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Eclipse seguido de colapso de ventos estelares oculta periodicamente a Eta Carinae Uma estrela que apaga JANEIRO DE 2012 . WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR ENTREVISTA MAURÍCIO ROCHA E SILVA Como dar visibilidade a uma revista científica TIMO Glândula pouco ativa explica doenças autoimunes na síndrome de Down BIOCERÂMICAS Vidro e membrana estimulam recuperação de ossos DIPLOMACIA A delicada relação do Itamaraty com o Congresso COMIDAS Uma chave saborosa para entender o Brasil colonial n.191 PESQUISA FAPESP JANEIRO DE 2012

Pesquisa Fapesp 191

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Uma estrela que apaga: Eclipse seguido de colapso de ventos estelares oculta periodicamente a Eta Carinae

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Eclipse seguido de colapso de ventos estelares oculta periodicamente a Eta Carinae

Uma estrela que apaga

janeiro de 2012 . www.revistapesquisa.fapesp.br

entrevistaMaUrício rocha e silva Como dar visibilidade a uma revista científica

tiMoGlândula pouco ativa explica doenças autoimunes na síndrome de Down

biocerâMicas Vidro e membrana estimulam recuperação de ossos

diploMaciaA delicada relação do Itamaraty com o Congresso

coMidasUma chave saborosa para entender o Brasil colonial

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4 | janeiro De 2012

Mangue na ilhao bosque da baía de sueste, em fernando de noronha, é o único manguezal em ilha oceânica no atlântico sul, e há indícios de que se instalou por lá há cerca de 2 mil anos. apesar de monitorado há três anos por um projeto que reúne três universidades pernambucanas, a universidade de pernambuco (upe), a federal (ufpe) e a federal rural (ufrpe), um mistério permanece: como a árvore mangue-branco (Laguncularia racemosa), que existe na África e no brasil, chegou até lá? provavelmente de carona na corrente sul equatorial, que liga os dois continentes.

Clemente Coelho Junior Universidade de Pernambuco

fotolab

se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 Mb.

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antropologia

astrofísica

bioenergia

bioinforMÁtica

biologia celular

bioquíMica

biotecnologia

botânica

ciência política

ciências cognitivas

ciencioMetria

coMputação

ecologia

engenharia

evolução

farMacologia

genética

histologia

história

iMunologia

inovação

MateMÁtica

Medicina

nanotecnologia

pediatria

quíMica

tecnologia da inforMação

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tecnologia

64 Materiais bioativosMembranas com celulose e vidros se ligam aos tecidos e estimulam a regeneração celular

68 VidrosImagens refletem a produção de um dos principais centros mundiais de pesquisa em materiais vítreos

72 SoftwaresFederal de Minas se associa a empresa para produzir sistemas de tecnologias da informação para internet

hUManidades

74 DiplomaciaGlobalização aproximou opinião pública das decisões internacionais, mas a sua representação no Legislativo ainda é polêmica

80 EspeciariasAlimentação permite entender a dinâmica das relações no Brasil colonial

86 Medicina popularEspecialista cataloga usos terapêuticos de plantas e animais no Brasil

política científica e tecnológica

34 Energias do futuro Governo, empresas e centros de pesquisa da Alemanha avançam em conjunto para ampliar o uso de fontes renováveis

38 Mudanças climáticasConferência obtém compromisso global para redução de gases do efeito estufa a partir de 2020

40 História da FAPESP VIIArticulação dos pesquisadores paulistas ajuda a multiplicar o uso da bioenergia

44 Internacionalização da ciênciaEstudo sugere que o contato pessoal entre pesquisadores é essencial para incentivar colaborações internacionais

48 Convergência tecnológicaEspecialista defende a convergência tecnológica, estratégia que reúne áreas diversas em temas de fronteira

ciÊncia

50 Imunodeficiências primáriasCópia extra de gene prejudica o amadurecimento das células de defesa na síndrome de Down

54 Preservação ambientalConstrução de rodoanel na Grande São Paulo aciona operação de replantio de matas

60 Análise genéticaAnálise genética questiona a classificação de plantas do grupo dos pinheiros

62 Redes complexasConexões com vizinhos ajudam a definir a função das células no organismo

20 capacolapso de ventos estelares prolonga apagão cíclico da estrela eta carinae

24 como observar luas, anéis e até o magnetismo de planetas fora do sistema solar

imagem da capa a estrela eta carinae imersa em sua nuvem gasosa

crédito nasa / hst / j. Morse / K. davidson

entrevista

28 Mauricio rocha e silva fisiologista que demonstrou o efeito do hormônio vasopressina no organismo conta como fazer uma revista científica de nível internacional

seçÕes

4 fotolab6 cartas7 carta da editora8 Memória 10 on-line11 wiki12 dados e projetos13 boas práticas14 estratégias16 tecnociência90 resenhas94 arte96 conto98 classificados

janeiro 2012

n.191

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6 | janeiro De 2012

isaac KlabinLi com atenção o trabalho excelente de Carlos Haag ao entrevistar Isaac Kla-bin, presidente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), criada por este intelectual e empresário durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92. Klabin aborda com precisão analítica as defi-ciências do desenvolvimento atual, seus efeitos negativos sobre o meio ambiente, sustentando o equívoco governamental que causa o desmatamento. Saliente-se a abordagem: “As camadas mais pobres poderão ser a alavanca do nosso modelo de desenvolvimento, fator do qual não se tem consciência”. Sua advertência: “Nenhuma atividade econômica ou am-biental pode existir sem considerar a inclusão social”. francisco j.b. sá

salvador, ba

alencastroGostei demais da entrevista com o histo-riador Luiz Felipe de Alencastro (edição 188). Ele nos brindou com uma bela aula. A respeito da formação do Brasil, eu, que sou português e apaixonado pela história dos dois países, fiquei muito feliz com o conhecimento, cultura e pesquisas do professor, assim como gostei muito das perguntas de Mariluce Moura. Também gostei muito do texto “... E a América do Sul se fez”, mais um belo trabalho do Carlos Fioravanti.antonio amaro

são paulo, sp

casa de plásticoParabéns pela revista, sempre instigante. Bastante interessante e relevante a re-portagem intitulada “Casa de plástico” publicada no número 190. Pena que foi tão curta. fernando capovilla

instituto de psicologia/usp

são paulo, sp

inovaçãoParabéns pela maravilhosa Pesquisa FA-PESP. Lendo os artigos sobre inovação publicados pela revista, resolvi escrever sobre o potencial humano. O recurso mais valioso de um país é seu povo. Iden-tificar o potencial de cada cidadão desde a infância é fortalecê-lo para inovação e desenvolvimento. Em economia existe a “curva da diminuição do retorno”, ou seja, as pessoas trabalham até um certo ponto em direção crescente, mas depois esta mesma curva se torna decrescente. Acredito que se desenvolvermos o poten-cial de cada cidadão desde a infância a “curva da diminuição do retorno” iria se chamar “curva do aumento do retorno”, ou seja, uma curva sempre crescente. ana Maria Minucci

são paulo, sp

correçãoNa reportagem “Pioneirismo incessan-te” (edição 190), o cientista que viu os dados da pesquisa sobre nucléolos de Ricardo Brentani na sala de Isaias Raw foi o bioquímico alemão Fritz Lipmann, ganhador do Nobel de Medicina em 1953, e não o francês Gabriel Lippmann, ga-nhador do Nobel de Física de 1908.

cartas [email protected]

empresa que apoia a ciência brasileira

celso laferPresiDente

eduardo Moacyr Kriegervice-PresiDente

conselho sUperior

celso lafer, eduardo Moacyr Krieger, horÁcio lafer piva, herMan jacobus cornelis voorwald, Maria josé soares Mendes giannini, josé de souza Martins, josé tadeu jorge, luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, suely vilela saMpaio, vahan agopyan, yoshiaKi naKano

conselho técnico-adMinistrativo

carlos henrique de brito cruzDiretor científico

joaquiM j. de caMargo englerDiretor aDministrativo

conselho editorialcarlos henrique de brito cruz (Presidente), caio túlio costa, eugênio bucci, fernando reinach, josé arana varela, josé eduardo Krieger, luiz davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo leite, Maria hermínia tavares de almeida, Marisa lajolo, Maurício tuffani, Mônica teixeira

coMitÊ científicoluiz henrique lopes dos santos (Presidente), cylon gonçalves da silva, francisco antônio bezerra coutinho, joão furtado, joaquim j. de camargo engler, josé roberto parra, luís augusto barbosa cortez, luis fernandez lopez, Marie-anne van sluys, Mário josé abdalla saad, paula Montero, sérgio queiroz, wagner do amaral, walter colli

coordenador científicoluiz henrique lopes dos santos

diretora de redação Mariluce Moura

editor chefe neldson Marcolin

editores execUtivos carlos haag (Humanidades), fabrício Marques (Política), Marcos de oliveira (Tecnologia), Maria guimarães (Edição on-line), ricardo zorzetto (Ciência)

editores especiais carlos fioravanti, Marcos pivetta

editores assistentes dinorah ereno, isis nóbile diniz (Edição on-line)

revisão Márcio guimarães de araújo, Margô negro

editora de arte laura daviña

arte ana paula campos, Maria cecilia felli

fotógrafos eduardo cesar, leo ramos

colaboradores ana lima, andré serradas (Banco de imagens), catarina bessell, daniel bueno, drüm, estevan pelli, evanildo da silveira, helena Katz, helena sampaio, jair bonfim, joão baptista borges pereira, igor zolnerkevic, Mariana coan, salvador nogueira, sheila goloborotko, yuri vasconcelos

é proibida a reprodUção total oU parcial de textos e fotos seM prévia aUtorização

para falar coM a redação (11) [email protected]

para anUnciar (11) 3087-4212 [email protected] assinar (11) 3038-1434 [email protected]

tirageM 39.100 exemplaresiMpressão plural indústria gráficadistribUição dinap

gestão adMinistrativa instituto unieMp

pesqUisa fapesp rua joaquim antunes, no 727, 10o andar, cep 05415-012, pinheiros, são paulo-sp

fapesp rua pio Xi, no 1.500, cep 05468-901, alto da lapa, são paulo-sp

secretaria de desenvolviMento econôMico, ciência

e tecnologia governo do estado de são paUlo

fundação de aMparo à pesquisa do estado de são paulo

issn 1519-8774

cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua joaquim antunes, 727, 10o andar - cep 05415-012, pinheiros, são paulo-sp. as cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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pesqUisa fapesp 191 | 7

revelações sobre uma estrela turbulenta

Mariluce Moura

diretora de redação

carta da editora

falamos de estrelas nesta primeira edição de 2012. Da Eta Carinae, uma estrela tão cheia de mistérios que, na verdade, são duas, a

Eta Carinae A e a Eta Carinae B – em termos mais precisos, um sistema estelar binário. Ela tornou-se objeto da reportagem de capa da Pes-quisa FAPESP porque uma equipe internacional de astrofísicos, alguns brasileiros à frente, propôs uma explicação consistente para uma das ques-tões mais intrigantes que a cercam. De forma sintética, a questão é: por que a cada cinco anos e meio a estrela enigmática deixa de brilhar por aproximadamente 90 dias, aos olhos de um ob-servador na Terra, se o eclipse das emissões de raios X provocado pela passagem da Eta A dura apenas 30 dias?

A resposta agora proposta pelo grupo liderado por Augusto Damineli e Mairan Teodoro, ambos da Universidade de São Paulo (USP), é que, ao eclipse já razoavelmente conhecido, sucede um segundo fenômeno, ou seja, um colapso, uma per-da do equilíbrio na zona de colisão dos ventos das duas estrelas que estende por mais dois meses o “apagão” da Eta Carinae. Há, em consequência, a manutenção da perda de brilho na faixa dos raios X e uma emissão no espectro do ultravio-leta. Justamente aí, nesse clarão do ultravioleta, está uma grande novidade, ressalta o editor es-pecial Marcos Pivetta, autor da reportagem que busca a partir da página 20 expor com clareza os novos achados científicos sobre a Eta Carinae. A equipe de astrofísicos chegou a essa e a outras propostas analisando dados registrados por cinco telescópios terrestres situados na América do Sul, durante o mais recente apagão da estrela geniosa, entre janeiro e março de 2009.

De zonas remotas do Universo para o que te-mos de mais próximo, o nosso corpo, esta edição exigiu igualmente esforço dos jornalistas para tornar mais claros, em linguagem corrente, re-sultados científicos extremamente intricados. Falo isso a propósito, por exemplo, da reporta-

gem sobre a relação entre o funcionamento do timo e a emergência de doenças autoimunes em portadores da síndrome de Down. O timo, por si só, é uma glândula pouco investigada e muito mal conhecida, inclusive por médicos e outros profissionais da saúde. Poucos sabem que esse órgão que se encontra atrás do osso externo e à frente do coração – e que nos recém-nascidos ocupa quase toda a extensão do peito – é uma es-pécie de campo avançado de treinamento de um grupo importante de células de defesa. Porque é aí que elas, os linfócitos T, aprendem a distinguir o que integra o próprio corpo dos organismos estranhos que precisam ser eliminados, em prol da preservação desse corpo. O problema é que esse aprendizado não é muito bem-sucedido em pessoas com síndrome de Down e a reportagem do editor de ciência, Ricardo Zorzetto, e do nosso colaborador Francisco Bicudo, explica por quê, a partir da página 50.

Diferentemente do que se passa nos âmbitos antes abordados da ciência, o desafio nas huma-nidades é menos o de atribuir clareza a achados e descobertas relevantes, mas obscuros para os leigos no assunto, e muito mais o de expor os fundamentos científicos do que à primeira vista é constatação ou discussão corriqueira de algum aspecto do cotidiano da vida social. Assim, parece estranho que se deva aplicar uma metodologia científica à questão sobre o quanto as decisões da política externa brasileira têm impacto na rea-lidade interna do país. Ou à discussão a respeito de qual o papel do Legislativo sobre a diplomacia brasileira, se é que ele tem algum. Mas é exata-mente o arcabouço científico que sustenta o avan-ço do conhecimento nessas questões pertinentes à ciência política que se entremostra na repor-tagem elaborada pelo editor de humanidades, Carlos Haag, sobre as relações entre o Itamaraty e o Congresso, a partir da página 74.

Boa leitura e um excelente 2012 a todos os leitores!

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8 | janeiro De 2012

neldson Marcolin

faculdade

de Medicina da usp

faz 100 anos

prédio da faculdade na fase final de construção, em 1931. na parte de baixo da foto, os túmulos do cemitério do araçá

MeMória

ao projetar uma escola de formação de médicos para o estado de São Paulo, em 1912, o grupo reunido em torno de Arnaldo Vieira de Carvalho pensava em fazer algo diferente. O objetivo era

ter um currículo moderno, diferente das três primeiras faculdades de medicina do país, a de Salvador, a do Rio de Janeiro e a de Porto Alegre. Planejou-se um curso preliminar de um ano e outro geral de cinco anos, com 28 disciplinas. Diretor nomeado da nova escola, Vieira de Carvalho orientou o ensino para que tivesse base científica e experimental, com ênfase em pesquisa e estudos laboratoriais. Nas duas outras faculdades o modelo era de aulas teóricas com destaque para clínica. Cem anos depois, o projeto mostrou-se acertado ao tornar a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) uma fonte contínua não só de bons médicos, mas também de pesquisas científicas sobre o campo médico e de saúde.

O começo foi difícil. Um ano antes da fundação da então Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo surgia a Universidade Livre de São Paulo, de cunho privado,

Um projeto inteligente

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colocou entre as 15 melhores do mundo. “Hoje o ranking da Universidade de Xangai, um dos vários existentes, a classificou em 76º lugar; é o único curso brasileiro entre os Top 100”, diz José Otávio Costa Auler Júnior, vice-diretor em exercício da faculdade. “Queremos ficar entre as 50.” Nesses 100 anos, o corpo docente foi responsável por avanços científicos pioneiros, como o primeiro transplante de rim da América Latina (1965), o primeiro de fígado da América do Sul (1968) e o segundo de coração do mundo (1968), entre muitos. Em 1975 foram criados 62 Laboratórios de Investigação Médica (LIM) nos quais hoje se produzem 4% da pesquisa nacional (ou 14% na área médica do país).

Para o futuro, Costa Auler revela três objetivos. “O primeiro é promover a maior integração dos grupos de pesquisa com pesquisadores do exterior de modo a aumentar o impacto da ciência produzida”, diz. O segundo é estruturar novos modelos educacionais para tornar os cursos mais eficientes, buscando a excelência no ensino. E, por último, desenvolver estratégias voltadas para alguns dos problemas de saúde pública das grandes cidades, como poluição, álcool e drogas.fo

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arnaldo vieira de carvalho lê discurso no lançamento da pedra fundamental para a construção do prédio, em 1920, ano de sua morte

aula prática do professor carmo lordy, em pé de braços cruzados, no prédio da rua brigadeiro tobias. foto feita entre 1914 e 1920

que nada tem a ver com a USP criada em 1934. A instituição nasceu na esteira da lei Rivadávia Correia, de abril de 1911, que permitia a organização do ensino particular no Brasil. Esta universidade particular, comandada por Eduardo Guimarães, começou com cinco cursos, um deles de medicina. Mas não durou muito – em dezembro de 1912 Vieira de Carvalho conseguiu a aprovação do governo paulista para a faculdade oficial. Esta medida, aliada a outras – como a oposição da elite médica local, que considerava a iniciativa privada de má qualidade –, levou o empreendimento ao fracasso em 1917.

O projeto da faculdade oficial teve dificuldade em conseguir dinheiro regular do governo. Nos primeiros anos funcionava em dependências da Escola Politécnica, da Escola de Comércio Álvares Penteado e de um prédio alugado na rua Brigadeiro Tobias. As aulas começaram em 1913 com apenas três professores: Carvalho, Celestino Bourroul e Edmundo Xavier.

Aos poucos se agregaram a eles Guilherme Bastos Miward, os franceses Emille Brumpt e Lambert Mayer e os italianos Alfonso Bovero, Alexandre Donatti e Antonio Carini, entre muitos outros.

“Em 1916 veio o apoio da Fundação Rockefeller, que demorou a se efetivar por razões políticas”, conta o historiador André Mota, coordenador do Museu Histórico da FMUSP. “A contrapartida exigida pelos americanos era a construção de um hospital de ensino, que até então funcionava na Santa Casa.” Vieira de Carvalho morreu em 1920, aos 53 anos, e o acordo com a Rockefeller só saiu do papel em 1926. Em 1931 foi inaugurado o prédio atual da faculdade, custeado pela fundação, e três anos depois surgiu a USP. A inauguração do Hospital das Clínicas ocorreu em 1944. Junto com ele começam se estruturar os institutos especializados. Hoje há oito deles.

O reconhecimento internacional de excelência da faculdade ocorreu em 1951, quando a Sociedade Americana de Medicina a

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10 | janeiro De 2012

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assista ao vídeo:

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até agora os geólogos supunham que rochas avistadas no parque do varvito (itu, são paulo) e na região de rio do sul (santa catarina) foram depositadas anualmente há 290 milhões de anos. Mas uma equipe de pesquisadores mostra em quatro artigos que a deposição dessas rochas não teve essa periodicidade e, em paralelo, que o clima no período da glaciação de gondwana (continente que reunia américa do sul, África, oceania, antártida, índia e península arábica) teve fases mais quentes do que se imaginava.

as crianças que não receberam a vacina bcg contra a tuberculose, no primeiro mês de vida, deveriam ser vacinadas durante a idade escolar, indica estudo feito no brasil e publicado na The Lancet Infectious Diseases. os autores do estudo se basearam em dados de uma pesquisa que há nove anos acompanha crianças de salvador e de Manaus, comparando os custos de tratamento dos casos de tuberculose com o investimento na vacinação das crianças e a consequente proteção que elas ganharam.

exclusivo no site

podcast

A importância do Atlântico Sul na formação social e cultural do Brasil é abordada pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro

vídeo do mês

Paleontólogo Herculano Alvarenga revela os mistérios da trajetória evolutiva da ave cigana

nas redes

everton lima freitas_ o novo projeto gráfico da revista ficou muito bom. parabéns! jackson itikawa_ as dentaduras e os banguelas estão com os dias contados!!! (Pergunte aos pesquisadores) charles carneiro dos santos_ bom seria se depois de toda esta trabalheira científica os culpados fossem condenados e as vítimas compensadas. sonho!!! (Ossos que falam)

química ensinada_ esse ano de 2011 vai deixar saudades! viva o ano internacional da química 2011. zul carvalho_ já desejei ser física caçadora de tornados, atuar na física médica, mas agora estou encantada com essa veia cultural da física. (Segredos debaixo da tinta) @rafaelroesler_ @pesquisafapesp @stevensrehen Meus dois papers mais citados são em coautoria com o brentani. admirava-o muito como cientista e pessoa. @puc_sp_ independência e ousadia, brentani promoveu a biologia molecular e fortaleceu a pesquisa sobre o câncer no brasil.

camadas de rocha no parque do varvito

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pesqUisa fapesp 191 | 11

como atravessar uma enxurrada ou um lugar alagado, as bactérias presentes na água podem causar infecção na própria pele ou em outras partes do corpo ao entrar no organismo por meio de um ferimento. a leptospirose é um exemplo. as bactérias, responsáveis pela doença e eliminadas pela urina de ratos, podem permanecer na água. ao ter contato com essa água contaminada, ferimentos na pele podem facilitar a entrada de bactérias do gênero Leptospira no organismo. de uma maneira geral, mesmo nesses casos, uma pele íntegra costuma evitar doenças.

as bactérias contidas em uma gota de água suja acabam aderindo à parte do corpo onde caíram. por exemplo, se o respingo caído de uma marquise for no cotovelo, as bactérias não andarão até a mão. além disso, é muito pouco usual uma única gota de água suja gerar problemas para a saúde. a pele é um ótimo sistema de defesa. quando está íntegra, sem ferimentos ou cortes, uma gota suja não causa problema algum, as bactérias nem conseguem invadir o nosso organismo e morrem. neste caso, higienizar a parte do corpo com água e sabão basta para evitar problemas à saúde. em outras situações,

como funcionam as telas de toque

A tecnologia touch screen integra sensores na tela e softwares para interpretar os comandos do usuário. Os dispositivos mais populares utilizam três tecnologias: resistiva, capacitiva e acústica. Nas telas resistivas se utiliza uma caneta (stylus) e elas funcionam com auxílio de duas placas finas transparentes sobrepostas, que não se tocam mas deixam passar uma pequena corrente elétrica. Ao se tocar em um determinado ponto na tela com o dedo ou uma stylus as placas se encostam e a mudança no campo elétrico é percebida. Em seguida as coordenadas do ponto são registradas e associadas a um comando.

As telas capacitivas possuem uma fina camada de um material com capacidade de armazenar potencial elétrico como, por exemplo, o óxido de índio-estanho. Como o corpo humano é condutor de eletricidade, ao tocarmos no dispositivo com o dedo causamos uma distorção no campo eletrostático da tela, a qual é percebida com a mudança da capacidade de armazenamento do ponto tocado e cujas coordenadas são registradas pelo sistema. Ao contrário das resistivas que funcionam à base da pressão, nas telas capacitivas não é possível usar luvas ou outro material não condutor.

Nas acústicas são usadas ondas ultrassônicas que cruzam a sua superfície. Quando a tela é tocada, uma parte da onda eletromagnética é absorvida e a mudança da oscilação permite registrar a coordenada do ponto tocado.

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Mande sua pergunta para o e-mail [email protected], pelo facebook ou pelo twitter @pesquisafapesp

reinaldo saloMão professor titular de infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina da Unifesp

farid nourani do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp de Rio Claro

quando uma gota de água suja seca na pele, as bactérias que estavam dentro dela “andam” para outras partes do corpo?

caru Marin [via facebook]

pergunte aos pesquisadores

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12 | janeiro De 2012

Dados e projetos

teMáticosMecanismos neurais envolvidos na quimiorrecepçãopesquisador responsável: eduardo colombari instituição: fac. de odontologia de araraquara/unespprocesso: 2009/54888-7vigência: 01/11/2011 a 31/10/2015tema: avaliar a participação do núcleo retrotrapezoide (nrt) nas respostas ventilatórias e cardiovasculares à hipercapnia (aumento do co2 no sangue arterial) de ratos não anestesiados após lesões seletivas. as evidências do nrt como quimiorreceptor central foram obtidas em experimentos sob anestesia. o melhor entendimento desta região poderá ajudar na compreensão de situações fisiopatológicas.

técnicas modernas em espectrometria de massas e desenvolvimento de novas aplicações em ciências: química, bioquímica, materiais, forense, medicina, alimentos, farmácia e veterináriapesquisador responsável: Marcos nogueira eberlininstituição: inst. de química/unicampprocesso: 2010/51677-2vigência: 01/11/2011 a 31/10/2015tema: consolidar e ampliar a atuação do laboratório thoMson de espectrometria de Massas como líder no desenvolvimento e uso de técnicas modernas em

teMáticos e joveM pesqUisador recentesprojetos contratados entre novembro e dezembro de 2011

espectrometria de massas e abrir também novas áreas de atuação, como as que envolvem pesquisas em hormônios, química forense e caracterização de bactérias em matrizes diversas.

ictp - instituto sul-americano para pesquisa fundamental: um centro regional para física teóricapesquisador responsável: nathan jacob berkovits instituição: ift/unespprocesso: 2011/11973-4vigência: 01/12/2011 a 30/11/2016tema: o international centre for theoretical physics (ictp), em colaboração com a universidade estadual paulista (unesp), recentemente criou o ictp south american institute for fundamental research que será alojado no prédio do instituto de física teórica da unesp na cidade de são paulo. o novo instituto será um centro regional em física teórica para a américa do sul.

Mecanismos moleculares envolvidos na disfunção e morte de células beta pancreáticas no diabetes mellitus: estratégias para a inibição desses processos e para a recuperação da massa insular em diferentes modelos celulares e animaispesquisador responsável: antonio carlos boscheroinstituição: inst. de biologia/unicampprocesso: 2011/09012-6

vigência: 01/11/2011 a 31/10/2015tema: estudar os mecanismos envolvidos na perda da massa e funcionalidade insulares em diferentes modelos animais (desnutrição proteica, obesidade, dislipidemias e dM2) e os mecanismos envolvidos no aumento da massa das ilhotas em diversas etapas da vida (períodos intrauterino e neonatal e prenhez). apesar da enorme quantidade de trabalhos encontrada na literatura a esse respeito, os mecanismos moleculares subjacentes à redução ou aumento da massa de células beta, nas situações apontadas acima, não são totalmente conhecidos.

joveM pesqUisadorprodução de melatonina por células do sistema nervoso central em condições de injúriapesquisadora responsável: luciana pinato instituição: fac. de filosofia e ciências de Marília/unespprocesso: 2011/51495-4vigência: 01/12/2011 a 30/11/2015tema: estabelecer bases moleculares que promovem a produção de melatonina no sistema nervoso central (snc) e avaliar se a melatonina pode ser um dos agentes moleculares dos processos de defesa do snc.

caracterização da proteína s1pr1 hipotalâmica no controle da ingestão alimentar em roedores

pesquisador responsável: eduardo rochete ropelleinstituição: fca/unicampprocesso: 2011/09656-0vigência: 01/11/2011 a 31/10/2015tema: o hipotálamo é responsável pelo controle da ingestão alimentar e do gasto energético. proteínas hipotalâmicas controlam os sinais de saciedade. o objetivo do projeto será investigar os efeitos da proteína s1pr1 (sphingosine-1-phosphate receptor-1) neuronal no controle da ingestão alimentar em diversas situações, como o jejum, a anorexia do câncer, a obesidade e em resposta ao exercício físico.

caracterização populacional de abelhas das orquídeas (Apidae, euglossini) do estado de são paulo por morfometria geométrica de asas e variabilidade do dna mitocondrialpesquisador responsável: tiago Mauricio francoy instituição: each/uspprocesso: 2011/07857-9vigência: 01/12/2011 a 30/11/2015tema: estudar diversas populações de abelhas da tribo euglossini, coletados em várias localidades do estado de são paulo, de modo a avaliar a sua variabilidade populacional. a diminuição das populações de polinizadores é um problema global e diversos esforços estão sendo feitos para monitorar a biodiversidade das abelhas, sua conservação e uso sustentável.

bioenergia e etanol combustível

fonte: levantamento feito com o aplicativo Mapper, desenvolvido pela elabora consultoria (www.elabmapper.com.br)

país

1. estados unidos

2. japão

3. alemanha

4. coreia do sul

5. frança

6. canadá

7. dinamarca

8. reino unido

9. suíça

10. taiwan (china)

11. israel

país

12. austrália

13. holanda

14. china

15. bélgica

16. finlândia

17. itália

18. suécia

19. índia

20. brasil

21. cingapura

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patentes concedidas pelo uspto de 2001 a 2010 e que contêm os termos bioenergy ou ethanol & fuel ou bioethanol

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pesqUisa fapesp 191 | 13

liberdade de expressão e boa ciência

Má conduta sem segredo

boas práticas

A Noaa, agência federal norte-americana para meteorologia, oceanos, atmosfera e clima, divulgou em dezembro sua política de integridade científica, que chamou a atenção por garantir aos cientistas do órgão o direito de falar livremente com a imprensa. Em 2006, a agência foi impedida pelo Departamento do Comércio, ao qual é vinculada, de divulgar um relatório sobre o aquecimento global e seu impacto na frequência e na força dos furacões. A justificativa era que o relatório ficara “técnico demais”.

Na verdade, a questão dos efeitos negativos do aquecimento global era politicamente sensível, dada a resistência do governo de George W. Bush de tomar medidas para reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa. No mesmo ano, outra agência norte-americana, a Nasa, envolveu-se num caso semelhante de censura. Um funcionário do setor de relações públicas foi acusado de tentar restringir o acesso de jornalistas a James Hansen, o principal especialista em mudança climática da agência espacial norte-americana. Hansen afirmou à época que a campanha de censura começou após ter feito um discurso pedindo a rápida redução dos gases responsáveis pelo aquecimento global. Segundo o blog Careers, da revista Science, a política de integridade da Noaa afirma que os cientistas da agência “podem falar livremente à mídia e ao público sobre as descobertas científicas e técnicas com base em seu trabalho oficial”. E acrescenta que eles são “livres para apresentar pontos de vista, por exemplo, sobre assuntos políticos e gerenciais, que se estendam para além de suas

descobertas científicas, incorporando opiniões pessoais ou especializadas”. Isso, desde que deixem claro não estão falando em nome da agência. “Em nenhuma circunstância uma autoridade da Noaa pode pedir que cientistas suprimam ou alterem suas descobertas científicas.”

O documento da Noaa determina que as decisões do órgão sejam tomadas com base na “melhor ciência possível”. Estabelece regras para a declaração de conflito de interesses e cria instrumentos de proteção tanto para quem faz denúncias sobre má conduta científica de boa-fé como para pesquisadores inocentados no processo de investigação.

Três agências de apoio à pesquisa do Canadá decidiram mudar suas normas de confidencialidade para poder revelar publicamente os nomes de pesquisadores condenados em processos por má conduta científica. Os institutos canadenses de pesquisa médica (CIHR) e os conselhos de pesquisa em ciências naturais e engenharia (NSERC) e de ciências sociais e humanidades (SSHRC) vão exigir que pesquisadores contemplados com financiamentos assinem um termo de consentimento permitindo que seus nomes possam ser revelados em caso de violação das normas de integridade. “Acreditamos que a introdução de consentimento irá reforçar ainda mais a reputação do Canadá no tocante à conduta responsável na pesquisa”, disseram os presidentes dos três órgãos em um comunicado, de acordo com o site da revista Nature.

Como o Canadá tem leis de privacidade rigorosas, as agências têm sido acusadas de falta de transparência em episódios de má conduta. Recentemente, a NSERC não pôde divulgar os nomes de pesquisadores condenados por má conduta, incluindo-se um que declarou uma série de artigos fictícios em seu currículo, porque estavam protegidos pela lei. Esses nomes continuarão em sigilo, porque a mudança não é retroativa. Outra novidade é a exigência de que as instituições nomeiem comissões para investigar a má conduta “sem conflito de interesse, real ou aparente”, e que incluam “pelo menos um membro externo, sem afiliação atual com a instituição”. Essa exigência é mais específica do que as que vigoram em agências norte-americanas, que se limitam a regular o conflito de interesses.

