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Pontifícia Universidade Católica Faculdade de Psicologia PERSÉFONE: A MORTE COMO TRANSFORMAÇÃO MARIA CAROLINA DE AZEVEDO ANTUNES São Paulo 2008

Perséfone - A morte como transformação Carolina... · motivaram a sempre continuar; e mesmo nos momentos difíceis quando achei ... Ao meu namorado por estar sempre ao meu lado

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Pontifícia Universidade Católica

Faculdade de Psicologia

PERSÉFONE: A MORTE COMO TRANSFORMAÇÃO

MARIA CAROLINA DE AZEVEDO ANTUNES

São Paulo

2008

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Pontifícia Universidade Católica

Faculdade de Psicologia

PERSÉFONE: A MORTE COMO TRANSFORMAÇÃO

MARIA CAROLINA DE AZEVEDO ANTUNES

Trabalho de Conclusão de Curso como

exigência parcial para a graduação no curso de

Psicologia, sob orientação da Profa. Dra. Flavia

Arantes Hime

São Paulo

2008

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Dedico este trabalho àquele que feliz ou

infelizmente me mobilizou a realizá-lo. Ao queridíssimo

Ale...

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que fizeram parte da minha vida ao longo da elaboração

deste trabalho me apoiando e acreditando em meu potencial.

Aos meus pais e meus irmãos pelo amor, carinho e confiança que me

motivaram a sempre continuar; e mesmo nos momentos difíceis quando achei

que não conseguiria mais prosseguir amaram-me incondicionalmente.

À minha querida orientadora pela paciência e acolhimento nos momentos de

apreensão.

Ao meu namorado por estar sempre ao meu lado me animando e me

encorajando.

A todos os amigos e amigas que, às vezes, com apenas um sorriso alegravam

este processo.

A cada um que, direta ou indiretamente, contribuiu em meu estudo.

Obrigada!

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"Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina

acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do

destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando

que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que

esperando porque, embora quem quase morre esteja

vivo, quem quase vive já morreu." (Luiz Fernando

Veríssimo).

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Maria Carolina de Azevedo Antunes: Perséfone: a morte como transformação,

2008

Orientador: Profa. Dra. Flavia Arantes Hime

RESUMO

O presente trabalho teve como objetivo analisar os processos de perdas e

mortes como agentes de transformação para os seres humanos. À luz da

Psicologia Analítica e das concepções a cerca do tema, focalizou-se o mito “O

rapto de Perséfone” que é de grande importância para todas as épocas e

gerações por simbolizar uma tentativa de superação da dor e de abertura para

um novo eu interior. Utilizando como método o levantamento bibliográfico de

autores da abordagem junguiana, foi então utilizada a amplificação simbólica

que amplia e enriquece os elementos do símbolo visando a traduzi-lo e

interpretá-lo, o que favorece a compreensão de seu significado arquetípico.

Deste modo, foi possível refletir que, após vivenciar uma morte física ou

simbólica, passamos por todo um processo de luto até entendermos

emocionalmente a situação e percebermos nela uma oportunidade de

renascimento e transformação. O mito vincula então aspectos arquetípicos e,

portanto, favorece a integração necessária à superação do luto.

Palavras-chave: morte; símbolo; transformação.

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SUMÁRIO

Introdução......................................... ................................................................ 1

Parte I – Principais Pressupostos Teóricos da Psico logia Analítica........... 6

1 Principais Pressupostos Teórico Junguianos............................................... 6

1.1 Ego ........................................................................................................ 6

1.2 Self ........................................................................................................ 7

1.3 Inconsciente Pessoal............................................................................. 7

1.4 Inconsciente Coletivo............................................................................. 8

1.5 Arquétipo ............................................................................................... 8

1.6 Anima e Animus..................................................................................... 8

1.7 Persona ................................................................................................. 9

1.8 Sombra .................................................................................................. 9

1.9 Símbolo ............................................................................................... 10

1.10 Individuação....................................................................................... 10

2 Mitos .......................................................................................................... 11

Parte II – Morte, Renascimento e Transformação ..... .................................. 13

Parte III – Método................................. ........................................................... 20

Parte IV – O mito: “O Rapto de Perséfone”.......... ........................................ 22

Parte V – Análise e Discussão ...................... ................................................ 26

Parte VI – Considerações Finais .................... ............................................... 35

Referências ........................................ ............................................................. 38

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INTRODUÇÃO

Acostumados a controlar grande parte das situações cotidianas, o

homem se sente muito aflito quando se percebe em uma fase de incertezas.

Porém, conforme afirma Vilela (2005), “por mais desagradável ou assustadora

que possa parecer, a dor é apenas um instrumento de cura”, já que ao sentir tal

desconforto o indivíduo é obrigado a olhar para si e é exatamente neste

momento que enormes saltos da consciência ocorrem, transformando o “eu”

interior. É em tal contato de profunda dimensão que, normalmente, o homem

vê a necessidade de ir até as cinzas para somente então ressurgir e se sentir

renovado.

Neste olhar para si é comum o enfrentamento de medos, inseguranças e

resistências internas já que o indivíduo acaba por ser motivado a se questionar,

a pôr o dedo na ferida, a trazer à tona o que o está incomodando e eliminar o

que já se desgastou ou degradou. Assim, lhe é imposta uma regeneração, uma

reciclagem interna, uma transformação dolorida devido à percepção de que

para dar espaço ao novo é necessário que se abra mão de algo velho ou

conhecido.

Observando este processo, podemos compará-lo ao luto. Por este

motivo é que algumas transformações que são tão profundas e provocam

tantas mudanças são comparadas à morte/renascimento que desestabilizam os

homens, mas que, possivelmente, irão transformá-lo no mais profundo e íntimo

do seu ser. Surge então a idéia de que antes de qualquer renascimento deve

haver uma morte.

Tal mudança já é considerada como um processo fundamental para que

haja o crescimento de qualquer indivíduo e, portanto, uma evolução existencial.

Kübler-Ross (2000) pontua que no luto ocorrem cinco fases que podem ser

comparadas às etapas de mudança que geram um renascimento. São elas: 1.

Choque e negação, 2. Cólera (ou raiva) 3. Regateio (ou tentativa de

negociação), 4. Depressão e 5. Aceitação e renascimento. Estas cinco fases

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são obrigatórias em qualquer mudança e sua intensidade e a duração

dependerão da pessoa e da situação.

Conforme nomeou Branco (2006), este ciclo “nascimento-morte-

renascimento” não rege apenas a natureza humana, mas a de todos os seres

vivos de uma maneira geral. Isso ocorre, já que a própria natureza nunca se

encontra estagnada, mantendo um movimento contínuo. Tal lei da natureza

pode ser expressa pelo seguinte provérbio Budista “a única coisa perpétua é a

mudança”.

Exemplo de tal autotransformação na natureza é o processo de

metamorfose da borboleta. Sofrendo uma verdadeira transformação, interna e

externa, ela passa por vários estágios: de ovo para larva, desta para casulo e,

finalmente, passa para forma de borboleta. Os estágios são importantes para

que não se pule de uma fase para outra, sem a devida atenção ao que está

sendo feito. Na metamorfose fica aparente que a lagarta deve morrer enquanto

lagarta, para dar espaço a um casulo e então ressurgir mais bela e delicada

nas coloridas asas de uma borboleta.

Outra ilustração das constantes transformações ao longo do ciclo vital

pode ser feita através do ciclo da árvore nas diferentes estações do ano. Cheia

de flores, folhas e galhos, no verão e na primavera a árvore aproveita para

acumular bastante energia para garantir os períodos escassos. Assim, no

outono e no inverno a seiva bruta das plantas (energia vital) desce para as

raízes tirando a energia das folhas e galhos para então levá-la a sua base de

sustentação que, neste período, está sem energia, sendo um bom momento

para a poda destes galhos que estão mais fragilizados.

Um último exemplo exposto aqui faz parte de um dos mais conhecidos

símbolos dos alquimistas: o oroboro.

“Presente milenarmente em diversas culturas, (o oroboro) é a cobra

(ou dragão) que morde o próprio rabo e opera, num movimento

circular e contínuo, todo o processo dinâmico e transformador da

vida. "Meu fim é meu começo", diz a cobra nesse ato mágico de

devorar-se e cuspir-se, a representar a unidade indiferenciada da

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vida, e seu caráter divino implícito na

perfeição do círculo. À serpente devorando

a própria cauda, os alquimistas chamaram

Oroboro. Este termo, visto não ter sido

nunca tão oportuno em nossa língua

nomearmos um símbolo cuja singularidade é

a de não ter começo nem fim, por meio de

palavra tão especial, que permite ser lida de

trás para a frente sem prejuízo sequer de sua pronúncia, transmitindo

ela própria a idéia de algo que se expressa ciclicamente.

Dialeticamente, a cobra que morde sua cauda e não pára de girar

sobre si mesma, evoca a roda da vida à qual estamos presos.”

