Upload
dinhnga
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
PERMANENTE E EFÊMERO, QUESTÕES E UM EXEMPLO DA RECEPÇÃO EM DANÇA Cássia Navas Observação: Este texto é uma dos capítulos da publicação “Fruição em Dança”, de Alba Pedreira Vieira (org.), Visconde do Rio Branco, MG: Editora Suprema (no prelo).
A dança, como fenômeno de comunicação humana, pode ser
vislumbrada através de espécies de molduras – os espetáculos -, onde
presenciamos a vontade revelada de expressão de um artista-coreógrafo
concretizadas em corpos de artistas-bailarinos.
Quem assiste ao que se passa em cada moldura proposta, estrutura
pouco rígida, na maioria das vezes porosa, porque limite de uma obra de arte
(e portanto, como ela ação aberta) compartilha um momento, ou instantes
comuns, num espaço de recorte quase único: as cenas ou conjunto de cenas
se sucedendo diante de nós.
Somos partícipes e cúmplices do realizado (performado), enquanto
público - unidade provisória em função de algo que se passa a nossa frente -
um acontecimento, evento.
Unidade que se dissolve quando tudo termina e saímos de frente da
cena, individualmente traçando análises ou recolhendo emoções, traços que
talvez insistam em nossa memória, na forma de presença e ausência,
lembrança e esquecimento.
Após um espetáculo, tempo e espaço têm que ser reconstruídos de uma
maneira singular, numa tarefa em que as grafias da dança podem ser de
grande auxílio – texto, foto, vídeo e mesmo os depoimentos sobre cada dança,
colhidos em entrevistas onde quase-poemas são anunciados por artistas,
flagrados por palavras a respeito do conhecimento que colocam no mundo.
A dança em si, a dança que representa algo além da dança e a dança
que resta em nós, como descrevê-la a partir dos conteúdos que ela faz circular
entre artistas da cena e entre estes e os públicos?
2
Estas questões estão no cerne da discussão dos fenômenos da
percepção e recepção do espetáculo de dança, ampliando-se para os mesmos
fenômenos nas artes da cena.
Proponho aqui aspectos introdutórios a este debate e a apresentação de
um estudo de “fala sobre dança”. Trata-se de quatro unidades de pesquisa
sobre espetáculos da 1º Ato Companhia de Dança (Belo Horizonte, MG),
originalmente estruturadas como base do livro publicado quando dos 20 anos
deste grupo mineiro, no ano de 2002.
Como exemplaridade de descrição especializada sobre os conteúdos
apreendidos, a partir da análise de espetáculos deste grupo, nesta segunda
parte a proposta insere-se em questão importante: as palavras (o discurso
verbal organizado em uma língua) dão conta de uma “fala sobre a dança”?
E ainda: podemos falar de dança, sem dizer que não há palavras
suficientes para descrevê-la? Esta é uma questão recorrente entre os públicos
de dança, também aqueles formados, quase que exclusivamente por
profissionais e especialistas deste campo. Uma sentença recorrente,
introdutória de grande parte das conversas que se seguem aos espetáculos.
Por este motivo, não é gratuito que em Les Publiques de La Danse (Jean- Michel,1991) o autor eleja como um dos tópicos de sua discussão, além
de intertítulo de um capítulo da obra, a frase: _ “Não se pode falar da dança
sem dizer que não podemos falar da dança”.
Para introduzir, questões de base
1. Efermeridade X permanência 1.1. A obra como topus permanente da arte
Comumente denomina-se a dança como a “arte do efêmero”, posto
acontecer diante de uma platéia que presencia uma determinada forma de sua linguagem, tal afirmação passando a ser, ao longo do tempo, uma espécie de “lugar comum” partilhado entre muitos, como o também problematizado em Louppe (1991).
Quando do término de cada récita, a dança se foi – passou, e voltará a
se realizar na medida em que se apresente novamente.
3
Neste caso, a efemeridade está localizada na presentificação da obra
em si, esta característica apontando para uma de suas bases de origem,
enquanto arte do tempo/espaço, que se perfaz em tempo específico, restando
como memória corporal nos artistas que a interpretaram.
Para a dança estes artistas aportam suas memórias - estruturas já
topologizadas em seu corpo-território (NAVAS, 2010), mediante um longo
processo de aprendizado artístico que, pelos ensaios, lhes faculta assimilar as
estruturas da dança que interpretam, executam, inventam ou recolocam em
cena (reposição de repertório).
O corpo-território de cada bailarino lança-se no espaço - território da
dança, este sim transitório frente a cada unidade de público, construído no
aqui-e-agora a partir de traços - rastro anterior (NAVAS, 1996), dramatrugia,
estrutura de movimento, apresentados pelos intérpretes que em cena estarão.
Neste sentido, a efemeridade que se constrói diante de nossos olhos (e
diante de outros orgãos do sentido, como se verá a seguir) não é tão efêmera
assim, já que no corpo-território de artistas pré-existem as variadas cenas da
linguagem, neles pesentes como bagagem profissional.
A dança permanecerá, desta maneira como estrutura da coreografia,
refazendo-se quando e onde seja dançada outra vez, garantindo-se sua
existência:
1. pelo trabalho do coreógrafo, remontador ou especialista em obras
antigas, geralmente também professor da dança, figuras que
lançarão mão de tudo o que possuem para repassar, recriar, manter
vivo o seu repertório ou o de outro artista. Podem ser considerados
os rapsodos da dança (NAVAS, 1996), aqueles que “relatam a
dança” à semelhança dos contadores de histórias, especializados
em recriar, através de suas narrativas, mundos imagéticos de poesia
ímpar;
2. pela e na atuação do corpo-território de cada bailarino;
3. pelo que foi, quando isto se fez possível, lançado em notações
coreográficas (Labanotation, por exemplo), notações e descrições
4
verbais (cadernos,entrevistas, textos, críticas e estudos), registros
pictóricos (fotos, lito/xilogravura, pinturas), registros eletrônicos
(filmes e vídeos), notações digitais (programas de computador,
registros em DVD e em multimídia).
O discurso preponderante sobre a “efemeridade da obra de dança”, se
relativiza frente a existência do tipo de memória específico a este campo, basal
na construção e perpetuação de sua trajetória, apoiada em memória corporal – transmitida por pensamenos, palavras, atos e omissões - de quem cria
(inventa), coreografa, ensina, executa e produz cada obra, e, também,
mediante suportes históricos da linguagem, elaborados a partir desta memória -
textos de natureza verbal, sonora e visual.
A estas informações, acrescem-se os elementos trazidos, pela
intervenção in locu ou por suportes vários, pelos que também estão imbricados
no complexo sistema de encenação coreográfica - cenógrafos, libretistas,
escritores, iluminadores, músicos, figurinistas, e os, atuais, dramaturgos.
