100
FEVEREIRO DE 2012 . WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR PESQUISA FAPESP FEVEREIRO DE 2012 Dogmas em xeque Técnica brasileira redefine o número de neurônios no cérebro OS INVASORES Plantas e animais exóticos começam a ser combatidos ENVELHECIMENTO Senilidade traz possível vantagem evolutiva DANÇA GEOLÓGICA Por pouco o Nordeste não ficou na África CELULARES Empresas desenvolvem softwares no país n.192

Pesquisa Fapesp 192

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Dogmas em xeque: Técnica brasileira redefine o número de neurônios no cérebro

Citation preview

Page 1: Pesquisa Fapesp 192

fevereiro de 2012 . www.revistapesquisa.fapesp.brPes

qu

isa

fa

pesp

fev

erei

ro

de

2012

Dogmas em xequeTécnica brasileira redefine o número de neurônios no cérebro

os invasoresPlantas e animais exóticos começam a ser combatidos

envelhecimento Senilidade traz possível vantagem evolutiva

Dança geológicaPor pouco o Nordeste não ficou na África

celularesEmpresas desenvolvem softwares no país

n.1

92

Page 2: Pesquisa Fapesp 192
Page 3: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 3

FotolAb

Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Cores nas lagoasO listrado multicor que se desenha na areia quando o nível da água baixa nas lagoas do Pantanal da Nhecolândia, conhecidas como salinas, em Mato Grosso do Sul, por muito tempo foi um mistério para observadores. A explicação está na cianobactéria Anabaenopsis elenkinii, um dos poucos organismos que sobrevivem nas condições inóspitas dessas águas muito alcalinas, de pH entre 9 e 11. De acordo com o Núcleo de Pesquisa em Ficologia do Instituto de Botânica, na época seca essas bactérias se reproduzem em profusão e pintam as lagoas com substâncias de sua própria decomposição.

Foto enviada por Kleber Renan de Souza SantosInstituto de Botânica de São Paulo

Page 4: Pesquisa Fapesp 192

4 | fevereiro De 2012

PolítIcA cIEntíFIcA E tEcnológIcA

28 Cenários de energiaEstudos revelam previsões sobre a participação do etanol na agricultura e na matriz de combustíveis

32 Espécies invasorasDebate sobre definição e controle de plantas e animais exóticos esquenta em São Paulo

36 História da FAPESP VIIIPrograma SciELO criou novo patamar de qualidade e difusão para publicações científicas

cIÊncIA

40 Modelagem matemáticaSimulação computacional indica que envelhecer pode ser uma vantagem adaptativa

44 Isolante topológicoBrasileiros começam a investigar novo material que promete revolucionar a eletrônica e a computação

48 Biomas brasileirosEstudo contesta visão de que a maioria das espécies típicas do cerrado e da caatinga se originou nas florestas

52 Deriva continentalMovimentação de Gondwana quase transformou o Nordeste brasileiro em parte da África

tEcnologIA

56 TelecomunicaçõesCresce a participação de softwares para a telefonia móvel desenvolvidos por fabricantes de aparelhos no país

18 cAPARecontagem de neurônios põe em xeque ideias consolidadas da neurociência

Ilustração de capa Marcelo Cipis

EntrEvIStA

24 rajenda Pachauri Presidente do IPCC fala de suas batalhas à frente da instituição

SEçÕES

3 Fotolab6 Cartas7 Carta da editora8 On-line 9 Wiki10 Dados e projetos11 Boas práticas12 Estratégias14 Tecnociência90 Memória92 Resenhas94 Arte96 Ficção98 Classificados

FEvErEIro 2012

n.192

62 Novos materiaisArgila mineral elimina resíduos dos nanotubos de carbono

64 Análises clínicasEquipamento testa no sangue, em poucos minutos, microrganismos ligados a 20 doenças

68 EmpreendedorismoVladimir Airoldi, da Clorovale, exporta brocas de diamante sintético e ganha Prêmio Finep

72 PecuáriaColombianos criam gado entre árvores e inspiram brasileiros

hUmAnIdAdES

76 Famílias encolhidasSegundo pesquisa, fecundidade nacional cai cada vez mais e se concentra entre os adolescentes

82 Percepção da ciênciaPesquisa revela que menos de 3% dos adolescentes latino- -americanos desejam seguir uma carreira científica

86 Sons e ideologiasGênero musical foi importante instrumento de consciência negra na década de 1970

18

Page 5: Pesquisa Fapesp 192

AGRONOMIA

AMBIeNte

ANAtOMIA

ANtROPOlOGIA

BIOGeOGRAFIA

BIOquíMICA

CIeNCIOMetRIA

COMuNICAçãO

DeMOGRAFIA

eCOlOGIA

eCONOMIA

eDuCAçãO

evOluçãO

FíSICA

FISIOlOGIA

GeOlOGIA

MeDICINA

MúSICA

NANOteCNOlOGIA

NeuROlOGIA

SOCIOlOGIA

teCNOlOGIA DA INFORMAçãO

zOOlOGIA

PESQUISA FAPESP 192 | 5

28

32

48

40

86

76

56

68

Page 6: Pesquisa Fapesp 192

6 | fevereiro De 2012

visibilidade das revistasA entrevista de Maurício da Rocha e Sil-va (edição 191) tem alguns importantes elementos como, por exemplo, a questão da invisibilidade. De fato, autores bra-sileiros não citam artigos das revistas onde publicam. Não citam, mesmo, seus próprios artigos precedentes. Entretan-to, o entrevistado reduz essa complexa questão a uma única razão: “A língua da ciência é o inglês”. Ora, se for isto, as revistas brasileiras devem ser publicadas integralmente em inglês. Certo? Errado. O primeiro motivo é que, atualmente, não se leem mais os artigos completos em nenhum lugar do mundo. Dado o grande número de periódicos e a imen-sa quantidade de artigos, os cientistas passaram a ler somente resumos (abs-tracts). Se o abstract refere-se ao tema específico de uma pesquisa do leitor, ele pode, perfeitamente, mandar traduzir tal artigo. O segundo motivo é que a co-munidade científica internacional fala numerosas línguas. Seria importante, então, que as revistas publicassem re-sumos em diversas línguas, como faz a Revista Latinoamericana de Psicopato-logia Fundamental (RLPF). Concordo, entretanto, com Maurício da Rocha e Silva quando diz que o nome das revis-tas não devem ser regionais (Brazilian Journal of..., por exemplo). Um terceiro argumento que precisa ser considerado é que a crescente comunidade científica brasileira e, especialmente, os estudantes de pós-graduação não são, necessaria-mente, leitores competentes do inglês. Ler em língua estrangeira requer um grande esforço e uma prolongada pre-

paração. Não é justo nem politicamente correto que revistas subsidiadas pelo contribuinte sejam publicadas em in-glês e não em português. Os editores e as agências de fomento devem, por essas razões, estimular outros caminhos vi-sando à crescente visibilidade de nossas revistas científicas.manoel tosta berlinck

Revista Latinoamericana de Psicopatologia

Fundamental

São Paulo, SP

relações internacionaisO artigo de Carlos Haag “Quando o ex-terno está cada vez mais interno” (edi-ção 191) deixou em mim uma profunda insatisfação. Quando li a chamada da matéria, relações internacionais e glo-balização, iniciei a leitura com o maior interesse. Entretanto, o texto, à medi-da que se desenvolvia, tornava-se cada vez mais parcial e desequilibrado. Após apresentar o resultado de uma pesquisa, o autor insere uma série de comentários de Celso Lafer e Luiz Felipe Lampreia. A opinião desses intelectuais é conhe-cida, são críticos da política externa do governo Lula e por diversas vezes a exprimiram nos jornais da grande im-prensa. Nada tenho contra a diversidade de opiniões, pelo contrário, eu as prezo muito. No entanto, este não parece ser o ponto de vista do articulista, fica ex-plícita no texto sua posição partidária. Em nenhum momento o “outro lado” é ouvido. Não é segredo que a política externa de qualquer país é um tema con-troverso, tampouco que os intelectuais entrevistados fizeram parte de um go-verno específico. Portanto, parece-me inteiramente parcial escutar apenas uma das partes envolvidas na controvérsia.renato ortiz

Departamento de Sociologia da unicamp

Campinas, SP

novas mídiasSugiro à revista Pesquisa FAPESP a sua veiculação em novas mídias, notadamen-te versões móveis para celulares e tablets, como iPhones e iPads, os dispositivos

cArtAS [email protected]

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CeP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

mais utilizados nessas categorias. A in-corporação de visuais e assinaturas em versões móveis é uma atitude positiva num cenário em que mais universitá-rios adquirem seus tablets e em que mais mestres usam celulares inteligentes. A veiculação de aulas em vídeo e conteúdos especiais no iTunes U também sinaliza-ria uma atitude positiva de Pesquisa FA-PESP em novas mídias.hugo Eduardo Azevedo Fialho

São luís, MA

AlencastroAcredito que Pesquisa FAPESP contri-bui para com o diálogo aberto que deve existir entre divulgação científica e so-ciedade. Para não especialistas e meros curiosos no tema (curiosamente, me situo nesses dois grupos), a publicação possibilita o aprofundamento de temas, o que, hoje em dia, parece pouco possível. Belo exemplo disso é a entrevista feita com Luiz Felipe de Alencastro (edição 188), num momento em que o tema Áfri-ca aparece com força no noticiário. O ganho, para o leitor, é evidente. Em vez de um pingue-pongue esquemático, uma possibilidade de aprender e entender o complexo relacionamento do Brasil com os países africanos, para além das siglas e da agenda noticiosa.Fabio Silvestre

São Paulo, SP

correçõesA autora da resenha “Uma intelectual in-quieta e ativa” (edição 191, página 90), He-lena Sampaio, é docente do Departamento de Ciências Sociais e Educação (Decise), da Faculdade de Educação da Unicamp, e pesquisadora do Nupps/USP. Na seção Cartas da edição 191 o nome de Israel Klabin foi grafado de modo errado como Isaac Klabin.

Eclipse seguido de colapso de ventos estelares oculta periodicamente a Eta Carinae

Uma estrela que apaga

janeiro de 2012 . www.revistapesquisa.fapesp.br

entrevistaMaUrício rocha e silva Como dar visibilidade a uma revista científica

tiMoGlândula pouco ativa explica doenças autoimunes na síndrome de Down

biocerâMicas Vidro e membrana estimulam recuperação de ossos

diploMaciaA delicada relação do Itamaraty com o Congresso

coMidasUma chave saborosa para entender o Brasil colonial

n.1

91

pes

qU

isa

fa

pesp

ja

nei

ro

de

2012

Page 7: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 7

Aritmética do cérebromariluce moura

DIRetORA De ReDAçãO

cArtA dA EdItorA

resta alguma dúvida entre os neuro-cientistas sobre a real importância da determinação exata do número

e da distribuição espacial dos neurônios para o avanço do conhecimento de um dos mais fascinantes objetos de pesquisa cien-tífica em qualquer tempo: o cérebro hu-mano. Quantificar e mapear essas células certamente pode ajudar a compreender como o cérebro funciona. Mas parece in-suficiente deter-se em tais dados para des-vendar o que há de intrigante nesse órgão que um cientista como António Damásio, por exemplo, procura apaixonadamente devassar em seu recente E o cérebro criou o homem, recorrendo – sem se preocupar com fronteiras entre disciplinas – a todo o arsenal de conhecimento disponível que lhe permita avançar em seu intento.

Nosso editor de ciência, Ricardo Zor-zetto, leva isso em conta na reportagem de capa desta edição. Dá a palavra no texto a quem adverte sobre quão im-portantes, talvez mais que os neurônios em si, são as conexões efetivas que es-sas células estabelecem, criando redes que processam a informação de forma distribuída. E faz isso para contextuali-zar cientificamente o objeto central da reportagem de capa desta edição: uma técnica brasileira que permitiu uma re-contagem mais precisa dos neurônios e de outras células cerebrais humanas e, em decorrência, uma investida contra alguns dogmas da neurociência.

A técnica desenvolvida por pesquisa-dores do Rio de Janeiro, sob a lideran-ça do respeitado neurocientista Roberto Lent, permitiu a afirmação de que há 86 bilhões de neurônios no cérebro humano, e não 100 bilhões como se acreditava. E que eles estão acompanhados por 85 bi-lhões das chamadas células da glia, em vez de 1 trilhão delas como alardeado antes.

CelSO lAFeRPresiDente

eDuARDO MOACyR KRIeGeRvice-PresiDente

conSElho SUPErIor

CelSO lAFeR, eDuARDO MOACyR KRIeGeR, HORáCIO lAFeR PIvA, HeRMAN JACOBuS CORNelIS vOORwAlD, MARIA JOSé SOAReS MeNDeS GIANNINI, JOSé De SOuzA MARtINS, JOSé tADeu JORGe, luIz GONzAGA BelluzzO, SeDI HIRANO, Suely vIlelA SAMPAIO, vAHAN AGOPyAN, yOSHIAKI NAKANO

conSElho técnIco-AdmInIStrAtIvo

CARlOS HeNRIque De BRItO CRuzDiretor científico

JOAquIM J. De CAMARGO eNGleRDiretor ADministrAtivo

conSElho EdItorIAlCarlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio túlio Costa, eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Arana varela, José eduardo Krieger, luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo leite, Maria Hermínia tavares de Almeida, Marisa lajolo, Maurício tuffani, Mônica teixeira

comItÊ cIEntíFIcoluiz Henrique lopes dos Santos (Presidente), Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo engler, José Roberto Parra, luís Augusto Barbosa Cortez, luis Fernandez lopez, Marie-Anne van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio queiroz, wagner do Amaral, walter Colli

coordEnAdor cIEntíFIcoluiz Henrique lopes dos Santos

dIrEtorA dE rEdAção Mariluce Moura

EdItor chEFE Neldson Marcolin

EdItorES ExEcUtIvoS Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Maria Guimarães (Edição on-line), Ricardo zorzetto (Ciência)

EdItorES ESPEcIAIS Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta

EdItorES ASSIStEntES Dinorah ereno, Isis Nóbile Diniz (Edição on-line)

rEvISão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro

EdItorA dE ArtE laura Daviña

ArtE Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli

FotógrAFoS eduardo Cesar, leo Ramos

colAborAdorES Ana lima, André Serradas (Banco de imagens), Daniel Bueno, Drüm, evanildo da Silveira, Gabriel Bitar, Gonçalo Júnior, Gustavo Fioratti, Igor zolnerkevic, Nana lahóz, Sara Goldchmit, Salvador Nogueira, Saulo Dourado tiago Cirillo, veridiana Scarpelli e yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEm PrévIA AUtorIzAção

PArA FAlAr com A rEdAção (11) [email protected]

PArA AnUncIAr (11) 3087-4212 [email protected] ASSInAr (11) 3038-1434 [email protected]

tIrAgEm 38.100 exemplaresImPrESSão Plural Indústria GráficadIStrIbUIção DINAP

gEStão AdmInIStrAtIvA INStItutO uNIeMP

PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CeP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP

FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CeP 05468-901, Alto da lapa, São Paulo-SP

SeCRetARIA De DeSeNvOlvIMeNtO eCONôMICO, CIêNCIA

e teCNOlOGIA govErno do EStAdo dE São PAUlo

FuNDAçãO De AMPARO à PeSquISA DO eStADO De SãO PAulO

ISSN 1519-8774

Para facilitar o trabalho, os pesquisadores desenvolveram inclusive uma máquina, o fracionador celular automático, cujo modo de funcionamento constitui sem dúvida um belo achado, mesmo que descrito em detalhes possa embrulhar estômagos mais sensíveis. Vale a pena se inteirar desse la-do quantitativo dos avanços no estudo do cérebro a partir da página 18.

Vou me permitir aqui exercitar uma cer-ta liberdade do gosto pessoal, ao requisitar atenção especial do leitor para dois textos que não estão entre os destaques da capa e, portanto, não são os mais importantes desta edição. São, no entanto, saborosos, interessantes, e conto com a cumplicida-de do leitor para entender a minha esco-lha. O primeiro é a pequena entrevista de Rajendra Pachauri, presidente há 10 anos do Painel Intergovernamental de Mudan-ças Climáticas (IPCC), concedida a nosso editor especial Carlos Fioravanti. Entre muitas outras batalhas que vem enfren-tando no cargo, Pachauri fala sobre a mais recente, a da comunicação. Sua pretensão é fazer com que os resultados do painel che-guem a públicos mais largos que os círculos científicos, razão por que contratou como coordenador de comunicação, em 1º de dezembro passado, o jornalista Jonathan Lynn. Mais detalhes, a partir da página 24. O segundo texto é uma reportagem do jornalista Salvador Nogueira sobre recen-tes achados a respeito da chamada deriva continental, a movimentação dos grandes blocos de rocha que formam os continen-tes, que reforçam a hipótese de que foi por pouco que o atual nordeste brasileiro não se tornou parte do atual território africa-no. “O Carnaval de Salvador teria de ser brincado do outro lado do oceano”, brin-ca um dos autores do estudo com espírito pré-carnavalesco. Boa leitura!

Page 8: Pesquisa Fapesp 192

8 | fevereiro De 2012

eDu

Ar

Do

ces

Ar

PAr

A l

er o

Dig

o A

o l

AD

o f

A o

do

wn

loa

d D

o l

eit

or

De

Qr

co

dE

no

seu

sm

ar

tp

ho

nE

www.youtube.com/user/PesquisAfAPesP

Assista ao vídeo:

on-linew w w . R e v I S t A P e S q u I S A . F A P e S P . B R

Pesquisadores do Instituto Butantan desenvolveram dois novos adjuvantes de vacinas que permitem o uso de doses menores e amplificam a resposta do organismo contra microrganismos causadores de doenças. O adjuvante monofosforil lipídico A (MPl) foi usado com sucesso contra o vírus H1N1, causador da chamada gripe suína. O plano agora é testá-lo com as vacinas contra influenza sazonal e hepatite B. A sílica porosa nanoestruturada SBA-15 também é promissora: testes indicam que pode ser usada como veículo para vacinas administradas por via oral.

é verdade, sapos espirram veneno. Ao menos a espécie amazônica Rhaebo guttatus, primeiro anfíbio brasileiro que se comprova lançar veneno de glândulas nas costas quando se sente ameaçado. O animal foi identificado há 200 anos, mas apenas agora o comportamento foi descrito por zoólogos do Instituto Butantan, da unicamp, da uFABC e da uSP. essa habilidade não aparece em animais mantidos em cativeiro e não foi observada em outras espécies aparentadas. Outro fato curioso é que o animal parece ter controle dos jatos de veneno (ver vídeo no site da revista).

exclusivo no site

Podcast

A pediatra Magda Carneiro-Sampaio conta como o timo afeta o sistema imunológico de crianças com síndrome de Down

vídeo do mês

Tráfico de escravos é desencavado na região portuária do Rio de Janeiro

Nas redes

@dariorsilva Me passa a impressão de todas as áreas do conhecimento dialogando e algumas se sobrepondo. tendências interdisciplinares! (Sobre novo logo no twitter)

@monicasalles A propósito, pessoal, parabéns pelo novo projeto gráfico. A harmonia de cores trouxe um ar bem moderno!

renata valente_ Deem um olho, galera. São três páginas de reportagem sobre estudos e iniciativas que, se derem certo, serão exemplos de como é possível caminhar juntos pra ampliar o uso de fontes renováveis. A Alemanha parece estar dando um passo importante e pioneiro neste sentido (Alemanha verde).

Elizabeth medeiros Pacheco_ Muito bom. Discurso silencioso é um ótimo chamado e mais ainda pq além de os corpos, utensilios, serem um depoimento do vivido com valor de documento para etnografias, vemos a arte de lapidar os dentes, para além da plumagem e pintura dos corpos, a intervenção definitiva sobre os corpos. trabalho lindo dos pesquisadores da Fiocruz (Discurso silencioso).