(URBAN, em

http://www.terra.com.br/planetanaweb/341/reconectando/civilizacoese

tribos/a_simbologia_da_serpente_01.htm)

Assim como nos exemplos expostos acima, o processo “nascimento-

morte-renascimento” também faz parte do ciclo diário dos seres humanos. Isso

porque, em processos habituais de vida, o indivíduo sempre tem preocupações

e essas acabam por gerar transformações. No entanto, segundo Branco (2006)

os problemas que na cultura ocidental trazem a sensação de impotência, vazio,

medo e incertezas podem ser de qualquer dimensão como na ocasião de uma

perda importante, de um fechamento de qualquer ciclo como o término da

faculdade e a procura de um emprego; o período de adaptação logo após uma

união ou uma separação; o conhecimento de uma doença grave do próprio

indivíduo ou de alguém extremamente próximo. De qualquer maneira,

independentemente do tamanho do “problema”, devido às crenças da cultura

ocidental, normalmente os indivíduos têm muita dificuldade em atravessar

estes períodos de mudança, sentindo-se solitários, infelizes e perdendo uma

enorme energia psíquica. Tal gasto energético ocorre freqüentemente, já que

ao sair de uma experiência, os seres humanos se esquecem que após passar

por profunda transformação entrarão novamente em um outro ciclo de

experiências. “Tudo o que existe altera-se incessantemente num movimento

cíclico de nascimento, evolução e morte, que se repete até ao infinito”. (Branco,

2006) Assim, o ciclo completo ao longo da vida gira sempre em torno de

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experiências de morte e renascimento que podem promover o

autoconhecimento e a autotransfomação.

Fagundes (2007) ainda defende a idéia de que, embora o processo de

“morte” de cada indivíduo seja muito particular, a natureza e os recursos

psíquicos do ser humano tenderão a manter um padrão de levá-lo sempre em

direção a uma nova ordem que corresponde ao desenrolar do caos. Assim,

pode-se dizer que o processo de dor é praticamente o mesmo que os

processos do luto e das mudanças que vão da negação, raiva, depressão, até

à reestruturação e re-significação da vida e o retorno dos sentimentos de

alegria, contentamento e tranqüilidade.

A morte neste sentido não simboliza necessariamente a morte física,

mas retrata o fim necessário e inevitável de um ciclo e a chegada de uma

transformação, no sentido de uma regeneração com caráter renovador que dá

abertura a um renascimento. Muitas vezes é necessário que, para ocorrer tal

processo, o indivíduo reorganize seu modo de pensar e se permita passar por

um processo de desprendimento do passado, pois novos fatores ou novas

circunstâncias intervirão no seu antigo modo de ser, agir e pensar. Mas nem

todos têm coragem de se entregar ao novo e resistem à mudança, porque

temem a morte do que já é conhecido e que lhe dá estabilidade e o novo o

obriga a ter uma outra visão das coisas e, inclusive, de si próprio.

No entanto, o que não se sabe é que, de acordo com Branco (2006), ao

recusar a morte, nega-se automaticamente a vida. Por isso,

“só é possível a aceitação da vida e o encontro com ela, se

paralelamente se aceita a morte, como um aspecto da manifestação

da vida. E é quando enfim se chega a este ponto, que se começa a

vencer a morte, porque se entra no dinamismo vital, ao reconhecer na

morte um dos aspectos da vida. Dando à morte o seu lugar na vida,

desaparece ela como imagem de aniquilação e fim do que existe,

porque se percebe que verdadeiramente há tão só movimento e

mudança de estados. É, contudo, em nome da vida que a negação da

morte é feita, porque se considera que esta destrói aquela, mas no

fundo quem não quer a morte, busca-a sem saber, porque se recusa

a viver”. (BRANCO, em

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http://refletindo.weblog.com.pt/arquivo/2006/12/o_ciclo_da_mort.html)

.

Conforme pontuou Fagundes (2007), “dizem que no fundo do poço tem

uma mola e que quando realmente chegamos lá recebemos um impulso e

começamos a trajetória de saída.” Além disso, todos os seres humanos

passam, necessariamente, por momentos de dor e sofrimento.

Apesar de a mesma autora ponderar que cada indivíduo reage às

situações da vida de acordo com seus recursos e vivências pessoais, fica claro

que o ser humano deve lembrar-se de que para tudo há uma solução e que,

mesmo passando por momentos de sofrimento e dificuldades, ele encontrará

de alguma forma a recuperação e o crescimento pessoal.

Assim, o objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão a cerca do mito “O

Rapto de Perséfone” focalizando o tema morte, renascimento e transformação.

Para tal análise será realizada uma pesquisa teórica baseada em referências

bibliográficas de abordagem junguiana.

O trabalho será então dividido em seis partes sendo elas: Parte I.

Pressupostos Teóricos da Psicologia Analítica que será dividida em dois temas:

1) Principais Pressupostos Teóricos Junguianos e 2) Mitos; Parte II: Morte,

Renascimento e Transformação; Parte III. Método; Parte IV. O mito: “O Rapto

de Persófone”; Parte V. Análise e Discussão; e Parte VI. Considerações Finais.

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PARTE I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA ANALÍ TICA

1. Principais Pressupostos Teóricos Junguianos

Para fundamentar melhor o meu trabalho utilizarei como base a

Psicologia Analítica criada por Carl Gustav Jung.

De acordo com Penna (2003), Jung propôs um modelo de psique

dinâmico, dotado de um sistema auto-regulador. Trata-se de um processo em

que a totalidade psíquica abrange aspectos conscientes e inconscientes que se

relacionam complementar e compensatoriamente se expressando através de

um meio externo para então realizar o potencial individual.

O autor defende então a idéia de que “não há equilíbrio nem sistema de

auto-regulação sem oposição” (Jung, 2002, p.53) e passa a considerar a

existência de dois pólos opostos para basear sua teoria psicológica. Como “os

conflitos surgem da tensão entre estes pares de opostos, sem os quais não

haveria manifestações energéticas” (Tognini, 2007, p. 37), para Jung, tal

função reguladora dos contrários acaba por ser essencial para o funcionamento

do psiquismo e “condição para qualquer relação entre o indivíduo e o mundo”

(Jung, apud Tognini, 2007, p. 37).

Partindo destas premissas, Jung passou a estudar mais profundamente

a psique humana desvendando muitas partes deste aparelho psíquico. Para

auxiliar na compreensão do meu trabalho, abaixo farei uma breve

apresentação de alguns termos junguianos que são mais profundamente

analisados por outros autores citados ao longo de meu estudo.

1.1 Ego

““Ego” é um termo técnico cuja origem é a palavra latina que significa

“eu”” (Stein, 1998, p. 21). De acordo com o autor, o ego é a característica mais

central da consciência humana. Sendo que esta é a percepção dos nossos

próprios sentimentos e em seu centro existe um “eu”. Este é o ponto de partida

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ou “a ferramenta”, como nomeia o autor, para entendermos o interior do ser

humano que chamamos de psique.

Segundo Tognini (2007), o ego se forma

“a partir do momento em que o indivíduo passa a ter percepção do

corpo e da existência e, também pelos registros de memória. É o ego

que nos dá a sensação de sermos um processo com início, meio e

fim” (p.39).

De acordo com a mesma autora, é o ego que possibilita o auto-

conhecimento e o desenvolvimento da consciência através das imagens do

inconsciente e dos símbolos.

1.2 Self

Whitmont (1991) coloca em sua obra:

“Jung chamou de self à soma total de nosso ser potencial. Contrastou

este self mais amplo ao nosso pequeno eu, ou seja, à nossa auto-

imagem consciente, nosso senso de identidade pessoal e de

esperanças e expectativas pessoais. O self funciona como se

gerasse uma vontade evolutiva e um padrão intencional próprios, que

muitas vezes estão em desacordo com a personalidade egóica

consciente. Fluem do self nosso instintos “mais baixos”, além de

nossas aspirações espirituais. Ele gera nosso impulso de

individuação, a ânsia de nos tornarmos o que somos e também a

consciência individual (...)” (p. 227).

1.3 Inconsciente Pessoal:

É o local do inconsciente em que são armazenados conteúdos

conscientes de aquisição individual e que foram esquecidos ou reprimidos pelo

indivíduo. De acordo com Tognini (2007), tais elementos acabam por ser

incompatíveis com a atitude consciente, pois o ego os considerou como

perigosos e ameaçadores para o indivíduo em determinado momento,

escolhendo por reprimi-los então. Tal parte do inconsciente é constituída em

sua maioria pelos complexos.

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1.4 Inconsciente Coletivo:

Armazenando conteúdos coletivos, universais e atemporais

herdados, o inconsciente coletivo é considerado a camada mais profunda da

psique já que nunca esteve na consciência. Por este motivo Jung (2000)

acreditava que tais conteúdos não seriam adquiridos individualmente, mas sim

hereditariamente. Tal parte do inconsciente é constituída de arquétipos.

1.5 Arquétipo:

“Para Jung, um arquétipo representa uma estrutura da psique

humana. Pertence não tanto ao indivíduo como a uma raça particular

e a uma tradição específica nas quais o indivíduo nasce e cresce. Os

arquétipos são, nesse sentido, resquícios de experiências dos nossos

ancestrais e, coletivamente, da raça a que pertencemos” (McLean,

1989, p. 130).