1.2. A mediação como topus da efemeridade da arte Se não é tão efêmera assim a arte da dança, quando focamos o pólo
emissor onde se localiza a obra de arte em si, a coreografia sendo encarada,
neste caso, como objeto voltado sobre si mesmo, sobre sua estrutura basal,
onde localizar o “discurso sobre a efemeridade” desta arte?
À indagação, uma resposta: nos fenômenos da recepção da obra de
dança, nos quais se estabelece, entre arte e público, um “exercício de
circulação” (ADOLPHE, 1997), uma mediação ao vivo ao longo do
acontecimento.
Neste caso, diferentemente da visão fenomenológica do espetáculo, que
segundo Pavis (2007) centraliza no público o protagonismo da construção do
sentido da dança, através da percepção de seus conteúdos, a recepção se dá
entre os pólos de emissão (palco/cena/obra/coreografia) e de recepção
(platéia/público/audiência).
Problematizar as condições sobre este “entre”, local de mediação
artística, é falar da “efemeridade” da obra de dança, como em Adorno (1988),
5
quando o filósofo coloca a ênfase do efêmero nas relações históricas, portanto
de um tempo e lugar, estabelecidas entre obras e seus fruidores.
Tomemos um exemplo: O Lago dos Cisnes (Petipa/Ivanov, 1895). Ele é
efêmero por que dançado a cada noite, ano após ano, à frente de platéias
diversas, que sobre o espetáculo lançam olhares, entendimentos e opiniões
diferentes, posto que conectadas à história e forma específicas de
apreensão/fruição de arte e do mundo.
A efemeridade não está ancorada na obra em si, pois no limite, se assim
fosse, de cada coreografia nada restaria, mesmo quando em versões variadas,
fruto de sucessivas “reposições em cena”, podemos ter diferenças significativas
entre suas montagens, ao longo da trajetória desta muito dançada coreografia
do século XIX.
A efemeridade, neste caso, se perfaz entre obra e público, isto vindo a
ocorrer não somente em dança, mas em todas as obras de arte do espírito
humano.
Neste sentido, o efêmero não está na criação em si, portadora de suas
estruturas de base, guardadas e recolocadas no mundo mediante o sistema de
memória - enquanto lembrança e esquecimento - que se estrutura a partir de
sua origem basal, na qual se enraízam os traços de sua existência e operação.
2. Percepção e recepção de um espetáculo de dança Para Pavis (2007), os fenômenos da percepção se distinguiriam dos
fenômenos da recepção, posto os primeiros estarem ligados à percepção tout court - órgãos do sentido associados que permitem a “ativação da
sensorialidade” de uma memória corporal própria de cada um que assiste à
dança, memória construída no trânsito entre biologia e cultura.
Já os fenômenos de recepção estariam no campo dos sistemas signos em
que imersos estão os espectadores, ou seja, os léxicos simbólicos que
dominam (ou não), ou mesmo que pensam dominar, para entender/apreender
o fenômeno cênico – experiências em ver artes da cena – circo, dança,
performance, ópera, teatro, além do acesso que porventura tiveram a outros
tipos de manifestações artísticas e da cultura onde vivem, viveram e trafegam.
E como percebemos uma obra de dança?
6
A partir do sistema de percepção/cognição com que
apreendemos/conhecemos qualquer outro fenômeno artístico, articulando-se
os sentidos da visão, audição, olfato, paladar e tato.
Através deles, somos/ficamos imersos na circulação de conteúdos que
se estabelece entre obra e público, articulando-se a recepção de informações
de natureza sonora e visual àquelas ligadas à discursividade verbal
(SANTAELLA, 2000), mediante formas de raciocínio - indução, dedução e
abdução - básicas na formação dos repertórios de léxicos simbólicos que,
como seres da linguagem, construímos, e pelos quais, em permanência, somos
construídos.
2.1. Percepção, um mesmo fenômeno entre artistas, entre público e
entre artistas e públicos Percebemos e somos percebidos a todo tempo. Submetidos à “chuva de
perceptos” (SANTAELLA, 1993), informações nos chegam pelos cinco órgãos
do sentido, transformando-se em conhecimento de natureza amplamente
variada.
Máquinas de processar de alta complexidade, estamos imersos em redes
simbólicas, recebendo-produzindo-recebendo-produzindo informação em
cadeias sígnicas de espiralamento infinito.
Processar informações é forma de sobrevivência, na verdade, sobrevivência
em si e nisto estamos todos, artistas e públicos.
Cada percepto, de natureza sonora, visual, verbal, é colhido pelos órgãos
do sentido, percebido, processado e devolvido na forma de um “juízo
perceptivo”, que pode ser sutil rumor de estômago, bater imperceptível de
cílios, alçamento de sobrancelhas, pequena alteração de pupila, reação de
medo, júbilo, movimento involuntário, movimento voluntário.
Imobilidade, pensamento, sentimento, movimento. Vida se renovando e
repetindo-se em cada ser da espécie.
Todavia do todo percebido, e do todo que este percebido possa ter gerado,
não possuímos lembrança contínua, posto a memória ser constituída de
lembrança e esquecimento (IZQUIERDO, 2004), sem o que seria difícil
avançarmos um passo em uma simples marcha em direção a nosso café da
7
manhã. Como poderíamos fazê-lo se lembrássemos de tudo o que já tínhamos
sentido, pensado, visto, desde o primeiro piscar de olhos ao vislumbre da luz
cinza-acobreada de um novo dia de outono?
Artistas e seus públicos encontram-se entre os mesmos processos
perceptivos, que estão na base da estruturação da obra de arte, de nossas
faculdades de recepção e do que se instaura entre público e criadores
(coreógrafos e intérpretes).
O que um artista de dança traz para o seu público? Algo adivinhado,
abduzido (NAVAS, 2008, 2010c), na intimidade de uma revelação, “a partir de
uma experiência estética inaugural, de uma idéia em dança” que estará
impressa no particular de cada corpo.
Todavia, por mais particular que seja a origem de cada coreografia ela
trará em si uma indicialidade composta de elementos da espécie humana
(nossos corpos não são tão diferentes assim) e elementos de uma topologia
cultural de onde provem aquele bailarino.
“Corpos culturais” (NAVAS, 2010a) são colocados em cena, à frente de
outros “corpos culturais”: o que cada bailarino nos mostra a partir de uma idéia
pensada em sua individualidade, e elaborada entre as quatro paredes de um
estúdio de ensaio ou sala de dança (NAVAS, 2010c), apresenta traços de
nossa corporeidade . O artista dança por nós, a cada dia em que se coloca em cena. Algumas
vezes nos dança, no sentido de mostrar/expressar/comunicar nossos
pensamentos através desta mídia onde a questão do corpo assume uma
centralidade basal.
