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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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EXPEDIENTE

SUMÁRIO

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EDITORIAL

O Pernambuco mudou. Agora é quinzenal. Deixa de circular ape-nas no princípio do mês, por decisão oportuna do presidente da Cepe,escritor Flávio Chaves, para alcançar maior número de leitores e paratornar mais ágil o trabalho jornalístico. Dessa forma, o encarte Saber+, além de atender ao estudante na área de literatura e interpretaçãode texto, vai enfocar questões na área de História, por exemplo, pro-curando englobar vários assuntos.

Neste número, o jornal presta homenagem ao escritor RenatoCarneiro Campos, um dos textos mais vigorosos e plenos da literatu-ra pernambucana, sem se apegar com excessos aos regionalismos,mas revelando sempre o amor ao Recife, seus personagens e geo-grafia. A homenagem começa com artigo de Geneton Moraes Neto,outro craque da crônica brasileira.

Desde a capa, no entanto, o leitor está sendo provocado por umassunto extremamente polêmico: a vitória do feio sobre o belo. Pelomenos o belo clássico que inquietou tantos estudiosos e cuja morte jáhavia sido anunciada pelo cubano Alejo Carpentier ao analisar a desar-monia e desorganização das cidades através daquilo que chamou deo estilo das coisas que não têm estilo.

Assunto extremamente delicado, sem dúvida, porque ao se alteraras regras da estética, modificam-se também as regras das condutasmoral, ética e social. Lembrando que o feio está ligado à desarmonianão apenas na arte, mas também na vida em sociedade. Ou seja: aderrota do belo convencional levaria a uma desestruturação social?Tema que empolga e angustia.

Feio também foi o tratamento inadequado e grotesco dado pelosprodutores brasileiros ao pernambucano Alberto Cavalcanti, em ma-téria assinada pelo escritor Fernando Monteiro, consagrado autor deromances, peças e filmes. Por isso mesmo, decidiu-se por uma diagra-mação em que não houvesse o título tradicional. O bilhete que o ci-neasta escreveu ao escritor é, ao mesmo tempo, título, texto de aber-tura e ilustração da matéria.

A atuação preciosa do encenador no teatro é motivo de outra ma-téria que destaca o trabalho de Marcondes Lima, ao lado de um tematão grave quanto o feio: o tédio. Jaíne Cintra optou por uma diagra-mação que considera a lágrima como enfoque mais grave deste temadoloroso. Ambas as matérias pautadas por Schneider Carpeggiani. EJarbas? Ele ocupa uma página inteira com um quadrinho de altaqualidade, vencedor do Salão de Humor de Piracicaba.

Na página doze, um conto inédito de José Castello, que revelahabilidade e astúcia na incrível arte de contar histórias, deste notáveljornalista brasileiro.

Boa leitura,Raimundo [email protected]

Seja feia. É belo - Como o cinema e a TVestão colocando de cabeça para baixo os velhos conceitos estéticos

Alberto Cavalcanti - As injustiçasbrasileiras que angustiaram o principalcineasta pernambucano do século 20

Tédio - Livro investiga o que há portrás da mais traiçoeira das sensações

Encenador, o precioso - A plurirreferenciali-dade do teatro de Marcondes Lima

Ex? Sempre perigoso - Samarone Limarevela a eterna tentação de um ex-ladrão de livros

HQ - Quadrinho de Jarbas Domingosque foi premiado no Salão de Humorde Piracicaba

Inéditos - O lado ficcionista do crítico literárioJosé Castello

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GOVERNADOR DO ESTADO

EEdduuaarrddoo CCaammppooss

VICE-GOVERNADOR

JJooããoo LLyyrraa NNeettoo

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

RRiiccaarrddoo LLeeiittããoo

Alexandre Belém

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SECRETÁRIO GRÁFICO

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REVISÃO

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EQUIPE DE PRODUÇÃO

AAnnaa CCllááuuddiiaa AAlleennccaarr,, DDéébboorraa LLôôbboo,,EElliisseeuu BBaarrbboossaa,, EElliizzaabbeettee CCoorrrreeiiaa,,JJoosseellmmaa FFiirrmmiinnoo,, JJúúlliioo GGoonnççaallvveess,, LLííggiiaaRRééggiiss,, RRoobbeerrttoo BBaannddeeiirraa,, SSííllvviioo MMaaffrraaee VVíívviiaann PPiirreess

GGoovveerrnnoo ddeePPeerrnnaammbbuuccoo

Circulação mensal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

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EDITOR

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EDITOR EXECUTIVO

SScchhnneeiiddeerr CCaarrppeeggggiiaannii [email protected]

EDIÇÃO DE ARTE

JJaaíínnee CCiinnttrraa

EDIÇÃO DE IMAGENS

NNéélliioo CChhiiaappppeettttaa

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or séculos, a feiúra esteve deitada no divã do espelho a tentar resolver sua culpa, chorando rancorese, com suas lágrimas, borrando ainda mais a maquiagem. Mas o fato é que, ao contrário do que diza fábula, quem comeu a maçã envenenada de seu ódio não foi a Branca de Neve. Foram todas as ou-

tras meninas que nem entraram na história, nem conseguiram príncipes encantados. Quem comeu a maçãerrada foram as pessoas estateladas diante das vitrines e capas de revista, gente que há muito não con-segue acordar de um generalizado sono cosmético. Mas a feiúra, quem diria, cansou de chorar e resolveureagir: repôs o batom, ajeitou o cabelo e levou o Globo de Ouro para casa este ano.

Sem o ódio das maçãs e sem a culpa do sorvete calórico, Ugly Betty, a série americana adaptada da no-vela colombiana Betty, a Feia, ganhou neste começo de 2007 vários dos prêmios dedicados à TV nosEstados Unidos. E, de repente, Branca de Neve, a verdadeira vilã dessa história, interpelou: �Betty, quem?�Ao que nossa heroína respondeu: �A Feia�, com F maiúsculo e um slogan publicitário que tenta mudar aordem do jogo: �Feio é a nova beleza�.