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14 | janeiro De 2012

a multinacional farmacêutica novartis está abandonando uma linha de pesquisa que procurava novos tratamentos contra doenças do cérebro. segundo a revista Nature, a empresa vai fechar o laboratório de neurociência em basileia, na suíça, onde fica a sua sede. ela segue os movimentos da glaxosmithKline e da astrazeneca, do reino unido, que em 2010 fecharam suas divisões de neurociência. a novartis, contudo, promete lançar no futuro programas para estudar a genética das moléstias psiquiátricas e cognitivas, na esperança de identificar novas estratégias de tratamento. o desenvolvimento de drogas para doenças cerebrais passou a ser visto como uma

sem remédio no horizonte

atividade de altíssimo risco, depois que uma série de remédios experimentais fracassou após anos de testes clínicos. “as abordagens convencionais para criar drogas para a saúde mental não obtiveram resultados nos últimas duas décadas”, diz Ken Kaitin, diretor do centro tufts para o estudo do desenvolvimento de Medicamentos, em boston, Massachusetts. “as empresas vivem um dilema, pois a procura por medicamentos é crescente.” há uma boa quantidade de remédios baratos, entre antidepressivos e antipsicóticos, que agem sobre alvos conhecidos, como receptores de neurotransmissores. a busca de novos alvos esbarra no ainda limitado conhecimento sobre a biologia do cérebro.

sede da novartis, em basileia, suíça: fim do laboratório de neurociência

propriedade intelectual

o programa de apoio à propriedade intelectual (papi) da fapesp foi ampliado e passará a ter três modalidades de apoio – individual, institucional e capacitação –, de acordo com portaria que instituiu, no final de novembro, o regulamento do programa. na modalidade individual, serão apoiados pesquisadores e instituições de ensino e pesquisa ou pequenas empresas do estado de são paulo em questões relativas à gestão da propriedade intelectual gerada no âmbito de bolsas e auxílios financiados pela fapesp. na modalidade institucional, as instituições paulistas de ensino superior e pesquisa serão amparadas por meio do apoio ao registro e licenciamento de propriedade intelectual criada a partir dos resultados de pesquisas financiadas pela fundação. a modalidade capacitação apoiará o aprimoramento dos núcleos de inovação tecnológica (nits) das instituições de ensino e pesquisa do estado de são paulo. os nits são escritórios voltados para administrar a política de inovação das instituições e garantir que os resultados de suas pesquisas alcancem a sociedade. o papi foi criado em 2000 para proteger a propriedade intelectual e licenciar os direitos sobre os resultados de pesquisas apoiados pela fapesp. Mais informações sobre o programa estão disponíveis em www.fapesp.br/papi.

estratégias

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Software ajuda a usar água na agricultura de forma mais racional

plataforma de pesquisa oceanográfica na china

A China apresentou no final de novembro seu mais avançado navio de pesquisa oceanográfica. Com capacidade para levar 80 pessoas, o Kexue foi lançado no rio Yangtzé, na cidade de Wuhan, e vai realizar em 2012 sua primeira missão no Pacífico Oeste, com foco na influência

do oceano sobre o clima e o meio ambiente marinho. O navio mede 99,6 metros de comprimento e 17,8 metros de largura, e pesa 4.864 toneladas. Vai reforçar a capacidade de pesquisa oceanográfica e diminuir a diferença entre a China e as potências marítimas ocidentais,

para simular as mudanças do uso da terra

o instituto nacional de pesquisas espaciais (inpe) lançou o land use and coverchange (luccMe) – ferramenta de código aberto para a construção de modelos de mudança de uso e cobertura da terra. desenvolvido pelo centro de ciência do sistema da terra (ccst) do inpe, trata-se de uma extensão do ambiente de modelagemterraMe, resultado da parceria entre o instituto e a universidade federal de ouro preto. de acordo com o inpe, o aplicativo permite simular diferentes processos de mudança de uso e

cobertura da terra, como desmatamentos, expansão da fronteira agrícola, desertificação, degradação florestal, expansão urbana e outros processos em diferentes escalas e áreas de estudo. uma das aplicações desse tipo de modelo é a construção de cenários de futuros alternativos. segundo ana paula aguiar, pesquisadora do inpe e líder do projeto, a proposta do luccMe é oferecer uma ferramenta na qual componentes já existentes podem ser combinados e estendidos para a criação de modelos.fo

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Manejo da irrigação

a faculdade de engenharia (fe) da universidade estadual paulista (unesp), campus de ilha solteira, disponibilizou um software para o manejo da água utilizada na agricultura irrigada. o programa é resultado do projeto Modelagem da produtividade da Água em bacias hidrográficas com Mudanças de uso da terra, financiado pela fapesp e pela fundação de amparo à ciência e tecnologia do estado de pernambuco (facepe). de acordo com fernando tangerino hernandez, coordenador do projeto, o sistema pode ser aplicado

em todas as culturas. o desenvolvimento do software levou 10 meses e seus principais benefícios são estimar rapidamente a evapotranspiração, que é a perda de água do solo por evaporação e a perda de água da planta por transpiração. hernandez afirmou que a ferramenta foi desenvolvida pensando na simplicidade do uso. “um tutorial mostra como entrar com os dados a partir de uma planilha e, caso falte alguma variável, ela é estimada por rotinas internas”, disse à Agência FAPESP.

disse à agência Xinhua o diretor do projeto, Sun Song. Suas hélices, acionadas por motores elétricos, podem girar em qualquer direção horizontal, tornando o navio mais manobrável do que se tivesse hélice fixa e sistema de leme. Com um laboratório de 360 metros quadrados, está apto para receber uma série de instrumentos de pesquisa, da análise de sedimentos a experimentos sísmicos.

o navio Kexue promete dar impulso à pesquisa sobre mudanças climáticas e biodiversidade

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16 | janeiro De 2012

um grupo de pesquisadores da universidade de são paulo (usp) catalogou os genes de três importantes espécies de protozoários (Eimeria acervulina, E. maxima e E. tenella) causadoras da coccidiose aviária, doença que acomete o trato gastrointestinal das aves causando grandes prejuízos à criação (International Journal for Parasitology, janeiro 2012). em vez de sequenciar o genoma do organismo, o grupo de pesquisa liderado pelos professores alda Madeira e arthur gruber, do instituto de ciências biomédicas da usp, escolheu como alvo os rnas mensageiros, moléculas transcritas a partir do genoma que codificam as proteínas de um ser vivo.

os genes do causador da coccidiose aviária

a ascensão da groenlândia

os pesquisadores compararam os padrões de expressão gênica em seis diferentes estágios da vida do parasita e encontraram associações claras entre a posição desses estágios no ciclo de vida do protozoário e os seus respectivos perfis gênicos. o conhecimento dos genes transcritos e de seus padrões de expressão pode levar a um entendimento mais amplo dos mecanismos moleculares que controlam a via parasitária e, com isso, ao desenvolvimento de estratégias mais específicas de combate da doença, como uma nova geração de medicamentos ou a identificação de possíveis moléculas candidatas à composição de vacinas.

Mais um possível efeito do aquecimento global: o derretimento de 100 bilhões de toneladas de gelo que estavam sobre a metade sul da groenlândia durante o verão extremamente quente de 2010 no hemisfério norte fez com que partes do seu território se sobrelevassem até 20 milímetros, 5 a mais do que normalmente é registrado nos meses estivais. com menos peso em cima, as rochas que formam o solo da porção meridional da ilha ascenderam de forma excepcional. os dados foram coletados por uma rede de quase 50 estações gps espalhadas pela costa da groenlândia que monitora a resposta do terreno local à

diminuição da quantidade de gelo sobre a possessão dinamarquesa. “não há realmente outra explicação”, diz o pesquisador Michael bevis, da ohio state university, um dos envolvidos no projeto. “a subida anormal se correlaciona com os mapas de derretimento de gelo de 2010. onde o gelo derreteu por mais dias, a subida foi mais elevada.” no norte da ilha, onde o clima é muito frio e o derretimento mais raro, nenhuma estação mediu movimentação relevante da estrutura rochosa. os dados do estudo foram apresentados em dezembro num encontro em san francisco da união geofísica americana.

estação gps: menos gelo em 2010 fez rochas ao sul da ilha se elevarem até 20 milímetros

tecnociência

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criação de aves: doença ataca o trato gastrointestinal dos animais e causa prejuízos1

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a ascensão da groenlândia

castanha contra cárie

a adição de 10% de óleo de castanha-do-pará ou de um óleo mineral (parafina líquida) à composição das pastas de dente comerciais pode ser útil para prevenir ou controlar cáries e doenças periodontais. a conclusão é de um estudo feito por pesquisadores da pontifícia universidade católica de Minas gerais (Brazilian Oral Research, nov./dez. 2011). eles testaram durante 90 dias três pastas com formulações distintas em 30 pessoas. um grupo escovou os dentes com

o dentifrício disponível no mercado, sem qualquer alteração. outro usou a mesma pasta com óleo de castanha e um terceiro o dentifrício com óleo mineral. no final do experimento houve uma redução estatisticamente significativa de problemas associados à higiene bucal nos dois grupos que utilizaram pasta com óleos. com a modificação na composição, o dentifrício parece ser mais eficiente no combate a bactérias.

cérebro dita hora de parar exercício cansativo

Parte do cansaço muscular sentido durante um exercício físico extenuante é determinada pelo cérebro. Uma equipe de pesquisadores da Universidade de Zurique e da Escola Politécnica de Zurique (ETH) mostrou que a comunicação entre a ínsula – uma das regiões do córtex cerebral encarregada de sinalizar situações de perigo ao organismo, como

fome e dor – e a área associada à motricidade primária se intensifica à medida que o ritmo do pedalar numa bicicleta ergométrica se acelera e a fadiga aumenta (European Journal of Neuroscience, 21 de novembro). “Isso pode ser interpretado como uma evidência de que esse sistema neuronal não apenas informa o cérebro, mas também tem o efeito

cheiro de problema cardíaco

um biomarcador não invasivo consegue em sete minutos fazer o diagnóstico da gravidade do quadro de insuficiência cardíaca por meio da avaliação da acetona exalada pelo paciente. o projeto, que teve apoio da fapesp, começou a partir de uma observação do médico fernando bacal, do instituto do coração (incor) da universidade de são paulo (usp). ele observou que pacientes com grave insuficiência cardíaca exalavam um odor peculiar se estavam descompensados. em seguida, numa parceria

com o instituto de química da usp, desenvolveu um aparelho portátil para captar a substância exalada. “o ar coletado foi analisado no espectrômetro de massas e o composto foi identificado como acetona”, diz bacal. testes comparativos foram feitos com uma substância colhida no sangue chamada bnt, que é o padrão ouro de marcadores de insuficiência cardíaca. tanto o biomarcador como o aparelho portátil de coleta foram patenteados.

castanha-do-pará: adição de 10% do óleo vegetal na pasta de dente pode prevenir ou reduzir doenças bucais

de regular a atividade motora”, diz Lea Hilty, uma das autoras do estudo. Outro trabalho do grupo indica que, quando a comunicação entre a espinha dorsal e a área motora é temporariamente interrompida pelo emprego de um fármaco, a sinalização neuronal para suspender um exercício cansativo demora mais para ser disparada.

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18 | janeiro De 2012

trator a hidrogênio

no próximo verão europeu, na fazenda la bellotta, próximo a turim, na itália, uma propriedade que busca ser independente em termos de energia, vai ocorrer a estreia do trator nh2 movido a hidrogênio. o combustível gasoso será produzido na própria fazenda por meio da hidrólise da água. esse processo exige eletricidade, que já é obtida na propriedade por meio de energia solar ou biogás, produzidos com restos

agrícolas e estrume ou por meio da queima desses resíduos para gerar vapor e movimentar turbinas de geradores. o trator foi desenvolvido pela new holland em colaboração com o centro de pesquisa da fiat, empresa holding do grupo, e possui uma célula a combustível, equipamento que transforma o hidrogênio em energia elétrica dentro do veículo. além de ser autossuficiente, o nh2 emite apenas vapor-d’água.

exemplos de inovação

os vencedores do 14º prêmio finep de inovação tecnológica 2011 tiveram representantes de todas as regiões brasileiras. a categoria grande empresa ficou com a braskem, de são paulo, pela pesquisa e desenvolvimento em biopolímeros com foco no polietileno feito de cana-de-açúcar (ver em pesquisa fapesp nºs 142 e 177). a micro e pequena empresa vencedora foi a reason, de santa catarina, desenvolvedora de soluções para redes de transmissão de energia elétrica e equipamentos elétricos industriais. a média empresa foi a scitech, de goiás, especializada na fabricação de aparelhos e componentes médicos como o primeiro stent (dispositivo metálico que corrige e trata estreitamento de artérias) fabricado no brasil (ver em pesquisa fapesp n° 173). na categoria destinada a instituições científicas

e tecnológicas, o ganhador foi o centro de informática da universidade federal de pernambuco pela atuação em pesquisa dentro de várias áreas da computação em parcerias com outras instituições e empresas. o troféu tecnologia social foi para a associação dos trabalhadores agroextrativistas da ilha das cinzas, no amapá. eles desenvolveram uma armadilha que só recolhe camarões grandes, liberando os menores, contribuindo assim para manter os estoques naturais do crustáceo. a última categoria é a do inventor inovador, cujo prêmio foi atribuído ao físico vladimir jesus trava airoldi, pesquisador do instituto nacional de pesquisas espaciais (inpe), de são josé dos campos (sp), por ter desenvolvido uma ponta de diamante sintético para brocas odontológicas.

bactéria digere gramínea

Uma nova rota de produção de biocombustíveis foi desenvolvida por pesquisadores do Joint BioEnergy Institute (JBEI), do Departamento de Energia dos Estados Unidos. Eles extraíram açúcares do switchgrass, gramínea que cresce na América do Norte, com linhagens de bactérias Escherichia coli geneticamente modificadas. Elas digerem a

celulose e a hemicelulose da planta, que são pré-tratadas para se dissolverem com líquidos iônicos formados por solventes baratos e pouco danosos ao ambiente. As bactérias coletam os açúcares e os transformam em biodiesel, butanol (substituto da gasolina) e em pineno, composto precursor do combustível de aviação (PNAS, 28 de novembro).

o nh2 da new holland vai estrear em uma fazenda que produzirá o combustível

Switchgrass: opção para produção de biodiesel e gasolina

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a massa do bóson de higgs

finalmente surgiram os primeiros indícios experimentais da existência do bóson de higgs, a hipotética partícula responsável por conferir massa às demais partículas e um componente essencial do chamado modelo padrão, o arcabouço teórico desenvolvido pelos físicos nos últimos 50 anos para explicar o comportamento da matéria no nível submicroscópico. no dia 13 de dezembro, dois experimentos tocados por grupos independentes no large hadron collider (lhc) – o maior acelerador de partículas do mundo, situado no centro europeu de pesquisas nucleares (cern), em genebra – divulgaram resultados muito convergentes, quase idênticos: se de fato existir, o bóson de higgs deve ter uma massa em torno dos 125 gev

uma teia musical

a teia tecida por uma aranha e a música composta por um artista apresentam similaridades insuspeitas quando olhadas a nível nanométrico. segundo um estudo feito por pesquisadores do Massachusetts institute of technology (Mit), a estrutura básica de ambos os sistemas – um aminoácido no caso da teia e uma onda sonora no da canção – se relaciona de maneira equivalente à sua respectiva função (BioNanoScience, dezembro). da mesma forma que os tijolos químicos são capazes de conferir leveza e resistência mecânica aos fios da teia, o padrão repetitivo de notas e acordes cria uma tensão sonora capaz de captar a atenção do ouvinte.

o trabalho é um dos exemplos de uma nova metodologia matemática denominada log ontológico (ou olog), que fornece meios abstratos para classificar propriedades gerais de qualquer sistema, como um material, um conceito ou um fenômeno, e realçar relações inerentes entre sua estrutura e sua função. “o abismo aparentemente inacreditável que separa a teia da música não é maior do que o de dois campos distintos da matemática, como a geometria, com seus triângulos e esferas, e a álgebra, com suas variáveis e equações”, diz david spivak, um dos autores do trabalho e criador da nova metodologia.

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colisões de prótons no detector cMs: possível indício da existência do bóson de higgs

(giga-elétron-volts), equivalente a cerca de 130 prótons. “o dado não é conclusivo”, explica o físico experimental sergio novaes, da universidade estadual paulista (unesp), em entrevista ao programa de rádio Pesquisa Brasil. “Mas conseguimos restringir a faixa de massa em que o bóson deve existir.” novaes participa do grupo que trabalha no detector cMs, um dos dois (o outro é o atlas) encarregados de analisar os choques entre prótons em busca de partículas ainda não encontradas, como o bóson de higgs. até o final deste ano, os físicos esperam ter acumulado dados suficientes para dizer se a elusiva partícula de fato existe ou as evidências agora divulgadas não passaram de um falso alarme causado por uma flutuação estatística.

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Colapso de ventos estelares

prolonga apagão cíclico da

estrela Eta Carinae

A estrela Eta Carinae (quadrado pontilhado) fica a 7.500 anos-luz da Terra, na nebulosa de Carina n

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Mais do que um eclipse

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a natureza da brutal e periódica perda de luminosidade da enigmática estrela gigante Eta Carinae, que a cada cinco anos e meio deixa de brilhar por apro-ximadamente 90 dias consecutivos em

certas faixas do espectro eletromagnético, em espe-cial nos raios X, pode ter sido finalmente desven-dada por uma equipe internacional de astrofísicos comandada por brasileiros. O pesquisador Augusto Damineli e o pós-doutor Mairan Teodoro, ambos da Universidade de São Paulo (USP), analisaram dados registrados por cinco telescópicos terrestres situados na América do Sul durante o último apagão do astro, ocorrido entre janeiro e março de 2009, e colheram evidências de que esse evento literal-mente obscuro esconde, a rigor, dois fenômenos distintos embora entrelaçados — e não apenas um, como acreditava boa parte dos astrofísicos.

Primeiro, há uma espécie de eclipse das emis-sões de raios X desse sistema que, a rigor, é biná-rio, composto de duas estrelas muito grandes: a principal e maior, a Eta Carinae A, com cerca de 90 massas solares, e a secundária, dois terços me-nor e dez vezes menos brilhante, a Eta Carinae B. O bloqueio da emissão é causado pela passagem da estrela de maior em frente ao campo de visão de um observador situado na Terra. Esse fenômeno, já razoavelmente conhecido e estudado, dura cerca de um mês, não mais do que isso. Como explicar então os outros 60 dias de apagão? A resposta, se-gundo Damineli e Teodoro, reside na existência de um segundo mecanismo que prolonga a perda de brilho em raios X do sistema Eta Carinae.

Assim que termina o eclipse, as duas estrelas estão a caminho do periastro, o ponto mais pró-ximo entre suas órbitas, da ordem de 230 mi-lhões de quilômetros. Os ventos estelares da Eta Carinae maior, um jato de partículas que escapa permanentemente de sua superfície, passam a dominar o sistema binário, aprisionam os ven-tos estelares da estrela menor e os empurram de volta contra a superfície da Eta Carinae B. Nesse

momento, ocorre o que os astrofísicos chamam de colapso da zona de colisão dos ventos das duas estrelas, que até então estava em equilíbrio.

Em termos de emissão de luz, duas são as con-sequências do colapso dos ventos, uma proposi-ção teórica até agora nunca observada de fato: estender a duração, às vezes por mais dois meses, da perda de brilho na faixa dos raios X e — eis a grande novidade — promover uma emissão no espectro do ultravioleta. Ou seja, em meio ao apagão em raios X, há um clarão no ultravioleta, que até agora não havia sido reportado. “Os dois fenômenos estão misturados e criam um quadro complexo”, explica Damineli, que há mais de duas décadas estuda a Eta Carinae. “Se eles ocorressem em separado, seria mais fácil divisá-los.”

O novo trabalho dos brasileiros fornece uma ex-plicação mais detalhada da dinâmica de mecanismos envolvidos na cíclica e temporária redução de lu-minosidade da Eta Carinae, a estrela mais estudada da Via Láctea depois do Sol e uma das maiores e mais luminosas que se conhece. De forma esque-mática, o primeiro mês dos costumeiros 90 dias de apagão em raios X poderia ser creditado na conta do eclipse e os dois meses seguintes, ao mecanis-mo de colapso dos ventos estelares. As evidências apontam nesse sentido, mas as coisas não são tão simples assim.

Se o apagão tem data para começar, parece nem sempre ter para terminar. O último, por exemplo, iniciou-se em 11 de janeiro de 2009, como previsto, mas se prolongou por somente 60 dias, um mês a menos do que o esperado. “Não há necessaria-mente dois apagões iguais”, afirma Teodoro. “O eclipse parece se estender por cerca de 30 dias, mas o processo de colapso dos ventos estelares tem duração variável.” Aparentemente, esse segundo fenômeno pode durar algo entre 30 e 60 dias.

Esse cenário intrincado foi descrito em detalhes num artigo aceito para publicação no Astrophysi-cal Journal (ApJ). Além de Damineli e Teodoro, que são os principais autores do estudo, o traba-

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22 | janeiro De 2012

lho é assinado por outros 24 pesquisadores do Brasil, América do Sul, Europa, Estados Unidos e Austrália. Dados obtidos no Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica (Soar), situado em Cerro Pachón, nos Andes chilenos — iniciativa da qual o Brasil é um dos sócios e um dos mais potentes telescópios usados no estudo —, foram funda-mentais para registrar indícios dos fenômenos envolvidos no apagão da Eta Carinae. Damineli é o coordernador de um projeto temático da FA-PESP que permitirá a instalação no Soar de um espectrógrafo de alta resolução, o Steles.

MoribUnda, explosiva e casadaUm dos corpos celestes mais fascinantes da Via Láctea, a Eta Carinae está situada a 7.500 anos- -luz da Terra, na constelação austral de Carina, à direita do Cruzeiro do Sul. Nas classificações dos astrofísicos, aparece como uma estrela su-pergigante da raríssima classe das variáveis lu-minosas azuis que hoje contabiliza umas poucas dezenas de membros, mas que deve ter sido co-mum no início do Universo. É um objeto colossal e longínquo, não visível a olho nu, embora um observador treinado possa localizá-lo nas noites de inverno ou outono com um bom binóculo. O diâmetro da estrela principal do sistema é igual à distância que separa a Terra do Sol. Sua lumi-nosidade é ainda mais impressionante, aproxi-madamente 5 milhões de vezes maior do que a do Sol. Quando sofre seu cíclico apagão a cada cinco anos e meio, deixa de emitir, nas faixas de raios X, ultravioleta e rádio, uma energia equi-valente à de 20 mil sóis.

A Eta Carinae se torna uma estrela ainda mais especial por reunir outros predicados pouco co-muns. Com apenas 2,5 milhões de anos de exis-tência, cerca de 1.800 vezes mais nova do que o Sol, já é um astro moribundo e potencialmente explosivo. Deve literalmentte ir pelos ares na for-ma de uma hipernova a qualquer momento entre hoje e alguns milhares de anos. “Sua morte deverá produzir uma explosão de raios gama, o tipo de evento mais energético que ocorre no Universo”, afirma Damineli. Há meros 170 anos, a megaes-trela entrou aparentemente numa fase terminal e turbulenta, no auge de sua decadência. Desde então, como nos anos 1840 e em menor escala na década de 1890, sofre grandes erupções em que perde matéria da ordem de dezenas de massas solares e aumenta temporariamente seu brilho. Em 1843, a Eta Carinae se tornou visível a olho nu durante o dia por meses e quase tão lumino-sa quanto Sirius, a estrela mais brilhante do céu noturno, que se encontra muito próxima à Terra, a uma distância de no máximo 30 anos-luz.

Naquela época, também em consequência da erupção, a megaestrela ganhou um traço que di-ficulta ainda mais a sua observação: uma densa

nuvem de gás e poeira, no formato de dois lóbulos e denominada Homúnculo, passou a envolvê-la. “A Eta Carinae é um objeto particularmente difí-cil de ser estudado”, comenta o astrofísico Ross Parkin, da Universidade Nacional da Austrália, especialista em criar modelos computacionais que tentam reproduzir a interação dos ventos estelares de sistemas binários e coautor do artigo (uma de suas simulações foi usada no trabalho dos brasileiros). “É complicado vê-la, pois está imersa nesse envelope massivo de poeira.”

o nome de Damineli está ligado à história desse misterioso objeto celeste. Contra a opinião de muitos, teve a primazia de

defender, há quase 20 anos, a ideia de que a Eta Carinae era um sistema com duas estrelas, em vez de apenas uma, e que essa dupla de astros lumi-nosos sofria um apagão periódico. “A Eta Carinae não era apenas gorda, era também casada”, diz o professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, com seu talento para cunhar frases tão engraçadas quanto informativas. “Dou todo o crédito dessas desco-bertas ao Damineli, que foi o primeiro a perceber isso”, diz o veterano pesquisador Theodore Gull, do Goddard Space Flight Center, da Nasa.

O inesperado brilho em ultravioleta em meio ao apagão de raios X em 2009 foi detectado pelos brasileiros de forma indireta, por meio do regis-

90 sóissão necessários para igualar a massa da eta carinae

3 Mesesé a duração máxima da redução de brilho da estrela

vento da estrela menor

vento da estrela maior

zona de choque

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tro de uma fraca emissão numa linha espectral do gás hélio ionizado, a Hell4686 A. A medição de valores positivos para essa linha é uma espé-cie de assinatura espectral de que existe uma fonte de raios ultravioleta no lugar observado. “O sinal do hélio ionizado que vimos durante o apagão de 2009 é apenas 20% maior do que o limite capaz de ser medido por telescópios”, diz Damineli. “Mas ele equivale ao brilho de 10 mil sóis no ultravioleta extremo.” A captação do sinal também foi facilitada pelo cerco à Eta Carinae que Teodoro coordenou há doi anos, quando cinco telescópios observaram a estrela em distintos momentos. Tudo isso explica por que nos três apagões precedentes que também foram acompanhados pela comunidade científica (1992, 1997 e 2003) não haviam sido reportadas emissões nessa linha espectral.

Como há mesmo um clarão no ultravioleta durante o apagão em raios X, a melhor explica-ção para essa ocorrência é a queda dos ventos estelares da Eta Carinae sobre sua irmã menor. “Acho que há uma evidência muito boa de que isso ocorre por um pequeno período de tempo durante o periastro”, afirma o astrofísico ameri-cano Michael Corcoran, do Goddard Space Fli-ght Center, um dos coautores do trabalho com os brasileiros. Seu colega Nathan Smith, da Uni-versidade do Arizona, outro estudioso dessa es-trela, tem uma opinião semelhante. “Os autores

do estudo fizeram um trabalho muito cuidadoso e mediram a linha de emissão do hélio ionizado de uma forma consistente”, diz Smith, que não participa do artigo na ApJ. “A análise deles pa-rece mesmo apoiar a conclusão de que a zona de colisão dos ventos despenca temporariamente sobre a estrela secundária.”

Entender as interações entre os ventos este-lares das duas Eta Carinae, a maior e a menor, parece ser essencial para desvendar os fenôme-nos envolvidos no apagão. Trata-se de um jogo de empurra-empurra desigual, travado por dois contendores bem distintos. Também presente no Sol, o vento estelar é um mecanismo de perda de matéria na forma de um jato de partículas em geral eletricamente carregadas, como prótons e elétrons liberados por um gás ionizado. Por esse mecanismo, a grande Eta Carinae deixa escapar num único dia uma quantidade de massa equi-valente à da Terra. Seu vento é bastante denso e viaja a 600 quilômetros por segundo no espaço. “Ele é cinco vezes mais lento do que o vento da estrela secundária, que tem um caráter mais ra-refeito”, explica Teodoro.

Durante a maior parte do tempo, os ven-tos das duas Eta Carinae estão em equilí-brio. Eles se encontram num ponto entre

as duas estrelas e essa colisão produz ondas de choque que resultam em emissões de raios X. São essas emissões que deixam de ser captadas da Terra durante o apagão da estrela. Quando as duas estrelas se aproximam demais, o jogo de forças pende claramente para o astro maior. O vento da estrela principal, que funciona como uma parede em relação ao jato de partículas da estrela menor, arremessa de volta o vento da Eta Carinae B. É o tal colapso da região de choque dos ventos estelares, o fenômeno que leva a uma fugaz emissão de ultravioleta em meio ao apa-gão em raios X.

Segundo dados da astrofísica alemã Andrea Mehner, do Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile, o vento da estrela se tornou mais rarefei-to nos últimos 10 anos e diminuiu sua densidade em um terço. No entanto, as observações de Da-mineli não corroboram essa interpretação. Para ele, a densidade do vento da Eta Carinae princi-pal não variou muito na última década. Uma boa chance de colher mais informações sobre o tema polêmico será durante o próximo apagão da es-trela, marcado para começar em julho de 2014, quando muitos telescópios voltam a mirar seus espelhos para o astro gigantesco. n

órbita das estrelas companheirasa eta carinae é um sistema formado por duas estrelas dentro de uma nuvem de gás e poeira (à esq.). a zona de choque dos ventos estelares produz emissões de raios X (fig. 1). a cada 5,5 anos, quando as estrelas atingem o ponto mais próximo de suas órbitas (periastro), as

a dinâmica do apagão emissões deixam de ser visíveis (fig. 2). a estrela maior passa pelo campo de visão da terra e provoca um eclipse. a proximidade faz o vento da eta carinae a engolfar e empurrar o da estrela menor de volta (fig. 3). o fenômeno prolonga o apagão em raios X e causa uma emissão de ultravioleta

o projeto

steles: espectrógrafo de alta resolução para o soar nº 2007/02933-3

Modalidadeprojeto temático

coordenadoraugusto damineli – iag/usp

investiMentor$ 1.373.456,33 (fapesp)

artigo científicoTEODORO, M. et al. He II 4686 in Eta Carinae: collapse of the wind-wind collision region during periastron passage. The Astrophysical Journal. No prelo.

para a

terra periastro

a maior, a eta carinae a, tem 90 massas solares e a menor, a eta carinae b, 30

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fonte mairan teoDoro

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24 | janeiro De 2012

como observar luas, anéis

e até o magnetismo de planetas

fora do sistema solar

ainda é muito vaga a visão que temos dos planetas orbitando outras es-trelas além do Sol, os exoplanetas. Em vez de fotos maravilhosas, por enquanto temos que nos contentar

com as deduções do raio, da massa e das caracte-rísticas de suas órbitas, feitas indiretamente por meio dos dois métodos de detecção mais utiliza-dos – a técnica da velocidade radial, em que se mede como a influência gravitacional do plane-ta faz sua estrela oscilar, e o método do trânsito planetário, que registra a diminuição de lumi-nosidade causada pela passagem do planeta na frente de sua estrela. Foi pelo trânsito planetário, por exemplo, que o telescópio espacial Kepler, da Nasa, já identificou mais de 2 mil possíveis exoplanetas. Uma de suas descobertas, confir-mada por observações de outros telescópios, é o planeta Kepler 22b, com um raio apenas 2,4 vezes maior que o da Terra, orbitando a zona habitável de uma estrela muito parecida com o Sol, isto é, a uma distância tal que a temperatu-ra em sua superfície permitiria a existência de

nas redondezas de outros mundos

texto igor zolnerkevic

ilustração drüm

água líquida sobre ela (ver figura na página 27). Ninguém sabe, entretanto, se o Kepler 22b é um enorme planeta rochoso, uma super-Terra, ou se é um mini-Netuno – uma versão em miniatura dos gigantes gasosos do sistema solar.

Nossa imagem dos exoplanetas, entretanto, deve ficar muito mais rica nos próximos anos graças ao trabalho de astrofísicos teóricos que vêm propondo novas maneiras pelas quais seria possível observar no trânsito planetário os sinais de outras propriedades desses mundos. A astrofí-sica Adriana Válio, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, e seu aluno de douto-rado Luis Ricardo Tusnski, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em São José dos Campos, foram os primeiros a determinar qual deve ser o tamanho mínimo de luas e anéis em torno de planetas extrassolares para que sejam detectáveis pelo Kepler e pelo telescópio espacial Corot, da Agência Espacial Europeia, que também utiliza o método de trânsito planetário e conta com a participação de pesquisadores brasileiros. Já uma equipe coordenada pela astrofísica brasileira Ali-

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astrofísica

ne Vidotto, da Universidade de Saint Andrews, na Escócia, descobriu que o trânsito planetário pode ser usado em certas condições para medir o campo magnético de um exoplaneta.

Esses trabalhos de ponta feitos por brasilei-ros contribuem de uma forma ou de outra para avançar a busca por um exoplaneta capaz de su-portar a vida como nós a conhecemos. Embora a maioria dos mais de 700 planetas extrassolares cuja descoberta já foi confirmada sejam gigan-tes gasosos, tão grandes ou maiores que Júpiter, aqueles localizados nas zonas habitáveis de suas estrelas poderiam ter luas rochosas grandes o suficiente para reterem uma atmosfera por bi-lhões de anos e assim abrigarem oceanos cheios de vida. “Se o Kepler 22b tivesse uma lua do ta-manho de Marte, por exemplo, ela seria habitá-vel”, diz Adriana. “Outro fator importante que permite que um planeta seja habitável é o seu campo magnético”, explica Aline. “O campo fun-ciona como um escudo protetor, impedindo que as partículas de alta energia vindas da estrela desgastem a sua atmosfera.”

lUas ocUltasDesde 2003, Adriana desenvolve um modelo com-putacional para estudar como as manchas estelares – o fenômeno análogo ao das manchas que surgem na superfície do Sol – interferem na curva de luz do trânsito planetário. Em 2009, Tusnski, então seu aluno de mestrado, decidiu adaptar o modelo para simular o trânsito de um planeta com uma lua. Outros pesquisadores haviam proposto antes detectar luas por meio da perturbação que elas causam no movimento do planeta, mas observar isso exigiria acompanhar a variação do brilho da estrela por um tempo maior do que os telescópios costumam fazer. O modelo dos brasileiros mos-trou que isso era desnecessário. Se uma lua fosse grande o suficiente, um sinal inconfundível de sua presença surgiria na curva de luz do trânsito pla-netário na forma de pequenos “degraus”.

No entanto, as curvas de luz obtidas pelo Ke-pler e o Corot não são lisas como as dos mode-los, pois o brilho das estrelas não é constante, flutuando erraticamente, entre outros motivos, pela aparição e sumiço de manchas estelares.

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“A coisa é ainda mais complicada porque há cer-to ruído no instrumento que gera uma incerteza na medida”, explica Tusnski. Os “degraus” indi-cando a presença das luas precisariam, portan-to, ser identificados em meio ao ruído criado por essa variação. Mesmo assim, em um artigo publicado em dezembro na revista Astrophysi-cal Journal, Tusnski e Adriana mostraram por meio de simulações dessas flutuações que seria possível distinguir nos dados do Corot luas 1,3 vez maiores do que a Terra, enquanto nos dados do Kepler poderia haver evidências de satélites tão pequenos quanto a nossa Lua. Tusnski já começou a buscar por esses sinais nos dados. “A aplicação dessa ferramenta pode resultar na descoberta do primeiro satélite natural em exo-planetas”, afirma o especialista em dinâmica planetária Othon Winter, da Unesp. “Uma das grandes vantagens desse trabalho é a facilidade de aprimorar o modelo ( já utilizado), incluindo manchas estelares e mais luas.”

embora a maior lua do sistema solar, Gani-medes, em Júpiter, tenha um tamanho um pouco menor que a metade da Terra, Winter,

junto com Rita Domingos e Tadashi Yokoyama, ambos também da Unesp, calcularam em um ar-tigo publicado em 2006 na revista Monthly Noti-ces of Royal Astronomical Society (MNRAS) que exoplanetas semelhantes a Júpiter orbitando na

zona habitável de estrelas do porte do Sol poderiam ter satélites do tamanho da Terra ou maiores. “Há uma expectativa crescente de que a detecção de luas será feita em breve, por causa do tremendo volu-me de dados esperando para ser analisado”, diz o astrônomo Darren Willia-ms, da Universidade Esta-dual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, que tam-bém demonstrou recentemente como exoplane-tas gigantes gasosos poderiam ter luas grandes. “Suspeito que a maioria dos planetas detectados pelo Kepler tenha luas e uma fração delas seja maior que Marte.”

Adriana e Tusnski também foram os primeiros a determinar como a presença de anéis ao seu redor dos exoplanetas afetaria a curva de luz do trânsito planetário. Seu modelo mostrou que o efeito dos anéis seria suavizar as bordas do “poço” da curva de luz, bem como torná-lo mais fundo. Realizan-do uma análise semelhante àquela das luas, eles mostraram que um sistema de anéis como o de Saturno pode ser detectável pelo Kepler, enquanto os anéis só seriam visíveis pelo Corot se fossem pelo menos 50% maiores que os de Saturno.

técnica do trânsito foi empregada para identificar mais de

2 mil possíveis planetas extrassolares

o método do trânsito planetário mede a diminuição de brilho de uma estrela quando um objeto celeste passa em sua frente. até agora foi usado para procurar mundos fora do sistema solar. Mas alguns astrofísicos teóricos acreditam que a

técnica também pode ser empregada para estudar parâmetros desconhecidos dos exoplanetas, como a possível existência de luas, de anéis e de um campo magnético. de acordo com características do mundo em trânsito, o método geraria um gráfico com uma

curva de luz particular. planetas grandes produzem curvas maiores que os pequenos. se houver uma lua, podem aparecer pequenos “degraus” na curva. o efeito dos anéis seria suavizar as bordas do “poço” da curva de luz e torná-lo mais fundo

teMpo

curva de luz indica tipo de planetabr

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o projeto

investigation of high energy and plasma astrophysics phenomena: theory, observation, and numerical simulations – nº 2006/50654-3

Modalidadeprojeto temático

coordenadorelisabete Maria de gouveia dal pino - iag/usp

investiMentor$ 366.429,60 (fapesp)

Pequeno grande Com lua Com anéis

estrela

Page 25: Pesquisa Fapesp 191

pesqUisa fapesp 191 | 27

vistas Astrophysical Journal Letters, MNRAS e MNRAS Letters, detalhando um novo método, mais indireto mas promissor, de medir campos magnéticos de exoplanetas. De fato, a equipe afirma ter conseguido estimar a intensidade do campo magnético do exoplaneta Wasp 12b, des-coberto em 2008 pelo telescópio Super Wasp, instalado em La Palma, uma das ilhas do arqui-pélago espanhol das Canárias.

Quase duas vezes maior que Júpiter, o Wasp 12b orbita sua estrela a uma distância 16 vezes menor que a distância entre o Sol e Mercúrio, dando uma volta completa em torno dela a cada 26 horas, à velocidade estupenda de cerca de 300 quilômetros por segundo. Observações do trânsito planetário com o telescópio Hubble mostraram que a curva de luz da estrela começa a cair antes no comprimento de onda da luz ultravioleta que no da luz visível. Aline e sua equipe acreditam que esse efeito seja provocado pela formação de um “arco de choque” na frente do planeta, criado pelo fato de ele estar se movendo a uma velocida-de maior que a da propagação do som num meio permeado por partículas emitidas pela estrela, o chamado vento estelar.