Produção da vacina contra influenza no Butantan

Page 9: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 9

A sacola à base de amido de milho, mais cotada para substituir a de polietileno que até agora era distribuída em supermercados, também contém em menor proporção derivados do petróleo. Já existe um tipo de poliéster 100% biodegradável produzido por microrganismos durante a digestão do açúcar, mas sua fabricação mais cara que a do plástico convencional o torna pouco viável para ser usado na produção de sacolas de supermercado em grande escala.

vale ressaltar que um produto biodegradável não é necessariamente fabricado a partir de fontes renováveis. Compostos de origem petroquímica podem ser biodegradáveis e outros provenientes da cana-de-açúcar não.

As sacolas plásticas “comuns” são feitas de polietileno, matéria-prima derivada do petróleo ou da cana-de-açúcar, e demoram mais de 100 anos para se decompor. As sacolas oxibiodegradáveis têm uma composição parecida, com uma única diferença: recebem um aditivo que acelera a sua degradação, fazendo com que a sacola se fragmente em pedaços invisíveis a olho nu quando exposta à luz, à umidade e ao ar. O problema é que os minúsculos pedaços parecem não ser consumidos por microrganismos como fungos e bactérias – condição necessária para um material ser biodegradável. Além de os compostos petroquímicos continuarem no ambiente, os aditivos em si podem ser tóxicos.

energia escura

Em 1929 o astrônomo americano Edwin Hubble demonstrou que o Universo está se expandindo. Esse processo teria sido iniciado há 13,7 bilhões de anos pelo Big Bang, a explosão que deu origem ao Universo, como é conhecido hoje. A gravidade é a única força conhecida que funciona a grandes distâncias e, como é uma força atrativa, esperava-se que ela atuasse para retardar a expansão observada por Hubble. Mas em 1998 dois grupos de pesquisadores mediram o brilho de estrelas supernovas e concluíram, de modo independente, que o Universo estava em expansão acelerada e não desacelerada, como se pensava. Ou seja, parecia existir uma espécie de antigravidade.

Mas o que causaria uma força assim, de repulsão gravitacional? “Como não se conseguiu saber o que provocaria essa força deu-se o nome de energia escura ao que quer que estivesse criando essa ‘antigravidade’, que agiria se contrapondo à gravidade usual gerada pelas galáxias”, explica Daniel Vanzella, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo. Essa energia poderia ser a que está contida no vácuo – hoje se sabe que o vácuo contém algum tipo de energia. “Quando se calcula a energia do vácuo, vê-se que ela tem algumas das propriedades necessárias para gerar a repulsão gravitacional.” Os pesquisadores que comprovaram a expansão acelerada do Universo – os americanos Saul Perlmutter, Brian Schimidt e Adam Riess – ganharam o Nobel de Física em 2011. Pelos cálculos atuais, 70% da energia do Universo é constituída de energia escura, 25% de matéria escura (tipo de matéria que não emite nem reflete luz) e apenas 5% de matéria como conhecemos, composta de prótons, nêutrons e elétrons.

o QUE é, o QUE é?

Ilu

STR

ãO

DA

nie

l bu

eno

FO

TO

MO

NT

Ag

EM A

nA

PA

ulA

cA

mP

os

sobr

e fo

to

De

eDu

Ar

Do

ces

Ar

Mande sua pergunta para o e-mail [email protected], pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp

mArco-AUrElIo dE PAolI, Instituto de Química da Unicamp

qual a diferença entre as sacolas plásticas oxibiodegradáveis e as comuns?José João lelis leal de Souza [via e-mail]

Pergunte aos pesquisadores

wiKi

Page 10: Pesquisa Fapesp 192

10 | fevereiro De 2012

Dados e projetos

tEmátIcoS Identificação de marcadores tumorais e possíveis alvos terapêuticos em doenças linfoproliferativas de células bPesquisadora responsável: Gisele wally Braga ColleoniInstituição: ePM/unifespProcesso: 2010/17668-6vigência: 01/01/2012 a 31/12/2016

Estudo duplo-cego randomizado e controlado sobre o efeito do betabloqueador na prevenção da cardiomiopatia secundária a quimioterápicosPesquisador responsável: edimar Alcides BocchiInstituição: InCor/HC/SSSPProcesso: 2010/18078-8vigência: 01/11/2011 a 31/10/2016

Jejum intermitente e cirurgia de adaptação digestiva: avaliação translacional das consequências sobre fatores de risco cardiovascular e aterogênesePesquisador responsável: Bruno CaramelliInstituição: InCor/HC/SSSP Processo: 2010/19827-4vigência: 01/12/2011 a 30/11/2016

Estudo do equilíbrio do ciclo do carbono na região costeira e de seu potencial transporte oceânico – com

tEmátIcoS E JovEm PESQUISAdor rEcEntESProjetos contratados entre novembro de 2011 e janeiro de 2012

ênfase ao litoral de Pernambuco (carecos). (Facepe/Anr)Pesquisadora responsável: elisabete de Santis Braga da Graça SaraivaInstituição: IO/uSPProcesso: 2011/50582-0vigência: 01/12/2011 a 30/11/2016

JovEm PESQUISAdor

Utilização de métodos mecânicos- -quânticos para estudo das ligações e interações químicas em sistemas auto-organizados com aplicação em catálise, química medicinal, eletrocromismo, armazenamento e conversão de energiaPesquisador responsável: Renato luís tame ParreiraInstituição: universidade de FrancaProcesso: 2011/07623-8vigência: 01/01/2012 a 31/12/2015

Síntese de cerâmicas ferroelétricas com transição de fase acopladaPesquisador responsável: eduardo AntonelliInstituição: ICt/unifespProcesso: 2011/08497-6vigência: 01/01/2012 a 31/12/2014

Identificação e validação de assinaturas moleculares relacionadas à metástase do câncer através de análise proteômica detalhada e dirigida da transição epitelial - mesenquimal em

adenocarcinomasPesquisador responsável: vitor M. FaçaInstituição: FMRP/uSPProcesso: 2011/09740-1vigência: 01/01/2012 a 31/12/2015

Usando dados esparsos de ressonância magnética nuclear e modelagem comparativa para determinar estrutura e dinâmica de proteínas com aplicação em desenho racional de drogasPesquisador responsável: Rinaldo wander MontalvãoInstituição: IFSC/uSPProcesso: 2011/11343-0vigência: 01/01/2012 a 31/12/2015

Alterações no perfil de expressão de proteínas em Eucalyptus globulus em resposta às variações na temperatura de crescimento e concentração de dióxido de carbono atmosféricoPesquisador responsável: tiago Santana BalbuenaInstituição: IB/unicampProcesso: 2011/11650-0vigência: 01/01/2012 a 31/12/2014

Estudo sobre o uso múltiplo de drogas, funcionamento cognitivo, psíquico, emocional e transtornos do sono entre motoristas de caminhão no estado de São PauloPesquisador responsável: lucio Garcia de Oliveira

Instituição: FMuSPProcesso: 2011/11682-0vigência: 01/03/2012 a 29/02/2016

os squamatas (reptilia, lepidosauria) do cretáceo e terciário (Paleógeno/neógeno) das bacias bauru, Aiuruoca e Acre: sistemática, evolução e paleoambientesPesquisadora responsável: Annie Schmaltz HsiouInstituição: FFClRP/uSPProcesso: 2011/14080-0vigência: 01/01/2012 a 31/12/2015

código de barras de dnA e potencial biotecnológico dos microfungos associados aos ninhos das formigas- -cortadeirasPesquisador responsável: André RodriguesInstituição: Instituto de Biociências de Rio Claro/unespProcesso: 2011/16765-0vigência: 01/01/2012 a 31/12/2014

Filogeografia multilocus comparada de três espécies de Poospiza (aves, passeriformes): explorando a história da mata atlântica montanaPesquisador responsável: Fabio Sarubbi Raposo do AmaralInstituição: Instituto Ciências Ambientais, químicas e Farmacêuticas/unifespProcesso: 2011/50143-7vigência: 01/12/2011 a 30/11/2014

cooperação internacional

Wr: posição da universidade no ordenamento das 3.042 organizações de pesquisa no mundo que publicaram mais de 100 trabalhos indexados na base Scopus ao longo do período 2005-2009 pelo total de trabalhos indexados.número de trabalho: número de trabalhos indexados na base de dados Scopus no período 2005-2009.colaboração internacional (%): mostra a relação da produção científica da universidade feita com colaboração internacional. Os valores são calculados através da análise da produção científica da universidade que inclui mais de um país no endereço ao longo do período 2005-2009.Fonte: Scimago, www.scimagoir.com

Wr

13

109

152

194

209

250

283

333

381

407

Universidade

universidade de São Paulo

universidad Nacional Autónoma de México

universidade estadual de Campinas

universidade estadual Paulista

universidade Federal do Rio de Janeiro

universidad de Buenos Aires

universidade Federal do Rio Grande do Sul

universidade Federal de Minas Gerais

universidade Federal de São Paulo

universidad de Chile

País

Brasil

México

Brasil

Brasil

Brasil

Argentina

Brasil

Brasil

Brasil

Chile

Publicações, posição relativa e porcentagem de trabalhos com colaboração internacional em universidades da América latina

número de trabalhos colaboração internacional (%)

40.196

17.622

14.994

13.043

12.340

10.897

9.750

8.661

7.791

7.354

24,8

40,5

22,0

16,5

26,7

46,1

25,3

25,2

19,3

46,3

Page 11: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 11

um documento em prol da ética

universidade pede anulação de artigos

boas práticas

Para tentar melhorar o comprometimento dos pesquisadores da área médica com as boas práticas em ciência, o grupo que representa as instituições de ensino superior do Reino Unido, Universidades do Reino Unido (UUK), prepara um documento sobre a integridade da pesquisa. O objetivo é promover a integridade da investigação e deixar claro as responsabilidades das instituições, organismos de fomento e pesquisadores, além de fornecer exemplos de boas práticas. O documento está sendo feito junto com as agências de financiamento e deverá ficar pronto em abril.

A preocupação cresceu depois de um levantamento do periódico inglês British Medical Journal (BMJ), divulgado em janeiro durante um congresso em Londres, mostrar que a comunidade científica britânica tem sido falha ao lidar com a má conduta em pesquisa médica. O BMJ entrevistou 2.782 médicos e acadêmicos e constatou que 13% deles demonstraram conhecer casos de alteração ou fabricação de dados feita de forma deliberada por pesquisadores. Outros 6% afirmaram saber de má conduta ocorrida em suas instituições que não havia sido devidamente investigada.

De acordo com a revista Nature, os participantes do encontro pediram ações mais enérgicas. “É o reconhecimento de que temos um problema”, disse Fiona Godlee, editora chefe do BMJ. A questão não é nova para os britânicos. No ano passado, um comitê de ciência e tecnologia do Parlamento inglês já havia concluído que a “integridade da pesquisa no Reino Unido é insatisfatória”. E em 2000 a Lancet – outra importante revista de ciências médicas – criticava os erros

de conduta e lamentava por nada estar sendo feito.

O comunicado final do congresso recomendou um reforço nos mecanismos que deveriam assegurar a boa conduta em pesquisa. No Reino Unido não há um organismo oficial nacional que lide com problemas éticos em pesquisa com poderes legais ou regulatórios. O mais próximo disso é o UK Integrity Research Office, organização privada que fornece consultoria e orientação sobre questões relativas à integridade da pesquisa. É mantida por órgãos governamentais, agências de fomento, universidades e instituições privadas envolvidas com a pesquisa.

A Universidade de Connecticut (UConn), nos Estados Unidos, notificou em janeiro 11 periódicos científicos que publicaram estudos sobre vinho tinto e longevidade pedindo a anulação de artigos já veiculados. O acusado é Dipak Das, cientista indiano que era diretor do Centro de Pesquisa Cardiovascular do Centro de Saúde da universidade. “Temos a responsabilidade de corrigir os registros científicos e informar pesquisadores de todo o país”, disse Philip Austin, vice-presidente para assuntos de saúde da instituição. Verbas federais no montante de US$ 890 mil para as pesquisas de Dipak Das foram recusadas pela UConn.

A investigação sobre o trabalho do cientista indiano começou em 2009 depois que o Office of Research Integrity – órgão federal de fiscalização de integridade de pesquisas em saúde – avisou a UConn sobre uma denúncia

envolvendo um artigo publicado pelo laboratório de Das. Os problemas referem-se mais especificamente à manipulação de experimentos com os testes chamados western blots, que indicam a presença e quantidade de determinadas proteínas no sangue. Já a relação entre vinho e benefícios à saúde é objeto de estudo em todo o mundo, com resultados variados.

A investigação da UConn produziu um relatório de 60 mil páginas sobre 145 acusações de falsificação de informações publicadas em 23 artigos. Outros pesquisadores que trabalharam com Das poderão ser acusados de má conduta. Ele nega as acusações, diz que cientistas de outras instituições chegaram às mesmas conclusões que ele e reclama de discriminação por ser indiano. Além da investigação da UConn, o Office of Research Integrity abriu uma apuração própria sobre o caso.

DA

nie

l bu

eno

Page 12: Pesquisa Fapesp 192

12 | fevereiro De 2012

O matemático gaúcho Marco Antônio Raupp, de 73 anos, é o novo titular do Ministério da Ciência e tecnologia (MCt) no lugar do senador Aloizio Mercadante, que assumiu o Ministério da educação. Raupp é graduado em física pela universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em matemática pela universidade de Chicago, nos estados unidos. Radicado em São Paulo, é professor livre-docente da universidade de São Paulo e tem grande experiência em gestão de ciência e tecnologia. Foi diretor do Instituto Nacional de Pesquisas espaciais (Inpe), do laboratório Nacional de Computação Científica, do Instituto Politécnico da universidade estadual do Rio de Janeiro e do Parque tecnológico de São José dos Campos

Raupp assume MCt

(SP). Até fevereiro de 2011 era presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), quando foi convidado a assumir a Agência espacial Brasileira. “Raupp é um grande gestor, sabe dialogar e conhece muito bem o panorama de ciência, tecnologia e inovação brasileiro”, diz Helena Nader, atual presidente eleita da SBPC. “Os desafios são grandes: fazer cumprir o orçamento do MCt e convencer a classe política da importância dos royalties do pré-sal para a ciência são alguns deles.” Seria também importante acabar com a polarização entre ciência básica e aplicada: “às vezes, há a tendência de se colocar grande parte do investimento em uma ponta ou em outra”, diz.

Raupp (dir.) e Mercadante: novo ministro tem larga experiência como gestor

estrAtégiAs

Rede italiana contra o câncer

um grupo de 20 cientistas italianos que vivem no exterior criou no final do ano passado uma rede virtual de pesquisa contra o câncer, a viron (sigla em inglês para virtual Italian Research in Oncology Network). A ideia nasceu de Michele Pagano, pesquisador italiano do Instituto Médico Howard Hughes e professor de patologia da universidade de Nova york, euA, há duas décadas fazendo carreira nesse país. O objetivo da iniciativa é fomentar a colaboração entre cientistas italianos que fazem pesquisa em oncologia fora de sua terra natal, aproximando principalmente os investigadores das áreas básicas com os especialistas em estudos

mais aplicados. Mapas de todos os estudos clínicos sobre câncer na Itália já estão disponíveis em um site criado especialmente pelo grupo (www.viron.org). “A rede viron está aberta a cientistas de todas as nacionalidades que tenham interesse em pesquisas sobre câncer e na Itália”, comenta o biólogo Mauro Degli esposti, da universidade de Manchester, Inglaterra, um dos coordenadores do projeto. O cientista acredita que pesquisadores brasileiros possam se interessar. “Nosso website está sendo montado em inglês e em italiano e seria maravilhoso ter membros também do Brasil”, diz esposti.

1

Page 13: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 13

FOT

OS

1. m

Ar

cel

o c

AsA

l Jr

. / A

br 2

. Pet

e so

uz

A /

wh

ite

ho

use

3. w

ww

.bA

tA

ch

ilD

ren

sPr

og

rA

m.c

om

Ilu

STR

Açã

O D

An

iel

buen

o

Um ano sem pólio na índia

A Índia celebrou o fim de 2011 com uma façanha histórica: nenhum caso de poliomielite (paralisia infantil) registrado ao longo do ano. Foi o resultado de um intensivo programa de vacinação, lançado em 1995, que teve campanhas públicas contínuas e estratégias de comunicação interpessoal que procuravam vencer os preconceitos de quem

acreditava, por exemplo, que a vacina levaria à impotência sexual. Os números impressionam: apenas em 2011, cerca de 900 milhões de doses da vacina oral contra pólio foram administradas e cerca de 170 milhões de crianças com menos de 5 anos foram vacinadas em duas campanhas. Mais de 70 milhões de crianças em áreas de alto risco receberam várias doses.

“Esse é um marco, que pode levar à erradicação da pólio no país”, observou Anuradha Gupta, assessora do Ministério da Saúde da Índia. Na década de 1980 a Índia registrava mais de 250 mil casos de pólio em crianças todo ano. A poliomielite continua grassando no Paquistão, na Nigéria e no Afeganistão (Boletim da Unicef, 13 de janeiro).

Por mais resultados práticos

Ao aprovar o orçamento para 2012, o Congresso dos estados unidos autorizou a criação do Centro Nacional para o Avanço da Ciência translacional (NCAtS) e destinou a ele uS$ 575 milhões. ligado aos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), o NCAtS deverá acelerar a transformação de descobertas científicas em medicamentos, diagnósticos e instrumentos médicos, interagindo com agências regulatórias, instituições acadêmicas e empresas privadas

(Boletim do NCATS, 13 de janeiro). Interessado em resultados aplicados mais rápidos, o presidente Barack Obama pediu às agências de fomento um esforço para transferir os resultados de pesquisas, por meio de parcerias público-privadas ou financiamentos para empresas de base tecnológica. ele expandirá o portal eletrônico BusinessuSA (business.usa.gov) para facilitar a interação entre órgãos do governo e empresas (Nature Biotechnology).

Obama assina documento: incentivo às agências para serem mais flexíveis nas parcerias

Novos sócios da ABC

Icaro vitorello, do Instituto Nacional de Pesquisas espaciais (Inpe), e José Antonio Marengo Orsini (Inpe); em ciências biológicas, Fausto Foresti (unesp); em ciências biomédicas, Gilberto de Nucci, Maria Júlia Manso Alves e Regina Pekelmann Markus (todos da uSP); em ciências da saúde, Fernando Cendes (unicamp) e Francisco Rafael Martins laurindo (uSP); em ciências da engenharia, João Fernando Gomes de Oliveira, do Instituto de Pesquisas tecnológicas, e victor Carlos Pandolfelli, da universidade Federal de São Carlos (uFScar); em ciências sociais, Bolivar lamounier, da Augurium Consultoria.

vacinação em Patna, índia: 170 milhões de crianças imunizadas em 2011

2

3

em assembleia-geral realizada em 16 de dezembro de 2011, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) elegeu seus novos membros titulares. entre os 25 escolhidos, 17 são de universidades e institutos de pesquisa de São Paulo. em ciências matemáticas, Paolo Piccione, da universidade de São Paulo (uSP); em ciências físicas, Antonio Martins Figueiredo Neto (uSP) e Nathan Jacob Berkovits, da universidade estadual Paulista (unesp); em ciências químicas, luiz Carlos Dias, da universidade estadual de Campinas (unicamp), e vanderlan da Silva Bolzani (unesp); em ciências da terra, Cláudio Riccomini (uSP),

Page 14: Pesquisa Fapesp 192

As mudanças climáticas estão alterando gradualmente o tipo de vegetação presente no alto das principais montanhas do velho Mundo. As plantas mais adaptadas ao frio estão, aos poucos, cedendo o lugar para as mais acostumadas ao calor, num processo denominado termofilização. A conclusão é de um amplo estudo feito por uma equipe de biólogos de 13 países europeus (Nature Climate Change, 8 janeiro de 2012). Os pequisadores colheram 867 amostras de vegetação retiradas do topo de 60 elevações situadas em 17 regiões montanhosas do continente, como os Alpes, os Pireneus, os urais e o Cáucaso, em dois momentos distintos, em 2001 e 2008. em apenas sete anos, a proporção de espécies que “gostam de calor”

Calor muda flora de montes

um crocodilo com chifres

aumentou no pico das montanhas. A alteração é mais evidente justamente nos lugares em que os termômetros mais subiram na década passada, a mais quente desde que se iniciaram os registros sistemáticos de temperaturas. “Os resultados são claramente significativos, não estamos falando de uma só montanha”, diz Ottar Michelsen, da universidade Norueguesa de Ciência e tecnologia, um dos autores do trabalho. “quando tantas montanhas em tantas regiões mostram um efeito, é porque se trata de coisa grande.” Os dados reforçam o receio de que certas espécies dos Alpes correm o risco de desaparecer ou ao menos ter suas áreas de ocorrência diminuídas em razão das mudanças climáticas.

um novo gênero e, ao mesmo tempo, nova espécie extinta de crocodilo primitivo foi descrito por palentólogos do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Reino unido (Zoological Journal of the Linnean Society, dezembro de 2011). encontrado nas proximidades da cidade de Presidente Prudente, no oeste paulista, o Caryonosuchus pricei apresenta uma característica bizarra: na parte anterior do crânio há protuberâncias com formas semelhantes à de chifres. Segundo os autores do trabalho, esse tipo de estrutura na cabeça nunca foi reportada nesse grupo animal. O antigo réptil deve ter vivido entre 83 e 65 milhões de anos

atrás e seus vestígios foram resgatados na formação geológica Adamantina. Os cientistas acreditam que o crocodilo era carnívoro. Na mesma edição do periódico científico, Alexander Kellner, do Museu Nacional da uFRJ, um dos descobridores do C. pricei, descreveu, ao lado de outros colegas, mais uma nova espécie e gênero de crocodilo extinto, o Labidiosuchus amicum, encontrado no município mineiro de Peirópolis. O fóssil era de um réptil que deve ter vivido há cerca de 75 milhões de anos. Não se sabe se ele comia restos de animais e plantas ou era onívoro, mas sua dentição denota alguma capacidade de triturar alimentos.