Trata-se então de padrões universais (imagens, símbolos) guardados no

inconsciente coletivo e que se manifestam através dos sonhos, por

comportamentos, sentimentos e instintos. Por se repetirem de geração a

geração, pode-se dizer que os arquétipos estão gravados na alma da

humanidade.

Assim, a importância dos arquétipos é reconhecida por construir a

identidade pessoal ou a identidade de um grupo e por fortalecer valores morais

dos seres humanos. De acordo com Tognini (2007), sombra, persona, anima e

animus são arquétipos.

1.6 Anima e Animus

“A anima e o animus são arquétipos daquilo que, em cada sexo, é o

inteiramente o outro. Cada um representa um mundo que, à primeira

vista, é incompreensível ao seu oposto, um mundo que nunca pode

ser conhecido diretamente” (Whitmont, 2002, p. 165).

De acordo com o autor, a anima simboliza o lado feminino que há dentro

de cada homem e o animus representa a masculinidade da mulher. Assim,

apesar dos homens serem culturalmente mais racionais, agressivos e rígidos,

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eles apresentam também uma anima que lhes permite ser mais sentimentais,

espontâneos, sensíveis e intuitivos, características típicas femininas. O mesmo

ocorre com o animus. Apesar de as mulheres apresentarem um lado bastante

dócil, emocional e, de certa forma, até impulsivo, este arquétipos as ajuda a

terem uma capacidade maior de julgamento, discriminação, iniciativa e ação.

1.7 Persona

De acordo com Whitmont (2002),

“o termo latino persona refere-se à máscara do ator da Antigüidade,

que era usada nas peças ritualísticas solenes. Jung usa o termo para

caracterizar as expressões do impulso arquetípico para uma

adaptação à realidade exterior e à coletividade. Nossas personas

representam os papéis que desempenhamos no palco do mundo; são

as máscaras que carregamos durante todo esse jogo de viver na

realidade exterior. A persona, como uma imagem representacional do

arquétipo da adaptação, aparece em sonhos nas imagens de roupas,

uniformes e máscaras” (p. 140).

Desta forma, a persona simboliza o ser humano tal como ele se

apresenta ao mundo externo, à sociedade. E, por este motivo é que cada

pessoa pode se apresentar de diversas maneiras, atuando com suas personas

em diferentes papéis. Um indivíduo pode apresentar-se de um jeito no trabalho,

de outro com a família e de uma terceira maneira com os amigos. Estas são as

personas deste indivíduo ao se deparar com o mundo social.

1.8 Sombra

Assim como a persona, a sombra também faz parte da personalidade do

ser humano. No entanto, “representa uma personalidade parcial e autônoma

com tendências opostas ao ego consciente e se comporta de maneira

compensatória a este” (Tognini, 2007, p. 41), já que representa o inconsciente

pessoal do indivíduo.

Deste modo, ainda segundo a autora,

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“a sombra refere-se à parte inferior da personalidade, aos aspectos

primitivos não diferenciados; embora não sejam necessariamente

negativos, são elementos classificados como inferiores porque não

encontraram condições suficientes para se desenvolver” (p. 41).

1.9 Símbolo

A respeito do assunto, Jung (1964) afirmou:

“O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma

imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua

conotações especiais além do seu significado evidente e

convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta

para nós. (...) Assim, uma palavra ou imagem é simbólica quando

implica alguma coisa além do significado manifesto e imediato. Esta

palavra ou imagem tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que

nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos

ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um

símbolo, é conduzida a idéias que estão fora do alcance da nossa

razão. (...) Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da

compreensão humana é que freqüentemente utilizamos termos

simbólicos como representação de conceitos que podemos definir ou

compreender integralmente” (p.21).

1.10 Individuação

Ao longo da vida as pessoas passam por diversas mudanças em muitos

níveis. Isso ocorre devido aos problemas, dificuldades, prazeres e

possibilidades que cada ser vivencia. Tais experiências lapidam o ser humano,

fazendo com que seu self evolua em um processo de expansão e diferenciação

da consciência através do autoconhecimento e da percepção do eu. Jung

nomeou este processo de individuação. Segundo Whitmont (1991), tal

processo de conscientização e crescimento não deve ser confundido com uma

simples auto-reflexão ou um mero pensar a respeito de si mesmo.

De acordo com Perera (1985), é

“a percepção consciente da realidade própria e única de uma pessoa,

abrangendo todas as potencialidades e limitações. Esse processo

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leva a experimentar o si mesmo como o centro regulador da psique”

(p.140).

Para Whitmont (2002), para que se atinja a individuação, é necessário

que o homem e a mulher descubram sua outra personalidade através de sua

anima e seu animus, respectivamente e aprendam com eles.

Tognini (2007) coloca ainda que

“o objetivo da individuação é o de relacionar os vários aspectos da

psique, consciente e inconsciente, para isso é preciso que o ego tome

consciência do self e perceba não apenas a persona; é preciso que

entre em contato com a sombra. “É importante para a meta da

individuação, isto é, da realização do si-mesmo, que o indivíduo

aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é

para os outros” (Jung, 2004, p.71). Nesse sentido, a individuação

enquanto reconhecimento de uma incompletude não é busca da

perfeição humana, ou seja, não necessariamente a meta da

individuação será algo socialmente considerado como bom” (p. 50).

2. Mitos

“Mitos são narrações fantásticas de deuses e heróis, que pertencem

ao patrimônio cultural de um povo. Fundados sobre uma tradição oral

ou escrita, têm geralmente um estreito vínculo com a religião,

formando uma razão de crenças, tabus e ritos. Freqüentemente

constituem um suporte (base) do sistema social e uma chave

explicativa de fenômenos da natureza. Os mitos trazem vestígios das

fases primitivas da humanidade, que são os arquétipos” (Paiva e

Paiva, disponível em http://clinicamillerdepaiva.com).

Assim como os contos de fada e o folclore, os mitos são utilizados pelos

seres humanos como uma tentativa de explicar os mistérios da vida e torná-los

suportáveis. Isso ocorre já que segundo Greene e Sharman-Burke (2001), “os

mitos têm a misteriosa capacidade de conter e transmitir paradoxos,

permitindo-nos enxergar, em volta e acima do dilema, o verdadeiro cerne da

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questão” (p. 9). Desta forma, os mitos podem aliviar os conflitos internos e

ajudar-nos a descobrir melhor a vida.

Enxergando nos mitos uma função de cura, as mesmas autoras

acreditam que ao ouvirmos tais narrativas mitológicas, percebemos que não

estamos sozinhos em nossos sentimentos, medos, conflitos e aspirações.

Os mitos são também de tamanha importância na vida do ser humano

que alguns autores como Campbell (1988) acreditam que eles sejam uma

abertura secreta na qual as energias do cosmos penetram nas manifestações

culturais. Para o autor, os mitos são uma inspiração da criatividade para o

corpo e a mente dos seres humanos, já que os símbolos que os compõem são

produções espontâneas da psique.

Por serem constituídos pelos arquétipos, os mitos acabam por estar

sempre presentes na vida dos seres humanos e servem como modelo de

conduta a cada indivíduo.

Com base em tal teoria, fundamentarei meu trabalho relacionando os

principais pressupostos teóricos junguianos com o mito “O rapto de Perséfone”.

Para tal análise, focarei o tema “Morte, renascimento e transformação” que

será abordado no capítulo seguinte.

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PARTE II - MORTE, RENASCIMENTO E TRANSFORMAÇÃO

Existem alguns momentos da vida que são de corte, de conclusão e aí

temos que nos despedir. Este é um dos ciclos naturais da existência humana,

mas tal processo de ponto final dói. “Deixar ir embora faz parte da existência,

tanto quanto começar um ciclo novo” (Ceccon, 2007, p. 26).

Quando sofremos, normalmente vemos tal situação como algo injusto,

que não deveria estar acontecendo. Culpamos os outros, culpamos a nós

mesmos, culpamos divindades, ou tentamos culpar qualquer outra coisa para,

talvez, achar um alívio à nossa dor. No entanto, nem sempre achamos um

culpado ou nem sempre há sequer um culpado. As coisas simplesmente

acontecem e o máximo que podemos fazer é viver tentando compreender a

situação para dar um sentido ao sofrimento e assim, obtermos a possibilidade

de transformação.

Acredito que é por este motivo que em sua obra Estés (1994) defende a

idéia de deixarmos morrer o que precisa morrer. E para a autora “isso significa

deixar morrer os valores e atitudes de dentro da psique que não mais

sustentamos” (p. 109). Mantemos dogmas há muito aceitos e ouvimos vozes

interiores que nos estimulam a recuar para manter a vida segura, mas esta

superproteção não necessariamente nos ajuda a crescer, desenvolver e nos

transformar. Assim, é preciso tomar cuidado para não deixar que talentos

expressivos recuem para a sombra definhando o ser ao invés de ajudá-lo a se

fortalecer e progredir.

