12
Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra

Pernambuco 26

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

Citation preview

Page 1: Pernambuco 26

Foto

: Ale

xand

re B

elém

/Con

cepç

ão: J

aíne

Cin

tra

pernambuco26.indd 1 4/3/2008 12:03:00

Page 2: Pernambuco 26

2Pernambuco_Fev 08.2

xpedienteE

Como, quando e quanto você quiser - Haymone neto vislumbra o fim do CD

03

A renúncia de Fidel Castro representa muito mais do que a retirada de um di-tador, que sai de cena num momento histórico ainda confuso nas suas linhagens políticas: marca o fim de um tempo, o crepúsculo de uma era, a derrocada de uma força. Ou seja, a história se encarregou de eliminar uma prática de governo baseada na censura à Imprensa, na traumática relação com a sociedade, no im-pedimento da prática política, sempre em mão única.

É claro que o comandante representou um sonho de igualdade e justiça, que fez lançar em toda a América Latina a certeza de um socialismo capaz de unir uma nação, com correta distribuição de riqueza, e possibilidades de vida limpa a todas as pessoas. Sem ostentações e sem humilhações. No entanto, boicotada pelos Estados Unidos e pelos seus parceiros, viu-se cercado pela pobreza, sem ímpetos para engrandecimentos.

Nesse sentido, os Estados Unidos promoveram um verdadeiro genocídio em Cuba, impedindo que as pessoas pudessem viver medianamente. Promover esse genocídio foi muito mais cruel do que uma ditadura, sem tirar, é claro, os defeitos do fidelismo que, em muitos momentos, perdeu o trem da história por não compreendê-la e por não querer segui-la. Nos últimos anos, na passagem de um século para outro, muitas foram as ocasiões perdidas para as naturais e óbvias reformas políticas.

No bojo dessa questão, o Pernambuco lança uma edição em que se discu-te não só a participação de Fidel Castro, mas sobretudo o momento em que a formas políticas de governar sofrem uma radical mudança, com o fim das dita-duras, jogando para o abismo e sepultando, definitivamente, a falta de diálogo entre governantes e governados, a mão forte na condução da sociedade e dos seus anseios. Fidel, é claro, cumpriu a sua parte, promoveu sonhos e ilusões, deu esperanças. Com a sua renúncia, o mundo muda.

Nas sexta e sétima páginas, o editor-executivo Schneider Carpeggiani escreve um texto exemplar sobre os ditadores na literatura, enfocando os vários clássi-cos em torno do assunto, de José Martol, em “Amália”, do século XIX, a Gabriel Garcia Márquez, no seu “Outono do patriarca” , que antecipa, profeticamente, o fim da era dos ditadores, com a imagem do gado solitário invadindo o palá-cio abandonado. Na oitava página, Paulo Sérgio Scarpa relembra a época das tiranias em suas múltiplas versões. Não falta, todavia, uma visão da vida cultural cubana, no texto de Thiago Soares, na nona página.

Na variedade cultural da edição, o leitor encontrará: na terceira página, ma-téria de Haymone Neto sobre o possível fim do Compact Disc; na quarta página, texto de Adelaide Ivanovna tratando de “Um soldado para chamar de meu”; uma entrevista de Bernardo Carnavalho, na quinta página, e uma lembrança atual do livro de Monteiro Lobato abordando a eleição de um negro nos Estados Unidos, além de artigo de Renato Lima, questionando o problema da leitura, sem falar no poema de Almir Castro Barros, na página doze..

Alliás, o caderno Saber + faz uma homenagem ao poeta pernambucano , que traz várias páginas dedicadas a ele, com uma entrevista e poemas. E ainda dá início a um projeto acalentado durante muito tempo: a publicação de conto de Thiago Corrêa e de poemas de José Terra, num espaço agora permanente para a produção de jovens e novos escritores. Essas duas páginas publicarão, quinzenalmente, o material que permanecia inédito nas gavetas. Ou melhor, no silêncio dos computadores. Sem contar, ainda, com a análise da antologia “Nantes-Recife”, publicação em francês que abre espaço para poetas pernam-bucanos.

Boa leitura Raimundo Carrero (Editor)[email protected]

SUMÁRIO EDITORIAL

Um soldado para chamar de meu - Adelaide Ivanova proclama o tédio da vida

04

EXPEDIENTEGOVERNADOR DO ESTADO

Eduardo CamposVICE-GOVERNADOR

João Lyra NetoSECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Ricardo Leitão

PRESIDENTE

Leda AlvesDIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

DIRETOR INDUSTRIAL Ricardo Melo

GESTOR GRÁFICO

Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO

Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora dePernambuco - CEPE

Rua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

EDITOR

Raimundo CarreroEDITOR EXECUTIVO

Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE

Jaíne Cintra

TRATAMENTO DE IMAGEM

Roberto Bandeira SECRETÁRIO GRÁFICO

Militão Marques

REVISÃO

Gilson Oliveira

Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126

Inéditos - Almir Castro Barros observa a “Sexta, santa” em poema curto e ágil

12

O sol se põe em Bernardo Carvalho - O escritor revela os segredos de sua obra em entrevista a Cristhiano Aguiar

05

O abismo se abre. O rei começa a tombar - A renúncia de Fidel Castro abre perspectivas para a morte das ditaduras

06

Só vai na raça - Ficção de Monteiro Lobato antecipa a luta de um negro e uma mulher em busca do poder nos EUA

10

Não leia o livro, mas influencie pessoas - O livro é uma caixa mágica nem sempre lida, mas sempre citada

11

Alex

andr

e Be

lém

pernambuco26.indd 2 4/3/2008 12:03:14

Lígia Régise

Page 3: Pernambuco 26

úsicaM

s discos sempre foram objetos de desejo na minha vida. Sou de uma geração que viu os tios se encantarem com a nova tecnologia e darem

fim a imensas coleções de LPs, para depois comprar tudo de novo em “disco laser”, que era como se chamavam os CDs naquela época. Foi o último sopro de prosperidade de uma já cambaleante indústria fonográfica.

Sou de uma turma que ia ao centro da cidade para fuçar catálogos caindo aos pedaços a fim de encomendar aquele disco que não se encontrava nas lojas convencionais. Se tudo corresse bem, sem nenhuma greve dos Correios ou da Receita Federal, a torturante espera poderia durar “apenas” 30 dias. E, quando o disco chegava, rasgar o plástico, abri-lo, sentir o cheiro, colocar para tocar, folhear o encarte, tudo isso fazia parte de um ritual que se repetia só de tempos em tempos.

Mas nem sempre o disco, como meio físico, exerceu este fascínio sobre as pessoas. Até o final dos anos trinta os discos não tinham sequer capa. Vinham em envelopes de papel com um furo na parte da etiqueta do vinil, que servia para identificá-lo. O comprador estava adquirindo uma cópia do fonograma, e só. A idéia de que o disco poderia conter elementos físicos e extramusicais que atraíssem o consumidor, como uma capa ilustrada, só surge por volta de 1938, quando Alex Steinweiss a inventa e revoluciona o mercado fonográfico. Mas isso é passado e o disco, se você ainda não sabe, morreu.

Depois que uma das bandas de maior sucesso internacional de crítica e pú-blico dos últimos quinze anos, o Radiohead, anunciou que não iria renovar seu contrato com nenhuma grande gravadora e que lançaria seu álbum através da internet, o mercado fonográfico tremeu nas bases. Mas a atitude mais radical do quarteto de Oxford, Inglaterra, ainda estava por vir.

Para fazer o download das músicas, o usuário precisou se cadastrar e de-cidir um valor a pagar pelos arquivos. Qualquer preço podia ser escolhido, inclusive preço nenhum. De acordo com a revista Wired, cerca de um milhão de fãs em todo o mundo baixaram “In Rainbows” do site do grupo no período de um mês. Por volta de quarenta por cento deles pagaram alguma quantia (eu me incluo nos sessenta por cento que deixaram o marcador no zero).

