 39 Cuidado com os buracos–negros ...................................................................................................... 39 Matemáticos nascidos de novo......................................................................................................... 41 Que aconteceu com o céu?............................................................................................................... 43 Imagine que o céu não existe............................................................................................................ 45 Domingo à tarde, na praia................................................................................................................. 46 Perturbando o Universo.................................................................................................................... 47 A ESTAÇÃO PERFUMADA .................................................................................................................. 49

4 Entre os crentes.................................................................................................................................. 51 O PODER DO AMOR E O AMOR AO PODER....................................................................................... 52 Aja como se Deus ainda estivesse vivo ............................................................................................. 55 MÓRMONS, FARISEUS E OUTRAS PESSOAS BOAS ............................................................................ 56 Crescendo como fundamentalista .................................................................................................... 57 Morbidamente saudável ................................................................................................................... 59

5 Vozes indispensáveis ......................................................................................................................... 61 Efeitos covardes da deflação............................................................................................................. 61 Imaginação convertida...................................................................................................................... 63 OS RISCOS DA RELEVANCIA............................................................................................................... 64 Dois bezerros teimosos..................................................................................................................... 68 O REJEITADO ..................................................................................................................................... 69 Avançando para o passado ............................................................................................................... 70

6 O animal humano............................................................................................................................... 72 O Universo e meu aquário ................................................................................................................ 72 Reencontro da turma do 2º grau ...................................................................................................... 77 O problema do prazer ....................................................................................................................... 80

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PREFÁCIO

Suponho que todos os escritores se preocupem com a arrogância inerente ao ato de escrever. Sempre que pego a caneta (ou melhor: removo a capa do teclado de meu computador) nasce em mim uma esperança: de que, ao terminar a leitura, o leitor sinta que valeu a pena dedicar seu tempo à minha obra. Presumo ter o direito de levá–lo a deixar de lado qualquer outra atividade para prestar atenção em mim. Que me dá este direito?

Quanto mais, porém, escrevo menos me preocupo com este assunto. Aprendi que eu, ou qualquer outro autor, tenho a oferecer apenas um ponto de vista. Apresento minha opinião – subjetiva, tendenciosa, pessoal e necessariamente incompleta – e você, leitor, deve decidir se o resultado merece sua atenção.

Há quinhentos anos o sábio renascentista Pico delia Mirandola apresentou seu famoso discurso Oração a Respeito da Dignidade do Homem, no qual definia o papel da humanidade dentro da criação. Com a criação dos animais. Deus preencheu todas as posições essenciais da natureza, mas o Divino Artífice ainda ansiava por uma criatura que compreendesse o significado de tão grande obra, que se enchesse de amor ao admirar a beleza e se enchesse de admiração frente à sua grandeza.

Contemplar e apreciar todo o resto, refletir sobre o significado, reverenciar e consagrar, estes papéis foram reservados para a espécie feita à imagem de Deus.

Della Mirandola utilizou termos exaltados mas, como escritor, aceito sua premissa. Olho à minha volta, para a grande obra da criação, e desejo expressar meu próprio sentimento de espanto e, até mesmo, de amor. A escritora cristã Flannery O'Connor afirmou que o autor que aborda a fé "sentirá que vale a pena morrer, se for este o meio de ser encontrado por Deus".

* * *

Os editores da revista Christianity Today me convidaram, em 1983, para escrever uma

coluna mensal. Minha primeira preocupação foi a de que um dia os assuntos se esgotassem. Estava mais acostumado a escrever livros, nos quais trabalhava com o mesmo tema durante vários anos. Perguntei–me se conseguiria enfocar um tópico diferente a cada mês.

Com o passar dos anos, esta ansiedade se dissipou, e hoje o dia de escrever minha coluna para a revista é um dos mais agradáveis do mês. Resolvi que nunca escolheria o assunto ou tema até à data de entregar o trabalho. O ciclo idéia–escrita–publicação–reação do leitor, acontecendo em um ritmo rápido, chega a ser terapêutico, porque ajuda a aliviar o isolamento e a paranóia que podem advir de projetos de longo prazo, nos quais vários anos separam o processo de escrever da verificação dos efeitos causados no leitor.

Não gosto muito de livros escritos a partir de material previamente publicado, de modo que organizei os artigos em uma espécie: de ordem coerente. Surpreendi–me ao encontrar alguns temas recorrentes. Escrever assemelha–se à terapia: os dois processos trazem à luz o que estava escondido.

Na verdade, aprendo um pouco sobre mim mesmo ao rever meus escritos. Redigi todos estes artigos enquanto morava no centro de Chicago. Posteriormente, mudei–me para o Colorado e, ao ler, você poderá sentir o anseio que havia em mim por um ambiente mais rústico e pela beleza natural. Sinto–me muito bem subindo a pé uma montanha de mais de 4000m de altitude, em um dia de Verão, sem qualquer outra companhia além das marmotas e lebres que moram lá.

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Os seres humanos (e me incluo aqui) parecem–me estranhos. Meio animais e meio anjos, sempre surpreendemos e desapontamos nós mesmos e uns aos outros. Ao escrever sobre as pessoas pego–me em um sentimento de ironia que praticamente define a nossa espécie.

Embora seja evangélico e escreva freqüentemente sobre minha fé, nunca aceitei "a igreja" com facilidade. Sinto–me fora de lugar dentro dela e tento ajustar–me, como alguém que procura fazer com que um paletó de outro tamanho lhe sirva bem. Cresci em uma igreja fundamentalista, onde as pessoas pareciam estar sempre com raiva, mas aprendi a não aceitar as orientações da liderança. Hoje, sendo escritor, a critica que fiz se volta contra mim: se não podemos acreditar nos líderes, em quem acreditaremos? Ainda não encontrei resposta para esta pergunta.

Muitas vezes uso artigos curtos, como minha coluna na revista, como "expedições de exploração", apresentando idéias que, mais tarde, transformar–se–ão em uma obra mais extensa. Minhas reflexões sobre a "igreja da meia–noite" me levaram a escrever o livro Igreja: Por que me Importar?. Continuei a ponderar a pergunta de Simon Wiesenthal, e o resultado foi Maravilhosa Graça. Assuntos tratados em outras colunas tiveram expressão mais completa em Decepcionado com Deus e O Jesus que Eu Nunca Conheci.

Ao preparar este livro, li também inúmeras cartas, na verdade todas que a Christianity Today recebeu em resposta aos meus artigos. Provavelmente, você será capaz de descobrir quais geraram mais discussões: os que tratavam de política ou sexualidade. A coluna, porém, que, sozinha, suscitou o maior número de cartas foi uma composta apenas de perguntas.

Escrevi–a logo após terminar a leitura do maravilhoso livro de Walker Percy intitulado The Message in the Hottle (A Mensagem na Garrafa), que começa com seis páginas de perguntas como as seguintes:

Por que o homem do século vinte é tão triste? Por que alguém pode sentir–se ma! em um bom ambiente, em uma tarde normal de quarta–feira? E por que esta mesma pessoa consegue sentir–se bem em um ambiente ruim, digamos em um hotel velho durante uma tempestade muito forte? Por que a única vez em que vi meu tio feliz foi na tarde de 7 de dezembro de 1941, quando os japoneses bombardearam Pearl Harbor?

Este estilo interrogativo de Percy despertou algumas de minhas próprias perguntas, e

dediquei–lhes uma coluna inteira, sem tentar encontrar respostas. Honestamente, acredito que o entusiasmo demonstrado pelos leitores foi um sinal saudável. A reação deles me levou à forma como este livro foi organizado: com muitas perguntas e poucas respostas.

Há uma última pergunta que nunca consegui responder. Por que tão poucos cristãos lêem Walker Percy?

Philip Yancey

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VIDA COM DEUS

• Como é Deus? Por que a maioria dos livros teológicos O mostra como lógico, ordeiro, imutável e inefável, enquanto a Bíblia O retrata como emocional, flexível, vulnerável e, acima de tudo, apaixonado?

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• Por que apenas 10% da Bíblia – as Epístolas – são estritamente didáticos, e todo o resto ensino por meios indiretos, como histórias, poesias, parábolas e visões proféticas? Por que 90% dos sermões nas igrejas evangélicas baseiam–se nos 10% didáticos?

• Como Deus consegue amar tanta gente no mesmo tempo? Se Ele nos ama de verdade, por que algumas de nossas orações mais urgentes ficam sem resposta? Por que não acontecem mais milagres?

• Por que o livro de Jó está na Bíblia? Será que alguém já apresentou um argumento negando o amor de Deus que não apareça, de alguma forma, no livro de Jó? Se Jó termina o livro como herói e seus amigos como vilões, por que os cristãos citam mais as palavras deles?

• Por que Deus não respondeu às perguntas de Jó? E por que ele parece não ter–se importado de ficar sem as respostas?

• Como podem os evangelistas da televisão promover com tanta animação a teologia da prosperidade em um mundo cheio de injustiça e sofrimento como o nosso? Será que algum cristão iraniano acredita na teologia da prosperidade?

• Como podem os evangelistas da televisão prometer prosperidade e segurança aos fiéis quando Jesus lhes prometeu uma cruz, enviou–os como ovelhas no meio de lobos e permitiu que a maioria de Seus discípulos morresse como mártires?

• Que faz Deus ficar feliz?

CÔNJUGE REJEITADO

Isolei–me em um chalé nas montanhas do Colorado durante duas semanas de inverno. Levei comigo uma mala cheia de livros e anotações, mas, ao voltar, descobri que só havia aberto um deles: a Bíblia. Comecei a ler em Gênesis e segui em frente. Do lado de fora, a neve caía furiosamente. Quando cheguei em Deuteronômio, a neve cobria o primeiro degrau da escada externa. Atingi os profetas e ela chegou à caixa de correio. Finalmente, quando terminei Apocalipse, precisei chamar um caminhão para desobstruir a entrada da casa. Mais de 1,80m de pó gelado caiu durante o tempo que passei lá.

A combinação de som abafado da neve caindo, isolamento e concentração mudou para sempre o modo como leio a Bíblia. A percepção mais surpreendente que me veio naquela leitura foi que nossas impressões costumeiras de Deus podem ser muito diferentes do que a Bíblia realmente retrata. Nos livros de teologia lemos sobre os decretos de Deus, e características como onipotência, onisciência e imutabilidade. Estes conceitos encontram–se na Bíblia, mas bem escondidos, e é necessário esforço para vê–los. Leia as Escrituras e você encontrará não uma névoa indistinta, mas uma Pessoa real. Deus sente prazer, raiva e frustração. Uma vez após outra se choca com o comportamento humano. Algumas vezes, depois de decidir agir de uma forma, Ele "muda de idéia".

Eu sei bem que o termo elegante "antropomorfismo" pode explicar todos estes retratos com características humanas. E mesmo assim, lendo a Bíblia inteira de uma vez, como fiz, é impossível não ser esmagado pela alegria e angústia. Em resumo: pela paixão – do Senhor do Universo. É verdade que Deus "toma emprestadas" imagens da experiência humana para se comunicar de modo que possamos compreender, mas certamente essas imagens apontam para uma realidade ainda maior atrás delas. Por exemplo: nos profetas duas imagens são proeminentes: a do pai irado e a do conjugue desprezado.

Para minha surpresa, o livro que mais me afetou foi Jeremias, provavelmente por expressar estas duas imagens de um Deus apaixonado com tanta força emocional. Os primeiros capítulos mostram um pai ofendido tentando argumentar com um filho irremediavelmente rebelde. Deus recorda como conduziu seus filhos através do deserto hostil,

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providenciando alimento e água durante todo o caminho, para levá–los a uma terra fértil e de prosperidade. No capítulo 3, versículo 19, Ele diz:

Tu me chamarás meu pai, e de mim não te desviarás.

Em vez disso, a nação seguiu outros caminhos, afastando–se de Deus. Foram até ao ponto

de realizar sacrifícios de crianças, e o Deus onisciente fala sobre esta prática: O que nunca lhes ordenei, nem falei, nem me veio ao pensamento. (19:5, 7:31)

As conversas de Deus com Jeremias mostram a raiva, a inutilidade das tentativas de

resolver os problemas e, por trás disso, a dor, semelhante à que todos os pais sentem de vez em quando. Subitamente, parece que o amor altruísta dedicado durante toda a vida foi desperdiçado, desprezado. Esperanças arraigadas murcham e morrem. O filho, resolvido a enfiar uma faca na barriga de seus pais, desafia–os com seu comportamento chocante, agindo de um modo que "nem me veio ao pensamento".

Mais tarde Jesus usaria uma imagem ainda mais primitiva, do reino animal, quando chorava perto de uma cidade que, alguns dias depois, cometeria uma forma de parricídio eterno.

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! (Mateus 23:37)

A Bíblia mostra o poder de Deus forçando Faraó a se ajoelhar e reduzindo o poderoso

Nabucodonosor a um lunático ruminante. Mas também mostra a impotência do poder de criar o que Deus mais deseja: nosso amor. Quando seu amor é desprezado, até mesmo Ele, o Senhor do Universo, sente, de certa forma, o que um pai sente quando perde o que mais valoriza, ou uma galinha que assiste, impotente, a seus filhotes avançarem rumo ao perigo.

Em Jeremias, o modo de falar muda, algumas vezes no meio da sentença, do de pai para o de amante. Uma vez após outra, Deus usa as palavras surpreendentes de um amante traído. Ele diz para Judá:

Conhece o que fizeste; dromedária, ligeira és, que anda torcendo os seus caminhos. Jumenta montes, acostumada ao deserto, que, conforme o desejo da sua alma, sorve o vento, quem a deteria no seu cio? (2:23,24)

O tom das palavras de Deus em Jeremias varia amplamente, passando abruptamente

destes gritos ultrajados de dor para súplicas calorosas de amor, e depois para apelos desesperados por um recomeço. A alternância brusca no tom pode ser desconcertante, a não ser que se tenha experimentado algo semelhante ao que Deus descreve. Ele reage como um conjugue desprezado. Uma de minhas amigas enfrentou dor semelhante a esta durante dois anos. Em novembro, estava disposta a matar o marido infiel. Em fevereiro, havia perdoado e moravam juntos de novo. Em abril, deu entrada no pedido de divórcio. Em agosto, desistiu do processo e pediu ao marido que voltasse para casa. Foram necessários dois anos para que ela encarasse a verdade: seu amor fora rejeitado para sempre, sem esperança de retorno.

A imagem do cônjuge ferido em Jeremias (ou em Oséias, onde é representado ao vivo) é espantosa, não consigo entender totalmente. Por que Deus, que criou tudo que existe, submeter– se–ia voluntariamente a essa humilhação infligida por suas criaturas? No Colorado, enquanto percorria as páginas da Bíblia, perseguiu–me a realidade de um Deus que permite que nossa reação a Ele tenha tamanha importância.

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Ao voltar para Chicago, comecei a pesquisar livros de teologia. Percebi, mais uma vez, um perigo em nossos "estudos" sobre Deus. Quando O prendemos em palavras ou conceitos e O arquivamos, seguindo a ordem alfabética de suas características, podemos, facilmente, deixar escapar a força do relacionamento apaixonado que Ele anseia, acima de tudo, manter conosco. Talvez não haja perigo maior do que este para nós que escrevemos, falamos ou, até mesmo, pensamos sobre Deus. Para Ele, meras abstrações podem ser o mais cruel dos insultos.

Depois de duas semanas lendo a Bíblia inteira, emergi convicto de que Deus não se importa muito em ser analisado. Acima de tudo – como qualquer pai, como qualquer amante —, deseja ser amado.

METÁFORAS MISTURADAS

Ninguém, ao ler o livro de Oséias, pode deixar de notar que o tema é o adultério

espiritual. A esposa do profeta, uma prostituta chamada Gômer, reforça a mensagem verbal, refazendo a história da infidelidade de Israel para com Deus. Mesmo assim, misteriosamente, se dividirmos o livro em quatro partes, no início da última delas há um trecho notável sobre a paternidade. Durante dez capítulos Deus expressara o ciúme e a raiva de um Amante Desprezado, comparando Israel a uma mulher que tivesse casado com Ele e depois vendesse seu corpo para outros amantes. Mas, no capítulo 11:1,3,4, o tom se altera radicalmente.

Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho. ... Todavia, eu ensinei a andar a Efraim; tomando–os pelos seus braços, mas não entenderam que eu os curava. Atraí–os com cordas humanas, com laços de amor, e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas, e lhes dei mantimento.

Uma imagem invade minha mente, de uma fita de vídeo onde os pais registraram os

primeiros passos de uma garotinha. A mãe, ajoelhada, fala com carinho persuadindo sua filhinha, que estende as duas mãos e balança, perigosamente, de um lado para o outro. A câmara se move rapidamente e mostra a alegria do pai. Tanto ele quanto a mãe continuam a sorrir de uma orelha a outra sempre que colocam a fita e assistem. Foi assim, como um pai ou mãe bobos de tanto amor, que Deus ensinou seu povo a caminhar. Nesse trecho de Oséias, Ele se recorda, com nostalgia, da alegria da paternidade. Subitamente grita, em uma pontada de dor, Seu coração se move dentro dEle, sua compaixão é despertada:

Como posso desistir de você, Efraim? Como posso entregar você para os outros, Israel?

Que motivo terá levado a este interlúdio suave em meio a uma história para adultos sobre

a prostituição? A mistura das duas imagens – Israel como filho e como amante — é, no mínimo, diversa do convencional. Se um ser humano misturasse as duas imagens, pensaríamos em incesto. Mas Deus, buscando uma analogia que expressasse os sentimentos profundos que nutre por seu povo, escolhe os dois relacionamentos humanos mais profundos: paternidade e casamento. Na tentativa de decifrar a combinação extraordinária das duas figuras em Oséias, cheguei a uma palavra: dependência. Ela é a chave para se descobrir o que há em comum entre as imagens e como elas diferem.

O relacionamento entre a criancinha e seus pais é caracterizado pela dependência. Os bebês dependem deles para satisfação de todas as suas necessidades, e eles desempenham

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tarefas desagradáveis — ficarem acordados a noite toda, limparem vômito, ensinarem a usar o banheiro — porque sentem a dependência total do filho, e amam aquele bebê. Sem pais que cuidem dele, o bebê morrerá.

Ainda assim, esse padrão de comportamento não permanecerá para sempre. Os bons pais estimulam pouco a pouco a independência do filho. Meus amigos ensinaram a filha a andar, em vez de empurrá–la por toda a vida em um grande carro. Embora soubessem que um dia ela poderá andar para longe deles, não deixaram de ensinar. Lamentavelmente, alguns pais fracassam em dar independência aos filhos. Conheço um homem de 37 anos que ainda mora com sua mãe, por exigência dela, e lhe entrega todo o salário que recebe. Só sai de casa se a mãe permitir. Qualquer pessoa pode perceber que e um relacionamento doentio. Na paternidade e na maternidade a dependência deve fluir rumo à liberdade.

Os amantes revertem este fluxo, já que possuem a liberdade e escolhem abrir mão dela. A Bíblia manda que se submetam um ao outro, e qualquer casal pode dizer que esta é uma descrição acurada do processo cotidiano de viver juntos. A romancista Elizabeth Barrett Browning escreveu o seguinte soneto pouco antes de se casar com Robert:

E, assim como o soldado derrotado depõe sua espada Perante aquele que o ergue do solo ensangüentado –Assim mesmo, Amado, eu, por fim, Termino aqui minha luta. Se você me chamar, Levantar–me–ei de meu abatimento ao ouvi–lo. Aumente seu amor, para que meu valor cresça.

Em um casamento saudável, cada um se submete, voluntariamente, ao outro, em amor.

Nos relacionamentos problemáticos, a submissão transforma–se em parte de uma luta, um cabo–de–guerra entre dois egos.

* * * Deus sofre em Oséias porque o povo de Israel rompera o fluxo da dependência. No

deserto Ele alimentara Israel com o objetivo de transformá–lo em adulto, dando–lhe a liberdade da Terra Prometida. Mas o povo agarrou a liberdade e, como um filho rebelde – como Gômer –, desprezou–a, afastando–se de Deus. Israel nunca compreendeu o significado do casamento; nunca aprendeu a se entregar voluntariamente, em amor, para Deus. Oséias registra a profunda tristeza de Deus, que queria uma esposa, mas só conseguiu encontrar uma filha.

O padrão da dependência pode, acredito, ensinar–nos muito sobre os planos de Deus para a raça humana. Lendo Oséias e suas surpreendentes metáforas misturadas, fui forçado a examinar minha própria vida. Será que prefiro o conforto de um relacionamento infantil com Deus? Será que me apego ao legalismo como uma forma de segurança, uma forma ilusória de conseguir que Deus "goste mais de mim"?

Meu amor por Deus é condicional, como o de uma criança? Quando as coisas não vão bem, será que desejo fugir, ou gritar: "Odeio você!"? Ou sou mais como um parceiro no casamento: aquele tipo de casamento antigo, na doença e na saúde, para o melhor e para o pior, até que a morte nos separe (ou, neste caso específico, até que a morte nos reúna)?

A progressão na Bíblia, e em Oséias especialmente, ensina–me que tipo de amor Deus deseja receber de mim: não o dependente, desamparado, de um filho, mas o maduro, entregue liberalmente, de um esposo. Embora ambos expressem um tipo de dependência, existe uma diferença vital entre eles: a mesma que há entre paternidade e casamento, entre lei e Espírito.

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FAÇA DE NOVO!

Uma de minhas amigas, mulher jovem, sofisticada e polida, deteve–me outro dia com

notícias animadoras – pelo menos para ela. Gastou dez minutos recriando em palavras os primeiros passos de seu sobrinho de 1 ano de idade. Ele aprendeu a andar! Tropeçou como um bêbado, agarrou sofá e cadeiras para se firmar, mas aprendeu a andar! As pernas dobravam–se, os pés viravam–se para fora e o corpo inclinava–se, acentuadamente, para a frente.

No momento em que ela falava, fui envolvido pelo relato detalhado. Mais tarde, refletindo sobre nossa conversa no ambiente sóbrio de meu escritório, percebi como pareceria estranho para alguém que escutasse por acaso. Nós dois nos maravilhamos, expressando o maior dos entusiasmos, por uma habilidade dominada pelos aproximadamente dez bilhões de humanos que já habitaram neste planeta. Então, ele sabe andar – todo mundo sabe. Por que tanta animação?

Percebi que a infância é uma época em que temos um luxo raro na vida, a qualidade de ser especial, que quase desaparece durante o resto de nossa existência. Ao crescer, lutamos incessantemente para conseguir atenção. Os adolescentes varam a noite estudando para provas, maltratam o corpo em atividades físicas torturantes, fazem hora extra para comprar roupas de griffe. passam horas na frente do espelha se enfeitando – tudo para serem notados. Na idade adulta as pessoas institucionalizam a busca insana das conquistas. Queremos, desesperadamente, destacar–nos, ser notados. Enquanto isso, uma criancinha só precisa dar uns passos desengonçados cruzando um tapete da sala de estar, e seus pais e suas tias contam vantagem de seu triunfo para rodos os amigos.

Os refletores da atenção especial podem ser acesos de novo quando chega o momento do romance. Para um apaixonado, todo sinal de nascença é bonitinho, os hobbies estranhos reflexo de viva curiosidade, um espirro motivo para atenção redobrada. Voltamos a ser abençoados com a classificação de especiais: por algum tempo, pelo menos, ate que o tédio da vida acabe com isso.

O que acontece durante as fases de cuidados atentos na infância e a de namoro arrebatado é um contraste completo com nosso comportamento normal. Ao entrar em um ônibus, ninguém exclama para o motorista:

"Não acredito! Quer dizer que você dirige este ônibus enorme o dia todo, e sozinho? E nunca sofre um acidente? Isso é maravilhoso!"

E nem paramos alguém no supermercado para falar, efusivamente: "Estou tão orgulhoso de você, que sabe direitinho qual marca de produto escolher!

Existem tantas marcas diferentes, e mesmo assim você sabe quais as que quer e coloca todas em seu carrinho e empurra por todo o mercado com tanta segurança! Impressionante!"

Ainda assim, é este espírito, absurdo quando aplicado à rotina da vida, que mostramos para com as crianças e os apaixonados. Para eles, "santificamos" o que é comum e corriqueiro.

Não proponho que façamos papel de tolos todas as vezes em que encontramos um motorista de ônibus ou um consumidor econômico. Mas, pensar sobre o tratamento dispensado às crianças e aos apaixonados trouxe–me apreciação mais profunda de algumas metáforas bíblicas. Deus escolhe mais vezes "crianças" e "apaixonados" para descrever nosso relacionamento com Ele do que qualquer outra figura.

O Velho Testamento é repleto de imagens de marido–esposa. Deus corteja Seu povo, é louco por ele, como um apaixonado por sua amada. Quando O ignoramos, sente–se ferido, rejeitado, como um apaixonado desprezado. O Novo Testamento também usa a mesma imagem, apresentando a Igreja como "a noiva de Cristo". Ao alterar a metáfora, também anuncia que somos filhos de Deus, com todos os direitos e privilégios de ilustres herdeiros.

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Jesus (o Filho "Unigênito" de Deus) veio, ficamos sabendo, para possibilitar nossa adoção como filhos e filhas na família de Deus. Estude estas passagens bíblicas, e você verá que Deus olha por nós como nós olhamos por nossos próprios filhos, ou pela pessoa a quem amamos.

Por ser infinito, Deus tem uma capacidade que não temos: tratar toda a criação como igualmente especial. G. K. Chesterton tala assim sobre isto:

Um bebê balança as pernas ritmadamente em decorrência do excesso e não da ausência de vida. Em face da sua vitalidade abundante e do seu espírito impetuoso e livre, as criancinhas querem que todas as coisas sejam repetidas e imutáveis. Sempre dizem: "De novo!", e o adulto repele até que não agüenta mais. Isto porque os adultos não são fortes o suficiente para exultar com a monotonia. Mas talvez Deus seja. É possível que, todas as manhãs, Ele diga ao sol: "De novo!", e todas as noites repita as mesmas palavras à lua. Talvez não seja uma necessidade automática que torne todas as margaridas iguais, pode ser que Deus faça cada uma delas separadamente, sem nunca se cansar de repetir o modelo. Pode ser que Ele tenha o apetite eterno da infância, porque nós pecamos e envelhecemos, e nosso Pai é mais jovem do que nós.

Enquanto leio a Bíblia, parece–me evidente que Deus satisfaz ao seu "apetite eterno"

amando individualmente cada ser humano. Imagino que Ele vê cada passo vacilante que dou em minha "caminhada" espiritual, e acompanha com a ansiedade de um pai assistindo a seu filho dar o primeiro passo. E talvez, quando os segredos do Universo forem revelados, descobriremos um propósito oculto na paternidade e no amor romântico. Pode ser que Deus nos tenha concedido esses momentos de ser especiais para nos despertar para a simples possibilidade de amor infinito, do qual nossas maiores experiências aqui na Terra são meros lampejos.

PENSAMENTOS SOBRE JESUS

Em uma das noites mais frias e sombrias do inverno de Chicago encontrei–me em pé, em

um restaurante velho, esperando por um caminhão reboque. O motor do meu carro parara de funcionar em um cruzamento. Ao esperar ali, tremendo de frio e perdendo tempo, não pude deixar de pensar em uma história sobre Jesus que lera havia pouco tempo.

Chegara às minhas mãos um dos evangelhos apócrifos mais irreais, o Evangelho da Infância de Jesus Cristo. Esse documento da igreja primitiva não é aceito por nenhuma igreja em seu cânon, e pretende revelar histórias desconhecidas da infância de Jesus, período virtualmente deixado de lado nos evangelhos canônicos. O livro conta sobre o menino Jesus formando pássaros de barro e assistindo encantado a eles, voarem vivos. Mostra–0 quebrando o encantamento de uma bruxa que transformara um homem em mula. Onde suas gotas de suor caíam no chão, nasciam árvores; onde seus cueiros foram deixados, o fogo não ardia. Um garoto à morte foi levado à casa de Maria e curado pelo simples cheiro da roupa de Jesus.

O evangelho apócrifo fez–me ficar feliz pelo relato sóbrio dos escritores canônicos, que faz contraste com ele. Nos canônicos, os milagres não são mágica nem capricho, mas, antes, atos de misericórdia ou sinais indicando uma verdade espiritual subjacente à situação. Uma das histórias apócrifas da infância de Jesus, porém, ficou comigo. Continha certo charme – acredito que, em parte, por ser tão próxima à visão de Jesus espalhada por determinados círculos cristãos da atualidade. E foi essa história que veio à minha mente enquanto esperava pelo guincho no restaurante.

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De acordo com o Evangelho da Infância, o pai de Jesus, José, era um carpinteiro medíocre. Esforçava–se ao máximo em sua oficina para dar forma a baldes de leite, portões, peneiras e caixas, e depois chamava Jesus para ir dar o toque final. Então, Ele estendia sua mão e, milagrosamente, o trabalho de José se expandia ou se contraía, chegando ao tamanho correto, ficando liso, com um belo acabamento. Em um trabalho muito especial, diz a história, José deixou de medir corretamente. Esculpiu e cortou a madeira durante vários meses para um trono cheio de enfeites para um rei, e no dia de entregar descobriu que não se encaixava no local adequado. Enfurecido, o rei fez ameaças a José. Bem no momento em que a situação ficou tensa, o pequeno Jesus apareceu e, milagrosamente, o imenso trono cresceu e preencheu o espaço. Todos os enfeites permaneceram na proporção perfeita enquanto o trono se expandia.

Como gostaria de que Jesus agisse assim hoje! Digo isso não como sacrilégio ou piada. Por ser escritor, poderia usar muito sua ajuda. Se tivesse uma pequena idéia para um artigo e rascunhasse alguma coisa, Jesus poderia vir, retirar as vírgulas e advérbios excedentes e acabar com os desvios de pensamento. Certo Verão, trabalhei durante seis semanas em artigos destinados a apresentar a mensagem cristã para um público secular de uma revista. Trabalhei cada palavra, cortando, polindo, procurando o tom exato exigido pela revista. Mas, assim como o trono de José, meus artigos ficaram pequenos. Mas comigo não houve intervenção miraculosa e todo meu esforço foi perdido.

E agora meu carro estava no meio da rua, com as luzes do pisca–alerta acendendo e apagando. Eu perderia uma reunião marcada para aquela noite, e provavelmente algumas horas de trabalho nos dias seguintes, enquanto tentaria conseguir um mecânico honesto em uma oficina resolvida a saquear os motoristas em dificuldades. Que bem poderia advir de discutir durante muito tempo com um mecânico desonesto? Um pequeno milagre no cabo do distribuidor e eu poderia prosseguir em meu caminho, poupando meu dinheiro para dar a causas mais meritórias.

Sei muito bem que escolher os advérbios apropriados e fazer um carro funcionar são meras trivialidades comparadas com as provações que muitos cristãos enfrentam a cada dia. Penso nos que estão presos por causa da fé em outros países e em meu amigo que tem um filho com problemas mentais. Por que Deus não se move e resolve os problemas deles? A questão não é se cremos em milagres. Deus certamente tem o poder. Por que não o usa?

Uma pergunta tão abrangente dificilmente cabe em um capítulo do tamanho deste, exceto quando a uma lição importante a ser extraída no evangelho apócrifo. Esse evangelho, um dos favoritos dos gnósticos do século II, foi adequadamente rejeitado pela igreja ortodoxa. As histórias nele contidas sobre a infância de Jesus expressam uma heresia perigosa: a crença de que podemos escapar deste mundo material repleto de falhas, preso no tempo e no espaço, e viver em um plano mais "espiritual", bem acima do tédio da vida cotidiana.

O Apóstolo Paulo lutou corajosamente contra o gnosticismo. Apegou–se ã promessa de um mundo perfeito, que receberemos algum dia, do qual temos uma pequena prova nesta vida. Mas nunca negou as realidades tediosas e muitas vezes dolorosas. Ele nem poderia ter negado, em face dos seus dias repletos de naufrágios, prisões, espancamentos e da dor importuna de seu misterioso "espinho na carne". Resumindo: Paulo apresenta a vida cristã como um tipo de suspensão que inclui o triunfo da vitória eterna, mas também o pungente "ainda não" de nosso estado presente.

Confesso que algumas vezes desejo que não fosse assim. Quando me esforço sobre um artigo complicado ou tento fazer um carro teimoso funcionar, ou quando enfrento um problema insolúvel que não desaparecerá: em momentos assim anseio por uma forma de deixar para trás o "ainda não". Desejo o Messias apresentado no evangelho apócrifo, que ficará do meu lado, acertando minhas palavras, meus problemas físicos e todos os infortúnios de minha vida.

Mas depois, estudando os evangelhos canônicos e as epístolas explicatórias que os seguem, posso enxergar a sabedoria do propósito de Deus. Certamente seria um milagre Jesus

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esticar tronos, fazer pássaros de barro voarem e transformar mulas em homens. Mas é um milagre muito maior pegar o fracassado grupo de onze homens que O seguiram, junto com o arrogante caçador de cristãos chamado Saulo, e transformá–los, com todas as falhas, na base de seu Reino.

Seria um milagre se todas as minhas palavras saíssem perfeitas e se meu carro nunca mais quebrasse. (Uma voz me sussurra que assim eu poderia fazer muito mais pelo Reino...) Mas Ele usar a matéria bruta de tudo que escrevo ou, pode–se dizer, tudo que nós, seu Corpo, fazemos nesta Terra: não é isto milagre muito maior ?