Por ter este tipo de centralidade (corporal), a dança remete-se, de forma
específica, a certos ritos de uma ancestralidade exacerbada. Expliquemos: na
evolução da espécie há períodos em que a comunicação humana se
estruturava emergentemente em gestualidade quase desprovida de uma língua
verbal mais organizada.
Homens, mulheres e crianças comunicavam-se entre si e com aqueles
que temiam ou reverenciavam (deuses, mortos, ancestrais topologizados em
outros tipos de realidade, entidades) através de gestos e movimentos (NAVAS,
2006b).
8
A comunicação de natureza mista, posto que um misto de comunicação
corporal e pára - verbal, paulatinamente vai se circunscrevendo aos rituais,
fontes de atualização de mitos (MELATTI, 1970) de grande importância (por
exemplo, a ontogênese da tribo) ou a rituais de comunicação/coerção entre os
membros das comunidades, como os ritos de passagem (VAN GENNEP,
1978). As artes da cena carregam traços destes rituais, e, particularmente a
dança daqueles em que a palavra joga um papel secundário, em
manifestações onde quem dança e quem assiste são os mesmos atores de
cada momento ritualizado.
Neste caso, os conteúdos circulam entre todos e por todos, a partir de
um protagonismo que se exerce pela e na participação em danças e cenas
dramáticas, aprendidas/ensinadas ao longo da vida em comunidade.
Na arte da cena que se decompõe em dois espaços básicos de
circulação, modernamente falando, em palco e platéia, a mediação de
conteúdos, ancorados em corpos, e concretizada em metáforas corporais, se
dá através de especialistas, artistas da dança, que dançam por nós, nos
dançando.
O que era um espaço, que podemos descrever como “esférico”, de
comunicação entre a comunidade ou dela frente a outras instâncias,
transforma-se em topologia bipolar. Todavia uma mediação mais completa e
plena pode se estabelecer entre os dois pólos. Assim acontece em espetáculos
onde como que suspenso, as pessoas do público juntos estão com aqueles
que dançam por eles.
Nestes casos, têm-se um momento estético, uma suspensão de tempo,
onde um primeiro (SANTAELLA, 1994) cinde o conhecido, o familiar,
estabelecendo-se uma fissura para que a qualidade do sentimento (SILVA,
2006) se instaure, a partir da poderosa mídia-dança (NAVAS, 2010a).
Fecha-se o circuito de uma comunicação ritual, em espaço da
contemporaneidade em arte.
Quando isto se dá, instaura-se um silêncio, e os espectadores parecem
não sentir necessidade premente de uma “explicação”, em alguns casos
demandada à saída de espetáculos de dança, quando é comum a frase: afinal,
o que esta dança quer dizer com isto?
9
Nestes momentos, apesar de devassados corporalmente, pela
exposição do íntimo de cada artista (NAVAS, 2010c), trabalhado em horas e
horas de ensaios e elaboração, o que se quer saber são quais os sentidos que
aquela coreografia carrega, traduzidos por outra linguagem, em geral aquela
traçada através de palavras, ou seja, mediante a linguagem verbal.
Esta é tarefa para pesquisadores, críticos, artistas e poetas: o desafio
das traduções, que não substituem a força da expressão da arte em si e as
mudanças de percepção e de conhecimento que trazem ao mundo.
São instrumentos para a composição em rede dos fenômenos artísticos,
a partir de suportes a ele correlatos, seja em cadeias sígnicas mais conhecidas
- velhas mídias, como o texto escrito, seja mediante novas tecnologias – novas
mídias, como o hipertexto, que ao produzir conteúdos inaugurais, trazem uma
maior complexidade à apreensão e produção dos fenômenos artísticos.
Para continuar, “estudo de fala sobre dança”
Em obra de grande fôlego, Guy (1991), tece reflexões sobre os públicos
da dança, a partir de extensa pesquisa realizada sobre o assunto pelo DEP-Département dês Etudes et de la Prospective/Ministério da Cultura da França.
O sumário da publicação nos traz o mapa dos assuntos tratados, os três
capítulos articulando temas centrais para uma cartografia dos públicos da
dança. Assim no primeiro capitulo temos as “estruturas do discurso sobre a
dança”, no segundo, a abordagem do “indefinível” ou de como a dança se
define a si própria através de seus realizadores e públicos, e, finalmente no
terceiro capítulo, aspectos sobre a comunicação em dança.
Nesta última parte, o autor enfoca o que denomina “a cadeia dos
discursos” sobre o campo, apresentando-se possibilidades de tradução da
dança, a partir do universo pesquisado.
Em 2002, quando convidada a realizar uma investigação sobre vinte
anos da 1º Ato Companhia de Dança, que embasaria a publicação
comemorativa (NAVAS, WERNECK, 2002) da trajetória do grupo, optei por
realizar uma “cadeia de discursos” tendo como base algumas de suas obras,
consideradas unidades de pesquisa. A partir das matrizes cênico-
coreográficas de uma companhia contemporânea do Brasil, estabeleceu-se um
discurso verbal.
10
Encarando-se o exercício como um “deslimitar de fronteiras”, partiu-se
das obras para a construção da história da companhia, em repertório que
segue em lista ao final deste capítulo.
Fundado em 1982, por Kátia Rabello e Suely Machado, o Centro de Dança 1º Ato, sempre se caracterizou por articular a formação em dança com
a construção da arte, seguindo firme e belamente em nossa cena,
apresentando, no Brasil e no exterior, sua obra de vinte e oito anos de trabalho.
A análise das obras do 1º Ato aqui colocadas recupera parte do
espetáculo total da companhia, na possibilidade de restaurar parte da
circulação de conteúdos entre público e arte (e seus artistas) recuperando-se
as cenas da companhia, a partir da irredutibilidade concreta de seus traços,
nada efêmeros.
1. Carne Viva (1990), de Dudude Hermmann e Arnaldo Alvarenga
1ª parte: Uma solução de asfalto...acrescida de lágrimas 2ª parte: Retalhos do coração tecidos no profundo da alma... sorrisos
Uma mulher vestida de branco percorre, numa linha paralela à boca de
cena, a distância que une os lados direito e esquerdo do palco.
Anda sobre dezenas de pares de sapatos, calçando-os e descalçando-
os sucessivamente.
Quando alcança o canto direito do palco, dá com um bailarino à sua
espera. Ele tira seus sapatos pela última vez, atirando-a descalça, de volta à
cena.