A série, uma comédia produzida pela atriz Salma Hayek, acompanha a vida de Betty Suarez, uma jovemlatina que começa a trabalhar em uma revista de moda em Nova York. O fato é que Betty é a antítese dolugar: desajeitada, aparelho nos dentes, óculos de grau, uma franja terrível e uma composição de roupasque, na melhor das hipóteses, dava para vestir dentro de casa, com janelas e portas fechadas. Tal comouma Jane Eyre revisitada, Betty carrega a carga simbólica da emancipação. Mas ao contrário da heroína deCharlotte Brontë, sua condição de liberdade não mais diz respeito à relação vertical homem - mulher. A per-sonagem vivida pela atriz America Ferrera é a alienação da fabricação em série, de um modelo industrial devida.

Não é preciso dizer que a história é sobre como, a despeito de seu aspecto físico, Betty consegue serevelar como o elemento bom e verdadeiro. Esses dois valores, não coincidentemente, são os mesmos que,mais de dois mil anos antes da Vogue, Platão colocou lado a lado da idéia de beleza. Desde então, o belocomumente é achado em paralelo a qualidades positivas do ser humano e da natureza. Betty, boa e ver-dadeira, surge assim para salientar que se toda estética tem sua ética, toda beleza tem sua moral. E a delaanda lá em cima.

PCarol Almeida

A beleza revela tudo,porque ela expressanada. Oscar Wilde

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Naturalmente, a série está fazendo um sucesso enorme entre a crítica e o públicoamericano, e isso vale particularmente para a comunidade latina que mora nos EstadosUnidos. A mesma comunidade que, alijada do poder econômico e distante dospadrões estéticos muitas vezes ditados pela indústria da moda, precisa entender (e essaé uma demanda de mercado) que, entre sapos e príncipes, só se salvam mesmo aque-les que conseguem ter atitude.

�Seja real, seja esperto, seja gentil, seja honesto, seja sincero consigo mesmo�,diz a agora popular campanha agregada ao seriado: �Seja feio em 2007�. O verbono indicativo esclarece que essa é uma persuasão de auto-ajuda e que, assim comotudo no universo do consumo, ser feio se transformou também em uma estratégiade marketing que a própria indústria da moda e do entretenimento faz questãoagora de alimentar. Até porque, como todos sabem, a beleza não pode se eximir deser boa. Frente a questões recorrentes sobre modelos anoréxicas, explosivos siliconese invasivas agulhas de botox, é de bondade, e dos valores com ela agregados, queos códigos de barra precisam agora.

É preciso salientar, no entanto, que mais além desses códigos de barra, existe defato um universo que, por ter aprendido a lidar apenas com conceitos competitivosque dividem o mundo em vencedores e perdedores, carece de um alento, nem queeste seja ficcional. Melhor exemplo disso é o longa-metragem Pequena Miss Sunshine,indicado este ano ao Oscar de melhor filme. Aqui, no lugar de Betty, temos Olive, umamenina de sete anos de idade cujo sonho é participar de um concurso de beleza.

Mas Olive, assim como toda sua família, pertence ao mundo dos �losers� (os�perdedores�), um lugar próprio para onde são enviadas às pessoas que não atendemaos pré-requisitos do perfil de �winner� (�vencedor�). Em outras palavras: gente forado padrão, incluindo aí o padrão de beleza. Richard, pai de Olive, acredita que de fatoexiste um largo fosso entre o castelo dos vitoriosos e o pântano escuro dos que ficarampor último. Cercado por esse princípio, ele tenta ganhar o pão da casa convencendopessoas a aderirem a mais um desses pacotes de auto-ajuda �inédita e revolucionária�:os Nove Passos para o Sucesso. O problema de Richard é que essas pessoas pratica-mente inexistem. Afinal de contas, em um mundo cheio de losers, a auto-ajuda deidéias �inéditas e revolucionárias� está com mercado saturado.

O filme é cheio de personagens centrados em sobreviverem a si mesmos: o avô vici-ado em cocaína, o tio suicida, o irmão que se nega a falar, o pai obstinado a não serum fracassado e a mãe que, enfim, sendo mãe, termina tendo que absorver um poucodo problema de todo mundo. Exceto Olive, que, sem referência de vitória ou derrota,beleza ou feiúra, não entende por que pessoas como o seu tio Frank estariam tão infe-lizes consigo próprias. E, principalmente, não sabe por que motivos ela não poderiaparticipar de um concurso de beleza. A família, revirada com a idéia de que alguém alidentro, finalmente, tomou uma atitude em prol de si mesma, parte então em umaKombi atravessando os Estados Unidos rumo ao concurso da Pequena Miss Sunshine,na Califórnia.

A falta de referências estéticas ou morais em Olive é o ponto essencial dessa odis-séia. Aos sete anos, sua realidade ainda é sua própria criação, uma observação domundo pouco maculada por conceitos externos, à exceção, claro, do vídeo de MissCalifórnia a que ela assiste repetidas vezes ensaiando os movimentos das mãos sobreo rosto na hora da indefectível surpresa de ter ganho o concurso. Nota-se, porém, queOlive não está interessada na competição em si. Seu foco está em ser protagonistadaquela cena.

Existe algo de sublime no mundo de Olive Hoover. Pois enquanto a beleza pres-supõe um ponto de partida de onde se irão criar o belo e o feio, o sublime prescindede referências. �Ele é uma magnitude igual apenas a ele mesmo. Segue que o sublimenão deve ser buscado em coisas da natureza, mas somente em nossas idéias�, argu-menta Kant em sua Crítica da Razão. O conceito estende assim a idéia de beleza a umcampo livre de julgamentos, um estado de pensamento.

Pequena Miss Sunshine é um filme que parte do sublime como um campo estéti-co para falar do belo enquanto esfera moral. De uma criança sem referências estéti-cas além da sua própria família, a história chega ao seu ponto final em um concur-so de beleza onde as meninas parecem, de fato, bonecas presas em suas embala-gens de presente. Uma das últimas cenas desse concurso coloca em relevo a questãoda moralidade (e não apenas da moral) como um lugar sedimentado pela belezamidiática, onde o indivíduo tem pouca chance de sobreviver com suas idéiaspróprias. �É que Narciso acha feio o que não é espelho�, diria Caetano que, ao lem-brar de uma cidade, fazia alusão também a uma cultura de padronização do belo e,por tabela, da verdade e da bondade.