O ESPÍRITO DOS CASAMENTOS ARRANJADOS

Você já pensou sobre quanto nosso Produto Interno Bruto depende do romance? Ele domina as artes: sintonize qualquer estação de rádio que toque música popular e tente encontrar uma canção que não trate do amor. Na área editorial, os romances góticos vendem mais do que qualquer outro estilo de livros. E existe alguma novela ou comédia sem um romance ardente entretecido no enredo? Indústrias inteiras existem para capitalizar o amor romântico: moda, jóias e cosméticos nos tentam a aperfeiçoar as técnicas de atração entre homens e mulheres. Frases como "conseguir um homem" e "perseguir uma mulher" resumem um fato da vida em nossa cultura e presumimos que em todas as outras também. A vida é assim, pensamos nós.

Ah, mas aqui há um fenômeno notável: ainda hoje, em nossa aldeia global, mais da metade de todos os casamentos acontece entre um homem e uma mulher que jamais sentiram qualquer pontada de amor romântico e talvez nem mesmo reconheçam o sentimento, se acontecer com eles. Adolescentes na maior parte da África e da Ásia têm como certa a noção dos casamentos arranjados por seus pais, assim como para nós é certa a noção do amor romântico.

Um jovem casal de indianos, Vijay e Martha, explicaram–me como foi o casamento deles. Os pais de Vijay avaliaram todas as garotas de seu círculo social antes de se decidirem por uma chamada Martha para ser a noiva de seu filho. Ele tinha 15 anos na ocasião e ela acabara de completar 13. Os dois só haviam–se encontrado uma vez antes, e muito rapidamente. Mas, depois que os pais dele chegaram a uma decisão, reuniram–se com os pais dela e marcaram a dará do casamento para dali a oito anos. Depois que combinaram tudo, contaram aos filhos com quem eles iriam se casar e quando.

Durante os oito anos seguintes Vijay e Martha tiveram a permissão de escrever uma carta por mês. Viram–se duas — apenas duas — vezes, e muito bem acompanhados, antes da data do casamento. Mesmo assim, tendo ido morar juntos sendo praticamente estranhos um ao outro, hoje o casamento deles parece ser tão seguro e amoroso quanto qualquer outro que conheço. Na verdade, missionários que vivem nestas sociedades relatam que, regra geral, os casamentos arranjados são mais estáveis, com a taxa de divórcios muito menor do que a dos que resultam de romance.

Nas culturas ocidentais as pessoas se casam porque sentem atração pelas qualidades agradáveis do outro: sorriso aberto, espirituosidade, aparência bonita, habilidade atlética, bom humor, charme. Com o passar do tempo, estas qualidades se alteram. Especialmente os atributos físicos irão deteriorar–se com a idade. Enquanto isso, podem aparecer surpresas: desleixo no cuidado com a casa, tendência à depressão, problemas sexuais. Ao contrário de tudo isso, os companheiros em um casamento arranjado não baseiam o relacionamento na atração mútua. Ao ser informada da decisão dos pais, a pessoa aceita que viverá muitos anos com alguém a quem mal conhece. Assim, a questão deixa de ser "Com quem me devo casar?" e passa para "Que tipo de casamento eu e este meu companheiro construiremos?"

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* * *

Duvido muito de que o Ocidente algum dia venha a abandonar a idéia de romance, apesar da base fraca que ele constitui para a estabilidade familiar. Mas, nas conversas que mantenho com cristãos das mais diversas culturas comecei a ver como o "espírito dos casamentos arranjados" poderia transformar outras atitudes. Poderíamos aprender alguma coisa sobre as nossas expectativas quanto à vida cristã, por exemplo.

Sempre achei estranha a fixação da teologia moderna com o problema do sofrimento. As pessoas em nossa sociedade vivem mais tempo, com a saúde muito melhor e com menos sofrimento físico do que em qualquer outra época da história. E ainda assim nossos artistas, escritores, filósofos e teólogos se atrapalham na procura de novas formas de apresentar as questões milenares de Jó. Por que Deus permite tanto sofrimento? Por que Ele não intervém? E é significativo notar que os brados não partem do Terceiro Mundo – onde a miséria grassa — ou de pessoas como Solzhenitsyn, que suportou enorme sofrimento. O grito angustiado parte basicamente daqueles dentre nós que vivem no Ocidente confortável e narcisista. E por pensar nesta tendência estranha que continuo a voltar ao paralelo com os casamentos arranjados, que se transformou para mim em uma espécie de parábola sobre as formas diferentes pelas quais as pessoas se relacionam com Deus.

Algumas aproximam–se da fé basicamente como uma solução para seus problemas, e escolhem Deus assim como escolhem o cônjuge, procurando as qualidades agradáveis. Sua expectativa é a de que Deus sempre lhes trará boas coisas. Dão o dízimo porque receberão de volta dez vezes mais. Tentam levar uma vida reta porque acreditam que Ele lhes dará prosperidade. Interpretam a frase "Jesus é a resposta" em seu sentido mais literal e inclusivo: a resposta para o desemprego, um filho com problemas mentais, um casamento em ruínas, uma perna amputada, um rosto feio etc. Contam como certo que Deus interferirá em seu favor; providenciando um emprego; curando o filho, a perna e o rosto feio e colando de volta os pedaços do casamento partido.

Em meio a tudo isso, precisamos continuar a levantar o problema do sofrimento, exatamente porque a vida não é sempre como gostaríamos de que fosse. Realmente, em muitos países, ao tornar–se cristã a pessoa pode ter certeza de que perderá o emprego, será rejeitada pela família, enfrentará o ódio social, e talvez, até, seja presa.

Em seu maravilhoso livro The Mind of the Maker (A Mente do Criador), Dorothy Sayers sugere um outro modo de enxergar o envolvimento de Deus conosco. Afirma, em palavras que merecem muita reflexão:

O artista não vê a vida como um problema a ser solucionado, mas como um agente da criação.

Somos como artistas que receberam a incumbência de construir nossa vida, a partir de

uma massa sem forma de matéria–prima. Uns são feios, outros bonitos. Há os brilhantes, os profundos, os charmosos e os envergonhados. Deus não promete resolver todos os nossos "problemas", pelo menos não como gostaríamos de que fossem solucionados. Pelo contrário: chama–nos para confiar nEle, e para permanecer fieis, quer sejamos brasileiros ricos ou sudaneses aprisionados. O que mais importa é o que criamos a partir da matéria–prima.

Sobre este aspecto, precisamos do "espírito dos casamentos arranjados" em nosso relacionamento com Deus. Ele me criou como sou: com meus traços fisionômicos particulares, minhas dificuldades e limitações, meu corpo, minha capacidade mental. Posso passar toda a vida ressentido com uma característica ou outra, e pedindo a Deus que mude minha "matéria–prima". Ou posso aceitar–me como sou, humildemente, com as falhas e tudo mais, como a matéria–prima com a qual Deus pode trabalhar. Não faço uma lista de exigências que precisam ser atendidas para que eu aceite firmar um compromisso. Como o marido de um casamento arranjado, comprometo–me, apesar do que acontecerá no futuro. Não tenho certeza do que está por vir.

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Pode–se dizer que fé significa prometer estar junto no melhor ou no pior, na riqueza ou na pobreza, na doença ou na saúde, amando a Deus e apegando–se a Ele, apesar do que vier a acontecer. Felizmente, o "espírito do casamento arranjado" funciona nos dois sentidos: Deus também firma um compromisso comigo. A fé significa acreditar que Ele fez a mesma promessa, e Jesus Cristo é a prova disso. Deus não me aceita condicionalmente, com base em meu desempenho. Ele mantém sua promessa, e nela está a graça.

JÓ E OS ENIGMAS DO SOFRIMENTO

Ao aflito livra por meio da sua aflição, e pela opressão lhe abre os ouvidos. (Jó 36:15) "Por que eu?" Quase todo mundo faz esta pergunta em meio ao sofrimento. Em grandes

ou pequenas circunstâncias – um terremoto em outro país ou no diagnóstico de uma doença – enfrentamos questões angustiantes sobre por que Deus permite que sintamos dor.

Ironicamente, os cristãos em sofrimento obtêm conforto no livro de Jó. Digo "ironicamente" porque Jó levanta mais questões sobre o sofrimento do que responde. O final do livro – uma fantástica aparição pessoal de Deus – parece o cenário perfeito para um monólogo esclarecedor. Deus, porem, evita por completo o ponto central da discussão anterior. E as várias teorias sobre a origem do sofrimento, todas agradáveis ao ouvido, propostas pelos amigos de Jó são desfeitas por Deus, com um olhar severo.

Este livro, relato espantoso de coisas ruins acontecendo a um homem muito bom, não contém uma teoria compacta mostrando por que as pessoas boas sofrem. Apesar disso, oferece algumas percepções rápidas sobre o problema da dor. Meu próprio estudo levou–me às conclusões que se seguem. Não respondem o problema da dor – nem mesmo Deus tentou fazer isso. Mas esses princípios jogam luz sobre certos conceitos errôneos tão comuns hoje quanto no tempo de Jó.

1. Os capítulos 1 e 2 mostram um fato importante de forma sutil: Deus não causou diretamente os problemas de Jó. Permitiu que acontecessem, mas Satanás foi o agente causador.

2. Em nenhum lugar do livro é sugerido que Deus não tenha poder ou não seja bom. Algumas pessoas (até mesmo o rabino Kushner, em seu livro muito conhecido Quando Coisas Ruins Acontecem com Pessoas Boas) alegam que um Deus fraco não tem poder para evitar o sofrimento humano. Outros, deístas, presumem que Ele dirige o mundo a distância, sem envolvimento pessoal. Mas o livro de Jó não discute o poder de Deus, só sua justiça. Em seu discurso final, em que resume as conclusões, Deus apresenta ilustrações esplendidas da natureza para demonstrar seu poder.

3. Jó, decididamente, rejeita uma teoria: a de que o sofrimento sempre vem em resultado ao pecado. A Bíblia confirma o princípio geral de "o homem colhe o que semeia", até mesmo nesta vida (veja Salmos 1:3, 37:25). Mas as outras pessoas não têm qualquer direito de aplicar esse princípio geral a uma pessoa em particular.

Os amigos de Jó foram persuasivos ao defender que ele merecia aquela punição catastrófica. Quando Deus, porém, apresentou o veredicto final, disse para eles:

Não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. (42:7)

(Posteriormente, Jesus também falaria contra a idéia de que o sofrimento implica,

automaticamente, pecado anterior. Veja João 9: 1–5 e Lucas 13:1–5.) Não tendo uma crença claramente definida na vida após a morte, os amigos de Jó presumiram, erradamente, que a justiça de Deus – sua aprovação ou não das pessoas – teria que ser demonstrada nesta vida.

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4. Deus não condenou as dúvidas nem o desespero de Jó, apenas sua ignorância. O dito popular "a paciência de Jó" dificilmente se encaixa com a torrente de censuras que saíram da boca dele, que não aceitou sua dor em mansidão, mas gritou em protesto contra Deus. Suas palavras fortes escandalizaram seus amigos (veja, por exemplo, 15:1–16), mas não chocaram Deus.

Será que precisamos de preocupar–nos se ofendemos Deus de alguma forma em uma explosão causada pela tensão ou pela dor? De acordo com este livro, não. Num toque da maior das ironias, Deus ordenou que os amigos de Jó seguissem seu exemplo de arrependimento, logo ele que era objeto de condescendência piedosa.

5. Ninguém conhece tudo sobre o sofrimento. Jó concluiu que ele estava certo e Deus era injusto. Os amigos insistiam em que a verdade era o oposto: Deus era justo e Jó estava sendo punido por alguma coisa que fizera. Por fim, todos aprenderam que viam a situação a partir de uma perspectiva limitada, cegos à verdadeira guerra que acontecia no céu.

6. Deus nunca fica totalmente em silêncio. Eliú defendeu este ponto de forma convincente, relembrando a Jó sonhos, visões, bênçãos passadas e até mesmo as obras diárias de Deus na natureza (capítulo 33). Deus, da mesma forma, usou a natureza como evidência de sua sabedoria e de seu poder. Embora pareça que Deus está em silêncio, algum sinal de sua presença ainda pode ser encontrado. O escritor Joseph Bayly expressou a mesma verdade: "Na escuridão, lembre–se do que aprendeu na luz."

7. Algumas vezes os conselhos cheios de boas intenções prejudicam mais do que ajudam. O comportamento dos amigos de Jó é um exemplo clássico de como o orgulho e o sentimento de estar com a razão podem sufocar a verdadeira compaixão. Eles repetiram frases piedosas e discutiram teologia com Jó, insistindo, teimosamente, em suas idéias equivocadas sobre o sofrimento (idéias que, na verdade, continuam a perseguir a Igreja). A resposta de Jó: "Tomara vos calásseis de todo, que isso seria a vossa sabedoria!" (13:4,5).

8. Deus mudou o foco da questão central: da causa do sofrimento de Jó para a reação dele. Misteriosamente, nunca explicou o problema do sofrimento e nem informou a Jó os acontecimentos registrados nos capítulos 1 e 2 do livro. A questão principal em jogo era a fé: se Jó continuaria a confiar em Deus mesmo quando tudo deu errado.

9. O sofrimento, no propósito de Deus, pode ser redimido ou usado para um bem maior. No caso de Jó, um período de grandes lutas foi usado por Deus para chegar a uma vitória importante, até mesmo cósmica. Ao avaliar o que passou – mas só depois que já passou – podemos ver as "vantagens" obtidas por Jó por continuar a confiar em Deus. Através de seu sofrimento imerecido, Jó apontou para Jesus Cristo, que viveria uma vida perfeita, e mesmo assim enfrentaria a dor e a morte para chegar a uma grande vitória.

* * *

Milhares de anos depois, as perguntas de Jó ainda permanecem. Os sofredores ainda

utilizam as palavras dele como um grito contra a aparente falta de interesse de Deus. Mas o livro de Jó afirma que Deus não está surdo aos nossos gritos, e controla este mundo, apesar de às vezes parecer que não. Deus não respondeu a todas perguntas, mas bastou sua presença para que as dúvidas desaparecessem. Jó aprendeu que Deus se preocupava com ele. Aprendeu, ainda, que o Todo–Poderoso controla o mundo. Isso foi suficiente para ele.

A ESCADA DA TRIBULAÇÃO

O pastor e teólogo alemão Helmut Thiclicke uma vez afirmou que os cristãos da América possuem uma teologia do sofrimento inadequada. Não se pode deixar de concordar com ele.

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Mais do que isso, nossa sociedade atravessou quase dois séculos sem uma invasão estrangeira, resolve todo seu desconforto meteorológico com isolamento térmico e prescreve um remédio para cada pequeno traço de dor, portanto não há como esperar que em seu meio surja uma teologia do sofrimento.

Talvez pelo menos uma parte desta dificuldade provenha do modo como lemos a Bíblia. Descobri pelo menos cinco abordagens bíblicas do sofrimento, e se enfocarmos exclusivamente uma delas nos arriscamos a criar uma teologia do sofrimento não apenas inadequada mas também herética. Dou a estas abordagens o nome de "Os cinco degraus da Escada da Tribulação".

Degrau l: Uma pessoa que vive da forma certa nunca deve sofrer. Estes pensamentos sobre um "evangelho da prosperidade" nos advêm quase como reflexo. Quando um desportista quase consegue uma proeza, e falha no minuto final, pensamos que deve haver pecado na vida dele. Se um jovem líder cristão tem câncer, não sabemos como alguém tão santo pode sofrer assim. Reconheço que esses pensamentos realmente aparecem na Bíblia, especialmente no livro de Provérbios, que implica que a vida correta trará recompensas ainda neste mundo. E pense na promessa abrangente de Salmos 1:3 para o homem justo: "Tudo quanto ele faz será bem–sucedido."

É necessário voltar a Êxodo e Deuteronômio para entender a fonte desta teologia, que é a aliança de Deus com os israelitas. Ele prometeu prosperidade para o povo, se O seguisse fielmente, mas eles não cumpriram os termos da aliança. Outros livros da Bíblia, notavelmente os Profetas e os Salmos, registram a angústia dos judeus enquanto se ajustavam à nova realidade. Por exemplo: quase um terço dos Salmos apresenta um autor "justo" lutando contra o fracasso da teologia da prosperidade. Parecia que ela deixara de funcionar.

Degrau 2: As pessoas boas realmente enfrentam tribulações, mas sempre conseguirão algum alívio. Muitos dos "salmos de tribulação" carregam em si um tom cortante de autodefesa. Parece que o autor pensa: Se eu conseguir convencer Deus de minha justiça, então Ele certamente me vai livrar. Deve haver algum engano nessa situação.

Passei a ver estes salmos de defesa da própria justiça como palavras de preparação, porque ajudam toda uma nação a entender que algumas vezes as pessoas justas realmente sofrem, e nem sempre são livradas. Neste sentido, estes salmos são verdadeiramente messiânicos: preparam o caminho para Jesus, o homem perfeito que, como está escrito em Hebreus:

Tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte.

Mas Jesus não escapou da morte. Hebreus 11 apresenta uma lista de pessoas fiéis que viveram em épocas variadas,

cobrindo vários séculos. Algumas receberam livramento miraculoso: Isaque, José, Moisés, Raabe, Gideão, Davi. Mas outros foram torturados, presos em correntes, apedrejados, serrados ao meio. O capítulo apresenta detalhes vivos sobre o último grupo: andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, foram desamparados, vagaram por desertos e montanhas e habitaram em cavernas, O autor conclui com um comentário enfático:

Todos estes que obtiveram bom testemunho por sua fé não obtiveram, porem, a concretização da promessa. (v. 39)

Degrau 3: Todas as coisas cooperam para o bem. Esta famosa frase de Romanos é

distorcida muitas vezes. Algumas pessoas pensam que ela significa que só coisas boas acontecerão para os que amam a Deus. Ironicamente, Paulo quer dizer exatamente o contrário. No restante do capítulo, ele define de que tipo de "coisas" está falando: lutas, dificuldades, perseguições, tome, nudez, perigo e espada. Paulo enfrentou tudo isso e, por fim, sucumbiu.

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Não foi "livrado". Mesmo assim, ele insiste: "Em todas estas coisas somos mais do que vencedores." Não há dificuldade que possa separar–nos do amor de Deus.

Paulo encontrou uma solução habilidosa para as contradições levantadas pelos dois primeiros degraus da tribulação. Mesmo que a dificuldade sobrevenha a Deus, eles podem ver que a situação é transitória. Um dia, quando a criação que geme for libertada, todas as tribulações acabarão. Paulo diz–nos que há um problema de tempo para nós. E só esperar: o milagre de Deus ao transformar a Sexta–feira da Paixão no Domingo de Páscoa será realizado em escala universal.

Degrau 4: Pessoas fiéis podem ser chamadas a sofrer. O livro de I Pedro explica este novo desdobramento da tribulação. Bem distante do 1 degrau, onde os justos presumem uma imunidade contra o sofrimento, esta teologia assume a existência da perseguição. Aqueles que seguirem as pegadas de Cristo sofrerão injustamente, assim como Ele sofreu. A história confirmou as palavras de Pedro. A maioria dos apóstolos morreu martirizada, e o sangue por eles derramado foi a semente do crescimento da Igreja.

Degrau 5: indiferença santa. O Apóstolo Paulo alcançou um estado de exaltação descrito em Filipenses 1, no qual encontrava dificuldade em decidir se era melhor morrer e estar com Cristo ou viver mais um pouco e continuar o ministério. Sua escala de valores parece estar de pernas para o ar. É claro que vê sua limitação na prisão como agradável, porque esta "tribulação" acarretou muitos resultados bons. Riqueza, pobreza, conforto, sofrimento, aceitação, rejeição, até mesmo vida ou morte, nada disso interessa muito a Paulo. Só uma coisa importa para ele: o alvo maior de exaltar a Cristo, que ele pode alcançar sob quaisquer circunstâncias.

* * * Algumas pessoas sentem–se incomodadas, bem o sei, ao ver uma lista com uma série de

"degraus" da Bíblia, sem uma fórmula esquematizada para solucionar o problema dentro de um esquema maior. Para elas, recomendo que contemplem o 1 degrau à luz do último. Curiosamente, o avançado estágio de indiferença santa de Paulo coloca–o de volta no 1 degrau. Para ele, a pessoa vivendo da maneira correta não sofre, pelo menos não em um sentido permanente. E Deus pôde usar todos os eventos da vida de Paulo, tanto os dolorosos quanto os agradáveis, como instrumento para fazer avançar seu Reino.

Conheci poucas pessoas que atingiram o estágio sublime do 5º degrau, o que pode confirmar o comentário de Helmut Thielicke sobre os Estados Unidos. Como uma nação tão abençoada pode conseguir dominar a fé avançada? Devemos procurar ensinamentos maduros sobre o sofrimento entre os cristãos de El Salvador, da África do Sul ou da Coréia do Norte. Que pena! Parece que devotamos mais tempo e energia debatendo sobre as possibilidades do 1 degrau, ou pelo menos sentindo saudade daqueles "bons e velhos dias" em que vencíamos todas as guerras e a economia navegava a favor do vento.

DEUS ESCOLHE OS FAVORITOS

O Apóstolo João escreveu, no prólogo de seu evangelho:

Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou.

Outra sentença, em sua primeira epístola (4:12), começa da mesma forma, mas prossegue

de forma surpreendente:

~ 21 ~

Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é em nós aperfeiçoado.

É uma idéia desconcertante pensar que Deus escolheu pessoas comuns como seu canal

preferido para revelar sua imagem – seu amor – ao mundo. E assim o mundo que Deus ama pode nunca conseguir vê–Lo, porque nosso rosto impede.

Há muito tempo sinto–me perturbado por um comentário de Dorothy Sayers sobre as três maiores humilhações sofridas por Deus. Para ela, a primeira humilhação foi a encarnação, quando confinou–se em um corpo físico. A segunda foi a Cruz, quando sofreu a ignomínia da morte por execução pública. A terceira é a Igreja.

Ao ler este comentário pela primeira vez, cenas da história vieram–me à memória: as cruzadas, os massacres dos judeus, as guerras da religião, a escravidão, a Ku–Klux–Klan. Todos estes movimentos alegavam ter a aprovação de Cristo (houve até um navio negreiro batizado de O Bom Navio Jesus). Mas a humilhação prossegue no século XX em lugares como a Iugoslávia, a África do Sul, o Líbano e a Irlanda do Norte, onde alguns dos piores conflitos do mundo envolvem cristãos. Ao olharmos para nós mesmos, só é preciso examinar a minha vida para ver até que ponto Deus se humilha para habitar em pessoas comuns.

É triste, mas o mundo julga o próprio Deus pelas ações dos que carregam seu nome. No poema Before a Crucifix (Antes de um Crucifixo), Charles Swinburne descreve as "bestas que se alimentam de homens" e que vagueiam em torno da árvore da fé, impedindo que outros creiam:

Embora o coração deseje e a memória anele. Não podemos louvá–lo por causa delas.

Nietzsche disse rispidamente:

Os discípulos dEle terão que parecer mais que estão salvos para que eu possa crer no Salvador. A Igreja é, na verdade, humilhação para Deus, fazendo, por causa de sua hipocrisia, com que o mundo se afaste dEle.

* * * Embora sejamos motivo de humilhação para Deus, também somos fonte de orgulho.

Ultimamente tenho notado algumas frases fascinantes que transmitem o orgulho de Deus, até mesmo seu prazer, pelos que permanecem fiéis. Revi os textos bíblicos, procurando as características comuns a estes "favoritos" de Deus. Por exemplo: o Anjo Gabriel disse ao profeta Daniel que ele era "muito amado" no céu. Ao falar com Ezequiel (capítulo 14), o próprio Deus confirmou isto, relacionando Noé, Daniel e Jó como três de seus favoritos. Eles formam um trio interessante: um sobreviveu a uma inundação, outro à cova dos leões e o último a um holocausto pessoal de sofrimento.

Na verdade, reparei que a maioria dos favoritos de Deus atravessou um teste duro de sua fé. Abraão, chamado de "amigo de Deus", passou a maior parte de sua vida esperando, impacientemente, que Deus cumprisse Suas promessas. A Virgem Maria "achou favor diante de Deus", mas Kierkegaard, lembra–nos:

Será que alguma mulher já foi atingida pelo sofrimento como Maria, e não é verdade também que aquele a quem Deus abençoa, no mesmo instante, Ele amaldiçoa?

Em sua obra fear anel Trembling (Temor e Tremor) ele medita sobre a ansiedade,

desespero e paradoxo que marcaram a vida de Maria.

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É claro que a Bíblia aponta para Jesus como Aquele que dá mais orgulho a Deus. Uma voz trovejou do céu:

"Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo." Ele, o Servo Sofredor, certamente se encaixa no padrão descrito. Foi Jesus, afinal, quem

incorporou as duas outras grandes humilhações de Deus. O mesmo padrão de fé sob fogo aparece em Hebreus 11, um capítulo que alguns chamam

de "A Galeria dos Heróis da Fé". Nele o autor registra, em detalhes terríveis, as lutas que podem sobrevir às pessoas fiéis, concluindo: "Homens dos quais o mundo não era digno." Hebreus acrescenta ainda, sobre este grupo impressionante: "Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus." Para mim, esta frase inverte o sentido da afirmativa de Dorothy Sayers sobre as humilhações de Deus: sim, a Igreja já foi causa de vergonha para Ele, mas também Lhe trouxe momentos de orgulho, e os santos sofredores de Hebreus 11 mostram isso.

Os santos atingem esta condição porque se apegam, teimosamente, à convicção de que Deus merece nossa confiança, mesmo quando parece que o mundo está desabando. Os santos de Hebreus 11 colocaram suas esperanças em um país melhor, celestial, e por este motivo Deus não se envergonha de ser chamado de Deus deles. Paradoxalmente, a fé se desenvolve mais quando há incerteza e confusão: se duvida disso, leia a história da vida das pessoas que aparecem em Hebreus 11. Os favoritos de Deus, eles em especial, não estão imunes a períodos de testes. Como disse Paul Tournier: "Onde não há mais oportunidade para duvidar também não há mais oportunidade para crer."

Ao terminar meu estudo sobre os favoritos de Deus, um fato sobressaiu–se a todos os outros. Aquelas pessoas dificilmente se parecem com os santos saudáveis, prósperos e mimados que vejo apresentados nos programas religiosos na televisão. O contraste é chocante e me deixou confuso por algum tempo. Talvez seja esta a diferença: os programas na televisão precisam preocupar–se em agradar a uma audiência de milhares de pessoas, às vezes milhões. Os favoritos de Deus se dedicam a agradar a uma audiência composta por Uma só Pessoa.

Receber o mandamento de amar a Deus acima de tudo, ainda mais estando no deserto, é como receber a ordem de sentir–se bem quando se está doente, cantar de alegria quando se morre de sede, correr quando as pernas estão quebradas. Esta, porém é o primeiro e o maior dos mandamentos. Mesmo no deserto — especialmente no deserto – devemos amá–LO.

– Frederick Buechner

O SEGREDO ESPIRITUAL DO REI DAVI

O escritor Joseph Heller certa vez tentou reescrever a história da vida do Rei Davi. O

resultado, um livro chamado God Knows (Deus Sabe), não alcançou sucesso. Uma crítica da revista Time apresentou uma razão: não é possível romancear o relato bíblico da vida do Rei Davi tornando–o ainda mais picante. A Bíblia não omite qualquer parte desagradável, mas apresenta todas as mentiras e enganos, as batalhas infindáveis, os atos de bravura, a insanidade fingida, os fracassos familiares, o adultério e o assassinato.

Mas o livro de Heller, um pouco irreverente, levanta uma questão inevitável que também está presente no relato bíblico. Como poderia uma pessoa com tantas falhas óbvias tornar–se conhecida como "O homem segundo o coração de Deus"? Por muito tempo, em Israel, Jeová era chamado de o "Deus de Davi", tão forte era a identificação entre os dois. Qual era o segredo de Davi?

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Realizei um exercício de leitura que talvez possa oferecer uma pista. Comparei, para usar o jargão corrente, a jornada interior de Davi com a exterior. O livro dos Salmos, em particular os setenta e três a ele atribuídos, constituem–se em uma janela para a alma dele. Alguns trazem comentários introdutórios revelando as circunstâncias em que foram escritos. Decidi ler o diário espiritual de Davi nos Salmos primeiro e, a partir da evidencia deste registro "interior", tentar imaginar que eventos "exteriores" suscitaram as palavras. Depois voltei–me para o registro histórico nos livros de Samuel e comparei minhas deduções com o que realmente acontecera.

O Salmo 56 inclui as palavras "Neste Deus ponho a minha confiança", e Davi, cheio de gratidão, revela que foi Deus quem livrou sua alma da morre e seus pés de tropeçarem. Com a mera leitura pareceu–me que Deus interviera miraculosamente e resgatara Davi de alguma situação difícil. Mas que aconteceu realmente? Voltando–me para I Samuel 21, li a história de um prisioneiro apavorado, que babava e se movia descoordenadamente, como um louco, na tentativa desesperada de salvar sua pele. Até onde pude ver não houve qualquer milagre, só um renegado com instinto de sobrevivência bem forte.

A seguir, li o Salmo 59: A ti, Força minha, cantarei louvores, porque Deus é meu alto refúgio, é o Deus da minha misericórdia.

Mais uma vez parecia que Deus agira para salvar a vida de Davi. Mas, em I Samuel 19, o

texto que corresponde ao Salmo, li uma cena de caçada: Davi sai furtivamente por uma janela enquanto sua esposa engana os perseguidores cobrindo uma estátua com pêlos de cabra. Mais uma vez o salmo de Davi concede a Deus todo o crédito pelo que parecia ser engenhosidade humana.

O Salmo 57 tem outro tom, de fraqueza e temor. Mostra um fugitivo clamando por misericórdia. Pensei que a fé de Davi vacilava quando ele escreveu aquelas palavras. Mas, ao olhar o registro histórico em I Samuel 24, encontrei uma das demonstrações de coragem desafiadora mais extraordinárias de toda a história.

O Salmo 18 apresenta um resumo de toda a carreira militar de Davi. Escrito quando, afinal, ele era rei absoluto, recorda com detalhes vívidos os muitos milagres de livramento que Deus fez. Lendo apenas este salmo, sem conhecer o contexto histórico, a pessoa acredita que a vida de Davi foi especialmente charmosa e protegida. Ali ele não fala nada dos anos de fuga, das batalhas que duravam a noite toda, das cenas de perseguição e dos planos engenhosos de fuga que preenchem as páginas de I e II Samuel.

Em resumo, se lemos os Salmos atribuídos a Davi e, a partir deles, tentamos imaginar sua vida, fracassamos completamente. Pode–se pensar em um eremita piedoso, alienado deste mundo, ou em uma alma tímida e neurótica, favorecida por Deus, mas não se pensará em um gigante de força e coragem. Como explicar a disparidade entre os dois registros bíblicos, da jornada interior e da exterior de Davi?

* * * Todos temos, ao mesmo tempo, uma vida interior e uma exterior. Percebemos a vida

como um tipo de filme, consumido de personagens, cenários e desdobramentos do enredo – sendo nós mesmos os personagens principais. Se formos nós dois a um mesmo evento (digamos, uma festa), levaremos ambos para casa os mesmos fatos "exteriores" do que aconteceu, mas o ponto de vista "interior" será totalmente diferente. Minha memória se voltará para a impressão que eu causei. Fui engraçado ou charmoso? Ofendi alguém, ou envergonhei a mim mesmo? Os outros me acharam bonito? É muito provável que você faça as mesmas perguntas sobre a sua pessoa.

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Parece, porém, que Davi enxergava a vida de um jeito um pouco diferente. Suas proezas — matar animais selvagens só com as mãos, vencer Golias, sobreviver às investidas de Saul, dispersar os filisteus – certamente lhe granjearam posição de destaque na História. Mas, ao refletir sobre estes eventos e escrever poemas sobre eles, encontrou um jeito de tornar Javé, o Deus de Israel, o centro das atenções. Davi experimentou a presença de Deus. Quer expressasse esta presença em poemas sublimes de louvor, quer em reclamações comuns, de qualquer forma envolvia Deus, intencionalmente. nos detalhes de sua vida.

Davi confiava no interesse que Deus tinha por sua vida. Depois de uma fuga difícil, escreveu:

Livrou–me, porque ele se agradou de mim. (Salmo 18:19)

Em outra ocasião argumentou, com palavras pungentes:

Que proveito obterás no meu sangue, quando baixo à cova? Louvar–te–á, porventura, o pó? (Salmo 30)

E, quando se sentia traído por Deus, fazia questão de que Ele o soubesse. Afinal, foi Davi

quem falou primeiro: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" Chamou o Senhor para se explicar com ele, exigindo que cumprisse sua parte no relacionamento especial que havia entre eles.

Durante toda sua vida Davi acreditou, de verdade, que o mundo invisível de Deus – o céu, os anjos e tudo mais – era tão real quanto seu próprio mundo de espadas, lanças, cavernas e tronos. Os salmos constituem–se no registro de seu esforço consciente para submeter sua vida cotidiana à realidade do mundo invisível que era maior do que ele.

O Salmo 57 registra muito bem este processo. O título nos informa que Davi o compôs quando fugiu de Saul e se escondeu em uma caverna. I Samuel 24 cria o cenário: Saul, com seu exército muito bem equipado, cercara completamente o pequeno grupo de Davi. Sem qualquer oportunidade de escapar, Davi embrenhou–se em uma caverna próxima a um cercado de ovelhas. O salmo, é óbvio, expressa ansiedade e medo. Mas termina em uma afirmativa triunfante, meio estranha para a situação;

Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus; e em toda a terra esplenda a tua glória.