Floresta de pinheiros nos Alpes italianos: mais espécies vegetais adaptadas ao calor

tecnociênciA

2

FOT

OS

1. K

ro

ssbo

w /

wiK

imeD

iA c

om

mo

ns

2. m

igu

el b

oy

Ay

An

3. n

AsA

Ilu

STR

ãO

DA

nie

l bu

eno

14 | fevereiro De 2012

Page 15: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 15

um crocodilo com chifres

Combustível de algas

Pesquisadores do Bio Architecture lab (BAl), de Berkeley, nos estados unidos, alteraram geneticamente a bactéria Escherichia coli para extrair açúcar de algas marinhas marrons (Science, 19 de janeiro). O grande obstáculo para a obtenção de biocombustíveis dessas algas é que as bactérias não metabolizam de imediato o alginato, componente das algas rico em açúcares. A estratégia dos pesquisadores foi clonar uma enzima que degradasse e

metabolizasse essa substância. A E. coli – bactéria encontrada no sistema digestivo de pessoas e alguns mamíferos – transgênica conseguiu não só processar o alginato, mas também fermentá-lo para produzir etanol. O açúcar concentrado das algas proporciona uma quantidade significativa de biomassa, o que favorece o seu uso comercialmente. Outro ponto favorável: as algas são cultivadas no mar e não disputam espaço com áreas de plantio de alimentos.

Feixe de luz convencional tem sistema de amplificação com espelhos

laser amplificado por gás rubídio

um novo tipo de laser que no lugar de espelhos utiliza um gás como amplificador óptico foi criado pelo professor Philippe wilhelm Courteille, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da universidade de São Paulo (uSP), em parceria com pesquisadores da universidade tübingen, na Alemanha. O laser foi obtido a partir do gás rubídio que, aprisionado em uma rede óptica, formou um cristal fotônico. O laser comum se constitui de amplificadores de luz e conjuntos de espelhos que jogam a luz de um lado para o outro, num processo contínuo de feedback (retorno). um feixe de luz se forma espontaneamente se o retorno for eficiente. No experimento feito na uSP, as ondas estacionárias geradas durante o feedback permitem aprisionar átomos e colocá-los de maneira estruturada no feixe de luz, o que resulta no fenômeno da reflexão. O estudo foi publicado na revista científica Nature Photonics em dezembro.

Colinas lunares de 3,9 bilhões de anos cercam o veículo usado pela tripulação da Apollo 17

2

dúvidas sobre o passado turbulento da lua

Imagens obtidas pela sonda Lunar Reconnaissance Orbiter (LRO) podem mudar a compreensão de como foi o passado da Lua e de quando se formaram suas crateras, algumas visíveis da Terra a olho nu. Lançada em 2009, a sonda da Nasa capturou imagens muito mais nítidas do que as missões anteriores. As fotos da LRO indicam que as colinas próximas

ao local de pouso da Apollo 17, a última missão tripulada à Lua, se originaram do material ejetado no impacto de um corpo celeste que caiu a 600 quilômetros dali e formou o mar das Chuvas há 3,9 bilhões de anos. Essa é a interpretação de Paul Spudis, do Instituto Lunar e Planetário, no Texas (Journal of Geophysical Research, dezembro de 2011).

Antes se pensava que essas colinas tivessem surgido com a queda do objeto que escavou o mar da Serenidade, bem mais próximo. O que muda? Se Spudis estiver certo, o mar da Serenidade é bem mais novo do que se pensava e o passado da Lua foi menos turbulento: a chuva de corpos celestes teria sido menos intensa e mais espaçada no tempo.

3

Page 16: Pesquisa Fapesp 192

16 | fevereiro De 2012

Fibra óptica na usina

trocar fios de cobre por cabos de fibras ópticas é uma tendência cada vez mais presente na área de telecomunicações. uma das novidades é o uso de fibras para o monitoramento remoto de equipamentos de usinas hidrelétricas. “usamos a luz [laser] para medir a temperatura dos geradores da usina Hidrelétrica de Samuel, em Rondônia”, diz o professor Marcelo werneck, do Programa de engenharia elétrica do Instituto de Pós- -graduação e Pesquisa de engenharia (Coppe) da universidade Federal do Rio de Janeiro (uFRJ), que coordenou o projeto. ele explica que são

colocados sensores impressos no núcleo da fibra para fazer a medição. A vantagem desses dispositivos é que eles são isolantes, não conduzem eletricidade como os fios de cobre e, portanto, são imunes ao campo elétrico existente próximo aos geradores e outros equipamentos da usina, além de uma fibra substituir vários fios de cobre. “O próximo passo é usar, num projeto com a Petrobras, as fibras com sensores para medir os gases na exploração de petróleo no fundo da camada pré-sal, num local onde não é possível usar corrente elétrica em razão do risco de explosões”, diz werneck.

O parasita dos parasitas

Além do mosquito-palha, a leishmaniose visceral pode ser transmitida para cães e gatos por parasitas como o carrapato- -marrom, Rhipicephalus sanguineus, e a pulga, Ctenocephalides felis felis. em 2005, uma equipe da universidade Federal de Minas Gerais apresentou essa possibilidade na revista Veterinary Parasitology, hipótese que agora foi reforçada por uma equipe do Instituto Adolfo lutz (Parasitology Research, agosto de 2011). Fábio Colombo, do grupo coordenado por

vera Pereira-Chioccola, examinou 73 cães capturados em Mirandópolis, no interior de São Paulo, e constatou que 60 tinham leishmaniose, 40 abrigavam pulgas e quase todos, carrapatos. Segundo análises de DNA, a taxa de infecção pelo protozoário Leishmania, causador da doença, foi de 28% nas pulgas e acima de 50% nos carrapatos. estudos de RNA indicaram que havia protozoários vivos no interior de ninfas de carrapatos retirados de cães infectados.

dados dos oceanos em bolas luminosas

Pequenas bolas translúcidas com sensores e luzes azuis instalados no interior são a nova possibilidade tecnológica para explorar os oceanos, os maiores ecossistemas do planeta. Chamadas de SensorBots, foram desenvolvidas pelo Instituto de Biodesign da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, e têm a função de captar

dados submarinos e colaborar no entendimento da vida marinha e dos aspectos geológicos, como terremotos e fontes hidrotermais no fundo do mar. Os dispositivos são instalados no fundo do oceano e cabos ligados a eles repõem a energia das baterias. Os pesquisadores liderados pelo professor Deirdre Meldrum acreditam que em breve as bolas

laser e sensores medem temperatura do gerador da Hidrelétrica de Samuel, em Rondônia

SensorBots: flashes azuis transmitem informaçõesdo fundo do mar

1

2

Page 17: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 17

usando feixes de laser e nanopartículas de ouro, pesquisadores da universidade de Munique, na Alemanha, desenvolveram uma estratégia para detectar sons normalmente inaudíveis ao ouvido humano. e a apelidaram de nano-ouvido. Com os feixes de laser de um microscópio (técnica chamada pinça óptica), eles aprisionaram uma partícula de ouro de 60 nanômetros de diâmetro. Depois mediram o quanto vibrações acústicas emitidas por objetos microscópicos deslocavam a nanopartícula de ouro da posição em que originalmente se encontrava (Physical Review Letters, janeiro de 2012). O nano-ouvido é um milhão de vezes mais sensível que o ouvido humano. De acordo com os pesquisadores, poderia ser usado para para captar ondas sonoras emitidas por vírus, bactérias e outros microrganismos, uma vez que as pinças ópticas não danificam material biológico, e também para investigar o movimento de máquinas microscópicas.

Biossensores detectam o câncer

Detectar células tumorais presentes no sangue por meio de um biossensor que não tem contato com a amostra foi a novidade premiada com medalha de ouro na categoria tecnologias exatas, da terra e engenharia da Olímpiada uSP 2011, promovida pela agência de inovação da universidade de São Paulo (uSP). O dispositivo, com alguns poucos centímetros, utiliza métodos bioquímicos e eletroquímicos para reconhecer as moléculas

na superfície das células cancerosas com o uso de corrente elétrica e ácido fólico, uma vitamina do complexo B. ele é composto por um microcanal de polímero e uma camada de silício, onde são assentados os biossensores de ácido fólico, nos quais as células cancerígenas se ligam se estiverem presentes na solução (plasma do sangue) que passa dentro do microcanal. em uma terceira camada, feita de vidro, estão instalados

FOT

OS

1. e

let

ro

brA

s el

etr

on

or

te

2. u

niv

ersi

DA

De

est

AD

uA

l D

o A

riz

on

A 3

. mA

rt

iner

ic /

wiK

imeD

iA c

om

mo

ns

Ilu

STR

ãO

DA

nie

l bu

eno

O ouvido que capta sons inaudíveis

Coração aguenta maratona

Correr os 42,2 quilômetros de uma maratona não aumenta o risco de sofrer parada cardíaca. Pelo menos, não mais do que outros esportes, segundo Aaron Baggish, do Hospital Geral de Massachusetts, nos estados unidos. A equipe de Baggish analisou todos os casos de parada cardíaca registrados entre os

11 milhões de pessoas que participaram de maratonas ou meias- -maratonas nos estados unidos entre 2000 e 2010. Acreditava-se que o risco de sofrer parada cardíaca durante as provas fosse muito alto. Mas isso não foi observado. O trabalho mostrou que o risco é, no máximo, igual ao de quem faz triatlo ou corre

esporadicamente. No total foram registradas 59 paradas cardíacas (42 fatais) nas maratonas e meias- -maratonas. A maioria das pessoas cujo coração parou de bater nas provas tinha problemas cardíacos preexistentes e não diagnosticados (New England Journal of Medicine, janeiro de 2012).

os eletrodos. Havendo a detecção do tumor, uma informação eletroquímica é enviada a eles mudando a informação elétrica e provocando uma diferença no sinal da corrente detectada pelo biossensor. “A diferença com outros projetos de biossensores é que os eletrodos não estão em contato direto com a solução”, explica emanuel Carrilho, do Instituto de química de São Carlos da uSP, coordenador do projeto.

Prova de longo percurso: risco de parada cardíaca em maratona não é maior do que em corrida casual

3

azuis poderão ser controladas remotamente. A transmissão de informações de cada SensorBot pode ser feita por meio de captação dos flashes das luzes internas por uma câmara situada no fundo do oceano, numa espécie de código Morse visual. A câmara capta os sinais para posterior decodificação num barco na superfície.

Page 18: Pesquisa Fapesp 192

Peso: 154g

Neurônios: 69 bi

Outras células: 16 biC E R E B E l O

cAPA

Page 19: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 19

Recontagem de neurônios põe em xeque ideias da neurociência

na tarde da quarta-feira 11 de janeiro, os pesquisadores Frederico Casarsa de Azevedo e Carlos Humberto Moraes executavam uma tarefa pouco comum para neurocientistas. Cobriam uma

estante de alvenaria com cartolina branca, para esconder a janela ao fundo, limpavam uma mesa de granito e removiam recipientes de vidro, pipetas e reagentes para uma bancada ao lado, já ocupada por mais vidros, pipetas e reagentes. Eles prepara-vam o laboratório chefiado pelo médico Roberto Lent na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para uma sessão de fotos e filmagens. De-sejavam registrar em detalhes o funcionamento de uma máquina que começaram a criar sete anos antes e que agora ficou pronta: o fracionador celu-lar automático, que eles pretendem patentear. E o cenário não podia atrapalhar.

O equipamento de nome complicado e quase um metro de altura é uma espécie de triturador tama-nho família. Tem motores elétricos que fazem girar a 400 voltas por minuto seis pistões plásticos presos a uma base móvel. Cada pistão funciona mergulha-do em um recipiente de vidro contendo amostras de tecido cerebral banhadas em uma solução com detergente. Uma vez acionado o fracionador, seus pistões agitam o líquido incolor criando turbilhões que desfazem as amostras. Duas horas mais tarde, pedaços de tecido cerebral estão dissolvidos em uma mistura leitosa. É o que os pesquisadores ape-lidaram carinhosamente de suco de cérebro.

A máquina em teste no Laboratório de Neuro-plasticidade do Instituto de Ciências Biomédicas

(ICB) da UFRJ é uma versão turbinada de um fracionador bem mais simples – um tubo e um pistão, ambos de vidro, acionados manualmente – que Lent e a neurocientista Suzana Herculano- -Houzel usam desde 2004 para desmanchar pe-daços de cérebro e contar suas células. Criada por eles próprios, essa técnica vem permitindo conhecer com mais precisão algo que já se ima-ginava sabido: quantos neurônios existem no cé-rebro e nos outros órgãos do encéfalo, que ficam abrigados no crânio.

Hoje se sabe, em parte graças ao trabalho do grupo do Rio, que há 86 bilhões de neurônios no cérebro humano, e não os 100 bilhões de que se falava anos atrás. Também se pode afirmar com mais segurança que esses neurônios estão acom-panhados de 85 bilhões de células da glia, o outro tipo de célula que compõe o cérebro. Um número bem inferior ao trilhão anunciado antes.

Não são apenas detalhes. Verificar com mais exatidão quantas são e onde estão as células ce-rebrais é importante para compreender como o cérebro funciona e tentar conhecer as estratégias adotadas pela natureza para construir um órgão tão complexo que, no caso humano, permitiu sur-gir a mente autoconsciente. Também pode ajudar a identificar características que distinguem um cérebro normal de outro doente.

Mas olhar só para o número de células não é suficiente para desvendar um dos mais intrigan-tes e fascinantes órgãos do corpo. Hoje a neuro-ciência considera o cérebro bem mais que uma coleção de neurônios, células que se comunicam

teXtO ricardo zorzetto FOtOS leo ramos

anatomia

antropologia

fisiologia

neurologia

Page 20: Pesquisa Fapesp 192

20 | fevereiro De 2012

do até por quem não é especialista, esse número circula em artigos científicos e livros didáticos há quase 30 anos. O próprio Lent tem um livro, publicado em 2001 e adotado em cursos de gra-duação, com o título Cem bilhões de neurônios.

A orIgEmEsse livro, a propósito, está de certo modo na ori-gem das dúvidas que motivaram os pesquisadores da UFRJ a investigar quantas células há no cére-bro. Pouco antes de seu lançamento, Suzana havia iniciado um estudo para avaliar o conhecimento de estudantes de ensino médio e universitário sobre neurociência. Uma das 95 afirmações que eles tinham de dizer se estava certa ou errada era: usamos apenas 10% do cérebro.

Quase 60% dos 2,2 mil entrevistados respon-deram que, sim, estava correta. Essa afirmação – incorreta, pois usamos todo o cérebro o tempo todo – decorre de outra, apresentada em 1979 pelo neurobiólogo canadense David Hubel, que rece-beu o Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1981. Hubel afirmava haver no cérebro 100 bilhões de neurônios e 1 trilhão de células da glia. Repetida em outras publicações, a informação se dissemi-nou. Como os neurônios são as unidades proces-sadoras de informação – e representariam só um décimo das células cerebrais –, concluiu-se que os outros 90% do cérebro não seriam usados quando se caminha, planeja uma viagem ou dorme.

O resultado incomodou Suzana, que buscou na literatura científica a fonte original desses números e não encontrou. Ela, que havia colabo-rado para o livro de Lent, levou a dúvida para ele: “Como você sabe que são 100 bilhões de neurô-nios?”. Ao que Lent respondeu: “Ora, todo mundo sabe, todo livro diz isso”. Muitos artigos e livros traziam a informação. Mas não diziam de onde a haviam extraído. “Eram dados aparentemente intuitivos que se consolidaram e as pessoas cita-vam sem pensar muito”, comenta Lent.

Um dos motivos pelo qual não se encontram facilmente esses números é que não é simples contar as células cerebrais. Além de ser um órgão grande – o cérebro humano tem cerca de 1.200 gramas e o encéfalo, 1.500 –, sua arquitetura é complexa. Áreas distintas contêm concentrações variadas de células e a técnica então disponível para contá-las, a estereologia, só funciona bem para regiões pequenas, com distribuição celular homogênea. Sua aplicação na contagem das célu-las cerebrais gerava estimativas pouco confiáveis, que variavam até 10 vezes para algumas regiões e deixavam o cérebro humano com algo entre 75 bilhões e 125 bilhões de neurônios.

À época recém-contratada pela UFRJ, Suzana contou a Lent que tinha uma ideia “ousada e meio maluca” de como contar neurônios, mas não tinha laboratório. E ele a convidou para trabalharem

por meio de eletricidade. Tão ou mais importante quanto o total de neurônios são as conexões efe-tivas que eles estabelecem entre si, criando redes que processam a informação de forma distribuída, segundo o neuroanatomista italiano Alessandro Vercelli, da Universidade de Turim. “O número, o padrão e a qualidade dessas conexões variam no espaço e no tempo”, conta Martín Cammarota, neurocientista da Pontifícia Universidade Cató-lica do Rio Grande do Sul, que estuda a formação e a evocação das memórias. “Ter mais neurônios ou menos neurônios não necessariamente torna um indivíduo mais inteligente que outro ou uma espécie mais inteligente que outra”, diz.

Apesar dessas considerações, os resultados que Suzana e Lent colecionam desde 2005 os levaram a questionar algumas ideias tidas como verdades absolutas a respeito da composição e da estrutura do cérebro. No ano passado, Lent considerou que os dados gerados pelo seu grupo e o de Suzana já eram consistentes o suficiente para serem consolidados em uma crítica mais di-reta. Com três pesquisadores de seu laboratório, ele escreveu a revisão publicada em janeiro no European Journal of Neuroscience na qual afirma que ao menos quatro conceitos básicos da neu-rociência precisam ser repensados.

O primeiro dogma discutido no artigo é o de que o cérebro humano e o restante do encéfalo têm, juntos, 100 bilhões de neurônios. Conheci-

Fracionador turbinado: transforma pedaços de cérebro em uma sopa de núcleos de neurônios

1º dogmAhá 100 bilhões de neurônios no cérebro humano

Page 21: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 21

juntos. A proposta de Suzana era simples: tornar homogêneas as regiões cerebrais antes de contar suas células. Como? Desmanchando as células.

A principal razão da heterogeneidade do en-céfalo é que as células e o espaço que as separam variam de tamanho. Ao dissolver as células, a questão estaria resolvida, contanto que fosse possível preservar seus núcleos – a porção mais central, que abriga o DNA. Como cada célula cerebral possui um só núcleo, a conta fica sim-ples. A soma dos núcleos daria o total de célu-las. Corantes que marcam apenas os neurônios permitiram em seguida distingui-los de outras células cerebrais.