A caminhada da bailarina por sobre os seus (e nossos) pés,
metaforizados pelos muitos pares de sapatos enfileirados numa linha contínua,
é figura e fundo para uma reflexão sobre certa ilusão de “progresso” que
devemos continuamente procurar (no novo e/ou moderno), em busca de
evolução.
O contemporâneo também nasce sob o signo de uma sociedade
moderna, de cujos símbolos a metrópole, as máquinas e a locomotiva fazem
parte dominante. Mas também renasce sob o signo da celebração do humano,
da festa de vida e morte presente em cada um e no coletivo que se estabelece
em todas e por todas as relações humanas.
11
Metáfora do moderno, a bailarina caminha sobre um trilho de sapatos,
direta e reta, como uma máquina que faz e desfaz o movimento de encaixe:
pés dentro de sapatos, pés fora dos sapatos.
No final é brecada por outra força, humana, que a atira ao espaço
coletivo do celebrar, da dança dançada naquele momento, na qual ela vai atuar
em espaços giratórios múltiplos, quase fugas dos outros intérpretes, seus
companheiros de mergulho no vivo da carne.
Carne viva é um espetáculo que se faz e se desfaz, e por cima desta
estrutura pulsante como um organismo vivo, vão se superpondo camadas de
significados, que se alternam como epidermes simbólicas em constante
alternância.
Há momentos frutos de grande trabalho de investigação, outra chave da
dança contemporânea, onde as aléias da experimentação são testadas em
provocações estéticas diuturnas.
Dessa maneira, cenas, nas quais se poderia cair numa interpretação
mais caricatamente teatral, vão se transformando em experiências onde a
circularidade de uma pesquisa mais profunda se nos dá a conhecer, como no
caso em que sucessivamente três intérpretes armam cenas, na primeira delas,
transformando-se os “vestir-se e maquiar-se” em metáfora de urgente
sobrevivência.
Depois temos a segunda intérprete que ao abrir um verde guarda-chuva
suspende o tempo da cena, abrindo espaço para outra artista, que atravessa o
palco numa diagonal, ajoelhada e presa a uma “corda de roupas”, que
emendadas entre si, evidenciam nós, dedilhados como se contas de um rosário
fossem.
Ao final deste ato, trajes não vestidos. Metáforas de superfícies
epidérmicas sem conteúdo, são atirados das coxias, para onde voltam,
arremessados pela ação dos intérpretes em cena.
No segundo ato, para a celebração moderna, uma mesa entra em cena.
Ficará pousada entre vestes, espalhadas pelo chão e penduradas atrás,
articuladas num telão imenso.
É centro do ritual coletivo de cada um a sua vez (ritual interno de
pulsação da dança) e de todos envoltos em uma mesma pele, metáfora de
elenco que dança em coletivo real.
12
2. Desiderium (1996), de Tuca Pinheiro
O satélite da Terra está presente em Desiderium (1996), de Tuca
Pinheiro, uma reflexão em torno do desejo, em cenas emolduradas por um
telão que reproduz a superfície lunar, vista de perto, com suas crateras, montes
e depressões.
A lua dos amantes, ao invés de ficar distante dos homens e mulheres,
que sideradamente perdem a cabeça pelo desejo, se perde dentro das cenas,
agigantada por lupa de aumento incomensurável, artifício de telescópio
cenográfico.
A partir desta peça, Tuca Pinheiro começa a coreografar para o 1º Ato,
onde atuava como intérprete desde Isto Aqui não é Gotham City (1992).
Em Desiderium, o coreógrafo continua em cena, estabelecendo, com
suas ações, uma moldura de movimentos no quadrilátero imaginário que rodeia
a movimentação, num palco-espaço despido de coxias e ciclorama.
Pinheiro entra e sai do espaço delimitado por sua movimentação e em
nenhum momento se recolhe aos camarins. Em um momento é ovacionado
pelos próprios bailarinos, durante uma dança mais intempestiva, em outros
permanece recolhido numa escuta de si mesmo.
Seu papel, de criador-intéprete em cena, é quase o de um xamã
coreográfico, ora observando, ora intensificando as cores de sua criação, em
pajelança que aproxima a dança contemporânea do grupo a um moderno ritual.
Em Desiderium o ritual é sobre os sentidos do desejo e um dos símbolos
deste universo apresenta-se no palco em forma de maçãs, que ora na boca
dos intérpretes ora atiradas para o alto, vão pontuando algumas das dinâmicas.
Nestas, ainda que dentro de um sistema contemporâneo de dançar,
onde mulheres e homens executam os mesmos gestos e da mesma forma, há
momentos de movimentação feminina em contraste com sequências de
movimentação masculina.
Uma cena onde impera a interpretação feminina é aquela, em que,
sentada, uma das moças dita, com remarcável sensualidade, uma receita de
pão de queijo (típica guloseima mineira) para a platéia.
13
Metaforizando uma fase anterior ao desejo - para ser desejado é
necessário ser visto -, muitas vezes os bailarinos atuam como numa exposição,
numa vitrine, em cenas onde matizados rituais de acasalamento entre homens
e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens se espiralam.
Uma delas: uma mulher que carrega maçãs caminha sobre uma ponte
que lhe vai aparecendo à frente, mais à frente de sua caminhada, pinguela de
cadeiras que suas companheiras de elenco, em linha reta, lhe oferecem.
De um golpe, ela atira as maçãs para a moça que a segue neste
pontilhão, atirando-se e sendo agarrada por um rapaz, em pleno vôo.
Neste micro pas de deux (dança de dois) entre eles, o desejo de
contato, rapidamente satisfeito é imediatamente rompido, pois outras moças se
arremessaram ao ar, repetidamente sendo acolhidas pelo intéprete,
intensificando-se os níveis de tensão dramatúrgica.
A dança do novo ritual proposto por Desiderium, se compõe,
sobremaneira, de danças de grupo.
Rituais processados à frente da lua cenográfica, com a utilização de
cadeiras-como-rabos, a apontar para a animalidade do desejar.
Cadeiras que no final de tudo, servirão como toscos capacetes de
astronautas prontos a viajar com os astros ou em sua direção.
Sutilezas de uma humanidade moderna, concretudes de seres que
puxados pela gravidade, sonham (desejam) voar.
A dança de Pinheiro, dirigida por Suely Machado, nos revela
contemporaneamente as matizes do desejo humano, animal ou sofisticado,
apontado para um alvo ou difuso frente à lua, que estabelece-se como polo de
alteridade, objeto outro, a quem desejar.
Contemporaneamente, Desiderium se revela também mediante esta
polaridade estruturada em dois: ponto de saída e ponto de chegada, partida e
meta, objeto do desejo e trajetória de alcance.