Mas por que então ter a dificuldade de deixar ir embora uma situação,

uma vida ou parte de nós mesmos que já chegou ao final de seu ciclo?

Ceccon (2007) acredita que insistir em uma situação pode ser mais

confortável, talvez mais seguro do que encarar o novo. E este é o motivo do

sofrimento. É preciso ter coragem para aceitar um fim, um “adeus”; assumir

que aquela etapa já se esgotou e, por isso, deve ser finalizada. A autora ainda

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realça que não basta dizer um “até breve”, mas assumir um adeus verdadeiro,

do fundo da alma.

Para que tal processo possa ser menos dolorido, a mesma autora

sugere que não imaginemos a situação como algo negativo, como um

abandono, uma desistência ou um fracasso. Uma porta que se fecha dá

espaço para novas possibilidades, sendo então um fim para o começo de algo

novo. Este ciclo ocorre inclusive internamente em cada ser humano.

Com o passar do tempo sentimos a necessidade de deixar para trás

escolhas, idéias, atitudes antigas que se tornaram obsoletas, mesmo que isso

não signifique mudar uma trajetória anterior (relacionamento, carreira, hábitos),

mas apenas dar espaço a outros paradigmas ou outra direção. Isso ocorre

naturalmente. É como uma voz que grita internamente pedindo por socorro e a

própria alma se encarrega de situar o que está precisando de maior atenção

naquele momento. Talvez seja um processo longo, em outras ocasiões pode

ser curto, mas o coração naturalmente aceita os sentimentos, mesmo

carregando ainda muitas incertezas. Este contato com os fantasmas da vida,

com a dor interna, pode ser sofrido, mas é a construção gradativa para um

novo caminho. E “saber encarar um ciclo com lucidez indica maturidade. É

sinal de que nos tornamos responsáveis pela própria vida” (Ceccon, 2007, p.

28).

Na cultura oriental, a vida não é vista como um processo que se dirige

apenas a uma direção, mas sim como um crescimento rítmico seguido por

decréscimos, alternando assim vida e morte. No entanto, no ocidente tal

ensinamento ainda não é muito reconhecido, já que, raramente, se reflete a

respeito da necessidade de se gastar, deteriorar e morrer simbolicamente. “Se

a morte e a decadência não estivessem dotadas de poderes tão grandes como

as forças da criação, nosso mundo inteiro teria agora alcançado o estado

lamentável da estagnação”, afirma Harding (1985, p. 278).

Ceccon (2007) então explica porque acredita que o ser humano sofre ao

deixar para trás certas situações. Para ela o sofrimento é gerado por nada

menos que o tão conhecido apego. O ser humano, principalmente no Ocidente,

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não se contenta em apenas vivenciar uma situação. Ele precisa possuí-la e

“para sempre”. Mas, no momento de deixá-la passar ocorre o sofrimento devido

à perda de algo que, para este ser, deveria ser eterno. Assim, segundo a

autora, “o segredo, então, é conservar o que se tem com desapego ou, então,

soltar de vez o que não tem mais valor” (p.30).

A autora afirma que não se deve ter medo da falta do que se foi, já que

em toda perda há um ganho. Este processo de transformação acaba também

por ser dolorido por entrarmos em contato com conteúdos interiores delicados.

E, como defende Whitmont (1991), também ter a coragem de olhar e ouvir a

própria profundidade é um desafio, já que aquilo que reprimimos e rejeitamos

nos outros também pode fazer parte do nosso próprio ser. É por este motivo

que atualmente algumas abordagens da Psicologia tais como o psicodrama e a

gestalt-terapia utilizam a dramatização deliberada da situação dolorosa ao

invés de evitá-la.

“Isso significa a coragem de adentrar o abismo, de se permitir

mergulhar, temporariamente, no caos da subjetividade, o velho

inimigo. Significa perder-se a fim de encontrar-se mais tarde”

(Whitmont, 1991, p. 211).

O autor acredita também que a nossa sombra, que por muitos ainda é

vista como uma fraqueza, pode agora, quando encarada verdadeiramente, ser

reconhecida e valorizada como elemento de equilíbrio e, portanto, aspecto

indispensável da vida. Todo ser passa por “altos” e “baixos”. Assim, o indivíduo

deve procurar reintegrar tais momentos de baixa ou de descida, como coloca

Perera (1985), mas transformando-os em uma parte de sua personalidade

sem, necessariamente, modificar seus princípios éticos e morais.

Whitmont (1991) ainda pontua que é importante para o ser humano

encontrar um lugar para a sombra dentro do próprio ser, pois somente assim

ele atingirá o equilíbrio e vivenciará totalmente sua personalidade. Caso

contrário estará sendo apenas a parte que gosta de si, não sendo então uma

totalidade.

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Este processo de sofrimento que nos faz encarar a nós mesmos causa

tamanha dor que podemos dizer que ocorre semelhantemente ao processo de

superação do luto. É algo desagradável, causador de medo, insegurança,

desconforto, revolta, negação, mas que pode ser também um canal de cura.

Para Perera (1985), a chamada morte simbólica significa desenterrar

conteúdos que foram mantidos no inconsciente até que o indivíduo tenha

forças suficientes para sacrificar parte da libido em favor de sua libertação.

Dentre os diversos tipos de descida para situações desconfortáveis existem as

mais fáceis e as mais difíceis de se enfrentar.

De acordo com a mesma autora, as descidas mais fáceis servem como

um afrouxamento dos conteúdos enraizados e também como um gerador de

energia para o enfrentamento das descidas mais profundas. Estas últimas são

as que levam o indivíduo às profundezas mais primitivas e orobóricas com o

intuito de reorganização e transformações radicais da personalidade

consciente. Por englobar tais funcionalidades, as descidas mais profundas

significam verdadeiras mortes para o indivíduo.

Apesar da dificuldade e do sofrimento para entrar em contato com as

descidas profundas da vida, são elas que promovem a entrada e a iniciação

para diferentes níveis da consciência e podem, inclusive, liberar a vida. A

autora coloca também que “o sacrifício ocasiona uma mudança gigantesca”,

mas que “a vida só pode nascer do sacrifício de outra vida” (Eliade, apud

Perera, 1985, p. 83).

Abaixo Perera (1985) comenta a respeito da morte simbólica através de

processos como a depressão, por exemplo. Apesar de a autora falar para as

mulheres se incluindo nesta fala, acredito que tais ensinamentos englobariam

qualquer ser humano sendo ele do sexo feminino ou masculino.

“A nível psicológico, o aspecto processual é experimentado de

maneira dolorosa e lenta. Sentimo-nos identificadas com quaisquer

aspectos que nos sejam mais próximos, e raramente conseguimos

encontrar o alívio parcial proporcionado pelos momentos de clareza,

como quando se consegue ver o núcleo a partir de uma perspectiva

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transcendental. Embora a depressão e o sacrifício de nossas ilusões

e ideais incompletos sejam maneiras de levar a cabo uma troca de

libido análoga à do ritual mítico, o processo se manifesta de maneira

angustiosa e piora quando nos culpamos pela depressão. Somos

forçadas a oferecer aquilo a que nos agarramos, aquilo que pagamos

caro para obter. E nada nos pode dar a certeza de que a perda será

recompensada da maneira que desejamos. No sistema abrangente

da psique, o sacrifício pode alterar o equilíbrio de energia em algum

ponto que não desejaríamos mudar. Só podemos saber que iremos

encontrar renovação e relacionamento com as forças poderosas do

mundo subterrâneo, e que isso envolverá a quebra dos velhos

modelos, a morte de uma gestalt em que, de certo modo, nos

sentíamos bem, a morte de uma identidade aparentemente completa.

Raramente nos aproximaríamos desse desmembramento se nossa

dor já não fosse muito intensa” (p. 85).

A descida às profundezas interiores é obscura, sofrida, “onde beleza e

feiúra extrema flutuam ou se dissolvem num estado paradoxal aparentemente

sem sentido” (Pereira, 1985, p.89) e pode fazer a vida perder “o sabor” por um

tempo. No entanto, segundo a mesma autora, é um processo sagrado e

transformador.

Branco (2002) diz que apesar da morte ser um processo destrutivo da

existência e o fim absoluto de qualquer coisa, seu simbolismo introduz ao

desconhecido e nos remete aos ritos de passagem. Assim, a situação de

mudança pode ser um tanto desconfortável também já que, como explica

Ceccon (2007), a dor da perda também pode ser decorrente do medo do

desconhecido. E isto normalmente ocorre já que o indivíduo é obrigado a sair

de algo já conhecido e esquematizado para então entrar em contato consigo

mesmo e descobrir quem realmente é e para onde irá seguir. Por isso, “o

verdadeiro adeus surge quando a pessoa já entendeu qual é o seu destino e

refletiu muito a respeito do que precisa se desembaraçar para seguir adiante

em seu caminho” (Critelli, apud Ceccon, 2007, p. 28).