De acordo com o modelo dos pesquisadores, as partículas do vento estelar estariam se cho-cando contra o campo magnético do Wasp 12b, formando na sua frente uma região em forma de arco que seria transparente à luz visível, mas opaca à ultravioleta. Medindo a diferença entre o início do trânsito nos dois comprimentos de onda, a equipe conseguiu estimar a distância entre o planeta e o arco de choque, e a partir daí inferir a intensidade do campo magnético do planeta, que deve ser menor que 24 Gauss, um valor comparável ao campo nos polos de Júpiter, que varia entre 10 e 14 Gauss, e é quatro vezes maior que o da Terra.

Para guiar novas observações do fenômeno, a equipe analisou uma série de exoplanetas já descobertos por trânsito planetário, verificando dados como a distância dos planetas a suas es-trelas e a intensidade dos ventos estelares. “Fi-zemos uma lista dos exoplanetas que seriam os melhores candidatos a ter um arco de choque observável”, diz Aline. Entre eles estão vários dos mais próximos da Terra descobertos pelo Super Wasp e pelo Corot.

“Aline e seus colegas encararam um problema astrofísico muito difícil”, comenta a especialista em interações magnéticas entre estrelas e plane-tas Evgenya Shkolnik, do Observatório Lowell, no Arizona, nos Estados Unidos. “Seria extrema-mente valioso se pudéssemos medir ao menos o campo magnético de alguns dos exoplanetas mais próximos de suas estrelas, os chamados Júpiteres quentes, para distinguir diferenças estruturais entre eles.” n

o próximo passo dos pesquisadores será adaptar seu modelo para identificar o sinal dos anéis de exoplanetas extremamente

próximos de suas estrelas. Nesse caso, a atração gravitacional da estrela é capaz de entortar os anéis. Segundo Tusnski, eles poderiam usar es-sa deformação para obter informações sobre as densidades dos núcleos dos exoplanetas.

arcos de choqUe Também seria possível conhecer mais sobre o interior dos exoplanetas se os astrônomos con-seguissem detectar o campo magnético deles. Pesquisadores vêm buscando sinais desses cam-pos por meio de radiotelescópios. A ideia seria captar as ondas de rádio emitidas por partículas eletricamente carregadas disparadas pelas estre-las, quando elas fossem capturadas pelos campos magnéticos planetários – é o mesmo fenômeno que produz as auroras boreais na Terra. Mas to-das as buscas falharam até agora.

Desde 2010, Aline e seus colegas Moira Jar-dine, Chris tiane Helling, Joe Llama e Kenneth Wood, todos da Universidade de Saint Andrews, publicaram uma série de quatro artigos nas re-

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o menor exoplaneta situado no meio de uma zona habitável em torno de uma estrela parecida com o sol é o Kepler 22b. seu raio é 2,4 vezes maior do que o da terra. a estrela em torno da

qual o planeta extrassolar completa uma órbita a cada 289 dias é a Kepler 22. situada a 600 anos-luz da terra, ela é um pouco menor do que o sol. por isso, a zona habitável desse sistema,

onde está a zona habitável

Terra

Mercúrio

VênusMarte

Kepler 22b

Sistema solar

Sistema do Kepler 22

zona habitável

onde as temperaturas seriam compatíveis com a presença de água líquida e boas para o surgimento de vida, é um pouco mais próxima da estrela do que no caso do sol

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28 | janeiro De 2012

o segredo da visibilidade

Há sete anos o fisiologista Mauricio da Rocha e Silva trocou o laboratório pela redação. Às vésperas da aposen-tadoria na Universidade de São Paulo (USP) em 2004, decidiu que era hora

de mudar de ringue e encarar novos problemas pelos quais valesse a pena se bater. Aceitou o desafio proposto pela Faculdade de Medicina de recriar a revista da casa de modo a transformá- -la em uma publicação científica visível. Além das reformas necessárias para torná-la objeto de de-sejo dos pesquisadores da área médica, o mais im-portante era aumentar significativamente o fator de impacto (FI) da publicação. O FI é uma medida criada para estimar a influência de um periódico em uma área. Ele representa o número médio de vezes que um artigo daquela publicação é citado por outros trabalhos em certo período.

Até agora Rocha e Silva obteve sucesso. O FI da revista Clinics subiu de 0,35 para 1,54 sob a sua direção – e ele espera que passe de 2 até 2013. Ao mesmo tempo, Rocha e Silva assumiu a defesa das revistas científicas brasileiras contra os critérios do sistema Qualis de avaliação de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

entrevista mauricio Da rocHa e silva

Nível Superior (Capes), que considera injusto. Não é uma briga gratuita. Ele acredita que um país que almeje ter ciência de alta qualidade de-ve ter publicações que acolham e reflitam essa ciência com apoio mais criterioso e equilibrado dos órgãos de governo.

Rocha e Silva é filho de Maurício Oscar da Ro-cha e Silva – descobridor nos anos 1940 da bra-dicinina, composto que originou uma linha de medicamentos contra a pressão alta –, de quem sofreu decisiva influência. Ele se refere ao pai frequentemente pelo primeiro nome, um dis-tanciamento que espelha também admiração e respeito pela figura profissional. As contribuições científicas do filho passaram por estudos sobre o hormônio vasopressina e a hipertônica, uma so-lução de água e sal superconcentrada, capaz de restabelecer a circulação sanguínea em pessoas com hemorragias graves. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O senhor está transformando a Clinics, uma revista que foi invisível por décadas, em uma publicação com bom fator de impacto. Como isso aconteceu?

fisiologista que demonstrou o efeito

do hormônio vasopressina no

organismo conta como fazer uma

revista científica de nível internacional

texto neldson Marcolin e ricardo zorzetto

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30 | janeiro De 2012

A Clinics nasceu em 2005 de uma pu-blicação anterior, a Revista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que era co-nhecida como a “Revista do HC” e havia sido importante quando foi criada, em 1946, dois anos depois da fundação do hospital. Por cinco anos, na década de 1990, havia zero citação. Isso significa que nem os próprios autores citavam os artigos que publicavam nela. Em 1998 me convidaram para assumir o periódico, mas não aceitei. As bibliotecas científi-cas eletrônicas SciELO [Science Eletro-nic Libray On-Line] e PubMed estavam engatinhando e faltavam seis anos para a minha aposentadoria.

Por que essa revista foi importante?Ela trazia relatos dos casos complexos estudados no HC. Mas isso foi perdendo a im-portância e ela virou uma revista de pesquisa original. Nesse momento, enfrentou um problema comum a quase todas as revistas brasileiras do século passado, que era a invisibilidade. Além disso, havia uma postura xiita da comunidade científica brasi-leira de querer publicar arti-gos em português, argumen-tando que era importante de-fender a língua pátria. E isso quando as revistas francesas e alemãs estavam publicando em inglês, inclusive mudan-do de nome, nos anos 1980. A razão é conhecida há mui-to tempo: a língua da ciência é o inglês. No Brasil, a úni-ca revista que começou em inglês é a Brazilian Journal of Medical Biological Research, editada em Ribeirão Preto por Lewis Joel Greene, um americano naturalizado brasileiro. Foi o primeiro periódico na área da saúde a adquirir qualidade internacional.

Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, de 1909, era bilíngue no início, publica-da em português e alemão.Essa começou bem, depois teve uma fase só em português em que apresen-tava apenas trabalhos da Fiocruz. Ficou duplamente prejudicada: em português e endógena. Nos anos 1980 eles come-çaram a fazer em inglês. Hoje é a me-

lhor revista científica do Brasil. Ajuda o fato de eles terem um tema excelen-te, porque, afinal, o Instituto Oswaldo Cruz é pioneiro no mundo em medici-na tropical, exótica. E eles aproveitam bem o nicho, publicam ciência boa. É a única brasileira cujo impacto já pas-sou de 2.

Quem assumiu a “Revista do HC”?O Pedro Puech-Leão, professor de cirur-gia vascular aqui da casa. Ele fez mágica: a revista passou a sair em inglês, ganhou peer review sério e foi à caça de bons ar-tigos. Saiu do zero absoluto. Quando pe-guei a revista, o impacto calculado era 0,35. Isso é um milagre maior do que ir de 0,35 para 1. Estar no zero significa que ninguém quer publicar.

E por que assumiu a revista em 2004?Nesse ano o Pedro decidiu sair e o con-selho deliberativo do HC me ofereceu outra vez a publicação. Fui almoçar com ele, que me disse, “Eles realmente querem criar uma revista decente; en-tão você aceita, mas pede um enxoval completo, com tudo o que precisa para trabalhar, que eles vão te dar”. Outro detalhe me levou a aceitar. Nos anos 1990 fui do conselho editorial de uma revista americana, a Circulatory Shock. Como ela estava mal financeiramente, seus donos decidiram matar a revista e criar uma nova, chamada Shock. Fui um dos fundadores como membro edito-rial. Para dirigir veio um cientista mui-

to bom em editoração. Aí fizemos um pacto de sangue. Combinamos que as 30 pessoas do corpo editorial teriam de mandar um artigo por ano para a Shock. E esse artigo teria de ser citado de três a quatro vezes nos dois anos seguintes em outras revistas do Primeiro Mun-do. Todos fizeram. No primeiro ano, o impacto foi de 0,7. Tem de se conside-rar que uma revista americana entra no ISI [Institute for Scientific Information, serviço de bases bibliométricas que hoje faz parte da Thomson Reuters, respon-sável pelo cálculo do fator de impacto das publicações] no dia seguinte ao em que é criada e isso ajuda muito no im-pacto. Em 15 anos ela chegou a 3,5. Eu aprendi esses pulos de gato. Há alguns éticos e outros nem tanto. O editor da

Shock é um modelo de com-portamento ético.

O senhor decidiu usar esses métodos na Clinics?Exatamente. Quando cheguei tinha aquele nome impossível. Havia 10 maneiras diferentes para procurar as citações. O Pedro queria mudar, mas te-mia perder o registro no Pub-Med [da National Library of Medicine, padrão ouro do sis-tema de periódicos na área da saúde]. Fui para Washington conversar com o pessoal da National Library of Medicine. Eles entenderam. No primei-ro número, a Clinics já estava no PubMed. Falo bem inglês, fui educado nos Estados Uni-dos e na Inglaterra, então eles acham que não sou selvagem.

Falar bem a língua deles e conversar pes-soalmente faz diferença.

Como surgiu o nome novo?O Pedro queria Clínicas. Mas tem acento, os estrangeiros iriam errar... Pensei em Clinics, descobrimos que o nome estava vago e registramos. Só depois descobri-mos os benefícios colaterais. Não ter no-me que denuncie a origem terceiro-mun-dista faz bem para o fator de impacto e para pedir artigos. Os chineses sabem disso. Não tem mais “Chinese Journal”. É tudo “International Journal”.

Quanto tempo levou a montagem dessa estratégia de levantar a revista?

ter um nome que não denuncie a origem terceiro-mundista é bom para o fator de impacto e para pedir artigos

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pesqUisa fapesp 191 | 31

Entramos no ISI em 2007. Leva três anos para aparecer o primeiro impacto. Em 2009 batemos em 1,59 e ficamos atrás ape-nas de Memórias. Em 2010 caímos um pouquinho, para 1,42, e estamos em tercei-ro. Os resultados de 2011 ainda não saíram, mas pelos meus cálculos voltaremos para o segundo lugar. A revista de Manguinhos é meu modelo. Eles deram o primeiro sal-to acima de 2 publicando um suplemento sobre a doença de Chagas. Todo mundo cita. Então eu criei um suplemento sobre neurocomportamento, com artigos de re-visão do Miguel Nicolelis e do inglês Ti-mothy Bliss. O Bliss foi quem descobriu nos anos 1980 como os neurônios fixam a memória. Ele tem um artigo com mais de 5 mil citações. Nosso suplemento saiu em junho de 2011, mas leva seis meses para começarem a citar. Creio que passaremos de 2.

Por que é importante ter boas revistas aqui?A ciência brasileira está pro-gredindo e vai chegar a ser de alta qualidade. Se não tiver-mos revistas nacionais capazes de espelhar esse tipo de ciên-cia, ela vai direto para o exte-rior e nossos autores podem enfrentar uma concorrência não muito leal dos editores es-trangeiros protegendo a turma deles. É um imperativo de au-tonomia da ciência brasileira, talvez dentro de 10 anos, ter revistas brasileiras de alta qua-lidade. Precisamos ter alguns periódicos com impacto 4.

O senhor sempre publicou em inglês e no exterior?Quando comecei a fazer ciência a pri-meira coisa que meu pai me ensinou foi: nunca publique numa revista brasileira, em português, se você puder publicar lá fora. E o Michel Rabinovitch, um grande professor, repetia a mesma coisa. Esta-mos falando de 1960. Ninguém lê portu-guês no exterior, não assinam revista do Terceiro Mundo e, se mandamos de gra-ça, não expõem nas bibliotecas. Publicar assim era esconder seus dados.

Apesar de tudo, as revistas brasileiras vêm ganhando destaque. Isso ocorre hoje por causa da SciELO e do PubMed, que nasceram mais ou menos

no mesmo período. A verdadeira revolu-ção foi proporcionada pela invenção da internet. A partir de 1999, dava para en-trar no site do PubMed de graça, colocar a palavra-chave e fazer a busca. Quando me formei, em 1961, eu visitava a biblioteca toda semana para ver o que tinha saído. Isso praticamente não existe mais. Basta acessar o site das publicações científicas para ver o que há de mais novo na área. A SciELO nasceu no Brasil, com apoio da FAPESP, na mesma época que o PubMed nos Estados Unidos. Foi uma ideia de gê-nio do Rogério Meneghini, de criar uma coleção de revistas que fossem seleciona-das a sério, com acesso aberto instantâneo. Os artigos brasileiros ficaram visíveis. Em 10 anos, o acesso passou de zero para 100 milhões de downloads por ano.

Foi o que elevou a visibilidade das re-vistas brasileiras?As revistas boas, como Memórias, Bra-zilian Journal, Journal of the Brazilian Chemical Society, passaram pelo número mágico e alcançaram fator de impacto maior que 1 em 2002. Nunca uma revis-ta brasileira tinha alcançado isso. Hoje temos uma com impacto maior que 2 e 15 delas maior que 1.

Como é sua luta contra o sistema Qualis de avaliação de periódicos da Capes?Escrevi um estudo acadêmico sobre isso que saiu em dezembro na Clinics. A Ca-pes usa um sistema equivocado de avalia-ção de artigos científicos. Não é a única,

os NIH [National Institutes of Health dos Estados Unidos e outras instituições] usam critérios semelhantes. Não sou só eu que o considero equivocado. O pai do fator de impacto, Eugene Garfield, já dis-se que usar o fator de impacto da revista na qual sai o artigo e dizer que o artigo é bom é um grave erro teórico. Todas as revistas têm uma distribuição de citações assimétrica. Quer dizer, 20% dos artigos concentram 50% das citações e os 20% mais baixos concentram 3% das cita-ções. De maneira que no New England Journal of Medicine a revista médica de mais alto impacto do mundo, por exem-plo, tem 20% de artigos que são muito pouco citados. Isso vale para qualquer revista. Para fazer esse trabalho estudei 60 revistas com impacto que ia de 1 a 50.

Não encontrei nenhuma que não tivesse essa distribuição. O argumento da Capes e dos NIH é esse: se você publica numa boa revista, você é bom. Não é bem assim.

Como funciona o Qualis?As revistas são classificadas em oito categorias. De A1 e A2, de B1 a B5 e C. As categorias su-periores usam fator de impac-to e as inferiores não. Então, se eu publico numa revista A1, ganho a nota de A1. Mas 70% dos artigos que saem na revista A1 não têm aquele bom nível de citação, que vem de 30% dos artigos. Por isso 70% dos artigos ali publicados recebem um upgrade equivalente ao dos outros 30%. Nenhuma revista brasileira é A1. Nas revistas de

categorias intermediárias o problema é mais grave porque elas têm obrigatoria-mente um limite inferior e um superior. Quem publica um artigo ali ganha a nota da revista. E tem 50% de chance de re-ceber um upgrade. Eu fiz essa conta, que está no meu artigo. Mas quem publica nessa revista tem 20% de risco de estar sendo rebaixado, porque o seu artigo tem mais citações do que a média de citações daquela da revista. Se 20% concentram 50% das citações, é claro que no meio desses há artigos com muito mais cita-ções do que a média dessa faixa.

Mas a probabilidade maior é de o artigo ser “levantado”?

revistas nacionais de alta qualidade são importantes para espelhar a melhor ciência feita no brasil

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É. Mas existe uma possibilidade, que não é desprezível, de você estar sendo rebaixado por causa do sistema de fai-xa. A Capes não está dando nota para a revista, o que ela está fazendo é dar nota para os artigos das áreas de pós-gradua-ção que saem nas revistas. Eles dizem isso – e é verdade. Só que na hora em que atribuem classificação baixa a uma revista, eles estão dizendo para os pós- -graduandos e seus orientadores, “Não publiquem nessa revista se você puder publicar em uma com fator de impacto mais alto”. Ou seja, não classificam a re-vista, mas a prejudicam. A minha briga é puxar o impacto para cima. Se o Qualis não tivesse esse problema interno, daqui a 10 anos teríamos uma coleção de gran-des revistas internacionais brasileiras porque haveria um estímulo à publicação. Antes que pensem que estou de mal com a Ca-pes, faço questão de dizer: ela é muito importante, é o motor da pós-graduação brasileira e, assim, da produção científica. O portal de periódicos Capes é fantástico. A única besteira é o Qualis.

Mas em algum momento o sistema de avaliação da Ca-pes incentivou os pesquisa-dores a publicarem mais?Sim. Alguma forma de avalia-ção dos artigos da pós-gradua-ção é essencial. O Qualis ante-rior tinha um defeito grave: era muito frouxo e permissivo. To-dos conseguiam nota máxima pelas suas publicações. Muda-ram e criaram o novo Qualis em 2008, que acho que está mais ou me-nos certo para Harvard, mas não para a comunidade científica brasileira. Talvez tenham apertado demais o cinto das pós- -graduações – e apertado errado.

Vamos falar sobre suas contribuições científicas. O senhor trabalhou com seu pai em pesquisas sobre a bradicinina?O Maurício é uma influência quase im-possível de ser ignorada. No início da minha carreira tinha também o Rabino-vitch, incentivador de jovens pesquisa-dores. Meu pai foi para a USP de Ribei-rão Preto quando eu estava no terceiro ano da Faculdade de Medicina em São Paulo e fiquei aqui. Uma boa razão para

isso era o Rabino. Ele era um ímã. O pri-meiro destino das pessoas que pensavam em fazer ciência era a sala do Rabino. Naquela época, o Maurício me deu um problema para estudar: o efeito da bra-dicinina sobre a função renal. Como eu tinha aprendido o know-how de fisiolo-gia renal, topei. Passei quatro férias, de começo e de meio de ano, em Ribeirão estudando isso. A bradicinina induzia a secreção de hormônio antidiurético. Aqui em São Paulo quem fazia fisiologia renal de verdade era o Gerhard Malnic, outro grande pesquisador. Eu o procu-rei e começamos a trabalhar com isso. Àquela altura, nós só sabíamos que a bradicinina produzia o efeito da vaso-pressina, que era a antidiurese. A vaso-pressina tem esse nome porque a pri-

meira coisa que foi descoberta é que ela aumenta a pressão arterial. O efeito fisiológico básico dela é controlar a diu-rese. Ela se chama também hormônio antidiurético. É o hormônio da hipófise que controla o volume básico de diurese. Em concentrações muito altas, ela pro-duz efeito nos vasos sanguíneos. Essa foi minha contribuição importante em vasopressina. Na minha tese de douto-rado, em 1963, mostrei que a bradicinina induzia a secreção de hormônio anti-diurético, produzia a antidiurese, mas esse efeito desaparecia se tirássemos a hipófise do animal. Depois, em 1969, provei pela primeira vez que a vasopres-sina não só fazia a pressão subir como

era parte do mecanismo de regulação de pressão arterial. Havia quem tives-se formulado isso como hipótese, mas nunca ninguém tinha feito um experi-mento que provasse.

Onde foi feito?Aqui, na Faculdade de Medicina. E isso saiu no Journal of Physiology, em 1969, a mais prestigiosa revista de fisiologia do mundo. Antes, durante um período em que passei em Londres, consegui demons-trar qual é o mecanismo pelo qual a bradi-cinina secretava hormônio antidiurético. Quando voltei, pensei que isso deveria ter uma ação fisiológica. Bolamos um ex-perimento aqui, eu e uma estudante, a Manuela Rosenberg, para ver se a gente conseguia provar. E funcionou. Foi minha

tese de livre-docência.

O senhor sempre pensou em fazer pesquisa?Sempre. Na verdade eu ia fa-zer física. Mas o Maurício dis-se, “Isso é besteira, você vai acabar sendo empregado de médico”. Foi assim, bem fas-cista. Fui fazer medicina por-que a influência dele era mui-to forte e deu certo. Sempre digo que tive sorte de fazer aquilo que eu estava conde-nado a fazer pela influência paterna. Maurício passou a vida achando que só existia salvação na ciência.

Vocês trabalharam juntos?Apenas nas férias. Ele era di-fícil, muito exigente. Naquela época nos dávamos bem. De-

pois brigamos e no fim ficamos amigos de novo. A dureza dele não me incomo-dava muito porque eu topava trabalhar. Um dia eu o ajudava em uma cirurgia de cachorro e meu braço estava encostado naquelas lâmpadas de cúpula de metal. Avisei, “Está queimando meu braço”. Ele disse, “Você pensa que está numa estação de águas? Segura o afastador e fica quieto”. Era o estilo dele.

O senhor foi para a Inglaterra por mo-tivos políticos em 1970? Decidi sair no dia em que cassaram 40 pessoas no Brasil, das quais 25 da USP, durante o AI-5. Fui a Ribeirão ver meu pai, que havia sofrido um acidente de

o qualis anterior era frouxo. o atual está mais ou menos certo para harvard, mas não para a comunidade brasileira

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carro e quebrado umas costelas. Voltei para São Paulo e passei na casa do Alber-to Carvalho da Silva, que era meu chefe na fisiologia e havia pedido notícias do Maurício. Quando cheguei lá, ele tinha sido cassado e afastado do cargo de di-retor científico da FAPESP. Nesse dia decidi que ia embora.

E por que Londres?Fui duas vezes para lá. Ganhei uma bol-sa do British Council em 1964 para pes-quisar no National Institute for Medical Research, onde havia um grupo forte em vasopressina. Voltei no fim do governo Castello Branco. Em 1970, depois do epi-sódio das cassações, voltei para lá. Es-crevi para os amigos ingleses pedindo ajuda e consegui emprego no mesmo Na-tional Institute. Fiquei qua-tro anos lá. Quando voltei fui para o Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Dez anos depois, em 1984, voltei para a Faculdade de Medicina, on-de estou.

Foi nesse período que come-çaram as pesquisas com a hi-pertônica?Foi um pouco depois de mi-nha volta. Em meados dos anos 1970, um recém-formado da Santa Casa, o Irineu Velasco, testemunhou um erro médi-co dar certo: um paciente sub-metido à diálise recebeu uma solução preparada errada, su-perconcentrada em sal. E es-se paciente, que estava mal, em choque, saiu do choque. O Velasco queria fazer uma pes-quisa sobre isso e sugeriram que falasse comigo. Ele entrou na minha sala e dis-se, “Eu quero injetar cloreto de sódio [sal de cozinha] a 7,5% em cachorro chocado [em estado de choque]”. A concentração normal é 0,9%. Eu olhei para ele e pensei, “Cada louco que me aparece”. Para me livrar dele pedi para preparar um proto-colo da experiência e voltar depois. Uma semana depois ele trouxe o protocolo, que estava bem bolado. Eu corrigi o que foi necessário e decidi autorizar. Pensei, “Vamos matar o cachorro porque isso não pode funcionar”. A minha sorte foi ter mandado o Velasco voltar porque a coisa funcionou. O curioso é que a solução hi-pertônica, essa de água com 7,5% de sal,

tira cachorro do choque, mas não tira rato nem coelho, não sabemos se tira ou não gato, nunca ninguém tentou, e tira gente, mas não tem grande vantagem sobre o tra-tamento padrão, o estado da arte.

Se vocês tivessem apostado no animal errado...Já parava ali mesmo. Mas os cachorros saíam vivos. Tirávamos 40% do sangue do cachorro. Se não fizesse nada, ele morreria em poucas horas. Dávamos essa solução superconcentrada e no dia se-guinte o cachorro estava vivo. Repeti-mos várias vezes e era sempre a mesma coisa. Criamos um novo protocolo para tentar esclarecer como é que aquilo fun-cionava e isso virou a tese de doutorado dele. Velasco foi o pai da criança. Creio

que sem a minha experiência científica em burilar projetos, talvez não tivesse avançado tanto. Mas a ideia foi dele. O trabalho durou muitos anos e teve apoio da FAPESP.

A solução foi testada em gente?Diversas vezes. O primeiro estudo siste-mático foi feito no HC por um médico hoje famoso na oncologia, o Riad Younes. Depois foram feitos dois grandes ensaios multicêntricos nos Estados Unidos, um coordenado pela Universidade de Hous-ton e outro pelo exército americano em oito hospitais diferentes. Quando se faz um ensaio clínico controlado, compara- -se uma ideia nova com a ideia clássica,

o estado da arte. Esse estudo pode ter-minar de três maneiras: em sucesso, se a ideia nova é melhor do que a velha; em fracasso, se a ideia nova é pior; ou no que se chama em futilidade, se a ideia nova não é melhor nem pior. Os dois ensaios terminaram em futilidade, a solução hi-pertônica é tão boa quanto o estado da arte, mas não melhor.

Qual é o estado da arte?O soro fisiológico normal, com 0,9% de sal, oito vezes mais diluído que a hiper-tônica. Infelizmente há uma proprie-dade da análise estatística que diz que testar diferença é muito mais barato do que testar equivalência. O problema da equivalência é que o teste estatístico exi-ge um número muito maior de entradas

para que se consiga afirmar “é equivalente”. Por isso é que o resultado não diferente em um estudo para testar diferença se chama “em futilidade”. Nunca ninguém resolveu gastar o di-nheiro que a FDA, a Food and Drugs Adminstration, exige para poder liberar a hipertô-nica como equivalente ao soro fisiológico.

Chegou a ser usado oficial-mente?Os militares americanos usa-ram na Guerra do Iraque e ou-tras forças militares utilizam quando precisam. O uso, em si, não é proibido. Basta o mé-dico prescrever uma fórmu-la magistral. O que não pode é comercializar sem licença oficial. Os militares usam por-

que há vantagens logísticas. Em vez de carregar dois litros para cada paciente, carrega-se ¼ de litro. Ou seja, o peso que vai na mochila do padioleiro é oito vezes menor. Além disso, o produto com 7,5% de sal só congela a três graus abaixo de zero. E é estéril, pela própria natureza, logo, não estraga.

Ainda assim não é comercial? Não é. Acho que a hipertônica comple-tou seu ciclo como medicamento. Mas continua interessante como ferramenta de pesquisa. Desde 1980 grandes revistas publicam em média um artigo por se-mana sobre o tema. A falta de utilidade prática não mudou esse ritmo. n

a solução hipertônica completou seu ciclo como medicamento. hoje ela interessa como ferramenta de pesquisa

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governo, empresas e centros de

pesquisa avançam juntos para ampliar

o uso de fontes renováveis

carlos fioravanti, de berlim*

política c&t _ energias do futuro

começam a aparecer os resultados de um plano de ação que o governo federal da Alemanha elaborou em 2008, em conjunto com universidades, centros de pesquisa e empresas. O objetivo era

ampliar as cooperações internacionais em ciência e tecnologia, compensar as limitações internas e incentivar o uso das chamadas tecnologias verdes – métodos de produção mais modernos, com me-nos uso de matérias-primas e consumo de energia, e danos menores ao ambiente do que os baseados no uso de combustíveis fósseis.

No centro de produção do Instituto Fraunho-fer (IPK), em Berlim, uma construção circular cercada por vidros transparentes que lembra um ginásio de esportes tomado por máquinas, um jovem engenheiro mostra o gás carbônico (CO2) sólido, na forma de pedrinhas de gelo que, com uma pequena pá, ele deposita nas mãos dos vi-sitantes mais curiosos, pedindo para passarem rapidamente de uma mão para outra para não se queimarem. Essa tecnologia, ele conta, expressa a possibilidade de reaproveitar CO2, resíduo co-mum de processos industriais, e já está em uso experimental em uma indústria automobilística alemã. Em seguida submete uma placa metálica pintada sob uma máquina que dispara jatos de CO2 sólido dentro de uma cabine fechada com vidros. Os jatos removem a pintura da placa que, depois de alguns minutos, está limpa e gelada.

Desde 1986, o centro de tecnologia abriga as equipes do IPK, criado em 1976, e do Instituto

para Máquinas Ferramenta e Gerenciamento In-dustrial (IWF), de 1904. “Somos duas instituições, mas trabalhamos juntos”, diz Jens König, geren-te de projeto do IPK, um dos maiores centros de pesquisa aplicada da Alemanha, com 56 labora-tórios espalhados pelo país, 13 mil cientistas e engenheiros e um orçamento anual de pesquisa de € 1,6 bilhão, dos quais € 1,4 bilhão provém de contratos com empresas.

“Temos um projeto de colaboração com o Bra-sil”, diz König, referindo-se ao Bragecrim, sigla de Brazilian-German Collaborative Research Initiative on Manufacturing Technology (Iniciativa de Pesqui-sa Colaborativa Brasileira-Alemã em Tecnologias de Manufatura). Esse programa reúne cerca de 30 universidades, empresas e centros de pesquisa dos dois países, com o propósito de melhorar a precisão das chamadas máquinas-ferramenta. Reunidos no início de novembro em Florianópolis, Santa Cata-rina, os coordenadores dos quase 20 projetos do Bragecrim decidiram pela continuidade do progra-ma, que começou há dois anos e conta com o apoio financeiro de agências federais de financiamento à ciência e tecnologia de cada país.

“Vimos que não tínhamos nem gente, nem tem-po, nem dinheiro para fazer tudo o que quería-mos”, reconhece Eckart Lilienthal, coordenador da estratégia de cooperação internacional do Mi-nistério de Educação e Pesquisa. “Essa estratégia foi discutida com representantes de todos os mi-nistérios, centros de pesquisa e universidades da Alemanha. Não foi implantada de cima para bai-

alemanha verde

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Em exibição: protótipos de carro elétrico da VW no pátio da Austostadt, em Wolfsbrugfo

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xo, porque um plano como esse não pode ser feito por um só ministério. Estamos avançando, passo a passo.”

Tanto os parceiros tradicionais da Alemanha na Europa e na América do Norte quanto os dos países em desenvol-vimento como o Brasil estão ganhando mais atenção. Em agosto, a DFG Fun-dação Alemã de Pesquisa Científica e a FAPESP renovaram por mais cinco anos o acordo de colaboração entre as duas instituições, apoiando a realização de projetos conjuntos entre os dois países. Em setembro, a secretária-geral do Ser-viço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Daad), Dorothea Rüland, esteve no Rio de Janeiro para ver como atrair mais brasileiros e, inversamente, como en-viar mais pesquisadores alemães para o Brasil. Em funcionamento desde 1972, o escritório do Daad no Rio coordena cer-ca de 30 programas de intercâmbio de estudantes e pesquisadores, em parceria com as agências federais e estaduais de apoio à pesquisa científica.

os alemães investem intensamen-te em ciência e tecnologia. Em 2009, os gastos totais nessa área

foram de US$ 82 bilhões, o equivalente a 2,8% do PIB, enquanto no Brasil foram de US$ 24 bilhões ou 1,19% do PIB. “Do orçamento público federal, 10% está indo para educação e pesquisa”, diz Lilien-thal. A Alemanha conta com uma rede de mais de 300 universidades e centros de pesquisa básica como o Max Planck,

com 77 unidades, 13 mil funcionários, 17 ganhadores do Prêmio Nobel ao longo de sua história e um orçamento anual de € 1,3 bilhão (R$ 3,1 bilhões). As empresas – algumas gigantescas como Siemens, Basf e Volkswagen – respondem por dois terços dos gastos anuais em pesquisa e desenvolvimento.

A interação entre empresas e centros públicos de pesquisa é intensa e antiga. Em 1910, logo depois de o médico Paul Ehrlich ter verificado que um derivado de arsênio que ele havia sintetizado após 605 tenta-tivas detinha a sífilis em ratos infectados, a empresa farmacêutica Hoechst rapida-mente se pôs a produzir o composto em quantidade suficiente para fazer os testes

de eficácia e toxicidade em seres humanos e depois para consumo amplo.

A decisão do governo alemão de fechar as oito usinas nucleares mais antigas – e todas até 2022 – após o acidente em Fukushima no Japão valorizou as tecno-logias verdes, agora prioritárias. Como os alemães são precavidos, já havia muita coisa funcionando, de modo que eles não ficaram no escuro nem com frio, por falta de aquecedores (durante muitos anos, as usinas nucleares forneceram um terço da energia consumida no país). As 21 mil usi-nas eólicas em funcionamento suprem um terço da eletricidade nos dias de inverno mais rigoroso na Alemanha, cuja meta é gerar pelo menos 20% de eletricidade através de energias renováveis até 2020. No final de 2010, o setor de energias re-nováveis estava em franca expansão, já empregando 340 mil pessoas. Em 2011, o governo federal, por meio de uma cam-panha nacional, promoveu as tecnolo-gias de produção verde (ambientalmente corretas) desenvolvidas por empresas e centros de pesquisa.

a inda há muito debate sobre o fato de as fontes renováveis de energia serem altamente subsidiadas co-

mo forma de promover o consumo. “Só subsidiar não é a solução”, diz Hans-Jo-sef Fell, membro do Parlamento alemão, o Bundestag, e porta-voz em políticas energéticas do Partido Verde. “Precisa-mos combinar estratégias para reduzir o consumo de energia, a produção de resí-duos e a emissão de gás carbônico.”

Rutger Schlatmann, diretor da PVcomB, empresa de desenvolvimento de filmes finos e materiais fotovoltaicos, também acredita que a melhor saída será uma com-binação de formas diferentes de produzir energia. “Podemos ter bons produtos, mas não vai adiantar se não tivermos também pessoas educadas, dispostas a economi-zar energia”, diz ele. Nessa área, informa Iver Lauermann, pesquisador do centro de materiais e energia Helmholtz, um dos institutos de pesquisa ligados à PVcomB, uma das metas atuais é melhorar o desem-penho e substituir um componente tóxico, o cádmio, dos filmes finos usados em pai-néis para produção de energia solar.

“Somos engenheiros, não falamos mui-to, mas gostamos de mostrar as máquinas que fazemos”, diz Stefan Kozielski, diretor do centro de excelência de tecnologias integradas de produção, que reúne cerca

universidade charitè: recuperada da guerra, um dos ícones do pioneirismo alemão na medicina

os alemães acreditam que bons produtos só adiantam com pessoas dispostas a economizar energia

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de 30 empresas, 25 institutos de pesquisa e 150 pesquisadores em vários prédios da Universidade de Aachen, em Aachen, ci-dade no oeste da Alemanha, na fronteira com a Bélgica e a Holanda. Um dos proje-tos em desenvolvimento é o Street Scooter, um carro elétrico com autonomia de 130 quilômetros e velocidade máxima de 130 quilômetros por hora que deve começar a ser produzido ainda em pequena esca-la em 2012. Seu preço para o consumidor deve ser de cerca de € 5 mil.