De alguma forma, no processo de compor, Davi foi capaz de levantar seus olhos da

caverna úmida e mal cheirosa, voltando–os para o céu, acima dele. No mais improvável dos cenários, ele vem a afirmar: Deus reina.

Talvez tenha sido na manhã seguinte que Davi saiu, confiante, da caverna e confrontou o exército inteiro do Rei Saul, sem qualquer arma nas mãos, mas com um apelo à consciência. Talvez o próprio processo de compor o salmo tenha–o encorajado para essa demonstração de coragem moral.

Felizmente, poucos de nós vivemos frente ao perigo mortal, como Davi viveu. Mas, assim como Ele, passamos por situações em que nossa resistência acaba, o medo se instala, parece que Deus se afastou e as forças hostis nos cercaram. Em momentos assim volto–me para os Salmos. Suspeito de que Davi os escreveu como uma forma de terapia espiritual, um caminho para voltar–se para a fé quando seu espírito e suas emoções vacilavam. E hoje, muitos séculos depois, podemos usar exatamente as mesmas orações como passos de fé, caminho que nos liberta da obsessão conosco mesmos e nos leva à verdadeira presença de nosso Deus.

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2

NO MUNDO

• Por que existem tantos alcoólicos em nossos dias? Por que eles simplesmente não vêm até a igreja em vez de se isolarem em seus grupos fechados? Por que os pecadores se sentem tanta atração por Jesus e tanta repulsa pela igreja?

• Por que as pessoas com Aids quase nunca vão à igreja? • Por que praticamente todas as situações de disciplina na igreja envolvem pecados

sexuais? Por que ouço tão poucos sermões sobre os pecados do orgulho, cobiça, preguiça e glutonaria? Será que os cristãos apoiariam um movimento nacional semelhante à Lei Seca contra a grande ameaça à saúde, que é a obesidade?

• Por que tantos hospitais têm nomes "cristãos"? E por que funcionam como qualquer outro hospital? Como seria um hospital verdadeiramente cristão?

• De onde veio o ódio racial? E as raças, de onde vieram? Por que Deus não fez todas as pessoas semelhantes, como são as margaridas ou as moléculas de hidrogênio?

• Deus prefere os Protestantes ou os Católicos na Irlanda? • De onde vêm os ditadores? Por que Deus permite que inflijam tanto mal ao mundo?

Por que Deus se calou durante o Holocausto?

A IGREJA DA MEIA–NOITE

Fui a uma "igreja" singular recentemente, que consegue atrair milhões de membros

devotos todas as semanas, sem ter sede denominacional e nem funcionários contratados. O nome é Alcoólicos Anônimos. Fui a convite de um amigo, que me confessara, pouco tempo antes, seu problema com a bebida. Ele me disse:

– Venha comigo, e verá uma amostra de como deve ter sido a Igreja primitiva. À meia–noite de uma segunda–feira, entrei em uma casa caindo aos pedaços, que já

abrigara seis sessões naquele dia. Nuvens de fumaça de cigarro pairavam no ar como gás lacrimogêneo. Não passou muito tempo antes que eu percebesse o que meu amigo queria dizer com sua alusão à Igreja primitiva. Um político muito conhecido e vários milionários proeminentes se misturavam com desempregados desanimados e garotos que colocavam band–Aids nos braços para esconder as marcas das agulhas. O "momento de compartilhar" foi semelhante às descrições de grupos de terapia ideais que encontramos nos livros de cursos de Psicologia. As pessoas ouviam em compaixão, respondiam com ardor e abraçavam–se ao final. As apresentações eram mais ou menos assim:

– Oi, sou o Tom, e sou dependente de álcool e drogas. Imediatamente todos gritavam em uníssono, como um coral do teatro grego:

– Oi, Tom! Cada participante da reunião deu o relatório de seu progresso pessoal na batalha contra a

dependência. Cartazes com frases simpáticas – "Um dia de cada vez", "Você consegue" – enfeitavam as

paredes desbotadas da sala. Meu amigo acredita que esses arcaísmos revelam outra semelhança com a Igreja primitiva. A maior parte da sabedoria do AA é passada de uma pessoa para a outra pela tradição oral, que vem desde a fundação da entidade, há mais de

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cinqüenta anos. Ninguém usa muito as publicações atualizadas do AA e nem seus artigos de relações públicas. Em vez disso, confiam principalmente em um velho livro embolorado com o título prosaico: O Grande Livro Azul dos Alcoólicos Anônimos, que conta a história dos primeiros membros, em um estilo pomposo, parecido com o da Bíblia.

O AA não possui qualquer propriedade, não tem uma sede com luxos como mala direta e centro de mídia, não há uma equipe de consultores bem pagos e nem conselheiros de investimentos a cruzar o país de avião. Os fundadores do movimento estabeleceram garantias que acabariam com qualquer iniciativa para implantar a burocracia. Acreditavam em que o programa só teria sucesso se permanecesse no nível mais básico e íntimo: um alcoólico dedicando sua vida a ajudar outro. Mesmo assim o AA mostrou–se tão eficaz que mais 250 organizações, de Chocólatras Anônimos a grupos de pacientes de câncer, surgiram como uma imitação consciente de sua técnica.

Os muitos paralelos com a Igreja primitiva não são meras coincidências históricas. Os fundadores cristãos insistiram em que a dependência de Deus deveria ser uma parte obrigatória do programa. Na noite em que participei da reunião, todos na sala repetiram em voz alta os doze princípios, que reconhecem total dependência de Deus para perdão e força (os membros mais agnósticos podem substituir pelo eufemismo "Poder do Alto", mas depois de algum tempo isso começa a soar tão vazio que eles geralmente acabam passando para Deus). Durante os momentos de compartilhar, algumas pessoas usaram o nome de Deus em uma série de profanidades, e na sentença seguinte agradeciam a Ele por ajudá–las a atravessar mais uma semana.

Meu amigo admite abertamente que o AA tomou o lugar da igreja na vida dele, e isso às vezes o perturba. Ele denomina a situação de "a questão Cristológica" do AA. E diz:

O AA não adoça uma ecologia da qual possa falar. Raramente se menciona Cristo. Os grupos tomaram emprestada a sociologia da igreja, bem como algumas das palavras e dos conceitos, mas não há doutrina subjacente. Sinto falta das doutrinas, mas em primeiro lugar estou tentando sobreviver, e o AA me ajuda muito mais nesta luta do que qualquer igreja local.

A igreja – e é possível avistar muitas torres através das janelas do prédio onde o grupo dos

AA se reúne – parece irrelevante, enfadonha e sem substância para meu amigo. Outros no grupo explicam sua resistência à igreja relatando histórias de rejeição, julgamento e sentimento de culpa. Uma igreja local é o último lugar em que se levantariam para declarar que são alcoólicos e dependentes de drogas. Ninguém os saudaria com alegria, como nas reuniões do AA.

Meu amigo acredita que um dia acabará voltando para a igreja, já que não abandonou sua fé. Ele afirma que, na verdade, o envolvimento no AA o ajudou a solucionar alguns dos paradoxos mais difíceis do cristianismo. Tomemos como exemplo o debate livre–arbítrio/determinismo: como alguém pode aceitar toda a responsabilidade por suas ações, quando sabe que os antecedentes familiares, desequilíbrios hormonais e as forças sobrenaturais do mal contribuíram para seu comportamento? Uma das personagens de William Faulkner expressou–se assim:

"Não vou fazer. Mas não consigo evitar." O AA é bem menos ambíguo: todo participante tem que reconhecer a responsabilidade

total e completa por todo seu comportamento, até mesmo pelo que acontece durante um estupor alcoólico ou um blecaute (uma espécie de limbo, no qual o alcoólico continua a agir, mas com amnésia, sem percepção consciente). É proibido racionalizar.

Meu amigo prossegue: O AA me ajudou também a aceitar a noção do pecado original. Na verdade, embora muitos cristãos desprezem esta doutrina, o pecado original combina perfeitamente com as pessoas que freqüentam o AA.

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Expressamos esta verdade cada vez que nos apresentamos, dizendo que somos alcoólicos. Ninguém se esquiva dizendo que em alcoólico.

Para este meu amigo, a imersão nos Alcoólicos Anônimos significou encontrar a salvação

em seu sentido mais literal. Sabe que uma escorregadela poderia causar, ou melhor, causaria com certeza sua morte prematura. Mais de uma vez o companheiro dele dentro do AA atendeu seus chamados às 4h da madrugada, indo encontrá–lo encurvado em um restaurante escuro, escrevendo vezes sem conta em um caderno, como um garoto sendo castigado na escola: "Deus, ajuda–me a atravessar os próximos cinco minutos." Hoje ele aproxima–se de seu quinto aniversário de sobriedade, um marco importante de acordo com a avaliação do AA. E mesmo assim sabe que 50% das pessoas que vencem esta etapa acabam caindo de novo.

Saí impressionado da "igreja da meia–noite", mas ainda me perguntando por que o AA atende a determinadas necessidades que a igreja local não consegue atender, ou pelo menos não conseguiu, no caso de meu amigo. Pedi–lhe que apontasse a qualidade mais importante ausente na igreja e presente no AA. Ele olhou para sua xícara de café por um longo tempo, parecia estar assistindo ao líquido esfriar. Esperei ouvir uma palavra como amor, aceitação ou, por conhecê–lo bem, talvez ausência de institucionalismo. Em lugar disto, ele disse, bem baixo, uma única palavra: dependência.

E explicou: Nenhum de nós é capaz de prosseguir só, e não foi para isto que Jesus veio? Ainda assim, a maioria das pessoas na igreja apresenta um ar de satisfação consigo mesmas, com piedade ou superioridade. Não sinto que, conscientemente, elas se apóiem em Deus ou umas nas outras. Parece que a vida delas está em ordem. Um alcoólico se sente inferior e incompleto na igreja.

Ficou em silêncio um pouco, até que um sorriso apareceu em seu rosto. E concluiu

dizendo:

É engraçado. O que mais odeio em mim, meu alcoolismo, é exatamente o que Deus usou para me trazer de volta até Ele. Por ser alcoólico sei que não consigo sobreviver sem Deus. Talvez seja este o valor redentor dos alcoólicos. Talvez Deus nos esteja chamando a ensinar aos santos o que significa depender dEle e de sua comunidade na Terra.

A AIDS É UM CASTIGO DE DEUS

Alguns dos melhores momentos que passo "lendo" acontecem enquanto corro em volta do

lago em Chicago, equipado com meu toca–fitas pequeno, no qual ouço fitas com livros gravados. Certo dia de inverno as ruas sombrias da cidade e o céu acinzentado formaram o cenário perfeito para o livro que eu escolhera: A Journal of the Plague Year (Diário do Ano da Praga), de Daniel Defoe. Ele descreve em prosa, meticulosa e claramente, a peste bubônica que assolou Londres em 1665.

No relato (que apresenta a história em forma de ficção realista), Defoe vagueia pelas ruas de uma cidade fantasma. Mais de duzentas mil pessoas haviam fugido de Londres, e os que permaneceram se trancavam dentro de casa para se protegerem, aterrorizados quanto ao menor contato com outros seres humanos. Nas vias públicas principais, onde antes transitava grande número de pessoas, agora a relva crescia. "Dor e tristeza fixaram–se em cada rosto" –

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diz Defoe. Na época mais aguda da praga, entre 1500 e 1700 pessoas morriam a cada dia, e os corpos eram recolhidos à noite e enterrados em covas bem profundas. O livro descreve cenas horríveis: crianças mortas presas no abraço permanente do rigor mortis de seus pais, bebês vivos sugando, em vão, o seio da mãe recém–falecida.

Enquanto eu ouvia, o relato de Defoe tornou–se particularmente tocante à vista de uma praga da atualidade. Eu e minha esposa moramos em um bairro habitado por muitos homossexuais e não poucos usuários de drogas. Não pude evitar uma reflexão sobre os paralelos entre o tempo de Defoe e o nosso ao correr perto de uma clínica para pacientes de Aids. Vi os cartazes colados em postes ornamentais, informando que aquele era um lugar que cuidava de pessoas com o vírus HIV. Em comparação com a Grande Praga, a epidemia de Aids atingiu uma proporção muito menor da população, mas despertou uma reação de histeria notavelmente semelhante.

Na época de Defoe, parecia que a ira de Deus, derretida, era despejada sobre todo o planeta. Dois cometas brilhantes apareciam no céu toda noite: alguns diziam que eram o sinal certo de que a mão de Deus estava por trás da praga. Profetas fora de si perambulavam pelas ruas. Um repetia o grito de Jonas: "Ainda quarenta dias e Londres será destruída!" Outro andava por toda parte nu, balançando uma panela de carvão em brasa sobre sua cabeça para simbolizar o julgamento de Deus. Outro ainda, também nu, repetia com tristeza a mesma frase o dia inteiro: "Oh, o grande e terrível Deus! Oh, o grande e terrível Deus...."

Temos nossa versão moderna destes profetas. A maioria deles, porém, anda bem vestida e tende a estreitar o espectro do julgamento de Deus, focalizando–o em um grupo de pessoas, em particular os homossexuais, representados desproporcionalmente entre os que sofrem de Aids nos Estados Unidos. Em alguns círculos, quase consigo detectar um suspiro de alívio e satisfação porque afinal "eles estão recebendo o que merecem". O ex–ministro da Saúde, e. Everett Koop, cristão evangélico, recebeu caixas e caixas de cartas repletas de ódio sempre que ousou propor que o motivo de pessoas contraírem a Aids não era o fato de pecarem e merecerem ser castigadas.

A crise da Aids mistura–se com um anseio misterioso entre os seres humanos: o desejo profundo de que o sofrimento fosse atrelado ao comportamento. Há um livro em minha estante, Theories of Illness (Teorias da Doença), relatando uma pesquisa feita em 139 grupos tribais de todo o mundo. Apenas quatro deles não pensam na doença como sinal de desaprovação de Deus (ou dos deuses). O autor afirma que os poucos grupos que duvidavam dessa doutrina provavelmente mudaram sua crença após contato prolongado com a civilização moderna.

Praticamente só dentre todas as civilizações da história, a nossa, moderna, secular, questiona se Deus age diretamente em acontecimentos humanos como pragas e catástrofes naturais. Estamos confusos. Será que Deus escolhe uma cidade do sul dos Estados Unidos para ser arrasada por um tornado como alerta do julgamento final? Será que impede a chuva decair na África como sinal de sua desaprovação? Ninguém sabe a resposta com certeza. Mas a Aids, aí a história é diferente. Indiscutivelmente, a probabilidade de transmissão da Aids é maior entre os que praticam o sexo promíscuo ou compartilham agulhas sujas.

Para alguns cristãos, esta doença parece atender, por fim, ao anseio de uma ligação nítida entre comportamento e sofrimento como punição. De modo geral, a conexão já foi estabelecida, da mesma forma que fumar aumenta o risco de câncer, obesidade favorece o aparecimento de problemas do coração e a promiscuidade heterossexual amplia a possibilidade de doenças venéreas. As conseqüências naturais desses comportamentos envolvem, em muitos casos, sofrimento físico. Os cientistas reconhecem este fato e advertem todos dos perigos. Mas a pergunta oculta permanece: será que Deus manda a Aids como uma punição específica, destinada a um alvo por Ele escolhido?

Outros cristãos não tem muita certeza. Acreditam em que é muito perigoso tomar o lugar de Deus, e até mesmo interpretar a história em nome dEle. Assim como os amigos de Jó, é muito fácil ser interpretado como mal–humorado ou presunçoso em vez de profético. Deus

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disse que a vingança Lhe pertence e sempre que nós, mortais, tentamos apropriar–nos dela, pisamos em terreno perigoso. Julgamento sem amor suscita inimigos e não convertidos. Entre os homossexuais que moram no mesmo bairro que eu as afirmações dos cristãos sobre a crise da Aids fez muito pouco no sentido de levá–los à reconciliação com Deus.

Até mesmo a ligação aparente entre causa e efeito quanto à Aids levanta perguntas de respostas complicadas. Que dizer de um "inocente" que adquire o vírus, como os bebês filhos de mães infectadas e aqueles que recebem transfusão de sangue? São amostras do julgamento de Deus? E se, de repente, alguém encontrar a cura, será que isto significará que a punição de Deus acabou? Os teólogos europeus debateram durante quatro séculos sobre qual seria a mensagem mandada por Deus durante a Grande Praga; mas bastou um pouco de veneno de rato para pôr um fim a todas aquelas questões angustiadas.

Ao refletir sobre estas duas pragas, o flagelo da peste bubônica que matou um terço da humanidade e o flagelo moderno, acompanhado de histeria semelhante, pego–me recordando um incidente da vida de Jesus, registrado em Lucas 13:1–5. Algumas pessoas lhe perguntaram sobre uma tragédia daqueles dias, e eis como Ele respondeu:

Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis. E aqueles dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, cuidais que foram mais culpados do que todos quantos homens habitam em Jerusalém? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.

Depois contou uma parábola sobre a misericórdia de Deus, que constrange o pecador. Ele

parece dizer que nós, os "espectadores" da catástrofe, temos tanto a aprender com o acontecimento quanto os próprios atingidos. Uma praga deveria ensinar–nos muitas coisas. Em primeiro lugar, humildade. E gratidão a Deus que, até aqui, tem mantido suspenso o julgamento que todos merecemos. E compaixão, aquela que Jesus demonstrou para todos que choram e sofrem. Finalmente, a catástrofe coloca juntos a vítima e o espectador, em um chamado geral ao arrependimento, lembrando–nos subitamente da brevidade da vida. Avisa–nos a nos prepararmos para a possibilidade de sermos a próxima vítima de um desabamento, ou do vírus da Aids.

Ainda não encontrei na Bíblia qualquer apoio para uma atitude de presunção: Ah, eles merecem o castigo; olhe como se debatem. Na verdade, a mensagem de uma praga parece ser dirigida tanto aos sobreviventes quanto aos que são atingidos por ela. Acredito em que a Aids contenha tanto significado para nós que fazemos nossa corrida em torno da clínica quanto para aqueles que sofrem dentro dela.

UM BOM COMEÇO

Algumas pessoas que vão à Índia afirmam que poderiam reconhecer o país pelo cheiro,

mesmo se descessem do avião de olhos vendados. Para meu nariz ocidental, o odor do país parece ser composto, em partes relativamente iguais, de incenso, urina de animais, sândalo, estrume de vaca, flores, fumaça de óleo diesel, poeira e cânfora. Misture moléculas de todos estes elementos e, acredito, você encontrará o odor da Índia. O Dr. Paul Brand passou quase metade de sua vida na Índia, e ama o país de todo o coração. Ele me acompanhou na visita

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que fiz ao país, e me levou em uma excursão inesquecível para conhecer o serviço médico indiano.

Em alguns aspectos, a medicina na Índia é bem semelhante à dos Estados Unidos e da Europa; afinal, muitos médicos são, treinados nas mesmas universidades. Existe lá tomografia computadorizada, ressonância magnética e outros produtos da magia tecnológica, espalhados pelo país de dimensões quase continentais. Mas, fora das cidades, nos milhares de vilarejos, a medicina pode ser pouco mais do que uma aventura. Como um médico consegue reidratar vítimas de cólera quando não há água destilada á disposição? Ora, é claro que pendura um coco no suporte do soro. A mistura glicosada no interior do coco é tão estéril e quase tão nutritiva quanto qualquer produto médico adquirido dos fornecedores de artigos hospitalares. Ainda assim, é um pouco esquisito ver um longo tubo de borracha saindo do braço do paciente e penetrando em um coco verde brilhante.

Nos Estados Unidos, a Cruz Vermelha faz apelos constantes para que as pessoas doem sangue. Mas na Índia os doadores recebem um pequeno pagamento, de forma que outros problemas surgiram. Um trabalhador ganha mais com a doação de sangue do que em um dia de trabalho árduo. Como evitar, digamos, que um puxador de riquixá (cadeirinha ou liteira de uso no extremo Oriente, leve de duas rodas, puxada por um homem a pé) vá a um hospital diferente a cada dia para doar um pouquinho de sangue? As equipes médicas criaram um método de tatuar os doadores para evitar que os mais afoitos minem suas reservas sanguíneas.

Até mesmo os hospitais mais modernos, como o Hospital Cristão da Escola de Medicina de Vellore, são obrigados a lidar com o problema, onipresente, da invasão de animais. Em Vellore, os corvos costumavam unir–se e conspirar para roubar o alimento dos pacientes. Um dos pássaros, que são muito espertos, liderava o ataque, voando para dentro do prédio através de alguma porta aberta e puxava com o bico o pano que forra a bandeja onde é colocado o alimento. No momento em que toda a comida caía no chão, os outros conspiradores corriam para a festa. Já haviam aprendido a ignorar os acenos e gritos dos pacientes inválidos. Por fim, o hospital colocou nos corredores uma tela fina de aço à prova de corvos. Hoje a equipe que trabalha em Vellore tenta encontrar um modo de manter os macacos do lado de fora do hospital.

As missões que trabalham com medicina na Índia introduzem algumas alterações em suas práticas. Denominações e missões ocidentais retiraram o apoio financeiro visando a encorajar a transformação dos hospitais em instituições com mais características nativas do país. Esta atitude bem–intencionada, porém, pode ter efeitos negativos. Os hospitais, para sobreviver, precisam de oferecer serviços especializados, voltados para a elite, visando a atrair clientes que possam pagar. Assim, muitos hospitais missionários precisam enviar necessitados para o atendimento fornecido pelo governo, ou simplesmente mandá–los embora, porque inexistem recursos para atender a eles. As instituições mais progressistas vêm buscando meios de superar este problema, e o hospital de Vellore é, muitas vezes, visto como modelo.

Esse hospital tem a reputação de ser uma das melhores instituições da Ásia. Na Índia, foi o primeiro a oferecer cirurgia torácica, hemodiálise, cirurgia do coração, microscópio eletrônico e neurocirurgia. Não é raro que príncipes árabes viagem atÉ à remota cidade de Vellore para tratamento de saúde. Há alguns anos, porém, os diretores da escola de medicina perceberam que enfatizavam demais o treinamento dos alunos para o trabalho na cidade. Raramente um médico formado lá era capaz de fazer um diagnóstico sem acesso a um aparelho de eletrocardiograma ou a laboratórios sofisticados. Para reverter essa tendência, a escola construiu outro hospital, rústico, uma construção de barro e sapé, aberta, reproduzindo as condições existentes nas vilas. Hoje, os alunos são obrigados a complementar seus estudos neste hospital, usando apenas os recursos médicos presentes nas vilas remotas da Índia.

Além disto, a escola realiza excursões regulares a regiões ainda mais remotas. Em determinado dia do mês, rodos os doentes ou feridos de um lugarejo se reúnem sob uma certa árvore. Uma van da escola chega, e os jovens médicos e atendentes descem, armam mesas de exame e começam uma rotina de injeções, colocação de ossos no lugar e pequenas cirurgias.

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Desta forma, o treinamento na escola de medicina abrange três níveis de cuidados: atendimento sofisticado no hospital, trabalho no hospital mais simples, de ambiente rural e clínicas móveis, com atendimento básico. Hoje, não apenas centenas, mas muitos milhares de pacientes recebem cuidados médicos todos os meses.

A Índia não pode ter a esperança de fornecer cuidados médicos básicos para todos seus cidadãos. Apenas 20% da população possuem instalação de esgotos e água potável. Basta visitar a cidade santa de Varanasi, no Rio Ganges, para se perceber contra o que os profissionais de saúde tem que lutar. Carcaças de cachorros e de búfalos flutuam pelo rio, algumas vezes servindo de balsa para os urubus, que se alimentam delas. As vacas sagradas andam à vontade na água, defecando e urinando. E ainda assim milhares de peregrinos vão até lá todos os dias e tomam seus banhos rituais nas escadarias sagradas: mergulham sete vezes no rio, escovam os cientes e depois, com muita solenidade, engolem a água santa.

Será necessária uma completa revolução apenas para mudar a percepção da população local sobre a saúde, quanto mais para criar uma superestrutura para lhe oferecer tratamento. Mas há esperança, grande parte da qual vem no nome de Cristo. Uma estatística reveladora mostra o fruto de dois séculos de trabalho missionário fiel: dentre os quase 1 bilhão de habitantes da Índia, menos de 3% se dizem cristãos. Ainda assim, os cristãos são responsáveis por mais de 18% do atendimento de saúde do país. Uma população quase igual à metade da população dos Estados Unidos, formada de hindus, muçulmanos, siques, jainistas, parses e comunistas recebe atendimento de pessoas treinadas em lugares como Vellore.

Apesar dos erros cometidos pelos missionários, em face de um paternalismo presunçoso, os cristãos deram à Índia um legado inspirado de educação e tratamento médico. Se um camponês daquele país ouvir a palavra "cristão" – e talvez ele jamais tenha ouvido falar de Jesus Cristo – a primeira imagem a aparecer em sua mente será, muito provavelmente, a de um hospital, ou de uma van cheia de médicos que aparece no lugar onde vive uma vez por mês para fornecer atendimento pessoal, gratuito, no nome de Cristo. Certamente não é o Evangelho completo, mas já é um bom começo.

ÉTICA QUE VALE A PENA

Ernest Hemingway nasceu em Oak Park, no Estado americano de Illinois, e descreveu sua

cidade como "uma vila com gramados largos e mentes estreitas". A Oak Park moderna, porém, esforça–se para alterar os adjetivos usados por Hemingway com uma investida corajosa contra as mentes estreitas. Não faz muito tempo que essa cidade, que fica bem próxima a Chicago, criou um sistema de recompensa financeira para os cidadãos dispostos a temar conviver com vizinhos que não fossem brancos e pertencessem a classes sociais inferiores.

Funciona assim: se a pessoa possui um prédio cujos moradores são todos da mesma raça, pode conseguir um prêmio de US$ 1000 permitindo que os governantes da cidade selecionem seus novos inquilinos. Os responsáveis pela seleção trabalharão no sentido de levarem famílias de minorias raciais a morarem em regiões onde só habitam brancos. Também visam a incentivar brancos a se mudarem para bairros onde tradicionalmente só moram membros das minorias raciais. Os idealizadores do projeto esperam que o incentivo financeiro atraia os senhorios, levando–os a aceitar inquilinos de várias raças.

Essa lei me recorda uma proposta apresentada como pilhéria na revista Harpers, há mais de dez anos. Começava assim:

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Enfrentemos a realidade. Apelos à ética e a altos ideais jamais convencerão os americanos a mudarem seus padrões de comportamento. A única forma de forçar a mudança é fazer com que ela valha a pena financeiramente. Então ver–se–á alguma ação.

Prosseguia apresentando um programa nacional, muito mais abrangente do que o de Oak

Park. Perguntava, brincando, que aconteceria se o Congresso aprovasse uma lei que concedesse desconto anua! de US$ 4000 nos impostos para todas as famílias que fossem vizinhas de membros de minorias raciais.

De acordo com o autor, o tesouro federal, na realidade, economizaria dinheiro, porque poderia acabar com outros programas bem menos eficazes, que requerem gastos do governo. E, da noite para o dia. o mercado faria milagres quanto à reconciliação racial. O valor das propriedades subiria, em vez de cair, quando as comunidades passassem a ser habitadas por pessoas das mais variadas minorias. Sendo assim, estas seriam as pessoas mais procuradas para morarem nos melhores lugares. Os jornais trariam anúncios como este:

Qualquer família negra ou hispânica que desejar mudar–se para o quarteirão tal da rua tal receberá US$ 1500 em dinheiro. Todas as despesas com a mudança serão pagas pelos moradores do quarteirão. Os comerciantes locais oferecem vários prêmios.

A abordagem dinheiro em lugar de ética, primeiro sugerida em um artigo cômico e agora

adotada abertamente em Oak Park, oferece uma solução requintada para um problema social. Combina engenhosidade com a antiga motivação do lucro. Nem mesmo o mais endurecido dos intolerantes conseguirá resistir ao incentivo do lucro.

* * * Oak Park voltou a aparecer nas notícias quando o ex–Presidente Jimmy Carter participou

de um evento beneficente que visava a levantar recursos para uma organização cristã denominada Habitat for Humanity. Depois de participar de um banquete muito elegante, o ex–presidente apareceu em um bairro pobre de Chicago, vestindo uma calça jeans e uma camiseta surrada. Mais uma vez ele contribuía com seu conhecimento de marcenaria para reconstruir casas arruinadas em favelas. Os repórteres eram tantos que não conseguiam espaço suficiente para registrar um ex–líder mundial manejando um martelo nas favelas de Chicago.

A abordagem que a Habitat for Humanity faz dos problemas sociais diverge da que se encontra em experiência em Oak Park. A organização opera não em subúrbios ricos, mas em áreas arruinadas, escondidas em cidades envelhecidas, onde ninguém deseja viver. Os participantes não recebem qualquer incentivo financeiro. Pelo contrário, voluntários como Jimmy Cárter trabalham durante muitas horas sem receber qualquer pagamento. As famílias pobres selecionadas para morar nas casas reformadas trabalham junto com os voluntários, em igualdade de esforços. Ninguém realiza qualquer investimento que venha a ter retorno monetário e nem tem desconto em impostos. A Habitat concede empréstimos sem juros para os novos donos das casas. Em lugares como Chicago, casais cristãos comprometidos com sua fé se mudam para o bairro, servindo de exemplo para os pobres e levando estabilidade social até à região.

As duas abordagens do mesmo problema levaram–me a pensar na questão global de reforma social. A Prefeitura de Oak Park e a Habitat for Humanity compartilham os mesmos alvos: habitação satisfatória para os pobres e uma forma de acabar com o impasse da discriminação. Mas as técnicas usadas para chegar ao alvo diferem amplamente. Oak Park espera "consertar" sua sociedade através, em primeiro lugar, da mudança do ambiente e depois do sistema de valores dos variados grupos minoritários. Para alcançar este objetivo, confia em um motivador poderoso: a cobiça humana. O plano é criativo e racional – um exemplo do que há de melhor no reino deste mundo.

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Em contraste com isto, a Habitat for Humanity trabalha para produzir uma mudança muito mais radical em um grupo muito menor de pessoas. Acredita que não basta que as pessoas com recursos convidem representantes selecionados dos grupos minoritários para morarem com elas. Antes, as pessoas com recursos precisam de ir, voluntariamente, até aos locais onde há necessidade, doar seu tempo, suor, sua família e seu amor. A esperança é a de que haja mudança não apenas no ambiente, mas no coração das pessoas. Nem mesmo o mais poderoso motivador baseado na cobiça é capaz de desempenhar esta tarefa. O plano da Habitat envolve risco e sacrifício, sem garantia de recompensa, o que há de melhor no reino que não é deste mundo.

Os moradores de Chicago viram dois momentos diversos de Jimmy Carter: o distinto ex–presidente discursando em um acontecimento elegante em Oak Park e depois o mesmo homem manejando um martelo na região pobre da cidade. O Sr. Cárter já participou dos dois reinos. Houve um tempo em que ele poderia ter ordenado a construção de milhares de casas com uma simples assinatura. Hoje ajuda os pobres como todos os outros: em pessoa, um prego de cada vez. Assistindo às reportagens sobre a visita dele a Chicago, a comparação entre as atividades, não pude deixar de me perguntar qual delas lhe trouxe maior satisfação pessoal.

Uma coisa, porém, intrigou–me: por que quando um ex–Presidente chega à cidade para construir casas para os pobres centenas de pessoas pagam US$ 50 para ouvi–lo falar sobre isso em um banquete elegante, mas só umas poucas pegam um martelo e trabalham junto com ele?

ESCORPIÕES, VERMES E MÍSSEIS

Certa vez, passei uma noite em claro, deitado dentro de uma barraca na Somália. No auge

de uma das muitas crises na África, eu visitava um dos campos de refugiados para escrever um artigo. Barracas e abrigos improvisados espalhavam–se por milhares de metros quadrados, em todas as direções à minha volta. Avistavam–se cabanas até o horizonte, parecendo pequenas elevações em fila. Aquele campo abrigava mais de sessenta mil refugiados. A noite estava quente, e eu queria caminhar ao ar livre, olhando para cima, porque a Via–Láctea brilhava maravilhosamente no claro céu equatorial. Mas os funcionários que trabalhavam ali me haviam avisado para não fazer caminhadas à noite, por causa dos escorpiões.

Contaram–me história horrorosas de escorpiões que se escondiam, maliciosamente, nas toalhas e nas roupas e, especialmente, nos sapatos. As vítimas de suas picadas enfrentam uma dor sem igual – uma enfermeira me disse que seria como a dor do parto multiplicada doze vezes – durante pelo menos duas semanas. Há bem pouco tempo, um pequeno escorpião caíra do teto de uma barraca bem no rosto de um médico adormecido. Até o dia em que me contaram a história ele ainda recebia injeções na bochecha, de quatro em quatro horas, numa tentativa de abrandar a dor.

Deitado ali, mas sem conseguir dormir, ouvi um som indistinto, sinistro, algo como o lamento penetrante de uma muçulmana frente à morte de um ente querido, embora o tom fosse mais animal do que humano. Mais tarde me disseram que aquele era o som de um nômade somali picado por um escorpião. O ar do deserto propagava o som por distâncias muito grandes, de forma que, a cada hora que passava, o grito aumentava de volume. Ao raiar do dia, o nômade chegou ao campo de refugiados em busca de tratamento.