Tal processo possivelmente será dolorido, mas Ceccon (2007) sugere

que, assim como age o povo hindu, talvez fosse mais fácil se procurássemos

estar sempre em contato com nosso próprio ser e não apenas “procurá-lo” nos

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momentos de dor. Dessa forma escutaríamos mais nossa alma, nosso coração

e ficaríamos menos apegados ao externo, tendo então menos dificuldade de

dizer adeus.

Conforme pontua Branco (2002):

“A morte simbólica pode ser despertada pela possibilidade de morte

física. Mas isso não impede a pessoa de aproveitar essa

oportunidade para se reconstruir. É um fato externo que remete a um

desafio interno” (p. 12).

É um fim que também pode ser um começo para uma nova vida; e neste

novo caminho a percorrer o indivíduo estará agora mais maduro e com maiores

possibilidades para encarar seus novos desafios.

Fato semelhante ocorre com a troca de pele da cobra a qual Perera

(1985) nomeia de “o conhecimento das serpentes”. Ao longo de sua obra a

autora compara a troca de pele do animal com as formas da vida do ser

humano que vão se perdendo e se renovando. E, apesar de nesses períodos

de transformação surgir o medo e vulnerabilidade, segundo a autora há

também uma renovação de energia. Perera (1985) afirma que o medo nada

mais é do que a perda momentânea da alma.

“A pessoa cai no inconsciente, é vencida pela emoção e fica em

pânico. E, na identidade com o medo, tenta sobreviver ao ataque. Ela

procura, assim, esconder-se fora da vida até que haja a chance de

renascer num meio mais clemente. O medo engolfa a alma mortal e

provoca sua descida. Aí o mundo subterrâneo pode ser um refúgio,

um esconderijo. Constatamos esta descida em ataques de anima e

animus negativos, ocasião em que o emocional se sobrepõe ao

senso de identidade pessoal” (Perera, 1985, p.129).

A mesma autora diz também que a transformação é como uma peça de

teatro que nunca termina, uma ação sem desfecho já que estamos sempre em

processo de mudança e transformação de vida e morte. Perera (1985) aponta

ainda que esta é uma nova espécie de ego em individuação que celebra e

aceita tal processo de mutação, que ousa encarar as sombras e o sofrimento

em prol da vida e que reage ao invés de reprimir tal processo natural.

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Enquanto um fato do destino, a transformação causa dor. No entanto, os

indivíduos devem buscar tal sofrimento, pois assim terão a possibilidade de

mudar e lutar para manter um equilíbrio. Segundo Branco (2002), é preciso

suportar o passado e vencer as expectativas para o futuro para construir um

novo ser no mundo real, segundo os impulsos dos desejos, mas respeitando

seus limites. Assim o ser humano caminha em direção à totalidade, ao si -

mesmo, ao processo de individuação.

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PARTE III - MÉTODO

O objetivo deste trabalho foi refletir a respeito da morte física e simbólica

buscando compreendê-la num sentido mais amplo caracterizado pelos

aspectos de renascimento e transformação na vida do ser humano.

Para isso, o modelo de pesquisa utilizado neste trabalho foi o teórico

com um levantamento bibliográfico de autores da abordagem junguiana, assim

como outros autores que levantaram o tema mitos ou que refletiram sobre os

aspectos da morte e seu caráter transformador.

Segundo Penna (2003), enriquecidos por imagens de lendas, mitos,

contos ou qualquer outro material cultural disponível, os símbolos passam por

um processo de amplificação.

“O processo de amplificação simbólica proposto por Jung consiste em

ampliar e enriquecer os elementos do símbolo através de

associações e analogias que fluem numa cadeia contínua de

similaridade, visando a traduzir e interpretar o material desconhecido

do símbolo. O ato de ampliar e enriquecer o símbolo, por meio de

analogias diversas, favorece a compreensão de seu significado

arquetípico pela diversidade de possibilidades oferecidas ao ego para

captar o aspecto oculto do símbolo e encontrar o significado que mais

sentido faça para a consciência atual” (p.195).

A autora acredita que a amplificação simbólica possibilita no indivíduo a

abertura de uma ligação que relaciona seus aspectos inconscientes com os

coletivos, da cultura. Isso ocorre já que,

“os símbolos coletivos ou culturais, na amplificação, revelam seus

aspectos arquetípicos prospectivos, fornecendo um entendimento

ampliado da situação atual e futura da coletividade, além de sua

conexão com a história passada” (Penna, 2003, p.197).

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Ainda de acordo com Penna (2003), a pesquisa em Psicologia Analítica

considera também que, necessariamente, a dimensão inconsciente está

presente tanto no âmbito coletivo quanto pessoal, o que exige atenção e

reflexão constantes sobre aspectos inconscientes do pesquisador para que a

pesquisa seja realizada de maneira apropriada.

Além disso, a principal meta de uma pesquisa em Psicologia Analítica é

a aquisição de um novo e relevante conhecimento tanto ao coletivo quanto ao

auto-conhecimento do próprio pesquisador. Assim, segundo a mesma autora, o

objeto de pesquisa, o símbolo (da morte, neste caso), acaba por instigar e

capturar a consciência do pesquisador, mobilizando seu ego em direção ao

desconhecido que acaba por ser a motivação básica para a realização da

investigação.

Levando isto em consideração, Scanavacca (2007) salienta que é de

extrema importância que o pesquisador esteja inteiramente envolvido com o

tema, mas, ao mesmo tempo, tendo certo distanciamento para posteriormente

ter condições de refletir a respeito, realizando suas próprias conclusões.

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PARTE IV - O MITO: “O RAPTO DE PERSÉFONE”

Neste trabalho, escolhi por refletir a respeito do mito “O Rapto de

Perséfone” por este ilustrar claramente o processo de morte, renascimento e

transformação pelo qual passa qualquer ser humano ao longo de sua vida.

Tal mito, até os dias de hoje, já foi contado de diversas maneiras e por

diferentes autores como Bolen (1996), McLean (1989) e Woolger e Woolger

(1997). Cada um deles optou por abordar o mito sob uma perspectiva

diferenciada com o objetivo de analisá-lo de acordo com o tema trabalhado.

Assim, para expor em meu trabalho, optei pela versão de Woolger e Woolger

(1997) que é a mesma de Seabra (Disponível em: http://www.sbpa-

rj.org.br/maefilha.htm) que achei mais completa e detalhada. Optei por tal

versão já que ambos os autores utilizam como base uma das mais antigas

fontes de mitos gregos de que dispomos: os Hinos Homéricos.

“Naquele dia, Deméter,

deusa do grão e da colheita,

cuidando de cobrir a terra de

verdura, flores e frutos, não

estava junto à filha, a linda

Perséfone, também

chamada Core (que, para os

romanos significa jovem). A

jovem brincava com as

ninfas no campo de Nísia;

teciam coroas e guirlandas

"misturando violetas e íris,

rosas, jacintos e lírios".

Atraída pelo perfume do

narciso "de cem ramos",

Core afasta-se das

companheiras e debruça-se para colher um botão que floria na borda

de um penhasco. Nesse momento a terra se abre e surge da fenda o

deus da morte e do mundo subterrâneo, Hades, que a carrega,

apesar de seus gritos, em seu carro puxado por "imortais cavalos",

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para Hades, seu reino. Perséfone grita pedindo a Zeus que a salve,

sem suspeitar que o rapto tinha sido tramado pelo filho de Cronos,

Zeus, com seu irmão, o senhor de Hades.

Do fundo de sua gruta, Hécate, deusa da sombra e da tênue luz da

lua, nada vê, mas ouve o grito de Core. Distante, "através dos picos

das montanhas e das profundezas do mar", Deméter também o ouve.

Durante nove dias sem comer nem se lavar, carregando tochas, ela

procura a filha. Na aurora do décimo dia, Hécate vem a seu encontro

e diz à deusa inconsolável que sabia que sua filha tinha sido raptada,

mas não sabia por quem. Juntas, vão perguntar ao Sol, o deus Hélio,

que tudo vê no seu curso pelo céu. O deus resplandecente conta que

Perséfone tinha sido dada por Zeus a Hades para ser sua esposa e

rainha do reino dos mortos, e volta para as alturas no seu carro de

luz, deixando imersa em escuro desespero a deusa Deméter.

Desfigurada pela dor e vestida em andrajos, ela dirige-se, então, para

as cidades dos homens.

Uma tarde, tendo chegado ao reino de Elêusis, ela se senta à beira

de uma fonte chamada Fonte das Donzelas, à sombra de uma

oliveira. As filhas do rei vêm apanhar água e aproximam-se de

Deméter. Quando esta lhes diz que busca trabalho como ama, as

jovens levam-na a seus pais. Coberta com escuro manto, a deusa

entra no palácio onde a recebem com respeito. Recusa o vinho que

lhe é oferecido, mas aceita uma bebida feita com cevada e água.

A rainha entrega-lhe seu filho recém-nascido. Deméter, que o recebe

"em seu colo perfumado", começa a dar-lhe cuidados para que ele

cresça "como se fora o filho de um deus": unta-o com ambrosia e à

noite, secretamente, coloca-o sobre chamas para que ele se torne

imortal.