“Em 2020, 10% de todos os carros do mundo serão elétricos, mas será caro”, diz Lino Santacruz-Moctezuma, coordenador de comunicação da Autostadt, centro auto-motivo com museus e exposições próximo à fábrica da Volkswagen na cidade de Wol-fsburg. Segundo ele, a Volkswagen agora prioriza o desenvolvimento de novos mo-delos de carros práticos, de baixo custo e ambientalmente corretos, primeiramente aproveitando o conhecimento acumulado sobre motores a gasolina e diesel. Os pro-tótipos do carro elétrico da VW, que deve começar a ser vendido comercialmente em 2015, já estão no pátio da Autostadt e se movem em absoluto silêncio, como se permanecessem parados e desligados.

l ilienthal ressalta um ponto impor-tante da estratégia de produção de ciência e tecnologia em centros de

pesquisa públicos e empresas na Ale-manha: “As ações têm de ser sincroni-zadas”. Os esforços para concatenar as diversas iniciativas são visíveis. Além de um conceito, apresentando o país como “terra de ideias” (em alemão, Land der ideen), uma página na internet (www.research-in-germany.de) concentra no-tícias e informações sobre ciência e tec-nologia para pesquisadores de empresas e de instituições acadêmicas.

Essas ações estão reunificando a ciên-cia alemã, que já foi a melhor do mundo. No início do século passado, médicos e pesquisadores brasileiros falavam e es-creviam em alemão, e quase todo ano um cientista alemão ganhava o Prêmio Nobel de física, química ou medicina. Depois,

os nazistas valorizaram a saúde, insistiam para os alemães deixarem de fumar co-mo forma de evitar doenças, mas elimi-naram muitos cientistas judeus que não haviam emigrado. Só no hospital Charité, onde trabalharam médicos como Robert Kock, que identificou o agente causador da tuberculose, e Paul Ehrlich, o desco-bridor do tratamento contra a sífilis, 145 professores foram demitidos, emigraram ou morreram nos campos de concentra-ção. O médico judeu Otto Weisburg só escapou por ter feito descobertas fun-damentais sobre o funcionamento das células tumorais e ter ganho o Nobel de Medicina e Fisiologia em 1931.

Os bombardeios dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial destruíram Ber-lim quase completamente. Obviamente, os centros de pesquisa – e os pesquisado-res, principalmente os judeus – também

perderam seus prédios e suas equipes, agora finalmente re-feitos. “Os alemães têm um no-tável senso de propósito e de trabalho em equipe”, obser-vou o químico mexicano Luis Manoel Guerra, que estudou em Munique de 1968 a 1971, trabalhando à noite na Bayer para pagar os estudos. “Não se perguntavam se iriam con-seguir reconstruir o país, mas como poderiam fazer.”

Conhecidos pela organiza-ção, pela obsessão em fazer benfeito e pela visão de futu-ro, mas também pela inflexibi-

lidade e pelo grande apego à hierarquia, os alemães recolocam o sistema de ciência e tecnologia do país como um dos mais pujantes do mundo. Em muitos sentidos, a Alemanha já é uma “terra de ideias”, como o slogan propõe. Muitas inovações já podem ser vistas por muitos. Carros elétricos de várias marcas circulam pelas ruas de Berlim – com discrição, diferente-mente dos similares que circularam festi-vamente pelas ruas de Paris. A entrada do Hotel Blue, ao lado da catedral de Berlim, expõe um aquário imenso que os hóspedes podem apreciar também por dentro, quan-do o atravessam em um elevador. Uma das boas surpresas da loja do Museu de His-tória da Alemanha são os dados que, em vez de cúbicos, são esféricos. n

* o jornalista viajou a convite do serviço alemão de intercâmbio acadêmico (daad).

carro elétrico, dados esféricos e outras ideias inovadoras já ganharam as ruas da alemanha

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38 _ janeiro De 2012

conferência obtém compromisso

global para redução de gases

do efeito estufa a partir de 2020

fabrício Marques

_ Mudanças cliMÁticas

a 17ª Conferência da ONU sobre Mudan-ças Climáticas, realizada em Durban, na África do Sul, entre 28 de novembro e 10 de dezembro, alcançou um compro-

misso dos representantes de quase 200 países para adoção de metas de cortes de emissões de carbono, incluindo os Estados Unidos e a China, as principais potências poluidoras. Os negocia-dores superaram o impasse das conferências de Copenhague, em 2009, e de Cancún, em 2010, que haviam obtido apenas promessas de cará-ter voluntário, e também avançaram em relação ao Protocolo de Kyoto, aprovado em 1997, que estabelecia metas para cortes de emissões, mas isentava países em desenvolvimento de segui-las. As delegações, que estouraram o prazo-limite da conferência em um dia para conseguir um acor-do, deixaram a cidade portuária sul-africana num clima de alívio e de festa.

O saldo da conferência, no entanto, é composto mais de intenções do que de resultados palpáveis. Os países comprometeram-se, sim, com cortes, por meio de um “compromisso legalmente vincu-lante”, que os obriga a cumprirem metas. Mas o patamar não foi definido nem será no curto prazo. Os detalhes virão apenas em 2015 e o compromis-so valerá a partir de 2020. Houve progressos na negociação de um Fundo Climático Verde para ajudar os países pobres a enfrentar as consequên-cias do aquecimento global – a ideia é conseguir US$ 100 bilhões anuais para esse objetivo, tam-

bém a partir de 2020. Faltou definir algo crucial: de onde sairão os recursos. As conversas ainda avançaram na criação de um sistema capaz de permitir pagamentos a países que reduzem suas emissões de carbono evitando desmatamentos, o que contabiliza 15% das emissões globais. Os negociadores estabeleceram detalhes sobre como as nações vão calcular suas emissões e iniciaram conversas sobre o funcionamento do sistema. A próxima conferência, que vai realizar-se em Do-ha, no Qatar, no final de 2012, revelará o grau de dificuldade de avançar nesses temas.

“Sendo realista, não há nenhuma garantia de que as promessas serão cumpridas, assim como não dá para antecipar que vai dar errado. Qual-quer coisa pode acontecer”, diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e um dos coordenadores do Programa FAPESP de Pesqui-sa em Mudanças Climáticas Globais. Ele prevê a resistência dos Estados Unidos, mas também enxerga sinais animadores de outros países. “O lobby da indústria do petróleo é muito forte nos Estados Unidos. Mas a União Europeia, mesmo enfrentando uma forte crise econômica, empe-nhou-se em obter um acordo. A China é o país que mais investe hoje em energias renováveis no mundo e o Brasil mostrou que é possível reduzir drasticamente as emissões provocadas por des-matamentos – dos 27 mil quilômetros quadrados desmatados em 2004, caímos para 6 mil quilô-metros quadrados em 2010.”

A abertura da conferência, no dia

28 de novembro: delegados decidiram

prorrogar o Protocolo de Kyoto

a plataforma de durban

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O que se conseguiu de concreto em Durban foi a extensão do Protocolo de Kyoto por um período de cinco a oito anos – o prazo exato também será de-finido em Doha. Parece pouco, mas não foi um resultado trivial. Criado em 1997, o protocolo é o único tratado global que estabelece metas vinculativas para os países reduzirem suas emissões de ga-ses estufa. É verdade que os países em desenvolvimento estavam isentos e os Estados Unidos se recusaram a ratificá- -lo, enfraquecendo seu impacto.

A extinção do protocolo, marcada pa-ra o final de 2012, era vista como um re-trocesso a ser evitado a qualquer custo – e as diplomacias da União Europeia e do Brasil articularam-se fortemente para evitar esse passo atrás. Ainda as-sim houve um revés: logo após a con-ferência, o Canadá, que não conseguiu cumprir as metas de Kyoto, anunciou que estava abandonando o protocolo. Anteriormente, Rússia e Japão já ha-viam feito a mesma coisa. “O problema foi jogado 10 anos para a frente, o que é claramente inadequado, porque muito carbono que poderia ser evitado será lançado na atmosfera durante os próxi-mos nove anos”, escreveu o físico José Goldemberg, em artigo publicado no

jornal O Estado de S. Paulo. “O funda-mental, contudo, é que o problema das emissões de carbono, daqui para a fren-te, é claramente de todos, e não somente dos países industrializados.”

A chamada Plataforma de Durban mo-dificou o Mecanismo de Desenvolvimen-to Limpo (MDL), criado pelo Protocolo de Kyoto, por meio do qual os países po-dem vender créditos de carbono a nações poluidoras se levarem a cabo projetos que reduzam as emissões de gases do efeito estufa. Os negociadores amplia-ram o mecanismo para incluir projetos que promovam a estocagem de carbono capturado da atmosfera. Thelma Krug, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que participou da delegação brasileira, diz que o resultado da conferência é robusto. “Estávamos patinando na mesma discussão e eu já não aguentava mais debater sempre a mesma coisa, sem avançar. A Plataforma de Durban vira uma página. O impacto de não acabar com Kyoto e ter algo vin-culante era extremamente importante”, afirma ela, que foi secretária de Mudan-ças Climáticas e Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente.

Ela ressalta o ambiente conturbado em que se obteve o acordo. “O espectro

da crise econômica mundial se sobrepôs à ameaça do aquecimento global. Ficou muito difícil falar em metas de cortes por causa disso”. Afirma, porém, que o caminho é longo e que está cada vez mais difícil impedir que o aquecimento supere os 2 graus neste século. As úl-timas análises sugerem que o mundo está a caminho de assistir a um aqueci-mento de 3,5 graus até 2100. “O que se fez foi decidir fazer menos agora para acelerar mais adiante. Temos de acre-ditar que, nos próximos anos, a situação econômica melhore, a tecnologia avance e ofereça novos instrumentos para miti-gar os efeitos das mudanças climáticas e também que consigamos mobilizar as autoridades. É preciso ser otimista, se-não não adianta sentar para negociar.” Ela aposta que o próximo relatório do Painel Intergovernamental das Mudan-ças Climáticas (IPCC), que será lança-do em 2013, poderá fornecer evidências científicas que ajudarão a pressionar as autoridades e aperfeiçoar os termos do acordo de 2015.

Como acontece em conferências des-se tipo, um acordo parecia impossível nos primeiros dias de discussão. Nos momentos mais sombrios das negocia-ções surgiram rumores sobre um adia-mento completo da decisão. Em meio às disputas entre países ricos e pobres, os delegados da União Europeia tomaram a dianteira e começaram a articular o acordo. Colaboraram com o resultado, na reta final, a fadiga coletiva e o temor dos contendores de terminarem como os vilões da conferência.

Países como a Venezuela protestavam contra os esboços de proposta, lem-brando que as emissões do passado do mundo industrializado são responsáveis por boa parte do aquecimento atual. Outros países em desenvolvimento, co-mo o Brasil e a África do Sul, mobiliza-ram-se por um acordo desde o início, sob o argumento de que o crescimento de emissões futuras virá, em grande medida, de países pobres. No último dia, China e Estados Unidos finalmente disseram sim. Apenas a Índia resistia. Um discurso forte do ministro do Meio Ambiente e das Florestas, Jayanthi Na-tarajan, exigindo que os esforços dos países ricos e pobres fossem diferen-ciados, sugeria a manutenção do impas-se. Mas também os indianos acabaram aceitando o compromisso. n

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40 _ janeiro De 2012

Articulação dos pesquisadores paulistas

ajuda a multiplicar o uso da bioenergia

fabrício Marques

_ HISTóRIA DA FAPESP VII

a escalada do etanol

pesquisadores das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp) desvendaram em 2011 cerca de 10,8 gigapares de bases do DNA da cana, 33 vezes o produto dos dois anos

do projeto Genoma Cana, encerrado em 2001, que mapeou os genes expressos da planta. O resultado faz parte de dois projetos temáticos, coordenados pela bióloga molecular Glaucia Souza e a geneti-cista Marie-Anne Van Sluys, professoras da USP, e com conclusão prevista para 2013, que buscam o mapeamento dos genes da cana-de-açúcar. Da-da a complexidade do genoma, 300 regiões já es-tão organizadas em trechos maiores que 100 mil bases, que contêm de 5 a 14 genes contíguos de cana. Os pesquisadores querem ir além do Ge-noma Cana tanto na quantidade de dados como nas perguntas sobre como funciona o genoma da planta que se tornou sinônimo de energia reno-vável. Estudos de gramíneas como sorgo e arroz mostraram que para melhorar a produtividade das plantas é preciso saber como a atividade dos genes é controlada, função de trechos do DNA conhecidos como promotores.

A pesquisa é um exemplo de como o conheci-mento sobre cana-de-açúcar e etanol avançou nos últimos 15 anos, com apoio da FAPESP. Do projeto Genoma Cana, que mapeou os genes expressos da cana-de-açúcar entre 1998 e 2001, ao Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), ini-

ciado em 2008, do qual Glaucia é coordenadora, a Fundação vem patrocinando um grande esforço de investigação, que articula pesquisadores de várias áreas do conhecimento, voltado para aprimorar a produtividade do etanol brasileiro e avançar em ciência básica e tecnologia relacionadas à geração de energia de biomassa.

Com três anos de existência, os resultados do Bioen são palpáveis e variados. Um processo ino-vador para a produção de bioquerosene a partir de vários tipos de óleos vegetais, que poderá tornar o combustível usado em aviões menos poluente e mais barato, foi desenvolvido na Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp). Após sua extração e refino, o óleo é colocado em um reator junto com uma quantidade específica de etanol e um catalisador, responsável por acelerar as reações químicas. “A maior contribuição do processo de obtenção do bioquerosene são os altos índices de pureza do produto final”, disse Rubens Maciel Fi-lho, professor da FEQ e coordenador do estudo.

Outra contribuição de Maciel é um projeto que busca criar compostos de alto valor econô-mico a partir de substratos da cana. O projeto vem obtendo bons resultados na produção do ácido acrílico e do ácido propiônico a partir do ácido láctico. “É possível desenvolver produtos com valores 190 mil vezes maiores do que o do açúcar”, diz Maciel.

Campo experimental de cana-de-açúcar da Usina da Barra, em Barra Bonita (SP), em 2000

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A experiência em genômica da geneticista Ma-ria-Anne Van Sluys, da USP, levou-a à liderança de um projeto cujo objetivo é gerar um sequen-ciamento parcial de dois cultivares de cana (R570 e SP80-3280) e subsidiar o desenvolvimento de ferramentas moleculares capazes de auxiliar na compreensão deste genoma. Um dos alvos é o estudo dos chamados elementos de transposição, regiões de DNA que podem se transferir de uma região para outra do genoma, deixando ou não uma cópia no local antigo onde estavam. “Pro-gramas de melhoramento também poderão ser beneficiados tendo acesso a informações mole-culares com potencial para o desenvolvimento de marcadores”, diz Marie-Anne.

Um projeto liderado por Ricardo Zorzetto Vên-cio, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, desenvolveu a versão piloto de um soft- ware para tentar caracterizar as funções de genes da cana-de-açúcar. A abordagem é inovadora por-que não se limita a atribuir a uma sequência de genes de um organismo as funções já observadas numa sequência semelhante de outro ser vivo. A ideia é utilizar algoritmos que contemplem a incerteza contida nessa associação. “Em vez de simplesmente dizer que um gene tem uma função específica queremos dizer qual é a probabilida-de de ele ter essa função e, neste cálculo, levar em conta diferentes evidências como a relação evolutiva com outros genes ou se tem algum ex-

perimento que confirma a função”, diz Vêncio. Augusto Garcia, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, está desenvolvendo um software voltado para a utilização de marcadores genéticos em progra-mas de melhoramento, explorando a genética e a fisiologia da cana-de-açúcar. “Essa é uma das grandes expectativas de obtenção de cultivares mais rapidamente”, diz Glaucia Souza. A cada ano, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) testa 1 milhão de mudas em busca de plantas mais produtivas. Demora 12 anos para que surjam duas ou três variedades promissoras.

Estudos de André Meloni Nassar, diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negocia-ções Internacionais (Icone), avançaram também na utilização de modelos econômicos para ava-liar as mudanças de uso da terra causadas pela produção em larga escala de biocombustíveis. Já na busca do etanol de celulose, um dos destaques é um projeto que avalia como é possível romper a resistência das paredes celulares de vegetais lignificados, como a cana, por meio de hidróli-se enzimática. A lignina é uma macromolécula encontrada em plantas, associada à celulose na parede celular, cuja função é conferir rigidez e resistência. Quebrá-la é um desafio para obter etanol de celulose. “Para entender como a remo-ção de lignina pode diminuir a recalcitrância das paredes celulares, têm sido avaliados, além de D

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bioenergia

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variedades comerciais, híbridos de cana com teores contrastantes de lignina”, diz Adriane Milagres, professora da Escola de Engenharia de Lorena, da USP, uma das coordenadoras do projeto. “Quan-do materiais são tratados com métodos seletivos, a remoção de 50% da lignina original já eleva o nível de conversão da celulose para 85-90%.”

Desde os seus primeiros anos, a FA-PESP deu suporte a iniciativas que cria-ram massa crítica para o esforço recente. Um exemplo foi o lançamento, em 1968, do Laboratório de Biotecnologia Indus-trial da Escola Politécnica da USP. Desde a década de 1940 a Poli havia montado uma usina piloto para a produção de eta-nol por fermentação, mas faltavam reato-res de pequeno porte e equipamentos que permitissem a realização de trabalhos mais completos. Outra contribuição da Fundação foi o Programa Bioq-FAPESP, lançado em 1972 (ver Pesquisa FAPESP nº 185). Ao formar recursos humanos no campo da biotecnologia, abriu caminho para a tarefa de sequenciar o genoma de

vários organismos nos anos 1990 e 2000, entre os quais o da cana. “Tanto o Bioq- -FAPESP, nos anos 1970, quanto o Progra-ma Integrado de Genética, do CNPq, nos anos 1980, são pilares do esforço atual”, diz Marie-Anne Van Sluys, professora do Instituto de Biociências da USP e uma das coordenadoras do Bioen.

Um salto no interesse pela pesqui-sa em cana e etanol aconteceu em abril de 1999, com o advento do Genoma Ca-na, cujo nome oficial era Programa FA-PESP Sucest (Sugar Cane Est). O pro-jeto, que mapeou 250 mil fragmentos de genes funcionais da cana, caracteri-zou-se pela interação com o setor pri-vado que marca o esforço de pesquisa em bioenergia até hoje. Paulo Arruda, professor da Unicamp, lembra que foi convidado a liderar o projeto depois que a Cooperativa dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar) procurou a diretoria cien-tífica da FAPESP e propôs uma parce-ria entre universidades e indústria pa-ra o mapeamento do genoma da cana.

“O professor José Fernando Perez, dire-tor científico à época, me perguntou o que eu achava. Observei que a cana tem um genoma muito complexo e sugeri o mapeamento dos fragmentos funcionais do genoma”, diz Arruda, que hoje é um dos coordenadores da área de Pesquisa para Inovação da FAPESP. A cana é um um organismo poliploide: cada cromos-somo tem de 6 a 10 cópias – nem sempre iguais. Essa peculiaridade fez com que o sequenciamento integral do genoma fosse descartado.

desafios e talentosO Genoma Cana durou dois anos e meio, reuniu 240 pesquisadores e teve finan-ciamento da ordem de US$ 4 milhões da FAPESP e outros US$ 400 mil da Co-persucar. “O projeto foi realmente ino-vador. Centrado em gente muito jovem, que tinha mais facilidade de lidar com tecnologia que os pesquisadores mais ex-perientes, o Genoma Cana mostrou que é possível identificar grandes desafios e reunir talentos para resolvê-los”, afirma Arruda. Fundamentalmente, deu início ao esforço, ainda em curso, de aprofun-dar o conhecimento sobre o metabolis-mo da cana para obter mais rapidamente variedades mais produtivas e resistentes à seca ou a solos pobres.

A conclusão do Genoma Cana não ar-refeceu o interesse dos pesquisadores e da indústria em seguir buscando conhe-cimento sobre a planta. Depois de 2003, Glaucia Souza assumiu a coordenação do Sucest e iniciou o Projeto Sucest-FUN, dedicado à análise dos genes da cana. A identificação dos 348 genes associados ao teor de sacarose foi realizada em um projeto entre o CTC, a Usina Central de Álcool Lucélia e pesquisadores da USP e Unicamp, num projeto liderado por Glaucia. Outro projeto importante foi a identificação de marcadores molecu-lares a partir das sequências do Sucest, sob a liderança da pesquisadora Anete Pereira de Souza, do Instituto de Biolo-gia da Unicamp. “Os projetos da Glaucia e da Anete foram dois marcos, porque demonstraram haver uma comunidade preparada a investir no tema. Os avan-ços viabilizaram mapear o Genoma da Cana, o que não era possível na época do Sucest”, diz Marie-Anne.

Simultaneamente, crescia o interesse das empresas pela pesquisa em bioenergia. Em 2006, a FAPESP, em parceria com o

56%da energia consumida no estado de são Paulo vem de fontes renováveis

a produtividade do etanolbiocombustível brasileiro tem o melhor rendimento

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BNDES, firmou um convênio com a Oxi-teno, do Grupo Ultra, para o desenvolvi-mento de projetos cooperativos em que se investiga desde o processo de hidró-lise enzimática do bagaço da cana para a obtenção de açúcares até a produção de etanol de celulose. No ano seguinte, a Dedini Indústrias de Base celebrou um convênio com a FAPESP para financiar projetos sobre técnicas de conversão do bagaço de cana em etanol. No início de 2008, a FAPESP e a Braskem também es-tabeleceram um convênio para o desen-volvimento de biopolímeros. Duas em-presas de biotecnologia, formadas em boa medida por pesquisadores vinculados ao Programa Genoma da FAPESP, a Alellyx e a Canavialis, foram adquiridas no final de 2008 pela multinacional Monsanto, que as transformou em sua plataforma mundial de pesquisa em cana-de-açúcar – Paulo Arruda, que liderou o Genoma da Cana, trabalhava na Alellyx.

Milho coM sUbsídiosA crescente importância econômica da cana ajudou a impulsionar o interesse dos pesquisadores. O Brasil colheu na safra de 2009 569 milhões de toneladas de cana – quase o dobro da colheita de 1999, segun-do dados da União da Indústria de Cana- -de-Açúcar (Unica). Metade da produção foi transformada em etanol – o equiva-lente a 27 bilhões de litros –, o que coloca o Brasil como o segundo maior produtor

mundial de combustível. O primeiro lugar cabe aos Estados Unidos, que extraem etanol de milho a poder de pesados sub-sídios. São Paulo respondeu por 60% da produção nacional. O ganho de produti-vidade tem sido maior do que 3% ao ano nos últimos 40 anos, resultado de melho-ramento genético da cana. O etanol fez do Brasil um exemplo único de país que substituiu o uso de gasolina em grande escala. No estado de São Paulo, 56% da energia vem de fontes renováveis, sendo 38% da cana.

Para articular os esforços existentes e dar impulso a vertentes de pesquisa ainda incipientes, a FAPESP lançou em julho de 2008 o Programa Bioen. Um dos

objetivos é superar entraves tecnológicos e ampliar ainda mais a produtividade do etanol de primeira geração, feito a partir da fermentação da sacarose. Outro mote é participar da corrida internacional em busca do etanol de segunda geração, pro-duzido a partir de celulose. O programa tem cinco vertentes. Uma delas é o de pesquisa sobre biomassa, com foco no melhoramento da cana. A segunda é o processo de fabricação de biocombustí-veis. A terceira está vinculada a aplica-ções do etanol para motores automotivos e de aviação. A quarta é ligada a estudos sobre biorrefinarias, biologia sintética, sucroquímica e alcoolquímica. E a quin-ta trata dos impactos sociais e ambientais do uso de biocombustíveis.

Um desdobramento do Bioen foi a criação em 2010 do Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia. Trata-se de um esforço para estimular a pesquisa inter-disciplinar e ampliar o contingente de pesquisadores envolvidos com o tema, mantido pela FAPESP, o governo do es-tado de São Paulo e as três universidades estaduais paulistas. Pelo convênio, o go-verno repassa recursos para a USP, a Uni-camp e a Unesp, que serão usados para a construção de laboratórios, reformas e compra de equipamentos. As univer-sidades incumbem-se de contratar mais pesquisadores em diversas vertentes da bioenergia. Já a FAPESP assumiu a mis-são de selecionar e financiar os projetos vinculados ao centro. “Atualmente as três universidades estão organizando editais para contratar os primeiros 17 pesquisa-dores do centro, sendo 7 nas unidades da USP, 5 na Unicamp e 5 na Unesp”, diz Luis Cortez, professor da Unicamp e coordenador do centro. Esse número deve chegar a cerca de 50, à medida que novos investimentos forem feitos pelo governo. Um exemplo é o Centro de Bio-logia Sintética e Sistêmica da Biomassa, na USP, idealizado em 2008 por Glaucia Souza, Marie-Anne Van Sluys e Marcos Buckeridge. Esse centro vai reunir pes-quisadores dos institutos de Química, de Matemática e Estatística, de Biociên-cias, de Ciências Biomédicas, e da Escola Politécnica. A biologia sintética combi-na biologia e engenharia para construir novas funções e sistemas biológicos. “A intenção é investir numa área em que o Brasil ainda não tem grande expertise e envolver pesquisadores de várias disci-plinas”, diz Glaucia Souza. n

Universidades, fapesp e governo articulam-se para ampliar número de pesquisadores dedicados à bioenergia

Uma itaipu de resíduos geração de eletricidade por queima de bagaço e palha de cana no país

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estudo sugere que o contato pessoal entre

pesquisadores é essencial para incentivar

colaborações internacionais

quais são as formas mais efetivas de se-mear parcerias de pesquisadores com colegas de outros países? As colabo-rações, cada vez mais almejadas por alcançarem produtividade e relevân-

cia frequentemente maiores do que as de trabalhos individuais ou de parcerias domésticas, ocorrem com mais naturalidade em meio a um conjunto de fatores, e um dos mais importantes deles é a chance de conhecer informalmente colegas es-trangeiros, em congressos e simpósios. Também desempenham papéis importantes na frequência de colaborações a proximidade cultural entre os pesquisadores; a existência de recursos direcio-nados para a pesquisa em cooperação; além, na-turalmente, da excelência acadêmica e dos níveis de desenvolvimento tecnológico dos parceiros, combustíveis naturais para trabalhos conjuntos de alto nível. Essas conclusões emergem de um estudo feito por três pesquisadores da Coreia do Sul publicado na edição de dezembro da revista Scientometrics. De autoria de Seongkyoon Jeong e Jae Young Choi, do Korea Institute of Machinery and Materials (KIMM), e Jaeyun Kim, do Korea Institute for Industrial Economics and Trade (KIIET), o artigo apresenta um modelo estatís-tico que se propõe a ponderar a importância de

a arte de fazer parceiros

a consultoria science-Metrix criou um mapa

das colaborações científicas no mundo com base em artigos

com coautores de países diferentes publicados em revistas das bases

de dados scopus e web of science entre os anos

de 2005 e 2009

1_ internacionalização da ciência

44 _ janeiro De 2012

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diversos fatores na criação de parcerias interna-cionais, de colaborações dentro de um mesmo país ou de uma mesma instituição, ou ainda da opção pelo trabalho individual.

O dado mais significativo do artigo é o peso que ele confere à comunicação informal entre os pes-quisadores como fator fundamental no estímulo às parcerias. Os autores observaram, por exemplo, uma relação direta entre a frequência de viagens internacionais e a preferência dos pesquisadores por publicar artigos científicos em coautoria com estrangeiros, em detrimento de trabalhos indivi-duais. “O resultado mostra como a comunicação informal com uma unidade de pesquisa no exterior pode acelerar as colaborações internacionais”, es-creveu Seongkyoon Jeong, autor principal do artigo e pesquisador do Departamento de Políticas em Pesquisa e Desenvolvimento do KIMM. A inter-net e outros recursos da tecnologia da informação claramente favorecem a comunicação a distância entre cientistas, mas as evidências mostram que a maioria das colaborações começa apenas depois que as partes estabelecem contatos pessoais. “Os formuladores de políticas públicas devem esti-mular a frequência de comunicação informal para encorajar os pesquisadores a se beneficiarem das oportunidades de colaboração internacional.”

É certo que a amostra avaliada tem limites: foi analisado um conjunto de 1.530 artigos publicados entre 1997 e 2010 por pesquisadores do KIMM, um instituto do governo coreano para pesquisa em mecânica que atua como ponte entre as uni-versidades e o setor industrial. Esses dados foram cruzados com outras informações sobre o desem-penho dos pesquisadores, como, por exemplo, as viagens de trabalho nacionais e internacionais que realizaram no período. O estudo discute as motivações dos que mais colaboram e oferece um conjunto de sugestões para as instituições de pesquisa e as agências de fomento incentivarem seus pesquisadores a colaborar com estratégias mais eficientes. Além de estimular a comunicação informal, recomenda fomentar processos de ava-liação dos pesquisadores e dar mais peso à produ-ção acadêmica feita em parcerias internacionais neste processo de avaliação. Ou ainda criar linhas de financiamento que estimulem pesquisas com potencial de colaboração.

A ideia de que encontros pessoais com colegas estrangeiros fertilizam futuras parcerias coincide com a experiência de pesquisadores brasileiros. Vanderlei Salvador Bagnato, professor do Institu-to de Física de São Carlos (IFSC) da Universida-de de São Paulo (USP), cita um exemplo recente. o

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cienciometria

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46 _ janeiro De 2012

Em abril, ele coordenou um curso de duas semanas em São Carlos com a participa-ção de palestrantes e estudantes estran-geiros, a Escola Avançada Desafios Mo-dernos com Matéria Quântica: Átomos e Moléculas Frias. A iniciativa faz parte de uma modalidade de apoio da FAPESP, as Escolas São Paulo de Ciência Avançada, que buscam aumentar a exposição inter-nacional de áreas de pesquisa de São Pau-lo já competitivas mundialmente. Além de discutir um tema emergente, o objeti-vo, segundo Bagnato, é atrair bons alunos do exterior e de outros estados para atuar em São Paulo. Como acontece em todas as Escolas Avançadas, a metade dos alu-nos convidados veio de outros países e a ambição do programa é que parte deles se candidate a bolsas de pós-doutoramento no Brasil. “A escola foi maravilhosa para nós. Muitos estudantes que participa-ram querem vir estudar conosco ou fazer pós-doutoramentos. Em especial, temos vários candidatos alemães que desejam passar alguns meses aqui para discutir possibilidades de pós-doutorado”, diz Bagnato. Com relação aos professores, diversas colaborações nasceram. “Com a Universidade de Cambridge, a pesquisa-dora Natalia Berloff começou uma cola-

boração conosco e levou uma de minhas estudantes para fazer um doutorado san-duíche na Inglaterra. O professor Mako-to Tsubota, da Universidade da Cidade de Osaka, já enviou um visitante para o nosso laboratório e nós pretendemos mandar estudantes para lá. Muitos outros participantes estão colaborando com o professor Philippe Courteille, também do Instituto de Física da USP. Acho que a escola foi uma boa janela para trazer-mos estrangeiros para cá e estabelecer uma forte colaboração feita sobre pilares sólidos, pois agora eles conhecem tam-bém nossa instituição e não apenas um dos pesquisadores”, explica.

contra o senso coMUMSamile Vanz, autora de uma tese de dou-torado sobre colaborações científicas no Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 169) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acredita que os acha-dos do grupo sul-coreano são um ponto de partida importante para o debate so-bre as colaborações e um norte para fu-turos estudos. “Há outro dado do artigo, que contraria o senso comum, mostrando que não foi observada uma correlação entre o fato de pesquisadores terem feito

rede de coautores das colaborações científicas ligadas ao laboratório de pesquisa em informática da universidade paris-sud, na frança, de 2000 a 2004

burocracia das universidades faz com que pesquisadores viajem menos ao exterior do que poderiam, diz samile vanz

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doutorado no exterior e um aumento em colaborações internacionais. As agências de fomento brasileiras, aliás, só têm finan-ciado doutoramentos lá fora em poucos casos, quando se trata de áreas em que o país ainda é fraco. Preferem patrocinar os doutorados sanduíche e os pós-doutora-dos, de duração menor”, diz. “Claro que isso precisa ser investigado numa amos-tra bem maior, mas sugere que a ideia de que é preciso enviar pesquisadores para fazer doutorado no exterior para inter-nacionalizar a ciência brasileira talvez tenha impacto menor do que a estratégia de investir com mais fôlego na participa-ção em simpósios, congressos, visitas e missões no exterior”, diz Samile.

A pesquisadora afirma que a burocra-cia das universidades e as regras restritas de agências de fomento fazem com que os pesquisadores brasileiros viajem me-nos ao exterior do que poderiam. “Falo pela minha experiência, de quem traba-lha numa universidade federal. A auto-rização para uma viagem é demorada e precisa passar por diversas instâncias. E não se consegue mais do que um au-xílio por ano nas agências. Os recursos para participar de congressos, ou para trazer gente de fora em congressos aqui,

saem do lugar. A incompatibilidade po-de ser de timing. Existe o interesse, mas uma das partes não está tão disponível quanto a outra. Às vezes o problema é o excesso de confiança – um dos parceiros quer publicar logo e o outro não. Ou en-tão é o excesso de zelo – uma das partes quer testar 30 vezes e a outra não acha necessário”, diz Knobel, que já estabele-ceu colaborações com colegas de mais de 20 países e costuma receber em seu labo-

ratório pesquisadores visitantes de várias na-cionalidades (ver Pes-quisa FAPESP nº 175). As motivações para co-laborar são múltiplas, afirma. “Pode ser o jo-vem pesquisador em busca da sabedoria do mais velho, ou o cien-tista sênior sem tempo para se dedicar mais e precisando da ajuda de

jovens talentosos. Às vezes são pesquisa-dores experimentais precisando da ajuda de teóricos, ou vice-versa. Ou então se trata do especialista numa determinada técnica que é procurado por pesquisa-dores em busca de um apoio específico”, explica. O contato pessoal com colegas de outros países é indispensável para a colaboração vicejar. “Você não precisa conhecer um pesquisador para saber o que ele está fazendo. Basta ler seus tra-balhos científicos. Mas para fazer par-ceria é preciso ter contato pessoal, ver se os gostos e os interesses se afinam, se a conversa tem ressonância. No fun-do, é para isso que se fazem tantos con-gressos e simpósios”, diz o pesquisador, que em 2010 ajudou a coordenar o sim-pósio Frontiers of Science, organizado pela Royal Society e pela FAPESP, que reuniu em Itatiba, no interior paulista, um grupo de 76 pesquisadores do Brasil, do Reino Unido e do Chile para debater grandes questões do conhecimento sob uma ótica multidisciplinar. “O objetivo do simpósio era justamente o de colocar pesquisadores para conversar e estimular parcerias”, afirma. n fabrício Marques

ainda são restritos”, afirma. “Há muito a avançar no estímulo a esse intercâmbio informal aqui no Brasil.”

Estudos citados no artigo sul corea-no mostram que a proporção de papers de alto impacto cresce à medida que o número de autores por artigo aumen-ta – se os coautores são de países dife-rentes, o número de citações chega e ser duas vezes maior do que em cola-borações dentro de um mesmo país. “Os formuladores de políticas também têm estimulado colaborações em grandes iniciativas sob a influência de um novo paradigma chamado de Inovação Aber-ta”, escreveram os autores, referindo-se a um modelo colaborativo de pesquisa em que o fluxo de informações permite que as ideias sejam mais bem aproveitadas mesmo que não seja necessariamente por quem as gerou.

Mas o desejo de colaborar enfrenta uma prova de obstáculos antes de se con-verter em artigos publicados em coauto-ria. Marcelo Knobel, professor do Institu-to de Física Gleb Wataghin, da Universi-dade Estadual de Campinas, conta que só uma fração dos contatos internacionais transforma-se em colaborações. “Há par-cerias que começam promissoras mas não

apenas uma fração dos contatos em congressos internacionais converte-se em colaborações

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artigo científicoJEONG, S. et al. The determinants of research collaboration modes: exploring the effects of research and researcher characteristics on co-authorship. Scientometrics. v. 89, p. 967-83. 2011.