Olive e Betty são duas frentes de resistência, ainda que comerciais, a esse paradig-ma platônico. E, ao contrário do Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo, nascemcomo indivíduos gregários, em contextos específicos: latino suburbano ou looser classemédia. São personagens usadas agora para dar um sentido maior a essas periferiassociais, que vincula a idéia de beleza a um preceito moral. O feio deixa aqui de serusado como condição necessária à gênese do belo, �onde as sombras contribuem paraque melhor resplandeçam as luzes� (na Suma, de Alexandre de Hades), para ganharluz própria. Olive e Betty são como pessoas que acordaram no meio da história e viramque Branca de Neve, na verdade, era somente uma moça muito pálida. !!

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A história da feiúra é a história da beleza.Mesmo nos estudos iniciais, digamos, quando Aristó-teles define o risível - ou a comédia - como feiúra co-mum e inocente, torna-se claro que o assunto é objetode reflexão. Portanto, não é correto afirmar-se que ahistória da feiúra começa, por assim dizer, com Kant. Elajá estava no princípio, com objetividade ou não. Esomente uma revolução extraordinária, é claro, a partirda conceituação kantiana de que a beleza ou a feiúraestá no sujeito e não no objeto, mesmo quando Hegelsalienta que o objeto precisa de atributos básicos. As-sim: a beleza não está na pessoa que eu contemplo,mas está em mim mesmo. Cabe a mim definir o que ébelo e o que é feio.

Algo completamente revolucionário porque os trêsprimeiros estudiosos - Platão, Aristóteles e Plontino -consideram a Beleza ideal: o primeiro através da TeoriaMística, ou seja, a beleza está no paraíso perdido, daíPlatônico; o segundo na matemtária, o objeto contem-plado teria que ter Harmonia, Proporção e Grandeza; eo terceiro que defendia a harmonia da partes menores.Portanto todos centrados num idealismo que Kant que-brou no momento em que transferiu para o sujeitotoda a conceituação da beleza. Mais tarde, os estu-diosos de políticos decidiram, então, que o sujeito é osenhor da História e não somente o objeto. A partir daías conceituações foram aceleradas, embora nuncamais tenha se perdido de vista a teoria kantiana,inclusive do feio.

O feio, no entanto, começou a preparar a sua vitóriasobre o belo, no instante em que as manifestaçõeshumanas passaram pelo gosto médio e pela paixãodesenfreada. Há gradações incríveis para vitória do feiosobre o belo, mas alguns estudiosos consideram que oprincípio está no aparecimento do Cristianismo, ou nasimagens do Cristo, que vão de encontro e criam o con-flito entre a beleza chamada grega, aquela que deu iní-cio aos estudos, por assim dizer, que a imagem deCristo sofrendo, chorando na cruz, ou nas estampas emoedas. O choro, a contorção, o sangue porejando napele, entram em choque imediato com a finura dos ele-mentos, ou com os traços de beleza, sacramentadaspelo heróis gregos e pela sua manifestação de poder eforça. Como então um Deus que chora e que se lamen-ta, que se ergue, no entanto, com maravilha e beleza,ao contrário daquele deus olímpico e majestoso, idealde todas as belezas?

Mas a aparente feiúra do belo - observe-se comoesta mudança já muito significativa - leva ao mara-vilhoso e à contemplação, ao contrário daqueleoutro feio que reivindicava, em si mesmo, a anar-quia e a desordem. Estabelece-se aí uma contra-dição e uma afirmação, e a teoria de Kant, seguidode Hegel, ganha força: o objeto contemplado pre-cisa conter atributos em si mesmo - os atributos dabeleza mística, que não deixa de ser um pouco umretorno - embora que ainda um tanto forçado - àteoria mística de Platão, porque o objeto é místico.Não só místico, mas sobretudo transcendental.

Mais tarde, bem mais tarde, é verdade, o cubanoAlejo Carpentier cria a teoria do estilo das coisas quenão têm estilo, ao observar, por exemplo, as cidadeseuropéias e suas misturas arquitetônicas. Bairros inteirose praças elegantes reúnem elementos do clássico, domoderno, do contemporâneo. Essa mistura resulta nadesordem e na desarmonia, o que provoca uma revisãodo conceito de beleza, embora no princípio o feioestivesse ligado apenas ao moral e ao ético. A imagemdo Cristo chorando dá a Ele uma visão mais humana emais verdadeira, revelando por isso mesmo no humanoa inquietação e a busca, o caminho para o Alto e parao Eterno. Raimundo Carrero.

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No sétimo ano do século 21, cento e dez anosdepois do nascimento de um dos mais altos artistas do Brasil, e trinta e um anos após a remessa deste brilhete, échegada a hora, sem dúvida, deste país se reconciliar com a memória de Alberto Cavalcanti.

Tê-lo no nicho apenas de �um dos nossos cineastas� - e aquele associado, por sinal, ao fracasso da mega-empre-sa Vera Cruz - é não só injusto: favorece a distorção de valores que ainda não situa o cineasta no lugar merecidoentre seus pares vivos e mortos, no panteão onde se reverenciam mestres em diversas expressões da modernidade(Heitor Villa-Lobos, Portinari, Guimarães Rosa, Oscar Niemeyer, Tom Jobim e outros).

Na verdade, essa possível �reconciliação� já deveria ter acontecido há mais de um quarto de século, quandoAlberto de Almeida Cavalcanti, aos oitenta anos, ainda tentava realizar o último longa-metragem (António José, oJudeu) de uma carreira internacional mais do que vitoriosa, e que só enfrentou entraves e reveses aqui em terratupiniquim.