Deixei o campo alguns dias depois e, enquanto meu caminhão partia, pensamentos deprimentes me acompanharam. O médico responsável pelo campo me dissera que um em cada seis refugiados provavelmente morreria, de desnutrição ou doença, no próximo mês.

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Mas, o que me atingiu com uma força terrível foi que, durante minha estada ali, eu despendi muito mais energia e tempo me preocupando com aqueles escorpiões danados do que com aqueles aproximadamente dez mil refugiados fadados a morrer.

* * *

Uma vez um profeta hebreu, chamado Jonas, assentou–se à sombra de uma aboboreira

perto da grande cidade de Nínive. Quando um verme comeu toda a planta, deixando–o exposto ao sol escaldante e ao vento ardente que vem do leste, ele se aborreceu, encheu–se de amargura e ficou tão bravo que quis morrer.

Deus escolheu este momento em particular para dar a Jonas uma lição sobre as prioridades divinas. Mesmo depois do episódio com o grande peixe, ele não aceitou totalmente sua tarefa como missionário aos assírios. Assírios! Os nazistas daqueles dias. Aquele povo cruel, pagão, que destruiu civilizações inteiras e levava os cativos com ganchos na boca. Gente assim dificilmente mereceria outra oportunidade. Foi o maior dos insultos enviá–lo, um profeta hebreu, para falar com seus arquiinimigos. Ninguém se importava se Nínive fosse destruída dentro de quarenta dias. E quanto mais enxofre, melhor.

Mas eis o que Deus disse ao profeta rabugento: Tiveste tu compaixão da aboboreira, na qual não trabalhaste, nem a fizeste crescer, que numa noite nasceu, e numa noite pereceu; e não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive em que estão mais de cento e vinte mil homens que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e também muitos animais?

* * *

Era uma vez alguns oficiais, dos mais graduados no governo dos Estados Unidos.

Assentaram–se em torno de uma mesa para discutir maneiras de libertar cidadãos americanos mantidos como reféns no Oriente Médio. Dentre as várias tentativas, uma frutificou, um plano envolvendo o envio de milhões de dólares de equipamentos militares para o Irã.

Quando a notícia se espalhou, os jornais se dedicaram a contar as histórias sobre troca de armas por reféns. Os editoriais expressavam ultraje porque os Estados Unidos barganharam com uma nação hostil, que apoia o terrorismo. Congressistas censuraram o fato de lucros com a venda de armas serem desviados para sustentar uma guerra suspensa na América Central. Membros de comissões e investigadores especiais esquadrinharam os documentos de remessa e registros telefônicos para determinar quem sabia do quê, e quando. As leis foram violadas? A Casa Branca abalou o equilíbrio constitucional do poder? Estas questões foram motivo de debates acalorados na televisão, e também foram elas que enfraqueceram seriamente a administração de Reagan nos dois últimos anos de seu mandato.

É estranho, mas muito pouca gente expressou o que me parece ser a questão mais básica de todas: a questão moral fundamental por trás da permuta. Resumindo: os Estados Unidos ofereceram sessenta milhões de dólares em armas — equipamentos planejados com perfeição para causar a morte – visando a salvar a vida dos reféns. Ao olhar matematicamente, trocamos a morte de muitos e muitos iraquianos (os prováveis alvos dos mísseis que, na época, eram nossos aliados) pela vida de seis americanos. Oliver North tentou calcular os números envolvidos. Anotou em um memorando remetido a seu chefe, John Poindexter:

"1 707 e/300 TOWs = 1 CIDEUA." Mais tarde ele explicou o que aquilo significava: "Um Boeing 707 carregado com 300 mísseis TOW antitanque é igual a um cidadão dos

Estados Unidos da América."

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Pouco tempo depois de uma das entregas de armas ao Irã. um míssil iraniano caiu numa rua em Bagdá, no Iraque, e matou quarenta e oito civis. Será que aquele míssil fora obtido na troca? Ao todo, dois mil mísseis antitanque foram remetidos para o Irã. Se apenas 10% deles conseguirem acertar o alvo, atingindo 200 tanques de guerra iraquianos e matando dois soldados em cada um, a conta é óbvia: 400 iraquianos mortos em troca de seis (ou três, como acabou sendo) americanos vivos.

Não questiono o direito de nosso país de defender, através da força, seus cidadãos. Mas, talvez lenhamos deixado de aprender uma lição em meio a todo o estardalhaço, e ainda não aprendemos, porque continuamos despachando, animadamente, bilhões de dólares em armas para outros países todos os anos. E talvez minha experiência na Somália e a de Jonas na Assíria, tão radicalmente diferentes das circunstâncias que cercaram o problema com o Irã, apontem para a mesma questão moral.

Será que meu conforto físico é mais significativo do que a sobrevivência de dez mil refugiados? O conforto de um profeta hebreu é mais importante do que a vida de 120 mil crianças assírias? E quantos estrangeiros mortos vale a vida de seis americanos?

Uma coincidência geográfica curiosa: as ruínas da antiga cidade assíria de Nínive se encontram na região que hoje é o Iraque.

PERDÃO E RECONCILIAÇÃO

Simon Wicsenthal sobreviveu aos campos de concentração, mas oitenta e nove membros

de sua família morreram nas mãos dos nazistas. Desde aquela época ele dedica grande parte de seu tempo a descobrir onde estão os ex–nazistas e os criminosos de guerra. As pessoas lhe perguntam, com freqüência, sobre esta obsessão: porque caçar homens de setenta e oitenta anos, por crimes que cometeram há meio século? Não há perdão para eles? Nenhuma forma de reconciliação? As respostas dele foram apresentadas em um livro fino, mas poderoso, intitulado The Sunflower (O Girassol).

O livro começa com uma história assombrosa, lembrança de um acontecimento da época em que Wiesenthal estava preso. Ele foi escolhido, por acaso, no meio de um grupo que trabalhava. Puxado para o lado, foi levado por uma escada até um corredor do hospital. Uma enfermeira o conduziu até um quarto escuro e o deixou sozinho com uma figura deplorável, envolta em panos brancos, deitada em uma cama. Era um oficial alemão, gravemente ferido, embrulhado em bandagens manchadas de amarelo. O rosto estava totalmente coberto por gaze.

Com voz fraca e trêmula, o homem passou a fazer um tipo de confissão solene. Contou sua infância e os primeiros dias no movimento da Juventude Hitlerista. Narrou a ação na fronteira com a Rússia e as medidas cada vez mais terríveis que a unidade da SS a que ele pertencia adotava contra a "gentalha judia". Depois, contou uma atrocidade terrível, quando a unidade reuniu todos os judeus de uma cidade, colocou–os em um prédio de madeira e pôs fogo. Alguns dos judeus, desesperados, com a roupa e o cabelo em chamas, pulavam do segundo andar, e os soldados da SS – ele inclusive – atiravam neles enquanto caíam. Passou a falar de um menino em particular, com cabelo preto e olhos escuros, mas sua voz falhou.

Wiescnthal tentou sair do quarto várias vezes, mas a cada tentativa a múmia viva estendia a mão fria e pálida e o detinha. Finalmente, depois quase duas horas, o alemão explicou por que convocara o prisioneiro judeu. Perguntara à enfermeira se ainda havia judeus vivos, e, se houvesse, queria que trouxessem um até seu quarto para uma última providência antes de morrer. Então, disse ao prisioneiro:

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"Sei que o que vou pedir talvez seja demais para você, mas sem sua resposta não posso morrer em paz."

E pediu que Wiscnthal o perdoasse por todos os crimes que cometera contra os judeus. Implorava perdão a um prisioneiro que poderia, no dia seguinte, morrer nas mãos de seus companheiros da SS.

Wisenthal permaneceu em silêncio por algum tempo, olhando fixamente para o rosto enfaixado do homem. Por fim, tomou sua decisão e, sem dizer uma palavra sequer, virou–se e saiu do quarto. Deixou o soldado com seu tormento, sem perdão.

No livro ele dedica noventa páginas a esta história. Nas outras 105, deixa que outros falem. Enviou a descrição do fato a trinta e dois pensadores – rabinos judeus, teólogos cristãos, filósofos seculares e estudiosos da ética – e pediu que dessem sua opinião. Queria saber se agira corretamente, ou se deveria ter perdoado o criminoso moribundo. A grande maioria respondeu que ele estava certo ao deixar o soldado sem perdão. Apenas seis pessoas acreditavam que erraram.

Alguns dos que não eram cristãos questionaram toda a noção de perdão. Consideraram–no um conceito irracional cujo único resultado é permitir que os criminosos escapem do castigo, perpetuando, assim, a injustiça. Outros concederam um lugar para a existência do perdão, mas classificaram os crimes nazistas como hediondos, além de qualquer possibilidade de perdão. Os argumentos mais persuasivos partiram de duas pessoas que insistiam em que o perdão só pode ser concedido pela própria pessoa que sofreu a injúria. Perguntaram que direito moral Wicscnthal teria de conceder o perdão em nome dos judeus que haviam morrido nas mãos daquele homem.

Não estou preparado para dar a resposta ao dilema terrível com o qual Simon Wiesenthal foi confrontado naquele quarto de hospital. Quanto mais não seja, as trinta e duas respostas provam que não há resposta simples para esta questão. Mas a Bíblia, na realidade, acrescenta um desdobramento interessante a um dos aspectos do dilema, com relação a um termo teológico antiquado que surge por todo o livro de Wiesenthal: "reconciliação". Uma frase do livro de II Coríntios nos convence de que temos, de fato, o direito de conceder perdão em nome de outra pessoa. Nesta passagem, Paulo anuncia que Deus nos deu "o ministério da reconciliação". E ele prossegue:

De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamo–vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus. (II Coríntios 5:20)

Paulo baseia o "ministério da reconciliação" no exemplo de Jesus, que, voluntariamente,

levou nossos pecados, de forma que podemos, através dEle, atingir a retidão de Deus. Que significa ser ministro da reconciliação, embaixador de Cristo que proclama o perdão

àqueles que pecaram contra outras pessoas que não você mesmo? Alguns cristãos vêm–se esforçando para colocar a reconciliação em prática indo, como "Testemunhas pela Paz", a locais de conflito na América Central e no Oriente Médio, colocando–se, deliberadamente, na linha de fogo. O bispo Desmond Tutu liderou um grupo, Comissão Verdade e Reconciliação, sancionado pelo governo da África do Sul, ajudando a trazer a cura aquele país dividido. Nos Estados Unidos, voluntários da Chuck Colsons Prison Fellowship entram em celas apinhadas de prisioneiros, onde o medo é constante, e proclamam o perdão e o amor àquelas pessoas a quem a sociedade excluiu, taxando–as de culpadas e sem valor.

Algumas igrejas organizaram seus esforços em Ministérios de Evangelismo e de Ação Social. Será que deveríamos pensar em um Ministério de Reconciliação? A necessidade de perdão não se restringe à América Central ou à Irlanda. Sempre que um casamento se desfaz, uma criança é abandonada, a inimizade separa grupos raciais ou sociais, em todas estas situações a reconciliação é necessária: é preciso que alguém tome sobre si a carga dos outros e ofereça o perdão, antes mesmo que o ofensor o peça.

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Um homem chamado Will Campbell tomou a frase "Reconciliem–se" como seu lema de vida. Em sua autobiografia, intitulada Brother to a Dragonfly (Irmão de uma Libélula), conta que houve um tempo em que seu amor e sua compaixão abrangiam os negros do sul dos Estados Unidos e os oprimidos, mas excluía os trabalhadores braçais brancos da mesma região e os membros da Ku–Klux–Klan, Depois, porém, que três de seus amigos chegados foram assassinados por esta instituição, ele ouviu uma mensagem da parte de Deus que ia contra todos os instintos humanos. Ele deveria ir, como ministro da reconciliação, até o grupo que matara seus amigos. Deveria transformar–se, como de fato transformou–se, em um ministro para pregar a eles.

Penso que o título de "ministro da reconciliação" era um dos que Paulo chamava sobre si com mais ênfase. E tinha motivos para isto. Tinha, ele também, sua cota de "crimes de guerra", cometidos contra os cristãos. Deus o perdoou por aqueles crimes, e o apóstolo aos gentios, ao que parece, nunca deixou de lado o sentimento surpreendente de ser reconciliado.

O VALOR DE UM SER HUMANO

Eu costumava encontrar–me com certa regularidade com um pastor bondoso e sábio.

Muitas vezes os momentos que passávamos juntos eram tranqüilos, sem maiores acontecimentos. Mas uma tarde ficará, para sempre, marcada a ferro em minha memória. Era um dia de tempestade em Chicago, e assentei–me, encolhido de frio apesar de meu suéter de lã, bem perto de um aquecedor que assobiava. Naquele dia, fiz as perguntas. Havia lido há pouco tempo, em um artigo no boletim da igreja, que o pastor participara da libertação dos prisioneiros do campo de concentração em Dachau, ao final da II Guerra Mundial. Eu queria saber sobre a experiência dele.

Ele olhou para o outro lado, e parecia focar um espaço branco na parede. Manteve–se em silêncio durante, pelo menos, 1 minuto. Seus olhos se moviam rapidamente, como se reconstruísse a cena de quarenta anos antes. Finalmente, falou e, durante os vinte minutos seguintes, recordou as visões, sons e cheiros – estes em especial – que receberam sua unidade ao marcharem através dos portões de Dachau, que ficava bem perto de Munique. Durante várias semanas os soldados ouviram rumores terríveis sobre os campos de concentração, mas, acostumados à propaganda de guerra, não deram muita confiança às conversas. Nada os preparara, e não havia nada que pudesse tê–los preparado, para o que encontraram naquele lugar.

Eu e um de meus colegas recebemos a tarefa de cuidar de um vagão de carga. Dentro dele havia corpos humanos, em pilhas bem arrumadas, exatamente como a madeira que se coloca do lado de fora de casa, empilhada, que se pega depois para acender a lareira. Os alemães, sempre meticulosos, haviam planejado as pilhas, alternando cabeças e pés, e acomodando os diversos tamanhos e formatos de corpos. Nossa tarefa era como mudar mobília de lugar. Pegávamos cada corpo – tão leve! – e o carregávamos para uma área predeterminada. Alguns dos rapazes não conseguiram executar este trabalho. Ficavam do lado das cercas de arame farpado, vomitando. Não pude acreditar quando encontramos a primeira pessoa viva na pilha. Mas era verdade. Incrível, mas alguns daqueles defuntos não eram defuntos. Eram seres humanos. Gritamos chamando os médicos, e eles começaram a trabalhar imediatamente para salvar aqueles sobreviventes. Passei duas horas no vagão, e neste intervalo de tempo passei por todo tipo de emoções conhecidas: fúria, pena, vergonha, enjôo: poderia dizer que senti todas as

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emoções negativas. Vinham em ondas, exceto a fúria. Esta permaneceu, como um combustível dando forças para o trabalho. Não há palavras para descrever adequadamente a cena. Depois de levarmos os poucos sobreviventes para uma clínica improvisada, voltamos nossa atenção para os oficiais da SS responsáveis pelo campo de Dachau, que eram mantidos sob guarda em um prédio simples ali perto. O Serviço de Inteligência do Exército estabelecera um centro de interrogatórios nas redondezas. Ficava fora do campo de concentração, e para chegar até lá era preciso descer uma colina e atravessar um bosque. O capitão pediu um voluntário para escoltar o grupo de doze prisioneiros da SS até o centro de interrogatórios, e Chuck levantou logo sua mão. Ele era um dos soldados mais fortes, impetuosos e volúveis de todo nosso grupo. Media quase l,60m de estatura, e seus braços eram tão longos que as mãos chegavam perto dos joelhos, como as de um gorila. Era natural de Cicero, subúrbio de Chicago conhecido principalmente pelo racismo e associação com Al Capone. Chuck dizia que havia trabalhado para o criminoso antes da guerra, e nenhum de nós duvidava disto. Bem, Chuck agarrou uma metralhadora e foi cutucando o grupo de prisioneiros, para que andassem rumo à trilha. Eles andavam na frente dele, com as mãos amarradas atrás da cabeça, os cotovelos sobressaindo–se dos lados do corpo. Alguns minutos após desaparecerem no meio das árvores, ouvimos três longas rajadas de metralhadora. Todos nos abaixamos rapidamente: poderia haver um atirador alemão escondido no bosque. Mas logo Chuck apareceu, caminhando calmamente, a fumaça ainda saindo da ponta da arma. E, com um olhar meio de lado, disse que todos os prisioneiros haviam tentado fugir.

Interrompi a narrativa para perguntar se alguém comunicou às autoridades o que Chuck

havia feito ou se houve alguma atitude no sentido de discipliná–lo. O pastor riu e olhou para mim com certa condescendência, como se dissesse: "Deixa de ser bobo, estávamos em guerra."

Não, e é isso que me incomodou. Naquele dia senti–me chamado por Deus para ser pastor. Primeiro, o horror dos corpos no vagão. Não consegui assimilar aquela cena. Nem ao menos sabia que existia um mal tão absoluto. Mas, quando o vi, soube, acima de qualquer dúvida, que precisava de dedicar minha vida ao serviço de quem se opunha a este Mal – servindo a Deus. Depois, o incidente com Chuck. Sentia um medo que chegava a me deixar enjoado de que o capitão me convocasse para acompanhar o próximo grupo de soldados da SS, e pavor ainda maior porque, se fosse chamado, poderia fazer exatamente o mesmo que Chuck fizera. A besta que havia dentro deles estava também dentro de mim.

* * * Não consegui extrair mais reminiscências do pastor naquele dia. Não sei se ele vivenciara

o suficiente do passado ou se sentia obrigado a discutir meus assuntos. Mas, antes de deixar a história de lado completamente, fiz uma pergunta que, hoje, parece–me bem petulante:

Diga–me, depois de um chamado tão profundo para o ministério – confrontando–se com o maior mal do século como se sente preenchendo seus dias assentado em seu gabinete, ouvindo jovens de classe média divagar sobre seus problemas pessoais?

A resposta veio rápida, como se ele se perguntasse muitas vezes a mesma coisa:

Na verdade, vejo uma ligação. Sem ser melodramático, algumas vezes penso no que poderia ter acontecido se uma pessoa treinada e sensível fizesse amizade com Adolf Hitler enquanto ele ainda era jovem e impressionável, enquanto vagava pelas ruas de

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Viena, em seu estado de confusão. A palavra poderia ter evitado todo aquele derramamento de sangue: evitado Dachau. Nunca sei quem se assentará nesta cadeira onde você está agora. E mesmo se terminar desperdiçando minha vida com zés–ninguém ... aprendi no vagão de carga que não existem zés–ninguém. Os corpos que encontramos com o coração ainda batendo eram o mais próximo que se pode chegar de ninguém: meros esqueletos envoltos em pele de papel. Mas eu faria qualquer coisa para manter aquelas pobres pessoas destruídas vivas. Nossos médicos passaram a noite acordados tentando salvá–las; alguns soldados de nosso grupo perderam a vida tentando libertá–las. Não existem ninguéns. Aprendi naquele dia em Dachau o que significa a imagem de Deus em um ser humano.

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OUTRO MUNDO

• Por que a Ciência e a Teologia têm tanta dificuldade para se entender? • Existe mesmo um "mundo invisível" em algum lugar? E que diferença isto faz para

mim? • Por que as pessoas demonstram tanto interesse em experiências de "quase morte", mas

não se interessam pelo céu? • Por que as pessoas demonstram tanto interesse em experiências de "quase morte", mas

tão pouco interesse pela morte em si? • Quanto da Bíblia é dedicado a abordar a Crucificação e quanto à Ressurreição? Será

que a dotação de espaço não deveria ser ao contrário? •Se a Ressurreição fosse transmitida pela televisão, o mundo inteiro hoje acreditaria em

Jesus? Que levaria todo o mundo a acreditar em Jesus? • Qual deveria ser a aparência de um Cristão? E seu perfume?

CUIDADO COM OS BURACOS–NEGROS

A Ciência e a Teologia mantêm um relacionamento delicado desde a época de Galileu e

Copérnico. Em alguns aspectos, o cristianismo não conseguiu recuperar–se por completo da revolução cosmológica que retirou a humanidade do centro do Universo e a confinou a uma posição insignificante. Talvez seja em decorrência desta postura de resistência aos avanços científicos, mas poucos pensadores cristãos da atualidade parecem beneficiar–se com o notável desenvolvimento da física moderna. A sua maneira, Einstein e Bohr empreenderam uma revolução tão espetacular quanto a de Copérnico, embora em direções novas, chocantes para muitos.

Para começar, não apenas a humanidade, mas cada indivíduo, homem ou mulher, recuperou, através da física moderna, sua posição de figura central na história do Universo. Porque, se extrairmos apenas um ensinamento da física moderna, será este: o indivíduo consciente é um componente essencial de, bem... de tudo. Na física de Newton, os indivíduos não ocupam lugar especial no Universo, exceto como participantes ocasionais no fenômeno

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estabelecido de causa e efeito. Mas alguns cientistas do século XX defendem que a própria realidade da ocorrência de um evento depende da existência de um observador.

Como disse Bernard D'Espagnat na revista Scientific American: A doutrina que afirma ser o mundo formado por objetos cuja existência independe da consciência humana acaba por entrar em conflito com a mecânica quântica e com os fatos verificados por experiências.

Em outras palavras: ele questiona até mesmo a existência das coisas fora da consciência

humana. Apesar das opiniões contrárias, o indivíduo importa muito, e o observador desempenha papel essencial. Os físicos com a alma um pouco mais poética repetem ditados como: "Corte uma folha de grama e você abalará o Universo."

O leigo rapidamente perde a confiança no Reino Encantado da relatividade e da física quântica. Alguém nos ensina que nossa poltrona favorita é formada por grandes espaços vazios preenchidos por alguns átomos que giram a toda velocidade. Ainda assim, nós a vemos como objeto sólido e assentamo–nos nela. Aprendemos que o tempo varia, dependendo da força da gravidade e do movimento, e que um astronauta que parra para o espaço poderá retornar à Terra trinta e seis anos mais novo do que seu irmão gêmeo que aqui permaneceu. Apesar disto, continuamos a olhar para o relógio de pulso, confiando em que ele nos informará a hora certa de entrar no serviço. Parece melhor deixar de lado este mundo estonteante da física moderna, com suas equações tão longas que vão de uma ponta a outra do quadro–negro e com seus termos amedrontadores como antimatéria, espuma quântica e buraco–negro. Com algumas poucas exceções, na maioria dos casos é melhor depender do bom e velho Newton.

Mas os cristãos não devem voltar as costas à física moderna com tanta facilidade, porque muitos de seus princípios sobre a natureza do tempo e do espaço foram provados por cientistas empreendedores que lançaram raios–laser até à lua, fotografaram estrelas durante eclipses do sol e fizeram com que relógios atômicos viajassem em torno do globo terrestre levados por aviões a jato. Além diste, as descobertas notáveis que as pessoas comentam com espanto infantil apresentam novos caminhos para a compreensão de algumas doutrinas teológicas mais complicadas.

Pensemos em uma destas doutrinas: Deus não está preso ao tempo. Os cristãos vêm repetindo, há muitos e muitos anos que "Aos olhos de Deus mil anos são como um dia", expressando sua convicção de que a visão de Deus sobre tempo é diferente da nossa. Dizemos que Ele está além do tempo e do espaço. Para nós, a história humana é uma seqüência de quadros fixos, apresentados um após o outro, como em um filme. Mas Deus vê o filme inteiro de uma só vez. Embora os cristãos repitam esta crença e quase todos os teólogos, desde Agostinho, hajam–se ocupado dela, ninguém consegue entender por completo.

Aparece a física moderna. Hoje nos ensinam que o tempo depende do movimento e da posição relativa do observador. Tomemos um exemplo bem primitivo. Olhando para o céu, às 15h 12min, vejo uma estrela brilhante, o sol, que paira no espaço a uma distância de aproximadamente 150 milhões de quilômetros. Na verdade, a luz que vejo partiu da estrela há 500 segundos, e viajou à velocidade de 300 000km/s, embora eu não me dê conta de estar enxergando o resultado do que aconteceu no astro às 15h 4min (horário da Terra). Se o Sol subitamente desaparecesse em face de um ataque furtivo de um buraco–negro voraz, eu só saberia oito minutos depois, quando o céu ficaria escuro e eu gritaria: O Sol foi embora! – e me prepararia para a extinção da vida na Terra.

Imagine agora uma pessoa muito grande, quero dizer, muito grande, cuja abertura entre os pés medisse, digamos, 150 milhões de quilômetros. Esta pessoa põe o pé esquerdo na Terra e o direito, com um sapato de amianto, no sol. Subitamente, bate o pé direito. Imediatamente, as labaredas solares espalham–se em todas as direções e o sol expele gases. Oito minutos depois eu, aqui na Terra, percebo a mudança dramática do Sol.

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Mas estou preso na Terra. A pessoa imensa existe parcialmente aqui e parcialmente no Sol, sua consciência abarca os dois lugares. Embora parte de seu ser esteja na Terra, tem pleno conhecimento do movimento do pé direito oito minutos antes de todas as outras pessoas na Terra. Pergunta–se, então, o que é o tempo para esta pessoa imensa. Depende da perspectiva. Faça um esforço mental ainda maior e imagine um Ser tão grande quanto o Universo, que existe ao mesmo tempo na Terra e na estrela Andrômeda, numa galáxia a bilhões de quilômetros de distância. Se uma estrela explode na galáxia, o Ser sabe no mesmo instante, e mesmo assim ainda verá o evento na Terra, milhões de anos depois, como se houvesse acontecido naquele instante.

A analogia não é exata, porque tolhe este Ser no espaço, embora o liberte do tempo. Mas pode dar–nos uma idéia quanto à perspectiva limitada do conceito de tempo adotado em nosso planeta, no qual se afirma que "primeiro acontece A e depois B". Deus, acima tanto do tempo quanto do espaço, pode ver o que acontece na Terra de um modo que só nos cabe tentar imaginar. Esta linha de pensamento joga nova luz sobre debates muito antigos sobre a onisciencia, presciência, livre–arbítrio e determinismo. Um termo como "presciência" só tem sentido quando considerado do nosso ponto de vista limitado à Terra, pois presume que o tempo é uma seqüência de fatos, um após o outro. Do ponto de vista de Deus, que engloba todo o Universo de uma só vez, o significado da palavra é consideravelmente diverso. Falando com precisão, Deus não "prevê" os acontecimentos. Ele simplesmente os vê, em um presente eterno.

A eternidade é apenas uma das muitas doutrinas esclarecidas pela física moderna. Os novos teólogos agiriam bem se estudassem a teoria dos Universos paralelos, usando–a para investigar o problema do mal. A teoria da interconexão de toda matéria e energia seria útil para abordar as palavras bíblicas sobre a união entre os que crêem. A teoria que trata de como a consciência afeta a matéria poderia trazer esclarecimentos sobre o poder da oração. A maioria de nós precisará de cientistas qualificados que nos orientem na compreensão de todos estes mistérios. Os zen–budistas aproveitaram a oportunidade e publicaram obras sobre como suas crenças se adaptam aos modelos contemporâneos do Universo. Espero que não fiquemos atrasados demais em relação a eles. A fé religiosa, assim como a matéria, enfrenta constantemente o perigo de ser engolida por um buraco–negro.

MATEMÁTICOS NASCIDOS DE NOVO

Não sei dizer isco delicadamente, de forma que vou falar: estou um pouco preocupado

com a atitude demonstrada na Bíblia para com a matemática. Frederick Buechner vai ainda além e diz que a atitude é atroz. Sei que este tipo de afirmação irrita algumas pessoas, mas quanto mais leio mais entendo o que ele quer dizer. Pense nas evidências você mesmo: um exemplo de cada um dos Evangelhos, para ser matematicamente preciso.

Mateus 20. O capítulo começa com uma parábola sobre a qual, compreensivelmente, quase não ouço sermões, porque contradiz todas as leis adotadas pela sociedade relacionadas à justiça, motivação humana e compensação justa. Jesus conta, em poucas palavras, sobre um fazendeiro que contrata algumas pessoas para trabalhar em seus campos. Uns começam logo cedo. No meio da manhã, chegam outros. Na hora do almoço, ele contrata novos Trabalhadores, ainda outros no meio da tarde e os últimos uma hora antes do término do expediente. Todos estão satisfeitos com o emprego, até à hora do pagamento do salário, quando os dedicados que trabalharam o dia todo sob o sol escaldante percebem que os folgados que começaram há pouco mais de 1 hora recebem exatamente a mesma quantia! Qualquer pessoa que já trabalhou no campo um dia inteiro pode entender, facilmente, por que

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os primeiros a "pegar no batente" se sentiram ultrajados. A decisão do patrão desafia as regras de economia.

Entendo que Jesus contou esta parábola não visando a dar uma aula sobre benefícios trabalhistas, e sim mostrar a atitude de Deus para conosco. Mas a matemática no reino espiritual parece ser estranha como a que foi usada nesta situação. Os últimos a começar a trabalhar me lembram o ladrão na cruz: sem nada de bom, ele mal consegue "sedar bem" no último instante, e, ainda assim, aparentemente, recebe a mesma recompensa de uma pessoa que passou sua vida em devoção e piedade. Histórias de perdão no último instante têm um toque atraente, é claro, mas dificilmente motivarão uma pessoa a levar uma vida cristã decente. Como você se sentiria, sendo criado em uma família correta, freqüentando escolas cristãs, amadurecendo, estabelecendo uma família exemplar em sua comunidade, tudo isto para descobrir que um atrasadinho se arrependeu em seu leito de morte e chegou na sua frente no juízo Final?

Marcos 12. Aqui Jesus lida com a economia não através de uma parábola, mas de um comentário direto sobre um ato que hoje a Receita Federal classifica de "Contribuição para Entidades Beneficentes". Uma viúva coloca duas moedas como oferta no Templo, em quantia inferior a 1 centavo. Jesus, que acabara de observar alguns ricos fazerem investimentos consideráveis na causa da caridade, aparece com a seguinte afirmação:

"Em verdade vos digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram todos os ofertantes." Espero que Ele tenha falado baixo! Admirar os motivos que levaram a viúva a doar suas

moedas é uma coisa, mas aparecer com uma afirmação matemática desconcertante – e potencialmente ofensiva – como esta é outra totalmente diferente!

Talvez possamos explicar os comentários de Jesus com base no desconhecimento, naquela época, de algumas regras importantes para o levantamento de recursos que foram descobertas posteriormente. Por certo levou tempo para que a Igreja do Novo Testamento conseguisse se libertar da prática legalista do dízimo e ajustasse às ofertas voluntárias suas exigências diplomáticas (Tiago 2, por exemplo, mostra uma desconsideração chocante pelos princípios de levantamento de recursos). E em nossa época, mais do que antes, vemos inovações importantes, como cartas personalizadas, prêmios, clubes de contribuintes e banquetes beneficentes (nos quais a viúva, sem qualquer sombra de dúvida, sentir–se–ia deslocada). Certamente, o sentimentalismo suscitado pela fidelidade de uma viúva não deve interferir na "construção de relacionamentos" e na "manutenção dos doadores", atenção que dedicamos aos que doam quantias substanciais: agir ao contrário seria, na verdade, ir completamente contra a matemática.

Lucas 15. Todos conhecemos esta história, do nobre pastor que deixou seu rebanho de noventa e nove ovelhas e lançou–se na escuridão para procurar uma ovelhinha perdida. Um sermão bonito, mas reflita um pouco sobre a matemática da história. Jesus diz que o pastor deixou as noventa e nove "no deserto", donde se conclui que ficaram vulneráveis a ladrões, lobos ou a um desejo incontrolável de disparar atrás dele. Como se sentiria o pastor se voltasse com a ovelhinha perdida jogada nos ombros e descobrisse que outras vinte e quatro haviam desaparecido?

Felizmente, a ciência do crescimento da Igreja instrui–nos hoje a investir nossos recursos nas atividades que beneficiam o maior número de pessoas. Grupos homogêneos funcionam muito melhor, de forma que ir atrás de desviados sociais não é uma prática adequada a bons mordomos. Obviamente, a ovelha que saiu do rebanho não se ajustava dentro dele, ou talvez quisesse aproveitar sua própria liberdade – e esta dificilmente seria uma boa razão para colocar todo o rebanho em perigo.

João 12. Uma das melhores amigas de Jesus, Maria (que já demonstrara antes padrões duvidosos de utilização do tempo), ganha um lugar na história em face da sua falta de habilidade econômica. Ela toma meio litro – 1 ano de salário! – de perfume e o entorna nos

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pés de Jesus. Só de pensar neste ato bizarro minha pressão sobe. Será que 50ml não teriam o mesmo efeito? E Jesus queria mesmo que alguém espalhasse perfume em seus pés? Até Judas, ainda que com motivos escusos, viu o desperdício completo daquele ato: pense em todos os pobres que poderiam ser ajudados com o tesouro que escorria pelo chão sujo.

A visão presente no Novo Testamento quanto à matemática me recorda uma parábola de Kierkegaard (outro matemático questionável): um vândalo invade uma loja de departamentos durante a noite e, em vez de roubar, troca todas as etiquetas de preço. No dia seguinte, os funcionários – e os clientes muito satisfeitos – encontram situações estranhas, como colares de diamante por um dólar e bijuterias custando milhares de dólares. Kierkegaard afirma que o Evangelho é assim: altera todas as nossas convicções relacionadas a preço e valor.

QUE ACONTECEU COM O CÉU?