Em média, seis libras foram pagas por cada venda de fato, o que rendeu ao Radiohead algo em torno de três milhões de libras. Nenhum centavo para a gravadora. Alguns meses depois, o disco foi lançado normalmente em CD através de um selo independente, o XL Recordings. O que os músicos alega-ram é que estavam querendo fazer com que as pessoas refletissem sobre o verdadeiro valor da música para as suas vidas. Que valor?

Walter Benjamin escreveu que “o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da arte é a sua aura”. O conteúdo da obra de arte permanece intacto, mas o “aqui” e o “agora” ficam desvalorizados. Entretanto, se o avanço téc-nico da reprodução multiplica a obra e substitui sua existência única por uma existência serial, a indústria cultural precisou criar para seus produtos algo que, a meu ver, é parecido com a aura, mas não se baseia no “aqui” e no “agora”, mas sim no “ter”. (O que são as edições limitadas, por exemplo, senão uma tentativa de dar ao produto cultural certa exclusividade, certa unicidade?)

Na era da troca de arquivos pela internet, contudo, esta falsa aura do dis-co físico também é quebrada, e ele, aos poucos, vai perdendo sua função. O efeito da reprodutibilidade técnica dos dias de hoje é muitas vezes mais multiplicativo, e também mais radical, na medida em que permite o acesso das pessoas ao seu conteúdo com custo zero. Para Benjamin, as massas mo-dernas tendem a superar o caráter único dos fatos e das coisas através da sua reprodutibilidade. O que as massas fizeram, no caso da troca de arquivos pela internet, foi superar o caráter único do disco, forjado pela indústria cultural, com o apoio da tecnologia.

O que nos traz de volta para o Radiohead. Numa entrevista para a Wired, o vocalista Thom Yorke disse que a decisão de deixar a cargo dos fãs o preço a pagar pela música não foi mero niilismo e que a banda não teve a intenção de insinuar que a música hoje não tem valor. Mas é preciso compreender que, historicamente, a venda de discos é um negócio que rende muito dinheiro para as gravadoras, mas proporcionalmente muito pouco para os artistas. Na mesma ocasião, Yorke conta que a EMI, antiga gravadora da banda, não esta-va pagando nada aos músicos pela venda de música pela internet. O que me leva a crer que tudo se trata de mais um caso da boa e velha luta de classes, mais ou menos como a que o mundo viu recentemente entre os roteiristas norte-americanos e os estúdios de cinema, mas, desta vez, sem sindicatos. E com um quê de vingança e sarcasmo por parte da banda.

Se com a reprodutibilidade técnica a obra de arte se emancipa da sua exis-tência parasitária e destaca-se do ritual pela primeira vez na história, como diz Benjamin, eu me arrisco a dizer que, com a música digital, há uma espécie de segunda emancipação. Desta vez, a obra de arte se destaca, ainda que muito prematuramente, do grande capital. E o Radiohead, mesmo tentando garantir a parte que lhe cabe, está dando uma força para que a troca de arquivos de áudio pela internet não seja definitivamente cooptada. E para que possamos dar à música o seu real valor. O disco se vai em boa hora.

O

Alex

andr

e Be

lém

Pernambuco_ Fev 08.2�

Haymone NetoSerá que com o fim cada vez mais iminente dos CDs saberemos o real valor da música?

Como, quando e quanto você quiser

yy

pernambuco26.indd 3 4/3/2008 12:04:21

Page 4: Pernambuco 26

az tempo, uns quarenta anos, que os Soul Brothers Six gravaram aquela

maravilhosa canção “Some Kind of Won-derful”. Eu tenho 25 anos, e sei que o John Ellison (o brother que compôs a mú-sica) pensava em meninas como eu – que se recusam a usar esmalte rosa-claro, mas sabem que bom mesmo é ter um solda-do ao seu lado, sempre a postos, e que é esse homem que vai nos tirar do abando-no nas noites sem fim nos bares da vida.

Nesta maravilhosa canção, os Brothers dizem (tradução livre, hein, pessoal): “Eu não tenho que ficar por aí gastando mi-nha figura, eu não tenho que passar as noites na rua, porque eu tenho um ho-mem apaixonado por mim e que sabe me tratar direito”.

Pois sim, que parece que eu tinha en-contrado um soldier para chamar de meu. Ele não cantava Bon Jovi comigo como o caubói em recuperação do começo de 2007, mas ele me deu o “Acústico Mariah Carey” de Natal (veja bem, eu pedi o “The Best Of So Far”, de Whitney, mas ele é macho demais para saber a diferença en-tre as duas). E estava indo tudo bem.

Estava tudo indo bem mas eu terminei. Terminei porque achei estranho demais que tudo estivesse bem, esse destino pimpão prega peças que eu não acho a me-nor graça, e antes que eu fosse surpreendida pela notícia de uma gaia carnavales-ca ou fosse trocada por aquela-amiga-dele-que-eu-nunca-confiei, terminei.

Terminei porque já não parecia que eu estava namorando. Então ta, let’s face it: não, não estava tudo bem, e me sinto feliz de saber que não me auto-boicotei tanto assim. É muito fácil tomar uma decisão motivada por motivos externos, tipo uma traição, porque você tem subterfúgios que te impedem de se expor, de ficar vulnerável. Quando o motivo é externo você chega, acaba, bota a culpa no outro e vai embora triste mas aliviada.

O problema é quando o encerramento é motivado por uma coisa sua, você olha pro namoro, olha pra você e faz “ops”. Como explicar pra alguém que gosta de você – e de quem você gosta, repare – que você não quer mais ficar com ele?

No meu caso foi bem estúpido o momento do goodbye: via MSN, eu soltei a seguinte frase: “você não me trata como uma rainha”. Juro que eu disse isso. Que imbecil. Mas juro que foi genuíno. Eu quero ser tratada como uma rainha, não uma plebéia. Me dê o que eu quero e eu serei a melhor Elizabeth que seu reino já viu. Eu posso fazer por um cara o que Martin Luther King fez pelo povo (como eu queria que essa frase fosse minha, mas é de Beyoncé).

Pois sim, me sentindo destronada de um reino do qual nunca fui coroada so-berana, terminei.

Eu sou Bridget Jones presa na Tai-lândia. Achando bem ruim que my man dont call me babe, enquanto minhas co-legas de cela reclamam que foram força-das a tomar heroína ou espancadas. Eu, Bridget Jones da Rua Purpurina, sofro da maledicência da pseudo-mulher-moder-na, que quer ser independente e man-dona, mas que não sobrevive sem um cara para provar às outras que é mais especial do que elas – porque alguém a escolheu.

Tem coisa mais medieval que isso? Diz que na Idade Média os casamentos eram arranjados, e eu morro de saudade da Idade Média. Ô tempo bom em que os casamentos apareciam como pop-ups e eu não tinha que ficar batalhan-do sozinha para arrumar um bofe nessa Faixa de Gaza do amor.

Namorar não é fácil. Não é bom. Namorar com uma pessoa é abraçá-la inteira, é aceitar o pacote inteiro, cheio de defeitos e problemas, e be there pro que for necessário. E a maioria dos me-ninos quer uma princesa, uma menina

que não tenha problemas para que eles (os meninos) não tenham que agüentá-los (os problemas). E eu sou uma rainha, e rainhas são cheias das controvérsias e ficam velhas e cheias de inseguranças – ao contrário das enceradas princesas. Então quero um cavaleiro, não um herdeiro de trono que só queira comer a sobrecoxa.