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48  janeiro De 2012

especialista defende a

convergência tecnológica,

estratégia que reúne

áreas diversas em temas

de fronteira

mihail Roco, engenheiro de ascen-dência italiana nascido na Romênia e uma das maiores autoridades em nanotecnologia nos Estados Uni-dos, esteve em São Paulo em no-

vembro para motivar os pesquisadores brasileiros a trabalharem em conjunto com colegas de outras áreas em projetos amplos, ambiciosos, de alto im-pacto científico, econômico e social. Essa aborda-gem de trabalho multidisciplinar é hoje chamada convergência tecnológica, um tema debatido na Europa, nos Estados Unidos, na Austrália e no Japão e cada vez mais valorizado no Brasil. Em 2008, Esper Abrão Cavalheiro, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e assessor do Centro de Gestão e Estudos Estraté-gicos (CGEE) do Ministério da Ciência e Tecno-logia, alertou: “Se o Brasil não entrar no debate sobre as convergências tecnológicas correrá o risco de ver os países desenvolvidos decidindo por nós” (ver Pesquisa FAPESP nº 136).

“As pessoas não conseguem se reorganizar do dia para a noite”, comentou Roco, conselheiro de nanotecnologia da National Science Foundation

pontes entre disciplinas

(NSF), principal agência federal norte-americana de financiamento à pesquisa, com um orçamento anual próximo a US$ 7 bilhões. Mesmo nos Es-tados Unidos, segundo ele, não é nada fácil con-vencer um cientista a levar realmente a sério o que um colega de outra área está fazendo. “Uma de minhas tarefas é tirar os cientistas da inércia em que vivem e mostrar que podem ganhar muito trabalhando com especialistas de outras áreas”, comentou. “As especialidades são necessárias, mas não precisamos permanecer o tempo todo nelas. Podemos integrar nossas áreas e voltar a ver a ciência como uma coisa só.” Em 10 anos, desde que começou a trabalhar nessa área no NSF, Roco fez os investimentos federais em nanotecnologia nos Estados Unidos aumentarem seis vezes, até atingir US$ 1,5 bilhão, como em 2007.

Segundo Roco, a convergência tecnológica im-plica começar um trabalho a partir dos problemas a serem resolvidos, não das disciplinas envolvi-das. Implica também buscar objetivos comuns, compartilhar teorias e enfoques de trabalho, va-lorizar as capacidades das pessoas e os resultados e antecipar e gerenciar oportunidades e riscos.

_ CooPERAção

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as quatro áreas da nbic, a maior expressão atual da convergência

Em resumo, como ele disse, “usar todo o cérebro, não só parte dele”. Para deslanchar, essa estratégia de trabalho necessita também de mudanças na go-vernança das universidades, centros de pesquisa, empresas e órgãos do governo, de modo que valo-rizem “uma visão de longo prazo, transformadora, inclusiva, colaborativa e visionária”.

Os Estados Unidos apostam nessa estratégia de trabalho multidisciplinar – em especial na área chamada NBIC, que reúne nanotecnologia, biologia, informática e ciências cognitivas – para manter a liderança científica mundial. Se os obs-táculos forem vencidos, talvez os pesquisadores consigam realmente chegar, como pretendem, a terapias contra câncer ou uma retina artificial, entre outros produtos, como resultado do traba-lho conjunto de médicos, engenheiros, físicos e cientistas da computação.

O que se quer é tornar mais comuns produtos como os implantes ósseos, raros há 10 anos e hoje corriqueiros, e o álcool combustível, produzido no Brasil há mais de 30 anos. O desenvolvimento de tais produtos indica que especialistas de mundos muitas vezes distantes conseguem se entender e

transformar boas ideias em produtos capazes de modificar a vida das pessoas e as relações sociais.

“Nas décadas recentes houve duas revoluções biomédicas, a biologia molecular e a genômica”, recapitularam Phillip Sharp e Robert Langer, cientistas do Instituto de Tecnologia de Massa-chusetts (MIT), Estados Unidos, em um artigo publicado em julho de 2011 na revista Science. “Acreditamos que a convergência de campos re-presenta uma terceira revolução, em que o pen-samento e a análise multidisciplinares permitirão a emergência de novos princípios científicos e em que engenheiros e físicos sejam parceiros em igualdade de condições com biólogos e médicos enquanto lidam com os novos desafios médicos.” Sharp, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 1993, é também o primeiro autor de um documen-to de 40 páginas do MIT distribuído em janeiro de 2011 com as definições e as perspectivas da convergência tecnológica, agora vista como uma abordagem capaz de trazer avanços em setores como saúde, energia, agricultura e clima.

zona de confortoE no Brasil, quais as chances de a convergência tecnológica avançar? Teoricamente, são grandes, na visão de Lélio Fellows Filho, assessor do CGEE. Seu primeiro argumento é que a convergência tecnológica, que ele define como “uma nova ma-neira de olhar problemas e abordar soluções”, é oportuna porque “precisamos dar saltos, não só caminhar”, para resolver os problemas do país. Além disso, ele verificou que 1.309 grupos de pesquisa, dos 35 mil registrados no país, já estão na NBIC (220 grupos em nanotecnologia, 791 em biotecnologia, 278 em tecnologias da informação e 120 em ciências cognitivas). Dos 134 institutos nacionais de ciência e tecnologia (INCTs), 55 for-mam “o universo que pode ser mobilizado para ações de convergência”, comentou.

Fellows sabe que não será simples motivar os principais representantes desse universo a tra-balharem coletivamente em problemas comuns ou que exigem soluções complexas. “Precisamos diminuir a desconfiança e as distâncias entre áreas de conhecimento de práticas, costumes e ideários diferentes”, ele propõe. “Temos também de vencer a inércia das áreas de conhecimento e motivar os pesquisadores a saírem de suas zo-nas de conforto e se envolverem em iniciativas de risco e de ruptura.” n carlos fioravanti

info

cogno bio

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bioinforMÁtica

biotecnologia

nanotecnologia

tecnologia da inforMação

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ciÊncia

quando o tiMo não vai bem

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cópia extra de gene

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das células de defesa na

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texto ricardo zorzetto e francisco bicudo

ilustração Mariana coan

começa-se a conhecer melhor a razão por que as pessoas com síndrome de Down, que atinge uma em cada 700 crianças, são mais suscetíveis a desenvolver doenças autoimu-nes do que o restante da população.

Nelas, um sofisticado mecanismo que ensina as células de defesa a reconhecer e combater o que é estranho ao organismo encontra-se desregu-lado, mostraram pesquisadores brasileiros em um estudo publicado em setembro no Journal of Immunology. A consequência desse desequilíbrio é que as células que deveriam proteger o corpo passam a atacá-lo, levando ao desenvolvimento de enfermidades autoimunes como o diabetes tipo 1, o hipotireoidismo ou a doença celíaca.

A pediatra Magda Carneiro-Sampaio e sua equipe no Instituto da Criança (ICr) da Facul-dade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) verificaram que algo não andava bem com o amadurecimento das células de defesa das crianças com síndrome de Down quando pude-ram comparar a atividade do timo delas com a do timo de crianças sem o problema. Órgão pequeno e achatado em forma de borboleta, o timo se si-tua no tórax, atrás do osso esterno e à frente do coração, e funciona como uma escola de treina-mento de guerra. É ali que um grupo especial de células de defesa – os linfócitos T, responsáveis por orquestrar o combate a infecções e a elimi-nação de células doentes – aprende a distinguir o que integra o próprio corpo e deve ser preser-vado daquilo que vem de um organismo estranho e deve ser exterminado.

Quando o timo funciona bem, os linfócitos que passam por esse treinamento e se mostram capa-zes de reconhecer e atacar as células do próprio organismo são destruídos ali mesmo – a morte é o destino de 95% a 97% dos linfócitos T. Só saem do timo para a circulação sanguínea e a linfática os 3% a 5% restantes dos linfócitos, que demonstram ter a habilidade de identificar e atacar apenas os agentes infecciosos, os compostos estranhos ao corpo ou as células defeituosas. Na síndrome de Down, porém, esse rigoroso sistema de preparo e seleção celular encontra-se desbalanceado.

O desajuste no amadurecimento dos linfó-citos só começou a ficar evidente nos últimos anos, quando o grupo de Magda usou técnicas de biologia molecular para estudar o timo de 60 crianças (14 com síndrome de Down e 46 sem) com idade entre 4 meses e 12 anos. Todas elas haviam passado por uma cirurgia para corrigir defeitos cardíacos graves que exigiu a retirada do

_ iMunodeficiências priMÁrias

iMunologia

pediatria

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timo. Ao comparar o funcionamento do timo, os pesquisadores constataram que, em média, esse órgão era menos ativo nas crianças com síndrome de Down do que naquelas sem o problema (ver info-gráfico acima).

o geneticista Carlos Alberto Morei-ra Filho e a psiquiatra e especia-lista em bioinformática Helena

Brentani avaliaram o nível de ativação de quase 22 mil genes nas células do timo e verificaram que cerca de 400 desses ge-nes, muitos deles responsáveis pela mul-tiplicação celular e pelo amadurecimento das células de defesa, se encontravam menos ativos nas crianças com Down. Um em especial chamou a atenção. É o gene autoimmune regulator (AIRE). Esse gene codifica a produção de uma proteína essencial para a seleção apropriada dos linfócitos T. Sem essa proteína, os linfó-citos nocivos ao próprio organismo não são exterminados no timo, como deve-riam, e se espalham pelo corpo.

A patologista Maria Irma Seixas Duar- te e a biomédica Flavia Afonso Lima ob-servaram que havia duas vezes mais cé-lulas com o gene AIRE ativo no timo das crianças sem Down do que no daquelas com a síndrome. Em média, 155 células por milímetro quadrado expressavam o AIRE no timo das crianças do primeiro grupo e apenas 70 no daquelas do se-gundo. “O baixo nível de expressão do

gene AIRE permite compreender por que as doenças autoimunes são mais frequentes em quem tem síndrome de Down”, conta Magda.

O padrão de acionamento dos genes nas células do timo ajuda também a ex-plicar os sinais clínicos observados em crianças com Down, a anomalia cromos-sômica mais comum em seres huma-nos, causada pela presença de uma cópia extra do cromossomo 21 no núcleo das células. Desde muito cedo na vida, boa parte das pessoas com Down apresenta problemas autoimunes desencadeados pelo ataque das células de defesa a ór-gãos específicos. O risco de desenvolver hipotireoidismo, diabetes tipo 1 ou doen- ça celíaca é respectivamente 4 vezes, 6 vezes e de 10 a 40 vezes maior entre as crianças com síndrome de Down do que no restante da população. Há quase três décadas também se sabe que o timo des-sas crianças é menor do que o daquelas sem a anomalia cromossômica.

Ante os resultados de agora, Magda e sua equipe propõem uma reinterpretação da origem dos problemas autoimunes fre-quentes na síndrome de Down. “As enfer-midades autoimunes que essas crianças apresentam são decorrentes de uma imu-nodeficiência primária, e não secundária como se classifica atualmente”, afirma.

O que essa reavaliação significa? Em primeiro lugar, que a causa das doenças autoimunes nas pessoas com Down é di-

ferente do que se pensava. “A origem do mau funcionamento do sistema de de-fesa delas é genética e aparece durante a formação do embrião”, conta Magda. Até então, a explicação mais aceita pelos especialistas era que esses problemas autoimunes decorriam da degeneração do timo causada pelo envelhecimento precoce. Em segundo lugar, que essas crianças podem não estar recebendo me-dicação adequada.

A fim de aprimorar o tratamento des-sas crianças, a equipe de Magda e a do pediatra Zan Mustacchi iniciaram em dezembro no Hospital Infantil Darcy Vargas, em São Paulo, a triagem daquelas que têm síndrome de Down e apresen-tam infecções recorrentes mesmo depois de vacinadas contra doenças virais e bac-terianas. Eles pretendem verificar se essa suscetibilidade maior a infecções – elas

o projetoautoimunidade na criança: investigação das bases moleculares e celulares da autoimunidade de início precoce – nº 2008/58238-4

Modalidadeprojeto temático

coordenadoraMagda carneiro-sampaio – fMusp

investiMentor$ 1.470.770,68 (fapesp)

treinamento de guerratimo prepara células de defesa para identificar agentes infecciosos e compostos estranhos ao corpo

apenas de 3% a 5% dos linfócitos gerados no timo (linfócitos t) vão para a corrente sanguínea. eles se espalham pelo corpo e permanecem prontos para combater agentes infecciosos e células doentes

no timo, os linfócitos aprendem a identificar o que é estranho ao organismo e deve ser destruído. uma seleção rigorosa elimina os linfócitos (em preto) defeituosos ou capazes de atacar o próprio corpo

Multiplicação

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precursoras dos linfócitos, células--tronco vindas do fígado e da medula dos ossos penetram no timo e começam a se multiplicar

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podem agravar os problemas cardíacos, frequentes nas crianças com Down – também decorre do mau funcionamento do timo. “Se for confirmado, poderemos programar uma vacinação complemen-tar na tentativa de melhorar a resposta imunológica dessas crianças e, em certos casos, indicar o uso preventivo de anti-virais e antibióticos para aquelas com cardiopatia congênita”, diz Zan.

anos atrás o grupo do Instituto da Criança decidiu investigar a ati-vidade do timo na síndrome de

Down porque o padrão de problemas imunológicos apresentados por essas crianças lembrava o de outra enfermi-dade rara associada à disfunção desse órgão: a poliendocrinopatia autoimune tipo 1 (APECED). Comum em italianos da Sardenha, finlandeses e judeus ira-nianos, essa poliendocrinopatia, também se caracteriza pela atividade anormal do timo. Em ambas, linfócitos que deve-riam ser destruídos escapam à seleção e atacam o próprio corpo por causa da atividade anormal do gene AIRE, que se encontra no cromossomo 21.

órgão. Mas o teste genético ainda é caro para ser adotado pelo sistema público de países como o Brasil – seriam necessários a cada ano US$ 2,4 milhões para aplicar o teste às 600 mil crianças que nascem no estado de São Paulo. Por esse motivo, o grupo da USP pensa em aproveitar a ultrassonografia do feto, feita durante a gestação, para avaliar o tamanho do ti-mo. “Esse seria apenas um item a mais a ser verificado durante a avaliação de anomalias fetais por ultrassom”, diz Luiz Antonio Nunes de Oliveira, chefe do Ser-viço de Radiologia do ICr.

como o timo é proporcionalmente grande no feto, é possível identi-ficá-lo por meio desse exame de

imagem. “Os casos em que o timo for menor que o normal ou não estiver vi-sível seriam considerados suspeitos e os médicos poderiam solicitar um leuco-grama logo após o nascimento”, explica Oliveira. A obstetra Roseli Nomura, do Departamento de Obstetrícia e Gine-cologia da FMUSP, trabalha agora para descobrir as melhores condições técni-cas para avaliar o timo por ultrassom no último exame pré-natal, sem aumentar muito a duração e o preço do exame.

Identificar mais cedo a atividade anor-mal do timo é importante para a sobre-vivência do recém-nascido. As crian-ças com imunodeficiências graves, por exemplo, não devem receber a vacina

BCG, aplicada logo após o nascimento. Essa vacina anti-tuberculose é produzida com bacilos vivos, que podem cau-sar uma infecção grave – e até fatal – nesses bebês. “Quanto antes se fizer o diagnóstico, mais cedo se pode programar a imunização mais adequa-da para a criança”, afirma a pediatra Cristina Jacob, che-

fe da Unidade de Alergia e Imunologia do ICr. Nos casos de imunodeficiência combinada grave, o diagnóstico preco-ce permite o encaminhamento rápido da criança para o transplante de células hematopoiéticas, a única opção terapêu-tica possível por ora. n

Na APECED alterações na estrutura desse gene, como a encontrada em 2007 pelo grupo de Magda em uma família de brasileiros descendentes de italianos, pre-judicam a expressão do AIRE e a seleção dos linfócitos T. Na síndrome de Down trechos muito pequenos de material ge-nético – os micro-RNAs, encontrados em abundância no cromossomo 21 – podem interferir na atividade do AIRE e de ou-tros genes. “Pretendemos investigar o papel desses micro-RNAs na próxima etapa do trabalho”, conta Magda.

Ela e os pesquisadores da USP pla-nejam ainda usar testes que permitam avaliar o tamanho e a atividade do timo para identificar, se possível antes mesmo do nascimento, essas e outras imunodefi-ciências primárias graves. Consideradas raras, essas enfermidades se manifestam muito cedo na vida e deixam as crianças mais suscetíveis a infecções ou a proble-mas autoimunes. Calcula-se que uma em cada 10 mil crianças apresente alguma forma de imunodeficiência grave (parte dos casos com alteração no timo), quase sempre fatal sem o tratamento correto.

Uma das imunodeficiências que os pesquisadores esperam detectar cedo é a síndrome de DiGeorge, que afeta uma em cada 4 mil crianças. Consequência da perda de um pedaço do cromossomo 22, essa síndrome causa defeitos no coração e na face e impede o desenvolvimento normal do timo. De 1% a 2% das crianças

com a síndrome podem até mesmo nascer sem o timo, o que impede a formação do sistema imunológico e só é corrigido por meio do transplante do órgão. A equipe do ICr quer identificar ainda os casos de imunodeficiência combinada grave, que atinge 1 em cada 40 mil bebês.

Nos últimos anos alguns estados norte-americanos incluíram na triagem neo-natal – o teste do pezinho – um exame que mede o número de linfócitos recém- -liberados pelo timo, que funcionam co-mo indicador no sangue da atividade do

pesquisadores buscam condições técnicas para avaliar o timo no pré-natal

artigo científicoLIMA, F. A. et al. Decreased AIRE expression and global thymic hypofunction in Down Syndrome. The Journal of Immunology. v. 187 (6), p. 3.422-30. 15 set. 2011.

alterações no funcionamento do timo prejudicam o processo de seleção e deixam escapar linfócitos t que atacam órgãos como a tireoide, causando doenças autoimunes

Ataque

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54 _ janeiro De 2012

construção de rodoanel na

grande são paulo aciona

operação de replantio de matas

Pelo menos uma vez por semana o biólogo sul-mato-grossense Paulo Ortiz chega por volta das sete da manhã, uma hora e meia antes do habitual, ao Instituto de Botânica, ao lado do Zoológico da

cidade de São Paulo. Põe as botas pretas e logo sai, com outros biólogos, para percorrer a periferia da capital e municípios vizinhos e ver como estão crescendo as matas que devem repor a vegetação nativa perdida com a construção do trecho sul do rodoanel Mário Covas, uma estrada de 57 quilô-metros que contorna a capital paulista e outros seis municípios da Grande São Paulo, interligando as estradas do interior paulista ao litoral.

O trabalho de recomposição de mata atlântica, ainda que pouco visível para quem circula pelas ruas da metrópole, mas importante para ameni-zar o calor e as inundações, representa a maior experiência de restauração de florestas realizada em conjunto por órgãos públicos, institutos de pesquisa e empresas privadas na história pau-lista. Os 1.016 hectares (cada hectare equivale a 10 mil metros quadrados) que devem ser reocu-pados com espécies nativas de mata atlântica estão espalhados por 147 áreas públicas de ta-

Uma estrada, muitas florestas

_ preservação aMbiental

carlos fioravanti

2007

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três anos depois: a floresta ganha corpo em um dos parques criados pela dersa; acima, a estrada atravessa uma das represas da capital

manhos variáveis – de 70 metros quadrados, o equivalente a um apartamento, a 100 hectares, ou 100 campos de futebol juntos – em São Paulo e outros 13 municípios próximos (Biritiba Mi-rim, Cotia, Embu das Artes, Itapecerica da Serra, Mairiporã, Mauá, Mogi das Cruzes, Nazaré Pau-lista, Ribeirão Pires, Salesópolis, Santo André, São Bernardo do Campo e Piracaia; ver no site www.revistapequisa.fapesp.br a localização das áreas de replantio).

Essa experiência atesta a habilidade de traba-lho conjunto entre pesquisadores de diferentes instituições, que se mobilizam para enfrentar problemas urgentes e resistências naturais ou humanas ao crescimento das florestas urbanas. Em um terço da área plantada, cerca de 300 hec-tares, as árvores morreram ou não cresceram como se esperava, por causa de imprevistos co-mo alagamentos, incêndios provocados, geadas, invasão de gado e oposição de alguns moradores vizinhos, que preferiam continuar ocupando as terras públicas com pastagens clandestinas para o gado que criavam. Uma equipe da Escola Su-perior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) ajudou a fo

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ecologia

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restaurar 8.500 hectares, uma área bem maior que a do trecho sul do rodoanel, mas sem tantos conflitos porque as no-vas matas cresceram em terras particu-lares, cujos donos desejavam a certifica-ção ambiental da produção de açúcar e álcool (ver Pesquisa FAPESP no 144, de fevereiro de 2008).

À medida que avança, a ocupação com vegetação nativa de uma área equivalente a 25% da floresta da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, evidencia a capacidade de botânicos e engenheiros agrônomos e florestais contribuírem efetivamente para a formulação e implantação de po-líticas públicas. Prova disso é que, como resultado de pesquisas que se transfor-maram em argumentos para aprimorar a legislação ambiental do estado de São Paulo, cada hectare deve conter cerca de 2 mil árvores de pelo menos 80 espécies diferentes. Desse modo, procura-se fazer com que as novas florestas sejam dura-douras e pelo menos similares às remo-vidas para a construção da estrada.

Não houve reflorestamento compensa-tório para o trecho anterior do rodoanel,

a empresa pública responsável pela cons-trução da estrada, replantasse 1.016 hec-tares de florestas, em áreas próximas à futura rodovia, para compensar a perda de 200 hectares de mata atlântica que cerca a Grande São Paulo.

O primeiro proble-ma emergiu assim que Luiz Mauro Barbosa, então diretor do Insti-tuto de Botânica, soube que sua instituição ti-nha sido designada pa-ra orientar o resgate de plantas vivas e o reflo-restamento compensa-tório com espécies na-tivas: “Mal conhecía-mos aquela área, do ponto de vista botâni-co”, lembra-se Barbo-sa, atualmente diretor de um dos centros de pesquisa do instituto. Ele foi um dos líderes de uma equipe de 80 pesquisadores que lo -go entraram na mata para identificar as plan-tas e retirar o que fosse possível, antes que che-gassem os tratores ras-

gando a floresta para abrir a estrada.Os pesquisadores estavam preocupa-

dos com o tempo, que era escasso, e com o tamanho da mata que teriam de per-correr. A mata a ser cortada pela estrada ocupava uma área quatro vezes maior que a de outra experiência pioneira de que haviam participado em 1985: a recu-peração da vegetação nativa da encosta da serra do Mar, corroída pela poluição então sem controle das empresas quími-cas de Cubatão. Hoje Barbosa acredita que, a despeito das pressões, consegui-ram salvar 80% de plantas herbáceas e epífitas da área de mata cortada pelo trecho sul do rodoanel.

No total, resgataram 22 mil plantas – principalmente samambaias, palmei-ras, bromélias e orquídeas –, que foram transferidas para o Jardim Botânico de São Paulo e praças públicas da Grande São Paulo ou reinstaladas nas imedia-ções de onde saíram e nas áreas de re-florestamento. Na mata atlântica que cerca a represa de Guarapiranga, uma das principais fontes de água dos mora-dores da Região Metropolitana, os bo-

os botânicos conheciam pouco a mata que seria cortada pela estrada

uma das novas áreas de mata atlântica em parelheiros, extremo sul de são paulo: diversidade de árvores já é visível

o oeste, mas as leis e os métodos apli-cados na restauração da mata atlântica do trecho sul devem ser aproveitados na construção dos próximos trechos, o norte e o leste, para compensar a perda de vegetação nativa próxima ao Parque da Serra da Cantareira, a maior floresta urbana do mundo, com 7.900 hectares, o dobro da área da floresta da Tijuca. Outra exigência ambiental do trecho sul que deve ser adotada nos próximos trechos é o sistema de monitoramento da dinâmica demográfica e das trans-formações do uso do solo e da cober-tura vegetal nativa, desenvolvido e ge-renciado em conjunto pelas equipes da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa) e Instituto Florestal.

o chaMadoEm 2007, como condição para a aprova-ção do projeto de construção do trecho sul do rodoanel, órgãos ambientais esta-duais e federais determinaram que a De-senvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa),

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tânicos encontraram raridades como uma bromélia de flores lilases, a Tillan-dsia linearis, já considerada extinta, e a Zygopetalum maxillare, uma orquídea ameaçada de extinção.

pisoteios e despachosDois anos depois, o trecho sul do rodoa-nel está funcionando, conectado ao tre-cho anterior, o oeste, e muitas áreas já parecem uma floresta jovem, com boas perspectivas de crescimento, principal-mente quando cercadas por remanes-centes de matas nativas.

Em um dos novos fragmentos de flo-resta em Parelheiros, um bairro distante na zona sul da cidade de São Paulo, as coisas estão correndo bem. “Veja, a flo-resta está começando a funcionar”, ob-serva o engenheiro agrônomo Maycon de Oliveira, da Verdycon, uma das três empresas contratadas pela Dersa para cuidar do replantio das árvores nas 147 áreas selecionadas.

Oliveira mostra uma das árvores, um fumo-bravo, que ele e sua equipe planta-ram em novembro de 2009. Nesse tempo, a árvore cresceu – está com quase 2,5 metros –, floresceu, frutificou e lançou sementes que germinaram e formaram descendentes já com 30 centímetros de altura que estão perto da árvore prin-cipal. O fumo-bravo, o ingá e o timburi que vicejam neste lote são espécies de árvores pioneiras, que crescem rapida-mente, fazendo sombra para as espécies de árvores de crescimento mais lento, mas de vida mais longa. Ao lado, um de-daleiro, uma árvore que deve viver ali muitos anos, já está com 1,5 metro de altura – e floresce.

Ali, como fazem há dois anos nas 147 áreas selecionadas para o refloresta-

mento, Paulo Ortiz e outro biólogo, Carlos Yoshiyuki Agena, exa-minam a mata emer-gente – sempre que podem, a bióloga Re-gina Tomoko Shira-suna e a engenheira Renata Ruiz Silva também participam das inspeções. Ali, a diversidade de espécies é visível, não há plantas rasteiras competindo por nu-trientes e a mortalidade das árvores é de apenas 12%. É um resultado bom, eles ponderam, já que no início esta área foi invadida por cavalos que pisotearam as mudas recém-plantadas.

Hoje cercadas para barrar a entrada de animais, as árvores crescem em terras antes ocupadas por uma horta desapro-priada pela prefeitura. Ao redor deste lote as árvores são mais antigas e mais altas. Karina Cavalheiro Barbosa, bióloga da Dersa que acompanha as equipes que orientam ou executam o plantio, conta que o conjunto de lotes plantados em Parelheiros faz parte de quatro unidades de conservação que devem ser entregues à prefeitura nos próximos meses.

Em Piracaia e Mairiporã, dois mu-nicípios que abrigam áreas destinadas ao replantio, os problemas são piores. Acredita-se que alguns moradores vizi-nhos cortem a cerca das áreas selecio-nadas para recolocar bois e vacas que haviam sido expulsos dali. Houve tam-bém incêndios de origem possivelmente criminosa nas florestas em crescimen-to; latões de combustível encontrados nas terras queimadas alimentam essa possibilidade. Karina e sua equipe per-sistem, replantando o que foi perdido e colocando placas alertando que se trata de uma área pública que não deveria ser fo

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22 milindivíduos (plantas) de centenas de espécies resgatados

7 milplantas (samambaias, bromélias, orquídeas, palmeiras) doadas às prefeituras da grande são Paulo

indicadores de sucesso: um

dedaleiro floresce e ortiz registra apenas 12% de

mortalidade de árvores

resultados do salvamento de vegetação nativa cortada pelo trecho sul do rodoanel:

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invadida. “Não faça despacho”, implora uma placa anônima cravada na terra de uma área de reflorestamento em Mai-riporã. É uma forma de evitar os incên-dios provocados pelas velas usadas em rituais religiosos.

Às vezes os moradores vizinhos das áreas selecionadas para reflorestamento são mais diretos e avisam aos primeiros que chegam que não querem nenhuma mudança desse tipo por ali, porque uma mata tiraria a visibilidade de suas casas e deixaria a comunidade mais isolada. E ameaçam: se avançarem, haverá represá-lias. O que fazer? Algumas vezes se opta por refazer o planejamento para não se perder o trabalho: a reposição de flores-tas é um trabalho caro, que custa de R$ 20 mil a R$ 25 mil por hectare.

Ninguém previa essas reações opostas, do mesmo modo que ninguém previa a geada que em uma só noite de julho de 2011 destruiu quase metade das ár-vores plantadas no município de Cotia pelas equipes da Verdycon e do consór-cio Jardiplan/Biotech. Em áreas de solo ruim – uma delas, ao lado do rodoanel,

no máximo 30 espécies de árvores por hectare, bem abaixo do que é encontrado em trechos originais de mata atlântica. Dessas 30, predominavam as pioneiras, que têm ciclo de vida curto e morrem em poucos anos. “Em dois anos havia uma pequena mata”, ele diz, “mas depois de 10 anos não havia quase nada”. Apenas duas das 98 áreas examinadas apresen-tavam uma densidade de árvores e uma diversidade de espécies aceitáveis.

Barbosa fez barulho. Procurou os di-rigentes da Secretaria do Meio Ambien-te do estado e das conversas, ele conta, resultou a Resolução SMA-21, publicada em 2001, definindo o plantio mínimo obrigatório de 30 a 80 espécies por hec-tare, dependendo do tamanho da área (quanto maior, mais espécies diferentes deveriam ser plantadas) e da proximi-dade com remanescentes de florestas, que poderiam ampliar a diversidade de espécies. Outra resolução, a SMA-47, de 2003, determinou que cada hectare deveria conter pelo menos 80 espécies nativas diferentes, sendo pelo menos 40% de pioneiras, de vida curta, e 40% de não pioneiras, de vida longa.

A legislação fez os viveiros de mudas ampliarem o número de espécies e a produção de mudas de árvores nativas. Barbosa, outra vez, foi atrás dos núme-ros e verificou que 55 viveiros cadas-trados produziam 13 milhões de mu-das de 277 espécies nativas em 2001. Seu levantamento indica que hoje 208 viveiros produzem 41 milhões de mu-das de mais de 600 espécies nativas do estado de São Paulo (o site do instituto, www.ibot.sp.gov.br, remete aos vivei-ros cadastrados e à lista das 700 espé-cies de árvores já reconhecidas como nativas do estado). Com esse avanço,

por um fio: as árvores custam a crescer em solo pobre, como na área ao lado, um ex- -depósito de entulho, e morrem após geadas fortes como a de cotia em julho de 2011 (abaixo)

era pátio de caminhões e depósito de entulho – a mortalidade das árvores é de 40%, mas estão surgindo soluções. Oliveira, da Verdycon, está avaliando a eficiência de um resíduo das usinas de açúcar e etanol para melhorar a quali-dade do solo. A equipe da Corpus, outra empresa que cuida do plantio, cobriu a terra ruim com resíduos da produção de cogumelos e verificou que as árvores estão crescendo melhor.

florestas de vida cUrtaBarbosa, do Instituto de Botânica, acre-dita que contribuiu bastante para a de-finição legal dos critérios de refloresta-mento adotados, reforçando a necessi-dade de utilização da alta diversidade de espécies nativas para aumentar as chances de sucesso dos planos de res-tauração. Por meio de dois projetos de políticas públicas apoiados pela FAPESP em 2001 e 2003, ele avaliou 98 áreas re-florestadas nos 10 anos anteriores em todo o estado de São Paulo.

“Quando vi o resultado, levei um sus-to”, ele conta. Na maioria das áreas havia

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ele acredita que a tarefa de reflorestar os 1,3 milhão de hectares do estado de-vem agora levar 63 anos, não mais 200, como há 10 anos.

Desse modo tomou forma uma legisla-ção e uma estrutura de suporte de produ-ção de mudas que põem o estado de São Paulo à frente dos outros. “Meus amigos biólogos de Mato Grosso do Sul não acre-ditam que em São Paulo fazemos restau-ração com uma diversidade de espécies tão alta, que por enquanto é inviável por lá”, comenta Ortiz.

Os conceitos amadureceram bastan-te. Em 1985, uma das estratégias adota-das para reocupar a encosta da serra do Mar com vegetação nativa foi jogar de helicóptero sementes dentro de cápsu-

las de gelatina; depois se verificou que apenas 30% das sementes germinaram. Usou-se braquiária, uma espécie exó-tica de capim de crescimento rápido, para segurar o solo da encosta. “Hoje não faríamos desse modo”, conta Bar-bosa. Se necessário, ele diz, usariam a orelha-de-onça (Tibouchina clavata), um arbusto nativo, com a mesma fun-ção. Antes se pensava que as sementes poderiam ser guardadas apenas por semanas, hoje se sabe que podem du-rar anos. E agora há várias técnicas de restauração florestal, que podem ser combinadas se necessário.

aléM das árvoresAinda há problemas, claro. Uma pes-quisa da Esalq indicou que trepadeiras e epífitas como as bromélias e as orquí-deas constituem 42% da biomassa de uma floresta e são muito importantes para a reconstrução do ambiente, en-quanto as árvores participam com 35% da biomassa.

“Só árvores não é a solução”, reiterou Paulo Kageyama, professor da Esalq, em um simpósio sobre restauração ecoló-gica realizado em novembro de 2011 no

Instituto de Botânica. O problema é que os viveiros por enquanto só oferecem mudas de árvores. Uma regulamentação recente da Secretaria do Meio Ambiente recomenda, mas ainda não obriga, que não se plantem apenas árvores.

As técnicas de restauração estão rela-tivamente maduras para a mata atlântica, mas ainda pouco claras para outros am-bientes naturais do estado de São Paulo como cerrado, manguezais e restingas. “Novas pesquisas vão indicar novos ca-minhos”, acredita Kageyama.

As novas matas que crescem em torno do rodoanel já estão servindo como ba-

se para pesquisas que compararam o cres-cimento das plantas em áreas diferentes ou sob diferentes ti-pos de pressões natu-rais ou urbanas. Uma das perguntas que só serão respondidas da-qui a muitos anos é se os fragmentos de flo-restas encravados no ambiente urbano vão se comportar do mes-mo modo que os frag-

mentos de florestas em meio a pastagens na Amazônia, por exemplo.

Além disso, a reposição de florestas ainda não supera as perdas. De 1995 a 2003 o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) promoveu a restau-ração da floresta amazônica, mas não a ponto de repor o que era continuamente perdido – os relatórios desse trabalho, que contou com financiamento do Japão, indicam que a recuperação de paisagens naturais só avança efetivamente quan-do está associada a políticas públicas mais amplas. Em um estudo publicado na revista PNAS em 2008, pesquisado-res dos Estados Unidos estimaram que o Brasil perdeu 2,6 milhões de hecta-res por ano por causa do desmatamen-to de florestas úmidas de 2000 a 2005, enquanto na Indonésia, o segundo país com a maior perda de vegetação nativa, o desmatamento deve atingir 700 mil hectares por ano.