Um fato estranho sobre a vida moderna na América: embora 71% das pessoas afirmem

acreditar na vida após a morte, ninguém fala muito sobre isto. Certa vez, fiz uma pesquisa no catálogo de publicações periódicas em uma das maiores bibliotecas universitárias de Chicago. Descobri que o assunto "Céu", nos últimos quatro anos, não figurava em sequer um artigo. Encontrei muitos sobre terceira idade, morte, alguns sobre experiências extra–corpóreas, mas nenhum sobre o Céu.

Pensei, a princípio, que essas escassez refletisse a tendência da cultura secular. Mas, mesmo procurando nos periódicos religiosos, encontrei apenas uns poucos. Por exemplo: entre 1981 e 1982 houve três, e um deles era em francês. Isto, para mim, é muito estranho. Embora as porcentagens não se apliquem com exatidão à eternidade, podemos presumir que 99% de nossa existência serão passados no Céu. Não é, então, estranho, que o ignoremos, agindo como se não tivesse qualquer importância? Vários livros bons apareceram nos últimos anos, revendo esta tendência, mas dificilmente preenchem toda a lacuna.

Há bem pouco tempo, no século 19, os editores publicavam milhares de páginas de antologias poéticas e de prosa com imagens do Céu. Hoje nossas imagens procedem de desenhos–animados e de piadas sobre S. Pedro e o Portão de Pérola. Que aconteceu? Karl Menninger levantou uma questão teológica pertinente em seu livro Wha–tever Became of Sin? (Que Aconteceu com o Pecado?). Bem, a "morte" do Céu provoca em mim preocupação pelo menos igual à dele. Depois de pensar um pouco no assunto, encontrei três sugestões que podem ajudar na explicação do mistério.

1. A riqueza trouxe para esta vida o que para as gerações anteriores só seria possível no Céu. Nos países desenvolvidos, hoje, a maioria dos cidadãos tem alimento em abundância, alívio da dor e ambientes de beleza e luxo. A promessa bíblica de um estado semelhante a este perdeu muito de seu brilho.

Até mesmo aqueles que não desfrutam de tanto conforto voltam suas energias quase exclusivamente para conseguir tudo nesta vida. Karl Marx apelidou a religião de "ópio do povo", porque, para ele, ela acenava para as classes inferiores com a promessa de uma vida boa no Céu, anestesiando, assim, o desejo delas de satisfação material no presente1. A crítica dele parece exótica hoje. Ninguém promete mais um presente no Céu. Organizações religiosas, como o Concílio Mundial de Igrejas e as agências de auxílio evangélicas, encorajam–nos a trazer a vida boa para aqui, para a Terra.

1 Algumas vezes parei para pensar em como Marx. sendo judeu, encaixava sua teoria com o conhecimento do Velho Testamento. Deus revelou verdades grandes e elaboradas sobre a natureza de uma sociedade justa, chegando até a organizar uma nação apenas para dar vida a esses princípios. Ainda assim, o Velho Testamento contém poucos lampejos da vida após a morte. Chega quase a parecer que Deus esperou que alguns milhares de anos da história humana passassem sem falar de nossas recompensas eternas para evitar distorções como "um presente no Céu", que se constituem em abordagens inexatas da justiça.

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2. O paganismo que penetra sorrateiramente em nossas idéias nos convida a aceitar a morte como o clímax da vida na Terra e não como uma transição violenta para uma vida que prossegue. Elisabeth Kü–bler–Ross (que acredita na vida após a morte) definiu os cinco estágios da morte, sugerindo, implicitamente, que a "Aceitação" é o estágio mais saudável e apropriado. Assisti, em grupos de terapia em alguns hospitais, pacientes à morte se esforçarem, desesperadamente, para atingir esse estado de aceitação tranqüila, rejeitando, assim, o impulso do instinto e da consciência, que vêem a morte como um inimigo. É estranho, mas ninguém jamais conversou sobre o Céu naqueles grupos. Era um pouco embaraçoso, parecia covardia. Que a inversão de valores nos levou a encarar a crença na aniquilação como coragem e a fazer pouco caso da esperança de eternidade repleta de felicidade?

3. As imagens bíblicas sobre o Céu são antigas e perderam o apelo que continham. Muros de esmeralda, safira e jaspe, ruas de ouro e portões de pérolas podem ter inspirado os camponeses do Oriente Médio, mas não significam muito em nosso mundo tecnológico. E os líderes religiosos e os artistas fracassaram em apresentar novas imagens, que cumprissem sua função. Como será o Céu? Um lugar onde tudo que se tem a fazer é passear o dia todo, com uma harpa, cantando, para todo o sempre? Esta imagem não atrai a maioria de nós. Parece–me que os comunicadores cristãos têm a clara responsabilidade de projetar uma nova compreensão do Céu na consciência moderna. Se falharmos, perderemos uma das melhores características de nossa fé.

O Céu oferece a promessa de um tempo, muito maior e mais substancial do que este da Terra, de saúde, satisfação, prazer e paz para aqueles que estão presos em dor, lares partidos, caos econômico, ódio, medo e violência. Se não acreditamos nisto não há muitas razões, como afirma o Apóstolo Paulo em I Coríntios 15, para sermos cristãos. E, se crermos verdadeiramente, a fé mudará nossa vida. Digo isto porque já presenciei os resultados eletrizantes que podem acontecer quando a idéia do Céu se torna real.

Minha esposa, Janet, trabalhou com idosos em um abrigo em Chicago, próximo a um projeto habitacional, numa região considerada uma das mais pobres dos Estados Unidos. Metade dos clientes dela era branca, metade era negros. Todos atravessaram tempos difíceis: duas guerras mundiais, a Grande Depressão, revoltas sociais. E todos, por volta dos setenta, oitenta anos, viviam conscientes da proximidade da morte. Mas Janet reparou na diferença notável entre os brancos e os negros frente à morte. É claro que havia exceções em ambos grupos, mas a tendência era de os brancos se tornarem cada vez mais amedrontados e tensos. Reclamavam da vida, da família e da saúde decadente. Os negros, ao contrário, conservavam o bom humor e o espírito de triunfo, embora a maioria tivesse mais razões aparentes de amargura e desespero. (A maior parte viveu no Sul apenas uma geração após a libertação dos escravos, e sofreu, a vida toda, em face da opressão econômica e da injustiça. Já eram adultos quando a Lei dos Direitos Civis entrou em vigor.)

Que causou essa diferença de perspectiva? Janet concluiu que a resposta é a esperança, que pode ser traçada diretamente à crença firme dos negros no Céu. As músicas que eles cantavam afirmavam que este mundo não era o lugar deles, que estava aqui apenas de passagem. Estas letras e outras semelhantes resultaram de um período trágico na história, quando tudo neste mundo parecia deprimente. Mas, de alguma forma, as igrejas conseguiram instilar neles uma crença viva em um lar além deste aqui. Se quiser ouvir algumas imagens novas e mais relevantes sobre o Céu, vá a alguns funerais de negros norte–americanos. Com sua eloqüência característica, os pastores pintam em palavras uma vida tão serena e sensível que todos na congregação começam a desejar ir para lá. É claro que os enlutados sofrem, mas na perspectiva correta: sentem a dor de uma interrupção, de um obstáculo temporário em uma batalha cujo final já foi determinado.

De alguma forma, estes santos esquecidos pela sociedade aprenderam a antegozar e aproveitar a presença de Deus apesar das dificuldades que enfrentam neste mundo. Ao chegarmos ao Céu, talvez haja muita surpresa ao verificar o que significa aproveitar a

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presença de Deus. Para outros, como estes negros idosos da favela de Chicago, toda a alegria será semelhante à saudação que se recebe ao volta: ao lar. Retorno há muito esperado. A chegada deles não será parecida com uma visita a um local desconhecido. Quem sabe talvez, eles evitem algumas centenas de anos de transição embaraçosa?!

IMAGINE QUE O CÉU NÃO EXISTE

Os antropólogos relatam, não sem certo embaraço, que todas as sociedades humanas já

descobertas apresentam uma crença na vida após a morte. Os especialistas em religião – especialmente aqueles que atendem pelo nome pomposo de "fenomenologistas" – agarram–se a este fato, porque vêem na persistência teimosa desta crença um "rumor de transcendência", um vestígio de nossa natureza imortal.

Ler sobre a crença quase universal na existência de uma vida após esta aqui levou meus pensamentos em uma direção inteiramente oposta. Passei a imaginar uma sociedade que não acreditasse na vida após a morte. Como a negação da imortalidade afetaria a vida cotidiana? Deixei minha imaginação correr solta e cheguei às conclusões que apresento a seguir. Para dar um rótulo conveniente (e com meu pedido de desculpas a Samuel Butler, autor de Erehwon2), darei à minha sociedade mítica o nome de Acirema.

1. Os aciremanos valorizam a juventude acima de qualquer outra coisa. Já que para eles não existe nada além da vida na Terra, a juventude representa esperança. Não têm um futuro melhor pelo qual ansiar. Como resultado, tudo que preservar a ilusão da juventude é bem aceito. O esporte é uma obsessão nacional. As capas das revistas apresentam rostos sem rugas e corpos lindos. Os livros e as fitas de vídeo mais vendidos apresentam mulheres atraentes, de aproximadamente 40 anos, demonstrando exercícios que, seguidos fielmente, farão com que a pessoa pareça dez anos mais jovem.

2. Naturalmente, o povo de Acirema não valoriza os idosos, porque eles se constituem numa lembrança desagradável do final da vida. Ao contrário dos jovens, eles jamais podem representar a esperança. Assim, a indústria da saúde em Acirema promove cremes para pele, solução para careca, cirurgia plástica e muitos outros meios elaborados de mascarar os efeitos do envelhecimento, o prelúdio da morte. Em regiões especialmente insensíveis, os aciremanos chegam a confinar os idosos em abrigos, isolando–os da população em geral.

3. Em Acirema valoriza–se mais a "imagem" do que a "substância". Práticas como dietas, exercícios e construção do corpo, por exemplo, atingiram o status de ritos pagãos de adoração. Um corpo bem construído demonstra visivelmente as conquistas neste mundo, enquanto que qualidades interiores nebulosas – compaixão, abnegação e humildade – merecem poucos elogios. Como efeito colateral deprimente, uma pessoa com deficiências, ou desfigurada, tem grande dificuldade para conseguir competir, apesar das qualidades de seu caráter.

4. A religião de Acirema focaliza exclusivamente como perambular aqui e agora, porque não existe qualquer sistema de recompensa após a morte. Os que ainda acreditam em uma deidade buscam a aprovação de Deus em termos de boa saúde e prosperidade na Terra. Houve um tempo em que os pastores perseguiram o que chamavam de "evangelismo", mas hoje devotam a maior parte de sua energia a aumentar o bem–estar de seus concidadãos.

5. Recentemente, os crimes tornaram–se mais violentos e bizarros. Em outras cidades primitivas os cidadãos crescem com um vago temor de um julgamento eterno pendendo sobre eles, mas os aciremanos não impõem esses limites a seu comportamento maligno. 2 Erehuwon é a palavra Nowhere (lugar nenhum), escrita ao contrário. (N. da T.)

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6. Gastam bilhões de dólares para manter corpos idosos presos a sistemas de prolongamento da vida, enquanto que, ao mesmo tempo, permitem, e até encorajam, o aborto. Essa atitude não é tão paradoxal como parece, porque os aciremanos acreditam em que a vida humana começa no nascimento e termina na morte.

7. Até bem recentemente os psicólogos de Acirema precisavam de tratar das reações atávicas de seus pacientes: medo e raiva Frente à morte. Novas técnicas, porém, trouxeram promessas na superação desses instintos primitivos. Hoje, as pessoas aprendem a ver a "aceitação" como a reação mais madura ao estado perfeitamente natural da morte. Os estudiosos obtiveram sucesso na desvalorização de atitudes ultrapassadas sobre morrer de maneira "nobre". Para os aciremanos, a morte ideal acontece em paz, durante o sono.

8. Os cientistas em Acirema ainda trabalham para eliminar o problema da morte. Enquanto isto, a maior parte das mortes acontece na presença de profissionais treinados, em uma área isolada. Para diminuir o choque, a palavra "morte", tão deselegante, foi substituída por eufemismos como "passamento" e "descanso". E todas as cerimônias que acompanham a morte demonstram sua separação da vida. Os corpos são preservados quimicamente e colocados em recipientes herméticos, à prova de vazamentos.

* * *

Só de pensar em uma sociedade assim sinto calafrios. Certamente sou feliz de viver no

meu bom e velho país, onde, de acordo com as pesquisas do Instituto Gallup, a grande maioria da população acredita na vida após a morte.

DOMINGO À TARDE, NA PRAIA

Os salva–vidas, em seus barcos de madeira, balançavam–se preguiçosamente sem sair do lugar, oscilando ao sabor das ondas suaves do Lago Michigan. Um avião circula por ali, puxando uma faixa promocional de uma agência de automóveis. Barcos à vela quebram a moldura azul do horizonte com pequenos triângulos brancos.

Na praia propriamente dita, a diversidade étnica de Chicago estava exposta, para quem quisesse ver. Quatro quarteirões para o norte fica o domínio dos latinos. Lá, quando se fala o inglês, é como a segunda língua. Quatro quarteirões para o sul fica a praia da Rua Oak, onde os jovens executivos trocam, aos domingos, as roupas de grife por maiôs de grife. Mas entre estes dois pontos extremos, na Avenida North, a mistura é efervescente: homens de patins, protegidos com capacetes e joelheiras de plástico, carregando rádios enormes; ciclistas sérios lutando por espaço nas calçadas; corpos brilhantes e sinuosos em exposição em uma quadra de vôlei. Mais corpos, bonitos, espalhados aleatoriamente pela praia. Ironicamente, a cena traz–me à mente uma daquelas remontagens cinematográficas do horror de Hiroshima. Estes aqui, porém – com tiras de tecido enroladas em torno dos quadris, e a parte de cima da roupa desamarrada —, recebem sua radiação em doses medicinais.

Alguns dos adoradores do sol, irritados, murmuraram palavras de maldição e se afastaram de um grupo de cinqüenta pessoas reunidas à beira da água. Perto do "sexto semáforo ao norte da Avenida North", uma cerimônia estava prestes a começar. Aqui também as pessoas vestiam trajes de banho, embora não tão sumários. Eram membros da Igreja da Rua LaSalle, que fica no centro de Chicago, e estavam ali para uma cerimônia de batismo. As canções de preparação – hinos tradicionais e algumas outras – soaram fracas, incapazes de fazer frente aos aparelhos de som, abundantes na praia.

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Treze candidatos ao batismo alinharam–se para falar, experimentando a areia com os pés, na tentativa de encontrar um lugar em que não estivesse tão quente. Os outros se esforçavam para conseguir ouvir o que eles falavam. Um casal de jovens operadores da bolsa de valores afirmou seu desejo de identificar–se com Cristo mais publicamente. Uma descendente de cubanos falou algumas palavras, vestida toda de branco. Um homem alto, bronzeado pelo sol, contou que fora agnóstico até quase seis meses antes daquele dia. Uma aspirante a cantora de ópera admitiu que só tomara a decisão de se batizar naquela manhã, e pediu que orassem por ela, porque odiava água fria. (Temperatura do ar = 35°C. Temperatura da água do Lago Michigan = 13°C.)

Uma senhora negra, de oitenta e cinco anos, pediu para ser batizada por imersão apesar do conselho de seu médico, que disse ser aquele o pedido mais estranho que já ouvira de um paciente. Um investidor em imóveis, uma grávida, um estudante de Medicina e alguns outros foram explicando, um após o outro, por que estavam ali naquele dia, em pé em uma fila na praia da Avenida North. Um dos candidatos ao batismo convertera–se ao cristianismo, deixando uma seita hinduísta que funciona na Universidade de Berkcley, na Califórnia. Para os transeuntes – pessoas que passeavam com cachorros, policiais e corpos em exibição – a própria cerimônia do batismo devia assemelhar–se à atividade de alguma seita. Raramente se ouvem hinos e orações na praia em uma tarde de domingo.

Os candidatos participam de uma liturgia: - Você renuncia a Satanás e a todas as forças espirituais do mal que se rebelam contra

Deus? - Sim, renuncio. - Renuncia aos poderes do mal deste mundo, que corrompem e destroem as criaturas de

Deus?

PERTURBANDO O UNIVERSO

Este bebê, nascido há poucos dias, Veio para esvaziar o aprisco de Satanás. Todo o inferno estremeceu em sua presença, Embora ele mesmo trema de frio.

– Robert Southwell (século XVI) Nascimento No máximo um pequeno grupo de pastores testemunhou o drama da noite do nascimento.

Pense nisto: A Encarnação, que dividiu a história em duas partes (fato que até nosso calendário reconhece, ainda que de má vontade), teve mais testemunhas animais do que humanas.

Houve, na verdade, um murmúrio de uma "boa catástrofe", uma explosão súbita de grandiosidade. O Universo não poderia permitir que a visita chegasse sem ser anunciada e, por um instante, o céu se iluminou em face da presença dos an;os. Todas as equipes de efeitos especiais de Hollywood deter–se–iam, fascinadas, a contemplar a cena. Ainda assim, quem a viu? Camponeses analfabetos que não deixaram nem ao menos o registro de seu nome.

Morte O Calvário foi menos espetacular aos olhos. Ali, o milagre não estava no que aconteceu,

mas no que deixou de acontecer. O ritual horroroso de violência prosseguiu sem qualquer interferência. Os anjos permaneceram afastados naquele d;a, detidos pelo próprio Filho de Deus. Até mesmo o Pai voltou as costas, ou pelo menos parece que foi assim. Ele, também,

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permitiu que a história seguisse seu curso, deixou que tudo que havia de errado no mundo triunfasse sobre o que era certo.

"Salvou os outros; a si mesmo se salve", zombavam as pessoas. Desta vez, neste momento público, quando Deus parecia estar totalmente desamparado, as câmaras da história filmavam, registrando tudo. Grande multidão assistiu a cada detalhe do julgamento, veredicto, crucificação e morte. Ninguém poderia argumentar que Jesus não morreu.

Depois da morte No momento em que ocorreu o Milagre dos Milagres, apenas duas testemunhas estavam

presentes: guardas romanos rudes, os homens esquecidos da Páscoa. Eles, e ninguém mais, presenciaram com olhos humanos a cena assombrosa do impossível feito possível. Ao mostrar um reflexo humano incurável, imediatamente correram a informar o tumulto às autoridades.

Mais tarde, naquele mesmo dia, a ressurreição lhes parecia enevoada e remota, muitíssimo menos significativa do que, digamos, a pilha de moedas de prata que colocaram diante deles. Será que algum dia nos dedicamos a pensar no fato de, aparentemente, haverem as testemunhas daquele grande dia morrido sem crer?

* * * Natal, Sexta–feira Santa, Páscoa: três datas marcadas nos calendários de metade do

mundo. Apesar do suborno pago aos guardas romanos e da elaborada conspiração para esconder o fato, a notícia espalhou–se. Um brilho de fé chegou para ficar e permanece até hoje.

Algumas vezes Deus é criticado por não facilitar um pouco mais a fé, por não tornar–se mais óbvio. Uma análise mais atenta destes três dias solenes pode jogar alguma luz sobre este enigma da fé. O primeiro, o nascimento de Cristo, foi um escândalo para todos, exceto para os poucos que participaram do evento e alguns convidados humildes. O último acontecimento, a ressurreição, só foi visto por duas pessoas que, rapidamente, modificaram seu testemunho. Apenas o evento intermediário, a crucificação, aconteceu em público, para que o mundo inteiro visse.

Como responder quanto à importância do significado da cruz? No momento em que aconteceu, dificilmente alguém diria que foi um evento "milagroso". Que seria mais corriqueiro do que outra execução terrível empreendida pelas tropas de ocupação romanas? Até hoje, o dia em que comemoramos o evento, a Sexta–feira Santa pode passar despercebida, um mero prelúdio aos címbalos sonoros da Páscoa.

Ainda assim, da perspectiva do cosmos, do ponto de vista de, digamos, um anjo que estivesse bem atrás da estrela Andrômeda, a Sexta–feira Santa foi o milagre mais surpreendente de todos. É claro que a Encarnação foi única, mas havia alguns paralelos, embora esmaecidos. Seres celestiais entraram e saíram da região temporal em outras ocasiões anteriores: lembre–se do anjo que lutou com Jacó, dos que visitaram Abraão. Quanto à ressurreição, alguns poucos humanos voltaram da morte no tempo do Velho Testamento e Jesus provara claramente Seu domínio sobre a morte (lembre–se de Lázaro). Mas, quando o próprio Pilho de Deus morreu no Planeta Terra, nada semelhante a isto acontecera antes e nem acontecerá de novo. Até a natureza se abalou: o chão tremeu, túmulos se abriram e o céu ficou escuro.

Mais do que a morte morreu naquela tarde de sexta–feira. O Apóstolo Paulo disse, sobre aquele dia:

E, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz. (Colossenses 2:1 5)

Quando Cristo desmascarou os poderes e as autoridades nos quais homens e mulheres

apostam a própria vida, o espetáculo foi público. A religião mais avançada daqueles dias

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considerou–o culpado, e o governo mais avançado cumpriu a sentença. O grande plano, cultivado desde o Éden, foi cumprido em nome da piedade, da justiça e da lei. Cristo triunfou, desmascarando esses poderes e autoridades, mostrando que são falsos deuses que jamais poderão manter suas promessas.

A crucificação colocou os seguidores de Cristo, para sempre, contra os poderes deste mundo. Paulo afirmou:

Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios. (I Coríntios 1:22,23)

As coisas não mudaram muito nos dois mil anos que se passaram. Hoje, os cientistas

procuram sinais e os políticos desejam sabedoria; e, de vez em quando, a cruz assoma como escândalo.

Os três eventos – nascimento, morte e ressurreição – causaram, certamente, abalos no cosmos. E ainda assim, acontecendo em meio a tanto mistério, com um grupo tão estranho de testemunhas, dificultaram para sempre a fé. Proporcionaram apenas motivos suficientes para aqueles que, como os discípulos, escolheram crer. Mas também forneceram razões suficientes para os que, como os guardas romanos, preferiram duvidar. Isto também não mudou, desde o tempo de Jesus até hoje.

A ESTAÇÃO PERFUMADA

Em 1988,1 ano antes do escândalo envolvendo o casal Bakker3, ouvi Tammy Faye fazer

uma afirmação que me perturbou, mas eu não sabia por quê. Ela preenchia toda a tela de meu aparelho de televisão, com seus cílios longos cobertos pelo que uma vez foi descrito, maldosamente, como uma máscara de força industrial. Ela falou, efusivamente:

"Oh! A vida cristã é tããão boa que acredito em que a seguiria mesmo se nada do que os cristãos pregam fosse verdade!"

Ela acabara de entrevistar pessoas que davam testemunhos inspiradores e é verdade, Tammy Faye, a vida cristã descrita no programa parecia muito boa. Embora haja ficado comovido pelo entusiasmo demonstrado por ela, algo na declaração que fez — "se nada ... fosse verdade" – incomodou–me. Parecia haver uma coisa errada, mas não conseguia identificar o problema.

Por fim, localizei a fonte de meu desconforto em I Coríntios 15, o capítulo mais importante na Bíblia sobre a ressurreição dos mortos. Nele, o Apóstolo Paulo firma sua fé na verdade da ressurreição de Jesus. Com ênfase notável ele afirma que, se Cristo não houvesse ressuscitado, sua pregação seria inútil, assim como a fé. Além disto, acrescenta, seríamos "os mais infelizes de todos os homens".

Paulo, que era conhecido por sua coragem, ainda assim admite que jamais arriscaria sua vida por uma fé que carecesse do fundamento da verdade. Não haveria motivo para se colocar em perigo. Dificilmente valeria a pena enfrentar feras selvagens em Éfeso para defender uma ilusão. O hedonismo seria uma alternativa muito mais atraente, e Paulo, com franqueza, propõe: "Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, que amanhã morreremos." Ao contrário de muitos evangelistas da televisão, parece que ele esperava da vida cristã não a

3 Jim e Tammy Faye Bakker, teleevangelistas. Em 1989 Jim foi condenado a 45 anos de prisão por ter desviado as contribuições feitas pelos fiéis para o sustento de seu ministério, usando–as em benefício próprio. (N.da T.)

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saúde e a riqueza, mas sofrimento. Chegou a dizer a Timóteo: "Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos."

Ao ler as reflexões de Paulo sobre as dificuldades que enfrentou, não posso imaginá–lo concordando com a afirmativa de Tammy Faye sobre a vida cristã. Pego–me ainda questionando que ela diria a mesma coisa hoje, com o mesmo entusiasmo.

* * * Posteriormente, muito tempo depois de ter visto Tammy Faye na televisão, deparei–me

com mais uma passagem intrigante dos escritos de Paulo. Duas sentenças colocam lado a lado a exuberância feliz da televisão e o realismo duro de I Coríntios 15. Paulo escreveu à igreja de Corinto:

Porque nós somos para com Deus o bom perfume de Cristo, tanto nos que são salvos como nos que se perdem. Para com estes, cheiro de morte para morte; para com aqueles, aroma de vida para vida.

De acordo com Paulo, o mesmo perfume pode transmitir cheiros muito diferentes,

variando conforme o nariz que o aspira. Para o mundo incrédulo, nossa fé carrega o mau cheiro da morte. Intromete–se, com a recordação incômoda da mortalidade e de outro mundo que julgará este. Entre os incrédulos os exemplos de negação pessoal e amor sacrificial provocam, no máximo, admiração pela "ética cristã". Mas, como disse Paulo, o hedonismo puro carrega um apelo muito mais forte. Pense no que atrai audiência receptiva: bilionários e estrelas de cinema que escrevem biografias que vendem como água. Mas até hoje não vi na lista dos mais vendidos um livro contando a história do pastor de uma igreja de favela. E ocasionalmente a televisão exibe um documentário sobre a vida de um "santo" como, por exemplo, a Madre Teresa de Calcutá. A audiência deste programa, porém, não pode comparar–se à de um programa de auditório ou à de uma novela. Para estes, somos o cheiro da morte, o odor que pairava como uma nuvem sobre a Madre Teresa, literalmente, porque ela escolheu servir a Cristo no meio daqueles que estavam à morte. A ordem religiosa que ela criou se dedica hoje a organizar hospitais para pacientes com Aids.

A sabedoria da Cruz parece loucura para o mundo, e Paulo confessou que para ele também pareceria, se não fosse por um evento que aconteceu dois dias após a crucificação. Os crentes – as pessoas convencidas de que a ressurreição aconteceu de verdade – recebem, por assim dizer, um novo conjunto de receptores olfativos. Para além do mau–cheiro da Sexta–feira Santa, podem agora detectar a fragrância surpreendente da nova vida. Por esta razão, e exclusivamente por ela, vale a pena perseguir a fé cristã. Ao entender o argumento de Paulo, se não houver ressurreição, não há motivo para dominar impulsos sexuais ou violentos. Por que se importar com os pobres e aleijados? Por que procurar a humildade e o serviço enquanto outros buscam a satisfação de seu ego? Uma vida de tantas lutas será alvo de piedade e não de inveja. Ela exala o cheiro da morte, para rodos, exceto para os que possuem nariz santificado.

* * *

Escrevo este texto no início da Primavera, a estação perfumada, tempo de grande regozijo

para nós que moramos bem ao norte dos Estados Unidos. Caminhei durante vários meses por cima de montes de neve que servem como receptáculo para os dejetos dos cachorros, o lixo e as partículas do escapamento dos automóveis. Agora, o solo volta a ficar macio, e até nos terrenos vagos de Chicago sente–se a rica fragrância da terra. A Primavera está chegando, sua aproximação anunciada por milhares de aromas. O perfume denso e adocicado dos lilases logo enfeitará a ruela sem graça que fica atrás de minha casa. Daqui a alguns meses, o perfume das rosas sobrepujará todos os outros ali. Depois, virá o cheiro penetrante das

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madressilvas que sempre me leva de volta às caminhadas de minha infância, pelas florestas da Geórgia.

Não por acaso o calendário da Igreja, também, aproxima–se da estação perfumada (no hemisfério norte, a Páscoa é na Primavera). Os primeiros a celebrar a Páscoa combinaram a ressurreição da Terra com a de Cristo. Volto a pensar na metáfora de Paulo sobre o perfume:

Porque nós somos para com Deus o bom perfume de Cristo, tanto nos que são salvos como nos que se perdem. Para com estes, cheiro de morte para morte; para com aqueles, aroma de vida para vida.

O cheiro da morte jamais se dissipa por completo. Paulo diz que morremos diariamente, e

nossos atos de autonegação certamente serão vistos por alguns como mórbidos e até mesmo masoquistas. Mas, além desse cheiro está o perfume de primavera da nova vida, e o único caminho que leva até lá é o da Cruz.

Um cheiro, qualquer um, é uma mera pista, o anúncio vago de alguma coisa mais substancial. E é por isto que podemos ser para Deus o aroma de Cristo. Por causa da Páscoa, e só por causa dela, o aroma dEle torna–se o nosso.

Ouçam, cristãos. Conseguem ouvir o som do riso que está do outro lado da morte? Respirem profundamente e sintam um perfume como não há outro igual. Permitam que ele encha seus pulmões nesta Páscoa.

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ENTRE OS CRENTES

• Deveríamos sentir alegria ou tristeza com o ressurgimento do cristianismo evangélico nos Estados Unidos? E o país: deveria estar alegre? ou triste?

• Será que o mundo deveria ser capaz de dizer se uma pessoa é cristã só de olhar para ela? Como é a aparência de um cristão? E como deveria ser? Por que preferimos ler sobre as pessoas com as quais não desejamos parecer?

• Por que a Bíblia é tão veemente contra a idolatria? Que torna este costume exótico tão ofensivo? Existem idólatras em Peoria4, Illinois?

• Há mórmons em Peoria, Illinois? A aparência dos mórmons é diferente da dos cristãos? Deveria ser?

• Por que tão poucos cristãos demonstram alegria? Uma pessoa alegre seria mais parecida com a Madre Teresa ou com a Madonna?

• Por que os escritores modernos e os programas de televisão atuais demonstram tanta obsessão com a sexualidade humana, enquanto que na igreja ela mal é mencionada, exceto em momentos de advertência?

• Por que muitos cristãos se sentem mais culpados do que perdoados? Como é sentir–se perdoado? Se o Evangelho consiste em graça, aceitação e perdão, por que os conselheiros têm tantos clientes cristãos, confusos com culpa, ódio a si mesmos e espírito de crítica?

4 Esta cidade dos Estados Unidos é considerada a cidade típica, e afirma–se que a opinião de seus habitantes, em geral, representa a de todo o país. Há um dito: "Antes de lançar um novo produto, pergunte a si mesmo o que as pessoas de Peoria achariam dele."

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O PODER DO AMOR E O AMOR AO PODER

Em seu livro In Season, Out of Season (A Tempo e Fora de Tempo), Jacques Ellul,

sociólogo francês já falecido, refletiu sobre sua vida, longa e produtiva. Avaliando o passado, percebeu que seus pensamentos e suas ações seguiam em trajetórias paralelas. Em uma trajetória ativista e secular, trabalhou como pioneiro na Resistência Francesa, no governo de sua cidade e dedicou–se a causas ambientais. Em outra, mais espiritual, expressou sua fé cristã em sua vida devocional e servindo como pastor e professor no seminário. Ainda assim, em um tom de desilusão, admitiu que nunca conseguiu unir as duas trajetórias com sucesso.

A decepção de Ellul cresceu nos corredores do poder, durante seus mandatos como líder denominacional e como político. Suas experiências levaram–no a perguntar–se algum dia haveria mudanças no mundo a partir das instituições. Questionava se alguma estrutura poderia transmitir o amor e a compaixão cristãos. Ao ler sobre a luta dele, comecei a pensar sobre o imenso abismo que separa o poder do amor.

se conseguíssemos registrar a história da Igreja cristã em um gráfico simples e revelador como os dos relatórios dos mercados de ações, veríamos picos tremendos de poder na Igreja. A princípio, a fé cristã conquistou o Oriente Próximo, a seguir Roma e depois a Europa toda. Finalmente, espalhou–se até o Novo Mundo e África e Ásia. É estranho, porém, mas os picos de sucesso e poder terreno assinalam também os picos da intolerância e da crueldade religiosa, as manchas na história da igreja das quais nos envergonhamos muito hoje. Os conquistadores que converteram o Novo Mundo na ponta da espada, os exploradores cristãos que colaboraram com o tráfico de escravos na África, ainda sentimos a repercussão destes erros.

Durante toda a história cristã, o amor e o poder coexistem em conflito. Por esta razão, preocupo–me com o crescimento do poder no movimento evangélico. Houve tempo em que ou nos ignoravam ou zombavam de nós. Hoje, os evangélicos são mencionados freqüentemente nas notícias e são bajulados por todos os políticos sensatos. Vários movimentos políticos surgiram com características claramente evangélicas. Considero esta tendência ao mesmo tempo encorajadora e alarmante. E por que alarmante? Apesar dos méritos de determinada questão – quer se discuta a legalização do aborto ou a preservação ambiental –, os movimentos políticos trazem o risco de colocar sobre si a capa do poder que asfixia o amor. Um movimento, por sua natureza, estabelece barreiras, faz distinções, julga. O amor, pelo contrário: derruba barreiras, supera distinções e concede a graça.

Com toda certeza, não defendo uma atitude de avestruz, ou seja: esconder–se das questões que confrontam os cristãos em uma sociedade secular. Estes assuntos precisam de ser encarados, tratados, e é necessário legislar sobre eles. Mas as palavras de Paulo continuam a me perseguir:

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.