Eu sou Drew Barrymore em as Panteras, que é usada pelas colegas como radar do inimigo porque, sempre fica a fim de alguém, pode apostar que ele é o cara mau da história. Portanto, uma vez que tanto sofri nessa vida, não é possível que não consiga saber, ao menos, aquilo que não quero num relacionamento.

Aí, vê, as coisas do destino. Quando eu tinha dezesseis anos tudo o que eu queria era que chegasse o dia em que eu teria calma e sabedoria para parar de me apaixonar loucamente e conseguisse dizer “não” a tudo aquilo que pudesse me causar algum mal. Pois esse dia chegou.

E minha vida tá um tédio. Portanto, amiga, escute aqui: abaixo à sabedoria, aos diabos o auto-conhe-

cimento, esteja atenta ao auto-boicote. Nunca mais eu vou dizer ao meu pa-quera- problema, mesmo sabendo que ele vai me causar problemas, que prefiro ficar em casa fazendo as unhas. Porque eu uso é esmalte vermelho e quero ser respeitada por isso.

Adelaide Ivanova

F

rônicaC

�Pernambuco_Fev 08.2

yy

SXC/

Corte

sia

pernambuco26.indd 4 4/3/2008 12:05:25

Page 5: Pernambuco 26

ntrevistaE

�Pernambuco_ Fev 08.2

carioca Bernardo Carvalho é considerado um dos mais importantes escritores brasileiros surgidos a partir da década de 90. Escreveu, en-

tre outros, os livros Onze (1995), Nove Noites (2002) e Mongólia (2003). Foi editor do suplemento de ensaios Folhetim e correspondente, em Paris e em Nova York, da Folha de S.Paulo. Já venceu importantes prêmios literários, como o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Portugal Telecom.

Seus livros, traduzidos para mais dez linguas, enredam o leitor em la-birínticos jogos de linguagem, com enredos cheios de reviravoltas e ambi-guidades. Seu livro mais recente, O sol se põe em São Paulo, foi publicado em 2007 pela Companhia das Letras e conta a história de um conjunto de personagens que se vêem enredados em triângulos amorosos deca-dentes, nos quais os papéis desempenhados por cada um deles parecem sempre incertos. Como pano de fundo para o romance, destacam-se a cidade de São Paulo e o diálogo com o teatro, a literatura e a história japoneses. Além de falar um pouco deste seu novo romance, Carvalho conversou com o Suplemento Pernambuco sobre o mercado editorial, a situação do escritor brasileiro dentro e fora do país, entre outros temas.

Bernardo, fala-se muito que sua literatura é “cosmopolita”, “pós-moderna”, “hermética”. Você acha que há um desconforto na crítica brasileira por tua obra não se enquadrar num paradigma de realismo tradicional, tão típico da nossa cultura?

Não sei. Em todo caso, discordo que a minha literatura seja pós-mo-derna. Antes, ela é fruto de um desconforto em relação aos preceitos da pós-modernidade. Me sinto muito mais próximo dos princípios da literatura moderna. Mais do que literatura pós-moderna, vejo nos meus livros uma tentativa de fazer literatura moderna onde ela já não é possí-vel. Boa parte do mal-estar e do desconforto (meu, pelo menos) vem daí. A tendência a um realismo tradicional é cíclica. Mas você não pode dizer que esse é o paradigma absoluto da literatura brasileira. Não chamaria Guimarães Rosa propriamente de realista. Nem Clarice Lispector. Acho que a hegemonia recente de uma literatura mais submissa a uma realida-de consensual, que a precede, tem a ver com a violência dessa realidade, que torna todo o resto (toda possibilidade de invenção e criação) insigni-ficante. Cabe ao escritor que não se sentir satisfeito com esse estado de coisas e resistir.

Cada vez mais, os livros que fazem sucesso contam histórias “re-ais”: relatos, por exemplo, de sofrimento em regiões da África, do Oriente Médio, das favelas. No entanto, um dos personagens de ‘O sol se põe em São Paulo’, que é escritor, diz: “Só me interessam as mentiras”. Tua obra é uma espécie de paródia das expectativas do mercado?

A preferência por “histórias reais” (ou baseadas em fatos reais) é na-tural do ser humano. E é lógico que o mercado precisa ir atrás daquilo que vai vender com mais facilidade. A literatura que me interessa, como escritor pelo menos, é outra (embora eu também goste muito de ler his-tórias baseadas em fatos reais). A parte da imaginação e da ficção é fun-damental na minha vida. E os escritores que me interessam fazem parte desse universo. Em “O Sol se põe em São Paulo”, eu não estava fazendo referência direta às expectativas do mercado, mas tratando da literatura que eu prezo.

Há algum tempo, você afirmou numa entrevista no site Trópico (http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1586,2.shl) que não se identificava com as linhas principais da literatura brasileira. Como você vê a vida literária hoje, no nosso país? Que escritores, seja da nossa literatura, ou não, foram importantes para a tua formação?

Há escritores que precisam participar ativamente da vida literária. É quase uma fonte de energia para eles. Alimentam-se de polêmicas, não podem viver fora de grupos etc. Há outros que só têm a perder com isso. É o meu caso. Meu projeto literário é frágil o suficiente para se perder completamente se eu tiver que dividir a minha energia entre a literatura e a vida literária. Não me interesso pela vida literária por uma questão de sobrevivência. Outra coisa são as influências. De fato, não me sinto influenciado por autores brasileiros. E não vejo nenhum escândalo nisso. Acho, por exemplo, o Guimarães Rosa um dos maiores gênios da literatu-ra universal. E, no entanto, não tenho nada a ver com ele, nem estilistica-mente nem com relação ao seu otimismo (na verdade, sou o oposto).

Na sua entrevista para o Paiol Literário, você afirma: “Crio um tipo de literatura que eu acho que tem alguma importância porque preci-so continuar criando, mas que, na verdade, não tem nenhuma impor-tância, não tem nenhuma conseqüência social”. O escritor brasileiro está condenado a ser invisível?

Não, não está. O escritor brasileiro tem até bastante visibilidade inter-na. Ele só não tem é no exterior, com exceção do Paulo Coelho, é claro. Mas a minha resposta não tinha a ver com visibilidade. Se eu me lembro

Oo sol se põe

bem, estava fazendo o elogio de uma literatura “inútil”, que não precisa ter função social para existir e ter direito de existência. Só daí pode surgir alguma coisa nova, que não atende a demandas prévias, mas cria novas demandas, antes inexistentes. A literatura que me interessa não tem uma função imediatamente reconhecível.

Você poderia falar um pouco sobre como escreveu “O sol se põe em São Paulo”? Como você situa este romance em relação ao resto da sua obra?

É um livro de reação e de uma certa militância. Meus dois romances pre-cedentes (“Nove Noites” e “Mongólia” -- dentre os meus livros, os mais bem recebidos tanto pela crítica como pelo público) foram lidos como histórias baseadas em fatos reais (relato de viagem, autobiografia etc.), embora eu nunca tivesse deixado de salientar que eram obras de ficção. Minha reação em “O Sol se põe em São Paulo” foi escrever um livro sobre o qual ninguém pudesse dizer que era baseado em fatos reais. Esse romance é uma máquina aloprada de produzir ficção: uma pessoa conta uma história para outra que conta uma história para outra... e assim por diante. Os próprios narradores acabam sucumbindo à ficção e sendo transformados em personagens da história que contavam como se dela não fizessem parte.

Um dos principais temas do seu novo romance é a cultura japonesa. Falar do Japão significa, por contraste, falar melhor do Brasil?

De certa maneira, sim. Já no “Mongólia” era a mesma coisa. O livro pode ser lido como uma reflexão sobre o Brasil, por oposição. Não só você vê melhor à distância, como a estranheza de uma cultura antípoda permite que você reconheça melhor os defeitos e as qualidades do lugar de onde veio, pela falta. Por outro lado, você também pode dizer que o Japão que eu des-crevo tem menos a ver com o Japão real do que com uma imagem distorcida das questões que mais me tocam ou afligem no Brasil.