Em todas as cenas, resta a sensação de um caminho percorrido, de
uma trajetória/processo a explorar e de um destino, guiado ou não pelos astros
na escuridão dos anseios humanos.
No 1º ato, qual seria este processo ? a experimentação a todo o custo.
E qual o destino? a crescente comunicação da experiência humana, de
aqui e de acolá, experiência de lugares a serem esquadrinhados.
14
3. A Breve Interrupção do Fim (1997), de Gerald Thomas e Suely Machado.
No silêncio, as cortinas estão fechadas. Foco de luz sobre um balde no
chão do proscênio. A cortina se abre aos poucos e uma lua cheia se mostra
pendurada ao fundo do palco, como um telão.
Dois pares de refletores pousados no chão, esquadrinham a cena e o
palco.
Começa a soar um texto em off, ditado por Gerald Thomas:
“_ E começo aqui,
este começo,
e recomeço, e remeço,
e arremesso.
E aqui me meço.
Quando se vive sob o aspecto da viagem...
O que importa não é a viagem,
Mas o começo da ....”
Há um corredor diagonal de luz a iluminar o intérprete, com tanga e
coroa de espinhos deitado no meio, à frente do palco. Por este corredor entra
outro ator-bailarino de tanga andando em direção ao intérprete prostado no
chão. Caminha caindo e levantando sem parar, em sucessivas quedas.
Enquanto isto, uma contra-luz sai do ciclorama e bailarinos caminham
para a frente do palco, escondendo-se atrás de cabides de roupas. Outro texto
é enunciado:
“_ O avesso da história,
que pode ser história,
que pode ser cárie,
que pode ser história.
Tudo depende da hora.
Tudo depende da glória.
15
E nada, e nus, e neles,
Reles.
E nem nada de nada...”
Tudo fica escuro. Black out.
Este é o começo de A Breve Interrupção do Fim, de Gerald Thomas e
Suely Machado.
Com ela, a companhia voltaria a trabalhar com um diretor de teatro,
dentro do pulso de alternância entre criadores de teatro e dança, que se
revezam nas obras produzidas pelo grupo.
Quando convidado a criar uma obra para o Grupo de Dança 1º Ato,
segundo o próprio Thomas (Portfolio 1º Ato, 20 anos), os questionamentos
foram inevitáveis:
“Quer dizer que agora você está coreografando? Como é lidar com
bailarino? É diferente de dirigir um ator? Como você concebe a dança? E a
palavra? Você sente falta da palavra na dança? E a expressão facial que você
tanto preza, vai trocá-la pela expressão do corpo?”
Questões às que o diretor respondeu:
“_ Não, de jeito nenhum. As regras do teatro são limitadas e depois
destes anos todos, ainda me causam repugna. Sempre driblei estas
regras, mas nunca cheguei a organizar estes ´dribles´. Em 1989,
quando concebi e dirigi Mattogrosso, em parceria com Philip Glass,
o que fiz foi justamente dirigir uma “massa em movimento”.
Sugeriram-me na época, chamá-la de teatro-dança, pois esta massa
de 53 atores não falava uma palavra e se movimentava de acordo
com os acordes musicais. Na verdade, nem teatro, nem dança, nem
ópera, nem coisíssima nenhuma. Mattogrosso foi um brado de
guerra que reunia resposta a todas as minhas inquietações”.
O discurso de Thomas serve para ilustrar que, se existiam,
exteriormente ao grupo, certas questões sobre a pertinência de sua “residência
cênica” dentro do 1º Ato, junto aos artistas da companhia trabalhar com “gente
de teatro” não era tão surpreendente assim.
16
Desde sempre, os rumos escolhidos pela direção da companhia incluíam
um forte trabalho dentro do campo, intermediando-se ações mais ligadas a
artistas coreográficos com ações ligadas à artistas teatrais.
Além disto, a busca explícita, e experimental, por novos modelos
cênicos, fez do trabalho da companhia uma constante investigação, na qual
estão imbricados cada um dos intérpretes e principalmente uma de suas
diretoras artísticas - Suely Machado -, que à frente do elenco, atua de maneira
intensa, assinando ou co-assinando a maior parte das direções artísticas das
obras do grupo.
Esta participação se mostra explicitada na fala do diretor Thomas,
quando ao se referir ao trabalho de Machado, diz que desde os primeiros
encontros com a companhia sentira “que o trabalho desenvolvido ao longo dos
anos por Suely Machado se complementaria harmoniosamente com o meu”.
A este respeito, acrescenta: “parece teatro. O fato é que não me meti a
coreógrafo. O que fiz foi aquilo que sempre fiz. Tratei os bailarinos como se
fossem atores.”
Como se fossem atores, sendo bailarinos, que são atores, e assim por
diante, os artistas do 1º Ato se atiraram, literalmente, à proposta de Thomas,
em uma obra, que como na maior parte de suas outras produções, estrutura-se
enquanto uma narrativa de cunho altamente autoral.
Em “A Breve”, não há personagens definidos, isto é, personagens
definidos por suas falas, índices verbais de suas características, circunstância,
via de regra, que se constitui em divisor de águas entre um teatro mais
clássico e certas obras do teatro contemporâneo, posto que o discurso verbal
estrutura-se como um sistema de definição de cada personagem em relação
aos outros tantos.
Por isto mesmo, a definição se faz por movimentos, que no caso de A Breve Interrupção do Fim são executados por “gente de dança”, o que traz à
forma de trabalho de Thomas outras conotações.
Pelas palavras do próprio diretor sua obra Mattogrosso foi quase
nomeada de “dança-teatro” ou “teatro-dança”, segundo ele, pela mesma reunir
mais de cinquenta atores que se moviam ao som dos acordes musicais, sem
qualquer enunciação de falas.
17
Esta é uma das definições que podemos dar a dança, ainda que o
conceito desta arte complexa apresente sentidos mais amplos.
Por outro lado, a dança não é, privilegiadamente, o domínio artístico
onde os conteúdos dramatúrgicos circulam de forma verbal e onde a
dramaturgia musical, em muitas de suas formas, é uma predominante.
A ausência desta “predominância verbal”, não é obstáculo, porém, para
que, nas variadas versões da dança-teatro, os artistas falem (vocalmente) de
maneira fragmentária e para que, em algumas criações da mais moderna
dança contemporânea, longos discursos sejam tecidos sobre assuntos
variados.
Neste caso, muitas vezes, “a dança pára para falar”.
Podemos refletir sobre o que nos apontam as palavras de Thomas, mais
precisamente em relação à sua atuação de homem de teatro, que ao poder
lidar com a dança fora dos padrões em que um artista da área o teria feito,
conseguiu, juntamente com o trabalho coreográfico de Suely Machado, nos
devolver momentos de inusitado frescor, de quase re-leituras feitas de fora
para dentro, no caso o “lugar de fora” ocupado por uma visão mais teatral e o
“lugar de dentro” localizando uma topologia mais coreográfica.