Usando compostos químicos que preservam as estruturas das células, Suzana conseguiu des-truir apenas a membrana externa sem danificar o núcleo e, com Lent, descreveu a técnica em 2005 no Journal of Neuroscience. “É um método inteligente, simples e fácil de usar e replicar”, comenta Vercelli. “Eu me pergunto por que não pensei nisso antes.” Na opinião de Zoltan Molnar, neurocientista da Universidade de Oxford, na Inglaterra, foi um avanço importante. “A genô-mica, a transcriptômica e a proteômica são áreas quantitativas e acuradas que progrediram muito, enquanto nós, anatomistas, permanecemos na idade das trevas. Não desenvolvemos métodos que possam medir o número, a densidade e va-riações na arquitetura das células”, diz.

O primeiro teste foi com cérebros de ratos. O total de células do encéfalo foi 300 milhões, dos quais 200 milhões eram neurônios. Diferen-temente do esperado, só 15% deles estavam no cérebro, a parte mais volumosa. A maior parte (70%) se encontrava em um órgão menor na re-gião posterior do crânio: o cerebelo.

Era assim nos ratos. Mas e nas outras espécies? Suzana em seguida analisou o cérebro de outros cinco roedores (camundongo, hâmster, cobaia, paca e capivara). Como já se sabia, quanto maior o animal, maior o cérebro e o número de neu-rônios. O camundongo, com apenas 40 gramas, é o menor deles e tem 71 milhões de neurônios armazenados em um cérebro de 0,4 grama. Qua-se 1,2 mil vezes mais pesada, a capivara tem um encéfalo 183 vezes maior (76 gramas), mas só 22 vezes mais neurônios (1,6 milhão).

o cérEbro hUmAnoSob a orientação de Suzana e Lent, o biólogo Frederico Azevedo fez a contagem das células em cérebros humanos. Antes, no entanto, teve de adaptar a técnica. “O que funcionava para os roedores não dava certo com humanos”, conta. Foram meses até descobrir que o problema estava na maneira de fixar o tecido antes de fracioná-lo. Quando o cérebro passava tempo demais mergu-lhado em compostos que evitam sua deterioração, o pesquisador não conseguia corar os neurônios para depois contá-los ao microscópio. Frederico fracionou à mão as amostras do cérebro de qua-tro pessoas (com idade entre 50 e 71 anos), cedi-dos pelo banco de cérebros da Universidade de São Paulo (USP). “Foi nessa época que comecei a pensar em uma forma de tornar esse trabalho automático”, diz o biólogo, que faz doutorado no Instituto Max Planck, na Alemanha.

A contagem das células revelou que o cérebro humano tem, em média, 86 bilhões de neurônios. Esse número é 14% menor que o estimado antes e próximo ao proposto em 1988 por Karl Herrup, da Universidade Rutgers. “Há quem diga que a diferença é pequena, mas discordo”, diz Suzana.

onde estão os neurônios

FON

TE

ro

ber

to

len

t /

ufr

J

cérEbroPeso 1.230 gNeurônios 16 biOutras células 61 bi

cErEbEloPeso 154 gNeurônios 69 biOutras células 16 bi

mASSA brAncAPeso 294 gNeurônios 1,3 biOutras células 19,9 bi

mASSA cInzEntAPeso 316 gNeurônios 6,2 biOutras células 8,7 bi

dEmAIS rEgIÕESPeso 118 gNeurônios 0,7 biOutras células 7,7 bi

totAlPeso 1.508 gNeurônios 86 biOutras células 85 bi

2º dogmAo número de células da glia é 10 vezes maior que o de neurônios

Page 22: Pesquisa Fapesp 192

22 | fevereiro De 2012

“Ela corresponde ao cérebro de um babuíno ou a meio cérebro de um gorila, um dos primatas evo-lutivamente mais próximos dos seres humanos”, explica a neurocientista, chefe do Laboratório de Neuroanatomia Comparada do ICB-UFRJ.

Cauteloso, Lent comenta: “Não podemos afir-mar que esses números são representativos da espécie humana. É provável que sejam represen-tativos de adultos maduros.” Ou nem isso, já que foram analisados apenas quatro cérebros. Nos mais jovens também pode ser diferente. “Quem sabe indivíduos na faixa etária dos 20 anos não tenham 100 bilhões de neurônios, que perdem com o tempo?”, questiona o pesquisador. Seu gru-po agora estuda o cérebro de pessoas mais jovens e compara cérebros de homens e mulheres. En-quanto não responde essa questão, Lent alterou o título da segunda edição de seu livro, publicada em 2010, para Cem bilhões de neurônios?, com um ponto de interrogação no final.

o cErEbEloAssim como nos roedores, a maior parte desses neurônios não está no cérebro, mas no cerebelo. O cérebro – mais especificamente o córtex cerebral, até pouco tempo atrás considerado o principal responsável por funções cognitivas como atenção,

memória e linguagem – é a parte do encéfalo que mais se agigantou ao longo da evolução. No caso humano, tem 1.200 gramas e ocupa mais da me-tade do crânio, mas abriga apenas 16 bilhões de neurônios. Já o cerebelo, com seus 150 gramas, tem 69 bilhões (ver infográfico na página 21).

Como então se explicam tamanhos tão dife-rentes para esses órgãos? A resposta é múltipla. Primeiro, o cérebro tem menos neurônios que o cerebelo, mas quase quatro vezes mais outros tipos celulares, como as células da glia. Essas células, antes consideradas apenas suporte físi-co dos neurônios, desempenham outras funções essenciais: auxiliam na transmissão dos impul-sos, nutrem os neurônios e defendem o sistema nervoso central de microrganismos invasores. E, claro, ocupam espaço. Em segundo lugar, cérebro e cerebelo são formados por tipos diferentes de neurônios, que se conectam de modo distinto.

Com esse trabalho, o grupo do Rio constatou também que a evolução não privilegiou só o de-senvolvimento do cérebro. Entre os mamíferos, a classe de animais a que pertencem os seres huma-nos, cérebro e cerebelo ganharam neurônios no mesmo ritmo. Esse resultado, segundo Vercelli, corrobora o de pesquisas indicando que o papel do cerebelo não se restringe ao controle dos mo-

o cérebro e as habilidades

AEgyPtoPithEcus zEuxisVolume craniano 30 cm3

Neurônios 2,5 bi

ProconsulhEsEloniVolume craniano 170 cm3

Neurônios 13 bi

ArdiPithEcus rAmidusVolume craniano 300 cm3

Neurônios 25 bi

homo hAbilisVolume craniano 600 cm3

Neurônios 46 bi

homo ErgAstErVolume craniano 900 cm3

Neurônios 60 bi

homo sAPiEnsVolume craniano 1.200 cm3

Neurônios 86 bi

3º dogmAo cérebro humano é mais complexo que o de outros primatas

FON

TE

ro

ber

to

len

t /

ufr

J

2,7 a 1,8 a 1,2 0,1630 20 a 17 4,4

milhões de anos atrás hoje

Arborícola e quadrúpede

Arborícola e quadrúpede

Arborícola e bípede

Arborícola, terrestre e bípede

terrestre e bípede. Produzia ferramentas machados e clavas

terrestre e bípede. Caçador- -coletor, capaz de construir abrigos e usar o fogo

Page 23: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 23

vimentos. Ele é fundamental para o aprendizado, a memória, a aquisição da linguagem e o contro-le do comportamento e das emoções. “Cada vez mais se mostra que o cerebelo participa de pro-cessos que antes associávamos apenas ao córtex cerebral”, comenta Herrup, da Rutgers.

AS EStrAtégIASDesde que desenvolveu a técnica, Suzana já a aplicou para estudar o encéfalo de 38 espécies de mamíferos e verificou que, nos últimos 90 mi-lhões de anos, a natureza adotou ao menos duas estratégias de construir cérebros. Uma para os roedores e outra para os primatas.

Nos roedores, o aumento no número de neu-rônios no encéfalo ocorre em escala logarítmica. De modo geral, à medida que o tamanho da es-pécie aumenta, o encéfalo se torna maior e o nú-mero absoluto de neurônios também. Mas quanto maior o roedor, proporcionalmente menos neurônios ganha. Já en-tre os primatas, que incluem macacos e seres humanos, o aumento é linear: o número de neurônios cresce proporcio-nalmente ao volume cerebral. “Houve uma transição abrupta entre os mamíferos inferiores, como os roedores, e os supe-riores, como os primatas”, co-menta Vercelli. Essa mudan-ça, segundo Lent, permitiu ao cérebro dos primatas agrupar mais neurônios num volume menor e acumular mais célu-las que o dos roedores.

Esse padrão de desenvol-vimento encefálico dos pri-matas levou Suzana e Lent a questionarem outra ideia em vigor há quase 40 anos: a de que o cére-bro humano seria excepcionalmente grande. Em 1973 o paleoneurologista norte-americano Harry Jerison afirmou que nosso cérebro tinha sete ve-zes o tamanho esperado para o de um mamífero de 70 quilos. A neurocientista Lori Marino diria mais tarde que ele era grande até mesmo para um primata. Com 1.500 gramas, o encéfalo humano é o maior de todos os primatas – o gorila, o maior primata, pesa 200 quilos e tem um encéfalo de 500 gramas. Mas essa ideia parte do princípio de que o tamanho do corpo seria um bom indicador das dimensões do cérebro. Parece que não é.

Quando se deixa a massa corporal de lado e se analisa o número de células, nota-se que o cérebro humano não foge ao padrão dos prima-tas. “Nosso cérebro tem a quantidade de células esperada para um primata com esse tamanho”, afirma Suzana.

Artigos científicos1. LENT, R. et al. How many neurons do you have? Some dogmas of quantitative neuroscience under revision. European Journal of Neuroscience. v 35 (1). jan. 2012.

2. HERCULANO-HOUZEL, S.; LENT, R. Isotropic fractionator: a simple, rapid method for the quantification of total cell and neurons in the brain. Jornal of Neuroscience. v. 25(10), p. 2.518-21. 9 mar. 2005.

Com base nessa regra e no volume do crânio, Su-zana e o neurocientista Jon Kaas, da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, publicaram em 2011 na Brain, Behavior and Evolution a estimati-va do número de células cerebrais de outros nove hominídeos. Como era de esperar, a espécie que mais se aproxima da humana (Homo sapiens) em termos de número de neurônios é a dos neandertais (Homo neanderthalensis), que habitaram de 300 mil a 30 mil anos atrás a região onde hoje é a Europa. Eles teriam 85 bilhões de neurônios, segundo a es-timativa de Suzana e Kaas. Com auxílio do bioan- tropólogo Walter Neves, da USP, Lent ampliou a projeção para outras espécies de primatas que integram a superfamília dos hominídeos e calcula que os neandertais podem ter tido 100 bilhões de neurônios (ver infográfico na página 22).

Outro dogma em questão é o de que o total de células da glia supera em 10 vezes o de neurônios – origem da ideia de que só se usam 10% do cérebro. “Essa taxa elevada de células da glia era ensinada nos livros didáticos, embora experimentos já indicassem que a proporção era de 1 pa-ra 1”, conta Helen Barbas, da Universidade de Boston.

Mais do que o número de células da glia – são 85 bilhões nos seres humanos, mais con-centradas no cérebro que no ce-rebelo –, o que mais surpreen- deu Suzana é o fato de que elas praticamente não sofre-ram mudanças morfológicas durante a evolução. O tama-nho delas é quase constante entre os primatas, enquanto o

dos neurônios varia 250 vezes. “O funcionamento das células da glia deve estar ajustado de modo tão fundamental que a natureza eliminou qual-quer mudança que tenha surgido”, comenta.

Espera-se que mais resultados instigantes sur-jam à medida que a técnica brasileira se difun-da. “Se for empregada amplamente, ela poderá simplificar o processo tedioso de contagem de células cerebrais”, diz Herrup. Talvez mais horas sejam poupadas se a versão turbo do fracionador for tão eficiente quanto se espera. n

o tamanho das células da glia permaneceu constante ao longo da evolução, enquanto o dos neurônios variou até 250 vezes

4º dogmAos módulos (agrupamentos de células) do cérebro contêm o mesmo número de neurônios

Page 24: Pesquisa Fapesp 192

24 | fevereiro De 2012

o homem do clima

Ao longo de 10 anos, desde que foi eleito para a presidência do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o indiano Rajen-dra Pachauri tem enfrentado batalhas

difíceis. Em 2007 ele teve de encarar o ceticismo do mundo ao demonstrar, com sua equipe, que as alterações climáticas poderiam ser causadas pe-las atividades humanas, mas em dezembro desse mesmo ano, em vista de seus avanços, ele dividiu o Prêmio Nobel da Paz com o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore. O prêmio lhe deu fôlego para, na batalha seguinte, responder às críticas severas que chegaram do mundo todo quando as previsões dos cientistas do IPCC não se mostraram exatas.

Sua batalha mais recente é a da comunicação. Ele pretende fazer com que os resultados cien-tíficos do IPCC cheguem não só a cientistas, mas também a públicos mais amplos, ainda que receba questionamentos – sempre bem-vindos, ele diz, quando “justos e objetivos”. Para facilitar essa in-teração é que o jornalista Jonathan Lynn, depois de trabalhar 32 anos como correspondente inter-nacional da agência de notícias Reuters, assumiu em 1º de dezembro de 2011 o cargo então recém- -criado de coordenador de comunicação – e lo-go depois embarcou com a equipe do IPCC para a 17ª Conferência das Partes (COP-17) da Con-venção das Nações Unidas sobre Mudanças Cli-máticas, realizada em Durban, na África do Sul. Vista inicialmente com muitas dúvidas, a COP-17

EntrEvIStA rAJenDrA PAchAuri

Presidente do IPCC fala de suas

batalhas à frente da instituição

carlos Fioravanti

Page 25: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 25

PAu

l g

ro

ver

/ r

ex f

eAt

ur

es

Page 26: Pesquisa Fapesp 192

26 | fevereiro De 2012

terminou com inesperado acordo global para a redução da emissão de gases do efeito estufa.

Pachauri empenha-se também em motivar os governantes e formuladores de políticas públicas a agirem de mo-do a amenizar os impactos dos eventos climáticos extremos, como secas, des-lizamentos e inundações intensas, que atingem milhões de pessoas em todo o mundo. No documento mais recente elaborado com o propósito de fortalecer as políticas públicas, distribuído em no-vembro do ano passado, os especialistas do IPCC propõem formas de gerencia-mento de riscos de desastres naturais, que, eles alertam, podem ser influenciados pela va-riabilidade climática natu-ral ou induzidos pelo ser humano. O presidente do IPCC agora está conven-cido de que propostas de ação como essa têm de ser debatidas continuamente até que possam ser aper-feiçoadas e implantadas. “Acho que estamos na di-reção certa”, observou.

Nascido em 1940, Pa-chauri estudou engenha-ria mecânica na Índia e nos Estados Unidos, on-de foi professor. Voltou pa-ra a Índia em 1975 e desde 1982 dirige o Instituto de Recursos e Energia (Te-ri), uma organização inde-pendente sediada em Nova Délhi, com cerca de 900 funcionários, que persegue o uso sus-tentável de fontes naturais de energia. Desde 2001, é também conselheiro do primeiro-ministro da Índia.

Vegetariano, Pachauri deve vir em junho para participar da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvi-mento Sustentável, a Rio+20, a ser rea- lizada de 20 a 22 de junho no Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir ele fala do Brasil e de suas prioridades à fren-te do IPCC.

Este ano teremos a Rio+20. Quais os desafios desse encontro, a seu ver?Não será um encontro apenas sobre mu-danças climáticas, mas também sobre ambiente, pobreza, biodiversidade, tu-do está conectado, claro. Espero que a

compromissos são reais?Não sei. Acordos desse tipo já foram feitos antes, mas são muito difíceis de implementar.

Quais são as prioridades atuais do IPCC? Nossa tarefa mais importante é com-pletar o quinto relatório, que deve estar pronto em 2014. Outra prioridade é im-plantar uma estratégia de comunicação melhor do que a que tínhamos feito até agora. Isso é porque eu acho que con-versar com representantes dos meios de comunicação como você é muito im-portante. Não é o suficiente produzir in-

formação de alta qualidade, temos também de fortale-cer as mensagens de nossos achados científicos.

Em maio do ano passado, o IPCC anunciou que iria melhorar a acuracidade científica e as estratégias de comunicação. O que aconteceu depois?Temos agora um chefe do departamento de comuni-cação [Jonathan Lynn]. É uma posição que criei re-centemente e deve nos aju-dar bastante.

O IPCC ainda está sendo criticado?Não sei. Você é que pode me contar sobre isso. A ciência só avança quando é questionada, caso contrá-

rio, não desenvolve novas metas, mas os questionamentos têm de ser justos e objetivos.

De acordo com o Daily Climate, uma publicação de uma organização não governamental dos Estados Unidos, a Environmental Health Sciences, a co-bertura mundial da imprensa sobre mu-danças climáticas caiu 20% em 2011, em comparação com 2010. A seu ver, o que esse resultado significa?Há coberturas boas e ruins, não sei qual caiu. Se foi a ruim, não me importo. A qualidade da cobertura jornalística é também tão importante quanto a mag-nitude da cobertura. Você poderia ter uma pequena quantidade de boa cober-tura ou uma quantidade elevada de co-

Rio+20, em junho deste ano, tome im-portantes decisões para o desenvolvi-mento sustentável no mundo.

Qual sua impressão sobre a participa-ção política e científica do Brasil nos debates sobre mudanças climáticas?Acompanho a participação política ape-nas indiretamente, por leituras. Conheço melhor a parte científica. Tenho visto com satisfação que no IPCC os pesquisa-dores brasileiros têm feito contribuições muito importantes. Há muita pesquisa sobre mudanças climáticas sendo feita no Brasil, e isso é muito bom. O Brasil é uma economia emergente, que ganha

destaque no cenário mundial, e tem muita experiência, muito conhecimen-to científico, na produção de bioetanol.

E os Estados Unidos? O ceticismo sobre as mudanças climáticas tão presen-te durante os anos do governo Bush terminou?Posso apenas falar da contribuição cien-tífica dos Estados Unidos, que tem sido realmente impressionante. A colabora-ção dos cientistas norte-americanos tem sido de alto nível, eles são um dos que mais têm contribuído para o conheci-mento nessa área.

A COP-17 terminou em dezembro com um acordo global para a redução de gases do efeito estufa. A seu ver, esses

todos têm de estar interessados em mudanças climáticas, por causa dos impactos econômicos e sociais

Page 27: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 27

bertura não tão boa. Temos de olhar a qualidade também.

Em novembro o IPCC distribuiu o es-tudo Managing the risks of extreme events and disasters to advance cli-mate change adaptation (SREX). Esse trabalho já alcançou os formuladores de políticas públicas, de modo a real-mente evitar os efeitos dos desastres naturais? Tentamos fazer o melhor possível. Ain-da temos muitas atividades planejadas, porque esse trabalho precisa ser disse-minado continuamente, não em um ou dois dias. Espero que os formuladores de políticas públicas realmente enten-dam e aproveitem esse conhecimento que oferecemos.

Muitas vezes, no Brasil, os políticos pa-recem não estar muito interessados em estudos científicos. Quando falamos de eventos climáticos extremos e desastres naturais, todos têm de estar interessados, tanto os políticos quanto a sociedade civil... por causa dos impactos sociais e econômicos. Todos de-veriam estar interessados. Vejo os efeitos dramáticos dos desastres naturais em todo o mundo, e há milhares, por vezes milhões de pessoas atingidas. Creio que os políti-cos estão preocupados sim.

Parece que as mudanças climáticas são muito mais graves em países em desen-volvimento como a Índia, onde o senhor

vive, ou o Brasil, por causa da falta de dinheiro e de conexões institucionais...Você está certo. Nos países em desen-volvimento não temos instituições ca-pacitadas para enfrentar os impactos das mudanças climáticas. Não temos sistemas adequados de alarme de de-sastres naturais, muitas vezes falta tam-bém infraestrutura.