Alguns dos seus livros já foram traduzidos para o exterior. Como seus livros foram recebidos lá fora? Ainda se espera do escritor brasileiro uma mistura exótica de samba-carnaval-marginalidade?

Não sei o que se espera do escritor brasileiro hoje. O que eu sei é que é difícil emplacar uma literatura como a minha no exterior. Embora os livros tenham sido traduzidos para vários países e em geral tenham sido muito bem recebidos pela crítica, as vendas são pequenas. A única exceção, no meu caso, é a França. E isso sobretudo no que diz respeito ao “Nove noites”. Posso estar enganado, mas a impressão que eu tenho é que em um mercado fechado e protecionista como o anglo-saxão (que é o que realmente conta hoje) é inconcebível que um escritor brasileiro escreva o tipo de livros que eu escrevo. Ou talvez esse tipo de livro simplesmente não tenha nenhum interesse por lá. De qualquer jeito, os escritores estrangeiros tampouco ven-dem bem aqui, com exceção dos já consagrados. Um editor me disse recen-temente que os mercados nacionais estão cada vez mais fechados sobre si mesmos. Pode ser que ele esteja com a razão.

Recentemente, tivemos, aqui em Pernambuco, uma bienal do livro e duas festas literárias. Você acha que estes eventos contribuem para au-mentar o número de leitores e fomentar uma cultura do livro em nosso país?

Não existem regras. Acho e espero que sim. Mas não sou especialista nesse assunto. De qualquer jeito, a educação no Brasil é uma farsa. É preciso alfabetizar a população, de verdade. Para não falar na elite do país, que é extremamente grosseira e iletrada.

em bernardo de carvalho

Escritor paulista fala sobre sua obra e o mercado editorial

C

risthiano Aguiar

yy

SXC/

Corte

sia

pernambuco26.indd 5 4/3/2008 12:05:27

Page 6: Pernambuco 26

quando você se esquiva de uma lembrança que ela emerge, aterrorizando aque-les que só sabem dizer muito falando bem pouco. Ninguém prescinde da me-

mória pelo exercício da decisão nem da inteligência, tampouco ela é convocada por simples ato de vontade, como já explicou Beatriz Sarlo. O bombardeio de notícias sobre a renúncia de Fidel Castro, mês passado, nos remeteu ao maior sinal de união da América Latina: um passado comum de regimes ditatoriais, que ainda assombra quando qualquer gesto contra nossa liberdade toma vulto e que se infiltra em nossa produção artística mesmo que por subtração.

O recurso de se entregar a um tema exatamente por evitá-lo, nos leva ao roman-ce “Baixo-astral” (1994), do escritor chileno Alberto Fuguet. Sua cena inicial é em Copacabana, no dia 3 de setembro de 1980. Em meio à famigerada praia carioca, o adolescente chileno Matias Vicuña está esparramado na areia com seus óculos Ray Ban de último modelo, tentando esquecer o tédio que paira em sua Santiago com Pinochet, o plebiscito e todas aquelas pessoas que ele acha sem graça alguma.

Matias adora a liberdade plena de estar no Rio, sensação que só alguém na con-dição de turista podia ostentar no Brasil da virada das décadas de setenta e oitenta. Sua raiva era quando o assunto recaía em Pinochet. O que invariavelmente acontecia. Os brasileiros queriam saber como era a ditadura no outro lado da fronteira, um exercício de comparação que em nada o agradava.

O melhor não é saber o que Matias pensa de Pinochet, do Chile e de casa. Interes-sante é entender o porquê do adolescente não (querer) pensar nada sobre isso tudo. Mas antes é preciso uma contextualização histórico-literária.

Com Fidel Castro vai junto a imagem do último grande ditador da linhagem clássica latino-americana: o homem dotado de um suposto sonho revolucionário, comandando as massas numa ensolarada república entre bananeiras. É claro que alguns fugiam desse perfil e eram paradoxalmente interessantes por serem tão des-providos de carisma. Foi o caso de Pinochet. Apesar das diferenças, as incríveis sagas desses homens com o nada obscuro objeto de desejo que é o poder levaram os prin-cipais escritores latino-americanos a lançar mão de obras denunciando seus abusos. É o filão romance de ditadura e/ou de ditador, subgênero que os autores brasileiros curiosamente deram pouca bola (com exceções como Ignácio de Loyola Brandão), apesar de tudo...

Os primeiros ditadores da América Latina tomaram o poder no início do século dezenove. A Argentina, por exemplo, conheceu cedo a ditadura na figura de Juan

Manuel Rosas, que inspirou o romance “Amália”, de José Martol, publicada entre 1851 e 1855, considerado pioneiro do gênero. Nesse primeiro momento, a preocu-pação não era literária, mas a confecção de um libelo panfletário.

Só no decorrer do século 20 o literário consegue se sobrepor ao panfletário, com a publicação de romances como “Tirano Banderas” (1926), de Ramón del Valle In-clán, “La sombra del caudillo” (1929) de Martín Luiz Guzmán, “El señor presidente” (1946), de Miguel Angel Astúrias, e “Muertes de perro” (1958), de Francisco Ayala. A partir da década de 1970, a novela de ditadura chega ao seu estágio mais apurado ao colocar em primeiro plano as inovações estéticas herdadas dos autores modernos do século 20. “Yo el supremo” (1974), de Augusto Roa Bastos, começa pelo final: as conseqüências trágicas do poder. O livro toma como ponto de partida a história paraguaia com a ficcionalização da ditadura do Dr. Francia (1814 a 1840) em pers-pectiva épica. Suas primeiras páginas instauram uma sensação de estranhamento no leitor, com o anúncio da nota de falecimento do ditador (que se auto-proclama “Yo el supremo dictador de la republica”), cravada na porta da catedral.

A descrição da decadência física e simbólica do comandante todo-poderoso é também o ponto de partida de “O outono do patriarca” (1976), de Gabriel García Márquez. Na trama, a construção mitológica de um governante que reuniria a per-sonalidade de todos os ditadores latino-americanos. Ditadores, para García Márquez, possuem a tirania infantil do tudo-eu-posso. No caso da criação do escritor colom-biano, até fazer o relógio correr ao seu próprio desejo, enganar a morte e se fazer presente até na ausência.

Numa das passagens mais fortes do romance, García Márquez define assim o espectro do seu patriarca: “Sabíamos que ele estava ali, sabíamos porque o mundo continuava, a vida continuava, o correio chegava, a banda municipal tocava a retreta de ingênuas valsas aos sábados sob as palmeiras poeirentas e os lânguidos lampiões da Praça de Argumas, e outros músicos velhos substituíam na banda os músicos mortos”. O romance indaga a existência de um poder ontológico que existe desde os “tempos do cometa” ou do “vômito negro”. Se “Cem anos de solidão” (1967) instaurou a maravilha na obra de García Márquez, “O outono do patriarca” é cons-truído a partir do grotesco.

Gabriel García Márquez sempre foi aliado de Fidel Castro. Ano passado, o escritor esteve ao lado do ex-governante em sua primeira aparição pública após a cirurgia de emergência no intestino que marcou a derrocada da sua era no poder. Na ocasião,

É

García Márquez fez questão de dizer que o (então) eterno líder estava melhor que muita gente pensava e, em breve, voltaria ao poder. Quanta ironia: ele negou até o fim o outono do seu patriarca.