Num primeiro momento, no que diz respeito à presença de falas (vozes)
verbais, algumas delas são do próprio diretor, dubladas por bailarinos-atores
que atuam na cena como espécies de seu “alter ego”.
Nestes momentos, o “corpo da dança” cede espaço para o “corpo da
palavra”, reatualizando-se a discussão que opõe a “dança pela dança ou/e a
dança que expressa a si mesma” contra a “dança que expressa algo para além
de si mesma”, num debate que data, pelo menos, de meados do século XVII,
tendo seu ápice na estruturação do ballet d´action (balé de ação), descrito por
Jean-Georges Noverre (MONTEIRO,1998), em sua publicação de 1759, as
Cartas sobre a dança. Em segundo lugar, no que toca a certos clichês da dança.
Há a cena (ou sucessão delas) onde o bailarino-penitente, que
chamaremos de bailarino-penitente-Cristo, assumindo a postura de uma
bailarino mais clássico, atravessa uma diagonal do espaço.
18
Ele o faz aos pulos, à frente de uma mesa, em um ou dois grands jetés
(grandes pulos, onde o bailarino transfere seu peso de uma perna sobre a
outra).
Pula e pula para cair no chão escorregadio à força do sabão que outro
ator-bailarino aplicara anteriormente.
Este ator, um misto do personagem sádico do cartunista mineiro Henfil –
o Fradinho, capataz nazista de cuecas e depois dublê de Adolf Hitler, assume o
tempo todo uma postura perversa em relação aos “pobres bailarinos” e esta
cena é um bom índice de sua atuação.
O “Fradinho” vai incentivar o bailarino-penitente-Cristo, a cair e a cair
muitas vezes, em quedas que são aplaudidas pelo elenco todo.
À primeira vista a cena nos remete diretamente, dentro de circuitos
empobrecedores da dança, à necessidade de uma certa ascese corporal, onde
o salto é a metáfora máxima (e única) da conquista da elevação.
Por isto a dança do bailarino-penitente-Cristo se assemelhar, nestes
momentos, àquela de um intérprete de um mítico pássaro voador, como nas
performances masculinas mal realizadas de um O Corsário (1856, Mazilier) ou
de um O Pássaro de Fogo (1910, Fokine).
Por outro lado, as falas iniciais referem-se, em citações de James Joyce
e Hegel, ao fim da história, e as quedas sucessivas do bailarino-penitente-Cristo (cujo nascimento marca o calendário histórico de uma época: antes e
depois e Cristo/AC e DC), ao escorregar na superfície “ensaboada” do palco, é
uma imagem forte deste tipo de reflexão.
Assim como também o são as imagens suscitadas pelos personagens
Gandhi, Elvis Presley, Hitler e Napoleão Bonaparte que saindo de uma
televisão imensa colocada no palco, evoluem pelo palco até terminar seus
movimentos em um “arabesque”.
Após a seqüência são abatidos a golpes de punhos pelo grupo de
mulheres, que se estrutura dentro de uma tribalidade feminina muito forte,
estabelecendo-se, durante o espetáculo, e durante longos períodos, uma bi-
polarização entre os universos de homem e de mulher, que muitas vezes se
interpenetram em cenas explicitamente construídas para quebrar ou realçar as
especificidades de cada um dos gêneros: masculino e feminino.
19
Dentro disto temos a cena do banho de chuveiro num vestiário
masculino, onde pouco a pouco os jogadores vão se transformando (e
dançando) em quase seres alados esvoaçantes – as sílfides do balé.
Sob o mesmo chuveiro, a tribo de mulheres vai se banhar, se
desnudando pouco a pouco no final do espetáculo, antes de sustentarem
bonecos infláveis de super-heróis: Homem-Aranha, Super Homem, Capitão
América e Batman.
Gandhi, Presley, Bonaparte super-heróis da história convivem com os
super-heróis das histórias de quadrinhos e séries de TV, enquanto as moças
seguem para trás do palco, para compor uma imagem de “sustentar a lua
cheia”, agora já não tão inacessível assim, posto que descida, mais baixinho,
junto ao chão do palco.
Neste ponto, chega ao final A Breve Interrupção do Fim.
Como Atlas despidas, titãs de força e feminilidade, a obra termina com
as mulheres segurando a lua, satélite que em 1996 já havia aparecido no palco
do 1º Ato, onipresente no Desiderium (Tuca Pinheiro)
Lua como um astro, por milênios metáfora de metas a alcançar e, desde
1969, quando o primeiro astronauta pisa seu chão, metáfora do que pode ser
alcançado, posto ser solo possível de ser palmilhado por homens e mulheres.
O teatro pode ser, e é, território palmilhado pelos artistas do 1º Ato.
Neste sentido, A Breve Interrupção do Fim, como também nos conta o seu
título, não é uma obra final: é breve interrupção de algo, síntese de processo. É
passagem preciosa, dura e seca – “ópera seca” de Gerald Thomas.
4. Beijo nos olhos ... na alma ... na carne (1999), de Tuca Pinheiro
Em “Beijo”, o Brasil explode através dos personagens de Nelson
Rodrigues e também, como quer seu coreógrafo, mediante o aporte pessoal de
cada um dos intérpretes do 1º Ato, todos eles do Brasil.
Um cenário vermelho como carne, sinuoso em ondas e cheio de
reentrâncias (uma casa-corpo), apresenta-se pesado onipresente sobre o
palco.
No último nicho, à direita, há um vaso sanitário e uma janela, abertura
por onde se espiam coisas, forte imagem de voyeurismo. Estamos convidados
20
a espiar o que se passará no palco, onde as estruturas dos personagens da
escrita de Rodrigues se transformam em dança, dança-teatro.
Como em uma vitrine, tudo se dá a ver, para depois se ocultar, o que
ocorre quando se nos apresentam os trechos onde o elenco dança em
conjunto.
Neste momento não há homens, nem mulheres, borrando-se as
características de cada personagem e isto acontece apesar da forte conotação
de gênero (masculino e feminino) dada aos intérpretes, também pelos figurinos
que eles portam.
Se certas partes da dança, muitas vezes, ocultam características
marcantes dos personagens, os entrechos (momentos em que o movimento se
abre para dar passagem às cenas mais dramáticas) , se sucedem de maneira
engraçada, trágica e muito, muito diversificada.
Numa delas, um homem vai ser chamado à cena, por uma voluptuosa
mulher loura, que entrando com uma caixinha de música, pousa-a no chão e a
faz funcionar.