Como o instituto Teri, que o senhor di-rige, e o governo da Índia estão lidando com esses problemas? Estamos trabalhando em projeções dos impactos das mudanças climáti-cas, assegurando que as pessoas sejam capazes de se adaptar melhor aos im-pactos. Estamos também trabalhando em medidas de mitigação, mostrando como usar as atuais fontes de energia de modo mais eficiente e como ampliar o uso de energias renováveis. Estamos trabalhando com governo, instituições de pesquisa, empresas e sociedade civil, todos têm de se envolver para resolver os problemas causados pelas mudan-ças climáticas.

Essa estratégia de trabalho coletivo está funcionando?Está sim. Lentamente, porque há muito por ser feito. Temos de dar um passo por vez. Acho que estamos nos movendo na direção certa.

Em 2012 o senhor completa 10 anos co-mo presidente do IPCC. O que mudou em sua vida nesse período e em sua vi-são de mundo nesses 10 anos?Estou muito mais convencido da impor-tância das mudanças climáticas, porque agora temos bastante informação cientí-fica. Quando assumi o IPCC, tentei tra-zer algumas mudanças. Durante 17 anos, de 1988 a 2005, apenas cinco pessoas trabalhavam na secretaria geral de uma organização mundial como essa. Era um grupo muito pequeno, para fazer coisas absolutamente essenciais. Dobramos esse número, porque concluímos que agora precisamos nos comunicar com o mundo de fora muito melhor que an-tes. Temos também de lidar com um número alto de atividades e pesquisa-dores de todo o mundo. A secretaria ge-ral está agora muito mais eficiente para fazer todas essas coisas. Todos estamos aprendendo todo o tempo, para fazer o melhor possível. n

A teRRA eM tRANSFORMAçãO

Al Gore e Pachouri felizes depois de terem ganho o Nobel da Paz de 2007

14,5

14,0

13,5

50

0

-50

-100

-150

40

36

32

1850 1900 1950 2000

FONTE iPcc

Joh

n m

cc

on

nic

o /

AP

/ g

low

imA

ges

temperatura média da superfície global (em ºC)

Nível do mar média global (em mm)

Cobertura de neve no hemisfério Norte (em milhões de km2)

Page 28: Pesquisa Fapesp 192

28 fevereiro De 2012

estudos revelam previsões sobre a participação

do etanol na agricultura e na matriz de combustíveis

o futuro da produção de etanol parece ser mais promissor que todas as previsões feitas até aqui. Segundo um estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), será possí-vel suprir em 20 anos toda a frota de automó-veis do mundo com o etanol e a eletricidade

produzidos nas usinas de cana-de-açúcar. “Isso pode ser feito utilizando-se o etanol e a eletricidade de forma mais eficiente com veículos mais econômicos”, diz Sergio Pacca, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Leste, na capital paulista, responsável pelo estudo junto com o professor José Roberto Moreira, do Instituto de Eletrônica e Energia, da mesma universidade, ambos autores do artigo “A biorefinery for mobility?”, publicado em outubro de 2011 na revista Envi-ronmental Science & Technology.

O resultado a que chegaram se baseou nas frotas de au-tomóveis do Brasil e dos Estados Unidos. Para que a cana forneça tanto o etanol como a eletricidade, eles calcularam que o ideal seria existir em 2030 uma proporção de 33% de carros elétricos e 67% de híbridos, automóveis com motores a etanol supereficientes, que façam 15 quilômetros com um litro de álcool, e motores elétricos alimentados pela energia gerada pelo motor a etanol e na frenagem do veículo, seme-lhante ao Prius, da Toyota. Eles partiram do fato de que cada carro norte-americano roda 20 mil quilômetros por ano e cada carro brasileiro, 12 mil. Assim, seria suficiente um hec-

biorrefinarias do futuro

teXtO marcos de oliveira INFOGRáFICOS tiago cirillo

tare de cana para 9,2 veículos nos Estados Unidos e a mesma área para 11,6 veículos no Brasil, desde que mantida a mesma proporção de tipos de carros.

Como alternativa, todos os carros dos dois países poderiam ser do tipo híbrido plug in, com baterias para serem recarre-gadas em uma tomada e um motor a etanol que entra em ação quando as baterias se descarregam, como o Volt, da GM. O es-tudo leva em conta a tecnologia atual de produção que poderia ser utilizada por todas as usinas para aumentar a geração de bioeletricidade. Eles também preveem o uso de 50% da palha deixada hoje no campo para a produção de energia elétrica. Assim, acreditam que seria possível atingir 90 litros de etanol por tonelada de cana (l/TC), hoje a média é de 83 l/TC, e uti-lizar apenas 4% da área cultivada do planeta. O cenário dos pesquisadores da USP é feito sem a perspectiva da segunda geração do biocombustível, que está em desenvolvimento, quando, além do caldo da cana utilizado hoje, se pretende usar o bagaço e a palha para fazer etanol.

A conta que fazem para o setor produtivo de etanol no Brasil em 2030, mantida a proporção de 33% de carros elétricos (cer-ca de 12 milhões de veículos) e 67% de híbridos (20 milhões), prevê o uso de 2 milhões de hectares de cana para fabricar álcool, ante os 8 milhões atuais (metade usada para produzir etanol e a outra para fazer açúcar), com a produção de 16,3 bilhões de litros, cerca de 8 bilhões a menos que a produção da safra 2010/2011, de 25 bilhões de litros. A área plantada de

PolítIcA _ CeNáRIOS De eNeRGIA

Page 29: Pesquisa Fapesp 192

2022

2009 2022

53,829

PESQUISA FAPESP 192 29

2009

Produção de etanol(em bilhões de litros)

2009 2022

r$ 1,37r$ 0,90

cana-de--açúcar

cenário provável da produção agrícola em 2022

10,5milhões de hectares

31,1

14,4

3,1

Produção t/ano

969

639,3

2009 2022

21,5

14,2

8,1

2,8

PastagensProdução de carnet/ano

12,310,22009 2022

Soja 98,1

57,6

2009 2022Produção t/ano

milho 66,450,3

2009 2022Produção t/ano

Arroz14,712,5

2009 2022Produção t/ano

199,9

203,9milhões de hectares

Preço médio/anoR$/litroFO

NT

E in

stit

ut

o D

e es

tu

Do

s D

o c

om

érc

io e

neg

oc

iAç

ões

int

ern

Ac

ion

Ais

(ic

on

e)

Page 30: Pesquisa Fapesp 192

30 fevereiro De 2012

o ProJEto

Simulating land use and agriculture expansion in Brazil: food, energy, agro-industrial and environmental impacts – n° 2008/56156-0

modAlIdAdEProjeto temático

co or dE nA dorAndré Nassar – Icone

InvEStImEntoR$ 67.886,54 (FAPeSP)

SEgUndA gErAção (2g)1G mais hidrólise enzimática da celulose do bagaço com tecnologia ainda em desenvolvimento

cana diminui porque crescerá a eficiência na produção e os carros dependentes do etanol serão mais eficientes. Dentro do cenário que descrevem, seriam produzi-dos 23 terawatt-hora (TWh) por ano com a queima do bagaço e da palha apenas para impulsionar os carros elétricos do país. O excedente de energia elétrica, ho-je comercializado, deixaria de existir.

ProPoStAS EFIcIEntES Pacca acredita que para esse cenário dar certo seriam necessários planos de po-líticas públicas com incentivos fiscais a quem comprar carros híbridos, elétricos ou plug in híbridos, além de penalizar com taxas os veículos que consomem muita energia. “São políticas para bene-ficiar os carros mais eficientes.” Na conta de Pacca e Moreira, seriam necessários 66 milhões de hectares de terra com cana em todo o mundo (em 2010 foram 23,8 milhões) para suprir toda a frota de ve-ículos com etanol e eletricidade. "Os cálculos são sólidos, mas para que esse cenário possa ser realizado se-rá necessário também melhorar a pro-dutividade do etanol por hectare com-binado com a segunda geração e novas variedades de cana, além de aumentar o número de veículos eficientes", analisa o professor Lee Lynd, da Thayer School of Engineering, da Dartmouth College, dos Estados Unidos, e coordenador exe-cutivo do Global Sustainable Bioenergy (GSB), uma articulacão internacional de pesquisadores em bioenergia.

Menos otimistas em relação à bioele-tricidade estão os pesquisadores do La-boratório Nacional de Ciência e Tecno-logia do Bioetanol (CTBE) de Campinas (SP). Em colaboração com a Faculdade de Engenharia Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), eles elaboraram o artigo “Second generation ethanol in Brazil: can it compete with electricity production?”, publicado na re-vista científica Bioresource Technology em outubro de 2011. Eles analisam a influên- cia da segunda geração na produção de etanol. São três projeções que incluem o uso da energia elétrica gerada na usina e as futuras tecnologias de hidrólise da celulose e da hemicelulose, componen-tes do bagaço. “Desenvolvemos simula-ções computacionais para acompanhar as diferentes rotas de aproveitamento da produção. Fizemos planilhas que cal-culam os riscos e valores mais prováveis de acontecer ou não”, explica Antonio Bonomi, diretor de avaliação tecnológi-ca do CTBE.

Um dos cenários propostos pelos pes-quisadores como modelo de biorrefinaria atual baseado na cana está a otimização da primeira geração, a que se faz hoje sem o uso do bagaço para produzir álcool. “A primeira atitude seria o aproveitamento de 50% da palha. Hoje ficam no cam-po quase 100% de folhas durante a co-lheita. Há algum tempo queimavam-se todas antes dessa etapa. Agora começa a sobrar palha no campo. Aí forma-se um colchão, o que dificulta a máquina

[colheitadeira] a entrar no canavial. Es-tima-se que seja possível levar embora pelo menos 50%. Parte da palha preci-sa ficar no campo para proteger o solo da erosão, manter a umidade e reciclar nutrientes”, explica Bonomi.

A lém do uso da palha, ele prevê um aumento da produção de eletrici-dade com a utilização de caldeiras

de alta eficiência, com pressão de 90 bar, em vez das atuais de 22 bar. Isso rever-teria em maior produção de energia elé-trica tanto para manter a própria usina como para vender o excedente para a rede. A geração seria de 185 quilowatts- -hora por tonelada de cana (kWh/TC) se todas as usinas trocassem as caldeiras e usassem 50% da palha. Um aumento de 620% sobre os 30 kWh/TC atuais. Em 2010 foram produzidos no Brasil 8.774 gigawatts-hora (GWh) com cana, segundo a União da Indústria de Cana-

PrImEIrA gErAção otImIzAdA (1g) Com caldeiras de alta eficiência e uso do bagaço e de 50% da palha para a produção de eletricidade

185,8 kWh energia elétrica

92,8 kWhenergia elétrica

72,7 kWhenergia elétrica

R$ 222 mi R$ 329 mi

1 2 3

SEgUndA gErAção AvAnçAdA1G mais 2G com hidrólise da hemicelulose do bagaço com desenvolvimento atual em fase de laboratório

R$ 281 mi

FON

TE

ct

be

três cenários para as biorrefinarias

Investimento Investimento Investimento

Etanol 25,3 bilhões de litros

Etanol 31,6 bilhões de litros

Etanol 36,6 bilhões de litros

Page 31: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 31

hectares. Dez anos depois, a produção somou 9 milhões de toneladas de carne em 183 milhões de hectares. O rebanho, no período, saltou de 158 milhões para 206 milhões”, explica a pesquisadora Leila Harfuch, do Icone. “As pastagens entre 2009 e 2022 devem cair cerca de 5 milhões de hectares, acomodando parte da expansão de grãos e cana.”

A conclusão, baseada em um modelo criado pelo instituto para oferta e de-manda de produtos agrícolas e uso da terra no país, chamado Brazilian Land Use Model, indica que o avanço nas áreas nativas não vai ocorrer por motivos de produção de biocombustíveis, mas por alimento. “A área onde há mais competi-ção por terra e a remuneração é melhor para o agricultor é o cerrado, o que pode causar impacto nas matas nativas. Mas a intensificação da agropecuária no futuro deve levar a uma demanda menor por área nova em relação ao passado.”

Em relação à produção de etanol, o modelo mostra uma evolução de 29 bi-lhões de litros, em 2009, para 53,8 bilhões, em 2022, sem levar em conta a segunda geração. “Nós pressupomos que as ex-portações para os Estados Unidos devem alcançar 9 bilhões de litros por ano em 2022.” A pesquisa foi realizada antes do anúncio do fim da taxação à importação daquele país anunciada em dezembro. “Calculamos esse cenário de 9 bilhões porque os norte-americanos terão que diminuir o consumo de combustíveis fósseis e consequentemente reduzir os gases do efeito estufa emitidos, e o etanol de cana-de-açúcar brasileiro e o de milho, este produzido por eles, devem cumprir parte dessa missão”, diz Leila.

“Projeções para o potencial da ener-gia da biomassa devem ser muito cau-telosos, principalmente em um mundo motivado para a energia sustentável e o desenvolvimento da economia rural que os biocombustíveis podem ofere-cer, se implementados com cuidado”, completa Lynd. n

A estimativa do CTBE para o investi-mento da unidade de produção de eta-nol de primeira e segunda geração é de US$ 329 milhões. No primeiro cenário, com apenas a otimização da primeira geração, o investimento é de US$ 222 milhões. “Ele pesa muito, mais que o custo de produção, e deixa a taxa de re-torno menor com a segunda geração em relação à primeira otimizada.”

uma das saídas para melhorar o re-torno do usineiro e o negócio se tornar mais atraente é a adoção

da fermentação das pentoses, um tipo de açúcar produzido a partir da hemi-celulose que pode também ser transfor-mado em álcool. Mas essa ainda não é uma tecnologia comercial. “Quando for possível utilizar a hemicelulose e outras tecnologias avançadas de hidrólise, a produção de etanol cresceria para 131,5 l/TC e o peso do investimento se torna-ria menor com a venda de mais etanol e o custo diminuiria para o usineiro, que teria uma taxa de retorno maior”, diz Bonomi. Com o uso da hemicelulose, a eletricidade gerada pelas biorrefinarias diminuiria, caindo de 185,8 kWh/TC pa-ra 72,7 kWh/TC. “No Brasil, os usineiros nunca deixarão de usar parte do bagaço e da palha para gerar energia elétrica para uso próprio nas usinas. Essa é a grande vantagem brasileira.”, diz Bonomi.

USo dA tErrA Mas no exterior questiona-se o fato de o Brasil ser forte na agricultura voltada à alimentação e substituir terra boa da produção de alimentos para plantio de cana. Um problema inexistente, segundo estudo do grupo liderado pelo economista André Nassar, do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), financiado pela FAPESP den-tro do Programa Pesquisa em Bioenergia (Bioen). Em 2022, no cenário traçado pelo instituto, a área de lavoura de cana deve ocupar de 10, 5 milhões de hectares ante 8,1 milhões de hectares em 2009.

O crescimento de 30% no canavial deve se dar na Região Sudeste, principalmente em áreas de pastagem de criação de gado bovino, e na Região Centro-Oeste, onde deve substituir áreas tradicionais de plan-tio de grãos e de pastos. “Hoje os pecua-ristas produzem mais carne por hectare. Em 1996 foram produzidos 6 milhões de toneladas de carne, em 184 milhões de FO

NT

E se

rg

io P

Ac

cA

/ u

sP

Artigos científicos

1. PACCA, S.; MOREIRA, J.R.. A biorefinery for mobility? Environmental Science & Technology. v. 45 (22), p. 9.498-505. on-line em 3 de outubro de 2011.

2. DIAS, M.O.S.; BONOMI, A. et al. Second generation ethanol in Brazil: Can it compete with electricity production? Bioresource Technology. v. 102, n. 14, p. 8.964-71. out. 2011.

-de-Açúcar (Unica), o que representou 2% dos 509 TWh do consumo total de eletricidade no país. Com a otimização da primeira geração, os pesquisadores preveem uma produção de 89,3 litros por tonelada de cana (l/TC).

Em um segundo cenário os pesquisa-dores incorporam a segunda geração. É a hidrólise da celulose, que representa de 40% a 60% do bagaço, material com-posto ainda por hemicelulose, de 20% a 40%, e lignina, de 10% a 25%. Esse pro-cedimento, que também utiliza parte da palha da cana, fará aumentar a produ-ção para 110,7 l/TC. Porém a produção de energia elétrica cai para 92,8 kWh/TC, a metade do primeiro cenário. O biocombustível é mais rentável nesse caso que a eletricidade, embora nesse cenário o empreendimento tenha me-nor taxa de retorno financeiro porque o investimento cresce com a adoção da segunda geração. "Em um estudo feito pelo nosso grupo, calculamos que os rendimentos da produção da segunda geração é cerca de cinco vezes maior que o rendimento da eletricidade da co-geração", diz Lynd.

Seriam precisos

60 TWh�

de produção de eletricidade se

todos os carros

do Brasil fossem

elétricos

50% elétrico50% etanol

(híbrido)

Mas se

67% fossem híbridos só seriam necessários

23 TWh para suprir todas as necessidades

100% elétrico

Page 32: Pesquisa Fapesp 192

32 _ fevereiro De 2012

lírio-do-brejo: mais rápida para se reproduzir do que as espécies nativas

Page 33: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 33

Debate sobre definição e controle

de plantas e animas exóticos

esquenta em São Paulo

um problema antigo – o das espécies de animais e plantas exóticas invasoras – começa a ser combatido. Após quase dois anos de debates entre especialis-tas de órgãos do governo, instituições

de pesquisa, organizações não governamentais e empresas, o Conselho Estadual do Meio Ambien-te (Consema) do estado de São Paulo publicou em 9 de novembro a lista com as 14 espécies de animais com potencial invasor como o javali, a lebre-europeia e o caramujo-africano. No mesmo dia o conselho autorizou a formação de um grupo de trabalho com representantes do governo e da sociedade civil para definir as formas de controle da população desses bichos e propor uma lista de espécies de plantas exóticas invasoras (por defi-nição, uma espécie exótica invasora encontra-se fora de sua área de distribuição natural, não tem predadores e prolifera com relativa facilidade a ponto de prejudicar a sobrevivência de espécies nativas). Provavelmente não será fácil eliminar os animais indesejados nem aprovar uma relação viável de plantas indesejadas.

Uma das barreiras para a eliminação dos ani-mais da lista é que a Constituição paulista proíbe a caça. Esse fato coloca aos advogados e promo-tores públicos o desafio de cumprir a lei sem fe-rir outras leis. Dois javaporcos – resultantes do

cruzamento de javalis com porcos domésticos – apreendidos por ordem judicial estão sendo criados em um centro de recuperação de animais silvestres da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em São José dos Campos. O plano de José Evaristo Merigo, administrador do cria-douro, era abater os animais em um matadouro municipal autorizado e distribuir a carne para comunidades carentes, conforme orientação do Ibama, mas a promotoria não autorizou, já que os animais estão sub judice. “Não posso deixar os bichos fugirem”, aflige-se Merigo.

Em um estudo de 2007 na revista Natureza & Conservação, André Deberdt e Scherezino Scherer, ambos do Ibama, registraram animais soltos em nove estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás e Bahia), destruindo plan-tações e fontes de água e cruzando com o porco doméstico. Os pesquisadores observaram que os animais se alimentavam de pinhões (Araucaria an-gustifolia), até mesmo de sementes enterradas, no Rio Grande do Sul, prejudicando a regeneração de araucárias. A caça, autorizada em alguns estados, não foi o bastante para acabar com os porcões.