Diante da imensa reflexão sobre a ditadura na América Latina que a literatura promoveu, fica a questão: como esse manancial está sendo tratado por autores mais jovens, que começaram a escrever no “Depois” dos grandes acontecimentos políticos? Uma boa resposta para a pergunta é o romance “Baixo-astral” (1994), do escritor chileno Alberto Fuguet, que encontrou uma maneira curiosa de lidar com o fantasma do General Pinochet: tratá-lo com estudada indiferença.

“Baixo-astral” constrói-se como uma coleção de reflexões de um burguês, Matias Vicunã, num país cerceado pela ditadura, mas que escapa dis-

so tudo com festas, álcool, drogas e cultural pop norte-americana. O ápice do seu processo de desligar Pinochet da cabeça ocorre durante uma viagem com os colegas de escola para o ensolarado Rio de Janeiro. Mas o interesse pela política chilena dos brasileiros só o faz se sentir ainda mais deslocado. Ou seja: mais próximo de casa.

Nada de muito importante acontece na vida de Matias até o dia em que ele se de-para com “O apanhador no campo de centeio”, clássico romance do pós-guerra do escritor norte-americano J. D. Salinger. Ao fim da leitura desse livro, o personagem sente que, enfim, encontrou um “igual”, um alguém completamente distinto do universo que o rodeia, alguém capaz de entender sua inadequação. “Baixo-astral” nos faz refletir sobre vidas atravessadas pela literatura, sobre livros que devoram seus leitores, sobre pessoas que encontram a si mesmas apenas na ficção.

As décadas de 1960-1980 trouxeram junto uma demonstração da flexibilidade no manejo dos regimes políticos por parte dos grupos dominantes

nos países da América Latina: Durante um período de duas décadas, muitos dos países da região transformaram-se de regimes constitucionais em ditaduras, para depois retornarem à institucionalidade democrática.

O decorrer dos anos oitenta apontou o fim do estado populista do continente.. “Isso de get ready for the eighties, ready for the time of your life, me deixa obcecado, talvez porque não acredito ou porque, no fundo, esta década que vem aí me cheira bem. Além disso, tem aquilo que o Lerner me disse, que às vezes acerta sem querer: Os oitenta são nossos, companheiro. Fiquei remoendo isso”, prevê Matias.

Ao promover o inventário da história pessoal de um pequeno-burguês no Chile no começo dos anos 1980, Fuguet não consegue deixar de refletir a própria história de submissão do seu continente aos seus ditadores, como têm feito os escritores hispano-americanos desde o século dezenove. Mas o autor chileno lança mão da história de forma diferenciada, porque seus mecanismos de apreensão da realidade já são outros.

A ditadura de Pinochet atravessa a narração de “Baixo-astral” a partir da negação que o personagem faz o tempo inteiro do seu governo, tratado por Matias como sinônimo de atraso. A própria representação do “fardo de se dizer chileno”. O autor em nenhum momento discorre sobre os detalhes do plebiscito de 1980 ou detalha os pormenores desse sistema ditatorial. A política é tratada no livro por um processo de subtração, uma cuidadosa revelia.

O regime de Pinochet persegue Matias como um espectro onipresente. Até mes-mo quando ele liga o rádio, buscando em vão alguma música que o salve do tédio, que o resgate da sua condição de chileno. O “sim” que levou Pinochet a manter seu poder na década de 1980 é confirmado no momento em que o personagem vive um processo de amadurecimento, semelhante ao que Holden Caulfield vivencia ao final do “Apanhador no campo de centeio”. É o mundo mudando externa e internamente em poucas semanas, no intervalo de um verão.

Se os mais famosos romances de ditadura da década de 1970 deram continuida-de às inovações de linguagem e de estilo dos grandes autores modernos do século vinte, Fuguet descarta inovações e promove em “Baixo-astral” uma prosa de caráter confessional, direta, sem barroquismos. Não há milagres, não há realismo maravi-lhoso. Os personagens, mesmo perdidos diante da situação política, precisam ir em frente por si só .“É como se eu estivesse vontade de chegar. De ir adiante. De deixar para trás o baixo-astral, a dúvida, e enfrentar o que me espera lá embaixo”, suspira Matias

O enredo pop de “Baixo-astral” só ressalta como a literatura latino-americana ainda busca maneiras de entender o que significaram quase dois séculos de regimes autoritários. Nem sempre a compreensão do passado é um território de confortável investigação, mas nele estão algumas das respostas aos mais graves problemas da América Latina.

A literatura latino-americana tem como uma de suas obsessões entender os porquês dos seus ditadores

Schneider Carpeggiani

yy

“Quando acordou o dinossauro estava lá” - Augusto Monterroso

pernambuco26.indd 6 4/3/2008 12:07:51

Page 7: Pernambuco 26

apa C

o ab

ism

o se

abr

e.o

rei c

omeç

a a

tom

bar

�Pernambuco_ Fev 08.2

pernambuco26.indd 7 4/3/2008 12:10:04

Page 8: Pernambuco 26

�Pernambuco_Fev 08.2

apa C

s ditadores gostam de permanecer no poder até a morte, ninguém abre mão facilmente. Quan-

do não caem ou morrem, porém, passam o cargo a seleto ungido. Na América Latina, François Duvalier deixou o lugar para o filho, Jean Claude Duvalier, no minúsculo Haiti. Anastasio Somoza foi substituído pelo filho, Luis Somoza, numa Nicarágua com sinais de revolucionária. Na Argentina, Isabel Perón abusou do poder até a queda depois de substituir o marido, o ex-presidente Juan Domingo Perón, que morreu mandando. Agora, cinco décadas depois de arrasar com a ditadura de Fulgêncio Batista, em Cuba, Fidel Castro passou as rédeas para o irmão, Raúl Castro, 76 anos, numa sucessão lenta, gradual e premedita-da. Após a encenação da renúncia, Fidel assume o papel do mais atento avalista do sucessor.

Na pequena Cuba, território um pouquinho maior que Pernambuco, ele é, agora, mais um “companheiro”, depois de ter sido o “comandante-chefe” que por mais tempo permaneceu no poder entre os séculos vinte e vinte e um, quando chegou a ser saudado como o revolucionário que “libertou” Cuba da ditadura de Batista e suas ações foram vis-tas com bons olhos pela comunidade internacional. Ele atraiu críticas e elogios ao liderar uma revolução que teve de tudo, heroísmo, romance, jovens líderes com menos de trinta anos e um cenário quente e tropical. “Nenhuma revolução poderia ter sido tão bem projetada para atrair a esquerda do Hemisfério Ocidental e os países desenvolvidos, no fim de uma década de conservadorismo global”, vaticinou o bri-tânico Eric Hobsbawn no seu “A era dos extremos”. A longevidade no poder, porém, fez com que seten-ta por cento dos cubanos residentes na ilha presen-ciassem, semana passada e pela primeira vez, uma “eleição” sem Fidel Castro.

Na contundente “Biografia em duas vozes”, Fidel conclui que “o que alcançamos está muito além dos sonhos que podíamos conceber na época, e éramos bastante sonhadores no início”. Mais: que nunca se considerou um ditador: “O que é um ditador? É alguém que toma decisões arbitrárias, unipessoais, por cima das leis, que não obedece a nada além de seus próprios caprichos e vontades. Eu não tomo decisões unipessoais. Nós temos um Conselho de Estado. Minhas funções de dirigente fazem parte de um coletivo”. E ainda se queixava de que “não posso

O

nomear ministros nem embaixadores. Não posso nomear nem o mais humilde funcionário público. Eu tenho autoridade, cla-ro, tenho influência, por razões históricas, mas não dou ordens nem governo por decreto”, justificou. Fidel Castro entrou para a história, mas o companheiro de lutas Che Guevara virou mito há muito tempo.