Com um lenço na mão (símbolo de uma feminilidade dos anos 40 e 50)
insta o rapaz, olhos-nos-olhos, a lhe bater na cara.
“_ Me bate, Bezerra!”
O pedido não é atendido pelo bailarino-ator e a moça, inconformada
volta à carga: “_ Bate, eu tô pedindo. Com a mão, Bezerrão!”, enquanto sorri
esfuziante. Nada acontece e exasperadamente a moça se afasta chamando-o
de frouxo.
Ela volta e pede novo tapa. O rapaz aquiesce. Depois do golpe, um grito
de covarde ecoa no ar e o rapaz dança um solo em profunda solidão.
O mesmo bailarino vai protagonizar uma antológica cena de aniversário
de casamento de 25 anos (bodas de prata) onde o espírito da comemoração é
penetrado pelo da tristeza de um amor não vivido com outra mulher.
No geral, as cenas são perpassadas de uma ironia que oscila entre o
pungente e o maroto, múltiplos registros de um país: o nosso.
Como marca de uma graça tragicômica, bordada de perversidade,
presente em certas ocasiões protagonizadas por membros de nossa pequena
burguesia: um chá da tarde, consumido numa chorus line (linha de coro), com
todo o elenco vestido de festa.
21
O inusitado das ações frente às xícaras que portam nos pega de
surpresa, resultando num misto de inquietude e graça circense. Há de tudo:
uma bailarina se lava com o chá, um bailarino vira chafariz de praça e outros
dois trocam o líquido entre suas bocas, respingando perdigotos para todos os
lados.
A pungência de uma reflexão sobre o país estará em outra chorus line,
em um outro momento da criação. Ao som de pandeiros tocados ao vivo, uma
bailarina dança puxando seus cabelos, curtos e crespos, como se quisesse
arrancá-los.
A elas se juntam mais três moças de biquini, anunciadas por um “mestre
de cerimônias” que fala francês (“vamos ver o exotismo, a beleza e o charme,
as mulheres brasileiras”). É uma cena de “mulher for export”, e entre solos e caminhadas de desfile de modas, as bailarinas dançam um samba, misto de
um sapateadinho pouco malemolente, socando o chão.
Abre-se um corredor de luz na beira do palco e sob o som de uma das
Bachianas de Villa-Lobos, as moças se medem e se apalpam, olhando para a
platéia. Retiram a parte de cima dos biquinis, tampando os seios com as
mãos/braços cruzados, os cotovelos apontados para cima.
Neste momento a luz ilumina somente seus torsos.
A cena aponta para um debate sobre “as mercadorias do Brasil”, dentre
as quais muitas e infelizmente se incluem as “gentes do Brasil”, como algumas
de suas mulheres.
A genialidade desta solução cênica, que se repete muitas vezes na obra
como um todo, se fecha numa espécie de rito final, o foco se fechando sobre
um bailarino afro-brasileiro, que pela primeira vez de torso nu, “passa” , repete
em e por seu corpo trechos de movimentação de todo o espetáculo.
Este final é um dos únicos momentos em que o trabalho de composição
coreográfica se estrutura por justaposição de cenas ou de dinâmicas.
Referências
1. Referências bibliográficas
22
ADOLPHE, J. M. (1997). La dramaturgie est un exercice de circulation. In
Dossier Danse et Dramaturgie, Nouvelles de Danse, Bruxelles, Contredanse:
31
ADORNO, T. (1988) Teoria Estética. Col. Arte e Comunicação. Lisboa:
Edições 70
FRANKO, M. (2005) La danse comme texte/Idéologies du corps barroque.
Paris: Kargo & L´Éclat
GUY, J. M. (1991). Les Publiques de La Danse. Paris: La Documentation
Française/Ministère de la Culture et de la Communication/DEP-Département
dês Etudes et de la Prospective FONTAINE, G.. La danse Du temps. Recherches, Paris: Centre National de La Danse, 2004 ISQUIERDO, I. (2004) A arte de esquecer – Cérebro, Memória e Esquecimento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent
LOBO, L. & NAVAS, C. (2004) Teatro do Movimento, um método para o intérprete-criador. Brasília: LGE
LOBO, L. & NAVAS, C. (2008) Arte da Composição, Teatro do Movimento.
Brasília: LGE
LOUPPE, L. Danses Tracées. Paris: Dis Voir, 1991 LOUPPE, L. (1997) La poétique de la danse contemporaine. Bruxelas:
Contredanse
MELATTI, J. C. (1970). Índios do Brasil. Brasília: Coordenada
MONTEIRO, M (1998). Noverre: cartas sobre a dança. São Paulo: EDUSP
NAVAS, C. & DIAS, L. (1992) Dança Moderna. São Paulo: Secretaria Municipal
de Cultura
NAVAS, C. & WERNECK, H. (2002) 1° Ato. Belo Horizonte: Banco Rural
NAVAS, C. & DASTRE, N. (2006) Cisne Negro Cia de Dança: 30 anos de dança. São Paulo: Retrato
NAVAS, C. (1996). Os desenhos dos desenhos da dança. texto programa da
exposição Desenhos de Dança. São Paulo: AS Estúdio.
NAVAS, C. (1999). Dança e Mundialização: políticas de cultura no eixo Brasil-França. São Paulo: Hucitec
23
NAVAS, C. (2002). Dança: escritura, análise e dramaturgia. Anais do II
Congresso da ABRACE- Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação
em Artes Cênicas/UFBa, Salvador
NAVAS, C. (2003). Dança brasileira no final do século XX. In Dicionário SESC, A Linguagem da Cultura. Organização Newton Cunha. São Paulo:
Perspectiva
NAVAS, C. (2005). Leis para a dança do Brasil, desafios para todos. In
Lições de Dança n. 5. Rio de Janeiro: Univercidade.
NAVAS, C. (2006a) Dança, estado de ruptura e inclusão. In Anais do IV
Congresso da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós Graduação
em Artes Cênicas. Rio de Janeiro: UNIRIO
NAVAS, C. (2006b) A Arte da Dança na Universidade Pública Contemporânea. In Arte Contemporânea e suas interfaces. V. 1. p. 99-105.