Por fim, para desconforto dos paulistas mais apresssados, os resultados são len-tos. “A restauração demora”, reconhece Ortiz. “Só saberemos daqui a 10 ou 20 anos se essas florestas em torno do ro-doanel realmente vingarão.” n

bloqueios: placas e cercas tentam impedir o avanço de moradores insatisfeitos e bois famintos

recriar as florestas perdidas de são paulo hoje tomaria apenas 63 anos, não mais os 200 de 10 anos atrás

os projetos1. Modelos de repovoamento vegetal para proteção de sistemas hídricos em áreas degradadas dos diversos biomas do estado de são paulo nº 2000/02020-9

2. estabelecimento de parâmetros de avaliação e monitoramento para reflorestamento induzidos visando ao licenciamento ambiental nº 2003/06423-9

Modalidadeprograma políticas públicas

co or de na dor1 e 2. luiz Mauro barbosa – ibt

investiMento1. r$ 144.214,61 (fapesp)2. r$ 173.793,33 (fapesp)

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60 _ janeiro De 2012

estudo questiona a origem

de árvore do grupo dos pinheiros

Uma planta enganadora

qualquer paisagem com dinossauros não fica completa sem as cicas. No mesmo período em que esses répteis se agigantaram e se espalharam pela

Terra, essas plantas – fisicamente semelhantes às palmeiras, mas aparentadas dos pinheiros – dominaram a paisagem do planeta. Registros fósseis mostram que as cicas surgiram há cerca de 270 milhões de anos e existem até hoje. Como a aparência delas quase não mudou ao longo do tempo, as cicas são tidas como fósseis vivos. Ou melhor, eram. Um estudo de uma equipe internacional que contou com a participação de um pesquisador brasileiro acaba de mudar radicalmente o rumo dessa história.

Nada como uma análise de DNA para trazer nova luz ao estudo da evolução da vida. Com base na morfologia – ou seja, no aspecto visível das plantas –, os biólogos não enxergavam mui-tas diferenças significativas entre os fósseis com dezenas de milhões de anos e suas contrapartes vivas. A única grande diferença era a quantidade de espécies. Aparentemente, em tempos antigos, a variedade era bem maior (o auge foi durante o Jurássico, entre 201 milhões e 146 milhões de anos atrás), o que fez muitos pesquisadores su-porem até que foi o sumiço dos dinossauros que levou à redução na biodiversidade das cicas.

O novo estudo, liderado por Sarah Matthews e Nathalie Nagalingum, da Universidade Har-

vard, nos Estados Unidos, partiu das espécies que estão por aí (cerca de 300, um número bem modesto) para traçar sua filogenia – uma espécie de árvore genealógica reconstruída a partir do DNA. Para isso, analisaram um gene específico, o fitocromo P (PHYP). A ideia era usar as varia-ções encontradas nesse gene, associadas às data-ções do registro fóssil, para especificar quando viveu o ancestral comum das espécies.

O conceito de datar com base nas diferenças genéticas parte de um pressuposto muito sim-ples: mutações aleatórias acontecem no DNA num ritmo mais ou menos homogêneo – com variações maiores ou menores entre grupos distintos, que são também levadas em conta pelos cientistas. Criando uma correlação entre a quantidade de diferenças e o tempo que le-varia para essa divergência, é possível estimar quando viveu o ancestral comum. É assim, por exemplo, que conseguimos confirmar nosso parentesco mais próximo com os chimpanzés (que têm 96% do DNA igual ao nosso) que com os camundongos (90%).

Pois bem. Ao analisar o gene PHYP em 199 espécies (dois terços das existentes hoje), além de outros dois genes (rbcL e matK) em um nú-mero menor de plantas, eles descobriram que o ancestral comum de cada um dos gêneros que agrupam as espécies atuais viveu 12 milhões de anos atrás. É um bocado de tempo, mas nada tão

salvador nogueira

_ anÁlise genética

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radical a ponto de sugerir que essas espé-cies estejam aí mais ou menos imutáveis por 200 milhões de anos.

“Esse resultado mostra que as espé-cies vivas hoje surgiram nos últimos 10 milhões de anos, o que no tempo geo-lógico é muito recente”, afirma Tiago Quental, biólogo da Universidade de São Paulo (USP) que participou do es-tudo, publicado no periódico científico americano Science. “Isso indica que es-sas espécies não podem ser considera-das fósseis vivos e que as espécies hoje vivas certamente não estavam presentes na época dos dinossauros, extintos 65 milhões de anos atrás.”

novo coM cara de velhoMesmo que indiretamente, esse resul-tado projeta uma sombra sobre todo o conceito de fóssil vivo. Uma vez que os paleontólogos só podem avaliar a mor-fologia nos fósseis – e se descobriu que essa não é uma técnica completamente segura para identificar o surgimento de novas espécies (fenômeno chamado especiação) e de modificações genéticas importantes – quem diz que outros fós-seis vivos não são apenas novas espécies com cara de velhas?

cicas: espécies atuais descendem de ancestrais que viveram 12 milhões de anos atrás

artigo científicoNAGALINGUM, N.S. et al. Recent synchronous radiation of a living fossil. Science. v. 334. 11 nov. 2011.

Mais do que dizer o que as atuais ci-cas não são, a análise também ajuda a reconstruir sua narrativa evolutiva. As cicas são plantas gimnospérmicas, o que quer dizer que apresentam as sementes nuas, sem flores. No tempo dos dinossau-ros, os gigantes herbívoros as comiam e dispersavam as sementes em outros luga-res. Mas aquelas que co-habitaram com esses répteis, agora se sabe por meio da análise filogenética, não são as espécies hoje viventes.

Na verdade, em vez de serem sobrevi-ventes bem adaptadas desde o passado distante, as cicas quase sumiram de uma vez por todas no meio do caminho até o presente. Seu ressurgimento, docu-mentado agora pela análise filogenética, aconteceu cerca de 10 milhões de anos atrás. “E o curioso é que esse ressurgi-mento ocorreu de forma sincronizada em todo o nosso planeta, o que sugere que um efeito global poderia ter causado esse padrão”, diz Quental.

Os pesquisadores sabem disso porque analisaram espécies de diversas partes do mundo. A maior variedade de espé-cies encontra-se na Austrália, mas tam-bém existem cicas em regiões quentes e temperadas da África, da Ásia e da Amé-rica Central. E nessas diferentes regiões a variedade local de espécies parece ter aumentado de modo importante mais ou menos na mesma data.

Por essa razão, os cientistas especu-lam que foi algo que aconteceu em toda a Terra para dar essa nova chance às cicas – possivelmente uma mudança climáti-ca. Na ocasião, o que acontecia era um esfriamento global.

Não é à toa, portanto, que vivemos hoje uma época não muito boa para es-sas plantas. E o crescente aumento das temperaturas médias da Terra, em parte consequência das atividades antropogê-nicas, não deve ajudá-las a prosperar. “A atual diversificação das cicas parece es-tar diminuindo, e sua recente evolução provavelmente não é garantia contra a próxima onda de extinções”, avalia Su-sanne Renner, bióloga da Universidade de Munique, na Alemanha, que não par-ticipou da pesquisa e foi convidada pela revista Science para comentá-la. n

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62  janeiro De 2012

conexões com vizinhos ajudam a definir

a função das células no organismo

_ redes coMpleXas

a arquitetura dos tecidos

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Depois do boom de estudos sobre o ge-noma e as proteínas, os pesquisadores das ciências biológicas voltam agora sua atenção para os processos de diferen-

ciação celular envolvidos no desenvolvimento de cada indivíduo, desde o embrião até a fase adulta. Um exemplo é o trabalho do engenheiro eletrônico Luciano da Fontoura Costa, professor do Instituto de Física de São Carlos, da Univer-sidade de São Paulo (IFSC-USP). Ele desenvol-veu e implementou métodos computacionais para analisar imagens de células do epitélio, tecido que recobre interna ou externamente os órgãos. O objetivo era verificar as ligações entre as células e traçar a rede de contatos de cada uma delas, transformando essas informações em grafos – uma espécie de diagrama, representado como um conjunto de pontos (nós ou vértices) ligados por retas.

O trabalho resultou num artigo publicado re-centemente na revista científica Nature Commu-nications. Nele, os pesquisadores demonstram como podem identificar, com mais precisão e sen-sibilidade, o início da especialização das células. Segundo Costa, o estudo é consequência de anos de colaboração dele com os pesquisadores Madan Babu e Luis Escudero, ambos do Laboratório de Biologia Molecular de Cambridge, na Inglaterra. “O principal objetivo dessa pesquisa foi investigar

evanildo da silveira

a organização epitelial de uma forma mais abran-gente e sistemática, usando não apenas medidas da forma de cada célula, mas também uma rede de contatos entre elas”, explica Costa.

Ele fez a caracterização geométrica de cada célula registrada em imagens microscópicas do epitélio de asas e olhos de embriões de frango e da pupa de drosófila, a mosca-das-frutas, obtidas por seus colegas de Cambridge. Costa montou ainda a rede de contatos entre as células e realizou a análise multivariada dos dados, método estatístico que considera mais de uma variável aleatória si-multaneamente e serve para modelar a natureza, possibilitando, dentre outras coisas, categorizar dados, testar hipóteses e buscar padrões.

Para cada tipo de epitélio foram coletadas ima-gens de vários indivíduos diferentes e, para cada imagem, foi gerado um vetor de características, composto por medidas como as médias e os des-vios padrão da área de uma célula vista ao mi-croscópio, o número de arcos ligados a um nó da rede, o grau de interconexão entre os vizinhos de um nó, e o número médio de vizinhos que os vizinhos de um nó possuem. “Isso possibilitou comparar de forma mais abrangente epitélios em vários estágios de desenvolvimento, de diferen-tes tecidos, órgãos e espécies, além da variação natural na organização desse tecido de indivíduo para indivíduo”, conta.

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Os pesquisadores fizeram isso usan-do uma abordagem que eles chamam de representação geométrica e de rede da organização epitelial (GNEO, na sigla em inglês). Com essa estratégia, eles conse-guiram verificar a organização do epitélio levando em conta os padrões de contatos das células. A GNEO torna possível ainda quantificar diferenças entre epitélios de organismos e tecidos diversos, mesmo quando o tamanho e a forma das células que os constituem são visualmente indis-tinguíveis. “Mostramos que epitélios de órgãos e espécies diferentes têm estrutu-ras distintas e quantificáveis”, diz Costa.

forMa, conexão e fUnçãoO trabalho da Nature Communications representa um passo além do que havia sido dado pelos estudos anteriores, que levam em conta apenas a geometria e o tamanho das células. Agora o modelo inclui também dados sobre a conexão entre as células, que está ligada às fun-ções específicas que desempenham. Cos-ta explica que no início da formação do embrião todas as células são iguais – de formato hexagonal – e as ligações en-tre elas assemelham-se a uma colmeia. Quando as células começam a mudar de forma, tornando-se mais alongadas, es-féricas ou parecidas com um cubo, é in-dício de que está iniciando o processo de diferenciação ou especialização celular. É um momento crítico para a formação dos tecidos e dos órgãos.

O problema é que ninguém sabe o que dispara essa mudança. “Não é o DNA, pois ele é o mesmo para todas as célu-las”, diz Costa. “Só que algumas vão virar rim, outras coração e outras neurônios. O que determina isso é o que falta des-cobrir na biologia.” Por essa razão, com o mapeamento dos genomas, tornou-se fundamental entender como cada gene é ativado ou inibido durante o desenvol-vimento. Segundo Costa, o controle da expressão gênica ocorre sob influência de fatores variados, internos e externos ao indivíduo, tais como a gravidade, di-ferenças de concentração de moléculas,

temperatura, dentre outros. Além dis-so, as próprias estruturas existentes no organismo durante o desenvolvimento afetam de modo não uniforme a expres-são gênica nas células ao seu redor, por exemplo, por meio de difusão de molé-culas de sinalização.

O trabalho lança um pouco de luz so-bre essa questão. Ele possibilitou veri-ficar, por exemplo, o que mais contri-bui para a diferenciação entre epitélios. “Descobrimos que a área das células contribui pouco para a distinção entre estruturas de diferentes espécies”, conta Costa. “Na verdade, são as características da rede de contatos que fornecem as me-didas mais discriminativas nesses casos. Descobrimos que, durante a diferencia-ção celular, a relação entre vizinhos é mais importante do que a forma.” Dito de outra maneira, a rede de contatos é muito importante para fornecer caracte-rísticas do desenvolvimento dos tecidos, oferecendo assim novas informações so-bre como eles se diferenciam.

Segundo Costa, tem-se uma boa noção da contribuição dos mecanismos gené-ticos (sinais externos e percursos regu-lares do gene associado) e da mecânica celular (padrões próprios decorrentes da taxa de divisão celular) para formação das estruturas multicelulares e para o desenvolvimento da arquitetura epitelial em vários sistemas-modelo. Mas falta-vam os meios para caracterizar e quan-tificar as semelhanças e as diferenças na organização desse tecido de modo mais preciso e abrangente. “Um dos principais objetivos do nosso trabalho foi auxiliar a preencher essa lacuna, fornecendo tais meios”, diz. “Além disso, nossa aborda-gem também pode ser aplicada a outras amostras biológicas como as conexões entre células nervosas, musculares e tu-morais, assim como servir de subsídio para a medicina regenerativa.” n

o projetoModelagem por redes (grafos) e técnicas de reconhecimento de padrões: estrutura, dinâmica e aplicações nº 2005/00587-5

Modalidadeprojeto temático

co or de na dorroberto Marcondes cesar junior – iMe/usp

investiMentor$ 384.090,51 (fapesp)

artigo científicoESCUDERO, L. M. et al. Epithelial organisation revealed by a network of cellular contacts. Nature Communications. 8 de nov. 2011.

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64 janeiro De 2012

tecnologia

ossos da face: fraturas poderão

ser reparadas com biomateriais

produzidos com bactérias c

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pesquisadores brasileiros estão desen-volvendo, com abordagens inovadoras, biomateriais para aplicações nas áreas médica e odontológica que fazem liga-ções com o tecido celular e auxiliam na

formação dos vasos sanguíneos e na rápida recu-peração do osso. Um desses materiais bioativos é uma membrana feita a partir da celulose produ-zida por bactérias que traz em sua composição peptídeos (pedaços de proteínas) sintetizados em laboratório, capazes de estimular processos que melhoram a reparação óssea, além de elementos constituintes dos ossos como colágeno e hidro-xiapatita. Em contato com os fluidos fisiológi-cos, os materiais classificados como bioativos, a exemplo de cerâmicas e vidros, são capazes não só de regenerar a camada perdida, mas também de fazer a ligação com o tecido ósseo. São mate-riais diferentes do titânio, por exemplo, muito usado para fixar implantes, mas que não possui uma ligação química efetiva com o osso.

O material compósito à base de celulose bacte-riana desenvolvido na Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) de Araraquara, no interior paulista, pode ser usado em implantes dentários em casos em que não há osso suficiente para colocação do pino de suporte ou em processos de extração de dente que resulta em encolhimento do osso. Os testes já feitos dão indicações de possíveis aplica-

mimetismo ósseo

ções para reparação de pequenas fraturas ósseas em locais sem grande carga mecânica, como ossos da face. A celulose já é utilizada na área médica, a exemplo dos curativos antibacterianos indicados para queimaduras vendidos comercialmente, mas não havia sido usada até agora para regeneração de tecidos ósseos.

“Introduzimos na celulose dois tipos de pep-tídeos, um contendo cinco resíduos de aminoá-cidos e outro 14, e os dois promoveram uma me-lhor reparação óssea”, diz o professor Reinaldo Marchetto, do Instituto de Química, coordena-dor do projeto e líder de um grupo de pesquisa de Síntese, Estrutura e Aplicações de Peptídeos e Proteínas na Unesp de Araraquara. Marchet-to foi o orientador do trabalho de doutorado da cirurgiã-dentista Sybele Saska, premiado na 88ª Sessão Geral da Associação Internacional de Pes-quisa Dentária, em julho de 2010 em Barcelona, na Espanha, como o melhor trabalho na categoria Materiais Dentários. O estudo faz parte de dois projetos financiados pela FAPESP coordenados pelo pesquisador. Em função dos resultados obti-dos foi feito um depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) com auxílio do Programa de Apoio à Propriedade In-telectual (Papi), também da Fundação.

A celulose é formada por nanofibras produzi-das pelas bactérias do gênero Gluconacetobacter

Membranas com

celulose e vidros

estimulam a

regeneração celular

dinorah ereno

_ Materiais bioativos

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bioquíMica

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66 janeiro De 2012

e cada uma possui entre 10 e 50 nanôme-tros – 1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão. Elas são expelidas pelas bactérias que ficam imersas em um meio de cultura composto por gli-cose, aminoácidos, extrato de levedura e sais, por um período de 120 horas a uma temperatura de 28ºC. As camadas vão se sobrepondo até formar uma espécie de manta de consistência gelatinosa forma-da entre o meio de cultura e a superfície. Ao atingir 5 milímetros de espessura, a manta é retirada do meio para lavagem e remoção das bactérias. Depois de passar por um tratamento químico, lavagens com água destilada e esterilização, sobra apenas a celulose pura na qual são adi-cionados componentes como o colágeno, a hidroxiapatita e os peptídeos.

após análises das propriedades físi-co-químicas do material e ensaios mecânicos de resistência e tração,

os pesquisadores realizaram testes in vitro com células precursoras de ossos cultivadas por até 21 dias sobre as mem-branas contendo os peptídeos e sem a presença deles. “As amostras que recebe-ram os peptídeos tiveram uma prolifera-ção muito maior de células de osteoblas-tos, as células jovens do tecido ósseo, e o processo de mineralização foi superior quando comparado com as amostras sem as proteínas”, diz Marchetto. O resultado sugere uma regeneração mais rápida do osso. Encerrados os ensaios in vitro, os

pesquisadores fizeram testes empregan-do regeneração óssea guiada em peque-nos defeitos no fêmur de ratos. As aná-lises para avaliar a biocompatibilidade, a eficiência do peptídeo regulador e a densidade óssea abrangeram períodos de 7, 15, 30 e 120 dias. “O peptídeo real-mente promoveu a condução e a indução óssea”, relata Marchetto. Entre 15 e 30 dias o osso estava formado. Os ensaios iniciais apontaram que a reabsorção das membranas pelo organismo só ocorre em períodos superiores a 120 dias. Para

a membrana de celulose modificada ser aplicada em consultórios odontológicos ainda são necessários novos testes com animais e pessoas.

Outro biomaterial, desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é um vidro bioativo composto basicamente por sílica, cálcio e fósforo, indicado inicialmente para recupera-ção óssea em implantes dentários. Fu-turamente, o produto poderá ser usa-do em aplicações ortopédicas como re-paro de vértebras e em associação com o colágeno, por exemplo. Suas aplica-ções se estendem para a substituição de ossos com maior resistência mecâ-nica, como pernas e braços. No merca-do brasileiro já existem biovidros fabri-cados por empresas norte-americanas, mas o material desenvolvido na uni-versidade e que está em fase de aper-feiçoamento na empresa startup Ceel- bio, de Belo Horizonte, traz como inova-ção o seu processo de síntese à tempe-ratura ambiente. Além de gastar menos energia, o processo permite a incorpo-ração de fármacos com liberação con-trolada e ação localizada. “No processo convencional, de fusão das matérias-pri-mas e resfriamento rápido, o biovidro é fabricado a 800ºC”, diz a professora Ro-sana Domingues, do Instituto de Ciên- cias Exatas da UFMG, coordenadora do

os projetos1. peptídeos sintéticos com aplicação na área de saúde: perspectivas de inovação e desenvolvimento tecnológico – nº 2010/10168-8 2. nanocompósitos à base de celulose bacteriana para aplicação na regeneração do tecido ósseo – nº 2009/09960-1 3. Materiais nanocompósitos à base de celulose bacteriana, colágeno, hidroxiapatita, fatores de crescimento e peptídeos afins, para aplicação na regeneração de tecido ósseo – nº 2009/50868-1

Modalidade1. e 2. auxílio regular a projeto de pesquisa3. programa de apoio à propriedade intelectual

coordenador1., 2. e 3. reinaldo Marchetto – unesp

investiMento1. r$ 366.830,00 (fapesp)2. r$ 131.672,04 (fapesp)3. r$ 18.651,50 (fapesp)

projeto do biovidro e uma das sócias da Ceelbio. “A alta temperatura torna o ma-terial denso e não permite a incorpora-ção de medicamentos.”

os pesquisadores escolheram uma rota de síntese chamada sol-gel, que consiste em uma sequência

de processos químicos acelerados por um catalisador, à temperatura ambien-te. No final do processo é obtido um gel com estrutura porosa, transformado em pó para facilitar a preparação e adição de

medicamentos. Os en-saios de avaliação da toxicidade do mate-rial reconhecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) comprova-ram que ele não é tó-xico. Em parceria com o Instituto de Ciên- cias Biológicas e a Es-cola de Odontologia da UFMG, os pesqui-

sadores fizeram testes in vitro e em ra-tos, além de um estudo preliminar com pessoas, utilizando o vidro bioativo asso-ciado a antibióticos e anti-inflamatórios, com bons resultados.

As pesquisas na universidade que le-varam ao desenvolvimento do biovidro à temperatura ambiente tiveram início no final da década de 1990, com uma aluna de doutorado orientada por Rosana que

biovidro feito à temperatura ambiente permite adição de fármacos com ação localizada

Membrana de celulose após secagem

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pesqUisa fapesp 191 67

de patente no INPI pela Agência de Ino-vação da Unicamp, a Inova. Essa modifi-cação funciona como um acelerador do processo de formação do fosfato de cálcio na interface entre o biovidro e o tecido

ósseo. “Conseguimos acelerar a resposta bio-lógica do biovidro sem precisar alterar a facili-dade do seu processa-mento”, relata Bertran. Tanto o processo como o material resultante são novos.”

A caracterização completa da compo-sição da superfície do

biovidro assim como a determinação da velocidade com que os íons que com-põem a superfície modificada são libe-rados para o tecido, tornando-se res-ponsáveis pelos processos indutores de formação óssea e conexão do biovidro com o tecido hospedeiro, já foram feitas pelos pesquisadores. A ideia inicial era modificar a superfície do biovidro man-tendo as propriedades vítreas, o que foi conseguido com sucesso. Atualmente a pesquisa tem como foco a determi-nação dos mecanismos de modificação da superfície do biovidro e a avaliação biológica do material in vitro. n

ção promovido pela Intel e pelo Centro de Estudos em Private Equity e Venture Capital da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas.

Na Universidade Estadual de Campi-nas (Unicamp), o grupo de pesquisa do professor Celso Bertran, do Instituto de Química, desenvolveu uma modificação funcional na superfície de um biovidro comercial chamado Bioglass 45S5, com-posto por cálcio, fósforo, silício e sódio, que acelera as reações de interação com o organismo, induzindo a um crescimento mais rápido de tecidos ósseos. “Modifi-camos a superfície do biovidro com íons cálcio em concentração adequada”, diz Bertran, orientador da tese de doutorado de João Henrique Lopes, com bolsa da FAPESP, que resultou em um depósito fo

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Modificação na superfície de biovidro acelera reações de interação com o organismo

celulose bacterianapasso a passo da produção da película para uso odontológico

ação

Membrana de celulose estimula reparação óssea em fraturas e facilita os implantes dentários

bactérias em meio de cultura líquido expelem celulose

formação de película gelatinosa

tratamento químico para retirada de bactérias

adição de colágeno, hidroxiapatita e peptídeos sintéticos

película pronta para aplicação

secagem a 50oc

criou um biomaterial à base de hidroxia-patita e zircônia. Desde então foi criada uma linha de pesquisa exclusiva para o desenvolvimento de materiais cerâmicos bioativos no Departamento de Química da UFMG. O desenvolvimento do biovi-dro pela rota sol-gel teve um pedido de patente depositado em 2002 e a partir de 2008 estudos dirigidos para aplicação comercial. Além de Rosana, o professor Tulio Matencio, do mesmo departamen-to, também é sócio da Ceelbio, que ini-cialmente ficou abrigada na incubadora de empresas da UFMG, a Inova. Como a incubadora não possui alvará para fun-cionamento na área biológica, a empresa está de mudança para a incubadora da empresa Biominas, a Habitat. A Ceelbio trabalha com materiais cerâmicos em duas linhas distintas. Uma é a de células a combustível, equipamento semelhante a um gerador para produção de ener-gia elétrica a partir do hidrogênio, e a outra são as cerâmicas bioativas para a área biológica. O projeto que resultou no biovidro recebeu financiamento no valor de R$ 30 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fa-pemig), R$ 120 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e R$ 67 mil por ter vencido o Desafio Brasil 2011, um prêmio de empreendedorismo e inova-

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68 _ janeiro De 2012

imagens refletem a produção de

um dos principais centros mundiais

de pesquisa em materiais vítreos

_ vidros

a beleza das vitrocerâmicas

cristais do mineral

wolastonita de tamanho

milimétrico e em formato

de agulha

a evolução dos microscópios eletrôni-cos e a expansão de seu uso trouxeram muitos benefícios para a humanidade, mais visíveis sobretudo no campo da

saúde. Mas eles também fizeram avançar de forma acelerada o conhecimento dos materiais, de metais a cerâmicas, além de desvendar as di-minutas formas, muitas vezes espetaculares, de amostras colocadas sobre suas lentes e mapea- das por feixes de elétrons. São belas imagens que podem ser colorizadas artificialmente na tela de um computador e ajudam a entender melhor a estrutura e composição principal-mente de novos materiais desenvolvidos por pesquisadores científicos.

Nessa linha que une conhecimento e beleza plástica, o professor Edgar Dutra Zanotto, coor- denador do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV) do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), compôs o livro Cristais em

Yuri vasconcelos

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engenharia

quíMica

pesqUisa fapesp 191 _ 69

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70 _ janeiro De 2012

vidro – Ciência e arte. A obra marca os 35 anos do LaMaV e torna disponível para um público maior que o acadêmi-co algumas das 50 mil fotomicrografias científicas e artísticas geradas ao longo desse período.

o foco das pesquisas do laborató-rio coordenado por Zanotto con-centra-se no desenvolvimento

de novos tipos de vidro, no estudo de suas propriedades físico-químicas e na pesquisa aprofundada da cinética e dos mecanismos de cristalização de mate-riais vítreos, aspectos essenciais para o desenvolvimento de vitrocerâmicas. Esse material, sintetizado pela primei-ra vez há 59 anos, possui combinações de propriedades diferenciadas, como altíssima resistência e tenacidade com transparência, coeficiente de dilatação térmica muito baixa, durabilidade quími-ca e zero ou pouca porosidade. Por essas razões, o material tem sido empregado em diversas aplicações, desde utensílios para cozinha, principalmente em placas de aquecimento de fogões elétricos mais avançados, e até em áreas de alta tecno-

logia, como grandes espelhos para teles-cópios, substratos de discos rígidos de computadores e dentes artificiais.

As vitrocerâmicas são resultado do controle da cristalização, um fenômeno que ocorre quando um vidro, misturado a um agente nucleante – um aditivo como óxido de titânio, óxido de fósforo, prata ou cobre –, é submetido a altas tempe-raturas, entre 500 e 1.100 graus Celsius.

Elas foram os materiais protagonistas desde o início do LaMaV. No livro, Za-notto conta que as pesquisas do labora-tório sobre cinética e os mecanismos de cristalização de vidros começaram em 1977 com a sua dissertação de mestrado e prosseguiram com os estudos de douto-rado. “Em janeiro de 1977 eu havia aca-bado de concluir o curso de engenharia de materiais na UFSCar (...) e me deparei

os projetos1. problemas correntes sobre cristalização de vidros – nº 1999/00871-22. processos cinéticos em vidros e vitrocerâmicas – nº 2007/08179-9

Modalidade1. e 2. projeto temático

co or de na doredgar dutra zanotto – ufscar

investiMento1. r$ 468.674,44 e us$ 190.408,30 (fapesp)2. r$ 343.670,74 e us$ 573.410,28 (fapesp)

1. nucleação superficial de um cristal metassilicato de lítio em formato de carambola

2. raro cristal de diopsídio no interior de um vidro de mesma composição

3. cristalização interna em vidro de cordierita dopada com óxido de titânio

50 milfotomicrografias científicas e artísticas geradas ao longo de 35 anos

1

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por acaso com o livro de Peter McMillan sobre vitrocerâmicas e me encantei ime-diatamente com o assunto. Ocorreu-me que este novo tipo de material poderia ser um grande tema de pesquisa em ciên- cia e engenharia de materiais e segui a minha intuição”, relata Zanotto.

trinta e cinco anos depois, o LaMaV desfruta de prestígio internacio-nal, com a publicação de cerca de

200 artigos científicos em revistas espe-cializadas, e é considerado um dos sete principais centros de pesquisa em vitro-cerâmicas do mundo, no nível dos labo-ratórios mantidos pelas universidades de Nagaoka, no Japão, de Missouri, nos Estados Unidos, e de Jena, na Alemanha, e dos institutos privados de pesquisa da Nippon Electric Glass, também no Japão, Corning Glass, nos Estados Unidos, e Schott Glass, da Alemanha. “Nossos es-tudos deram significativa contribuição para o entendimento dos processos que controlam a nucleação e o crescimento de cristais em inúmeros vidros. No cam-po científico, descrevemos processos ci-néticos e testamos modelos teóricos. Na área tecnológica criamos ou melhoramos várias vitrocerâmicas, algumas em está-gio comercial”, diz Zanotto.

“O fato mais significativo é que alguns dos principais fabricantes de vidro que produzem vitrocerâmicas comerciais têm utilizado vários dos nossos artigos para embasar o desenvolvimento de seus produtos”, relata o pesquisador no li-vro. Além de dirigir o LaMaV, Zanotto é chairman do Comitê de Nucleação, Cris-talização e Vitrocerâmicas da Internatio-nal Commission on Glass, principal en-

internacionais e 10 brasileiras. Já de-positou 12 patentes, sendo as duas úl-timas, de 2010 e 2011, relativas a vitro-cerâmicas para produção de placas de fogão, que já conta com duas empresas interessadas em sua fabricação no país, e vitrocerâmicas bioativas scaffolds. “Trata-se de um material bioativo, com a aparência de uma esponja, que pode ser usada como suporte para o cresci-mento de células ósseas”, explica o coor- denador do LaMaV.

As pesquisas desenvolvidas por Za-notto, com os professores Ana Cândida Rodrigues, Oscar Peitl e seu grupo ti-veram ao longo dos anos o apoio de vá-rias agências de fomento, como FAPESP, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coor-denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O pesquisa-dor coordenou dois grandes projetos da Fundação – “Problemas correntes sobre cristalização de vidros”, já encerrado, e “Processos cinéticos em vidros e vitroce-râmicas”, em andamento – realizados em seu laboratório em São Carlos, que pos-sui 800 metros quadrados de área. n

tidade mundial de pesquisa em vidros, e foi eleito em novembro passado membro da Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS).

Um apanhado das atividades do La-MaV mostra que, ao longo de sua his-tória, ele respondeu pela formação de vários mestres, doutores e pós-doutores e pelo desenvolvimento de diversos no-vos materiais vítreos. São vitrocerâmicas que imitam pedras caras, como mármore e granito, biovidros para fabricação de ossos e dentes artificiais, ou vitrocerâ-micas derivadas da escória de alto-forno e de siderurgia – um resíduo industrial importante – , além de materiais bioati-vos, como o Biosilicato, para tratamento dentário, patenteado e já licenciado para uma empresa brasileira, a Vitrovita (ver em Pesquisa FAPESP n° 158).

“Algumas de nossas inovações fo-ram criadas em conjunto com parceiros, como o biovidro para ossos e dentes, desenvolvido com a Universidade da Flórida. O material já é comercializa-do pela American Biomaterials”, afir-ma Zanotto. O LaMaV atua numa rede composta por 30 instituições, sendo 20

estudos resultam em produto já licenciado para tratamento dentário

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federal de Minas se associa

a empresa para produzir sistemas

de tecnologia da informação

não é por mera coincidência que quando alguém clica para com-prar uma televisão numa loja virtual, por exemplo, o site lhe

sugere a aquisição de um aparelho toca-dor de blu-ray. Por trás desse aparente acaso está uma tecnologia sofisticada, chamada sistema de recomendação, do-minada por poucas empresas no mun-do. Uma delas é a Zunnit Technologies, criada em 2009, em Belo Horizonte, para transformar em produto comercial um conhecimento gerado nos laboratórios da Universidade Federal de Minas Ge-rais (UFMG). Por meio dessa tecnolo-gia, é possível monitorar a navegação dos internautas e, com isso, identificar automaticamente perfis e interesses. A partir dessas informações, são ofere-cidos conteúdos personalizados, como notícias, serviços e produtos.

Para isso, a Zunnit instala um código no site de seu cliente, que pode ser uma loja virtual ou um portal de conteúdo. Além disso, o sistema conta com robôs (progra-mas de computador especializados), no caso da Zunnit chamados Web Focused Crawlers, que varrem os sites em busca de conteúdos relacionados aos interesses do usuário. “Esses robôs são capazes de separar com precisão conteúdos digi-tais relevantes de outros não tão impor-tantes”, garante Nívio Ziviani, professor emérito do Departamento de Ciência da Computação (DCC), da UFMG, onde foi desenvolvido o conhecimento que gerou a tecnologia. “Os nossos são muito mais

indicação certeira

seletivos e contribuem para o forneci-mento de recomendações de qualidade aos internautas.”

Em outras palavras, a tecnologia tor-na possível saber o que o usuário está fazendo, onde clica, quais os assuntos e produtos que mais interessam ao in-ternauta. “Baseado nessas informações, o sistema usa técnicas computacionais como recuperação de informações, mi-neração de dados, entre outros, para co-nhecer o perfil desse usuário, se é ho-mem ou mulher, verificar sua localização e identificar qual seria o melhor produto para indicar a ele”, explica Lesley Sca-rioli Júnior, diretor executivo da Zunnit. “Se ele está interessado em televisão, por exemplo, o que deveria ser reco-mendado junto?”

Mas a tecnologia desenvolvida pe-la empresa mineira vai além disso. Ela consegue interpretar o contexto da na-vegação. “Se o internauta estiver num site de Fórmula 1, por exemplo, e nele houver uma reportagem sobre Paris em

_ softwares

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que aparece a expressão Paris Hilton, o sistema consegue entender que ela se refere ao hotel, e não à socialite Paris Hilton”, explica Scarioli. “Esse é um pro-blema semântico complicado de ser re-solvido, mas nossa tecnologia consegue solucionar isso com uma eficácia de 90%, o que é muito alto.” Isso é diferente do que fazem os serviços de busca, como o Google. Nesses, o internauta procura al-go específico e digita as palavras do que quer saber. “Em vez disso, um sistema de recomendação de última geração pro-cura surpreender o usuário com alguma coisa que ele não conhece ou não está esperando, mas que seja do seu agrado”, explica Ziviani.

As primeiras pesquisas na UFMG so-bre o assunto começaram em 2008, no Laboratório para Tratamento da Informa-ção (Latin) do DCC. Esse trabalho gerou dissertações de mestrado de alunos de Ziviani. E a Zunnit não é a primeira em-presa que ele ajuda a criar. Ele também é um empreendedor de sucesso com a

Scarioli. “Assim, se alguém estava pes-quisando informações sobre Fórmula 1, o sistema poderia recomendar a essa pessoa livros sobre o tema.”

Com o tempo, os dirigentes da empresa foram percebendo as demandas do mer-cado e mudaram o foco, redirecionan-do sua atuação. “Hoje, o nosso negócio é o e-commerce, é fazer recomendações dentro das lojas virtuais”, diz Scarioli. “Quem começou a fazer isso no mundo foi a Amazon (loja virtual americana), em 1998. Ela faz isso com muita competência, por isso é referência mundial nessa tec-nologia. Tanto que 35% das suas vendas vêm de recomendação.” Ainda de acor-do com Scarioli, a Netflix, uma locadora de filmes e videogames on-line, é outra companhia que usa muito essa tecnolo-gia. Setenta por cento de suas vendas são oriundas de recomendação.