A substituição em Cuba, porém, não mexeu apenas com cubanos, exilados cubanos em Miami e com milhões de neu-rônios dos analistas internacionais. Atingiu como um furacão a campanha presidencial norte-americana. Agora, nenhum dos pré-candidatos, democratas ou republicanos, escapa da per-gunta que mais incomoda: quando acabará o desumano em-bargo econômico imposto pelos EUA? Na visão de Fidel, ele nunca deveria ter ocorrido: foi a revolução que acabou com a miséria e o analfabetismo na ilha, deu educação política ao povo, saúde com qualidade e reduziu a índices baixíssimos a violência. Grande orador – é dele o discurso mais longo já pro-ferido em uma Assembléia Geral da ONU, quando falou duran-te quatro horas e vinte e nove minutos em 1960 –, Castro sem-pre foi o alvo preferido das críticas contra o socialismo imposto a Cuba: é responsabilizado pelo assassinato de dezessete mil pessoas, pela falta de liberdade de pensamento e pelo confina-mento dos cidadãos.

Com o passar dos anos, porém, o poder conferiu a Fidel a capacidade de ser lembrado, também, por seus pensamen-tos já que é considerado um bom frasista: Condenem-me, não importa, a história me absolverá” (outubro de 1953 no julga-mento depois do frustrado ataque ao Quartel de Moncada); “Não nos enganemos achando que adiante tudo será fácil; talvez tudo seja mais difícil” (durante sua entrada triunfal em Havana, após derrubar a ditadura, em 8 de janeiro de 1959); “É isso que eles não podem nos perdoar, que estejamos aqui, sob seus narizes, e que tenhamos feito uma revolução socialista debaixo dos narizes dos EUA” (durante o funeral das vítimas do bombardeio que antecedeu a invasão à Baía dos Porcos, em 16 de abril de 1961); “Com o imperialismo não queremos paz de qualquer tipo” (14 de novembro de 1965); “As bombas podem matar os famintos, os doentes, os ignorantes, mas não podem matar a fome, as doenças, a ignorância” (Na ONU em 12 de outubro de 1979); “Jamais me aposentarei da política, da revolução ou das idéias que tenho. O poder é uma escravidão e sou seu escravo” (setembro de 1991); “A imprensa tem a mis-são primordial de defender a revolução. Defender a revolução é defender o socialismo” (24 de dezembro de 1993); “Agora compreendo que meu destino não era vir ao mundo para des-cansar ao final da vida” (6 de março de 2003); e “Cada vez me sinto mais atraído pelas idéias de Marx, Engels e Lênin” (24 de março de 2005).

Por ironia da história, o chamado “fim” da Era Fidel vem sen-do acompanhado pelo Vaticano, o primeiro país a presenciar, in loco, a aguardada transição na ilha, um processo de reaproxi-mação política e diplomática iniciado ainda com João Paulo II, quando o papa tentou libertar cerca de trezentos presos políti-cos na ilha, considerado então como um “gesto humanitário”. A Igreja Católica tem hoje em Cuba oito dioceses,quinhentas e vinte e três paróquias, dois seminários, mil e quinhentas casas de missão, noventa e duas congregações religiosas e mil e du-zentos sacerdotes e diáconos. O país abriga ainda cinqüenta e quatro templos evangélicos, duas igrejas ortodoxas, cinco sina-gogas, uma liga islâmica, mil e quatrocentos centros espíritas e mil associações filantrópicas.

Fidel Castro deixa como herança uma sucessão nada revolucionária

Paulo Sérgio Scarpa

yy

Alex

andr

e Be

lém

pernambuco26.indd 8 4/3/2008 12:12:16

Page 9: Pernambuco 26

�Pernambuco_Fev 08.2

apa C

Jornalista conta como é ser pop sob a sombra das asas do patriarca cubano

Thiago Soares

arece um contra-senso. Mas, em 2001, antes de embarcar para temporada de estudos na Escue-

la Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba, fui cobrir o show dos Backstreet Boys, no Maracanã, Rio de Janeiro. Era a turnê “Bla-ck and blue”, em tese, a última dos “meninos”, o adeus, e eu, naquele ímpeto por um país vermelho, achava “preto e azul” um tanto capitalista, um tanto subversivo. Quando embarquei, no Galeão, no vôo da Copa Airlines, com conexão no Panamá, vi que os Backstreet Boys estavam mais perto de Cuba que eu imaginara. É que, ao descer para fazer a conexão para Havana, em meio a portões de embarque para Manágua, San José, Paramaribo e São Tomé e Prínci-pe, vi, numa televisão “de espera”, que os Backstreet Boys iriam fazer um show, a poucos dias, na Cidade do Panamá – de onde, minutos depois, eu embarca-ria rumo a Havana. Aquela coisa de ter os Backstreet Boys, assim, tão longe e tão perto de Cuba, me dei-xou, de alguma forma com a sensação estranha.

Cheguei em Havana à noite e rumei de táxi para San Antonio de Los Baños, a cerca de quarenta qui-lômetros. Lembro de pouca coisa, uma cidade que se parece com a periferia do Recife, alguns canaviais, muito vento. E os Backstreet Boys na cabeça. Nes-ta época, eu tinha um discman. E levava coisinhas para a viagem: Madonna, Destiny’s Child, Adriana Calcanhotto, Bethânia. Só vozes femininas. Elas me entendem. E vai que, na escola de cinema de Cuba, cheia de jovens da América Latina, cheia de hormô-nios e de festinhas, entre uma aula sobre Kurosawa, Godard e Glauber, fui revelando a minha identidade pop sob o olhar e a sombra de Fidel, “el coman-dante”. Quando souberam que eu tinha o CD “Mu-sic”, de Madonna, muitos colegas quiseram gravar. Do CD para a fita cassete. As festas da EICTV, quase sempre à beira da piscina, com muito rum e mojitos, eram “discotecadas” em fitas cassete.

Virei “o brasileiro que tinha o novo CD de Ma-donna”. Alguns caras colombianos, numa verve mais rock, me perguntaram se eu não tinha coisas do Manguebeat, Chico Science, Mundo Livre S.A. Eu disse que tinha ido para Havana para esquecer coi-sas, virar páginas. O Manguebeat era muito “uma época”. Eles não entenderam nada, tudo bem, nem eu. Ficamos amigos e eles me apresentaram uns ra-ppers colombianos, Aterciopelados (que eu a-mei), rock latino. Com eles, fui ao Malecón, a mureta so-bre as rochas que cercam Havana, naquela imagem clássica de Cuba: pôr-do-sol, mar batendo sobre as rochas. E Madonna no meu discman. “Music makes the people come together”, cantarolei.

O Malecón me parecia uma praça de interior. Jo-vens encostados, passando de um lado para o outro, flertes, um clima de “olá, que tal?”. Conversávamos sobre cultura pop, cinema, atores, música, novelas brasileiras – sim, eles amam saber como “vai acabar” cada uma delas. Quando eu estava lá, “La fuerza del deseo”, aquela novela das seis com a Malu Mader e o Fábio Assunção, era exibida. Frustrei muitos amigos cubanos: eu não acompanhava novelas nesta época. Entre um papo e outro, me disseram que a Lauryn Hill tinha feito um show de graça lá em Havana. O Maniac Street Preachers também. Anos depois, o Audioslave não só fez um show, como gravou um DVD. Procurei saber se haveria show enquanto eu estivesse lá. Compay Segundo, no Gran Teatro de La Habana. Fui ver.

Mas, os Backstreet Boys não saíam da minha ca-beça. E Miguel, um chileno que cursava fotografia na EICTV, me perguntou, em segredo, seu eu tinha o CD dos Backstreet Boys. Ele disse que achava trash, e tal, mas, de alguma forma, compreendi que não se

P pode dizer, sobretudo na terra de “el comandante”, que se gosta dos Backstreet Boys. No seu apê, no alo-jamento da escola, ele colocou para tocar “The shape of my heart”. Emendei com “I want it that way”, de um álbum mais antigo.