São Paulo: Museu de Arte Contemporânea/Universidade de São Paulo
NAVAS, C. (2008) Interdisciplinariedade e intradisciplinariedade em dança. In I Seminários de Dança de Joinville. Joinville: Fundação Festival de Joinville
NAVAS. C. (2010a). Memórias-corpo, corpo-território e dança-mídia. In site
do VI Colóquio Internacional de Etnocenologia. Belo Horizonte: EBA/UFMG
NAVAS, C. (2010b). Centros de formação: o que há para além das academias? In II Seminários de Dança de Joinville. Joinville: Fundação
Festival de Joinville
NAVAS, C. (2010c). Do íntimo, do particular e do público: subsídios para a gestão em dança. In publicação 4o Seminário Políticas Culturais: Reflexões e Ações. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa/MINC e Itaú Cultural
OLIVEIRA, Espera MG (2008) Qual é à hora de aplaudir? Anais/V Congresso
ABRACE Pesquisa em Pós-Graduação em Artes Cênicas. UFMG: Belo
Horizonte
PAVIS, P. (2007). Dicionário de Teatro. Tradução J. Guinsburg e Maria Lúcia
Pereira. 3ª Ed. São Paulo: Perspectiva
PAVIS, P. (2008) A Análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva
SANTAELLA, L. (1993). Percepção: Uma Teoria Semiótica. São Paulo:
Experimento
SANTAELLA, L. (1994) Estética, de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento
24
SANTAELLA, L. (2001). Matrizes da linguagem e do pensamento. São Paulo:
Iluminuras/FAPESP SILVA, A. R. (2006). O Belo, o Admirável, suas Estéticas e um Impeachment. In RASTROS. Joinville: Necom/Núcleo de Estudos em Comunicação/Instituto
Superior/Centro Educacional Luterano Bom Jesus
VAN GENNEP. A. (1978) Os Ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes
2. Site http://www.primeiroato.com
3. Referências iconográficas REPERTÓRIO/1º ATO COMPANHIA DE DANÇA GERALDAS E AVENCAS- 2007
Concepção, coreografia e direção: Suely Machado
Pesquisa e vocabulário coreográfico: Grupo 1º Ato
Trilha Sonora Original: Zeca Baleiro
MUNDO PERFUMADO - 2004 Direção: Suely Machado
Concepção e Direção Coreográfica: Alex Dias
Pesquisa Coreográfica: Grupo 1º Ato
Música Original: André Abujamra
SEM LUGAR - 2002 Direção: Suely Machado
Concepção e Direção Coreográfica: Tuca Pinheiro
Assistente de Direção: Paula Davis
Pesquisa Coreográfica: Grupo 1º Ato
Pesquisa Musical: Tuca Pinheiro
BEIJO NOS OLHOS... NA ALMA... NA CARNE – 1999 Direção: Suely Machado
25
Concepção e Coreografia: Tuca Pinheiro
Pesquisa Coreográfica: Grupo 1º Ato
Pesquisa Musical: Tuca Pinheiro
A BREVE INTERRUPÇÃO DO FIM - 1997
Autoria, Direção, Cenografia e Trilha Sonora: Gerald Thomas
Direção Coreográfica: Suely Machado
DESIDERIUM – 1996 Direção: Suely Machado
Concepção e Coreografia: Tuca Pinheiro
Pesquisa Coreográfica: Grupo 1º Ato
Pesquisa Musical: Tuca Pinheiro
O CAVALEIRO DE COPAS – 1994 Direção Artística: Suely Machado
Concepção e Direção: Rodrigo Campos
Trilha Sonora e Edição: Rodrigo Campos
TIGARIGARI – 1993 Direção: Suely Machado
Concepção: Sônia Mota
Coreografia: Sônia Mota e Grupo 1º Ato
Assistente de Direção: Jacqueline de Castro
ISSO AQUI NÃO É GOTHAM CITY – 1992 Direção: Suely Machado
Concepção e Direção Teatral: Paulinho Polika
Coreografia: Paulinho Polika e Grupo 1º Ato
Assistente de Direção: Paula Davis
Pesquisa Musical: Grupo de Dança 1º Ato
CARNE VIVA – 1990 1ª parte: Uma solução de asfalto...acrescida de lágrimas.
26
2ª parte: Retalhos do coração tecidos no profundo da alma...sorrisos.
Direção Geral: Suely Machado e Kátia Rabello
Concepção, Direção e Coreografia: Dudude Herrmann e Arnaldo Alvarenga
Assistente de Direção: Jacqueline de Castro
ADEUS - 1990 Coreografia: Luiz Arrieta
Música: Klauier Quartett/Gustav Mahler
Direção: Suely Machado
Assistente de Direção: Jacqueline de Castro
REFLEXÕES DO GESTO – 1990 Coreografia: Dudude Herrmann
Direção: Suely Machado
Assistente de Direção: Jacqueline de Castro
RAVEL – 1989 Coreografia: Arnaldo Alvarenga
Música: Concerto em Sol para piano e orquestra – Maurice Ravel
Figurino: Arnaldo Alvarenga
Direção: Suely Machado
Assistente de Direção: Jacqueline de Castro
QUEBRA CABEÇA – 1989 Concepção e Direção: Paulinho Polika
Figurino e Cenário: Paulinho Polika
Pesquisa Musical: Paulinho Polika e Grupo 1º Ato
CONFIDÊNCIAS PARA UMA 3ª PESSOA – 1988 UÍSQUE COM GUARANÁ Coreografia: Dudude Herrmann
27
FELIZ ANIVERSÁRIO Coreografia: Bebeto Cidra
REALEJO DO DIA E DA NOITE Coreografia: Arnaldo Alvarenga
Assistente: Suely Machado
Criação e Roteiro: Eduardo Guimarães Álvares
CORPUS SUTIS Coreografia: Sérgio Funari
Assistente: Suely Machado
Direção: Suely Machado
ILUSÕES – 1986
Direção: Suely Machado e Kátia Rabello
Coreografia: Jairo Sette
TRÊS AVE-MARIAS E UM PAI NOSSO – 1985 (Mãe, que mulher é essa?) Criação e Roteiro: David Mundin
Coreografia: David Mundin e Eusébio Lobo
Direção Artística: Eusébio Lobo
Direção Teatral: Luciano Luppi
Assistente de Coreografia: Suely Machado
BONS MOTIVOS - 1982 O Sonho da Infância
I– Brincando
Coreografia e Texto: Suely Machado
II- Mariana e Gabriela Coreografia: Kátia Rabello
III- Lumiar Coreografia: Suely Machado
Do Sonho à Realidade
28
I- Descoberta Coreografia: Suely Machado
II- Encontro Coreografia: Suely Machado
III- Caçador de Mim Coreografia: Janette Vetrolhieth
IV- Os Cavaleiros da Vida Coreografia: Suely Machado
Da Realidade ao Desejo
I- Mudanças Coreografia: Simone Caporali
II- No Corpo e no Coração Coreografia: Suely Machado
III- Cais Coreografia: Jairo Sette
Roteiro e Direção: Suely Machado
Assistentes de Coreografia: Kátia Rabello e Suely Machado