Quem tinha medo de Alberto Cavalcanti? A pergunta cabe, perfeitamente, ao se tomar contato com uma das biografias brasileiras mais extraordinárias

no cenário artístico do século 20, e até poderia ser atualizada para �quem tem medo de AC?� - uma vez que a suamemória segue quase desprezada, os seus filmes (estrangeiros e nacionais) não são mostrados para as novasplatéias, e até o Correio lhe negou selo alusivo ao centenário do seu nascimento, comemorado em 1997. Segundose sabe, diretores de comunicação da ECT não ficaram convencidos, em Brasília, da importância de alguém assimdescrito por George Sadoul, o respeitado historiador do cinema e diretor da cinemateca francesa: Un des plusimportants cinéastes contemporains. Son aport fut décisif pour l'avant-garde française, pour le documentarismeanglais et la renaissance du cinema brésilien etc.

Foi Alberto um brasileiro �cosmopolita� demais para a província nacional? Quem escreve estas linhas, possui o original de uma carta que o cineasta lhe remeteu, de Nova York (no dia 23

de dezembro de 1974), na qual o diretor de Nicholas Nickleby anexava o anúncio desse filme programado num�cinema elegante� (o Carnegie Hall), para que norte-americanos e visitantes de todas as partes do mundo pudessemassistir, na época natalina, à obra que em época alguma os brasileiros tiveram chance de ver nas telas de cinemaselegantes e não-elegantes.

Até hoje, essa pequena obra-prima de 1947 - baseada num romance de Charles Dickens - permanece inéditano circuito comercial onde foi vetada pelo poderoso exibidor Severiano Ribeiro, que assistira o filme, em sessão espe-cial (solicitada por Cavalcanti) e o julgara �acima da mentalidade do público do Brasil�...

Com certeza, Nicholas Nickleby era um filme acima do QI do exibidor revelando, nesse episódio, toda a suaignorância de produtor de chanchadas, algumas das quais abaixo, sim, do nível de suportação do público que eletinha na conta de �burro�, pelo que se deduz do seu �veredicto� a respeito de uma realização que é consideradauma dos melhores adaptações cinematográficas (se não a melhor, para muitos) do mundo ficcional de Dickens -também visitado por David Lean, Carol Reed e outros cineastas dos quais Cavalcanti foi amigo.

André Malraux foi um dos seus grandes admiradores. Quando Alberto se dispôs a escrever uma autobiografia- e para iniciá-la, veio a Pernambuco, em 1972, a fim de colher dados sobre a família da mãe, uma olindense

Fernando Monteiro

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até no nome (Ana Olinda do Rego Rangel Cavalcanti) - o então ministro de Assuntos Culturais da França franqueou-lheas portas da Cinemateca, pois Malraux considerava fundamentais para a história do cinema francês, entre 1925 e 1933,as memórias do seu amigo �Cav�. E elas estavam quase concluídas quando ele veio a falecer, em Paris, numa clínica darue de Passy, às 10 horas da manhã do dia 23 de agosto de 1982.

O Brasil procurou por essas memórias, para editá-las aqui, nesses últimos vinte e cinco anos? Que eu saiba, nada se feznesse sentido.

Não foi a primeira vez que Alberto foi �premiado� com a inércia, a inveja ou simplesmente a má vontade. Depois dedificultar os caminhos para a realização do que deveria ter sid o último filme assinado pelo diretor internacionalmente acla-mado, a Embrafilme também nada fez para copiar e divulgar as obras cinematográficas de Cavalcanti, até chegar aquelemomento em que uma súbita penada do aloprado presidente Collor (auxiliado pelo subalterno secretário Ipojuca Pontes),pôs um fim na controvertida história da empresa responsável tanto por um São Bernardo quanto por �pornochanchadas�típicas dos anos 70. Mas isso é outra história. O assunto, aqui, é um brasileiro importante para o mundo e �desimportante�,cá, para o triste trópico de Pindorama.

A matéria desta segunda edição do suplemento cultural de Pernambuco pretende, modestamente embora, ajudar a porem marcha um encontro de justiça histórico-cultural: o do legado de Alberto Cavalcanti com o atual momento de euforiado nosso cinema, desde os primeiros títulos da �retomada� até o Céu de Suely.

O inferno astral da obra de AC deveria ser convertido em comemoração de um dos nossos clássicos - da estirpe de MárioPeixoto, Humberto Mauro e Glauber Rocha. E tal clássico foi um cineasta com um pé em Olinda e um olhar de cidadão domundo para o planeta no qual seus filmes viriam a influenciar até criadores da estatura de Akira Kurosawa - que lista, nasua autobiografia (Gama no Abura, 1984), uma realização do brasileiro entre as obras formadoras da sua persona decineasta. Quando ainda era um jovem estudante, e assistia películas de graça (porque o seu irmão mais velho, Heigo,tornara-se �narrador profissional de filmes mudos�), Kurosawa chegava a viajar de Tóquio para Asakusa apenas para verfilmes como aquele que ele recorda na página 121 do seu relato autobiográfico (Estação Liberdade, 1990).

O título? Rien que les heures, de 1926. O diretor? Alberto Cavalcanti - que está lá, ao lado de John Ford, Jean Renoir,Charles Chaplin, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, Carl Dryer, Murnau e Luis Buñuel, na lista do autor de Os Sete Samurais(e consta, ainda, que o mesmo filme teria influenciado também Walter Ruttmann, na realização do celebrado Berlim,Sinfonia da Metrópole).

A mágoa do Brasil está autenticada pela assinatura de Cavalcanti também numa carta que o cineasta nos enviou, dessavez do Rio do seu nascimento (6/03/1897), datada de 9 de março de 1976, e com a qual abrimos esta matéria.

NOTA: Alberto de Almeida Cavalcanti de fato não voltou ao Brasil, depois de 1980. Passou a viver sozinho naVille Dufresne, em apartamento de primeiro andar (cedido por velha amiga parisiense), cujas escadas eramenfrentadas diariamente pelo octogenário. E quando soou a hora final, ele deixou instruções para ser enterrado nacapital francesa, que o acolhera, desde os primórdios do século, com a generosidade jamais encontrada na suaprópria terra.

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escritor francês George Bernanos, no seu Diário de um pároco de aldeia,sugere que nossa necessidade de �agitação� talvez seja apenas um disfarce

para nossa natureza entediada. Mas será que podemos falar de uma concepçãobem definida de tédio? Seria a simples falta de interesse geral nas coisas, ou otédio só se aplica a situações especificamente entediantes? Existiria uma diferençademarcável entre o tédio dos antigos e o tédio dos modernos? Vivemos hoje nummundo de entediados?