O grupo de trabalho deverá também buscar e propor formas adequadas de controle de es-pécies invasoras às vezes poucos visíveis, como

_ eSPéCIeS INvASORAS

teXtO carlos Fioravanti

FOtOS Eduardo cesar

Indesejáveis, mas nem sempre

eCOlOGIA

Page 34: Pesquisa Fapesp 192

34 _ fevereiro De 2012

da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ela acompanha a construção e desconstrução das listas desde o pri-meiro debate realizado na capital pau-lista em 22 de maio de 2009, logo após a Organização das Nações Unidas ter reco-nhecido as espécies invasoras como um problema mundial. Calcula-se que 480 mil espécies exóticas que se espalharam mundialmente possam causar prejuízos anuais de US$ 1,4 trilhão, o equivalente a 5% da economia global.

câncEr dA tErrATrazidas nos intestinos de aves e de ma-míferos e na bagagem de colonizado-res, as espécies invasoras agora inquie-tam. Ávidas por luz, água e nutrientes, ocupam sem controle espaços livres ou tomados por comunidades de espécies nativas. Como um câncer da terra, esca-param do controle, se é que um dia pu-deram ser controladas. Poderão, agora? Os especialistas acreditam que sim, mas países mais ricos e organizados, como os Estados Unidos e a Inglaterra, ainda lutam arduamente para se livrar dessas pragas. Por vezes, a única saída para er-radicar espécies danosas ao ambiente, cogitada nos Estados Unidos, é matar todos os organismos de um lago ou rio tomado por espécies invasoras de peixes e depois repovoar o lugar apenas com espécies nativas.

O governo do Reino Unido, um arqui-pélago do tamanho do estado de São Pau-lo, iniciou em 1981 uma campanha nacio-nal para eliminar o ratão-do-banhado,

mAmíFEroSJavali e javaporco (Sus scrofa), mata atlântica Sagui-de-tufo-branco ou sagui-do-nordeste (Callithrix jacchus), áreas de contato entre cerrado e mata atlântica, e cerradão Sagui-do-tufo-preto ou sagui-do-cerrado (Callithrix penicilata), mata atlânticaveado-sambar (Cervus unicolor), cerradolebre-europeia (Lepus europaeus), cerrado e mata atlântica ratão-do-banhado (Myocastor coypus), ambientes aquáticos e mata atlântica AvEScorvo-de-barriga-branca (Corvus albus), matas litorâneas

réPtEIS tartaruga-de-orelha-vermelha (Trachemys scripta), mata atlântica montana (litoral)

PEIxES tucunaré (Chichala kelberi), bacia dos rios Jacaré-guaçu e Paranapanema tucunaré (Chichala piquiti), bacia dos rio Paraná, tietê e Grande

InvErtEbrAdoS tErrEStEScaramujo-gigante-africano (Achatina fulica), áreas de contato entre cerrado e mata atlântica

InvErtEbrAdoS mArInhoScoral-laranja ou coral-sol (Tubastraea coccinea)coral-sol (Tubastraea tagusensis) mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei), bacias dos rios Sorocaba e turvo/Grande

os mais impopulares em São PauloAs 14 espécies reconhecidas como exóticas com potencial de invasão e os respectivos ambientes naturais do estado que podem prejudicar

1

os invertebrados, que continuam a ganhar espaço. É o caso de duas espécies de co-ral agora vistas como

invasoras, que há 30 anos se limitavam a trechos do litoral do Rio de Janeiro. De acordo com um estudo de janeiro de 2011 na Coral Reefs, elas formaram colônias ao longo de 130 quilômetros da costa em direção a São Paulo.

As plantas são outro problema, porque algumas chamadas de invasoras são im-portantes economicamente, a exemplo do capim braquiária (Urochloa decumbens), bastante usado como pastagem para gado no Brasil. “Ninguém seria inconsequente a ponto de propor a eliminação da bra-quiária”, diz Cristina Azevedo, diretora do departamento de proteção da biodi-versidade da Secretaria do Meio Ambien-te (SMA) do estado de São Paulo.

Outra missão do grupo de trabalho será apresentar espécies nativas que possam substituir as plantas exóticas invasoras como o lírio-do-brejo, plan-ta nativa da Ásia, que forma touceiras em córregos e áreas úmidas e tem um time de defensores porque, em razão do perfume intenso, é bastante usada em velórios. Cristina soube disso depois de uma conversa com representantes de funerárias que a procuraram para pedir que tirassem essa planta da lista que a SMA estava preparando.

“Cabe a nós, pesquisadores, apresentar alternativas, temos muitas espécies nati-vas”, afirma Dalva Matos, pesquisadora

Os procurados: mico-de-tufo--preto, invasor apenas se fora do cerrado, e um javaporco

FONTE consemA

Page 35: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 35

roedor nativo da América do Sul e agora na lista de São Paulo. A eliminação dos animais – o último deles, acredita-se, foi morto em 1989 – e a recuperação ambien-tal custaram £ 3 bilhões (R$ 8 bilhões), mas recentemente os ingleses viram que os caramujos, outra espécie exótica, es-tão fora de controle e destruindo seus preciosos jardins.

No Brasil, esse problema começou a ser delineado há poucos anos. Em 2006, um grupo do Ministério do Meio Ambiente (MMA) reconheceu a existência de 543 organismos exóticos invasores com po-tencial para alterar o ambiente terrestre, marinho, a agropecuária ou a saúde hu-mana no país. Há várias contagens. Em um estudo de julho de 2011 na Revista Brasileira de Botânica, Rafael Zenni e Síl-via Ziller, do Instituto Hórus, apresentam 117 espécies apenas de plantas reconhe-cidas como invasoras, já estabelecidas ou com potencial de invasão no país.

SEmEntES EScondIdASVários estados, como Paraná, Santa Ca-tarina, Espírito Santo, Minas Gerais e Pernambuco, já aprovaram suas listas de espécies malditas e põem em campo projetos piloto de erradicação. O proble-ma é que as sementes de gramíneas como o capim anoni (Eragrostis plana), que cobre 2 milhões de hectares de pastos degradados no Rio Grande do Sul, podem permanecer no solo por 24 anos.

“Temos de monitorar o banco de se-mentes do solo, não só a vegetação”, aler-ta Dalva. Ela e sua equipe de São Carlos verificaram que, no cerrado, uma samam-baia nativa, a Pteridium arachnoideum, solta longas raízes, os rizomas, que li-beram compostos capazes de inibir o crescimento de outras plantas. Uma solu-ção seria revirar a terra e tirar o máximo possível de rizomas, já que a aplicação de calcário no solo pode não ser plena-mente eficiente.

A relação paulista de seres indesejados era imensa, mas foi reduzida à medida que avançavam os debates entre os re-presentantes do governo, de empresas e de ONGs que formam o Consema. Das 42 espécies de animais, incluindo a iguana, o pardal, a cabra doméstica e a lagarti-xa, só passaram as 14 sobre as quais não havia dúvida de que eram exóticas, in-vasoras e consensualmente prejudiciais para a sobrevivência de outras espécies ou para a agricultura.

Artigos científicos1. DEBERDT, A.J. e SCHERER, S.B. O javali asselvajado: ocorrência e manejo da espécie no Brasil. Natureza & Conservação. v. 5, n. 2, p. 31-44. out. 2007.

2. ZENNI, R.D. e ZILLER, S.R. An overview of invasive plants in Brazil. Revista Brasileira de Botânica. v. 34, n. 3, p. 431-46. jul-set. 2011.

Não há espaço para conceitos inflexí-veis. Como resultados dos próximos deba-tes, talvez as espécies sejam consideradas com potencial de invasão de acordo com o ambiente em que estiverem: a jaqueira, por exemplo, pode ser prejudicial para outras espécies quando se espraia na mata atlân-tica, mas raramente é danosa em outros ambientes naturais. Ou talvez sejam mal-vistas apenas quando se espalharem onde não são bem-vindas. É o caso dos pinhei-ros (Pinus elliottii) que ocuparam áreas de cerrado do interior paulista, transforman-do-as em densas áreas de pinheiros, com visível perda de biodiversidade.

Outro problema que começou a ser debatido é o das espécies nativas que não são invasoras, mas que, na avaliação do grupo de São Carlos, deveriam ser controladas. É o caso do taquaruçu ou bambu-gigante (Guadua tagoara), nativo da mata atlântica, mas com potencial in-vasor. Esse bambu cresce sobre árvores e, depois de florescer, morre, quebrando galhos. Segundo Dalva, as sementes que brotam nas áreas próximas podem atrair muitos ratos, que comem as mudas de bambus e depois se espalham por plan-tações ou casas próximas. n

A lista inicial, que deve ser reavaliada pelo grupo de trabalho, continha 22 es-pécies de plantas consideradas invasoras. Lá estavam açaí, abacateiro, mangueira, goiabeira, mamona, eucalipto, pínus, ja-queira e chuchu. Nenhuma, porém, pas-sou pela votação dos representantes de órgãos de governo e da sociedade civil que formam o Consema.

Como os donos de floriculturas tinham feito com o lírio-do-brejo, os agrônomos saíram em defesa do açaizeiro, trazido para a Região Sudeste para produzir pal-mito como alternativa a uma palmeira nativa ameaçada de extinção, a juçara. O açaí é nativo da Amazônia e classificado como uma espécie exótica invasora na mata atlântica porque cresce mais rapi-damente, produz mais frutos e atrai mais polinizadores que a juçara.

Dionulp utpatum sandrem volor am, volor at, corRe et aut lore vercipit wissim qui bla

o que fazer com o açaizeiro? os biólogos o atacam, os agrônomos o defendem

2

Page 36: Pesquisa Fapesp 192

36  fevereiro De 2012

_ HIStóRIA DA FAPeSP vIII

1,2 milhão de downloads por dia

um programa especial da FAPESP que elevou a qualidade de centenas de pu-blicações científicas do país teve um impacto notável no aumento da visibi-lidade internacional da pesquisa bra-

sileira nos últimos 14 anos. Lançado em 1997 com um conjunto de 10 revistas brasileiras, o programa Scientific Electronic Library Online (SciELO) al-cançou, no final de 2011, 239 publicações de todos os campos do conhecimento que geraram uma média mensal de 36 milhões de artigos baixados da internet de forma livre e gratuita – 1,2 milhão por dia. Os periódicos só são admitidos na cole-ção depois de passarem por crivos que atestam sua qualidade, como a existência de um corpo editorial qualificado, a relevância em seu campo do conhecimento, a assiduidade da publicação e o cumprimento de uma série de normas técnicas que regem a comunicação científica internacional. “O programa criou um círculo virtuoso, no qual as revistas ganharam reconhecimento e passaram a se preocupar continuamente com sua qualidade”, diz Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca.

O sucesso desse modelo pode ser medido por dois de seus resultados. O primeiro está relacio-nado ao aumento da participação de revistas bra-sileiras em bases de dados internacionais. Ao es-timular as publicações a seguir normas de quali-dade, o programa SciELO ajudou muitas delas a se qualificar para integrar bases como a Web of

FONTE scielo, outubro 2011

evolução anual da média mensal de downloads de artigos da coleção ScielO Brasil – em milhões

CIêNCIA BRASIleIRA NA weB

Distribuição por área dos artigos publicados em 2010 na coleção ScielO Brasil – em %

AS áReAS DO CONHeCIMeNtO

Ciências Agrárias

Ciências Sociais Aplicadas

Ciências Biológicas

engenharias

Ciências exatas e da terra

Ciências da Saúde

Ciências Humanas e Sociais

Artes, letras e linguística

0 5 10 15 20 25 30 35 40

2006 2007 2008 2009 2010 2011

9,97,16,9

36,4

4,2

10,6

Programa ScielO, da FAPeSP, criou

novo patamar de qualidade e difusão

para publicações científicas

texto Fabrício marques ilustrAção Sara goldchmit

Page 37: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192  37

Science (WoS), da empresa Thomson Reuters, e a Scopus, da editora Elsevier, utilizadas como pa-râmetro internacional sobre a produção científica dos países e seu impacto. O número de periódicos brasileiros na base WoS aumentou de 30 títulos em 2007 para 134 em 2011. Tal inclusão fez com que o Brasil saltasse da 15ª para a 13ª posição no ranking de produção científica mundial dos países em razão dos artigos indexados, que aumentarem nesse período. É certo que também teve um pa-pel nesse salto o interesse das bases de dados em vender seus produtos a países emergentes como o nosso. A biblioteca SciELO compartilha, hoje, 94 de seus títulos com o WoS e 173 com a Scopus.

O segundo resultado tem a ver com a propaga-ção internacional do conceito da biblioteca, difun-dida em acesso aberto e gratuito, na contramão do mercado editorial científico dos países desen-volvidos, que cobra pela consulta aos artigos que publicam. Depois do Brasil, 12 países da Améri-ca Latina e Caribe, além de Portugal, Espanha e África do Sul, criaram suas bibliotecas SciELO. A rede conta com duas coleções temáticas, em saúde pública e ciências sociais, e prepara outra sobre biodiversidade. “O SciELO consolidou-se como o mais importante programa de publica-ção científica dos países em desenvolvimento e emergentes e é reconhecido internacionalmente como um dos mais destacados no movimento de acesso aberto”, diz Abel Packer, coordenador operacional do programa.

evolução do número de títulos indexados do ScielO Brasil

O CReSCIMeNtO DA COleçãO

239

205

171

195

116

35

144

10

1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011

CIeNCIOMetRIA

COMuNICAçãO

Page 38: Pesquisa Fapesp 192

38  fevereiro De 2012

cIÊncIA não IndExAdAA biblioteca surgiu em 1997 com o duplo objetivo de aperfeiçoar as revistas bra-sileiras e criar métodos de mensurar a importância e impacto dos artigos publi-cados por pesquisadores do país. Um dos desafios discutidos na época era resgatar a chamada “ciência perdida do Terceiro Mundo”, conceito proposto num artigo na revista Scientific American de 1995 de W. Wayt Gibbs. Ele se referia à ciência não indexada em bases de dados inter-nacionais, mas de grande interesse re-gional, sobretudo em áreas como saúde pública, agricultura e educação.

O coordenador científico do SciELO Brasil, Rogério Meneghini, à época coor-denador adjunto da Diretoria Científica da FAPESP, procurava um modo de criar um sistema de indicadores que ajudasse a Fundação a avaliar as publicações cientí-ficas brasileiras, que em sua maioria não eram indexadas em bases internacionais. Abel Packer, especialista em ciência da informação e executivo do Centro La-tino-Americano e do Caribe de Infor-mação em Ciências da Saúde (Bireme), discutia, na mesma época, meios para publicar periódicos científicos on-line e em acesso aberto. “Me lembro que fo-mos conversar sobre as nossas propostas num almoço intermediado pelo profes-sor Lewis Greene, que era presidente da Associação Brasileira dos Editores Científicos (Abec). Vimos que as ideias

se complementavam e preparamos um pré-projeto, que foi aprovado pela FA-PESP”, lembra Packer. Meneghini diz que alguns editores de revistas que parti-ciparam do projeto piloto temiam perder a autonomia sobre as publicações, ante as exigências de qualidade e de metologia estabelecidas. “Mas isso logo se dissipou, pois eles entenderam o impacto positivo sobre as publicações.”

O SciELO Brasil nasceu como uma parceria entre a FAPESP, ainda hoje res-ponsável por 90% de seu financiamento, e a Bireme, que tinha uma boa experiên-cia acumulada na gestão em informação

on-line e no gerenciamento de base de dados. Posteriormente, o programa ob-teve recursos também do Conselho Na-cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Desde a criação do programa, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) apoia com infraes-trutura institucional, instalações físicas e tecnologias de informação. Segundo Packer, o programa oferece três tipos de contribuição para os periódicos que abri-ga. A primeira, já referida, diz respeito à qualificação da revista. As publicações são admitidas na coleção depois de pas-sarem pela análise do comitê científico do SciELO, que tem cinco representantes dos editores científicos das grandes áreas do conhecimento e quatro institucionais indicados pela FAPESP, CNPq, Capes e Abec – e reavaliadas a cada ano.

“As publicações passam a se organi-zar com critério e são submetidas a um controle contínuo de impacto e quali-dade. Isso lhes dá mais consistência”, afirma Packer. A segunda contribuição tem a ver com a visibilidade e o acesso aos periódicos, com a ajuda da internet. “A coleção ganhou autoridade porque desenvolveu um sistema de acesso pri-vilegiado.” Os metadados dos artigos, informações inteligíveis por um compu-tador, são acessíveis publicamente por diversos protocolos e serviços da inter-net. “Por meio desses serviços o SciELO realiza o intercâmbio de metadados e a interoperabilidade com índices biblio-gráficos, bases de dados bibliográficas, buscadores, repositórios, diretórios e catálogos, produtos e serviços de infor-mação científica da internet”, diz.

A terceira contribuição relaciona-se ao aumento do impacto dos periódicos, medido por citações. A Scientia Agricola, editada pela Escola Superior de Agricul-tura Luiz de Queiroz (Esalq) e pelo Cen-tro de Energia Nuclear na Agricultura, da Universidade de São Paulo, em Piraci-caba, tem um aumento contínuo em seu fator de impacto, que é o número médio de citações de artigos científicos publi-cados no periódico. A primeira aferição, divulgada pela Thomson Reuters no Web of Science em 2006, dava à revista um fator de impacto de 0,3. No ano passado ele chegou a 0,82. Significa afirmar que cada artigo publicado em 2008 foi citado quase uma vez nos dois anos subsequen-

As revistas são admitidas na coleção depois de passarem pela análise do comitê científico do programa

FontE wos, scielo, scoPus, 2011

WoS

Scopus

SciElo

17

44 4 22

9083

39

Distribuição do número de periódicos brasileiros indexados nas bases web of Science (woS), ScielO e Scopus

tRêS BASeS De DADOS

Page 39: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192  39

tes. “Ainda estamos distantes do impacto médio das 20 melhores revistas da área no mundo, que é de 2,41, mas nos desta-camos da média das 20 melhores revis-tas brasileiras, que é de 0,47”, diz Luís Reynaldo Ferracciú Alleoni, professor da Esalq e editor da revista.

A publicação passou por várias trans-formações. Desde 2003 é publicada total-mente em inglês, fugindo do padrão das revistas brasileiras em ciências agrárias. Houve um esforço para ampliar o contin-gente de revisores, os especialistas que avaliam os artigos, de fora do país. Hoje 60% deles são estrangeiros. No início da década de 2000 apenas 2% dos autores dos artigos da Scientia Agricola eram de outras nacionalidades; agora essa fatia chega a 20%. E, atualmente, 68% das ci-tações dos artigos são feitas em publica-ções internacionais. “A revista se reposi-cionou e tem um perfil com mais apelo internacional. Consideramos que faltava ao país, que faz uma pesquisa agrícola de alta qualidade, um periódico desse tipo”, afirma Alleoni.

ovo dE colomboRicardo Lourenço, editor da centenária revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, destaca o aumento da visibilidade da publicação depois de seu ingresso na coleção. “Antes demorava um bom tem-po até que os artigos fossem indexados

produzida no Brasil”, diz Charles Pessa-nha, editor da revista Dados, da área de ciências sociais, editada pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Ja-neiro (Iuperj) e uma das fundadoras do SciELO. “Temos deficiência de bibliote-cas, cinemas, teatros, centros culturais. A distribuição sempre foi deficiente e, quando falamos de livros científicos, a coisa piora. O SciELO foi a ferramenta transformadora desse cenário.”

Há, é certo, um conjunto de obstácu-los a vencer nos próximos anos para que a produção científica do país amplie sua qualidade. Se o país está em 13º lugar no ranking da produção científica mundial, cai para a 38ª posição quando se analisa o impacto dessa produção, medido em citações. “É uma posição desconfortá-vel”, diz Packer. “Como 60% dos arti-gos são em português, eles só recebem citações de revistas brasileiras.” Entre as metas do SciELO, para os próximos anos destacam-se o esforço para inter-nacionalizar a coleção, estimulando a publicação em inglês e atraindo pesqui-sadores estrangeiros para seu corpo edi-torial, além do reforço aos mecanismos de gestão das revistas e a busca de um novo modelo de financiamento. “A ciên- cia publicada em boa parte dos perió-dicos brasileiros não é a ciência de me-lhor qualidade que o país produz. Nesse caso os pesquisadores ainda preferem divulgar seus achados em periódicos internacionais e também são desesti-mulados a publicar em nossas revistas pela limitação dos critérios Qualis da Capes de avaliação dos cursos de pós- -graduação”, diz Packer. “Mas precisa-mos seguir oferecendo para as nossas revistas o que há de mais moderno em metodologias e tecnologias de indexação e publicação científica.”