Fomos juntos a uma boate gay em Havana. Sob a névoa de Fidel, em que o homossexualismo é con-denado, os gays se aglomeram em festas em galpões clandestinos, em boates improvisadas em casas de praia ou em lugares escusos na periferia. Fui num gal-pão e dancei “Survivor”, das Destiny’s Child, em plena pista de dança caliente. Com alguns mojitos a mais, conheci o DJ Juanito, que me confessou: discoteca-va com fitas K-7 gravadas das rádios clandestinas de Miami que “pegavam” em Havana. Internet também era proibida na ilha. Mas, muitos tinham arrojados sistemas de web via rádio. Tudo aquilo me lembrava: liberdade transborda imposição. Por mais que Fidel quisesse isolar os cubanos, eles estavam no mundo, de mãos dadas com Madonna. E eu também.

Na época que estive lá, vi muitas coisas: entre os cerca de vinte cinemas de Havana, apenas um exibia filmes americanos. “El gladiador”, mostrava o cartaz. Nem Russell Crowe se imaginaria ali. Poucas pessoas iam àquele cinema. Poderiam ficar “marcadas”, achei. Ou não gostam, realmente, de filmes hollywoodia-nos. Balela. Como nós, os cubanos amam as estrelas de Hollywood. O comércio “por baixo dos panos” de filmes, perfumes, chicletes, Coca-cola, Fanta, Leite Moça, farofa ensacada e roupas é intenso.

Como eu era estrangeiro, podia entrar em qual-quer “tienda”, os “mercadinhos cubanos”, e comprar o que quisesse. Fiz muita feira para amigos da EICTV. Deixei meu perfume CK One, minhas pastas e esco-vas de dente, deixei roupas, xampu, condicionador e muitos CDs. Fui presenteando amigos: para um ar-gentino “cabeça” louco por Caetano, deixei o “Fina estampa”; para o meu professor Eliseu Altunaga, se-parei “Imitação da vida”, de Bethânia; para Gabriel, de Trinindad y Tobago, uma bicha louquíssima (o que é ser uma bicha em Trinindad y Tobago, hein?), deixei “Music”, de Madonna – olha a responsa! Berta, uma espanhola almodovariana, me presenteou com o CD do Orishas, “A lo cubano”.

Fui separando as coisas, compondo a mala para ir embora, deixando Cuba para trás – eu morria de saudade do Mc Donald’s, I must confess. Aí, lá no fundo da mala, estava ele, o CD “Black and blue”, dos Backstreet Boys. Não tive dúvida. Saí correndo por entre os corredores da EICTV com o disco. Procu-rei nos quartos, nas salas, das áreas de conveniência. Quando eu já imaginara que a hora de partir tinha chegado, ouço Miguel, aquele chileno, lembra?, me chamar no final do corredor. Enquanto ele caminha em minha direção e abre os braços para um abraço de adeus, estendo o CD dos Backstreet Boys. Ele sorri e diz que me ouviu passar exatamente ao final da aula de Cinema Cubano em que estava assistindo ao filme “Pon tu pensamiento en mí”. Sem o CD dos Backstreet Boys, não soube o que fazer com as mi-nhas mãos. Elas pareciam mais vazias que de costu-me. Voltei a abraçar Miguel, achei que fui over. Tudo bem. Faz parte. E nos despedimos.

No aeroporto de Havana, já com o cartão de em-barque nas mãos, lembrei daquilo: Cuba, os Estados Unidos, o embargo, as coisas que a gente deixa para trás, os jovens da ilha, a sombra de Fidel. Quando o avião decolou de volta, rumo ao Brasil, reparei: como o título do CD dos Backstreet Boys, não é que as luzes noturnas da pista de decolagem eram todas “pretas e azuis”? yy

�Pernambuco_ Fev 08.2

pernambuco26.indd 9 4/3/2008 12:12:24

Page 10: Pernambuco 26

10Pernambuco_Fev 08.2

iteraturaL

s Estados Unidos elegem seu primeiro presidente negro. O

candidato derrota de forma sur-preendente sua aliada na oposi-ção, uma branca feminista, e o líder conservador que até então ocupava o poder. O fato joga o país na iminência de uma guer-ra cujo eixo será a raça. Homens e mulheres brancos, então, dei-xam as diferenças ideológicas de lado para formar uma aliança. O objetivo será impedir que o país afunde num abismo provocado pelo domínio do que consideram ser um povo estética, intelectual e moralmente inferior. O complô contra o candidato negro termi-na com seu assassinato e com a esterilização em massa de todos os afro-descendentes. A Consti-tuição de que os americanos tan-to se orgulham acabou jogada na lata do lixo, mas os fins justificam os meios: está assegurada a hege-monia ariana e o surgimento da mais racialmente perfeita nação do planeta.

O relato acima pode até pare-cer, mas não é uma previsão ultra-direitista sobre as conseqüências de uma possível vitória de Barack Obama sobre Hillary Clinton nas prévias eleitorais e, eventualmen-te, no pleito majoritário dos Esta-dos Unidos. É o enredo resumido do único romance adulto escrito por Monteiro Lobato, autor bra-sileiro imortalizado como ícone da literatura infantil. Sob o título “O presidente negro ou o choque das raças”, a história foi publicada pela primeira vez em 1926 como um folhetim no jornal A Manhã. E até hoje desperta controvérsias.

A polêmica não tem nada a ver com a coincidência com o momento atual vivido pelos Esta-dos Unidos. Na verdade, o livro é curioso porque revela uma face obscura e raramente discutida de Lobato: a de entusiasta e grande propagandista da eugenia. Esta “ciência” inspirada na lei da se-leção natural de Darwin defendia o controle do Estado sobre a re-produção humana como forma de se alcançar a verdadeira civili-zação pelo melhoramento genéti-co. Como esclarece a historiadora Pietra Diwan no livro “Raça pura”, a eugenia negligencia intencional-mente a dimensão social do ho-mem reduzindo até a pobreza ao determinismo biológico. E é este tipo de noção que se faz presente em “O presidente negro”.

A trama é futurista e faz re-ferência clara ao livro “A máqui-na do tempo” de H.G. Wells. O personagem principal é Ayrton, um funcionário de escritório que esbarra com um gênio da ciên-cia em um castelo escondido no interior do Sudeste. Lá, ele se vê frente a frente com a mais fan-tástica invenção da humanidade: o porviroscópio, um aparelho capaz de revelar acontecimentos futuros em qualquer lugar do pla-

O

Renata Beltrão

Livro de Lobato antecipa luta racial entre os poderes

yy

neta. Encantado pela filha do cientista, Ayrton passa a freqüentar o castelo e ouve dela um relato detalhado do que acontecerá nos Estados Unidos no ano de 2228.

O país estará vivendo em uma es-pécie de utopia genética na qual a doença, a fealdade, a imoralidade e a miséria terão sido absolutamente elimi-nadas graças à política eugenista ado-tada pelo Estado. Os americanos terão, ainda, conseguido separar completa-mente as raças branca e negra.

Mesmo com este apartheid total, os Estados Unidos de 2228 ainda estarão discutindo o que fazer com a “questão negra”. No futuro imaginado por Lo-bato, o problema é amenizado através de avançadíssimas técnicas de des-pigmentação e desencarapinhamento (uma espécie de chapinha high tech) que promovem o branqueamento gra-dual da população de cor. Os malaba-rismos criativos do criador do pó do pirilimpimpim seriam extremamente engraçados se não fossem, em realida-de, de um racismo acintoso. Por entre elogios rasgados à eficiência americana ao lidar com a questão racial, fica cla-ra a crítica de Lobato à miscigenação ou, como ele registra, à “solução bra-sileira”. E o timing é impressionante: o auge da eugenia se dá justo no mo-mento em que o modernismo e o re-gionalismo da década de 20 começam a colocar o mulato como símbolo da identidade nacional.