Mas nem a Amazon nem a Netflix ven-dem sua tecnologia para terceiros. A Zun-nit, por sua vez, começou a comercializar seu produto em dezembro do ano passa-do. Hoje ela tem entre seus clientes gran-des empresas, principalmente portais de conteúdo, como UOL, Sky e Busk, uma rede social de notícias ligada ao grupo Globo. “Também estamos negociando com vários sites de e-commerce, um dos focos no nosso negócio”, conta Scario-li. “Esse é o grande mercado para nossa tecnologia. Ele movimenta cerca de R$ 20 bilhões por ano, enquanto o mercado de publicidade, por exemplo, não passa de R$ 2 bilhões.” n evanildo da silveira

participação em duas outras empresas de tecnologia. A primeira foi a Miner, funda-da em 1998 e vendida ao portal UOL, do Grupo Abril/Folha de S. Paulo, em 1999. A outra foi a Akwan Information Tech-nologies, fundada em 2000 e comprada pelo Google, em 2005, que se transformou em centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da empresa norte-americana no Brasil. Ziviani teve a ideia, em meados de 2008, de fundar a terceira, dessa vez para explorar comercialmente os conhe-cimentos de recomendação de sistemas gerados no Latin. “A propriedade inte-lectual disso pertence integralmente à UFMG, mas é importante transformar os conhecimentos gerados pelas pesquisas em riqueza para a sociedade”, diz.

açÕes da eMpresaEm novembro de 2011, a UFMG e a Zun-nit assinaram um convênio de transfe-rência de tecnologia de formato pioneiro na universidade. Por meio do acordo, a UFMG repassou para a empresa o conhe-cimento gerado no Latin, e, em contra-partida, tornou-se sócia dela, com parti-cipação de 5% das ações. A UFMG será remunerada com usufruto delas. Ou seja, receberá sua parcela nos lucros como qualquer outro acionista, mas não terá ingerência nas decisões da companhia. Além disso, se a Zunnit for vendida, a universidade receberá o equivalente às ações que possui.

A concretização da ideia de fundar a empresa só foi possível, no entanto, graças a um business angel ou investidor anjo (pessoas que possuem capital para investir em companhias iniciantes, tam-bém conhecidas como startups), no caso Scarioli. Por meio de amigos comuns, Ziviani conheceu o investidor, que tinha os recursos e a disposição de apostar num conhecimento, que poderia gerar uma tecnologia rentável. Assim nasceu a Zunnit, com objetivos diferentes dos que tem hoje. “A ideia inicial era indicar livros para os internautas de acordo com os assuntos que eles estavam procurando nos sites pelos quais navegavam”, conta

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globalização aproximou

opinião pública das decisões

internacionais, mas a sua

representação no legislativo

ainda é polêmica

oItamaraty só tira (ou dá) voto no Burundi, na África”, ensinava Ulys-ses Guimarães sobre a influência da política externa no comportamento do eleitorado. A máxima do Doutor

Ulysses, infelizmente, ainda não perdeu a sua validade, mas pesquisas recentes (ver adiante) e o espaço inédito aberto na mídia às discussões sobre política internacional revelam uma ten-dência crescente em certa parcela mais elitizada da população brasileira de agir como um “eleitor de Burundi”. Para alguns, o fenômeno se liga, em certa medida, à controversa e personalíssima di-plomacia presidencial do presidente Lula, capaz de atrair críticos e simpatizantes com igual inten-sidade, sem meios-termos, mas a realidade é que desde os anos 1990, com a globalização e a demo-cratização nacional, parcelas do país passaram a perceber que os atos do Itamaraty no âmbito externo influenciam em muito a realidade inter-na. “Quando as questões externas passaram a ter impacto de ordem distributiva, gerando ganhos e perdas diferenciados, houve uma politização da política externa e a necessidade de controles

quando o externo está cada vez mais interno

texto carlos haag

ilustração catarina bessell

hUManidades _ diploMacia

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típicos de uma ordem democrática”, observa a cientista política Simone Diniz, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenadora da pesquisa Poder Legislativo, processo decisório e política externa no Brasil, apoiada pela FAPESP, que mapeou o papel do Poder Legislativo na deliberação da política ex-terna brasileira (PEB), para identificar como são as relações entre os poderes Executivo e Legis-lativo sobre a política externa.

“Afinal, numa democracia, o Parlamento fun-ciona como caixa de ressonância da sociedade, apesar das imperfeições do modelo atual e real. Esse debate ganha força desde o governo FHC, com opiniões divergentes sobre a capacidade e o interesse do Congresso nas questões externas que carecem de estudos empíricos”, observa Si-mone. A questão, em verdade, foi estabelecida na Constituição de 1988, em que o presidente da República tem a prerrogativa privativa de cele-brar tratados, convenções e atos internacionais sujeitos a referendo do Congresso, e confere ao Legislativo a competência exclusiva de resolver sobre tratados, acordos ou atos internacionais

ciência política

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76 janeiro De 2012

o estado atual da diplomacia bra-sileira e sua ligação com a socie-dade civil foi fruto de um longo

consenso de que o Itamaraty era o lugar por excelência para a condução da polí-tica externa. A grande maioria dos presi-dentes deixou a cargo do Ministério das Relações Exteriores (MRE) a condução da PEB, salvo exceções surpreendentes como o presidente Geisel durante o regi-me militar. “A implicação mais importan-te dessas mudanças ao longo dos anos é que a antiga delegação congressual para que o Executivo promovesse uma políti-ca industrial baseada na substituição de importações deixou de definir os obje-tivos da ação governamental no âmbito da política de comércio exterior. Elites, massa, governantes e parlamentares con-

houve por décadas um consenso de que o lugar por excelência da diplomacia era o itamaraty

que acarretem encargos ou compromis-sos gravosos ao patrimônio nacional. Mas na deliberação dos atos interna-cionais a ação do Legislativo é ex post: os parlamentares manifestam-se sobre um ato após negociação pelo Executi-vo com agentes externos, por meio dos projetos de decretos legislativos (PDLs), expressando anuência ou discordância com termos e conteúdo do ato interna-cional. “Em bom português, o Legislativo não está de mãos atadas, pois pode fazer ressalvas às ações já encaminhadas pelo Executivo, mas é um mecanismo modes-to de manifestação. O espaço existe, mas é muito limitado”, avalia Simone.

“Isso quer dizer que as posições do presidente, de iniciador da PEB, e a do Congresso, de mero ratificador ex post facto, geram um equilíbrio em que o le-gislador mediano é obrigado a acatar as políticas negociadas pelo Executi-vo em fóruns internacionais, a despeito de estarem para além de sua curva de indiferença. Essa é uma situação que está mais próxima da abdicação do que da delegação da autoridade”, analisa a cientista política Maria Regina Soares de Lima, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, autora da pesquisa O Con-gresso e a política de comércio exterior (2001). Ainda assim, a pesquisadora de-fende que a política externa é objeto de delegação dos parlamentares por três razões principais: é um assunto muito suscetível a pressões distributivas, com setores diversos com interesses confli-tantes; pela complexidade do tema que exige um domínio teórico e técnico que os parlamentares não possuem; porque garante a estabilidade das decisões, já que o Congresso, que representa inte-resses, tem menor chance de modificar políticas externas que possam prejudi-car interesses de suas bases eleitorais. Assim, ponto para a Constituição. “Mas delegação não significa abdicação, como acontece muito no Legislativo, o que ten-de a isolar os parlamentares e favorecer grupos e setores específicos à revelia de qualquer controle da sociedade”, observa a pesquisadora, que defende uma forma mais eficiente de delegação de poderes ao Legislativo e a redução do poder do Executivo. “Na forma em que está temos graves prejuízos não apenas para os se-tores empresariais atingidos no curto prazo, como para a sociedade brasileira em seu todo”, avisa.

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cordavam com o rumo adotado pelo país na substituição de importações como for-ma de promoção do desenvolvimento”, conta Maria Regina. Por outro lado, isso gerou uma centralização das decisões no Executivo que teve como efeito mais vi-sível a falta de controle democrático da política de comércio exterior. A partir dos anos 1990, surge outro modelo mundial econômico que alterou totalmente o sig-nificado do antigo padrão de crescimento baseado na substituição de importações, alteração que afetou, mais uma vez, a na-tureza do jogo político entre Congresso e presidente. “Era a globalização e seus efeitos em termos de autonomia perdi-da pelos governos das nações modernas. Cada vez mais, a ordem internacional está sendo estruturada por decisões de organizações econômicas internacionais sobre as quais os cidadãos nacionais não têm nenhum controle, muito menos qual-quer possibilidade de oposição”, analisa a pesquisadora.

mas a diminuição das atribuições do Congresso teve início com o golpe de 64. “Curiosamente, a

política externa dos militares não traiu o espírito da delegação congressual promo-vida nos anos 1950 e que se encontrava no modelo de substituição de importa-ções. A pedagogia política do governo autoritário, porém, permaneceu após a redemocratização, no sentido de que as

gislativo na condução da PEB, dentro do espírito democrático da época. Mas esta-va em pauta a questão do endividamento internacional e o Senado queria atribuir a si a prerrogativa de lidar com esse tópico. Ao final, outros temas nacionais tomaram conta e a discussão ficou fora da pauta. A Constituição acabou mantendo a relação das anteriores”, nota Simone.

“Se entendemos a democracia como a maior participação de atores anterior-mente não envolvidos, é preciso demo-cratizar essa forma de condução da PEB, na contramão da centralização histórica no Itamaraty. O Ministério das Relações Exteriores tem que consultar a socieda-de antes das negociações, demandar a colaboração de especialistas, porque os termos de negociação externa estão cada vez mais técnicos e os diplomatas nem sempre dão conta dessa nova realidade”,

avalia a cientista polí-tica Janina Onuki, do Instituto de Relações Internacionais da Uni-versidade de São Paulo, que, sob a coorde nação da professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, realiza o es-tudo O Brasil, as Amé-ricas e o mundo: opinião pública e política exter-na (2010), apoiado pela

FAPESP. “O Legislativo tem que ser o instrumento onde os atores sociais pos-sam ter acesso às discussões interna-cionais. Os empresários, por exemplo, reclamam muito da dificuldade em ter acesso ao Executivo para a formulação de políticas comerciais internacionais”, diz. Segundo resultados preliminares da pesquisa, nos últimos anos, a política ex-terna, embora não seja um tema central, ganhou muito espaço na opinião pública. “Antes ela mal aparecia”, fala.

Os assuntos mais próximos a essa faixa da opinião pública são a integração regio-nal e o Mercosul, com um conhecimento de causa muito maior do que o esperado (e verificado no passado) sobre a PEB. As pessoas já se referem à Organização Mun-dial do Comércio (OMC), meio ambiente e sabem que temas internos, como violência, comércio, tráfico etc., ecoam discussões internacionais. “Um detalhe interessante é que, ao contrário do observado nos sur-veys americanos, as opiniões da elite e da população são muito próximas, o que in-

decisões de comércio exterior passaram a modificar sistematicamente o status quo representado pelo antigo modelo econômico sem que o Congresso pudesse emitir qualquer opinião a respeito”, lem-bra Maria Regina. “O mundo que o Brasil administrava como uma externalidade internalizou-se, encerrando a eficácia do repertório de soluções construídas a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas que configurou o país no século XX. Daí o reordenamento das agendas interna e externa que caracterizou a vida política e econômica do país na década de 1990”, analisa o professor de direito da USP Celso Lafer, atual presidente da FAPESP e chanceler por duas ocasiões (1992 e de 2001 a 2002). Em tempos li-geiramente diferentes, essa renovação mundial foi acompanhada, no Brasil, pe-lo processo de redemocratização e pela Constituição de 1988. “Na época, houve vários debates sobre a possibilidade de se estabelecer no texto constitucional um espaço de atuação maior para o Le-

diminuição das atribuições do congresso teve início com o golpe de 64, mas peb foi mantida

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dica uma maior politização do público, ao contrário da literatura tradicional”, conta. Não há mais o antigo consenso de que o presidente e o Itamaraty são os conduto-res naturais da política externa e há um questionamento do papel da instituição por outros ministérios, o que gera uma de-manda por uma maior abertura do MRE. Já os empresários reclamam que foram deixados de lado nas discussões sobre o Mercosul. No geral há uma percepção generalizada de que o país tem condições de ser um global player, embora isso nem sempre acarrete o apoio dos países vizi-nhos, mas surge da própria inserção do Brasil no mundo globalizado.

o estudo recente pode ser compa-rado com a pesquisa A agenda in-ternacional do Brasil: a política ex-

terna brasileira de FHC a Lula, feita em 2009 pelo cientista político Amaury de Souza, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Polí-ticos de São Paulo (Idesp). Nela, quando perguntado sobre o balanço de forças entre Legislativo e Executivo na PEB, 46% dos entrevistados responderam que a política seja decidida pelo Executivo e depois ratificada pelo Congresso, en-quanto 54% argumentam que as posições

da diplomacia devam ser previamente negociadas com o Congresso. “São for-ças que se contrabalançam, revelando, de um lado, a visão da PEB como polí-tica de Estado e a relutância em impor limites à sua condução por um círculo fechado de especialistas. Por outro, es-sa política é vista como uma política de governo e que, por isso, deve ser mais permeável às influências de segmen-tos da sociedade diretamente atingidos pelas decisões do poder público”, afir-ma Amaury. “Estreitar, desde o início, a colaboração entre o Itamaraty e o Con-gresso daria maior credibilidade e capa-cidade de negociação ao governo, além de legitimar suas decisões de política externa com a opinião pública. Mas o aumento do ativismo parlamentar não

implica conferir ao Congresso o poder de se sobrepor ao Executivo como ár-bitro de última instância do interesse nacional”, observa. Segundo ele, o ideal seria intensificar a diplomacia aberta, estimulando a participação de grupos organizados da opinião pública no de-bate abrindo espaço para que possam exercer sua influência no processo de formação da política externa.

“O Congresso ecoa, como cabe nu-ma democracia, as preocupações que existem na sociedade e estas adquirem, com a participação dos meios de comu-nicação dos interesses organizados e das ONGs, uma configuração que venho qua-lificando como uma agenda da opinião pública em matéria de política externa. A agenda da opinião pública brasilei-

ra possui abrangência que se intensifica com a globalização que in-ternaliza o mundo na vida do país. Por isso é bom antecipar cami-nhos, verificar sensi-bilidades e identificar resistências junto ao Parlamento quando se vai dar início a ne-gociações complexas. Daí a importância de

o MRE desenvolver ainda mais meca-nismos de interlocução sobre assuntos relacionados às relações comerciais, aos direitos humanos, ao meio ambiente que são exemplos inequívocos de itens da agenda da opinião pública”, analisa La-fer. “A Constituição de 1988, que valoriza a participação, permite amplos espaços para uma articulação entre Executivo, Legislativo e sociedade sobre temas di-plomáticos, cabendo lembrar o papel das audiências públicas e o pluralismo de informações que ensejam no âmbito das comissões especializadas do Parla-mento e recordar as competências que o Congresso possui para o exercício de um poder de controle sobre a PEB con-duzida pelo Executivo (por exemplo: o poder de convocar o ministro de Estado e de requerer informações).” Em nosso país, lembra o professor, “cabe ao presi-dente da República a gestão da política externa, que a exerce de acordo com a sua personalidade, visão e sensibilidade. A gestão do presidente Lula não foi uma gestão consensual e isto transpareceu no debate público e no Congresso”.

pesquisa mostra que elites e população têm visões iguais sobre a política externa

78 janeiro De 2012

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foram, continua Lafer, “ingredientes da discórdia a percepção de que foi impulsionada por componentes da

exacerbada personalização e de partida-rização da política externa que dela fez uma política de governo que não levou apropriadamente em conta os desejáveis ingredientes da continuidade de uma política pública, que tem, é claro, com os ajustes derivados da pauta interna e da conjuntura internacional, características de uma política de Estado. O primeiro ano da presidente Dilma, com a colabo-ração do chanceler Patriota”, pondera Lafer, “trouxe uma redução da discórdia, aumentou a margem de consenso em torno da PEB no Legislativo e no deba-te público extraparlamentar, em função da maneira de atuar da presidente no ajuste que vem empreendendo no trato dos assuntos diplomáticos”. Conclui o professor Lafer que “os temas da políti-ca externa estão hoje mais próximos da opinião pública do que estavam no pas-sado, pois a mudança dos paradigmas de funcionamento do mundo e a globaliza-ção, para o bem e para o mal, reduziram

as distâncias que nos permitiam o hacia adentro da exclusiva preocupação com o desenvolvimento nacional dentro das fronteiras do país”. O sociólogo e em-baixador Luiz Felipe Lampreia, chan-celer entre 1995 e 2001, concorda com Lafer. “Há uma compreensão maior das pessoas de que o Brasil tem uma maior inserção internacional e que o que acon-tece lá fora atinge diretamente o brasi-leiro internamente. Sou a favor da par-ticipação maior da sociedade na PEB, pois monopólios não são compatíveis com o nosso tempo. Eu mesmo, quando ministro, realizei várias reuniões com diversos setores da sociedade civil, de empresários a sindicatos, passando por ONGs. É algo mandatório. O Itamaraty não é mais uma torre de marfim e está se abrindo à sociedade. Infelizmente, na gestão de Celso Amorim isso se fez de forma desigual e antidemocrática, um equívoco que o ministro Patriota está corrigindo”, avalia. “Mas a PEB é uma política do Estado e não de governo. Se o governo Lula tivesse seguido essa di-retriz, não teríamos passado o vexame

em Teerã, um dos maiores da nossa po-lítica externa, uma ação feita por razões de puro marketing pessoal, sem levar em consideração que representava o país. As pessoas mais informadas entenderam is-so imediatamente”, diz Lampreia.

“A ação do Legislativo é fundamental e reflete a renovação do interesse da so-ciedade pelas relações externas, poden-do contar, cada vez mais, com quadros especializados, como demonstra o in-cremento dos cursos de relações inter-nacionais, hoje a terceira nota de corte dos processos seletivos universitários do país, logo abaixo de medicina. Disso surgirá um pessoal mais interessado e especializado, bem como revela que os jovens estão se interessando pelos rumos da PEB, já que nesses últimos 15 anos os cursos de política externa, antes restritos a dois ou três, se multiplicaram. É um bom caminho”, analisa o embaixador Gelson Fonseca Jr., que foi representan-te permanente do Brasil junto às Nações Unidas entre 1999 e 2003.

“Creio que os mecanismos existentes possam dar conta das demandas do Par-lamento, mas o nosso presidencialismo de coalizão coloca esse funcionamento em xeque”, analisa Simone Diniz. “O controle do Legislativo perde força em função desse sistema, já que boa parte das comissões têm pessoas ligadas ao go-verno de alguma forma, consequência de uma articulação eficiente entre governo e os partidos da base governista. A pouca capacidade para o exercício do controle legislativo está diretamente relacionada ao formato organizacional do nosso pro-cesso decisório”, diz. n

há uma maior compreensão de que o que acontece lá fora afeta a vida do cidadão comum

o projetopoder legislativo, processo decisório e política externa no brasil – nº 2008/57793

Modalidadeauxílio regular a projeto de pesquisa

co or de na dorsimone diniz – ufscar

investiMentor$ 21.610,08

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80 _ janeiro De 2012

alimentação permite

entender a dinâmica das

relações no brasil colonial

pegar a história “pelo estômago”. Es-sa é a estratégia da historiadora Leila Algranti, professora da Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp), para ter mais uma chave de leitura do

Império Português. “Meu interesse é a história colonial. A comida foi mais uma forma que en-contrei de entender a dinâmica desse Império”, explica. “Afinal, se entender a colonização da América é captar as formas de comunicação en-tre conquistadores e conquistados, de integração e modificação entre o Velho e o Novo Mundo, a alimentação permite ao historiador entender não só os resultados desse intercâmbio cultural, mas o seu processo”, afirma.

Foi esse interesse que a levou a desenvolver a pesquisa As especiarias na cozinha e na botica – Um estudo de história da alimentação na América portuguesa, que analisa a alimentação no mun-do lusitano entre os séculos XVI e XVIII, para refletir sobre as trocas culturais, apropriações e ressignificações de elementos entre os habitantes de diferentes regiões do Império, um fantástico intercâmbio cultural.

“Alimentação não é um tema supérfluo: a fo-me ainda está no centro das políticas governa-mentais. Comida não é só sustento, mas é es-truturante na organização social de um grupo

_especiarias

você tem fome de quê?

a exuberância das frutas foi retratada por

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exemplo, da flexibilidade alimentar do português, preconizada por Freyre. “É preciso pensar a alimentação na sua di-mensão imperial, pois a colonização da América é só uma parte de um empreen- dimento maior: a expansão marítima portuguesa”, diz a pesquisadora.

Após dominarem o comércio de espe-ciarias, garantindo o sabor nas mesas eu-ropeias, os portugueses, no século XVII, viram holandeses e ingleses roubarem seu monopólio. A crise levou a um in-tercâmbio de produtos e saberes pelas colônias: Portugal trouxe para o Brasil sementes de especiarias do Oriente e levou plantas para outras partes do Im-pério, a ponto de embaçar a origem da flora. “O coqueiro, por exemplo, chegou aqui por volta de 1553, a bordo de embar-cações vindas de Cabo Verde. Hoje é um dos símbolos do Brasil. O mesmo se deu com a manga, a jaca, a canela, o açúcar, o algodão. Incentiva-se essa troca para diversificar as culturas e salvar a balan-ça comercial”, observa a historiadora Márcia Moisés Ribeiro, pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e coordenadora de Jornada no ultramar: a circulação do conhecimento científico no império colonial português, apoiado pela FAPESP como Jovem Pesquisador.

“A Metrópole tentava compensar a perda das especiarias do Oriente, mas graças a isso o cultivo de drogas da Índia no Brasil ajudou a promover a circulação de uma cultura científica pelos domínios lusitanos, a ‘aventura das plantas’.” Era, porém, um movimento contraditório: havia avidez por novidades e diversida-de, mas a empreitada era dominada pela tradição de enquadrar o desconhecido em padrões familiares, como se verá.

hUMoresAs célebres especiarias tinham origem na palavra latina “drogas” e, apesar do sen-so comum, não eram desejáveis apenas como forma de conservar alimentos ou disfarçar sabores de carnes apodrecidas. “Elas representavam a associação entre culinária e cura baseada na farmacologia galênica dos ‘humores’, cujas alterações se ligavam ao que se comia. Para corri-gir desequilíbrios comiam-se pratos que teriam qualidades contrárias ao ‘humor’ fora de balanço. Receitas culinárias e me-dicinais eram iguais e a comida, além de um gosto, era uma questão de saú-

humano, abordando todos os aspectos da vida social, da espiritualidade ao po-der, passando pela sexualidade e pelas diferenças de gênero. Em sua pesquisa, Leila debate com clássicos como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Câmara Cascudo, que, de diferentes formas, usaram a comida para explicar a formação nacional pela miscigenação das “três raças”. “A nova historiografia mostra que a tese da mis-tura de elementos é diferente de fazer nascer algo novo, é ultrapassada, como se pensar a comida brasileira sendo um pouquinho da culinária indígena com uma pitada da cultura africana e muito da comida portuguesa”, avisa.

Conceitos tradicionais, como a im-portância indígena e africana na dieta cotidiana, a adaptação dos portugueses a novo regime alimentar de produtos locais ou imagens de fome por causa da monocultura precisam passar por uma sintonia fina. Afinal, eram tem-pos em que intelectuais brasileiros se voltavam para o passado colonial a fim de pensar o futuro do Brasil. Já no caso de Caio Prado Jr. a abordagem da colo-nização estava focada na monocultura para o mercado externo, que absorvia

a todos e ninguém cuidava das culturas alimentares.

“Assim, a ideia de uma cozinha mesti-ça, híbrida e sincrética não satisfaz mais, porque só mostra o resultado final, sem revelar o processo de mediação cultural, de superposição de diferentes formas de alimentação. Se houve substituição, também houve resistência de identida-des”, afirma Leila, na contramão, por

café chega ao brasil num processo de intercâmbio de espécies

a ideia de uma cozinha mestiça, sincrética e híbrida não satisfaz mais a historiografia moderna

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de”, observa Leila. Isso transparece no primeiro livro português de culi-nária, Arte de cozinha (1680), de Domingos Rodrigues, com receitas

de uma comida condimentada ao gosto da época e que também seria boa para a saúde. A exuberância do Novo Mundo, onde indígenas usavam a fartura da terra em caça, peixes, raízes e tubérculos como a mandioca, que o nativo aprendeu a do-minar, e o milho, deveria ter feito, como preconizava a antiga geração historiográ-fica, com que os portugueses abrissem mão da dieta natal pelo novo.

“Mas o colonizador se manteve fiel a sua dieta de trigo, vinho e azeite até quando foi possível. A incorporação de práticas alimentares na América foi mais rápida do que o processo inverso, já que os europeus opuseram resistência a pro-dutos americanos, com o custo da impor-

taurada (Topbooks, 1998): a aceitação dos gêneros nativos pela elite açucareira da Colônia só ocorreu com a instabilida-de do abastecimento de importados nas guerras holandesas. Só quando a única opção possível contra a fome era usar a farinha de mandioca, que tinha status inferior ao trigo, a elite se submeteu.

A “eterna culpa” da monocultura é ou-tro ponto a ser refinado. “Se a coloniza-ção do Brasil foi marcada pelo cultivo de produtos para a demanda europeia, em detrimento do abastecimento interno, no dia a dia, a alimentação foi motivo de atenção e cuidado permanentes”, avisa Rubens. Afinal, a ideia de uma Colônia monocultora não representa a América portuguesa em sua totalidade. “Regiões no sul dos grandes centros produtores de cana-de-açúcar, e no norte, não esta-vam tão ligadas ao comércio externo e se dedicavam à agricultura. No Maranhão, a produção local permitia o consumo

tação, em vez de adotar o trivial da terra: feijão, farinha e carne-seca”, nota Leila. “Prover colonizadores com alimentos de seus países de origem levou à reprodução no Novo Mundo da alimentação: tudo o que fosse transportável em termos de co-mida foi introduzido na América.”

Quando os europeus chegaram aqui, a população autóctone tinha o milho e a mandioca como alimentos de base. Mais tarde, os dois também seriam a base da alimentação na América portuguesa. Mas cada um procurou manter seu modo de vida: os nativos usaram técnicas de pre-paro estrangeiras, embora em alimentos já conhecidos. “Os europeus só aceita-vam a alimentação vinda do reino, só quando não se pôde manter esse cardá-pio é que se optou por substitutos, como a mandioca no lugar do trigo”, explica o historiador Rubens Panegassi, da Uni-versidade Federal de Viçosa. É a tese de Evaldo Cabral de Mello em Olinda res-

comidas do senhor e do escravo eram igualmente pobres em valor nutricional

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de gêneros ainda frescos”, afirma a historiadora Paula Pinto e Silva, auto-ra de Farinha, fei-jão e carne-seca: um tripé culinário

no Brasil colonial (Senac, 2005). “Também a distância entre São Paulo e

as regiões centrais estimulou a autossu-ficiência: a independência aos importa-dos, somada ao contato com os indígenas e à opção pelo milho como alimento de base, foi repertório alimentar particular da região”, nota Rubens. É conhecido o empenho paulista em ser fornecedor de alimentos para as Minas, cuja obsessão pela mineração, reza a historiografia, levou a um desinteresse pela agricultu-ra de subsistência, com crises de fome. “Hoje sabemos de cinturões verdes em torno da mineração e a produção de ali-mentos. Mesmo no Nordeste houve, sim, produção de subsistência, sem negar a falta crônica de alimentação”, observa Leila. Ficaram esquecidas por estudos generalizantes as hortas que cercavam os engenhos, feitas para a aclimatação de espécies europeias e o cultivo de ou-tras nacionais.

“As espécies aclimatadas cresciam, mas logo verduras e legumes da terra invadiram as hortas ‘europeias’ e se ini-ciou, na cozinha das casas-grandes, um processo de substituição dos ingredien-tes originais da receita por equivalentes locais”, nota Paula.

Havia também as hortas feitas, às escondidas, pelos escravos negros. “A contribuição africana deu-se em vários aspectos, mas é preciso uma biografia mais detalhada dos pratos que se acre-dita africanos. A sua influência se deu mais pelo gosto e pela forma de preparar alimentos do que pela feitura de comi-das nativas”, avisa Leila.

“Eles não trouxeram elementos de seus sistemas alimentares, mas esses elementos foram introduzidos no Bra-sil e marcaram nossa comida por meio dos comerciantes, ou seja, fazendo parte do comércio atlântico Portugal-Brasil-África, que incluía o tráfico de escra-vos”, afirma a antropóloga Maria Euni-ce Maciel, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora do estudo Uma cozinha à brasileira. “A permanência de receitas africanas não é só a persistência de hábitos alimenta-res, assim como as mudanças que ocor-reram nestas receitas não resultaram só da falta de ingredientes. Ambas são parte de uma dinâmica cultural de constante recriação da maneira de viver.”

Mesmo a origem da feijoada revela uma luta simbólica. “Se a versão do sur-gimento nas senzalas é um mito, vale lembrar que o mito fala. Assim, haver essa narrativa revela as relações de classe e raça no Brasil. O mesmo vale para as versões que a negam.” Nisso entra tam-bém a cachaça, originalmente a escuma formada pelas impurezas que subiam dos tachos em que se fervia o sumo da cana,

dada aos animais, negros e índios, que a fermentavam. O destilado era novidade para os europeus, acostumados ao vinho. Reprimida por não pagar impostos e rou-bar mercado das bebidas do Reino, seu consumo foi perseguido pelos jesuítas. A aguardente foi usada para conquistar corações e mentes de índios, moeda de troca pelos conhecimentos da terra que os nativos possuíam. Os negros eram “acalmados” com a bebida. “Mas não se pode ignorar o valor calórico das aguar-dentes e a importância na dieta pobre e insatisfatória dos escravos”, nota Leila.

docesFoi outro o caso das frutas, evitadas pe-los europeus, que temiam seus efeitos, e destinadas aos escravos. “Os senhores só comiam frutas cozidas com açúcar, em compotas, geleias, doces secos e crista-lizados. A doçaria revela a adaptação de frutas tropicais ao cotidiano europeu, exemplo notável do ajuste cultural nas cozinhas dos engenhos”, afirma Paula.

Nos doces via-se também a preocu-pação com a saúde. “Registros de época mostram a presença de doces à mesa dos colonos e na cabeceira dos doentes”, diz Leila. “A doçaria é a tradição mais ori-ginal da cozinha portuguesa, um para-digma da mediação cultural. Não é um segmento secundário da alimentação na América portuguesa, mas a mais im-portante produção colonial, que alte-rou hábitos alimentares e de nutrição na idade moderna”, analisa. Se nas co-midas salgadas a refeição do senhor e a do escravo eram algo semelhantes em “pobreza”, os doces são de outra esfera. Especiaria rara e preciosa, o açúcar de início era usado nas farmácias e só no século XV provocou o renascimento na era das guloseimas. “Antigamente só ti-nha açúcar nas boticas para os doentes. Hoje o devoram por gulodice. O que era remédio agora é gula”, observou o geó-grafo Ortelius em 1572.

venda de produtos para alimentação: desenho de debret mostra pouca diversidade da cozinha da época

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a monocultura da cana (ao lado) enriqueceu a Metrópole; em conjunto com frutas (acima), deu origem aos doces, marca cultural da colônia

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Com a abundância de frutos tropicais, além dos trazidos pelos colonizadores, faziam-se doces que lembravam os da Me-trópole. “Mas a combinação de produtos novos com técnicas tradicionais portugue-sas deu origem a doces diferentes, que até mantinham o nome original, como o pão de ló, embora diferenciados dos europeus. É sintomático que a continuidade do no-me marcava uma mudança importante de conteúdo, ou seja, uma palavra antiga de-signava um produto novo”, nota Leila.

“Entre os séculos XVI e XIX, a culi-nária na América portuguesa foi sendo construída e transformada, uma vez que se trata de uma arte combinatória e de inter-relações, mais do que de inven-ções, com processos baseados mais na variação do que na criação pura. Por isso não há apenas uma doçaria ou cozinha colonial, híbrida ou mestiça, indicativa do final de um percurso, mas sim uma convivência de cozinhas ‘no plural’ e de práticas alimentares, com continuidades da cozinha da Metrópole, mas também alteradas e relidas na América”, analisa

Leila. Um salto desde o relato do padre Cardim, no século XVI, que descreve como foram servidos a um bispo lusi-tano vinhos reinóis e pratos medievais em pleno sertão da Bahia. Ainda assim não era uma “cozinha brasileira”, mas a justaposição de “cozinhas”.

“Tivemos uma interculturalidade ma-terializada em redes de relações percep-tíveis no espaço das refeições, no uso dos artefatos, nas técnicas de processamento dos alimentos, nas receitas, no ‘fazer a co-zinha’ na América portuguesa”, avalia a historiadora. Mais: a própria construção da nação será acompanhada pela trans-formação da alimentação.

Uma prova disso é a publicação, no sé-culo XIX, do Cozinheiro imperial, em que não há um doce sequer que leve frutas nacionais. “A sociedade brasileira se pre-tendia avançada, lendo manuais de bons modos à mesa. Isso mostra como a comida foi eleita como um dos motes centrais para a distinção entre civilizados e ‘não civiliza-dos’”, observa Leila. Tudo o que lembrasse a animalidade seria punido, e a refeição, para além da satisfação do corpo, servia para expor a nova sociabilidade.

Na República, a publicação do Cozi-nheiro nacional reforça esse princípio pela inclusão de receitas que uniam o na-cional e o europeu. Antes, em 1780, outro livro de receitas já revelava as relações políticas da comida na nova dinâmica colonial: O cozinheiro moderno ou a nova arte de cozinhar (1780), de Lucas Rigaud. “São receitas de comida mais simples, com temperos e ervas aromáticas leves para ressaltar o sabor, e não escondê-los com o gosto forte das especiarias. São indicações significativas sobre o comér-cio de determinados produtos, além de intercâmbios culturais mais amplos que ocorrem no espaço do Atlântico Sul. A comida é política pura”, avisa Leila.

Não só no Brasil. A ciência na cozinha e a arte de comer bem (1891), do italiano Pellegrino Artusi, compilava receitas de todas as regiões italianas, uma unificação pelo estômago apenas duas décadas após a unificação política italiana.

“Há agora um desejo de recuperar a ali-mentação do passado, um saudosismo de comer melhor como nas receitas antigas. Posso comer fast food ou ‘a quilo’, mas o ideal é a ‘comida da vovó’, uma busca in-consciente de uma identidade que está na nossa cozinha”, observa Leila. Pronta a nos pegar pelo estômago. n carlos haag

não há apenas uma cozinha colonial, mas uma convivência de cozinhas no plural, fruto das mediações

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especialista cataloga usos terapêuticos

de plantas e animais no brasil

culturas da saúde

_ Medicina popular

Maria guimarães

toda pessoa tem um calango que mora no meio do peito. Quando ele sai pas-seando pelo corpo, causa o quebranto. A cura vem de ervas que façam esse lagarto interior voltar para seu lugar.

Entender as propriedades das plantas medici-nais usadas em cada cultura não é uma tarefa simples, mas o trabalho do etnofarmacólogo vai muito mais longe: ele precisa entender doenças que não se encaixam naquelas tratadas pela me-dicina convencional, por isso denominadas “sín-dromes culturais” no sistema oficial de saúde. É essa a missão da bióloga especializada em etno-farmacologia Eliana Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) de Diadema, que há 15 anos investiga o conhecimento medicinal de diferentes culturas brasileiras.

“O índio trata a doença e usa uma planta para cada enfermidade”, exemplifica a pesquisadora, coordenadora do Centro de Estudos Etnobotâ-nicos e Etnofarmacológicos (CEE). “O negro, ao contrário, usa misturas e pode tratar de formas diferentes as dores de cabeça de uma pessoa e de outra – o que conta são as particularidades de ca-da um.” Outra distinção entre culturas é que cada xamã indígena tem o seu conhecimento particular, a sua coleção de plantas na farmácia da floresta. Já os caboclos, segundo a pesquisadora, cultivam um conhecimento difuso que recolhem de diferentes culturas e diferentes origens geográficas.