Uma noite, a rainha, insone e "com pensamentos tolos", deixa seu

"quarto perfumado" e vai ver o filho entregue à ama. Surpreende-a

segurando a criança sobre o fogo e solta um grito apavorado. Com

isso impede que o filho se torne imortal.

"Ondas de terrível ira" atravessam a deusa que, dando-se a

conhecer, repreende a mãe por ter privado o filho da imortalidade.

Revelada a presença da deusa, os reis e o povo de Elêusis erigem-

lhe magnífico templo. Para dentro dele Deméter se retira e entrega-se

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à saudade da filha. A dor cresce em seu peito; seu luto e desespero

começam a transbordar trazendo destruição sobre a terra. Naquele

ano terrível nenhuma semente brotou; a humanidade teria perecido

pela fome e os deuses estariam para sempre privados das oferendas

e sacrifícios dos homens se Zeus "não tivesse percebido isso e

ponderado em sua mente". A deusa Íris é a primeira mensageira que

vem implorar a Deméter que aceite o convite para vir ao Olimpo

receber grandes honras e que devolva a fertilidade aos campos dos

homens. Deméter, inabalável em sua vingança, recusa-se a atender a

Íris e a todos os deuses que vêm, um por um, suplicar que retire seu

castigo. Declara que nenhuma semente brotará enquanto não lhe for

devolvida Perséfone. Finalmente, Zeus envia Hermes ao Hades para

pedir ao senhor dos mortos que concorde em ceder a esposa à sua

mãe.

Hades dá seu consentimento; Core,

exultante, prepara-se para partir. Na

despedida, o marido pede-lhe que

coma com ele alguns gomos de

romã. Depois de compartilharem a

fruta, Perséfone salta no carro

dourado de Hermes: e "puxados por

cavalos de longas asas" atravessam

os mares, os picos das montanhas, e

chegam ao bosque perto do templo.

Mãe e filha correm em direção uma à

outra e abraçam-se numa alegria

sem limites. Subitamente, Deméter

suspeita de um embuste e pergunta

à filha se tinha comido alguma coisa

enquanto estava no mundo

subterrâneo. Perséfone lembra-se de

ter partilhado a romã com o marido,

e sua mãe sabe então que só a terá

de volta por dois terços do ano. Um terço a filha terá que passar com

Hades no reino dos mortos. Por isso durante uma terça parte do ano

tudo seca e morre na natureza. E todos os anos, quando Core volta,

tudo volta a brotar. Sua volta traz a primavera - sua mãe cobre a terra

de flores.

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Depois de um dia de muitos abraços e de contarem uma a outra tudo

o que lhes tinha acontecido, na alegria de estarem novamente juntas,

Deméter chamou os governantes da cidade e os instruiu na

celebração de um ritual. Os Mistérios de Elêusis foram fundados para

que a cada ano se repetisse aquele encontro entre Deméter e

Perséfone. “Então, as duas deusas partiram para o Olimpo e aí estão

juntas, na companhia dos deuses” (Seabra, p. 3).

A partir de tal mito, analisarei Perséfone e seu processo de

transformação pelo qual passou de adolescente a rainha do mundo

subterrâneo.

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PARTE V - ANÁLISE E DISCUSSÃO

Nesta parte do trabalho farei uma intersecção entre os aspectos

relevantes do mito “O Rapto de Perséfone” e os conteúdos teóricos levantados

na pesquisa bibliográfica.

Retomando a noção de arquétipo, observei que esta palavra está na

própria raiz de algumas outras como arte, artífice, arquitetura, que trazem

sempre a idéia de estrutura, sustentação ou de vigas invisíveis que mantêm

uma grande construção. Se considerarmos os arquétipos como vigas invisíveis

que sustentam a edificação de um indivíduo, estaremos bem próximos das

mudanças desejadas por ele.

Ao considerarmos morte como um arquétipo, todo homem terá em si

uma imagem virtual do que seja morrer. Esta imagem manifesta-se de formas

diferentes, dependendo da cultura em que vive ou viveu, depende de sua

história de vida, do seu nível de desenvolvimento cognitivo e emocional e do

seu dinamismo psíquico. Assim, o conceito que o indivíduo tem sobre a morte

enquanto jovem poderá mudar quando for mais velho, ou o conceito que tem

enquanto está sadio poderá mudar quando estiver doente, ou quando perder

um ente querido. No entanto, a essência do que é a morte continuará a mesma

e sempre passará um sentimento e idéia de perda, separação, finitude,

passagem ou transformação e renascimento que podem ocorrer de uma forma

ou de outra. Assim, o renascimento pode também ser vivenciado como

significando o começo de uma nova vida.

Este é o motivo da escolha do trabalho: ressaltar principalmente para a

cultura ocidental, a possibilidade de olhar a morte (sendo ela física ou

simbólica) como uma oportunidade de renascimento e transformação. Lembro

que a morte simbólica aparece diariamente em nossas vidas através de etapas

e processos que se findam dando espaço a novos relacionamentos, empregos

ou a um jeito de ser.

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“Podemos ser atraídos ao domínio tenebroso de Perséfone após um

divórcio, uma mudança não desejada para algum lugar distante, um

aborto, a perda de um emprego, algum trauma severo quando somos

a única pessoa a sobreviver de um acidente de automóvel. Em tudo

isso há sempre alguma espécie de morte psíquica, ainda que não

física. A perda é, afinal, exatamente isso: o sentir arrancada de si a

energia da imagem de alguma pessoa, lugar ou modo de vida amado,

que é substituída por um enorme ermo, vazio emocional. (...) O

desaparecimento de um objeto amado num grande, ermo e oco vazio

é descrito em uma linguagem simbólica expressiva como descida ao

mundo avernal. O que é reconfortante sobre o mito de Perséfone é

haver uma figura guardiã que rege esses períodos terríveis de perda

de energia e que nos protege, por assim dizer, até estarmos prontos

para voltar à vida normal cotidiana. Metaforicamente falando, toda

energia vital que perdemos durante a depressão, a dor ou o desgosto

de qualquer espécie, “foi para o mundo avernal”. (...) Temos que

respeitar esse processo em vez de tentar nos alegrar artificialmente”

(Woolger e Woolger, 1997, p. 183).

O mito escolhido, como foi levantado acima, também está diretamente

ligado ao tema. Observei, no entanto, que cada autor que expõe um trabalho

com o mito analisa “O Rapto de Perséfone” sob uma perspectiva. Muitos deles

mostram a relevância do relacionamento entre mãe e filha, outros autores

focam o lado feminino tanto de Perséfone como de Deméter, alguns optam por

analisar a crueldade de Hades ou da própria rainha do Mundo Avernal e ainda

há autores que revelam o funcionamento do Mundo Subterrâneo e a ligação

que Perséfone faz entre os vivos e os mortos. Poucos são os autores que

abordam o processo pelo qual a doce e frágil menina Core passa para se

tornar a poderosa e corajosa mulher Perséfone. Este foi o motivo da escolha

pelo mito.

Os seres humanos passam por mudanças

freqüentes que nunca se findam. É como se

estivéssemos sempre dentro de um círculo girando

eternamente ou mesmo dirigindo sob o símbolo do

infinito que nunca se acaba. Isso faz lembrar o oroboro já citado anteriormente.

De acordo com Perera (1985), o oroboro é a cobra mítica que engole a própria

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cauda formando um círculo. É como se o bicho se sacrificasse para obter a

percepção de seu próprio eu. A serpente guarda em si também outro paradoxo:

por um lado ela exprime ameaça de morte com seu veneno, mas por outro

suas escamas exprimem o aspecto de renovação na troca de pele. Assim, tal

símbolo ilustra para a autora o processo de individuação. Acredito que é

através das mortes e mudanças que enfrentamos constantemente que

atingimos o autoconhecimento.

Perséfone também precisou enfrentar literalmente a decida às trevas

para atingir o processo de individuação. De acordo com Woolger e Woolger

(1997), o Mundo Avernal simboliza o inconsciente coletivo que Perséfone teve

que encarar através de suas sombras para descobrir seu verdadeiro eu. Ela

teve que despir-se da persona de “filhinha” e enfrentar e integrar sua própria

sombra descendo ao inferno.

“Ao entrar na puberdade, a jovem tem que sofrer a perda da sua

inocência infantil; esta é a “morte da donzela” interior que toda mulher

vivencia em maior ou menor grau (e que toda mãe precisa ter em

mente quando vê o mesmo acontecendo em sua filha). Esta fase é

simbolizada pela flor” (Woolger e Woolger , 1997, p. 219).