Todas essas perguntas e algumas tentativas de resposta estão no interessantelivro Filosofia do Tédio, do professor norueguês Lars Svendsen. Um dos méritosdo autor foi a decisão de abordar o tema de forma ensaística, sem a pretensãode logicizar numa cadeia de argumentos abstratos aquilo que, na verdade, é algoque experienciamos - algo humano e não matematicamente quantificável: �Otédio é um fenômeno vago, multiforme, e acredito que um ensaio longo, e nãouma dissertação estritamente analítica, seja a forma mais indicada de investigá-lo�. Svendsen não busca uma definição, mas uma compreensão do fenômenoatravés de uma espécie de genealogia do tédio

O livro está dividido em quatro grandes capítulos que, apesar de conectados,podem ser lidos de forma independente. O primeiro trata da relação do tédiocom as transformações sociais que caracterizam a época moderna; na segundaparte, vários exemplos retirados da literatura, da filosofia e mesmo do cinema sãocitados para que o leitor perceba, através das manifestações artísticas, a naturezacomplexa e ambivalente do sentimento; no terceiro capítulo, o autor analisa deque forma o tema do tédio aparece nas investigações filosóficas de MartinHeidegger; por fim, no último apartado, uma espécie de ética do tédio, não pres-critiva, é ensaiada por Svendsen.

Assuntos cotidianos, a preocupação com a mundaneidade, com os conflitosde valores vivenciados todos os dias pelas pessoas podem parecer terrenodemasiado frívolo para pensadores de grande porte intelectual. Contudo, ao seafastarem de temas vitais como o do tédio, a Filosofia acaba se trancando nasacademias e deixando de dialogar com um público latente não-especializado.Além disso, é bom registrar que figuras como Pascal, Bergson, Heidegger, Russell,Wittgenstein, Cioran e outros de mesma envergadura pensaram sobre o tema.

De forma geral, Lars Svendsen se refere ao tédio moderno como um proble-ma que se relaciona aos significados e valores sociais e individuais que parecemter perdido a solidez. Filósofos como Nietzsche, Husserl e Lyotard utilizaramexpressões como a morte de Deus, o fim das metanarrativas ou a dessacralização(desencatamento, para Max Weber), para indicar aquilo que parece ter deixadoo homem à deriva num mundo em que não se reconhece e tampouco se encon-tra. Em se tratando de uma preocupação genuinamente existencial, pode nosdizer muito do sentido que atribuímos à nossa própria existência: uma vida vaziade significados é, bem provavelmente, uma vida marcada pelo tédio.

O autor traça uma distinção bem clara entre tédio situacional e tédio existen-cial. O primeiro, mais fácil de �diagnosticar�, é aquele que nos assalta enquantofazemos algo - o projeto, situação ou atividade na qual estamos envolvidos sim-plesmente perde o interesse, torna-se enfadonha; o segundo, o de mais interessepara Svendsen, é aquele que nos toma de maneira mais profunda, suga-nos avontade e, ainda que estejamos cercados por mil atividades, podemos subita-mente achar que nada faz sentido e que o sentido mesmo não existe - ficamosimersos numa sensação de vazio completo, de distância de nós mesmos. Estetipo não necessita de uma causa objetiva que o impulsione.

A análise genealógica de Svendsen passa pelas diversas manifestações �pre-cursoras� e variações históricas que se aproximam de alguma maneira do queentendemos hoje por estar �entediado�. Na idade média, o termo acedia era uti-lizado pelos patriarcas da Igreja para se referir a uma certa forma de vazio aními-co, que seria a fonte geradora dos demais pecados. Há registro nos textos deSêneca da expressão tedium vitae (cansaço da vida), que lembra muito o nossoconceito atual. Somente há aproximadamente 200 anos o tédio aparece comouma das questões centrais entre os fenômenos culturais da sociedade ocidental:o Romantismo aparece como movimento chave para o desenvolvimento de umamentalidade subjetivista que acaba configurando o tédio como o concebemosagora. O deslocamento de todos os sentidos e significados do mundo para aexperiência estética subjetiva de cada indivíduo dá aos homens uma responsabili-dade de autodeterminação e auto-realização que muitas vezes pode se tornar umfardo. Vivemos hoje um romantismo sem fé: restou-nos o tédio.

Atualmente, nas grandes concentrações urbanas, alguns graves problemassociais como a violência, o vandalismo, o comportamento promíscuo, a animosi-dade generalizada (no trânsito, por exemplo), os distúrbios alimentares, o usoabusivo de álcool, cigarros e outras drogas são, em alguns casos, relacionados aessa perda de significado existencial que Svendsen aponta como fundamento dotédio moderno.

Não obstante toda a carga negativa já imbuída culturalmente no conceito detédio, Svendsen sugere que o vazio que experienciamos pode ser um catalisador,algo que potencialize uma nova configuração para a nossa existência - uma fontede novas significações. Como endossou Cioran: �Transformar o nada em incên-dio, em um inferno desejável�. A capacidade de adquirir uma certa dose de tole-rância ao tédio poderia, segundo o autor, ser o ponto de partida para um com-portamento mais introspectivo, um princípio de auto-análise existencial.

�Eu me dizia, assim, que os homens são consumidos pelo tédio.Naturalmente, temos que refletir um pouco para perceber isso - não é coisa quese veja de imediato. É uma espécie de poeira. Vamos para cá e para lá sem vê-la,a aspiramos, a comemos, a bebemos, e ela é tão fina que nem sequer range entreos nossos dentes. Mas basta pararmos por um momento, e ela assenta como ummanto sobre o nosso rosto e nossas mãos. Temos de estar a sacudir constante-mente de nós essa chuva de cinzas. É por isso que as pessoas são tão agitadas.�Trecho tirado do livro Diário de um pároco de aldeia, de George Bernanos.