Também se busca ampliar as fontes de financiamento sem comprometer o caráter livre e aberto do acesso aos ar-tigos. Uma possibilidade é cobrar dos autores uma taxa para publicação, como fazem as revistas internacionais. Outra é convencer outros órgãos a copatrocinar o programa. “A maioria dos estados bra-sileiros tem revistas SciELO que publi-cam artigos de pesquisadores do Brasil inteiro, de modo que temos a expectativa de contar no futuro próximo com o apoio das fundações de Amparo à Pesquisa dos outros estados no financiamento da co-leção”, afirma. n

Publicar mais em inglês e atrair outros pesquisadores de fora são algumas das metas

em bases de dados internacionais, co-mo a PubMed. Era preciso esperar que a edição impressa fosse distribuída e só depois os artigos eram indexados. Com o SciELO, a repercussão dos artigos é imediata”, afirma. O fator de impacto de Memórias é o mais alto entre as publica-ções científicas da América Latina. Che-gou a 2,05 em 2010. No ano 2000 era de 0,54. “O SciELO foi um ‘ovo de Colombo’ que transformou a visibilidade da ciência

Número de publicações na rede ScielO, por país e tema, e ano de início da coleção. A coleção sobre biodiversidade ainda está sendo preparada

FontE scielo, outubro 2011

eXPANSãO INteRNACIONAl

em desenvolvimento

Certificadas

brasil

chile

costa rica

venezuela

cuba

Espanha

méxico

Peru

Argentina

colômbia

Portugal

Uruguai

Jamaica

Paraguai

áfrica do Sul

bolívia

1997

1998

2000

2001

2003

2004

2005

2006

2007

2009

23985

7

15

203

1

8

39

115

87

17

71

35

36

49

início

coleções por país

Saúde Públicaciências Sociais

biodiversidade

2000

2006

2011 033

14

início

coleções temáticas

Page 40: Pesquisa Fapesp 192

Simulação computacional

indica que envelhecer pode ser

uma vantagem adaptativa

NA

SA, e

SA, N

. SM

ItH

, tH

e H

uBB

le H

eRIt

AG

e t

eAM

A derrota dos highlanders

marcos Pivetta

cIÊncIA

InícIo do Jogo Os que ficam velhos (pontos em azul) e os imortais (vermelho) se distribuem pelo quadro. em verde- -claro, as áreas ainda não ocupadas

o ExPErImEnto vIrtUAl

doIS blocoS Os times se reproduzem e dão origem a batalhões mais densos

no vErmElho No início, a equipe dos imortais ocupa mais espaços e lidera a disputa

An

Dr

é m

Ar

tin

s /

Plo

s o

ne

Page 41: Pesquisa Fapesp 192

nos filmes de cinema sobre o persona-gem Highlander, um guerreiro esco-cês que se tornou imortal no início do século XVI, o protagonista Connor MacLeod atravessa as eras comba-

tendo malfeitores e fazendo justiça sem sentir o peso da passagem do tempo. O herói não enve-lhece nunca, seu corpo simplesmente não dege-nera. A única forma de morrer é ser decapitado por um inimigo. Diante desse enredo fictício, o senso comum leva a pensar que um exército formado exclusivamente de Highlanders seria praticamente imbatível diante de uma armada equivalente de mortais.

Mas uma série de simulações computacionais feitas por um pesquisador brasileiro sugere que tornar-se senil pode ser uma vantagem evolutiva para uma população se o processo de seleção na-tural ocorrer num ambiente permeado por mu-danças. Nessa situação, o grupo cujos membros podem ficar mais velhos tende a ganhar a luta pela sobrevivência e provocar a extinção do bando dos imortais. A explicação para a vitória da população que envelhece estaria em sua capacidade maior de se moldar a alterações no hábitat e gerar mais rapidamente linhagens adaptadas ao ambiente do que os competidores dotados de uma biologia imune aos efeitos da senescência.

O trabalho, cujos resultados são aparentemente paradoxais ou ao menos contraintuitivos, foi feito pelo físico teórico André Martins, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). “Embora seja preju-dicial aos indivíduos e tenha um custo evoluti-

vo, o envelhecimento pode ser um benefício em si”, afirma Martins, que publicou o estudo, feito apenas por ele mesmo, sem colaboradores, em 16 de setembro do ano passado na revista científica PLoS ONE. “Ele permite que as novas linhagens se adaptem mais rapidamente a mudanças nas condições de vida.”

Nas simulações em que os indivíduos dos dois exércitos estavam expostos a alterações ambien-tais e mutações genéticas, o time dos mortais ga-nhou 39 de 50 batalhas contra os imortais. Essa supremacia não se manteve, no entanto, quando o cenário virtual em que ocorria a disputa era diametralmente oposto. Num ambiente estático e em que os grupos de indivíduos não sofriam al-terações em seu DNA, os Highlanders venceram todas as contendas, em geral após disputas que se estenderam ao longo de 220 gerações. “Foram testadas diferentes intensidades de mutação e de mudança ambienal e também alteramos a idade da morte por senescência”, diz o físico da USP. “A vitória dos que envelheciam foi observada numa grande faixa de variação desses parâmetros, en-quanto a dos imortais ocorreu em ambientes com mudança muito lenta ou inexistente.”

Na natureza, as condições em que as distintas po-pulações ou espécies competem costumam mudar de tempos em tempos. Por isso, segundo Martins, os resultados de suas simulações favorecem a in-terpretação de que ficar mais velho pode ter sido uma vantagem adaptativa naturalmente selecio-nada pelo processo evolutivo. “Acredito que isso seja verdadeiro, embora contrarie a teoria estabe-lecida”, comenta o pesquisador americano Joshua

_ MODelAGeM COMPutACIONAl

A vIrAdA A morte de velhos acelera adaptação ao ambiente entre os azuis. O jogo se reverte

mUndo AzUl A população dos que envelhecem domina o cenário e a vitória torna-se iminente

evOluçãO

FíSICA

Page 42: Pesquisa Fapesp 192

42 fevereiro De 2012

Mitteldorf, teórico especializado em evo-lução e modelos computacionais da Tem-ple University, da Filadélfia. “Nos últimos 50 anos, vários experimentos mostram que envelhecer é uma adaptação enquanto as teorias dizem que não pode ser.”

genes ligados ao processo de enve-lhecimento parecem ser bem pre-servados em muitas espécies de

animais. Em 2008, pesquisadores da Uni-versidade de Arkansas aumentaram em 10 vezes o tempo de vida do verme C. elegans, um dos organismos-modelo da biologia, introduzindo uma mutação num único gene. Em vez de morrer após duas sema-nas, exemplares do nematódeo viveram seis meses, alguns até nove meses. Dietas à base de restrições calóricas também têm se mostrado úteis para aumentar a vida de algumas espécies em estudos laboratoriais. Essas evidências, mais o fato de existirem nos organismos mecanismos de morte ce-lular programada, como a apoptose, costu-mam ser citadas pelos defensores da ideia de que a capacidade de se tornar senil foi uma ca-racterística escolhida pela seleção natural.

As principais teo-rias evolutivas sobre o envelhecimento das últimas décadas, no entanto, caminham no sentido oposto. Gros-so modo, defendem a ideia de que a senili-dade é uma espécie de efeito colateral, de custo a ser cobrado a longo prazo, em razão de ganhos obtidos du-rante a juventude. Por essa linha de raciocí-nio, os primeiros anos de vida seriam o momento crucial de uma espécie, quando ela está mais apta a se reproduzir e per-petuar seus descendentes. Como poucos indivíduos na natureza atingiriam a idade avançada em razão das pressões do meio, a seleção natural não teria privilegiado traços benéficos para a velhice.

Concebida em fins da década de 1950, a teoria da pleitropia antagonista sus-tenta, por exemplo, que genes benéficos na juventude, como os que aumentam a fertilidade, acabam sendo prejudiciais na idade mais avançada. Nesse caso, a

senilidade seria uma dívida contraída em função de um benefício usufruído nos primeiros anos de vida. Mais recen-temente, na segunda metade dos anos 1970, o biólogo inglês Tom Kirkwood,

atualmente professor na Universidade de Newcastle, propõs ou-tra teoria sobre o enve-lhecimento, a do soma descartável. Segundo esse ponto de vista, o organismo regula sua quantidade de energia e a canaliza priorita-riamente para as fun-ções primordiais das primeiras décadas de vida, como a reprodu-ção. Reparar o organis-mo para que ele possa se manter por um lon-go período ficaria em segundo plano, pois a tarefa teria um custo muito elevado para o

sistema metabólico. Dessa forma, haveria uma deterioração progressiva do indiví-duo, levando ao envelhecimento.

Para testar a hipótese de que o en-velhecimento pode ser uma vantagem adaptativa em si mesma, o físico André Martins construiu um modelo computa-cional com o software NetLog, que tra-balha com uma linguagem de programa-ção capaz de criar ambientes virtuais. As simulações são alimentadas por uma equação com variáveis que, de forma esquemática, regem uma disputa entre duas populações muito parecidas num

As novas gerações de uma população que envelhece se adaptam mais rápido a mudanças no ambiente

o Pro JEto

Bases teóricas para dinâmica de opiniões e aplicações em processos sociais da ciência nº 2009/08186-0

modAlIdAdEBolsa no exterior

coordEnAdorAndré Martins – eACH-uSP

InvEStImEntoR$ 75.222,99 (FAPeSP)

As imagens representam o mesmo momento de uma simulação. Na da esquerda, os membros do time que envelhece estão pintados de azul e os imortais, de vermelho. Na da direita, os dois grupos foram coloridos de verde, como se fossem uma única equipe. Os pontos em tons mais escuros, destacados pelas setas, indicam os indivíduos mais adaptados ao ambiente, que se concentram entre a população capaz de envelhecer

cenário bidimensional fechado. Há ape-nas uma diferença entre os dois lados: num grupo, o dos imortais, os indiví-duos não envelhecem nunca (portanto, não morrem por senilidade) e só podem ser eliminados por meio da competição interna ou por membros da população rival; no outro grupo, os indivíduos mor-rem em razão da competição e os que sobrevivem muito tempo a essa disputa vão tombar, mais dia, menos dia, pelo processo de envelhecimento.

A representação gráfica do cenário da disputa evolutiva é um quadrado com-posto por 2.600 pixels numa versão me-nor da simulação e 10.200 numa variação expandida. Os pontos são pintados de verde quando vagos, se não se encon-tram ocupados por nenhuma das duas populações. Ganham a cor azul se domi-nados pelo exército dos que envelhecem e adquirem tons vermelhos quando em poder do time dos Highlanders. Em cada pixel só há espaço para um membro, seja de uma ou de outra população. “Sempre que houver dois ou mais indivíduos num

An

Dr

é m

Ar

tin

s /

Plo

s o

ne

Page 43: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 43

ponto, seja da mesma população ou do grupo adversário, apenas um deles vai sobreviver”, explica Martins. É literal-mente uma luta de vida ou morte.

No início do jogo, as condições entre os dois lados são idênticas. Ambos come-çam com igual número de participantes, distribuídos aleatoriamente pelo campo de combate. As duas populações iniciam com a mesma capacidade de se adaptar ao ambiente, sofrem a mesma taxa de mutação entre as gerações e, ao longo do experimento virtual, vão se reproduzir no mesmo instante e a uma taxa idên-tica. Cada indivíduo vivo vai gerar um descendente, que herda de seus pais a característica de ser mortal ou imortal. No time dos que envelhecem há ainda uma variável na equação responsável por provocar a morte dos indivíduos sempre que, por acaso, atingirem uma certa idade. No entanto, a maioria, mas não todos, sucumbe ao ambiente compe-titivo antes de ficar idoso e ter a chance de perecer por velhice.

mortE dE vElho AcElErA AdAPtAçãoNum ambiente não estático, em que as condições naturais mudam e as sucessivas gerações de uma população sofrem muta-ções genéticas, a dinâmica da disputa vir-tual criada por Martins tende a ser a mes-ma. Formam-se rapidamente dois tipos de bloco nas simulações, opondo batalhões de soldados vermelhos, os Highlanders, contra os combatentes azuis, o time dos que podem envelhecer. Nos primeiros es-tágios do jogo, a população vermelha se torna mais numerosa, com quase o dobro de membros, e parece sinalizar claramen-te que vai vencer a disputa. A vantagem dos Highlanders tem uma razão evidente: eles só morrem devido à competição, en-quanto o outro lado perece pela pressão do meio e também por velhice.

em tonalidades proporcionais ao seu grau individual de adaptação ao meio. Quanto mais escura for a cor de um membro das duas populações, maior é o seu nível de adaptação ao ambiente. Para se certifi-car de que os mais aptos a vencer a luta pela vida se concentravam do lado dos mortais, Martins mandou ainda o progra-ma colorir os membros dos dois grupos com a mesma cor, no caso verde. Dessa forma era possível ver que os soldados em tons mais escuros de verde, ou seja, os mais bem adaptados, eram indivíduos da população que envelhecia.

Interpretações de simulações devem ser feitas com cautela. Para o biólogo Diogo Meyer, da USP, especialista em evolução, é importante que os modelos tenham “liberdade” para explorar ce-nários diversos, mas também é crucial que estejam ancorados na realidade. “A variação de longevidade que existe entre as populações e quanto a seleção natu-ral pode alterá-la são compatíveis com os parâmetros usados nas simulações?”, indaga Meyer. “Talvez tenhamos poucos dados disponíveis sobre isso, mas essa questão é um desdobramento natural dos resultados obtidos em modelagens.”

o físico teórico Roberto Kraenkel, es-pecialista no uso de modelos mate-máticos em biologia de populações

da Univerdade Estadual Paulista (Unesp), faz uma ressalva técnica ao trabalho do co-lega Martins. Segundo ele, há uma variável na equação que rege a competição entre as duas populações, denominada d, cujo conceito lhe parece um pouco misterioso e vago. “Não ficou claro para mim que con-ceito biológico essa variável representa”, afirma Kraenkel. “Mas ela é fundamental para garantir o resultado final do modelo.” Martins admite que qualquer modelo não é perfeito e, claro, será sempre uma sim-plificação da luta pela sobrevivência das espécies. “A questão que eu queria res-ponder era se o envelhecimento poderia ser uma vantagem adaptativa”, diz ele. “A simulação mostra que, em alguns casos, é possível que tenha sido assim.” Talvez seja por isso que ninguém nunca viu uma espécie parecida com o Highlander, que não envelhece nunca. n

39 vitórias

obteve o grupo que ficava mais velho em 50 disputas contra o time dos imortais

Artigo científico

MARTINS, A.C.R. Change and aging senescence as an adaptation. PLoS ONE. 16 set. 2011.

Porém em quase 80% das simulações o time dos azuis conseguia virar o jogo e levar a outra população à extinção. A morte por velhice dos indivíduos mais antigos dessa equipe, sobretudo dos que estavam longe de zonas ocupadas pelo grupo adversário, abria mais espaços va-gos no interior do território ocupado pe-los azuis. O fenômeno parece favorecer o desenvolvimento de levas de indivíduos mais bem adaptados ao ambiente entre a população dos que podem envelhecer. “As novas gerações dos dois grupos adversá-rios se adaptam às mudanças ambientais, mas esse efeito é mais rápido entre a po-pulação que pode envelhecer”, comenta Martins. É esse detalhe que a faria vencer a maioria das disputas, criando um para-doxo: envelhecer é ruim para o indivíduo, mas benéfico para um grupo.

No modelo computacional, a variável numérica que mede a taxa de adaptação média das duas populações tende a dis-parar entre os azuis num certo momento, deixando os vermelhos para trás. O pro-grama pinta os agentes de cada exército

verme C. elegans: modificação de gene aumentou em 10 vezes a vida de exemplares do nematódeou

niv

ersi

DA

De

yA

le

Page 44: Pesquisa Fapesp 192

Brasileiros começam a investigar novo material que

promete revolucionar a eletrônica e a computação

magia superficial

teXtO e IluStRAçãO Igor zolnerkevic

Page 45: Pesquisa Fapesp 192

De três anos para cá, uma coqueluche vem tomando conta da subárea da fí-sica que estuda os sólidos, a chamada física da matéria condensada. A febre do momento é uma nova classe de ma-

teriais com propriedades eletrônicas únicas, ba-tizada com o nome intimidador de isolantes to-pológicos. “Eles são fantásticos”, afirma o físico Adalberto Fazzio, da Universidade de São Paulo (USP), coordenador da área de nanotecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Fazzio testemunhou a explosão de interesse nos isolantes topológicos durante o encontro da Sociedade Americana de Física em março de 2010, quando pesquisadores do mundo inteiro se apinharam para assistir às palestras sobre as primeiras evidências conclusivas da produção relativamente barata desses materiais. Desde então, as pesquisas com isolantes topológicos só não se difundiram mais por conta da complexa teoria por trás deles e das sofisticadas técnicas necessárias para analisá-los em laboratório – de-safios encarados recentemente por dois grupos brasileiros: um teórico, liderado por Fazzio, e ou-tro experimental, coordenado pelo físico Vagner Eustáquio de Carvalho, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Segundo Carvalho, a esperança de que o novo xodó da matéria condensada seja mais que uma moda passageira continua alta. “As possibilidades de aplicações tecnológicas são reais”, diz. “Não tenho dúvida de que dentro de mais uns cinco anos teremos dispositivos eletrônicos produzi-dos a partir desses materiais.”

O segredo do sucesso dos isolantes topológicos está em sua superfície. Em trabalhos publicados entre 2005 e 2006, duas equipes norte-americanas de físicos teóricos, uma liderada por Charles Ka-ne, da Universidade da Pensilvânia, e outra por Joel Moore, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, previram que as partículas condutoras da eletricidade, os elétrons, se comportariam de modo muito estranho ao atravessarem um pedaço de cristal feito de certos metais pesados, como o bismuto. Os elétrons evitariam o interior do material, se propagando apenas na superfície do cristal. Até aí, nada de muito espetacular. O cris-tal funcionaria como o avesso de um fio elétrico: teria o miolo isolante envolvido por uma capa metálica condutora de eletricidade.

_ ISOlANte tOPOlóGICO

física

Representação de elétrons com spins alinhados

PESQUISA FAPESP 192 _ 45

Page 46: Pesquisa Fapesp 192

46 _ fevereiro De 2012

O que deixou os físicos boquiabertos mesmo foi a maneira espontaneamente ordenada como os elétrons deveriam se movimentar na superfície. Os elétrons possuem uma propriedade magnética chamada de spin, que pode ser represen-tada como uma pequena seta. Assim como os spins dos elétrons em um ímã apontam todos em uma mesma direção, conferindo a força magnética do material, os elétrons de uma corrente elétrica deslizando pela superfície de um isolante topológico têm seus spins alinhados, como uma fileira perfeita de soldados com suas baionetas apontando todas na mesma direção. Tal comportamento só havia sido observa-do antes em materiais sujeitos a campos magnéticos muito intensos e a tempera-turas extremamente baixas, próximas do zero absoluto. Já os isolantes topológicos funcionariam por si sós, sem a necessida-de de aplicar campos externos, e à tem-peratura ambiente.

Além disso, essa tendência ferrenha à ordem faz com que os elétrons passem rapidamente por pequenas rachaduras ou impurezas na superfície do cristal, sem se desviarem nem perderem energia como na maioria dos materiais. Essas correntes velozes e organizadas permitiriam aos engenheiros inaugurar a era da spintrô-nica, cuja ideia é usar o spin eletrônico não só para construir as minúsculas me-mórias magnéticas atuais, mas também novos transistores magnéticos, que pro-cessariam a informação de maneira mais rápida e energeticamente eficiente, na forma de zeros e uns codificados no spin. Há ainda trabalhos teóricos mostrando que seria possível em princípio usar o comportamento coletivo dos elétrons no isolante topológico para realizar um novo tipo de computação, a computação

quântica, exponencialmente mais rápida que a convencional.

A origem dos isolantes topológicos está na interação entre o spin e a órbita dos elétrons, fenômeno que ocorre em átomos com número atômico elevado e os físicos chamam de interação spin-órbita. Segundo a teoria, essa interação altera uma propriedade abstrata das fun-ções matemáticas que descrevem o mo-vimento dos elétrons. É a inversão dessa propriedade, chamada de paridade, que cria os estados especiais de condução elétrica na interface do material com o espaço vazio. Sem uma interação spin-órbita forte o suficiente, o material fun-cionaria como um isolante normal.