De alguma forma, precisamos de encarar o poder com humildade, temor e amor ardente

por aqueles que estarão sob nossa autoridade, a não ser que não nos importemos em ver o poder ser minado, como aconteceu com líderes religiosos bem–intencionados que nos precederam.

Jesus não disse que todos saberiam que somos seus discípulos se aprovássemos leis justas, dominássemos a moralidade, restaurássemos a decência familiar e governássemos com

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integridade. O que Ele disse é que saberiam que somos discípulos dEle se nos amássemos uns aos outros (João 13:35). Fez essa afirmativa na noite anterior à sua morte. Em nenhuma outra situação o estilo contrastante do poder de Deus e do poder humano foi tão evidente. O humano, representado pelo poderoso Império Romano e a força das autoridades religiosas judaicas, colidiram de frente com o poder de Deus. Surpreendentemente, naquele momento Deus escolheu, deliberadamente, o caminho do desamparo. Poderia ter convocado dez mil anjos, mas não o fez. Ao olhar para aquela noite sombria, e também para outras noites sombrias de toda a história, fico maravilhado com a moderação demonstrada por Deus.

Acredito em que Deus se contém por um motivo: Ele sabe da limitação inerente a qualquer forma de poder. A força pode fazer tudo, exceto o mais importante: não pode suscitar o amor. Em um campo de concentração, como tantos testemunharam de formas tocantes, os guardas têm amplos poderes e autoridade para forçar qualquer atitude dos presos. Podem fazer com que a pessoa renuncie a seu Deus, amaldiçoe a família, trabalhe de graça, coma excrementos humanos, mate e enterre o amigo mais chegado ou até mesmo o próprio filho. Tudo isto está sob o domínio dos guardas. Só uma coisa escapa: o amor. Eles não podem forçar a pessoa a amá–los.

O amor não funciona de acordo com as regras do poder, e jamais poderá ser forçado. Neste fato podemos perceber o fio da razão por trás do uso (ou não) que Deus faz do poder. A Ele só interessa uma coisa de nossa parte: nosso amor. Foi para isto que nos criou. E não há demonstração de onipotência, por mais grandiosa que seja, que consiga fazer nascer o amor. O único modo foi se esvaziar completamente e se unir a nós, morrendo em nosso lugar. A partir daquele momento, passou a existir o amor.

Qualquer criança que freqüente uma Escola Dominical sabe recitar a teologia mais profunda: "Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho." E, quando chegamos ao âmago de tudo, percebemos que isto é o evangelho cristão, uma demonstração não de poder, mas de amor.

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perficiais. Logo que começou a acompanhar aquele homem–criança, de fôlego curto, percebeu a violência, rivalidade e competição, a obsessão que existia em seu anseio pelo sucesso na vida acadêmica e no ministério cristão. Com Adam ele aprendeu quê:

O que nos torna humanos não é a mente, mas o coração, não é a habilidade de pensar, mas a capacidade de amar. Qualquer pessoa que se refira ao Adam como um vegetal ou animal deixa de enxergar o mistério sagrado: ele é totalmente capaz de amar e de ser amado.

Com Adam, Henri Nouwen aprendeu – aos poucos, em meio à dor e à vergonha – que o

caminho para o alto é voltar–se para baixo. * * *

Minha carreira de jornalista deu–me a oportunidade de entrevistar as mais diversas

pessoas. Olhando para trás, posso, grosso modo, separá–las em dois grupos: estrelas e servos. O primeiro grupo é composto por atletas conhecidos, atores e atrizes de cinema, musicistas, escritores famosos, personalidades da televisão e outros semelhantes a estes. São os que dominam as revistas e os programas de televisão. Todos os bajulam, esquadrinhando as minúcias de sua vida: as roupas que vestem, o que comem, os exercícios físicos a que se dedicam, as pessoas a quem amam, a pasta de dente que usam.

Ainda assim, preciso dizer que, em minha experiência limitada, percebo que nossos "ídolos" são um grupo de pessoas tão infelizes quanto quaisquer outras. A maioria enfrenta problemas no casamento ou já se separou. Quase todas são totalmente dependentes da

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psicoterapia. E, em uma ironia profunda, esses heróis maiores do que a própria vida parecem ser atormentados por uma insegurança pessoal incurável.

Passei algum tempo com servos também. Pessoas como o Dr. Paul Brand, que trabalhou, durante vinte anos, entre os excluídos – os mais pobres dos pobres, leprosos da região rural da Índia. Ou profissionais de saúde que abandonaram empregos com salários bem elevados para trabalharem com o Ministério Mendenhall em uma cidade atrasada no Estado do Mississippi. Ou membros de organismos de auxílio à Somália, Sudão, Etiópia, Bangladesh e outros depósitos do sofrimento humano. Ou PhDs espalhados por todas as florestas na América do Sul, traduzindo a Bíblia para línguas obscuras.

Eu estava preparado para honrar e admirar esses servos, para elevá–los como exemplos inspiradores. Não estava pronto, porém, para invejá–los. Mas, refletindo nos dois grupos, colocando–os lado a lado, estrelas e servos, os últimos emergem, claramente, como os mais favorecidos e agraciados. Trabalham durante muitas horas para ganhar pouco dinheiro, não recebem aplausos. "Desperdiçam" seus talentos e conhecimentos entre os pobres e os ignorantes. Mas, de alguma forma, perdendo a vida eles a encontraram. Receberam "a paz que não é deste mundo", como descreveu Henri Nouwen, paz encontrada não dentro do prédio majestoso de Harvard, mas ao lado da cama do descoordenado Adam.

* * *

Assim como muitos outros cristãos, estremeço quando ouço o tom grave, jubiloso, que

freqüentemente caracteriza a cobertura que a mídia faz dos escândalos entre os cristãos. Vejam, estes cristãos não são melhores – na verdade são piores – do que as outras pessoas. Sofro ao ver os relatórios das contribuições a quase todas as organizações cristãs, que diminuem dramaticamente a cada novo escândalo. Considero que as doações que faço para missões, como World Vision, American Leprosy Mission, World Concern, Wycliffe e Mcndenhall Ministries são os investimentos que produzem o maior retorno.

Talvez um dos problemas por traz dos escândalos dos "astros" cristãos seja que distorcemos o reino de Deus ao nos dedicarmos a ser estrelas em lugar de sermos servos. Como Henri Nouwen disse:

Mantenha seus olhos naquele que se recusa a transformar pedras em pão, pular de grandes alturas ou governar com poder temporal. Mantenha seus olhos no que diz: "Bem–aventurados os pobres, os mansos, os que choram e os que têm fome e sede de justiça; bem–aventurados são os misericordiosos, os pacificadores e os perseguidos por causa da justiça". ... Mantenha seus olhos naquele que é pobre com os pobres, fraco com os fracos e rejeitado com os rejeitados. Este é a fonte de toda a paz.

Em outras palavras: mantenha seus olhos no servo, não nas estrelas. A frase de Jesus que é mais repetida nos Evangelhos é:

Aquele que quiser salvar a sua vida, perdê–la–á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá–la–á.

É verdade, o caminho para o alto é voltar–se para baixo.

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AJA COMO SE DEUS AINDA ESTIVESSE VIVO

É difícil ler a Bíblia sem deparar–se com o assumo da idolatria: ela é, de longe, o tópico mais discutido. Para o leitor moderno, porém, uma pergunta insistente cerca estas passagens: Por que toda esta confusão em torno da idolatria? Qual a grande atração dos ídolos? Por que os hebreus, por exemplo, abandonavam Javé, o Deus que os libertara da escravidão no Egito, e iam atrás de troncos de árvores esculpidos e estátuas de bronze?

Descobri alguns aspectos desta questão ao visitar a Índia, onde a adoração aos ídolos é muito comum. As maiores atrações nas cidades são templos erigidos em honra a algum dos milhares de deuses: deuses macacos, deuses elefantes, deusas eróticas, deusas cobras e até mesmo uma deusa varíola. Lá observei que a idolatria tende a produzir dois resultados contraditórios: magia e trivialidade.

Para os devotos, a idolatria adiciona um toque de magia à vida. Os hindus acreditam que os deuses controlam todos os acontecimentos, incluindo desastres naturais, como monções, terremotos, doenças e acidentes de trânsito. E necessário manter estas forças poderosas satisfeitas a qualquer custo. Mas o que agrada um deus depende de seu caráter, e os deuses hindus podem ser terríveis e violentos. A maior cidade da Índia, Calcutá, adotou a deusa assassina Kali, que geralmente é retratada com uma guirlanda formada de cabeças ensangüentadas em torno da cintura. A devoção a deuses assim pode, facilmente, levar a um medo paralisante e a uma escravidão virtual aos caprichos das entidades.

Outros hindus, menos devotos, adotam outra atitude. Tratam os deuses como trivialidades, quase como amuletos de boa sorte. Um motorista de táxi coloca uma estátua pequena de um deus macaco, enfeitada com flores, no painel de seu carro. se alguém lhe perguntar ele dirá que ora para o deus, pedindo proteção, mas depois, rindo, acrescentará que todos sabem como é o trânsito da Índia.

As duas reações modernas à idolatria ilustram o que alarmava tanto os profetas de Israel. Por um lado, o motorista de táxi mostra como a idolatria pode tornar a deidade trivial. Talvez o deus ajude, talvez não, mas não há motivo para não seguir as instruções dele. Alguns israelitas adotaram essa atitude, vagando, despreocupados, de um deus para outro. Nenhum outro comportamento poderia ser mais diverso do que o exigido por Javé, o Deus verdadeiro. Ele escolhera os hebreus para serem reino de profetas, povo especial, separado. Fez ironia quanto ao absurdo de esculpir uma árvore para fazer um deus e depois usar os ramos da mesma planta para cozinhar uma refeição (Isaías 44:16). Ele é o Senhor do Universo e não um amuleto de boa sorte.

Com muita freqüência os ídolos do Oriente Médio, porém, assumiam formas mais sinistras, mais semelhantes à da deusa do mal de Calcutá. Os seguidores de Baal, por exemplo, o adoravam através de relações sexuais mantidas com as prostitutas no templo, ou até mesmo matando bebês como sacrifício. Essas atitudes de adoração não podem, absolutamente, coexistir com a devoção a Javé. O deus Baal–Zebub, cujo nome significa "senhor das moscas", acabou tornando–se sinônimo do próprio Satanás (veja Mateus 10:25).

Por qual razão ídolos sinistros como Baal mostraram–se tão irresistíveis? Assim como garotos vindos da fazenda se maravilham com a vida na cidade grande, os israelitas chegaram, depois de 40 anos vagueando no deserto, a uma terra de estágio cultural muito superior ao seu. Ao se estabelecerem e começarem com sua nova ocupação agrícola, olharam para uma deidade dos cananeus, Baal, buscando ajuda no controle das condições climáticas. Em outras palavras: procuraram um atalho mágico. De modo semelhante, quando um exército poderoso se levantou e ameaçou suas fronteiras, os hebreus tomaram emprestados alguns dos ídolos favoritos daquele exército, precavendo–se para o caso de sua própria religião não lhes trazer o sucesso militar. Os ídolos se tornaram em uma fonte ilusória de poder, lugar alternativo onde investir a fé e a esperança.

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O culto a imagens esculpidas só desapareceu de Israel depois que Deus tomou a medida extrema de desmantelar a nação. Mas outras formas de idolatria, mais sutis, persistiram, e persistem até hoje. De acordo com o Novo Testamento, esta prática não envolve, necessariamente, imagens de madeira ou de pedra. Qualquer coisa que nos tente a nos afastarmos do Deus verdadeiro pode funcionar como um ídolo.

Na sociedade moderna, dominada por apelos à imagem e ao status, os ídolos são abundantes. Não é surpreendente que a idolatria produza em nós hoje os mesmos resultados que produziu nos israelitas. Alguns deuses – Mamon, beleza, sucesso – apelam à nossa sede de mágica. No nível humano, operam maravilhas, concedendo–nos um tipo de poder mágico sobre a vida de outras pessoas, bem como sobre a nossa. Preocupo–me mais, porém, com os deuses falsos que fogem à identificação fácil, aqueles que tendem para a trivialidade e não para a mágica. Na idolatria clássica, um símbolo visível expressava a mudança de lealdade. A maior parte dos ídolos atuais é invisível, mais difícil de se detectar.

Que ídolos modernos fazem Deus parecer trivial? Que tende a reduzir a surpresa, a paixão e a vitalidade de meu relacionamento com Deus? Na maior parte do tempo, não tenho a consciência de escolher entre um deus e Deus; as alternativas não se apresentam claramente. Em lugar disto, descubro que Deus foi deixado de lado por causa de uma série de pequenas distrações. Um carro que precisa de conserto, planos de última hora para uma viagem que se aproxima, uma torneira que pinga, o casamento de um amigo, essas distrações, meras trivialidades, podem levar a uma forma de esquecimento que se assemelha à idolatria em sua forma mais perigosa. A vida ocupada, e incluo aqui toda a ocupação causada pela religião, pode excluir Deus. Confesso que em alguns dias me encontro com pessoas, trabalho, tomo decisões, converso ao telefone, tudo sem pensar em Deus sequer uma vez.

Uma amiga minha foi pega de surpresa por um cético. Depois de ouvir toda a explicação dela sobre a fé, ele disse:

"Mas você não age como se cresse que Deus está vivo." Eu tento transformar a acusação dele em uma pergunta: Será que o modo como ajo mostra

que Deus está vivo? É uma boa pergunta, que fica no âmago de toda idolatria, e que devo fazer a mim mesmo todos os dias.

MÓRMONS, FARISEUS E OUTRAS PESSOAS BOAS

Alguns mórmons dizem que se converteram ao visitar Salt Lake City, sede da religião, e é

compreensível que seja assim. É difícil não se impressionar com o centro agitado da cidade. As ruas são limpas e bem conservadas, e os cruzamentos equipados com aparelhos eletrônicos que apitam para guiar os pedestres cegos. Todos parecem morar em uma casa saída de um filme, e o aspecto das crianças é tão limpo que elas parecem brilhar. É necessário procurar muito para encontrar algum tipo de contracultura, e este estado é separado da Califórnia (onde abunda a contracultura) apenas pela impiedade de Nevada (Estado onde os cassinos são liberados). Talvez as neuroses existam abaixo da superfície, mas externamente a sociedade de Utah (Estado onde fica Salt Lake City) parece funcionar.

Há alguns anos, os mórmons gastaram milhões de dólares em uma série de panfletos evangelísticos que apregoavam as qualidades deles mesmos. O primeiro, doze páginas inseridas na revista Seleções, descrevia seu estilo de vida saudável e correto. Para os mórmons, a família e o lar vêm em primeiro lugar, afirmava o panfleto:

Provável mente os vizinhos admirarão esta família, por sua competência tranqüila e autoconfiança. Geralmente os mórmons são invejados pelo relacionamento chegado

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dos membros da família e as atividades saudáveis que realizam juntos. ... Pense na família Osmond5: os oito

Faltam as págs. (120-122) dos sobreviventes dos campos de concentração e alguns cobertos de feridas vermelhas. Ouvindo os gritos, não conseguia compreender como alguém pudesse desejar esse destino para outro ser humano.

Os manifestantes responderam de formas diversas aos cristãos. Os mais briguentos jogavam beijos ou gritavam de volta: "Fanáticos! Que vergonha vocês são!" Um grupo de lésbicas fez com que membros da imprensa rissem, gritando em uníssono: "Queremos a esposa de vocês!"

Dentre os manifestantes, pelo menos 3 mil se identificavam com vários grupos religiosos: movimento Dignidade Católica, grupo Integridade Episcopal e, até mesmo, alguns mórmons e adventistas do sétimo dia. Mais de mil marcharam sob a bandeira da Igreja Comunitária Metropolitana (ICM), denominação que professa uma teologia bem ortodoxa, exceto quanto à homossexualidade. Este último grupo respondeu de forma tocante aos cristãos cercados por eles: pararam, bem firmes, voltaram o rosto para eles, e cantaram algo mais ou menos assim: "Jesus ama vocês, sabemos com certeza, porque a Bíblia assim o diz."

As fortes ironias presentes naquela cena de confronto me acompanharam até muito tempo depois que saí de Washington. De um lado, os cristãos "justos", defendendo a pura doutrina (nem mesmo o Conselho Nacional de Igrejas considerara a ICM apta a ser aceita como membro). Do outro lado, os "pecadores", muitos dos quais admitiram abertamente sua prática homossexual. Ainda assim, um lado destilou ódio e o outro cantou o amor de Jesus.

* * * Outra cena, com semelhança assombrosa com o embate em Washington, veio à minha

mente. João 8 conta de uma ocasião em que Jesus enfrentou dois grupos opostos. (Embora o texto não esteja presente nas primeiras cópias do livro de João, provavelmente a história registra um evento verdadeiro.) de um lado, estavam os fariseus e professores da lei "corretos". Do outro, uma pecadora condenada, mulher pega em flagrante adulterando. Os fariseus arrastaram–na até o Templo para criar uma armadilha para Jesus. Seguiria Ele a lei de Moisés, orderan– Falta a pág. (124)

CRESCENDO COMO FUNDAMENTALISTA

Durante minha infância e adolescência, no Sul dos Estados Unidos, freqüentei igrejas do tipo que geralmente se classifica como fundamentalista. Percebo que o termo é usado de muitas maneiras, algumas boas e outras ruins. Para ajudar a dar uma idéia mais específica quanto aos fundamentalistas de minha igreja, devo assinalar que se preocupavam com o menor traço de tendência liberal que identificassem mesmo na mais conservadora das igrejas. Além disto, tínhamos uma característica bem negativa quando o assunto era minorias raciais. Ouvi, regularmente, pastores dizerem no púlpito que os negros — e não era este o termo usado para identificá–los – eram subumanos, amaldiçoados por Deus para serem servos. 5 Grupo musical de muito sucesso nos Estados Unidos, formado por uma mesma família, exemplo de união. (N. da T.)

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Quase todos em minha igreja acreditavam que Martin Luther King era um "comunista de carteirinha". (Será que eles realmente carregam carteirinhas?)

E assim, quando um amigo me pediu para preencher um questionário de uma pesquisa sobre "Adultos Criados no Fundamentalismo", achei que estava totalmente qualificado para servir de objeto de pesquisa. Primeiro havia uma série de afirmativas para dar minha opinião, escolhendo entre "concordo plenamente, concordo, discordo, discordo plenamente e não sei". Eis algumas das afirmativas:

• Tenho dificuldade em me aproximar de outras pessoas. • Deus é cheio de caprichos. • Meu corpo é feio. • O mundo é um lugar ruim. • Tenho dificuldade em me divertir. • Os sentimentos são ruins. • Sempre julgo os outros. • Minha tendência é pensar em termos de isto ou aquilo, branco ou preto, certo ou errado. • Sexo é ruim. • Tenho medo de estar indo para o inferno. Preenchi respeitosamente todas as respostas, nestas afirmativas e em outras (não estou

contando isto para impressionar alguém), e depois passei para a parte das perguntas às quais devia dar minhas próprias respostas. Foi aí que tive algumas surpresas.

A culpa tem sido um problema para você? De que tipo de coisas você se sente culpado? Considera–se uma pessoa inclinada a julgar os outros? Sim, a culpa tem sido um problema para mim. Fui criado sentindo–me culpado por atividades como patinar (parece muito com dançar), jogar boliche (algumas pistas servem bebidas alcoólicas) e ler o jornal do domingo. Hoje, posso fazer qualquer destas coisas com minha consciência limpa, mas sinto–me culpado, com muita freqüência, por outras coisas. E ainda assim, enquanto preenchia o questionário, percebi que não guardo ressentimentos contra a culpa. Minha resposta à última parte da pergunta talvez explique por quê: Sim, considero–me uma pessoa inclinada a julgar os outros, e è uma das coisas pelas quais me sinto culpado. A culpa é que me faz consciente do julgamento, para não mencionar muitas outras falhas.

No decorrer dos anos, enquanto minha lista pessoal de motivos de culpa mudava drasticamente, minha atitude frente à própria culpa passou da irritação para a apreciação.

Como o fundamentalismo afetou sua auto–estima? De que maneira você se sente superior ou inferior às outras pessoas? Minha mente voltou–se para cenas de profunda vergonha. Em pé, diante da turma de Discurso do 2 grau, tentando explicar por que não poderia ir assistir a uma versão cinematográfica de Otelo. Assentado em um ônibus espalhafatoso, vermelho e branco, do Clube Bíblico Juventude para Cristo. O veículo, equipado com um piano, circulava bem devagar em torno da escola, suscitando zombarias. Ouvindo um professor de biologia explicar sarcasticamente para a turma por que meu trabalho de vinte páginas não conseguira destruir a obra de 592 de Darwin, a Origem das Espécies.

Vergonha, alienação e inferioridade definiram minha adolescência. E mesmo assim pergunto–me se causaram algum dano permanente. Pode ser que eu ainda sofra com algumas marcas psicológicas, mas as alternativas não seriam muito melhores. Penso nos garotos ricos e mimados de meu colégio. Cresceram não em vergonha ou inferioridade, mas em arrogância e superioridade. No colégio eu os invejava. Hoje tenho pena deles. Sim, sofri "prejuízos" em face do fundamentalismo. Mas, afinal, meus prejuízos operaram de tal forma que me tornei "pobre de espírito", condição que Jesus descreveu como pré–requisito para herdar o reino de Deus.

Que lhe ensinaram sobre as emoções? Que efeito você acredita que sua criação fundamentalista teve em sua habilidade de desfrutar de intimidade emocional com alguém? Como você acha que o fundamentalismo moldou o que você aprendeu sobre sexualidade?

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Tudo bem, admito que houve vários danos nesta área. Durante a juventude, sofria de uma curiosa esquizofrenia quanto às emoções. Por um lado, aprendi na igreja a reprimi–las: sentimentos negativos, como a raiva, levam ao pecado; os positivos, como alegria e felicidade, resultam em orgulho, pecado de outro ripo. E ao mesmo tempo precisava de controlar–me constantemente para não me deixar levar pelo emocionalismo nos cultos. Preletores adeptos do reavivamento, depois de colocarem à nossa frente visões do fogo do inferno, levavam–nos a repetir vezes sem conta frases decoradas até que a última centelha interior de medo e culpa fossem apagadas.

Mesmo o efeito danoso da diferença entre as duas abordagens das emoções, porém, foi parcialmente sanado. Emoções ressequidas, sentimento profundo de alienação e tendência à introspecção – o impacto residual na realidade ajudou minha carreira de escritor, que se baseia na posição de um observador que de vez em quando penetra nas situações mas, na maior parte do lempo, permanece à margem dos acontecimentos.

A pesquisa prosseguia desta forma por cinco páginas, e terminava pedindo que eu resumisse os efeitos positivos do fundamentalismo em minha vida, e depois os negativos. Como positivos, apresentei os seguintes:

• Conhecimento bíblico. • Reconhecimento da seriedade das escolhas individuais e do comportamento. • Percepção de Deus. Como efeitos negativos, listei: • Falta de conhecimento cultural. • Tendência a julgar os outros. • Isolamento social e poucas experiências de vida. Não levei muito tempo para identificar qual das duas listas se mostrara mais importante na

formação da pessoa que sou hoje. Na realidade, aconteceu uma coisa engraçada enquanto respondia à pesquisa. Minha expectativa era a de que, levando–me a reviver momentos dolorosos, a pesquisa traria à tona raiva e ressentimento ainda não resolvidos. Mas, ao chegar ao fim, fui acometido, principalmente, por um sentimento de gratidão pela herança que recebi.

Os discípulos de Jesus lhe perguntaram: "Quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?" A resposta dEle foi, ao mesmo tempo, incompleta e profundamente satisfatória: "Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de

Deus." Esta é uma boa lição para todos nós, que temos "prejuízos" – até mesmo o causado pelo

fundamentalismo. Percebi, ao completar o questionário, que meu sentimento de gratidão ia até à graça curadora de Deus, e não até o fundamentalismo. Para mim, uma prova desta maravilhosa graça tem sido sua capacidade de penetrar em um sistema que, às vezes, parece visar, especificamente, à perpetuação da não–graça.

MORBIDAMENTE SAUDÁVEL

William James, filósofo de Harvard e psicólogo, realizou um escrutínio científico nas afirmativas de alcoólicos convertidos, santos, evangelistas e crentes comuns. Publicou suas conclusões em 1902, num livro que se tornou um clássico: Ás Variedades da Experiência Religiosa. Depois de entrevistar muitos cristãos e de ler muitos diários, James chegou a duas classificações globais: "mente saudável" e "mente mórbida".

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A religião da mente saudável estava em voga na época em que James viveu, quando a virada do século coroara uma era de paz e prosperidade como nenhuma outra antes. O slogan daquele tempo era: Todos os dias, de todas as maneiras, o mundo continua melhorando. Muitos crentes pensavam que o reino prometido por Cristo na Terra havia começado ou ia começar brevemente. Algumas das manifestações mais vigorosas da mente saudável floresceram bem nas vizinhanças de Harvard, com os brâmanes de Boston que deram uma base religiosa ao otimismo liberal de Ralph Waldo Emerson. Novas seitas, animadas, como a Ciência Cristã, apareceram em cena, cheias de promessas.

James contrastou estes otimistas liberais com os de mente mórbida, os evangélicos, representados pelos reavivalistas Jonathan Edwards, John Wesley e Charles Finney. Estes mal–humorados viam pecado em tudo, descreviam o mundo em termos apocalípticos e declaravam que a única esperança era "nascer de novo", experiência que oferecia salvação ao mundo decaído.

Depois de pesquisar os dois grupos, os otimistas de mente saudável e os reavivalistas de mente mórbida, James acabou surpreendentemente impressionado com o segundo grupo. Ele compreendia totalmente o apelo dos de mente saudável: diminuíam ou negavam o mal, a doença e a morte. Mas não conseguiam explicar todos os fatos, concluiu ele. Até mesmo os maiores profetas deste grupo praticavam o mal, adoeciam e morriam, como todas as outras pessoas. Pelo menos os reavivalistas descreviam um mundo que existia realmente, crivado de pecado e sofrimento.

Ao ler o estudo clássico de William James à luz dos tempos modernos, não pude deixar de imaginar a que conclusões se chegaria com uma pesquisa semelhante hoje. Será que houve alguma mudança drástica nas categorias religiosas que James definiu?

Quem são os de mente mórbida hoje? Parece que os otimistas liberais deram lugar aos pessimistas liberais, com muita rapidez. Os políticos liberais balançam a cabeça e apontam o dedo. acusando a crise da Previdência Social, a proliferação de armas e o efeito estufa. Enquanto isto, os conservadores tentam convencer as pessoas de que o país floresce. Da mesma forma, na religião, as igrejas mais fortes sempre trazem à tona assuntos sombrios, problemáticos, como conflitos mundiais e armas nucleares. Dentro da tradição evangélica, também, o padrão se mantém: quanto mais liberal, mais sombrio.

Mesmo quando os otimistas liberais (perdoe–me os rótulos - não conheço outra maneira de discutir tais assuntos) abandonaram o otimismo, uma nova categoria de evangélicos se apresentou para carregar a bandeira. Hoje temos o pensamento positivo, o pensamento de possibilidade e a teologia da prosperidade - mais impetuosa em seu otimismo do que qualquer sonho de Emerson –, tudo sendo pregado dos púlpitos evangélicos e aparecendo na lista dos livros mais vendidos entre os crentes. Para confirmar a verdade do que afirmo, sintonize um dos programas de televisão evangélicos bem–sucedidos e compare a mensagem com a mente saudável descrita por William James.

Desde 1902 houve uma reviravolta chocante. Os de mente saudável viraram mórbidos e os mórbidos transformaram–se em saudáveis. Pergunto–me o que aconteceu em nosso século para causar essa reviravolta. Será que o mundo melhorou tanto assim? Poucos concordariam com isto. Será que houve tantas brechas notáveis na fé que hoje os cristãos na América (embora, é estranho, não no Sudão, no Irã, na China e no Sri Lanka) estão, de alguma forma, acima dos acasos da sorte? Alguns diriam que uma fé nova e vigorosa surgiu, na verdade, nos últimos tempos, mas a maioria dos pastores que conheço não relata diminuição súbita no número de casos de câncer, divórcio ou abuso de menores entre os membros de suas congregações.

Que, então, causou essa reviravolta? Aqui, confesso, preciso de lutar contra uma onda de ceticismo. Pergunto–me se a teologia evangélica se adaptou a um status econômico e social mais elevado. Será que nossa fé se tornou mais semelhante à mente saudável porque acontece

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que hoje, neste momento da história, somos mais bem–sucedidos? Será que viramos conservadores porque temos mais a conservar?

William James morreu em 1910, e não passou muito tempo antes que a mente saudável também chegasse ao fim. Como ele previra, os otimistas não haviam pensado em todos os fatos. Foram esmagados pelo peso terrível da I Guerra Mundial, fato monstruoso que trouxe à luz as falhas da visão que tinham da humanidade e do mundo. Espero e oro para que um fato ainda mais sinistro não aconteça para sufocar a tendência da mente saudável que vem varrendo a fé evangélica nas últimas décadas.

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VOZES INDISPENSÁVEIS

• Como escrever ou filiar de teologia em uma sociedade que continua a usar as palavras teológicas, mas com o sentido alterado?

• Se os cristãos têm suas próprias editoras, livrarias, revistas, propagandas e redes de televisão, como os não cristãos terão acesso aos produtos cristãos?

• Que é um produto cristão? • Por que balançamos a cabeça e lamentamos a escassez de cristãos na arte e na cultura,

sendo que os melhores romancistas do século XIX (Tolstoy e Dostoievski) e dois dos melhores poetas do século XX (T. S. Eliot e W H. Auden) eram cristãos confessos?

• Quantos de nós lêem estes quatro autores hoje? • De qualquer forma, como justificar o tempo desperdiçado na leitura da ficção e da

poesia nos dias atuais? • Por que continuamos a balançar a cabeça lamentando a escassez de cristãos na arte e

na cultura, embora um dos melhores autores deste século escreva como um Amós ou Isaías da atualidade? Por que tão poucos cristãos lêem Aleksandr Solzhenitsyn?

• Que nós lemos? • Por que tanta arte de boa qualidade aparece em circunstâncias de opressão? Qual é o

melhor ambiente para um escritor, quanto a alimentar seu talento: uma sociedade livre, cheia de cristãos, ou uma sociedade hostil, repleta de não cristãos?

• Como escrever ou falar de teologia em uma sociedade que nem mesmo conhece os termos teológicos? Como seria um livro cristão em uma cultura completamente secular, digamos, o Japão?

• Que os japoneses lêem? • Que as pessoas pensarão de nossos produtos cristãos contemporâneos daqui a 50

anos?

EFEITOS COVARDES DA DEFLAÇÃO

Todos os meses os negociadores de Wall Street esperam, com o fôlego suspenso, os

números atualizados do problema sorrateiro da inflação. Mas um problema oposto atinge os escritores: a moeda das palavras sofre, há séculos, uma deflação inexorável. Ao estudar–se

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Etimologia, mesmo superficialmente, é possível verificar o fenômeno, num padrão contínuo: palavras perdendo seu sentido com o passar do tempo. Elas regridem, raramente progridem.

Tomemos como exemplo tolo. Ninguém deseja ser chamado de tolo, que significa insensato, ridículo. Ironicamente, a palavra original significava uma pessoa feliz, abençoada com boa sorte. De modo semelhante, a palavra idiota era um derivado respeitável de um termo grego que descrevia uma pessoa peculiar em determinado sentido, reservada e não conformista. Com o passar do tempo a palavra tornou–se tão peculiar (outro termo que sofreu deflação), que ninguém quer ser um idiota.

Ou então pense em sincero. Há divergência entre os estudiosos, mas alguns acreditam que esta palavra deriva do uso feito por escultores da frase latina sin cera que significa, é claro, "sem cera". Algumas vezes a pessoa que trabalhava o mármore usava, com habilidade, a cera para remendar pequenos riscos ou arranhaduras em sua obra de arte. Um trabalho sem falhas, honesto, que não requeria estes disfarces, era chamado de sin cere, sem cera. Hoje, em dia, porém, vendedores e políticos contratam consultores para aprenderem a parecer "sinceros". A sinceridade transformou–se em um tipo de imagem, característica menor, adquirida, que não guarda qualquer relação com o que realmente se passa no interior inseguro e duvidoso da pessoa.

A deflação das palavras constitui–se em um enorme problema para os escritores, pastores e todos quantos delas dependem para expressar idéias cristãs, já que os termos teológicos perderam tanta força quanto os outros. Por que tantas novas versões da Bíblia surgiram neste século? As boas e velhas palavras de João Ferreira de Almeida não se mantiveram intactas em nossa era de deflação lingüística.

Por exemplo: pena significava misericórdia ou clemência. É um termo derivado da mesma raiz de "piedade", e descrevia alguém que, como Deus, estendia sua mão para ajudar os menos afortunados. Com o passar do tempo, a ênfase passou do doador para o objeto da pena, visto como fraco ou inferior. Deterioração semelhante aconteceu com caridade. Quando os tradutores da Bíblia avaliaram o conceito de amor ágape, expresso com tanta eloqüência em I Coríntios 13, decidiram adotar "caridade(*)6" para transmitir a forma mais elevada de amor. Mas que tristeza, ambas palavras desvalorizaram–se tremendamente. As pessoas que tentavam demonstrar pena ou caridade aparentemente não estavam à altura dos padrões elevados de suas palavras, e a língua adaptou–se à situação. Hoje ouvem–se protestos: "Não tenha pena de mim!" e "Não quero sua caridade!"