Ainda jovem, Core, como era chamada, aparentava sua ingenuidade

infantil exatamente por estar mexendo naquelas flores. A ísis, por exemplo, é

uma flor primaveril que, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2007), tem um

papel purificador e protetor. A jovem foi então atraída por um narciso que,

segundo os mesmos autores,

“Foi o perfume do narciso que enfeitiçou Perséfone, quando Hades,

seduzido por sua beleza, quis raptar a jovem e levá-la com ele para

os Infernos: a flor cintilava com um brilho

maravilhoso, e deixou assombrados todos os

que então a viram, tanto Deuses imortais como

homens mortais. Crescera de sua raiz uma

haste com cem cabeças, e, com o perfume

desta bola de flores, sorriu lá do alto todo o vasto Céu, e toda a terra,

e a acre turgidez da vaga marinha. Admirada, a criança estendeu ao

mesmo tempo os dois braços para agarrar o belo brinquedo: mas a

terra de vastos caminhos abriu-se na planície de Nisa, e dali surgiu,

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com seus cavalos imortais, o Senhor de tantos hóspedes, o Cronos,

invocado sob tantos nomes. Ele a raptou e, apesar de sua

resistência, arrastou-a aos prantos para o seu carro de ouro” (HYMH:

Hino a Deméter apud Chevalier, 2007, p. 630).

Desta passagem percebemos que tal flor era uma armadilha para que

Hades raptasse Core por quem havia se apaixonado. De acordo com os

autores, o narciso compreende também uma ligação com os cultos infernais e

é por este motivo que em alguns locais se plantam narcisos sobre túmulos. No

entanto, eles simbolizam “o entorpecimento da morte, mas uma morte que não

é talvez senão um sono” (p.629). Surgindo também na primavera, o narciso é

encontrado apenas em locais úmidos. Isso o “liga aos símbolos das águas e

dos ritmos sazonais e, por conseguinte, da fecundidade. Isso significa sua

ambivalência: morte-sono-renascimento” (p.629).

“No âmago do grande mito está Hades, que não é senão a Morte

personificada. Dizer que a donzela Perséfone se casa com ele é o

mesmo que dizer que a donzela morre. Trata-se de uma morte

figurada, exigida pela crescente sabedoria da psique – um sacrifício

que é também, como vimos, uma iniciação. Quer queira quer não, a

mulher-Perséfone foi chamada a renunciar à sua inocência de

donzela e a dedicar uma grande parcela de sua vida entrando e

saindo do mundo avernal. Via de regra, ela fará isso como auxiliar ou

guia dos outros. Por ter estado lá, ela se torna um facho de luz. O

trabalho de Elisabeth Kübler-Ross com pacientes terminais é dessa

natureza. Com o archote negro que a levou para baixo, Perséfone

pode levar outros a se reunirem novamente com a vida, com

Deméter, ou então ajudá-los a atravessar para “o lado de lá””

(Woolger e Woolger, 1997, p. 199).

Tendo em Hades seu animus, Perséfone não é mais apenas aquela

donzela dócil e emocional, mas se torna capaz de ser dona de si mesma e se

transforma na Senhora dos Infernos. Ela passa então a ter autonomia,

acompanha as almas e os indivíduos nos momentos de dor dando-lhes força e

coragem.

Assim, conforme colocado anteriormente, muitos autores crucificam

Hades por ter sido o “monstro” que tirou Core de Deméter, separando uma

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relação tão bela entre mãe e filha. No entanto, poucos são aqueles que

percebem Hades como o agente de transformação de Perséfone.

“O verdadeiro salvador não é Zeus, e sim, paradoxalmente, o irmão

sombrio de Zeus, Hades. A sabedoria deste mito extraordinário é que

a fonte de transformação de Perséfone vem de baixo, das

profundezas abissais da alma, não dos confins mais elevados do

espírito” (Woolger e Woolger, 1997, p.190).

Foi Hades que permitiu que Core se tornasse uma mulher forte e

independente e, inclusive, possibilitou que ela assumisse a posição de Rainha

do Mundo Subterrâneo, governando os espíritos dos mortos ao lado dele.

Hades representa o término do ciclo da vida e, portanto, o início de uma nova

etapa.

“Com isso vemos que o personagem não é ruim, ele pode representar

o casamento, o nascimento, a morte de questões antigas. Um

exemplo é a despedida de solteiro em que comemoramos a entrada

num mundo de responsabilidades com o outro e, ao mesmo tempo,

lamentamos a perda de um antigo estado civil. Outro exemplo pode

ser o caso da depressão pós-parto, pois vemos a tristeza pela perda

da antiga vida e a entrada em uma nova. Esses são acontecimentos

inconscientes. Resumindo, Hades preside todos os finais e começos

em nossas vidas. (Xavier, disponível em: www.redepsi.com.br).

Ao olharmos de forma simbólica para Deméter, percebemos que ela

representa a experiência materna, não só biológica, mas também sagrada e

interior. É a mãe que nutre, protege, que tenta suprir as necessidades da cria e

vê a paciência como uma virtude muito preciosa. Mas, lembrando que a

abordagem junguiana trabalha com polaridades, o arquétipo da mãe também

tem uma imagem negativa de superproteção, egoísta com os outros em

relação aos filhos e sufocadora da própria cria, o que muitas vezes impede os

filhos de crescerem e terem suas próprias vivências. O mesmo ocorreu com

Deméter. Muito apegada à filha, acaba por perder-se no mundo sem a

presença de Perséfone. Assim, passa nove dias à procura da filha sem se

alimentar ou ao menos se lavar, causando também a devastação dos campos

e a esterilidade das colheitas. Deméter fica este número específico de dias

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incessantemente à procura de Perséfone já que, de acordo com Chevalier e

Gheerbrant (2007), o número nove simboliza nos escritos homéricos um valor

ritual coroando os esforços, o término de uma criação e sendo a

medida das gestações. Outra interpretação ligada ao nove é que

“cada mundo é simbolizado por um triângulo, um número ternário: o

céu, a terra, os infernos. Nove é a totalidade dos três mundos”

(p.642). É como se Deméter tivesse procurado sua filha por toda a

parte, utilizando todos os esforços para achar a cria.

Quando finalmente recebe sua filha de volta, Deméter suspeita que

Perséfone havia comido romã.

“A semente da romã teria tido, na Grécia antiga, um simbolismo

ligado ao pecado. Perséfone conta a sua mãe de como foi seduzida a

contragosto: ele me pôs na mão sorrateiramente um alimento doce e

açucarado – uma semente de romã – e, embora eu não o quisesse,

ele me forçou a comê-lo (Hino Homérico a Deméter). A semente de

romã, que condena aos infernos, é um símbolo das doçuras

maléficas. (...) No contexto do mito, a semente de romã poderia

significar que Perséfone sucumbiu à sedução e merece, portanto, o

castigo de passar um terço da sua vida nos infernos. Por outro lado,

provando uma semente de romã, ela quebrou o jejum, que era a lei

dos Infernos. Ali, quem quer que comesse qualquer coisa ficava

impedido de voltar à terra dos vivos” (Chevalier e Gheerbrant, 2007,

p. 787).

De acordo com os mesmo autores, tal fruto é símbolo também de

fecundidade maternal. E esta atitude de desconfiança da mãe mostra

novamente o aspecto superprotetor de Deméter que zelava pela virgindade da

filha. No retorno à mãe, Deméter percebe que a filha já não é uma donzela,

mas sim uma mulher adulta e madura que agora conhece a sexualidade, a

morte e a separação. De acordo com Woolger e Woolger (1997),

“o retorno é um lembrete de que as duas deusas são na verdade

uma, de que juntas elas representam a totalidade da Grande Mãe – a

deusa capaz de separar-se de si mesma infindavelmente, de morrer

infindavelmente e de renascer infindavelmente como mulher, como

terra, como cosmos” (p. 203).

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Assim, se Perséfone não tivesse sido raptada por Hades, talvez nunca

pudesse passar pelo processo de transformação e fosse eternamente

infantilizada pela mãe e dependente da mesma.

Os mesmos autores colocam que Perséfone foi iniciada relutante nos

domínios sombrios da psique. E sabemos que uma iniciação traumática ou

mediante uma profunda crise na vida pode contribuir ao processo de

individuação. O rapto pode então ser visto simbolicamente como uma lesão

infligida ao ego que precisava ser provocado para abdicar de seu controle

exclusivo sobre o psiquismo, estimulando-o ao reconhecimento do self. Então,

o medo de Perséfone nada mais é do que a dificuldade de “se desvencilhar de

sentimentos de desamparo e impotência, nem deixar para trás sua inocência,

nem superar a raiva que sente inconscientemente” (p. 195).

“O que Perséfone não logrou compreender é que a vítima dentro dela

realmente precisa ser sacrificada e contrair núpcias com os poderes

escuros. A palavra sacrifício não significa apenas renunciar ou

abandonar, no sentido de perder algo, mas literalmente “tornar sacro”

[sacrum facere]. Toda dor, raiva e mágoa precisam ser oferecidas

para forças que estão além de si” (Woolger e Woolger, 1997, p. 197).

Assim, sentindo-se impotente diante da rapidez do processo pelo qual

passava, Perséfone “descobre que precisa aprender a viver em dois mundos

radicalmente diferentes: o mundo da vida e da luz representado pela mãe,

Deméter; e o mundo das sombras e da morte, representado por Hades” (p.