Essa farmacopeia variada é o tema do estudo de Eliana em sete comunidades ribeirinhas ao longo do rio Unini, no norte do Amazonas. Para chegar às cidades mais próximas, Barcelos e Novo Airão, é preciso navegar no mínimo 250 quilôme-tros pelo rio Negro. Os habitantes da região, uma reserva extrativista, têm ascendência indígena, africana e europeia. No século XIX uma onda migratória do Ceará se instalou por ali em busca de trabalho nos grandes seringais, contribuindo para a cultura local com um forte componente desse estado nordestino.

Já faz parte da lista levantada por Juliana San-tos, uma das integrantes da equipe do CEE, um total de 122 espécies de plantas e 57 de animais, indicadas para 67 usos terapêuticos. As pesquisas mostram, até agora, uma grande diversidade de produtos psicoativos de vários tipos: estimulan-tes, ansiolíticos, afrodisíacos, calmantes etc. Até agora, Eliana catalogou 31 espécies de plantas e animais usadas para esses fins. As plantas podem fornecer uma variedade de partes, como caule, folhas, casca, sementes e frutos. Já dos animais se usa a carne, o cérebro, o pênis, ossos ou até o corpo inteiro. O chá de saúva, por exemplo, é usado para eliminar a preguiça, numa referência à reputação de trabalhadeiras que essas formigas têm. “Mas hoje poucos ribeirinhos usam a me-dicina tradicional, a maioria deles vão ao posto de saúde da comunidade e buscam remédios

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1. o jenipapo ralado vira um corante que escurece em algumas horas

2. Mistura de ervas para fazer o tira-capeta

3. fruto do babaçu, antes da extração de óleo

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antropologia

farmacologia

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que usam de maneira indiscriminada”, la-menta. O problema surge porque esse tipo de atendimen-to é instalado sem o

acompanhamento de um profissional qualificado. “São agentes de saúde com pouco treinamento.”

cicatrizantes das plantasTambém são muitas as substâncias usa-das para as chamadas síndromes cultu-rais, que o médico Eduardo Pagani, ao participar do estudo em trabalho de cam-po na Amazônia, verificou não terem tra-dução direta na medicina convencional. É o caso do quebranto, do derrame, do espante e da mãe do corpo, entre outras doenças. Alguns dos preparados medi-camentosos para esse tipo de enfermi-dade não vêm das partes tradicionais das plantas, mas de substâncias que elas vertem, os exsudados. Exemplos são o breu-branco e o breu-preto, além do la-cre, que libera um líquido laranja.

E os exsudados não se restringem às plantas. A baba do sapo-canuaru, uma perereca malhada de marrom e bege, é usada contra dor de cabeça. O produto forma uma pedra escura, que os ribei-rinhos maceram e envolvem num peda-ço de pano, que em seguida queimam e inalam. “O uso dos exsudados é geral-mente inalatório”, observa Eliana. Mas ela não está convencida de que se trate mesmo da saliva solidificada do anfíbio. Neste mês, a etnofarmacóloga está nas comunidades para aprender a encontrar

extrato de sucuuba, os pesquisadores de-tectaram efeitos no sistema nervoso cen-tral, como sedação e uma diminuição de atividade motora. Já a cumandá não afe-tou a coordenação motora nem produziu relaxamento muscular. Mas o resultado não apareceu nos camundongos tratados com extrato da casca da árvore, apenas das folhas – justamente apontadas pelos caboclos como sendo um remédio mais forte, mas raramente usadas como me-dicamento por estarem nas copas altas, fora do alcance cotidiano.

Eliana já fez, durante o doutorado, um estudo semelhante com tribos de índios Krahô, no Tocantins (ver Pesquisa FA-PESP nº 70), um trabalho depois difi-cultado e embargado pela legislação que limita o acesso à informação detida por essas populações. Além dos caboclos, a pesquisadora também fez levantamentos etnofarmacológicos em comunidades quilombolas, que têm uma cultura de medicina tradicional muito distinta.

sapo-canuaru, fonte de produto contra dor de cabeça, e garrafadas (direita) nas ruas de Manaus

a substância e verificar a sugestão feita no século XIX pelo naturalista João Bar-bosa Rodrigues: o sapo-canuaru recolhe breu-branco de troncos podres de árvo-res do gênero Protium e usa essa resina para revestir seu ninho. Assim, a tal baba de sapo seria o breu-branco enriquecido com secreções da pele do animal.

Entender o que são esses exsudados é no momento uma das prioridades de Eliana, que para isso conta com a cola-boração do químico João Henrique Ghi-lardi Lago, também da Unifesp, ainda em processo de caracterizar cada um deles como resina, goma, látex ou seiva. “Essa informação já nos dará uma pista de sua composição química”, prevê a pesquisa-dora. As resinas, por exemplo, são ricas em terpenoides e óleos essenciais. Deta-lhar os componentes químicos e possí-veis princípios ativos de cada uma dessas substâncias será uma segunda etapa.

Enquanto isso, Eliana cataloga os me-dicamentos de origem natural e forma parceria com farmacólogos, que analisam seus efeitos em animais de laboratório. Foi o caso de duas plantas usadas nas comunidades do Parque Nacional do Jaú como analgésicas: a sucuuba (Himatan-thus sucuuba) e a cumandá (Campsiandra comosa). A segunda é, de acordo com os caboclos, a única eficaz contra dor de dente. Os pesquisadores trataram ca-mundongos com extratos das duas plan-tas e corroboraram, em alguns aspectos, o uso popular dessas plantas, segundo artigo publicado em 2010 na Revista Bra-sileira de Farmacognosia. Nos animais que receberam doses mais elevadas do

o projetolevantamento etnofarmacológico entre os caboclos da reserva extrativista do rio unini, aM – nº 2009/53382-2

Modalidadeauxílio regular a projeto de pesquisa – programa biota

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Foi na sesmaria Mata-Cavalos, no mu-nicípio mato-grossense de Nossa Senho-ra do Livramento, que ela descobriu por acaso o cigarro tira-capeta. “Para fazer uma boa etnografia é preciso viver na área de estudo”, explica. Foi assim que ela descobriu que à noite, depois de ter respondido às perguntas da pesquisa-dora, o pai de santo seu Cezário acendia um cigarro muito aromático e que, quan-do fumado, causa relaxamento e altera a percepção. “É um fumo celebroso”, descreveu o curandeiro, que aprendeu a receita com sua avó índia e prescreve o remédio para melhorar o desempenho escolar de crianças e adolescentes. É um “fortificante” para o cérebro. A etno-farmacóloga descobriu também que os habitantes da região viajam quilômetros para buscar a mistura de nove plantas que ajuda a curar, por substituição, a de-pendência de maconha. O tira-capeta cria dependência, mas sem o estigma social da erva ilegal.

O tira-capeta inclui plantas nativas, como a erva-guiné (Pettiveria alliacea)

até chegar na Grande São Paulo”, conta a pesquisadora. Mas esse saber vai perden-do a precisão ao longo do caminho.

“É preciso resgatar a história do co-nhecimento popular que de resto vai desaparecer”, ressalta o psicofarmacó-logo Elisaldo Carlini, diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Dro-gas Psicotrópicas (Cebrid), da Unifesp.

Ele foi o orientador de Elia-na no doutorado e afirma ser impossível que a mes-ma pessoa recolha as in-formações etnológicas nas comunidades tradicionais e faça os estudos químicos e farmacológicos. Para ele, é necessário reunir equi-pes multidisciplinares em centros bem equipados. Um luxo raro no Brasil, em sua experiência. “O jeito é fazer os levantamentos etnofar-macológicos e guardar os dados para quando o país acordar e investir no desen-volvimento de medicamen-tos.” Sem o primeiro degrau, que Eliana vem construindo, não há como avançar.

Uma forma de mudar es-se quadro está na iniciati-va de fundar um curso de

pós-graduação em plantas medicinais em Diadema, onde Eliana é professora. Carlini é o mentor e coordenador do pro-jeto, que está em processo de aprovação pela reitoria com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní-vel Superior (Capes), e espera que suas características interdisciplinares façam uma ligação entre os campi da Unifesp: o curso de farmácia em Diadema, a me-dicina na capital paulista e a sociologia em Guarulhos. n

“para fazer uma boa etnografia é preciso viver na área de estudo”, diz eliana

pai de santo, cezário macera o preparado de cigarro aromático para “tratar” crianças e adolescentes

artigos científicosRODRIGUES, E. et al. Perfil farmacológico e fitoquímico de plantas indicadas pelos caboclos do Parque Nacional do Jaú (AM) como potenciais analgésicas. Parte I. Revista Brasileira de Farmacognosia. v. 20, n. 6, p. 981-91. dez. 2010.

NEGRI, G & RODRIGUES, E. Essential oils found in the smoke of “tira-capeta”, a cigarette used by some quilombolas living in Pantanal wetlands of Brazil. Revista Brasileira de Farmacognosia. v. 20, n. 3, p. 310-16. jun./jul. 2010.

SOARES NETO, J. et al. A rede de comércio popular de drogas psicoativas na cidade de Diadema e o seu interesse para a saúde pública. Saúde e Sociedade. v. 19, p. 310-19. 2010.

e o capitiú (Siparuna guianensis), e in-troduzidas, a exemplo do eucalipto (Eu-calyptus globulus) e do alho. Um primeiro nível de análises pela química Giuseppi-na Negri, publicado em 2010 na Revista Brasileira de Farmacognosia, mostrou que a fumaça desse cigarro é rica em cineol, cânfora e alfa-pineno, substân-cias conhecidas na literatura científica por aguçar a memória, tratar sinusite e aliviar insônia.

conheciMento detUrpadoMas se não for mantida com cuidado, essa cultura se perderá. Num levanta-mento em Diadema, Eliana e seu aluno Julino Soares verificaram justamente que muitas das ervas medicinais ven-didas na cidade não são o que deveriam ser. Ao comprar uma planta por outra, os clientes correm o risco de agravar os problemas de saúde. Ainda mais grave, os pesquisadores encontraram altos teores de contaminação por fungos e bactérias. “São migrantes que reuniram conheci-mento pelos estados por que passaram

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cemos as suas reflexões críticas sobre o marxismo, o funcionalis-mo, o estruturalismo como expli-cações por vezes esquemáticas (ou ainda simplistas) dos proces-sos sociais; em outros trabalhos, identificamos Ruth Cardoso an-tropóloga preocupada com a pes-quisa de campo e com as análises das narrativas, sensível ao que já identificava como uma dissemi-nação equivocada – porque ali-geirada – do método qualitativo e da análise de discurso.

Precedem os textos seleciona-dos nessa coletânea uma delicada e cuidadosa apresentação de Teresa Caldeira e um emocionante depoimento de Eunice Ribeiro Durham, colega e amiga de toda a vida de Ruth. O texto de Teresa Caldeira nos serve de guia para a leitura dos artigos: mostra o percurso de Ruth Cardoso e as influências que recebeu como uma intelectual de seu tempo, o diálogo que estabeleceu com as diversas correntes de pensamento então em voga e suas indagações diante das mudanças sociais; reconhece tam-bém as contribuições de Ruth Cardoso para a pesquisa de campo na antropologia, em par-ticular, e para o pensamento social, de modo amplo, sempre reiterando a atitude moderna da professora por criar, nas mais diferentes si-tuações, “espaço de reflexão e interrogação do presente, um espaço para forçar limites, pro-curar alternativas”.

O livro traz os textos em ordem cronológica e temática a partir das questões que Ruth Car-doso priorizou ao longo de sua trajetória acadê-mica e de cidadã de seu tempo; essas questões, no livro, recebem, com muita propriedade, os

ruth Cardoso: obra reunida, livro organiza-do por Teresa Pires do Rio Caldeira, vem suprir uma lacuna nos muitos tributos já

prestados à professora Ruth desde o seu faleci-mento em 2008.

Todos nós – colegas, alunos, orientandos e parceiros em muitas pesquisas – sentíamos a ausência, até então, de um livro que reunisse os trabalhos acadêmicos de Ruth Cardoso es-critos ao longo de sua carreira de professora e pesquisadora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em universidades estrangeiras, dos Esta-dos Unidos e do Chile, onde também lecionou, em centros de pesquisa, com destaque para o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planeja-mento), em São Paulo. Nesse livro encontramos textos, alguns inéditos, outros em publicações esgotadas, escritos por Ruth, artigos em parce-ria com Eunice Ribeiro Durham e outros com a coautoria das orientandas Céline Sachs-Jeantet, Esther Império Hamburguer, Helena Sampaio e Teresa Caldeira.

Ruth Cardoso escreveu e publicou relativa-mente pouco; os mais próximos atribuem o fa-to ao seu excessivo rigor em relação à própria produção. Gostava de ensinar, orientar, pesqui-sar, discutir ideias e, especialmente, partilhar com colegas, alunos e orientandos suas sempre inovadoras (e algumas vezes inusitadas) des-cobertas intelectuais, acrescentando ao debate autores e obras, nacionais e estrangeiras, que quase invariavelmente se situavam na contra-mão dos modismos e do pensamento hegemô-nico da academia.

Os 41 textos reunidos nesse livro procuram dar conta dessa inquietação intelectual de Ruth Cardoso diante dos modelos de interpretação e da realidade social. Em alguns textos reconhe-

uma intelectual inquieta e ativa

resenhas

helena sampaio

ruth cardoso: obra reunidateresa pires do rio caldeira (org.) editora Mameluco 568 páginas, r$ 78,00

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helena sampaio é pesquisadora do nupps (núcleo de pesquisa de políticas públicas) da usp (universidade de são paulo).

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seguintes subtítulos: Migrantes japoneses: in-tegração e mudança; A aventura antropológica I – buscas; Favelas: através dos fragmentos; A aventura antropológica II – críticas; Movimentos sociais, Estado e democracia; Mulheres, direito e democracia; Mídia e juventude; Pobreza, po-líticas sociais e terceiro setor.

Por fim, o volume traz o currículo acadêmico e a lista de orientandos da professora Ruth Cardo-so. Para os que tiveram o privilégio de conviver e aprender com ela, o livro é, com certeza, um pre-sente de prolongamento dos saudosos encontros para discussão de pesquisas de campo (e seus achados e interpretações e reinterpretações) e dos diálogos necessariamente intermináveis, porque para Ruth Cardoso nunca deviam ser interpretações definitivas, sobre as mudanças e os rumos da sociedade brasileira, preocupação que a acompanhou durante toda a vida.

ruth cardoso: atitude moderna sempre dando espaço para a reflexão e a interrogação do presente

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cura amealhar os seus primeiros e parcos rendimentos destinados prioritariamente à família. De iní-cio, seu campo de trabalho é a rua; depois, a fábrica onde o já adoles-cente capta o clima político que Vargas tece no centro do poder e que ecoa, lá embaixo, onde estão os operários.

Depois a busca pela escolariza-ção que o levou à obtenção do di-ploma de professor primário, título com o qual ingressou no curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP). A autobiografia tem aí seu ponto final. É preciso que se diga, porém, que José de Souza Martins oculta aos leitores o perfil de uma trajetória intelec-

tual brilhante: sociólogo que percorreu todos os degraus da vida acadêmica na USP, onde, ao se aposentar, recebeu o título de professor emérito. No exterior foi professor visitante da Universi-dade da Flórida, nos Estados Unidos, e da Uni-versidade de Cambridge, na Inglaterra, além de professor, na mesma universidade, da Cátedra Simón Bolívar.

É imperioso grifar a elegância da linguagem, que descarta as palavras e os enunciados mágicos caros aos cientistas sociais mas de difícil deglutição pelo leitor. Engana-se, todavia, quem considere o autor descomprometido com essa visão acadêmi-ca. Seu olhar é o rigoroso olhar de um acadêmico talentoso, sem grandes preocupações com as fron-teiras que separam e empobrecem as reflexões da sociologia, da antropologia, da história.

A autobiografia de Martins pode ser lida co-mo uma crônica deliciosa das peripécias de um moleque de fábrica que se torna um respeitável acadêmico; ou como um modelo teórico que dá conta dos múltiplos aspectos que compõem uma trajetória de vida; ou, então, como uma crítica di-reta, pontual, nem sempre sutil, de uma sociedade tão desigual como a brasileira. A escolha caberá, naturalmente, ao leitor.

escrever sobre o “outro”, ainda que amparado pelo distancia-mento e pela aparente e às ve-

zes enganosa neutralidade, é difícil. Imagine-se falar sobre o próprio “eu”. Situar-se em universo onde a repre-sentação de si mesmo é, em larga me-dida, construída pelo sujeito que fala e pelos pares que compartilham, de forma permanente ou ocasional, o mesmo cenário de convivência social. Cada qual com suas experiências que transitam entre o real e o aparente, quase sempre experiências de vida intransferíveis. Falar sobre si mesmo é rastrear o próprio passado, debru-çar-se sobre lembranças da infância e da juventude, a partir de uma visão amadurecida pelos anos já vividos.

É este desafio que José de Souza Martins en-frenta ao escrever Uma arqueologia da memória social – Autobiografia de um moleque de fábrica. O leitor ficará sabendo o que é ser filho de imigran-tes pobres (portugueses e espanhóis) que chegam ao país sem qualquer apoio e passam a viver, por assim dizer, à margem do que há de mais expres-sivo na cena brasileira. Ficará sabendo também o que é ser neto de um homem estigmatizado em Portugal por ser filho espúrio de um impiedoso padre de aldeia. Familiarizar-se-á com o cotidiano de uma família que, ao transitar por áreas rurais e urbanas do estado, acaba por dividir a vida de um menino ainda em crescimento.

Nas memórias do autor, o rural ganha duas fa-ces bem delineadas: há o rural acolhedor, repleto de “bom” caipirismo. É o rural dos arredores de Pinhalzinho, onde passa dias de encantamento na casa rústica dos avós maternos espanhóis. E há o rural que é lembrado para ser esquecido, distante oito quilômetros de Guaianases, onde vive, em companhia da mãe e de um padrasto hostil, “longe da civilidade e das vênias profun-das do respeito pelo outro, no sentido profundo e ritual do decoro”. Já o urbano que Martins nos revela é o da periferia da metrópole, o do operariado, com seus encantos e desencantos. Nesse cenário em que pobrezas financeira e intelectual estão associadas é que o autor pro-

Da fábrica à academia

resenhas

Uma arqueologia da memória social – autobiografia de um moleque de fábricajosé de souza Martins ateliê editorial464 páginas, r$ 60

joão baptista borges pereira

joão baptista borges pereira é antropólogo, professor emérito da universidade de são paulo (usp) e professor pleno de pós-graduação da universidade presbiteriana Mackenzie. fo

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a vida como obra

a segurançados transgênicos

Uma figura de apreensão com -plexa como Pierre Verger merecia uma “biogra fia”

igualmente abrangente como a es-crita por Jérôme Souty, em verda-de, a transformação em livro de seu doutorado (2005). As aspas apos-tas na biografia dão conta da inten-ção do autor: apresentar o trabalho etno lógico de Verger como sendo indissociável de sua obra de fotó-grafo e de sua experiência de vida.

Vindo do mundo da imagem, Verger desconfia-va da escrita como forma de dar conta da riqueza e da singularidade do mundo que encontrou no Brasil. A perda da família o fez viajar pelo mundo e desejar ser outro, ser negro. Nessa proximidade excessiva com o seu “objeto de estudo” estão a grandeza e os “pecados” de Verger, como seu zelo neotradicionalista de sempre escrever tendo em mente o interesse dos produtores do saber que analisava. Mas esse engajamento humano é que dá brilho e modernidade à sua obra.

O fotógrafo nunca quis se “intrometer” na vida dos seus retratados (ao contrário de Car-tier-Bresson, para ele um “ladrão de imagens”), a custo decidiu escrever e quando o fez levou para o texto o mesmo olhar caloroso, que não classifica a priori, mas imerge, lentamente, na cultura do outro, em seu cotidiano, em seus se-gredos, que ele respeitou sempre, sentindo-se o “outro”. Daí a sua iniciação, necessária e deseja-da, resultado natural de uma familiaridade com a cultura ioruba, mais do que a busca por uma verdade secreta. O resultado foi uma quebra com o etnocentrismo que deu a ele a chance de um conhecimento centrado.

Verger escreveu com o olho do fotógrafo e o ouvido do parceiro: a oralidade é seu modo de trabalho, sem construções intelectuais que “mu-mifiquem” o que se quer registrar. Sua escrita se liga diretamente ao real, uma “transcrição” dinâmica que faz ecoar até hoje a voz da cul-tura. Um belo livro que deve ser lido com Ca-rybé, Verger e Caymmi, estudo amoroso sobre Verger, lançado em 2009, pela Fundação Pierre Verger. Um prazer duplo e irresistível. Como a obra de Verger. carlos haag

as plantações de alimentos geneticamente modificados (AGM) aumentaram 87 vezes entre 1996 e 2010 e estão presentes em 29

países. No Brasil espera-se um aumento de 20% na safra de 2011/2012. Assim, poderíamos dizer que as culturas transgênicas são um sucesso en-tre os agricultores. Mas muitas pessoas ainda têm dúvidas ou mesmo rejeitam os alimentos transgê-nicos porque temem que eles possam ser danosos à saúde humana ou animal. Fazem isso com base em evidências ou faltam informações?

A possibilidade de elucidação do problema para os temerosos e também para quem quer conhecer melhor esse ramo das engenharias genética e de alimentos pode ser encontrada no livro Transgê-nicos: bases científicas de sua segurança, que tem como autores o professor Franco Maria Lajolo, do Departamento de Alimentos e Nutrição Experi-mental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), e da engenheira de alimentos Marília Regini Nutti, pesquisadora da Embrapa e especialista em segurança de AGM da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e da Organização Mundial

da Saúde (OMS). Eles fazem nessa 2ª edição atualizada (a primeira foi lançada em 2003) um levantamento de centenas de estudos, incluindo do-cumentos de organismos mundiais, e descrevem a metodologia científica, baseada na análise de riscos, usada nos ensaios antes da aprovação dos alimentos transgênicos.

“Recentemente vários estudos têm sido realizados para avaliar a influência dos AGM na alimentação de animais durante várias gerações.

Entretanto, em nenhum deles foram observados efeitos adversos.” Os autores mostram resultados como esse ao longo dos 10 capítulos que se ini-ciam com explicações, em forma didática e de fácil compreeensão, de como é a gênese dos organismos geneticamente modificados. Mostram também que dificilmente, com as metodologias aplicadas, um produto AGM possa apresentar riscos para a população. Muitos quadros explicativos, tabelas e infográficos ajudam a completar as informações e a elucidar o tema transgênicos. Marcos de oliveira

pierre fatumbi verger: do olhar livre ao conhecimento iniciáticojérôme soutyterceiro nome, 448 páginas, r$ 60,00

transgênicos: bases científicas

de sua segurançafranco Maria

lajolo e Marília regini nutti

edusp, 200 páginas

r$ 45,00

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corpo, jogo e teoria erudito e popular, antônio nóbrega tornou-se

brincante de múltiplas especialidades

helena Katz

arte

a relação com a universidade é uma costu-ra de pontos largos na sua carreira. Não à toa, Antônio Nóbrega, que nasceu em

1952, em Recife, chama sua mais recente cria-ção artística de “tese”. Naturalmente, teoria e jogo de uma dança brasileira começou a ser de-fendida em 2009.

Foram quase 40 anos para consolidar a pesqui-sa, necessários para transformar aquele menino sem nenhuma relação com a cultura popular em um brincante de múltiplas especialidades. Nes-se percurso, a universidade entra e sai várias ve-zes. Antônio Nóbrega começou pelo violino e, aos 16 anos (1968), enquanto se preparava para o vestibular, já participava, alternadamente, da Orquestra de Câmara da Paraíba e da Orquestra Sinfônica do Recife. Foi como violinista que rea-lizou o primeiro espetáculo, em 1963, na Escola de Belas Artes, em Recife, ainda aluno de nível médio de Luis Soler.

Cursou direito por dois anos, desistiu; tentou letras, e parou; foi para a música, acabou largando, mas a passagem pelo Conservatório da Universi-dade Federal de Pernambuco mudaria a sua vida: encontrou lá os parceiros do Quinteto Armorial, onde permaneceu de 1971 a 1980. Foi quando tro-cou o violino pela rabeca. Não se tratou somente de uma mudança de instrumento, tão comum na vida dos músicos. Começava aí a relação do eru-dito com o popular que se tornaria o seu objeto de pesquisa, marcado pela proposta armorial de Ariano Suassuna.

Descobriu as micagens dos presepeiros ou fol-gazões dos reisados, o canto áspero e épico dos cantadores e repentistas, encontrou o capitão Antônio Pereira, com quem conviveria por 10

anos e que lhe ensinaria desde o passo da “tesou-ra rebatida” até a saber escolher o melhor cipó- -de-embira para confeccionar a “esmolembenta” Burra Calu (personagem que, anos mais tarde, estaria em uma canção sua, Boi castanho).

Estudou também com Mateus Guariba, Nasci-mento do Passo, mestre Aldenir e Olímpio Bone-ca, mestre de reisado e guerreiro de Juazeiro, no Ceará, que lhe mostrou as toadas e as histrionices dos Mateus. E com mestre Zé Alfaiate, do morro da Bomba do Hemetério, com quem conheceu o caboclinho Sete Flechas e as manobras e posturas do que já chamava de “um bailado brasileiro”. Co-mo todo bom pesquisador, faz tempo que cultiva a

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sua obsessão. “Sempre quis saber por que um país com um universo tão exuberante de danças, cujos vocabulários de passos impressionam, não tem es-sa riqueza incorporada à sua dança de palco. No campo da música, essa assimilação aconteceu.”

As lantejoulas e canutilhos que o capturaram foram bordando o seu caminho artístico. A vivên-cia armorial se entranhara de tal forma, que fez dele a versão em música e dança de Ariano Suas-suna. Quando chegou em São Paulo, em 1982, com A arte da cantoria, já havia montado e dedicado ao capitão Antônio Pereira, em 1978, A bandeira do divino. Mas foi somente em 1983, com O ma-racatu misterioso, que iniciou a sua carreira de solista na dança.

À universidade volta em 1986, quando assume a criação da disciplina de danças populares bra-sileiras na Unicamp, no curso de graduação que ajudou a fundar. Três anos depois apresenta a sua dissertação de mestrado: O reino do meio-dia, com uma primeira síntese do que considerava, na ocasião, serem os componentes índios, negros e ibéricos da nossa cidadania gestual.

Fez da querela do popular com o erudito o seu campo de pesquisa e agora pretende pro-

duzir mais um dos que Peter Brook chama de “Os grandes teatros diferentes do mundo”. Vai sistematizar um léxico que ensina a dançar a partir das danças populares. Em Naturalmente mostra como passos de maracatu se organizam ao som de Erick Satie, como se joga capoeira com Bach, ou se junta o Tchaikovski da suíte do balé O quebra-nozes, com a Gaiata, um personagem popular. Realiza a proposta de princípios univer-sais, formas locais, de Eugênio Barba.

Os estudos de caso estão registrados na série de 10 programas que compõem o Danças brasi-leiras, projeto idealizado e dirigido por Belisá-rio França, em 2004, para o Canal Futura. E o laboratório foi criado com sua parceira, Rosane Almeida: o Instituto Brincante, no qual suas hi-póteses podem ser testadas.

Se o que valida a pesquisa é a sua continuida-de, a de Nóbrega encontrou em Maria Eugênia Almeida e Marina Adib, duas jovens e talentosas dançarinas, a realização mais plena dos pressupos-tos armoriais que o guiaram até aqui: uma vem do treinamento popular (Maria Eugênia) e a outra, do erudito (Marina). Vê-las em cena talvez aponte para o início de um pós-doutoramento. nfo

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Naturalmente, espetáculo de 2009, reapresentado em dezembro de 2011 no centro cultural fiesp-sesi, é uma espécie de tese do artista

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sobre homens e vermesjair bonf im

conto

—‘Seu verme imundo, você não passa mesmo de um verme!’ E tome socos, cadeiradas e muita gritaria, com prostitutas de meia-liga e coletes que terminam em curtíssimas saias cheias de babados, subindo correndo as escadas que le-vam para os quartos do bordel, que agora mais parecia um campo de batalha.” Ele apertou rá-pido a tecla pause do controle remoto: uma ideia surgira em sua cabeça diante da frase que dava início ao filme de faroeste que pegara apenas para relembrar quando, ainda menino, seu pai o levava aos domingos nas sessões da tarde do cinema da cidade.

“... Verme, você não passa de um verme...”, como ainda não havia pensado nisso? Apertou a tecla power e achou melhor passar para o papel o turbilhão de ideias, possibilidades, de-vaneios e hipóteses que fervia dentro de sua cabeça. O filme já não era mais tão importante agora, poderia ser visto mais tarde, ou outro dia qualquer.

Verme, isso mesmo! E se o homem não fosse mais do que um simples verme – uma bactéria, uma ameba –, o planeta Terra, não mais do que uma célula, o sistema solar ou até a Via Láctea, um órgão qualquer de um ser que jamais seria conhecido por inteiro – assim como o parasita Balatidium coli nunca terá consciência do corpo que escolheu para se desenvolver.

Apelar para o fato da existência da inteligên-cia humana, e toda a civilização resultante dela, ou até mesmo invocar a consciência divina que

parece ser atributo exclusivo do animal chamado homem, não parecia constituir argumentos de pe-so. Afinal – as ideias misturavam-se, atropelavam- -se, exigindo da mente um esforço imenso para tentar alguma ordem no caos de prós e contras que surgiam desordenadamente –, quem pode ter certeza que os vermes, os ácaros, as bactérias, enfim, todos os parasitários, vírus e micro-orga-nismos que fazem do corpo humano seu univer-so não possuam também a sua “civilização”, sua história e suas crenças?

A “lógica” de algumas coisas pareciam ago-ra ganhar uma evidência clara em sua cabeça. Lembrou-se do fato de que quando o corpo fica ameaçado por algum tipo de parasita, ou vírus, é comum que o próprio corpo ponha em ação seus mecanismos de defesa natural, sendo que quando isso não acontece ou sua reação se mos-tre insuficiente torna-se indispensável o uso de drogas que eliminem, ou pelo menos reduzam ao máximo, a ação nefasta destes micro-organismos. Chegou a esboçar um leve sorriso no canto dos lábios, ao imaginar que os terremotos, furacões, enchentes, ou mesmo as epidemias, as doenças que ceifam milhares de vida ao longo da história humana, poderiam não passar de reações “natu-rais” desencadeadas pelo sistema imunológico desse corpo desconhecido que o “verme homem” escolheu como hospedeiro para se desenvolver. Quem poderia garantir que nosso belo planeta talvez nada mais seja do que uma célula infecta-da por hospedeiros – ou seja, nós! – que além de

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colocar em risco sua sobrevivência ainda ameaça destruir a própria célula?

Estava excitado com sua “descoberta”, que agora já nem lhe parecia ser tão absurda assim. Um pequeno esforço mental, para deixar de lado vários tipos de preconceitos, conceitos, noções de tempo, espaço, e até mesmo abolir, nem que fosse por um breve período de tempo, a crença em tudo que pudesse relacionar-se com religio-sidade, fé ou espiritualidade: era tudo o quanto se fazia necessário para admitir, pelo menos, a coerência de sua “teoria”. No entanto, sabia que essa postura, por momentânea que fosse, não era tarefa fácil para a maioria das pessoas; sem levar em conta, ainda, que para muitos seria mesmo uma atitude de heresia, de pecado.

Mais uma vez, um pequeno sorriso iluminou sua face ao permitir que sua mente – viajando no tempo e no espaço – o levasse para uma rua qualquer, de uma cidade qualquer do mundo, cheia de homens que andavam apressados por entre cavalos, vendedores ambulantes e senho-ras com sombrinhas em uma das mãos e um le-que aberto na outra. Ele, com uma enorme foto digital de um ácaro de sujeira, ampliada alguns milhares de vezes, tentava chamar a atenção de alguém – em um dia qualquer do século XVII – para a prova da existência daquele “monstro” em seu cotidiano.

— Senhor, senhor, olha para isto: sabia que cen-tenas deles estão grudados em seu corpo, vivendo sob suas unhas ou agarrados nos seus pelos?

— Senhora, sabia que tem milhares deste bi-cho em suas cortinas de seda, em suas poltronas de veludo?

De volta à realidade, imaginava que até um áca-ro, ou uma bactéria, podia servir de hospedeiro a outros seres, milhares de vezes menores, que poderiam ainda abrigar outras espécies meno-res ainda, sendo que estes últimos, por sua vez, poderiam ainda...

— Pai, vem deitar comigo, eu não estou con-seguindo dormir.

A voz da menina quase o derruba da cadeira. Olhou para o relógio no canto da tela e percebeu que já passava das três horas da manhã. Ergueu a menina nos braços, desligou o computador e perguntou-lhe por que não conseguia dormir. A pequena disse que parecia estar vendo monstros horríveis que queriam se agarrar a ela. Ele se ajeitou ao lado da filha em sua cama e começou a contar para ela a história de como Deus criara o mundo: primeiro os animais, depois o primeiro homem e, de uma costela dele, a primeira mulher. A menina sempre lhe pedia para que contasse essa história na hora de deitar.

Antes mesmo que a serpente surgisse com o fruto do pecado que levava ao conhecimento, os dois já haviam entrado na escuridão silenciosa do sono profundo que só os puros e os ingênuos conseguem alcançar.

jair bonfim nasceu em 1961, escreve poemas e contos desde a adolescência. formado em jornalismo, trabalha no ramo de confecções.

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ClassifiCados

Concurso de Professor Doutor - Computação

O Departamento de Ciência da Computação do IME-USP abriu um concurso para a contratação de um professor doutor em RDIDP. O Departamento é responsável pelo Bacharelado em Ciência da Computação, pela Pós-Graduação em Computação e pelo Centro de Competência em Software Livre – CCSL, em São Paulo. O Departamento está interessado em pesquisadores que serão responsáveis por disciplinas de Bancos de Dados e Estruturas de Dados. Mais informações sobre a inscrição (prazos e documentação) podem ser obtidas em http://www.ime.usp.br/dcc

E-mail: [email protected] Fone: 0XX11 3091-6135

CiênCia em tempo realo Conteúdo de pesquisa Fapesp não termina aqui.

Visite www.revistapesquisa.fapesp.br e se cadastre para receber o boletim.

Acompanhe também: @ pesquisaFapesp no twitter e a nossa página no facebook.

Na edição on-line você encontrará vídeos, galerias de fotos e mais notícias. Afinal, o conhecimento não espera o começo do mês para avançar.

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PESQUISA FAPESP 189 | 99

Alguns talentos brasileiros acabam indo para o exterior.

Mas com o Ciência sem

Fronteiras, eles voltam ainda

melhores.

As chamadas já estão abertas. Informe-se no site www.cienciasemfronteiras.gov.br

Ciência sem Fronteiras é o programa do

governo brasileiro que, até 2014, vai destinar

a alunos de graduação e pós-graduação

mais de 100 mil bolsas para intercâmbio no

exterior, além de trazer cientistas de renome

e jovens pesquisadores que se destacam lá

fora. São os melhores alunos brasileiros nas

melhores universidades do mundo.

Ministério daEducação

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Biolab 2012 Parceria para inovaçãoUm novo ano começa e com ele, a Biolab renova suas parcerias e o compromisso com a inovação.

Para nós, 2012 será impulsionado por novas parcerias para o desenvolvimento de projetos, tecnologias e produtos.

Afinal, acreditamos que parceria e inovação são a fórmula certa na busca por qualidade de vida.

Em 2012, a Biolab abre suas portas para novas ideias.

Aguardem novidades!