Ainda que os Estados Unidos te-nham alcançado a utopia eugenista no ano 2228 – a beleza perfeita, ma-turada por séculos de reprodução con-trolada – os negros continuam sendo um problema simplesmente porque são negros. Ao ser eleito o primeiro presidente de cor, num episódio que aparece, em realidade, como um aci-dente de percurso, as elites brancas se articulam para pôr em prática o tal programa secreto de esterilização em massa que acabará por abrir caminho à mais perfeita nação ariana da história. No mesmo momento em que a narra-tiva no ano de 2228 chega a este clí-max, o personagem Ayrton finalmente toma coragem de declarar seu amor pela filha do cientista e o livro de Lo-bato termina assim – todos felizes para sempre, desde que brancos, louros e de olhos azuis.

Monteiro Lobato acreditava que po-dia entrar para a história com esse ro-mance, pois acreditava estar apontando o caminho seguro para que o Brasil pu-desse alcançar o verdadeiro progresso. Sua obra acabou sumindo junto com a eugenia, relegada ao ostracismo após a II Guerra Mundial. O fim do conflito re-velou as conseqüências do holocausto e passou a ser extremamente embaraçoso ter qualquer ligação com a pretensa ci-ência, levada a extremos pela Alemanha nazista, mas praticada na mesma época em todo o mundo ocidental. Hoje, “O presidente negro” só pode ser encon-trado em sebos e raramente ganha des-taque quando se discute o autor. O que é só mais um exemplo de como nossa propalada democracia racial se deve, em muito, à velha prática de se empur-rar para debaixo do tapete.

só vai na raça

pernambuco26.indd 10 4/3/2008 12:13:26

Page 11: Pernambuco 26

11Pernambuco_Fev 08.2

omportamentoC

sistema educacional foi construído defendendo a leitura. Bibliotecas são templos de leitores, o número de livrarias por habitante é um sinal

de progresso e o sucesso de executivos e líderes é explicado, entre outros fatores, pelo conhecimento adquirido em livros. Pois vem agora um profes-sor francês, e de literatura, defender as vantagens da não leitura. Ele pode discordar, mas vale a pena ler o livro “Como falar dos livros que não lemos” (Editora Objetiva) de Pierre Bayard.

O título soa como picaretagem, como um manual de auto-ajuda para entrevistas de emprego em que você possa se vangloriar de uma elevada cul-tura que na realidade não existe. Não, não é nada disso. É sim uma obra que vai fundo no questionamento do conceito de leitura e a relação das pessoas com os livros. Não o livro apenas como objeto, mas como parte da pessoa e da cultura dominante. Afinal, destaca Bayard, é possível se relacionar com um livro de várias maneiras e a mais radical delas é, justamente, não o ler.

A primeira discussão que ele levanta é sobre o que significa ler um livro. Aparentemente não tem nada de complicado, basta abrir uma obra e ler da primeira página ao final. Mas é isso mesmo? Quem lê um livro mas depois o esquece, ainda pode dizer que o leu? Quem é adepto de folhear livros, lê a introdução e salteia pelas suas páginas também não pode ser considerado um leitor? E quem muito lê sobre determinada obra, ouve falar sobre ela, viu até o filme baseado no original, não é, de alguma forma, um leitor des-se trabalho? “Entre um livro que nós lemos com atenção e um que nunca nem ouvimos falar dele, há toda uma gradação que merece nossa atenção”, analisa.

Bayard admite, sem nenhuma culpa, nunca ter lido “Ulisses”, de James Joyce. Ressaltando que é bem provável que nunca o faça, ele diz que o conte-údo do livro pode ser estranho a ele, mas não a sua localização na cultura.“Eu sei, por exemplo, que é uma reprise da ‘Odisséia’, que ele segue a corrente do fluxo de consciência, que sua ação transcorre em um dia etc. E por conta disto faço freqüentemente, durante minhas aulas, sem pestanejar, referência a Joyce”.

Para ele, um leitor culto sabe a posição das grandes obras no contexto do mundo das letras. Pode não saber todo o seu conteúdo, mas tem consciên-cia de que lugar ocupa determinada obra na cultura vigente. Não é preciso ler “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, para saber distingui-lo de “Turbilhão”, de Coelho Netto – para ficar num exemplo local.

Bayard pode ser o primeiro a admitir e teorizar sobre o assunto, mas nem de longe é o pioneiro em tal técnica. Paul Valéry, mostra o livro, era useiro e vezeiro de falar sobre autores que não tinha lido. “Como a maioria das pesso-as que fala sobre Proust, Valéry nunca o leu”, diz. O que não o impossibilitou de escrever um artigo para a Nouvelle Revue Française, em 1923, pouco após a morte do autor, tecendo loas ao seu trabalho. E admitindo que não perdeu tempo lendo “Recherche du temps perdu”.

Quem também sente a angústia de gostar de ler, mas é traído pela me-mória, ficará aliviado em saber que Michel de Montaigne era igualmente um leitor voraz e um “esquecedor” na mesma proporção. Tanto que anotava, no final dos livros, que o havia lido e qual era a sua impressão geral. Mesmo fazendo anotações, o que preservamos dos livros – defende Bayard – é não mais do que alguns fragmentos que chegam à tona num oceano de esque-cimento.

Mas há, sim, as dicas de como proceder para falar de livros que não fo-ram lidos. Inclusive em encontros diretos com o autor, o que é de muita valia localmente, onde existe a sensação de termos mais escritores do que leitores. “Elogie, mas não entre em detalhes”, recomenda o francês. Mantendo o maior grau de ambigüidade, o autor se sentirá confortável em ser elogiado e não vai pedir uma análise detalhada do que escreveu. E se você começar a falar imprudentemente de um livro que não leu e for desafiado por alguém, basta dar um passo atrás e dizer que cometeu um engano. Ou com o nome do autor ou com o título.

Bayard chega a radicalizar e até mesmo defender o princípio da não lei-tura. Para ele, ler um livro pode significar distanciar-nos de nós mesmos, do nosso âmago. Afinal, aquele que fala sobre um livro de que não leu está exercitando a sua criatividade e, neste momento, “é autor de um novo livro”. Pode até ser verdade, mas não quer dizer que da boca de um não leitor fa-lante vá surgir algo melhor do que o original.

Claro que há exageros para marcar posição. A importância da leitura emerge de uma forma inovadora em “Como falar dos livros que não lemos”. Ele enfatiza que uma das condições para uma feliz compatibilidade român-tica é ter lidos livros em comum com a outra pessoa, o que significa, mais ou menos, que os livros não lidos são os mesmos. A paixão erótica também se reflete em leituras compartilhadas. E a paixão intelectual – o prazer em si de ler – torna-se mais descompromissada e interessante, pois ele mostra que não é possível se lembrar de tudo o que foi lido (tirando-nos assim a “culpa” pelo esquecimento) e nem tampouco necessário ler todos os livros dos quais gostamos de falar.

O

yy

Renato Lima

Polêmica análise de Pierre Bayard contesta a “intocável” instituição da leitura

SXC/

Corte

sia

não

leia

o li

vro,

mas

influ

enci

e pe

ssoa

s

pernambuco26.indd 11 4/3/2008 12:14:40

Page 12: Pernambuco 26

12Pernambuco_Fev 08.2

néditosI

O MundoAcabou numa montanhaSórdida. Os indulgentesNão ultrapassam o résDessa andaimaria. No topo- Uns poucos –Acenam para nadaAbarrotados de jaça, E perdidosDe nenhum Céu...

Almir Castro Barros

Sexta, santa

Saber+

pernambuco26.indd 12 4/3/2008 12:14:40