F ilosofiaVago, multiforme e não matematicamente quantificável

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Eduardo Cesar Maia

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T eatro

Encenador, o preciosoInvestigações possíveis do teatro rebuscado e camp de Marcondes Lima

termo encenador é relativamente novo. Data doséculo XIX e corresponde à pessoa responsável

pela montagem do espetáculo teatral. O encenadorresponde pela opção estética do espetáculo, devendoapresentar domínio de todos os signos que compõema encenação: texto, atuação, ritmo, cenografia, ilumi-nação, sonoplastia, figurino. Cabe ao encenador, tam-bém, orientar toda a equipe envolvida na pesquisa doselementos que se harmonizam com o conceito estabe-lecido para a cena.

O pernambucano Marcondes Lima é um jovemencenador de talento e um dos mais promissores emnossa cena teatral. Formado em Artes Cênicas pelaUFPE, Mestre pela UFBA, atua no teatro pernambucanonão somente como diretor, mas também como cenó-grafo e figurinista. Em parceria com Fábio Caio e CarlaDenise, fundou o Mão Molenga Teatro de Bonecos,grupo que se mantém na ativa desde 1986.

Seu primeiro trabalho na função de encenador ediretor de elenco só aconteceria em 1995, com a peçaAs Preciosas Ridículas. Desde então, vem assinando adireção de espetáculos nos quais experimenta, aprofun-da e consolida sua concepção estética do teatro. Entreeles, foram destaque Mistério Buffo, A Caravana daIlusão, Angu de Sangue, As Criadas (direção divididacom Kléber Lourenço) e o recente Ópera.

Quem acompanhou criticamente essas produçõespercebe um traço estilístico muito caro ao encenador: oneobarroco. Segundo Carlos Fuentes, no seu livro Oespelho enterrado, a estética barroca constitui "uma artede deslocamentos, semelhante a um espelho em que,constantemente, podemos ver a nossa identidade emmudança". Trata-se de uma �cultura totalmente inclusi-va�, na concepção de Lezama Lima (A ExpressãoAmericana). Para esse autor, a �diversidade cultural,longe de ser um embaraço, transformou-se na própriafonte da criatividade�.

Marcondes Lima procura investir na visualidadeda cena. O acúmulo de elementos, a mistura dasmais diversas referências artísticas e culturais cos-tumam fazer parte das peças que dirige. Seusespetáculos propõem desviar o olhar do público;ou seja, oferecer possibilidades para que o públicoescolha em que direção será encaminhado o olhar.O encenador aposta que o ir-e-vir do olhar pro-move o raciocínio, e para isso toma comoparâmetro o movimento dialético cultivado noteatro de Bertolt Brecht.

Na verdade, a plurirreferencialidade de seusespetáculos toma como ponto de partida e de chegadaa própria noção de identidade, fazendo com que seuteatro seja neobarroco não somente no plano formal,mas também no das idéias. Marcondes Lima nos convi-da a fazer, com ele, uma leitura barroca de nossaprópria história. Avesso à idéia fechada e redutora deuma única identidade cultural, o encenador se vale deinúmeras referências, as quais, como ruínas alegóricas,nos propõem um jogo para compreendermos o carátercontemporâneo da cultura em nosso próprio país deterceiro mundo e pós-colonial.

Em sua opinião, os textos com os quais trabalha,sejam eles dramáticos, sejam de outra espécie, ofere-cem caminhos importantes para a concepção da cena.N'As Criadas, por exemplo, o universo especular de JeanGenet apresentava condições para investigar a tensãoentre identidade e alteridades. Junto com KléberLourenço, criou um conceito de encenação em que,adotando a referência francesa do dramaturgo, fazmenção à cultura do Extremo-Oriente e brasileira, pro-movendo, assim, um diálogo multicultural, sem subor-dinar uma cultura à outra. Além disso, questiona a iden-tidade da própria linguagem teatral, ao fazer referênciasexplícitas à dança-teatro, aos mangas e aos animes.Tudo isso conferia ao espetáculo um caráter pop, explo-rando as virtualidades da linguagem cênica e eliminan-do, com a inclusão de novos medias, a divisão rígidaentre alta e baixa cultura.

Em seu mais novo trabalho, Marcondes Lima põeem discussão a identidade sexual, tema já presente emseus outros espetáculos. Ópera é a segunda peça deuma trilogia que o encenador pretende realizar com ogrupo Coletivo Angu. Na primeira, Angu de Sangue,adaptou para a cena, em trabalho conjunto com osintegrantes do grupo, textos narrativos de MarcelinoFreire, enfocando a violência urbana em nosso país. Essecaráter épico se manteve como traço característico tam-bém na criação de Ópera. Dessa vez, os contos queserviram de base para a criação do espetáculo foram deautoria de Newton Moreno, escritor que possui umaprodução ainda incipiente, mas cuja recepção efusivanão se pode negar. Suas peças trazem, quase sempre, ohomoerotismo e a homocultura como temas capitais.

A literatura de Newton Moreno é carregada demelodrama. Ópera, obra ainda no prelo, impôs aMarcondes Lima o caminho que deveria trilhar para aconfiguração da cena. O encenador se inspirou no tra-

balho do Vivencial Diversiones, grupo teatral pernam-bucano assumidamente gay, que, na segunda metadeda década de 1970, tornou-se emblema da contracul-tura, oferecendo os mais autênticos hibridismos estéti-cos, por meio do exagero, da escatologia, do indigesto.

Dentro do discurso político que a temática encerra,o espetáculo de Marcondes caminha pelo viés da mis-tura, do barroco (mais uma vez). Ele traz para a cenareferências explícitas à linguagem dos produtos dacomunicação massiva que durante muito tempo denossa história se mantiveram omissos aos assuntosgays: a radionovela, a fotonovela, a telenovela e aopereta. Esses mesmos produtos foram, contudo, mui-to consumidos pelo público gay, tornando-se parte doimaginário desse grupo, por exemplo, o glamour deRita Pavone, de Dalida, das estrelas de rádio e de TV.

Ópera, apesar da estética queer que assume, não sedirige apenas aos gays. Aberto a um público heterogê-neo, propõe, em última instância, uma reflexão sobre ocaráter multifacetado de nossa cultura brasileira e glo-bal, posicionando-se contra os discursos que se mos-tram portadores de �verdades absolutas� para justifi-carem comportamentos de intolerância. Mantém umdiálogo com o teatro brechtiano, por colocar questõessobre as quais o público terá de deliberar.