Dentre as palavras que sofreram deflação, minha predileta é cretino. Na Medicina, o cretinismo descreve uma condição grotesca de deficiência da tireóide, e os sintomas são o crescimento atrofiado, deformidade, bócio, pele escamosa e (ai!) idiotia. Esta deficiência foi identificada pela primeira vez nos Alpes e nos Pirinéus, onde a água de beber não continha iodo suficiente. Gradualmente, a palavra cretino passou a abarcar "qualquer pessoa com uma deficiência mental perceptível". E esta injúria completa derivou do termo latino christianus. Ai, ai, este assunto de etimologia está chegando perto demais de nós.

As poucas palavras santificadas que restaram foram contaminadas no uso moderno. Ouça algumas músicas populares sobre o amor, e tente encontrar alguma semelhante entre a letra da música e o que está definido em I Coríntios 137. Salvação sobreviveu, mas principalmente nos centros de reciclagem de lixo. A cultura moderna chega a usar termos como renovado para carros usados, perfumes e times de futebol. É triste, porque os cristãos não criam novas palavras fortes para expressar o significado que se perdeu das antigas. Nossos neologismos são emprestados, em sua maioria, de psicólogos, de modo que ouvimos incessantemente sobre "amizade" ou "relacionamento pessoal" com Deus, embora, como e. S. Lewis aponta em The

6 Nota do editor – A versão em língua portuguesa que utiliza a palavra caridade e a Revista e Corrigida de João Ferreira de Almeida, da Imprensa Bíblica Brasileira. 7 Nota do editor – O cantor e compositor Renato Russo, utilizou–se deste recurso em uma de suas músicas, distorcendo o sentido do texto bíblico.

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Four Loves (Os Quatro Amores), estas imagens descrevam com exatidão apenas uma ínfima parte do encontro entre o Criador e a criatura.

Algumas palavras, porém, mantiveram seu brilho, e podem conseguir sobreviver mais algumas décadas. Uma delas infiltrou–se tão amplamente que seria difícil matá–la sem grandes lutas. Graça, palavra teológica maravilhosa, tem sido adotada, desavergonhadamente, por todos os segmentos da sociedade. Muitas pessoas ainda "dão graças" antes das refeições, reconhecendo que o pão cotidiano é um presente de Deus. Somos agradecidos pela simpatia de alguém, gratificados por notícias boas, agraciados quando bem–sucedidos, graciosos ao receber amigos. Um compositor adiciona notas para graça à música, que os bons pianistas aprendem a tocar graciosamente.

A indústria editorial secular chega bem perto de preservar o sentido original, concedendo edições de graça. Ao assinar uma revista por 1 ano, a pessoa pode continuar recebendo alguns exemplares depois que a assinatura expirar. São edições de graça, isentas de pagamento, não merecidas, enviadas na tentativa de levar a pessoa a fazer nova assinatura. São grátis, aí está a palavra de novo.

Minha frase favorita do termo graça ocorre no latim: persona non grata. Uma pessoa que

não é bem–vinda, não é aceita em uma nação, ou em um partido, é, literalmente, uma pessoa sem graça. Sempre que ouço estas sílabas melodiosas penso em um trecho de 1 Pedro, onde o apóstolo tenta encontrar palavras que impressionem os leitores com o esplendor de seu chamado. Ele diz:

Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido ... Vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia. (2:9,10)

De persona non grata a escolhidos de Deus, objetos de graça imerecida. Se estes ricos

conceitos permanecerem, talvez ainda haja esperança também para a língua que falamos.

IMAGINAÇÃO CONVERTIDA

C. S. Lewis disse, sobre o pregador e escritor de ficção escocês George MacDonald:

Não sei se conheço outro escritor que parece estar tão perto ... do Espírito do próprio Cristo. ... Suponho que nunca escrevi um livro no qual não o citasse.

Lewis afirmava que a obra Phantastes, de MacDonald, estimulara sua própria "conversão

da imaginação". Ao ter em vista o grande volume de obras escritas em tributo a e. S. Lewis, está mais do que na hora de prestarmos alguma atenção no homem que ele dizia abertamente ser seu mestre.

MacDonald combinou admiravelmente sua vida "secular" como romancista e homem de letras com seu chamado original de pregador do Evangelho. Entre seus amigos, havia pessoas notáveis, como Thackeray, Dickens, Arnold e Tennyson. Em uma viagem aos Estados Unidos, em 1873, fez palestras, sempre com enorme audiência, e conheceu Emerson, Longfellow, Whitticr, Holmes e Harriet Beecher Stowe. Chegou a discutir com MarkTwain a possibilidade da co–autoria de um romance, como defesa contra a pirataria dos direitos autorais que ambos enfrentavam. (Só se pode imaginar os resultados que adviriam de tal trabalho conjunto!) Outros amigos incluíam pintores da era anterior a Raphael, sua

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patrocinadora Lady Byron, o excêntrico crítico John Ruskin e o matemático de Oxford Charles Dodgson (Lewis Carroll).

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Phantastes e Lilith. Mas a análise de Raeper perde o vigor frente ao perfil literário convincente apresentado por e. S. Lewis no prefácio à antologia que escreveu sobre MacDonald. Lewis o exalta não pelo estilo – como muitas pessoas da era vitoriana, caía em moralidade açucarada — mas pela capacidade de criar mitos. E, para Lewis, a percepção espiritual vista superficialmente nas novelas, mas bem evidente nos diários e sermões compilados e incomparável.

Ainda é possível ler sermões de MacDonald, em forma condensada e mais agradável a leitores modernos, graças a duas compilações feitas por Rolland Hein, intituladas Life Essentials Creation in Christ. A carreira pastoral de MacDonald foi acidentada. Seus paroquianos afastaram–no do púlpito em face de sua crença no sentido de o inferno servir como uma espécie de purgatório que levasse a reconciliação final de toda a criação. As autoridades da igreja também se preocupavam com sua crença de terem os animais um lugar no céu e questionavam a influência sutil do idealismo alemão em sua teologia.

Próximo ao final de sua vida, porém, MacDonald conseguiu superar essas controvérsias e era bem recebido e amado como preletor convidado em muirás igrejas inglesas. Ao reagir contra o calvinismo rígido de sua juventude (assim como seu personagem Robert Falco–ner, ele estava "o tempo todo sentindo que Deus estava prestes a precipitar–se contra ele, se cometesse qualquer erro") apresentava Deus como Pai amoroso e misericordioso. Um relacionamento idílico com seu próprio pai viúvo alimentou tal imagem. Sobre Deus, ele dizia que não era possível que uma criatura O conhecesse como Ele é e não desejasse estar com Ele. Confiante em que a bondade de Deus algum dia se espelharia por todo o Universo, praticava uma espécie de "fatalismo otimista" que aparece, por exemplo, em uma carta que escreveu para sua esposa, visando a consolá–la por um sofrimento: "Bem, este mundo e todo o começo que há nele se transformará em alguma coisa melhor."

Ao conhecer MacDonald, vemos seus sermões sob uma luz inteiramente diversa. As palavras poderosas sobre graça, libertação da ansiedade e o amor inexorável de Deus vieram, na verdade, de uma vida cheia de dificuldades. Durante anos, MacDonald vagou por Londres, sem dinheiro, procurando emprego. Sofreu constantemente de tuberculose, asma e eczema. Dois de seus filhos morreram jovens. Mostrou–se incapaz de ser professor na universidade, e a grande vendagem de suas novelas raramente lhe trazia retorno financeiro: havia cópias demais no mercado pirata. A família voltou–se para a encenação de O Peregrino (o próprio MacDonald representava Greatheart) para conseguir pagar suas dívidas.

Estas dificuldades enfrentadas por ele só enfatizam o exemplo de fé deixado por um de nossos maiores escritores devocionais. A novela Phantasies termina com as folhas das árvores sussurrando: Um grande bem está chegando – chegando – chegando para vós, Anodos.

George MacDonald cria nisto com todo seu coração, e aplicou essa lição à sua própria vida bem como a toda a história.

OS RISCOS DA RELEVANCIA

Durante uma primavera eu pegava o metrô de superfície duas vezes por semana, e ia

ouvindo aquele som estridente rumo ao sul da cidade, percorrendo a distância de oitenta e

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cinco quarteirões. Ao entrar no trem, meus companheiros de jornada eram jovens executivos, os homens vestidos com apuro em camisas de algodão engomado, terno e colete. As mulheres apresentavam–se estranhas, em roupas de executivas e tênis (carregavam os sapatos elegantes em sacolas). Enquanto percorria a rota, etnias variadas se juntavam a nós, rumo às fábricas que ficam no sul da cidade. Depois chegávamos a um trecho de trinta quarteirões na região mais pobre de Chicago, casas velhas parecendo bambas, com a tinta descascada e pilhas de lixo em volta. Zona de guerra, sitiada. Jovens afro–americanos, com rádios enormes, perambulavam pelos vagões do trem, vendendo jóias, incenso, cigarros e brinquedos.

Depois da jornada no metrô, eu passava para um ônibus que me levava até meu destino: as imponentes torres góticas da Universidade de Chicago. Ali, durante as duas horas seguintes, assentava–me com mais onze alunos e estudávamos a poesia de T. S. Eliot. Embora os poemas houvessem sido escritos meio século antes, ainda havia neles uma assombrosa proximidade com nossos dias. Os passageiros do metrô de Chicago, isolados e silenciosos, o rosto crivado pela tensão, eram as mesmas personagens que Eliot descrevera em The Lope Song of J. Alfred Prufiock e em suas peças teatrais. Suas imagens da imundície urbana também se encaixavam precisamente com o lugar onde meu trem acabara de passar. Especialmente em um dos poemas, o estranho expatriado dos Estados Unidos mudou para sempre o modo como o século XX enxerga a si mesmo. As pessoas ainda debatem o significado de The Waste Land, mas esta obra épica de confusão e desespero chegou para definir a disposição de ânimo de toda uma geração entre as duas guerras mundiais.

Hoje é difícil imaginar o choque que houve na época de T. S. Eliot quando ele, o maior dos poetas do desespero e da alienação, tornou–se cristão. Foi como se Norman Mailer8 se convertesse, ou Saulo de Tarso. A princípio, seus amigos explicaram a conversão como simplesmente uma experiência intelectual, um anseio pela ordem que o levou a se refugiar na igreja anglicana.

Eliot reconheceu que a ansiedade quanto ao futuro foi fator decisivo em sua conversão. Os problemas globais daquela época fazem com que a era moderna pareça calma: Hitler, Mussolini e Franco espalhavam o terror por toda a Europa Ocidental, enquanto Stalin devastava a metade de um continente no leste. Eliot concluiu que apenas a fé cristã poderia trazer ordem àquele mundo caótico. Mas, qualquer que haja sido a motivação inicial, a fé criou raízes e chegou a dominar seu pensamento e seu trabalho. Eis como ele explicava isto:

Acreditar no sobrenatural não é simplesmente crer que depois de uma vida bem–sucedida, razoavelmente virtuosa neste mundo material a pessoa continuará a existir no melhor substituto possível para este mundo. Nem é acreditar que depois de ter uma vida carente e atrofiada a pessoa será compensada por todas as coisas que não teve. Crer no sobrenatural é acreditar que ele é a maior das realidades, aqui e agora. ... Tomo como certo que a revelação cristã é a única completa e que esta totalidade reside no fato essencial da Encarnação, em relação à qual toda a revelação cristã deve ser entendida. A divisão entre os que aceitam e os que negam a revelação cristã e, para mim, a separação mais profunda entre os seres humanos.

Como a fé de Eliot afetou sua obra? Alguns argumentam que a arruinou que a produção

dos quinze anos depois da conversão carecia da profundidade e do gênio dos primeiros trabalhos. Eliot começou a se perguntar se havia espaço para a arte em um mundo enlouquecido. Como poderia um cristão responsável devotar seu tempo à ficção ou à poesia? Sua obra tomou um caminho estranho quando começou a aceitar encomendas da igreja. Virgínia Woolf e Ezra Pound resmungaram que o amigo se estava transformando em um pastor. A comunidade artística da Inglaterra assistiu com horror ao homem que era, declaradamente, o maior poeta do século, escrever uma peça para levantar fundos para a 8 Jornalista e escritor liberal, envolvido em inúmeros protestos, escreve obras chocantes sobre temas polêmicos. Poderíamos comparar, no Brasil, com Fernando Gabeira. (N. da T.)

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igreja, compor legendas para uma exibição patriótica de fotos de guerra e tentar compor versos cristãos. Tudo isto parecia mais importante, mais útil do que seus poemas bem mais abstratos e sombrios.

Por fim, sentindo o peso da crise mundial, Eliot afastou–se inteiramente da poesia, voltando–se para a Economia e a Sociologia. Perdera, aparentemente, a fé no poder da Arte. Analisava esquemas para a redistribuição da riqueza. Reunia–se regularmente com grupos de pensadores cristãos, que incluíam mentes luminosas como Dorothy Sayers, Alce Vidler, Karl Mannheim, Nevill Coghill e Nicholas Berdyaev. Escreveu três livros com admoestações insistentes quanto à decadência da civilização ocidental, propondo a criação de uma sociedade ativamente cristã para reverter o declínio.

Eliot via uma falha fatal no humanismo moderno. A menos que os valores de uma nação viessem de fora dela – de cima, dizia ele –, ela seria vulnerável a qualquer forma de tirania (a História provaria, logo a seguir, que ele estava certo). Propôs, para combater as ameaças, uma "Comunidade de Cristãos", que serviria como um tipo de elite moral. Em sua opinião, esse grupo, formado pelas mentes mais capazes dos mais variados campos do conhecimento, formularia a escala de valores cristãos para a sociedade toda.

Sob a liderança de Eliot, vários destes grupos foram organizados, mas os membros raramente conseguiam concordar sobre programas práticos, chegando a discordar, até mesmo, quanto a ser ou não adequado discutirem programas práticos. O compromisso cristão que todos haviam firmado dificilmente os levava ao consenso nas questões sociais (para avaliar a dificuldade, imagine uma Comunidade de Cristãos composta por Jerry Falwell9, o Papa, o Bispo da Igreja Episcopal, Ann Landers10 e Martin Marty11 discutindo os direitos dos homossexuais e a legalização do aborto).

As reflexões de T. S. Eliot sobre a sociedade constituem–se num estudo histórico fascinante, porque muitas das questões daquela época ressurgiram e são debatidas acaloradamente hoje. Os cristãos têm o direito de impor seus valores a uma sociedade pluralista? Se não, quem pode propor um outro conjunto de valores?

Poucos alunos, porém, dedicam–se a esquadrinhar os comentários de Eliot sobre a sociedade. Suas teorias políticas e sociais parecem hoje exóticas e um pouco pomposas, e os estudiosos as tratam com certa confusão ou com desdém. Nenhum de seus escritos políticos ou sociais pode ser encontrado impresso atualmente. Na verdade, para encontrá–los precisei de visitar a sala de livros raros na biblioteca da universidade. Na entrada, exigiram que deixasse todo meu material. Só pude levar um bloco de papel e um lápis, e concederam–me duas horas para examinar os trabalhos que ocuparam uma das maiores mentes do século XX durante duas décadas. Livros amarelados e mofados, impressos no papel barato que se usava nos anos da guerra. A grande ironia me atingiu em cheio: por todo o mundo os alunos ainda esquadrinham sua poesia, extraindo alusões, explorando imagens e símbolos – muitos profundamente cristãos — embutidos em toda a obra.

* * * O centésimo aniversário do nascimento de T. S. Eliot aconteceu em 1988, uma boa

oportunidade de reflexão sobre sua carreira, como parábola viva do valor permanente da arte. Vá até uma biblioteca pública hoje nos Estados Unidos e peça para ver exemplares das edições de 1960 das revistas Harper's, The Atlantic Monthly, The New Yorker e Esquire. Calcule a proporção de artigos "literários" em relação aos orientados para questões políticas

9 Evangelista conservador. 10 Jornalista liberal, escreve em revistas dando conselhos sobre amor e família. 11 Podemos imaginar no Brasil essa comissão formada pelo Rev. Boanerges Ribeiro. D.Eugênio Salles, o bispo da igreja episcopal, Marta Suplicy e o bispo Edir Macedo. (N. da T.)

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ou pragmáticas. Depois, procure edições atuais das mesmas publicações. Encontrará nestas últimas proporção muito menor de artigos literários. Ou então pegue revistas cristãs com preocupações sociais, como The Other Side, Sojoumers ou mesmo Christianity Today, e repare quanto espaço devotam às artes, especialmente àqueles trabalhos que não contêm, abertamente, mensagem espiritual ou social.

Como sociedade, costumamos afastar–nos da arte, rumo a preocupações mais urgentes e práticas. Ao viverem um mundo que enfrenta crise econômica e ambiental, sob ameaça de um holocausto global, quem encontra tempo para a poesia e a literatura? Não deveríamos, em vez de pensar em arte, escrever e ler sobre guerras regionais, pobreza global, venda de armas e outros assuntos "relevantes"?

Sempre que sou tentado por esses pensamentos, volto–me para a influência continuada de autores cristãos como Tolstoy, Dostoievski, John Donne, Jonathan Swift, John Milton e, especialmente, T. S. Eliot (John Donne, assim como Eliot, deixou de lado a poesia no auge de sua carreira, para se dedicar a seus sermões, que poucos lêem hoje. John Milton abandonou a poesia por vinte anos, durante a Guerra Civil da Inglaterra). Todos estes escreveram muito sobre questões relevantes de seus dias, e estes trabalhos transformaram–se em meras curiosidades, notas obscuras colocadas no rodapé da história literária. Enquanto isto, suas criações baseadas, no dizer de Faulkner, "... nas velhas verdades universais, na falta das quais qualquer tipo de arte é efêmera e perdida: amor, honra, piedade, orgulho, compaixão e sacrifício", não cessaram até hoje de iluminar e inspirar.

Em algum ponto do caminho, T. S. Eliot recuperou sua voz poética. Em uma série de poemas, The Four Quartets, escrita durante a pior fase da II Guerra Mundial, ele conseguiu misturar a música e a mensagem. Nestes poemas pode ver–se seu olho arguto, perscrutador, presente em seus primeiros trabalhos, mas temperado com as percepções de sua peregrinação religiosa. Um exemplo:

Trabalha com o aço o cirurgião ferido Explorando a enferma parte; Abaixo das mãos sangrentas sentimos A aguda compaixão da curadora arte Solucionando o enigma da febre que arde. Nossa única saúde é a doença se obedecemos a enfermeira à morte Cujo cuidado constante não visa a agradar Mas nos lembrar da maldição, nossa e de Adão, E de que, para sermos restaurados, nossa doença precisa piorar.

Assim como muitos cristãos frente à arte, T. S. Eliot questionava o valor inerente ao seu

trabalho. Vale a pena dedicar–me à arte? EU é útil? Em certas épocas é difícil responder positivamente, à vista de crises globais. Ainda assim, a perspectiva se altera com o passar do tempo. Duvido que organizassem uma turma na Universidade de Chicago para estudar a obra de T. S. Eliot se ele houvesse deixado apenas seu trabalho sobre teoria social e as peças teatrais escritas para a igreja. E, mesmo que essa turma funcionasse, sei que eu não percorreria 85 quarteirões de metrô para participar dela.

Num mundo em que todos são fugitivos, quem vai na direção contrária é que parece estar fugindo.

–T. S. Eliot

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DOIS BEZERROS TEIMOSOS

A obra biográfica Dostoievsky: The Years of Ordeal, 1850/1859 (Dostoievski: Os Anos de Provação), da autoria de Joseph Frank, focaliza o período de dez anos que formou o caráter e a perspectiva espiritual de um dos maiores romancistas de todos os tempos. Esse livro é parte de uma série de cinco volumes. Ao lê–lo, não pude deixar de pensar nos vários paralelos entre Feodor Dostoievski, o gigante da literatura do século XIX, e Aleksandr Solzhenitsyn, o gigante do século XX. Este último prestou, conscientemente, um tributo a seu antecessor, dando aos personagens de One Day in the Life of Ivan Denisovich (Um Dia na Vida de Ivan Denisovich), os mesmos nomes de seus protótipos da obra de Dostoievski: Os Irmãos Karamazov. É notável que os dois escritores afirmem que seu desenvolvimento espiritual aconteceu em um período de aprisionamento na Sibéria, onde viveram inesperada conversão religiosa e suportaram o refinamento fogo do sofrimento. Dostoievski passou por uma espécie de ressurreição. Foi preso por pertencer a um grupo que o Czar Nicolau I considerou traidor. Com o intuito de impressionar os jovens radicais que mais falavam do que agiam, o Czar condenou–os à morte e preparou todo o cenário da execução. Os conspiradores foram vestidos em togas brancas longas e levados a uma praça. Vendados, com os braços amarrados firmemente às costas, desfilaram diante de uma multidão tola, embasbacada, e foram atados a estacas à frente de um batalhão de fuzilamento. No último instante antes da ordem de atirar, um homem galopou pela praça com uma mensagem do Czar: ele, misericordiosamente, revogava a pena de morte e sentenciava–os a trabalhos forçados. Dostoievski jamais se recuperou desta experiência terrível. Estivera nas garras da morte e, daquele momento em diante, sua vida tornou–se seu bem mais precioso, além de qualquer preço. Ao acreditar que recebera de Deus uma segunda oportunidade para atender ao seu chamado, passou a estudar com afinco o Novo Testamento e a vida dos santos. Dez anos depois saiu da prisão com convicções cristãs inabaláveis, como expresso em sua famosa frase:

Se alguém me provasse que Cristo está afastado da verdade ... então eu preferiria permanecer com Cristo, longe da verdade.

Aleksandr Solzhcnitsyn relata de forma comovente seu próprio despertamento espiritual

no segundo volume de Arquipélago Gulag. Ele sempre se maravilhara frente ao amor, paciência e longanimidade dos crentes russos perseguidos. Certa noite estava em uma cama no hospital da prisão e um médico judeu, Boris Kornfeld, assentou–se a seu lado e relatou a história de sua conversão ao cristianismo. Naquela mesma noite o médico foi atacado a pauladas enquanto dormia e morreu. Solzhenitsyn escreveu que as últimas palavras do médico neste mundo permaneciam com ele, como uma herança. Com esta experiência, voltou a crer. Assim como Dostoievski, também passou por uma espécie de ressurreição. Recuperou–se, apesar de todas as probabilidades em contrário, de um câncer no estômago, no ambiente inóspito do Gulag. Este milagre deixou–o convencido de que Deus o livrara para que testemunhasse através de seu trabalho. A partir daquela época, passou a dedicar entre 14 e 16 horas todos os dias para completar sua tarefa.

A prisão também ofereceu outras "vantagens" aos dois escritores. Além de moldar a perspectiva espiritual, constituiu–se em ambiente humano rico em material para a sua obra e seu trabalho. Dostoievski foi obrigado a viver muito próximo a ladrões, assassinos e camponeses bêbados, homens cheios de ódio contra a classe de pessoas sofiscicada que ele próprio representava. Nesse mundo, o melodrama era mais do que uma convenção literária. O biógrafo Joseph Frank afirma:

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A vida no campo de prisioneiros deu–lhe uma vantagem única: um local onde pôde estudar os seres humanos que viviam sob pressão psicológica extrema, reagindo a esta pressão com os comportamentos mais loucos.

Essa experiência de proximidade levou à criação de personagens incomparáveis, como o

assassino Raskolnikov de Crime e Castigo, Na prisão, a visão liberal de Dostoievski quanto à bondade inerente do homem comum, colidindo com a realidade encontrada em seus companheiros de cela, desintegrou–se. Mas, com o passar de tempo, ele também viu alguns lampejos que provam a existência da imagem de Deus até mesmo naquelas pessoas tão rebaixadas.

A experiência de Solzhenitsyn foi estranhamente similar. Embora, a princípio, haja considerado os outros prisioneiros repulsivos, depois aprendeu a vê–los sob luz diferente.

Hoje, quando sinto um impulso de escrever sobre meus vizinhos naquele ambiente, percebo qual a principal vantagem de escrever: nunca mais em minha vida, nem por inclinação pessoal ou no labirinto social, voltaria a me aproximar de tais pessoas. ... Embora tarde, porém, olhei para mim mesmo e percebi que sempre devotara meu tempo e atenção para pessoas que me fascinavam e eram agradáveis, que conquistavam minha simpatia, e como conseqüência via a sociedade como vejo a Lua, sempre pelo mesmo lado.

Também ele saiu da prisão com neva visão da humanidade, que apareceria em todos os

seus escritos. Assim refletia: Só deitado lá, na palha podre da prisão, foi que senti dentro de mim os primeiros ímpetos do bem. Gradualmente, foi–me revelado que a (152)

O REJEITADO

Shusaku Endo, morto em 1996, foi uma criatura das mais raras no Japão: cristão durante

toda sua vida. Em um país onde a Igreja constitui menos de 1% da população, foi criado por sua mãe devota a Cristo e batizado aos onze anos de idade. Ainda mais surpreendente, Endo, o maior romancista japonês, escreveu livros com temas cristãos, que invariavelmente ficavam entre os mais vendidos do país. Ele era como um herói cultural no Japão, e ate apresentou um programa de entrevistas na televisão no horário noturno.

Sua obra recebeu elogios de escritores famosos como John Updike e Graham Greene, e foi muitas vezes indicado como candidato ao Prêmio Nobel de Literatura. Nove de seus romances foram traduzidos para o inglês, mas seu livro mais popular nos Estados Unidos foi A Life of Jesus (Uma Vida de Jesus), seu relato pessoal de fé.

Ao crescer como cristão no Japão antes da II Guerra Mundial, Endo sentia–se constantemente alienado. Algumas vezes seus colegas de classe o maltratavam por sua ligação com uma religião "ocidental". Após a guerra viajou para a França, na esperança de estudar romancistas franceses católicos como François Mauriac e George Bernanos. Mas a cidade de Lyon em 1949 não permitiu que se sentisse bem–vindo: desta vez conheceu a rejeição racial em lugar da religiosa. Os aliados haviam conduzido uma corrente contínua de propagandas contra os japoneses, e Endo tornou–se alvo de muito abuso racial.

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Rejeitado em sua terra natal e em seu lar espiritual, enfrentou uma grande crise de fé. Passou vários anos pesquisando a vida de Jesus na Palestina, e ali fez uma descoberta que o transformou: Jesus, também, foi rejeitado. Mais do que isto, a vida de Jesus caracterizou–se pela rejeição. Seus vizinhos riam dEle, sua família às vezes questionava sua sanidade mental, seus amigos mais chegados O traíram e seus compatriotas trocaram sua vida pela de um terrorista. Enquanto andou na Terra, Jesus parecia ser atraído por outros rejeitados: leprosos, prostitutas, paralíticos, pecadores notórios.

Este aspecto da vida de Jesus atingiu Endo com a força de uma revelação. Ao viver no Japão, vira o cristianismo a distância, como uma fé triunfante e conquistadora. Estudara o Santo Império Romano e as brilhantes Cruzadas, admirara fotografias das grandes catedrais da Europa, sonhara em viver em um país onde poderia ser cristão sem cair em desgraça. Mas ali, enquanto estudava a Bíblia, percebeu que o próprio Cristo não evitara "cair em desgraça". Jesus foi o Servo Sofredor, como descrito em Isaías:

... pasmaram muitos à vista dele, pois o seu aspecto estava mui desfigurado, mais do que o de outro qualquer, e a sua aparência mais do que a dos outros filhos dos homens, ... ... não linha aparência nem formosura; olhamo–lo, mas nenhuma beleza havia, que nos agradasse. Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores, e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto ...

O tema central em muitos dos romances de Endo é a rejeição e o sofrimento. Silêncio, o

mais famoso, conta a história de cristãos japoneses que renegaram sua fé em face da perseguição brutal dos xoguns. Ele lera muitas histórias emocionantes de mártires cristãos, mas nenhuma sobre traidores da fé. Nem poderia ler, porque nenhuma fora escrita. Ainda assim, para ele, a mensagem mais poderosa de Jesus era seu amor inextinguível, até mesmo – especialmente – pelos que o traíram. Seus discípulos se afastaram dEle; e Ele continuava a amá–los. Seu país O executou; mas enquanto estava esticado, nu, na posição da desgraça mais completa, esforçou–se para conseguir gritar: Falta pág. (155)

AVANÇANDO PARA O PASSADO

Era manhã de sábado. Comecei minha corrida sob o céu encoberto, e no meio do caminho

as nuvens resolveram deixar a chuva fina e fria cair e fiquei ensopado. Tinha consciência de minha aparência terrível ao parar na loja de ferragens no caminho de volta para casa. A água pingava de minha roupa e de meu cabelo enquanto eu tirava uma nota amassada do bolso de meu calção para pagar alguns materiais para calafetar as janelas de minha casa. O dia parecia fadado ao insucesso.

Depois de tomar banho, torrei alguns grãos de café e bebi duas xícaras do líquido quente e fumarento e decidi jogar fora a lista de tarefas que designara para mim mesmo. Resolvi ir ao cinema. Estava acontecendo o Festival do Filme de Chicago, e logo me encontrei no cinema, assistindo a Following the Führer (Seguindo o Führer), filme sobre o Terceiro Reich, dirigido por Erwin Leiser. Vinte e cinco anos depois de rodar seu sucesso Mein Kampf, ele assumia de

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novo a carga terrível de um artista alemão: tentava entender o caso de amor entre seu país e Hitler.

Para minha surpresa, o próprio Erwin Leiser, homem forte, bigodudo, estava presente à première. Apresentou o filme, explicando, em um inglês com sotaque carregado, por que o fizera:

– Construí Mein Kampf em torno de documentários dos grandes comícios de Hitler. Mostrei o espetáculo do Reich que atraiu o povo alemão. Mas assistindo, vezes sem conta, a estes documentários, percebi que não retratavam a vida cotidiana. Não mostravam os alemães comuns. Sim, algumas pessoas gritavam em apoio a Hitler, mas olhe com atenção as cenas nos filmes. Outras, bem atrás, assistiam a tudo com a fisionomia inexpressiva. E elas? Que acontecia em sua vida? Fiz este filme na tentativa de responder a esta pergunta.

Assim, em seu segundo filme sobre a Alemanha de Hitler, Leiser tentou recriar a vida cotidiana. Uma vez mais começou com as cenas tão conhecidas: soldados marchando com passadas duras, comícios imensos, o edifício Reichstag em chamas, cenas da violência contra os judeus. Mas, entremeadas com estas cenas familiares, encaixou pequenas vinhetas, dramatizadas, da vida na Alemanha.

• Um juiz assentado em uma cadeira no escritório de um burocrata nazista. Destituído de toda dignidade, se embaraça, tentando explicar por que faltou ao comício para ir tocar Mozart com a orquestra da qual participa.

• Uma faxineira esfrega com vigor teutônico uma escada de ladrilhos e desafia, teimosamente, o conselho de sua vizinha pata deixar de trabalhar nas casas dos judeus.

• Consumidores de uma loja, muito desapontados, esperam o fim de um ataque aéreo em um abrigo subterrâneo. Conversam sobre derrotas militares que nunca aparecem na imprensa alemã.

• Um oficial do exército acaba com todas as tentativas de sua esposa de criar um ambiente festivo durante sua licença de Natal. Esvazia uma garrafa de vinho em, virtualmente, um gole. Diz que é a única maneira de esquecer os vagões de gado carregados de judeus que ele expediu do fronte oriental.

• Dois adolescentes vagam pela cidade e encontram um panfleto jogado por um avião dos aliados. Mostra corpos empilhados como madeira em um campo de concentração alemão. Eles discutem se essas coisas realmente acontecem ou se aquilo é apenas propaganda de guerra.

O filme, utilizando a técnica de alternar documentários com vinhetas pessoais, explora a

larga fronteira obscura entre o que viria à luz para a História posteriormente e o que realmente acontecia na

Falta pág. (158)

zer, ou as calotas polares derreterem, ou a chuva acida acabar com a água potável? Que ficará evidente quanto à nossa civilização?

Quanto mais conjeturava, mais me deprimia. E quando meus pensamentos se voltaram para mim mesmo, e imaginei como eu, cidadão comum, encaixar–me–ia em tais situações, fiquei ainda mais deprimido. Como um Erwin Leiser do século XXI, juntaria cenas de minha vida com as de documentários desta época confusa? Senti–me desamparado e inadequado como não desde a década de 60, quando quase todo mundo sentia desamparo e inadequação.

Ao chegar em casa, peguei na geladeira um pedaço de pizza e aqueci no microondas. Então, decidi seguir a lista de tarefas que tinha para aquele sábado. Passei o resto da tarde colocando massa de calafetar nas janelas de minha casa.

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O ANIMAL HUMANO

• Por que existem tantos tipos de animais? Será que o mundo não poderia prosseguir com, digamos, 300 mil espécies de besouros em vez de 500 mil? Qual a vantagem da existência deles?

• Por que os animais mais belos da terra ficam escondidos de todos os humanos, a não ser daqueles que usam os complicados equipamentos de mergulho? Quem ê beneficiado com a beleza deles?

• Por que a quase totalidade da arte religiosa é realista, enquanto que grande parte da criação de Deus — zebras, borboletas, estruturas cristalinas — é exemplo rematado de designer abstrato?