185). Para sobreviver a tal impasse, a rainha do mundo avernal teve que

aprender a recolher-se para dentro de si e para os seus encontros psíquicos

secretos, percebendo em tal descida traumática a chave para um vasto campo

de descobertas interiores. “Como disse certa vez o velho alquimista Morienus,

“O portal da paz é sobremaneira estreito, e ninguém poderá atravessá-lo senão

pela agonia da sua própria alma”” (p. 197).

Como rainha do Mundo dos Mortos, Perséfone é aquela que se

movimenta entre sua luz e sua sombra, consciente e inconsciente, realidade e

fantasia de modo a integrar tais aspectos de si mesma. “Seu maior desafio é

unir o lado escuro e o lado luminoso da deusa em si mesma” (Woolger e

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Woolger, p.197). Por este motivo seu mito serve como auxílio aos seres

humanos para realizarem tal integração em suas próprias vidas, desvelando e

compondo conteúdos da sombra na psique consciente.

Após entender tais passagens do mito, fica mais fácil compreender

porque alguns autores como Koltuv (1990) acreditam que Perséfone não só

aceitou comer a romã, mas optou por comer tais sementes: por reconhecer que

naquele momento com Hades no Mundo Avernal ela já era diferente.

Embora Perséfone não fosse um dos doze deuses olímpicos, ela foi a

figura central nos Mistérios de Elêusis, que por dois mil anos antes do

Cristianismo foi a principal religião dos gregos. Nos Mistérios de Elêusis os

gregos passavam pela experiência da renovação da vida depois da morte

através da volta anual de Perséfone.

O mito também é interpretado por muitos autores como o facilitador do

surgimento das estações do ano. Quando Deméter encontra a filha é tempo de

alegria e, portanto, a deusa do grão e da colheita prepara a terra, faz brotar

sementes que possibilitam o nascer das flores e traz também o aparecimento

do sol. Estas são as épocas de primavera e verão. Quando Perséfone volta ao

encontro do marido tudo seca, simbolizando o outono. No entanto, é importante

lembrar que, caso não houvesse o outono, não seria possível a vinda da

primavera, já que é naquela época que as folhas das árvores caem para

possibilitar que toda a energia seja guardada para futuramente gerar novos

frutos e flores.

“O nosso mito diz que Core acabou retornando para a mãe e que a

terra tornou-se novamente fértil. Os seres humanos, e as mulheres

em especial, têm uma grande lição a aprender com a suspensão do

grande ciclo das estações. Esta interrupção ensina-lhes que a morte

na forma de Hades, e Deméter, em sua ira e dor, têm que ser ambas

propiciadas para que o grande ciclo prossiga” (Woolger e Woolger,

1997, p. 225).

Até alcançar o estágio de perfeita sintonia com o self, passamos,

entretanto, por descidas e subidas cíclicas, recheadas de sofrimentos e

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vitórias, como retrata o mito. Nos ciclos de descidas aos infernos nos

conectamos inicialmente com medos, a depressão, os aspectos infantis ou

sombrios, os conteúdos instintivos. Subindo à consciência, vamos aprendendo

a integrar tais aspectos à personalidade total. As descidas seguintes já vão

perdendo seu caráter traumático, permitindo assim o vislumbrar da sabedoria

resultante do mergulho nas próprias feridas, favorecendo então a percepção

dos componentes do psiquismo.

É necessário passar por crises. E estas, segundo Bolen (1996), derivam

do vocábulo grego krisis e significa decisão. Em chinês, o ideograma que se

refere à palavra é composto por dois caracteres: perigo e oportunidade. Assim,

“se não penetrarmos em fontes mais profundas da nossa psique, de

onde podem brotar a criatividade, a geratividade e a significação. A

alma exige que nos voltemos para dentro para nos individuarmos.

Precisamos entrar em um processo interno, refletir, introspectar,

meditar, manter os dilemas em nossa consciência, encontrar nossa

própria clareza, penetrar naquilo que nos pode sustentar

espiritualmente e agir com determinação quando necessário. Seja

reprimindo o que é verdadeiro e sofrendo as conseqüências disso, ou

agindo com base no que sabemos ser verdadeiro e descobrindo o

preço disso, ou inconscientemente desencadeando acontecimentos

que precipitam uma crise, a vida nos convoca ao trabalho interior.

Essa é a fase de ajuste, transição ou crise, que exige que

enfrentemos as mudanças e façamos escolhas” (Bolen, 1996, p. 171).

O mito “O rapto de Perséfone” é considerado então um agente

encorajador e facilitador para o processo que todos passam a caminho da

individuação.

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PARTE VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após analisar o tema, percebi como o assunto pode ser visto e discutido

de formas tão diversificadas. Fui atraída a escrever a respeito exatamente por

passar momentos de perdas na vida, mas não conseguir lidar com a dor.

Queria entender como superar as mortes tanto as físicas como as simbólicas

de uma maneira mais branda e talvez até mais racional.

Foi muito difícil decidir sobre o que escreveria. Gostaria de acrescentar

algo não apenas a mim, mas também para a sociedade. Deveria ser algo que

todos os seres humanos vivenciassem freqüentemente, sendo ele de qualquer

sexo, idade e raça, pois acreditava que desta maneira poderia, com as minhas

reflexões, acrescentar mais ao mundo.

Iniciei meu trabalho escrevendo sobre relacionamentos amorosos,

depois pensei sobre o limite existente entre o amor e a amizade, mas então

percebi que estava buscando algo muito mais profundo dentro do meu interior.

Algo que de certa forma me incomodava tanto nos relacionamentos amorosos,

quanto nas amizades: o sentimento de perda, separação e até mesmo a morte.

Algo inevitável: as pessoas vão e vem, os relacionamentos também, mas por

quê isso acontece? Por que às vezes temos que nos separar de quem amamos

e por que às vezes somos separados destes? Como lidar com o medo da

perda? E mais, como lidar com a dor?

Comecei então a ler a respeito e cada vez mais me interessar pelo

assunto. Havia muito material sobre a perda de entes queridos, os finais de

relacionamentos amorosos, a luta contra uma doença, ou sobre a passagem da

infância para a adolescência. No entanto, interessei-me mais pelos autores

citados ao longo do meu trabalho que falavam da morte simbólica ou dos

processos de perda de uma maneira geral. E, para mim, acreditava que seria

mais fácil e mais belo entender tal processo através dos símbolos. Foi desta

forma que cheguei à mitologia.

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Como vimos anteriormente, os mitos podem ser muito importantes para

todas as gerações como uma tentativa de explicar os mistérios da vida e torná-

los suportáveis, de maneira a podermos vivenciá-los, transpô-los e integrá-los.

“O rapto de Perséfone” não deixa de ter a sua importância também, já que nos

mostra que é possível aprendermos a deixar algo ir embora para então nos

abrirmos para o novo.

Através de Hades, Perséfone pôde deixar sua persona de jovem sem

responsabilidades para então assumir o papel de adulta, esposa e rainha do

Mundo Avernal. Como ocorre comumente nos processos de perda, Perséfone

também passou por um momento de desorientação devido ao choque da

separação com a mãe e da percepção do final do ciclo de vida infantil. No

entanto, após se permitir vivenciar tal dor e encarando a própria sombra, a

personagem acaba por se tornar uma mulher forte, corajosa e madura.

O mesmo ocorre com os seres humanos. Após uma morte, passamos

por todo um processo de luto até entendermos emocionalmente a situação.

Isso não quer dizer deixar de sentir saudades da pessoa querida que se foi ou

do momento da vida que se passou, mas apenas entender e aceitar a situação

na tentativa de enxergar a perda como um processo natural da vida e como um

movimento interno de crescimento e transformação.

Ao realizar o trabalho, observei também que a Psicologia Analítica está

percebendo um movimento de evolução do ego que vai do dinamismo

patriarcal à alteridade. Assim, há uma tendência à integração harmônica entre

os princípios feminino e masculino que antes eram vistos como opostos e não

complementares. Nesta nova era, tal mudança é importante para os seres

humanos que passam por momentos de rápidas transformações, já que,

possivelmente, terão maior capacidade de elaborar o novo com maior rapidez

e, conseqüentemente, de maneira menos dolorida.

Outra relevância do trabalho está na atuação clínica, no sentido

profilático e terapêutico. Os seres humanos, principalmente no ocidente, têm

uma dificuldade muito grande em aceitar os processos de perda, dor e

transformação. No entanto, após fazer tal reflexão, percebi como os

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profissionais de Psicologia podem promover saúde evitando que possíveis

dificuldades ocorram com pacientes que passam por tal processo de morte e

transformação.

Ressalto a importância de que profissionais que atuam nesta área se

revejam em relação aos seus processos de perda, luto e renascimento.

Para um aprofundamento sobre o tema, sugiro a leitura dos autores

referidos na bibliografia a seguir. Outros trabalhos interessantes a serem

consultados são sob o ponto de vista masculino, ou sobre a própria

feminilidade relacionada ao tema. Para simbolizar o processo de superação

também se pode consultar o mito “O vôo da Fênix”.

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