A peça entra em temporada neste mês de março emerece ser assistida. Fazendo uso de um humor camp,o espetáculo de Marcondes Lima se mostra engajadona causa gay. A concepção de mundo neobarroca doencenador não nos impõe nada: cria condições para odebate de um tema ao qual não podemos mais nos fur-tar, se quisermos compreender os rumos de uma socie-dade globalizada e multicultural. Seu teatro cumprefunção política e oferece uma experiência estética quenão está distante de nossas preocupações éticas.

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Alexandre Belém

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Em seu mais novo trabalho,Marcondes Lima põeem discussão a identidade sexual

Elton Bruno Soares de Siqueira

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C rônica

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utro dia uma jornalista do Jornal do Brasil me man-dou um e-mail. Estava fazendo uma matéria sobre

�ladrões de livros� ou coisa assim, e como tinha escritouma crônica onde informava que tinha sido um contu-maz surrupiador de livros, queria saber os detalhes. Deimeu telefone, mas como demoro muito a atender e àsvezes esqueço dele, acho que ela ficou chateada e nuncamais deu notícias.

Pois bem. Isso me fez pensar sobre a importantíssimaarte de roubar livros, hoje num processo de ampla der-rocada, por conta das tecnologias. Infelizmente, esseglorioso tempo está sendo criminosamente encerrado,graças às infernais máquinas que dão aquele apitoescandaloso, quando você tenta sair com um FernandoPessoa debaixo da asa, ou misturado distraidamentecom seus livros e cadernos. Isso sem contar com osvendedores e seguranças, com um olho no livro, outrona sua bolsinha à tiracolo, ideal para ataques fortuitos.

Como morador da Casa do Estudante Universitário, afamosa �CEU�, da UFPE, no final dos anos 80, fui aque-le liso crônico, que só saía para tomar umas com os ami-gos se alguém chegasse junto, e não podia ficar atémuito tarde, porque iria morrer no também lendárioBacurau, que Deus o tenha. Liso, como se sabe, nãopode comprar �O Livro do Desassossego� fácil, muitomenos �O Quarteto de Alexandria� (que hoje está por R$176,00). Naquela época, ainda dava para circular pelasprateleiras, esperar calmamente o momento oportuno ezapt! - dar pequenos e certeiros golpes literários.

Sim, fiz algumas gatunagens na Livro 7 e demaislivrarias do Recife, mas não foi algo obsessivo-compulsi-vo. Um livrinho aqui, outro ali. O Tarcisio Pereira até já meperdoou, e foi pela empresa dele, a �Livro Rápido�, quelancei minha coletânea de contos (Estuário).

Foi na Livro 7, também, que vi uma das maioreselegâncias por parte de um vendedor. Ao perceber umlivro novinho entre meus cadernos, ainda com a etique-ta do preço (ou seja, eu não tinha pago e estava levan-do), ele sutilmente retirou o livro e o colocou de volta àprateleira, sem dizer uma palavra. Um cavalheiro, umperfeito cavalheiro.

Nas muitas viagens pelo Brasil afora, inclusive exteri-or, exercitei minhas qualidades de �extrator de volumesalheios�, usando técnicas as mais variadas, desenvolvidascom uma certa dose de sangue frio. Mas tenho umgrande amigo que atacou uma livraria no Rio de Janeiroe levou, em sua bolsa, dois volumes do Fernando Pessoa,aquele da capa dura e papel Bíblia. Em termos compara-tivos, eu seria um reles batedor de carteira da rua daConcórdia, ele seria o cérebro do assalto ao BancoCentral. Ele só vai escapar do inferno mais sombrioporque se tornou um ótimo poeta. Nada pior que um

sujeito que afana um Fernando Pessoa e ainda resultanum mau poeta.

Em São Paulo, fiz uma malograda tentativa de levar�A dama e o cachorrinho�, creio que uma coletânea decontos do Tchekov, e fui descoberto com aquele terrível�senhor�, quando o camarada vai saindo da livraria. Fuiinformado que estava levando um livro sem pagar, e nãovi nada demais. Tudo estava sendo resolvido tranqüila-mente, quando chegaram outros três vendedores, e oclima esquentou. Um jovem começou a repetir �ta metirando, mano?�, sem saber que eu não era mano, esta-va somente roubando um livrinho de contos de umescritor russo. Como fiquei quieto, ele se afobou e quissair no tapa. Coisas de São Paulo.

Caminho dde vvolta - Essas divagações existenciais deum ex-fora-da-lei literário não levam a nada, eu bem sei,se o tempo não estivesse a fazer suas brincadeiras comi-go. Ano passado, fui convidado para ensinar em umaescola da Fundação Telemar, a Kabum! O nome da dis-ciplina: Oficina da Palavra.

São 80 jovens de 16 a 18 anos, que moram em bair-ros da periferia do Recife. Me deixaram livre para montartoda a proposta pedagógica. É a hora de devolver algu-mas coisas, foi o que pensei. Se eu despertar nessamoçada a paixão pelos livros, terei feito algo decentenesta vida, terei resolvido o karma de ter levado algunsexemplares sem a autorização do livreiro.

Como solicitei uma verba para a compra mensal delivros, estamos montando nossa biblioteca, o que jáconta pontos a meu favor. Eu sempre quis montar umabiblioteca, mas nunca consegui, por absoluta falta deorganização. Fizemos a primeira compra na LivrariaCultura, o suficiente para mudar o rumo da prosa. Erauma compra relativamente grande, de uns R$ 1.300,00e não deram desconto nenhum. Houve má vontade efizeram a grosseria de liberar os livros somente quando ocheque tivesse sido compensado. Cobraram R$ 2,00 porlivro, para entregá-lo na escola, que fica a cinco quar-teirões. Nunca vi um negócio desses.

Resolvemos mudar para a mais simples, modesta esimpaticíssima Poty Livros, ali na Conde da Boa Vista,onde tem cafezinho, água, bons livros e vendedores quelembram a velha e boa Livro 7. Já compramos dois lotes,os camaradas entregam na escola e ainda conseguimosum descontinho de uns 10%, creio.