• Por que é tão mais fácil treinar os cães do que os gatos? Quais dão mais orgulho a Deus: os cães ou os gatos?

• Os seres humanos são animais' São qualquer coisa além de animais? Por que não são mais fáceis de treinar?

• Por que existem piadas sujas? De qualquer forma, o que é que torna a fisiologia da excreção e da reprodução tão engraçadas?

• Pergunto como Walker Percy: "Por que o homem se sente tão triste no século XX? Por que se sente tão mal exatamente na era em que, mais do que em qualquer outra, tem tido sucesso na satisfação de suas necessidades e na utilização dos recursos que há no mundo? "

• Os gorilas e os javalis atravessam a crise da meia–idade? • Por que o livro de Eclesiastes está na Bíblia? Será que o autor do livro enfrentava uma

crise de meia–idade? Como seria uma crise destas na vida de um rei dos hebreus? • Por que Salomão, que demonstrou tanta sabedoria ao escrever Provérbios, passou os

últimos anos de sua vida contrariando todos os seus ensinamentos? • Por que Cantares de Salomão está na Bíblia? Por que só este livro da Bíblia é

interpretado como alegoria quando, na verdade, não há qualquer indicação nas Escrituras de que a intenção do autor fosse alegórica? Como pode uma religião que inclui um texto como Cantares de Salomão entre seus escritos sagrados ser conhecida como inimiga do sexo?

• Por que o sexo é uma fonte de prazer? Eu só queria saber... São perguntas que precisam de respostas.

O UNIVERSO E MEU AQUÁRIO

Ao olhar através de minha janela no Centro da Cidade, vejo um prédio de vinte andares,

todo de concreto e vidro. As sacadas dos apartamentos são repletas de todo tipo de objetos: bicicletas, churrasqueiras portáteis e cadeiras de varanda. Mais perto há antenas de metal tortas, que se projetam de uma loja de aparelhos de vídeo como galhos secos. Vejo também o telhado cinza de uma loja de biscoitos, o exaustor de alumínio de um restaurante italiano e uma rede de fios pretos destinados a levar eletricidade a todos estes monumentos à civilização (o motivo de escolhermos morar aqui não foi a vista da janela.)

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Mas, se virar a cabeça para a direita (e sempre o foço), posso ver um paraíso tropical vivo. Um pedaço do Caribe penetrou em meu escritório. Um retângulo de vidro contém cinco conchas marítimas cobertas de algas aveludadas, caules de coral plantados como uma cerca viva no fundo pedregoso e sete das criaturas mais exóticas que existem neste mundo de Deus. Os peixes de água salgada apresentam cores tão puras e brilhantes que parece que as criam em vez de refletir as ondas de luz que as produzem. O peixe de cores mais vivas em meu aquário é dividido ao meio, com a cauda amarelo–brilhante e a cabeça de um vermelho berrante. Parece que ele enfiou a cabeça em um balde de tinta.

Meu gosto tende a ser um pouco bizarro, e, além do peixe bonito, tenho dois que são surpreendentes, mas dificilmente se diria que são belos. Um baiacu com chifres bem longos saindo da cabeça e do abdômen impele seu corpo retangular por todo o aquário com nadadeiras tão minúsculas que não sei como consegue se mover. Se um besourão desafia as leis da aerodinâmica, o baiacu desafia as leis da "aquadinâmica". Outro, um peixe–leão, é todo coberto de barbatanas e espetos, com protuberâncias ameaçadoras, como aquelas criaturas de papel extravagante que dançam pelo palco nas óperas chinesas.

Mantenho o aquário como uma advertência. Quando a solidão do escritor me incomoda, ou o sofrimento chega perto demais, ou o céu e os edifícios acinzentados de Chicago abafam minha mente e minhas emoções, volto–me e contemplo o aquário. Ao olhar através de minha janela, não avisto as Montanhas Rochosas, e a baleia azul mais próxima está a meio continente de distância, mas certamente possuo este pequeno retângulo para me lembrar de que existe um mundo maior do lado de fora de minha casa. Meio milhão de espécies de besouros, dez mil desenhos de borboletas diferentes, um bilhão de peixes como os meus passeando pelos recifes de corais, existe muita beleza por aí, muitas vezes longe de olhos humanos. Meu aquário me recorda isto.

Mas mesmo aqui, na beleza de meu Universo artificial, o sofrimento aparece. Chesterton afirmou que a natureza não é nossa mãe, e, sim, nossa irmã, porque também caiu. As barbatanas e os espetos de meu peixe–leão são bem ameaçadores, pois podem conter toxinas suficientes para matar uma pessoa. E quando qualquer um dos peixes apresenta um sinal de fraqueza os outros se voltam contra ele, atormentando–o, sem nenhuma misericórdia. Na semana passada mesmo, os outros seis peixes atacaram brutalmente o olho infeccionado do baiacu. Dentro dos aquários, os pacifistas têm vida curta.

Dedico muito tempo e esforço ao combate de parasitas, bactérias e fungos que invadem o aquário. Possuo um laboratório químico portátil para testar a gravidade específica, os níveis dos nitratos e nitritos e a quantidade de amônia. Adiciono vitaminas, antibióticos e sulfa, além de enzimas suficientes para fazerem até uma pedra crescer. Filtro a água através de fibra de vidro e carvão e a exponho à luz ultravioleta. Mesmo assim os peixes não vivem muito. Digo a meus amigos que os peixes são animais de estimação meio estranhos: os únicos "truques" que sabem fazer são comer, adoecer e morrer.

Alguém poderia pensar que, à vista de tanta energia gasta em cuidar deles, meus peixes seriam, pelo menos, gratos. De forma alguma. Todas as vezes em que minha sombra aparece sobre o tanque nadam em busca de esconderijo na concha mais próxima. Três vezes por dia abro a tampa e jogo comida, mas assim mesmo eles reagem a cada abertura como um sinal certo de meu empenho em torturá–los. Peixes não são animais de estimação que devolvam o amor que lhes dedicamos.

O esforço necessário para cuidar de meu aquário me levou a uma apreciação mais profunda do que significa controlar um Universo baseado em leis físicas imutáveis. Para meus peixes sou uma deidade que não hesita quando é necessário intervir. Equilibro a salinidade e verifico os elementos na água. O tanque só recebe o alimento que retiro de meu freezer e coloco lá dentro. Eles não viveriam sequer um dia sem o aparelho elétrico que adiciona oxigênio à água.

Tenho que tomar uma decisão muito difícil cada vez que é necessário tratar alguma infecção. O ideal seria remover o peixe doente para um outro tanque, onde ficaria em

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quarentena, evitando assim que os outros o atacassem e fossem contaminados. Mas esta intervenção violenta e até mesmo o simples ato de perseguir o peixe doente com a rede poderia causar mais danos do que a própria doença. A tensão resultante do tratamento pode, na verdade, causar a morte.

Com freqüência, anseio por um modo de me comunicar com estes habitantes das águas, seres destituídos de inteligência. Em face da ignorância, enxergam–me como uma ameaça constante. Não consigo convencê–los de que minha preocupação com eles é verdadeira. Sou grande demais, minhas ações incompreensíveis. Vêem meus atos de misericórdia como crueldade, enxergam minhas tentativas de curá–los como destruição. Para mudar estas percepções seria necessário um ripo de encarnação.

Comprei meu aquário para iluminar um quarto escuro, mas acabei aprendendo algumas lições sobre dirigir um Universo. É necessário esforço constante para equilibrar as leis físicas instáveis. Com freqüência os atos mais cheios de graça passam despercebidos ou até mesmo são motivo de ressentimento. Quanto às intervenções, nunca é simples agir, quer os Universos sejam grandes ou pequenos. Falta pág. (167) não levássemos a sério o restaure do livro. Pelo menos Deus possuía a glória da natureza naquela época de trevas, quando Israel enfrentava a extinção e Judá descambava para a idolatria.

Deus deixa muito claro como se sente quanto ao reino animal em seu discurso mais longo, uma fala magnífica registrada no final do livro de Jó. Olhe com mais atenção e notará um traço comum nas espécies que Ele apresenta para a edificação de Jó:

• Uma leoa correndo atrás de sua presa. • Uma cabra montêsa dando à luz sua cria nas regiões selvagens. • Um jumento bravo habitando nas terras salgadas. • Um avestruz batendo suas asas inúteis com alegria. • Um cavalo se erguendo e batendo suas patas no ar. • Um gavião, uma águia e um corvo construindo o ninho nas encostas rochosas. Tudo isto foi apenas uma introdução, uma aula de zoologia para aumentar o conhecimento

de Jó. Daí Deus avança para o beemote, criatura semelhante ao hipopótamo, que ninguém consegue domar e para o poderoso leviatã, parecido com um dragão. Deus pergunta com um toque de sarcasmo:

– Você é capaz de transformá–lo em um animal de estimação, como um pássaro, ou colocá–lo numa corrente e entregar para suas filhas? Só olhar para ele já é uma experiência tremenda. Não há quem seja forte o suficiente para despertá–lo. Então, quem conseguirá enfrentar–me?

Vida selvagem é a mensagem que Deus transmite a Jó, a particularidade presente em todos os animais. Ele está exaltando os membros do mundo que criou que jamais serão domesticados pelos seres humanos. É evidente que os animais selvagens desempenham uma função essencial no "mundo como Deus o vê". Eles nos repreendem por nossa arrogância, lembrando–nos de uma coisa que preferimos esquecer: nossa condição de criaturas. Além disto, mostram–nos o esplendor de um Deus invisível, que não pode ser domesticado.

* * * Corro várias vezes por semana entre animais selvagens como estes que citei acima, mas

não sou molestado por eles, já que corro no jardim zoológico do Parque Lincoln, no Centro de Chicago. Conheço–os bem, são vizinhos agradáveis, mas sempre faço um esforço mental para imaginá–los em seus habitats naturais.

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Três pingüins se balançam neuroticamente para a frente e para trás, sobre um pedaço de concreto que recebeu tinta spray para ficar parecido com gelo. Imagino–os livres, pulando de um bloco de gelo a outro na Antártida, cercados por milhões de primos, todos com a aparência tão cômica quanto a deles.

Um elefante idoso se coloca próximo a um muro, marcando o tempo de três modos diferentes: o corpo balança lateralmente em um ritmo, a cauda marca um outro ritmo completamente diferente e a tromba se move em outro, diverso dos dois primeiros. Tenho dificuldade em imaginar esse gigante indolente suscitando terror em uma floresta na África.

E a chita barriguda que se move suavemente por uma prateleira de pedra: será possível que este animal pertence à espécie que é capaz de, em um espaço pequeno, acelerar mais do que um Porsche?

É necessário um salto enorme em minha mente para colocar o pingüim, o elefante e a chita no lugar ao qual pertencem, de onde vieram. De alguma forma, a mensagem arrebatadora de Deus sobre a vida selvagem se evapora ao atravessar os fossos, as barras e as placas informativas do zoológico. Ainda assim, sou afortunado por morar perto dele porque, caso contrário, Chicago só me ofereceria esquilos, pombos, baratas, ratos e alguns poucos pássaros. Será que era isto que Deus tinha em mente ao conceder a Adão o domínio sobre os animais?

* * * É difícil evitar um tom de censura ao escrever sobre os animais selvagens, porque nossos

pecados contra eles são muito grandes. Nos Faltam as págs. (170-171) - Tentei sair de casa com minha cachorra hoje de manhã. Ela só deu uma fungada e foi

direto se deitar no cobertor elétrico. - Ouvi dizer que a diferença entre —40ºC e –30ºC é que, no primeiro, seu cuspe congela

antes de chegar ao chão. É este o tipo de conversa que se ouve em Chicago no meio de janeiro. Durante o Inverno temos todos um inimigo comum tão poderoso que nossas prioridades

são revistas: os apresentadores de notícias na televisão contam histórias sobre o frio durante cinco minutos antes de passarem a assuntos menores como os conflitos internacionais e o comércio mundial. Nosso oponente real está do lado de fora, cercando–nos palpavelmente e nós, humanos, ajuntamo–nos por trás das barreiras de tijolo e cimento. E sobrevivemos. Juntos venceremos o inimigo. O espírito de tudo isto é estranhamente atávico: somos guerreiros em uma caverna, tentando reunir coragem para enfrentar o bando de mamutes que nos espera do lado de fora.

Ouvi recentemente sobre uma pesquisa feita com cidadãos idosos de Londres. Ao serem perguntados sobre o período mais feliz de sua vida, 60% deles responderam que fora a Blitz.12 Naquela época, todas as noites, os esquadrões de bombardeiros da Luftwaffe derramava toneladas de explosivos sobre a cidade, reduzindo o orgulho de uma civilização a entulho, e hoje as vítimas se recordam daquela época com saudade! Eles também tinham um inimigo do lado de fora e se juntavam nos lugares escuros, determinados a sobreviver.

* * * Antes, as pessoas usavam uma expressão estranha e humilde: diziam que estavam "à

mercê" dos elementos. Hoje, com todas as nossas defesas tecnológicas, raramente estamos à mercê deles, e muito poucas vezes somos humildes. Graças à meteorologia, o clima perdeu até mesmo seu fator surpresa. (Por que o homem que apresenta a previsão do tempo na 12 A Blitz foi o período, durante a II Guerra Mundial, em que os alemães atacaram com mais intensidade a cidade de Londres, destruindo grande parte dela e causando muitas mortes (N da T).

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televisão fala sempre sobre correntes de ar e desenha setas por todo o globo quando tudo que quero saber é que casaco devo vestir amanhã?) Mas de vez em quando, em janeiro ou fevereiro chega uma boa frente fria indisciplinada trazendo frio e neve e, literalmente, detém–nos, e ensina–nos sobre "mercê". Acima de tudo, o Inverno lembra–nos nossa condição de criaturas. Voltamos a ver que somos pequenos, criaturas que se juntam e dependem umas das outras e do Deus que criou o espantoso Universo. Eliú disse a Jó:

Com a sua voz troveja Deus maravilhosamente.... à neve diz: Cai sobre a terra"; como também ... à sua forte chuva ... para que conheçam todos os homens a sua obra,... Ao aflito livra da sua aflição.

Isto acontece até mesmo em uma cidade muito grande, como Chicago. No dia em que

chega uma grande nevasca, os trens deixam de correr, esquiadores tomam o lugar dos carros nas ruas e ninguém vai trabalhar.

* * * Certo dia em fevereiro, peguei a Lake Shore, uma avenida que passa ao lado do Lago de

Chicago, rumo ao Centro da Cidade. e) sol brilhava muito. É estranho, mas os dias mais frios sempre são os de céu mais limpo, porque é a cobertura de nuvens que mantém a Terra aquecida. À minha esquerda, o Ligo Michigan tentava decidir se congelava ou não. Logo acima da água azul–turquesa formava–se uma fumaça de gelo, aquele fenômeno sensacional no qual a água deixa de lado as etapas intermediárias e parte do estado líquido, se condensando, formando minúsculos cristais de gelo. A minha direita, o contorno da cidade iluminava–se com os raios esmaecidos e oblíquos do sol de inverno. É curioso, mas a cena roda tinha um toque acolhedor. Não entendi o motivo, até que percebi a fumaça branca que flutuava no topo de cada prédio. Parecia que eles estavam respirando – até mesmo o concreto e o aço haviam assumido um pouco das características dos seres vivos.

Talvez Eliot tenha razão sobre a crueldade de abril: este mês põe um ponto final nas delícias sutis do Inverno. Meus pensamentos seguiram neste sentido até que fiz uma curva e cheguei ao Parque Lincoln. Ali, avistei alguns dos desabrigados de Chicago. Poucas camadas de jornais velhos e algumas sacolas de plástico constituíam toda sua proteção contra o frio. Eles, também, ajuntavam–se, mas pouco havia ali da alegria e camaradagem que eu sentia nas pessoas nas paradas de ônibus e mercearias. Tentavam apenas se manter vivos.

Foi então que percebi que gostar de fevereiro, usando palavras como agradável e revigorante, experimentando o aconchego das barreiras criadas pelo homem contra os elementos era o maior dos luxos. E captei outro sentido importante da palavra mercê. A percepção da condição de ser criatura, reunindo–se com outras em cavernas, abrigos antibombas ou nos prédios de Chicago – só resulta em um sentimento semelhante à alegria se nós, as criaturas, mostrarmos misericórdia para com aquelas que se colocarem à nossa "mercê". Esta é uma boa lição para se lembrar em fevereiro, abril ou em qualquer outro mês. Falta pág. (175) para marcar a passagem final do ser humano. Mesmo nós, cristãos do mundo ocidental, com nossa crença tradicional em uma vida após a morte, vestimos defuntos com roupas novas, embalsamamos (para que, para a posteridade?) e enterramos em caixões herméticos colocados em túmulos de concreto para diminuir o ritmo da decomposição natural. Nestes rituais agimos a partir da relutância em nos entregar a esta que é a mais poderosa das experiências humanas.

Lewis acredita em que estas anomalias (assim como outra que é mais citada, a consciência humana) revelam o estado permanente de falta de unidade em nosso interior. Cada indivíduo é um espírito feito à imagem de Deus, fundido com um corpo de carne mortal. As piadas sujas e a obsessão com a morte demonstram um sentimento profundo de conflito inerente a este

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estado intermediário. Deveríamos perceber o conflito. Afinal, somos seres imortais presos em um ambiente mortal. Falta–nos a unidade interior porque, há muito tempo, um abismo se abriu entre nossa parte mortal e a imortal. Os teólogos afirmam que a falha começou na queda do primeiro homem.

É claro que nem todos assinam em baixo desta teologia natural. Os biólogos, psicólogos e antropólogos modernos trabalham com uma pressuposição materialista que nega o espírito. Estudam nossas partes mortais e concluem que não há mais nada em nós. (Tolstoi disse que os materialistas se enganam, afirmando que o limite da vida é a própria vida.) Mas será que tais observadores não têm algumas explicações a dar? Até hoje não vi um trabalho de um psicólogo adepto do evolucionismo abordando a origem das piadas sujas. Qual o papel que elas desempenham na perpetuação das características genéticas? De onde vêm estes conflitos que nos agitam?

De acordo com a visão bíblica, é natural corarmos frente à excreção e nos afastarmos da morte. Estes acontecimentos parecem–nos estranhos porque na verdade o são. Em toda a terra não há nada exatamente semelhante a esta situação de espírito e imortalidade alojados na matéria. A confusão que sentimos talvez seja nossa sensação humana mais acurada, lembrando–nos de que este não é exatamente o nosso lar. C.S. Lewis usou uma hipérbole: alguém que desejasse extrair a teologia mais fundamental das piadas sujas e de nossas atitudes em face da morte encontraria muita dificuldade. Mas seria mais difícil ainda negar toda a teologia natural diante destes e de outros traços de transcendência.

Além destas esquisitices da natureza humana, Lewis mencionou mais uma: Nosso espanto frente ao conceito de tempo. A última página de sua obra Reflections on the Psalms (Reflexões sobre os Salmos) resume o estado transitório e suspenso em que vivemos.

O tempo nos incomoda tanto que chegamos até mesmo a ficar atônitos com ele. Exclamamos: "Como ele cresceu! O tempo voa!", como se a forma universal de nossa experiência fosse sempre uma novidade. Esta atitude é tão estranha quanto seria a de um peixe que se surpreendesse continuamente porque a água é molhada. E isto seria na verdade muito estranho, a menos que o peixe estivesse destinado a, um dia, transformar–se em um animal terrestre.

REENCONTRO DA TURMA DO 2º GRAU

Se eu fosse um evolucionista intransigente e quisesse fazer desacreditada a doutrina cristã

sobre o homem, acredito que em vez de gastar meu tempo escavando à procura de ossos na África do Dr. Leakey13 perambularia pelos corredores dos colégios dos Estados Unidos. Neles se encontra uma vitrina do que há de mais atávico no animal humano. Esta afirmação é feita quando acabo de voltar do reencontro de minha turma do 2O

grau, vinte anos depois da formatura.

A época da vida em que o princípio "biologia é destino" parece ser mais verdadeiro é durante a adolescência. Descobri que, vinte anos depois de formados, os atletas do colégio continuam a caminhar com sua arrogância característica, apesar da barriga grande e da careca que avança. Outro grupo, o das líderes de torcida, estava mais conservado. Tendo aprendido bem cedo que a carne – o rosto e o corpo – era seu melhor passaporte para o sucesso, elas disfarçam as rugas faciais e os quilos a mais, melhor do que os outros. Descalças e um pouco

13 Antropólogo e arqueólogo que trabalhou na África Oriental, pesquisando a evolução humana. Popularizou a arqueologia com suas palestras e seus livros. (N da T)

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envergonhadas, aquelas profissionais e donas–de–casa lideraram–nos em alguns gritos de torcida que lembrávamos apenas pela metade.

Os nerds14 também marcaram sua presença. Durante os anos do colégio eles eram os vencedores das feiras de ciências, levavam o clube de xadrez à vitória e elevavam a nota da escola no SAT15 e recebiam, em face dos seus esforços, desprezo e ofensas de todos os lados. A passagem do tempo lhes concedeu uma grande vingança: dentre adolescentes estranhos emergiram cientistas pesquisadores, programadores de computador e peritos do mercado de ações.

Um grupo dos colégios de 2O grau passou por mutações no decorrer dos últimos vinte

anos. Seus componentes eram chamados, primeiro, de "pilantras", depois de "tremendões" e, por fim, de "malas". Nenhum deles veio para o reencontro com brilhantina no cabelo e nem com um maço de cigarro preso na manga da camiseta. Mas continuaram a se reunir nos cantos, constituindo–se nos marginais de uma sociedade inflexível. O que mudou foi o estilo, não o papel que desempenham.

Uma das lembranças mais vívidas que guardo de meu tempo de colégio é um conflito tremendo entre o líder dos "pilantras" (acredito que hoje ele seria o chefe de uma gangue) e o líder dos atletas, o zagueiro do time de futebol americano da escola. Pelo menos trezentos alunos bloquearam um corredor, mantendo os professores exaltados afastados enquanto os dois lutavam para ver quem ficava com uma garota.

Nunca esquecerei o momento em que, de repente, a turma que torcia animada parou, ao ver que o "pilantra" agarrava o zagueiro e batia a cabeça dele com força contra o esguicho do bebedouro uma, duas, três vezes. A multidão de alunos começou a se afastar, em um silêncio apreensivo, permitindo que, afinal, os professores atendessem o zagueiro, que se contorcia no chão, em meio a uma poça de sangue que crescia cada vez mais. A garota que provocara a luta se assentou no chão, ao lado dos armários, toda encolhida e ficou ali soluçando. Falta pág. (180) tivas. Os colégios mostram o que acontece quando, liberados do artifício polido da "maturidade", expressamos os instintos básicos que herdamos como membros da espécie humana.

Mas nosso chamado cristão instiga–nos a desafiar esses instintos. Jesus anunciou uma grande inversão de valores em seu Sermão do Monte, exaltando os pobres, perseguidos e sofredores, em lugar dos ricos e atraentes. Em vez de elogiar a riqueza, o poder político e a beleza física, Ele advertiu contra seus perigos. Um texto como o de Lucas 18 mostra o tipo de pessoas que impressionava a Jesus: uma viúva oprimida, um coletor de impostos em desespero, uma criancinha e um mendigo cego.

Os animais marcam, instintivamente, os fracos (nerds?) para serem rapidamente destruídos, e nós recebemos a ordem de valorizá–los. É–nos dito, também, que a satisfação não vem da procura da felicidade, mas da busca do serviço. Somos convocados a reagir a nossos fracassos mais horríveis com arrependimento aberto e não os escondendo. O Evangelho diz que, ao ser injustiçado, deve perdoar–se em lugar de procurar a vingança. E que não devemos acumular bens materiais, e, sim, trocar todos eles pelo reino dos céus, uma pérola de grande valor.

* * * Há muito tempo os cristãos se preocupam com a teoria da evolução, acreditando que

talvez ela reduza a humanidade a um status inferior ao que a Bíblia lhe concede. Nosso

14 Termo adotado também pelos adolescentes brasileiros, indica os alunos mais estudiosos, certinhos, em geral sem gosto para se vestir. Não costumam ter amigos e nem sabem se relacionar com os colegas. São alvo de muito ódio e desprezo. (N da T) 15 Teste padronizado que os alunos fazem no último ano da High School (2° grau), visando a conseguir uma vaga nas melhores universidades, lesta conheci mentos de inglês e de matemática. A escola também recebe uma nota em face da nota de seus alunos. (N da T)

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fracasso em convencer muitos cientistas das qualidades únicas da taça humana, feita "à imagem de Deus", leva–me a pensar em adotar uma estratégia totalmente diferente. E se, no lugar de tentar provar que o homo sapiens não é animal, procurássemos provar que somos muito mais do que animais? No lugar de contestar a antigüidade dos fósseis ou os resultados da engenharia genética, poderíamos, simplesmente, demonstrar que biologia não é destino. Qual seria a opinião das pessoas se ao dizer a palavra "cristão" outras dez viessem–lhes à mente: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio? Faltam as págs. (182-184)

E certo que este conselho não é sofisticado, nem cheio de conteúdo, mas acontece que

alguns de nossos conselhos modernos chegam a ser tão sofisticados que pairam acima do domínio da coerência racional.

2. Uma vez que o ser observador descobre o que o fará feliz, satisfeito e realizado, um tipo de determinismo se estabelece. O marido se sente obrigado a seguir a voz interior que lhe assegura que a senhorita B, e não a desgastada senhora A, e a solução para seus problemas. Esse determinismo é uma força de primeira linha, e freqüentemente mostra ser mais poderoso do que os instintos paternais e os votos matrimoniais feitos perante Deus e o Estado. É triste a regularidade com que vemos maridos e pais (ou esposas e mães) deixarem o cônjuge, filhos e, às vezes, até a Igreja e a fé para seguir esse estranho aceno interior. Dizem que precisam de ir, que a situação é maior que eles, de modo que não podem resistir.

Muitas dessas pessoas se oporiam com veemência à noção de determinismo ou a um simples aceno do legalismo. Por exemplo: suas atitudes desprezam os Dez Mandamentos, que eles deixam de lado como restritivos e sufocantes. E mesmo assim, o que poderia ser mais determinista do que ser obrigado a seguir elementos intangíveis como sentimentos, personalidade, predisposição e atração magnética?

Espero que alguns psicólogos esclarecidos dêem atenção ao que chamo de tirania do determinismo psicológico. Enquanto isto, apresento, para consideração, uma analogia apropriada, explorada por Dorothy Sayers em Begin Here (Começa Aqui), um livro pouco conhecido, escrito durante a II Guerra Mundial. Ela soluciona o dilema assim:

É verdade que o homem é dominado por sua constituição psicológica, mas apenas na mesma medida em que um artista é dominado por seu material. Não e possível a um escultor fazer um broche de filigrana a partir de uma pedra de granito; até este ponto ele é um servo da pedra em que trabalha. Sua habilidade e boa precisamente enquanto usa o granito para expressar suas intenções artísticas de forma compatível com a natureza da pedra. Isto não é escravidão, e. sim, a liberdade da pedra e a liberdade do escultor trabalhando juntas, em harmonia. Quanto melhor o escultor entender a verdadeira natureza de seu material bruto, maior será sua liberdade de usá–lo; e assim também é com cada homem, quando usa sua própria mente e emoções para expressar sua intenção consciente.

Sayers prossegue descrevendo a diferença entre assassinar a sogra e escrever uma história

de detetive sobre um crime semelhante. Os dois atos podem nascer do mesmo impulso inconsciente, diz ela, assim como cada atividade começa com o mesmo material bruto. No entanto, a diferença reside exatamente em como o impulso inconsciente se transforma em ação.

Cada vez nos aperfeiçoamos mais na identificação do que Sayers denominou "material bruto" de impulsos inconscientes e subconscientes. Talvez seja o momento adequado para uma ênfase igualmente forte na liberdade humana que nos permite, às vezes, agir contrariamente ao subconsciente, pelo bem da fidelidade.

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O PROBLEMA DO PRAZER

Por que o sexo é uma fonte de prazer? Obviamente, a reprodução não requer a existência

do prazer: alguns animais simplesmente se dividem ao meio, e até mesmo os humanos utilizam métodos de inseminação artificial que não envolvem prazer. Então, por que o sexo é uma fonte de prazer?

Por que comer acarreta prazer? As plantas e os animais de organismos menos complexos conseguem obter sua cota de nutrientes sem o luxo de papilas gustativas. Por que não acontece o mesmo conosco?

Por que existem cores? Algumas pessoas vivem muito bem sem a capacidade de distingui–las. Por que complicar o mecanismo da visão de todos os outros?

Outra questão: Que orgulho exagerado levou os fundadores dos Estados Unidos como nação a incluírem a busca da felicidade na lista em que relacionaram os três direitos inalienáveis? Na tentativa de explicar esta atitude, disseram que consideravam que essas verdades fossem evidentes por si só. Evidentes por si só? Ao avaliar a história, ninguém poderia chegar à conclusão de que a busca da felicidade é um direito evidente e inalienável. A morte talvez o seja — ninguém pode roubá–la de nós, mas a busca da felicidade? Em que nos baseamos para tomá–la como certa?

Percebi, outro dia, depois de ler mais um dos inúmeros livros que já me vieram às mãos sobre o problema da dor (que parece ser a obsessão teológica deste século), que jamais vi um livro sobre "o problema do prazer". E nem encontrei qualquer filósofo que balance a cabeça em perplexidade frente à questão básica de saber por que experimentamos o prazer.

De onde vem o prazer? Esta me parece uma questão muito importante que, para os ateístas, é a equivalente filosófica do problema da dor para os cristãos. Quanto ao prazer, os cristãos podem respirar mais aliviados. Um Deus bom e amoroso naturalmente iria desejar que suas criaturas sentissem prazer, alegria e satisfação pessoal. Nós, cristãos, partimos desta pressuposição e depois procuramos um modo de explicar a origem do sofrimento. Mas será que os ateístas e humanistas seculares não têm, também, a obrigação de explicar a origem do prazer em um mundo de acasos e ausência de significado?

Pelo menos uma pessoa encarou o assunto com precisão. Em seu livro Orthodoxy (Ortodoxia), que não se pode deixar de ler, G.K. Chesterton ligou sua própria conversão ao cristianismo ao problema do prazer. Ele descobriu que o materialismo era muito frágil para justificar o sentimento de admiração e prazer que algumas vezes caracteriza nossa reação ao mundo, e em especial a atos humanos bem simples, como sexo, nascimento e criação artística. Eis como ele descreve a experiência:

Senti no mais interior do meu ser, em primeiro lugar, que este mundo não explica a si mesmo.... Segundo, passei a sentir como se o que é mágico precisasse ter um sentido e o sentido requisesse alguém para estabelecê–lo. Existe um toque pessoal no mundo, assim como há um toque do artista em uma obra de arte ... Terceiro, considerei este propósito belo em sua velha forma, apesar de deficiências como os dragões. Quarto, que o modo apropriado de agradecer por tudo é através de uma forma de humildade e restrição. Deveríamos agradecer a Deus pela cerveja e o vinho da Borgonha não bebendo muito deles. ... E por último, e o mais estranho, veio–me à mente a impressão vaga, mas ampla, de que, de algum modo, todo o bem era um vestígio a ser guardado e valorizado, o que restou de uma ruína inicial. O homem salvou o bem que há nele, assim como Robinson Crusoe salvou seus pertences: retirando–os do meio dos destroços.

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Falta pág. (189) nos concedeu boas dádivas como impulso sexual, papilas gustativas e a capacidade de apreciar a beleza. Como Eclesiastes nos mostra, uma devoção total ao prazer, paradoxalmente, levar–nos–á a um estado de completa desesperança.

E tudo isso me leva a pensar em uma abordagem totalmente nova da decadência de nossa sociedade. Iodo domingo ligo a televisão e ouço pregadores execrarem as drogas, a liberalidade sexual, a cobiça e os crimes que "correm soltos" pelas ruas das cidades dos Estados Unidos. Mas, em vez de apenas apontar o dedo para esses abusos óbvios dos presentes de Deus, talvez devêssemos trabalhar para demonstrar ao mundo de onde provêm, na verdade, as boas dádivas, e por que são boas. Penso em uma Frase antiga: "A hipocrisia é a reverência que o vício faz à virtude." Drogas fazem reverência à verdadeira beleza, a promiscuidade à satisfação sexual, a cobiça à mordomia, e o crime é um atalho para apoderar–se de todo o resto.

De algum modo, os cristãos adquiriram a reputação de serem contra o prazer, apesar de acreditarem que o prazer foi invenção do próprio Criador. Temos que fazer uma escolha. Podemos apresentar–se como pessoas rígidas, enfadonhas, que são privadas, sacrificialmente, de metade da graça da vida, limitando nosso deleite no sexo, nos alimentos e em outros prazeres dos sentidos. Ou podemos dispor–nos a aproveitar ao máximo o prazer, o que significa usufruir dele da maneira que o Criador pretendia ao nos moldar.

Nem todos adotarão a filosofia cristã do prazer. Alguns céticos zombarão de qualquer insistência quanto à moderação, com uma atitude de condescendência. Para estes, tenho algumas perguntas simples. Por que o sexo e prazeroso? Por que e gostoso comer? Por que existem cores? Ainda estou à espera de uma boa explicação que não inclua a palavra Deus.

Este livro foi composto por Henrique Nogueira e Rafael Alt. em Agaramond e Optima, e impresso pela

Imprensa da Fé", em papel offset 75g/m2, com filmes fornecido? pela N2 Prépress Fotolitos.