Enquanto os livros não chegavam, tratei de levar umapequena parcela da minha biblioteca. Fui distribuindocom os alunos, com a seguinte informação:

�Se não estiverem gostando do livro, podem parar nahora e me devolver�.

Não dá para iniciar jovens no mundo da leitura comum Machado de Assis. Fizemos muita leitura de crônicas,

poesias, pequenas histórias, e outro dia li um pedaço de�As mil e uma noites�. Ficaram assombrados e encanta-dos com a história. Uma aluna que dizia que ficava comdor de cabeça quando lia, pediu o livro emprestado. Sãoesses pequenos milagres que a boa literatura provoca.

Aos poucos, comecei a dar alguns livros, fazendo ocaminho de volta. É impressionante ver a expressão deum aluno, que chega comentando que adorou tal livro,e recebe a seguinte resposta:

�Gostou mesmo? Então é seu�.Primeiro, um sorriso ilumina o rosto, depois vem um

abraço e a dúvida.�Meu, professor?�.Sim, os alunos chamam professor de professor, não

de educador, como é o costume atual.�É para você começar a montar sua biblioteca�. Tem que ter uma dedicatória. Invariavelmente, a

escola inteira fica sabendo que �o professor me deu umlivro de presente�.

Será isso psicanalítico? Estarei acertando minhas con-tas com o passado?

Sei lá. Para tudo na vida a gente tem que terrespostas?

Calhou também que me mudei recentemente para oCabo de Santo Agostinho, uma casa menor. A mudançafoi simples, porque sou homem de poucos móveis emuitos livros. Na hora de encaixotar tudo, descobri algoóbvio: tenho livro demais.

Fiquei pensando que vivo criticando os ricos, a tal�elite brasileira�, que tem demais, enquanto outrosvivem com o quase nada. Minha biblioteca tem estemesmo jeitinho brasileiro de ser. Tenho livros demais,enquanto outros quase nada lêem. É hora de fazer umaespécie de reforma agrária no meu feudo cultural, liber-tar os muitos livros que já li, e que podem acender lâm-padas no imaginário de uma nova geração. Não é Freudque explica, eu mesmo é que descobri isso. O Oficina daPalavra pode não estar sendo essas coisas, mas está con-sertando alguma coisa em mim.

Estou começando a trazer os livros para a minhacasinha do Cabo em doses homeopáticas. Primeirovieram os poetas. Depois, os romances prediletos.Todo o restante vem depois. Ao mesmo tempo,estou começando a separar muitos livros que já nãome pertencem.

Quero ficar com o essencial. O �mínimo vital�, comodiz o Calvino. Só mesmo aqueles que eu não jogaria forado barco, mesmo que ele estivesse afundando.

Depois dos jovens da escola, vou começar a deixarlivros nos ônibus e bibliotecas públicas.

Um dia, espero chegar ao ponto mais elevado daescala humana: ensinar adultos a ler.

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Quando Maria voltou de viagem, tentei convencê-la de que passara aqueles dias descansan-do. �Então você deve estar doente, porque sua aparência é péssima�, avaliou.

Argumentei, sem sucesso, que mesmo o cansaço e a imobilidade desgastam. Pouco depois, consegui emprestado o escritório de um amigo onde, durante um mês inteiro,

prossegui em meu desvario. Laris, meu amigo, leu alguns trechos e comentou: �Não sei o que é.Não sei o que é, mas me prende. O que não quer dizer que seja bom�.

Sugeriu que eu descansasse um pouco antes de continuar a escrever. �A literatura é como umamassa de pão�, argumentou. �Precisa de tempo para crescer�. Mas eu já não podia mais parar.

As semanas passaram, meu texto crescia e crescia. Eu sofria. Atenta a meu desânimo, emesmo na ignorância, Maria me convenceu a procurar um médico.

Fui ao médico, um certo Silva, especialista - me disse Maria - em casos enigmáticos. Recebeu-me com indiferença e me lembrei imediatamente de Soares. Talvez fossem amigos. Talvez Soaresfosse seu paciente.

�Alguma coisa o atordoa, e também o prende�, ele diagnosticou. Imaginei que prescreveriavitaminas, antidepressivos, ou férias imediatas. Para minha surpresa, concluiu: �Mas, já que vocênão pode mais parar, vá em frente�.

Talvez julgando que eu vivesse uma paixão secreta, sugeriu que eu procurasse entender porque me escravizara tanto. E, ainda, que tipo de gozo tirava daquele cárcere.

Chegou a hora fatal em que Soares me cobrou a encomenda. Resumi minha desgraça. Comum sorriso vazio, ele disse: �O que se passa com você é inexplicável e inacessível. Mas, se algo tesubjuga, é porque, de alguma forma, você chegou a fazer.�

Já não precisava mais escrever. Eu era o meu livro.

I

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Na cabeceira do Rio Morna, numa manhã de sol pálido e sem pássaros, apresentaram-meao editor Soares. Não sei por que, não me deixou boa impressão.

Dias depois, recebi uma carta de Soares. O editor me convidava para um desafio literário:escrever um livro chamado Anagnosia.

Argumentou que existem temas que são, por natureza, antiliterários. Temas avessos à escri-ta, ou aos quais o acesso da literatura está vedado.

A anagnosia, a percepção supra-normal de textos inacessíveis aos sentidos normais, seriaum desses temas.

O raciocínio de Soares era contraditório, pois a anagnosia é, por definição, e também, apossibilidade de superação de um bloqueio. Mas isso não me incomodou.

Maria visitava os pais no Crato. Entendi que podia preencher minha solidão com aqueledesafio. Era estúpido, mas mal não ia fazer.

O perigo, eu pude ver mais tarde, não se esconde nas escolhas temerárias, mas naquelasque fazemos por desleixo, ou por cansaço, sem qualquer força, ou convicção. Só por dis-plicência.

Explico.Tranquei-me no escritório por duas semanas e escrevi mais de duzentas páginas. Concluí

que não correspondiam a meu tema e, desencorajado, as rasguei.

José

Castello

Anagnosia

néditos

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