Para entender melhor a gênese e as propriedades dos estados de superfície, Fazzio e seus alunos de doutorado na USP Leonardo Abdalla e Leandro Rocha, jun-to com Tomé Schmidt e Roberto Miwa, ambos físicos da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, resol-veram com o auxílio de computadores

o ProJEtoSimulação e modelagem de nanoestruturas e materiais complexos – n° 2005/59581-6

modAlIdAdEProjeto temático

co or dE nA dorAdalberto Fazzio – IF/uSP

InvEStImEntoR$ 607.550,62 (FAPeSP)

as equações da mecânica quântica, in-cluindo a interação spin-órbita, descre-vendo a estrutura átomo por átomo de um dos isolantes topológicos mais estu-dados em laboratório, o seleneto de bis-muto (Bi2Se3).

O cristal é formado pelo empilhamento de blocos compactos de três camadas atô-micas de selênio intercaladas com duas de bismuto. Entre esses blocos de cinco átomos de espessura há um espaçamen-to maior onde as ligações interatômicas são mais frágeis. Em uma das simulações computacionais, cujo resultado ainda não foi publicado, os pesquisadores forçaram a separação entre dois desses blocos. As-sim, puderam observar, passo a passo, o nascimento dos estados de condução nas superfícies criadas pela abertura da fen-da no cristal, verificando qual devia ser o tamanho mínimo da fenda para que eles surgissem – 7,2 angstroms, no caso.

Em um outro trabalho, a ser apresen-tado dia 28 deste mês em um encontro da Sociedade Americana de Física, em Boston, Fazzio, Schmidt e Miwa usaram as mesmas técnicas computacionais para investigar o que aconteceria com o sele-neto de bismuto se fosse exposto ao ar e alguns átomos de oxigênio se alojassem no cristal. A simulação dos pesquisadores mostrou que, diferentemente de materiais

novo material funciona como um fio ao avesso: é isolante no interior e conduz eletricidade na superfície

marcha de elétrons

Page 47: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 47

lidade necessária para estudar as pro-priedades de isolantes topológicos.

Nesse meio-tempo, a equipe de Carva-lho foi a primeira a desenvolver em um laboratório brasileiro a técnica conhe-cida como Arpes, sigla em inglês para espectroscopia de fotoelétrons com re-solução angular. Nesse procedimento experimental, as partículas de luz emi-tidas por uma lâmpada especial colidem com uma amostra mantida em um am-biente de ultra alto vácuo e e arrancam seus elétrons. Um espectroscópio de alta resolução mede então as propriedades desses elétrons, permitindo deduzir qual era seu estado no material. Foi por meio da Arpes que se confirmou a existência dos isolantes topológicos.

Os pesquisadores mineiros dominam outra técnica, a difração de elétrons de baixa energia (Leed, na sigla em inglês), por meio da qual conseguem determinar a estrutura atômica na superfície das amos-tras. A ideia deles agora é usar a Leed em conjunto com a Arpes para investigar qual a influência da posição dos átomos nos estados eletrônicos do material.

Outro experimento promissor que o grupo vem conduzindo é a deposição de camadas de um átomo de espessura, de antimônio, cobre, estanho ou manga-nês, sobre os cristais de Bi2Te3 e Bi2Se3. Pesquisas recentes mostraram que a pre-sença desses filmes metálicos ultrafinos diminui a densidade de elétrons sendo conduzidos no meio do material. “A es-perança”, explica Carvalho, “é que, à me-dida que controlarmos a presença desses filmes, a gente consiga fazer um isolante topológico verdadeiro.” n

padrão ordenado de spins. Enquanto no material puro os spins dos elétrons ficam alinhados paralelamente à super-fície do material, a presença do cobal-to introduz novos estados, alinhados perpendicularmente à superfície. Esses estados de spin perpendiculares pode-riam ser usados para codificar memórias magnéticas em futuros dispositivos em escala atômica.

bUScA PElo IdEAlPara realizar todas essas aplicações tec-nológicas, porém, ainda há vários obs-táculos a serem vencidos. O principal é que, de fato, as amostras de seleneto de bismuto e de outro material promissor, o telureto de bismuto (Bi2Te3), analisadas até agora se comportaram como isolantes topológicos apenas aproximadamente. Inevitáveis impurezas fazem com que seu interior conduza um pouquinho de eletricidade. Essa corrente residual pode interferir na corrente de spin ordenado na superfície. “Conseguir estados de su-perfície completamente limpos é funda-mental para uma aplicação tecnológica desses materiais”, explica Carvalho.

O grupo de pesquisadores da UFMG deu sorte. Quando o interesse pelos iso-lantes topológicos explodiu, Carvalho e seus colegas já tinham prontas amostras de Bi2Te3 e Bi2Se3, que haviam produ-zido para um trabalho anterior, em que estudaram as propriedades termoelétri-cas desses materiais.

Um estudo feito em colaboração com o grupo do físico Philip Hofmann, da Universidade de Aarhus, Dinamarca, e apresentado em agosto de 2011 na Dé-cima Conferência Internacional de Es-truturas de Superfície, em Hong Kong, mostrou que as amostras tinham a qua-

Artigo científicoSCHMIDT, T.M.; et al. Spin texture and magnetic anisotropy of Co impurities in Bi2Se3 topological insulators. Physical Review B. v. 84. 13 de dez. 2011.

como o silício, no qual a oxidação pode estragar completamente suas proprie-dades eletrônicas, o seleneto de bismu-to permanece um isolante topológico na presença do oxigênio. A oxidação apenas aumenta levemente a energia dos estados condutores – um efeito que poderia ser explorado para controlar esses estados em futuras aplicações tecnológicas.

Já em um estudo publicado em de-zembro de 2011 na revista Physical Re-view B, o trio de físicos teóricos simu-lou a inserção de átomos de cobalto no seleneto de bismuto. Ao contrário do oxigênio, as propriedades magnéticas do cobalto fazem com que esse átomo inter-fira na interação spin-órbita, destruindo a “proteção” dos estados condutores de superíficie contra impurezas e de-

feitos no cristal. No entanto, os átomos de cobalto geram à sua volta um novo

Ali

yA

zD

An

i / u

niv

ersi

DA

De

Pr

inc

eto

n/

scie

nc

e P

ho

to

lib

rA

ry

/lA

tin

sto

cK

FON

TE

AD

Alb

ert

o f

Az

zio

- u

sP

balé de elétrons

elétrons se propagam em superfície com defeitos de isolante topológico

Page 48: Pesquisa Fapesp 192

48 _ fevereiro De 2012

estudo contesta visão de que a maioria

das espécies típicas do cerrado

e da caatinga se originou nas florestas

há algumas décadas, a fauna de mamí-feros do cerrado e da caatinga costu-mava ser descrita como uma versão empobrecida dos animais que habita-vam as duas grandes florestas nacio-

nais, a amazônica ao norte e a mata atlântica, na porção litorânea do país. A definição se amparava na constatação de que muitas das espécies pre-sentes nos dois biomas vizinhos eram também compartilhadas com as densas matas adjacentes. Até as chamadas espécies endêmicas do cerrado e da caatinga, aquelas que só eram encontradas nessas áreas de vegetação predominantemente aberta, e em mais nenhuma outra, descenderiam de linhagens ancestrais associadas às florestas.

Um estudo recente, feito por três biólogos, ques-tiona essa visão e sustenta exatamente o contrário: cerca de 80% das espécies endêmicas conhecidas de mamíferos do Brasil Central e semiárido do Nordeste têm suas raízes em regiões de vegetação aberta do continente sul-americano, do tipo sava-na, com poucas árvores e mais gramíneas, como o próprio cerrado e seu vizinho chaco, área plana e relativamente seca que se estende por partes dos territórios do Paraguai, Bolívia e Argentina, além de um pequeno trecho no centro-oeste nacional.

os mamíferos da discórdia

Marsupiais do gênero Cryptonanus e morcego da espécie Xeronycteris vieirai: dois exemplos de mamíferos endêmicos, respectivamente, do cerrado e da caatinga

_ BIOMAS BRASIleIROS

1

2

Page 49: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 49

FOT

OS

1. m

Ar

iA e

lin

A b

ich

uet

te

2. r

Ao

ne

belt

o m

enD

es

A ideia é defendida por Ana Paula Carmig-notto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Mario de Vivo, curador da seção de mamíferos do Museu de Zoologia da Universi-dade de São Paulo (USP), e Alfredo Langguth, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), num artigo que será um dos capítulos do livro Bones, clones, and biomes – The history and geography of recent neotropical mammals, a ser lançado em meados deste ano pela editora da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. “Conseguimos demonstrar que muitas das espécies endêmicas de áreas abertas do cerrado e da caatinga não se originaram, como as pessoas pensavam, de espécies irmãs das florestas vizinhas”, afirma Vivo, cujos estudos foram basicamente finan-ciados por um projeto temático feito no âmbito do programa Biota-FAPESP. “Elas, na verdade, pertencem a linhagens de formação aberta, com ramificações em outros biomas desse tipo na América do Sul.”

A hipótese se mostra mais plausível para a fauna típica de mamíferos do cerrado, onde, co-mo no vizinho chaco, a presença de vastas áreas abertas era ainda mais expressiva por volta de 10 mil anos atrás do que é atualmente. A exis-

tência por um longo período de tempo dessa grande zona de savana no coração da América do Sul funcionou, de acordo com os pesquisa-dores, como o berço de boa parte das espécies mais típicas do cerrado.

No caso da caatinga, o papel das áreas abertas como origem de espécies singulares de mamífe-ros é aparentemente menos palpável, mas não totalmente desprezível. No que é hoje o semiá-rido nordestino, houve uma floresta tropical há alguns milhares de anos. O dado explica por que as matas do passado, e as de hoje, parecem real-mente ter sido mais importantes para o desen-volvimento das poucas espécies únicas de ma-míferos da caatinga, bioma onde esse grupo de animais é menos diversificado que no cerrado. Ainda assim, os três autores do artigo dizem que é um exagero creditar às florestas toda a cota de endemismo da caatinga.

Para chegar a essas conclusões, o trio de pes-quisadores fez uma grande revisão da literatu-ra científica publicada sobre o tema e também foi a campo estudar alguns animais específicos do cerrado e da caatinga e sua distribuição geo-gráfica. O resultado do trabalho gerou uma lista atualizada não só das espécies presentes exclu-

BIOGeOGRAFIA

zOOlOGIA

Page 50: Pesquisa Fapesp 192

50 _ fevereiro De 2012

cAAtIngA

cErrAdo

chAco

227totAl

25EndÊmIcAS

153totAl

8EndÊmIcAS

sivamente nos dois biomas, mas de to-dos os seus mamíferos conhecidos. A biodiversidade encontrada foi maior do que se esperava.

De acordo com o trabalho, o cerrado, cujo território abrange cerca de 2 mi-lhões de quilômetros quadrados e abarca o pantanal, possui 227 espécies de ma-míferos, 33 a mais do que encontrara o último inventário, de 2002. Com menos da metade da área e mais seca, a caatin-ga, segundo o novo estudo, conta com 153 espécies de mamíferos, 10 a mais do que elencara o levantamento ante-rior, de 2008.

os morcegos e os roedores são as duas ordens de mamíferos com maior número de espécies conhe-

cidas em ambos os biomas. Os primeiros representam mais de um terço das espé-cies do cerrado e mais da metade das da caatinga. Os segundos respondem por outro terço das espécies do cerrado e um quarto das da caatinga. Em seguida, com um número bem menor de espécies, destacam-se os carnívoros e os marsu-piais (ver quadro na página 45).

É interessante notar que 120 espé-cies de mamíferos estão presentes tanto na caatinga como no cerrado. “A maior parte dos mamíferos desses dois bio-mas é compartilhada entre si ou com a floresta amazônica, a mata atlântica ou o chaco”, afirma Ana Paula Carmignot-to. “Essa questão sempre foi destaca-da em outros estudos e pouco se falava das espécies endêmicas.” Segundo Vi-vo, muitos trabalhos davam a entender que as áreas abertas da América do Sul não tinham gerado nada de original em termos de novas formas de mamíferos. Quase tudo visto era como uma ramifi-cação de linhagens que evoluíram nas matas fechadas.

A impressão, falsa segundo o trio de autores, talvez decorra da constatação de que o universo dos mamíferos ex-clusivos do Brasil Central é realmente pequeno e concentrado. Os pesquisa-dores contaram 25 espécies exclusivas do cerrado (21 de roedores, 2 de marsu-pias, 1 de primata e 1 de morcego) e 8 da caatinga (5 de roedores, 1 de primata, 1 de marsupial e 1 de morcego). Falar de endemismo de mamíferos no cerrado e na caatinga é, portanto, quase sinônimo de falar de roedores. A distribuição ge-ográfica das espécies encontradas nos

dois biomas e os estudos filogenéticos, que traçam seu possível parentesco e relação evolutiva com animais de outras regiões, levaram os biólogos a defender dois padrões de endemismo.

O primeiro compreende espécies de mamíferos hoje típicas do cerrado ou da caatinga que derivaram de gêneros origi-nários da floresta amazônica ou da mata atlântica. Os exemplos clássicos podem ser encontrados sobretudo na ordem dos primatas. O Callithrix penicillata, popular-mente denominado sagui-de-tufo-preto ou mico-estrela, é um macaco que vive somente no cerrado, mais precisamente em trechos arbóreos desse ecossistema. É a única das mais de 20 espécies do gê-nero Callithrix que habita uma zona de savana, fora da floresta equatorial ou da

o ProJEtoSystematics evolution and conservation of eastern Brazilian Mammals n° 1998/05075-7

modAlIdAdEProjeto temático

co or dE nA dorMario de vivo – uSP

InvEStImEntoR$ 529.250,05 (FAPeSP)

Sem rabo, o mocó-acrobata é um roedor endêmico do cerrado. Presente em Goiás e talvez no tocantins

KErodon AcrobAtA

3

De hábito terrestre, o rato-de- -chão tem como hábitat o Brasil Central, no centro do cerrado

thAlPomyS cErrAdEnSIS

2Denominado vulgarmente de preá, a espécie vive em áreas de vegetação aberta do cerrado e da caatinga

gAlEA SPIxII

1

A riqueza de cada biomaNúmero de espécies encontradas de mamíferos

FON

TE

An

A P

Au

lA c

Ar

mig

no

tt

o, m

Ar

io D

e v

ivo

e A

lfr

eDo

lA

ng

gu

th

Fo

to

S 1.

mA

ur

o t

eix

eir

A Ju

nio

r 2

. Ag

ust

in c

Am

Ac

ho

3. c

ris

tiA

no

no

gu

eir

A 4

. Ag

ust

in c

Am

Ac

ho

5. m

Au

ro

tei

xei

rA

Jun

ior

Page 51: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 51

endêmicas do cerrado e da caatinga seja derivada de linhagens de animais origi-nários de áreas abertas. “Não sei como poderia justificar a possível origem de espécies endêmicas (desses dois biomas) em ambientes abertos”, afirma Alho. Ele cita exemplos de primatas, roedores e

morcegos do cerrado cujas linhagens seriam provenientes de áreas com florestas.

Em sua maioria, as espécies menciona-das por Alho são as mesmas que Ana Pau-la, Vivo e Langguth admitem ser mesmo originárias de matas, embora sustentem que esses casos são a exceção, e não a regra da história evolutiva da fauna endêmica de mamíferos do centro do Brasil. Uma discor-

dância explícita diz respeito às origens de uma espécie extinta de roedor, Jus-celinomys candango, o rato-candango encontrado apenas durante a constru-ção de Brasília em 1960 e, desde então, nunca mais visto. “Ele também dependia de hábitat florestado”, diz Alho. Vivo e seus colegas acham que não.

Outros pesquisadores acreditam que as ideias expostas no capítulo do livro sobre os mamíferos endêmicos do Brasil Central não devem ser descartadas sem estudos mais aprofundados. “É um tra-balho muito interessante e acho que eles podem ter razão”, afirma o biólogo Rui Cerqueira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A hipótese deles é bastante razoável.” Segundo o pesquisa-dor fluminense, a noção de que a fauna de mamíferos do cerrado e da caatinga seria uma versão empobrecida dos animais florestais está realmente ultrapassada e mais estudos sobre a questão, sobretudo no semiárido nordestino, onde as coletas de animais são pouco frequentes, preci-sam ser feitos. n marcos Pivetta

mata litorânea. O mesmo ocorre com o Callicebus barbarabrownae, o guigó-da- -caatinga, espécie hoje ameaçada de ex-tinção cuja origem deve ter sido a vizinha mata atlântica. Alguns roedores, marsu-piais e morcegos (como o Lonchophylla dekeyseri) do cerrado e da caatinga tam-bém se encaixam nes-sa situação.

O segundo padrão de endemismo é o de linhagens de animais que há muito tem-po estão associadas a biomas de vegeta-ção predominante-mente aberta, como o próprio cerrado e a caatinga no passado remoto e o chaco. “A maioria dos mamífe-ros endêmicos do cerrado e da caatinga pertence a essa cate-goria”, afirma Vivo. As três espécies de roedores do cerrado do gênero Juscelinomys estão nessa situa-ção. Esse também é o caso de duas es-pécies endêmicas de roedores do gênero Thalpomys, duas do gênero Wiedomys e uma do gênero Kunsia, entre outras.

A história evolutiva dos pequenos marsupais do gênero Thylamys é ainda mais surpreendente. Exis-

tem nove espécies do animal na Améri-ca do Sul, cinco encontradas em áreas de vegetação aberta da região dos Andes. As duas espécies endêmicas do Brasil – a Thylamys karimii, popularmente deno-minada catita e encontrada no cerrado e na caatinga, e a Thylamys velutinus, a catita-anã-de-rabo-gordo, presente ape-nas no cerrado – exibem os traços mais antigos (basais) do gênero e não teriam relações de parentesco com marsupiais originários de áreas florestais. “É um caso raro”, comenta Ana Paula. “Na maioria da vezes, a diversificação dos grupos de ma-míferos associados às formações abertas da América do Sul ocorreu nos Andes e depois as linhagens se dispersaram e se diferenciaram aqui.”

O biológo Cleber Alho, professor ti-tular aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e hoje docente da pós- -gradução da Universidade Anhanguera-Uniderp, do Mato Grosso do Sul, discor-da da ideia de que a maioria das espécies

Artigo científico

CARMIGNOTTO, A. P. et al. Mammals of the Cerrado and Caatinga – Distribution Patterns of the Tropical Open Biomes of Central South America. Capítulo do livro Bones, clones, and biomes – The history and geography of recent neotropical mammals. No prelo.

A fauna do cerrado e da caatinga tem 120 espécies comuns de mamíferos

Pequeno marsupial típico de dois biomas da América do Sul, o cerrado e a caatinga

thylAmyS KArImII

4

No Brasil, essa espécie de tatu-de-rabo-mole é encontrada no cerrado, na caatinga e também na floresta amazônica

cAbASSoUS UnIcInctUS

5

Entre morcegos e roedores

Antas

Carnívoros

Coelhos

Marsupiais

Morcegos

Preguiças e tamanduás

Primatas

Roedores

tatus

ungulados

19

8

8

6

80

78

23

14

6

5

3

77

35

8

11

11

33

CAAtINGA

CeRRADO

quantidade de espécies separada por tipos de mamíferos

Page 52: Pesquisa Fapesp 192

Movimentação de Gondwana quase transformou

o Nordeste brasileiro em parte da áfrica

Salvador nogueira

_ DeRIvA CONtINeNtAl

A primeira fratura

Por pouco, uma boa porção do que hoje é o Nordeste brasileiro não se tornou parte da África durante a movimentação dos grandes blocos rochosos que formam os continentes, a chamada deriva conti-

nental. A hipótese de que o Nordeste pudesse ter se partido surgiu nos anos 1960 e ganhou agora o reforço de evidências obtidas por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade de Brasília (UnB).

Nesse cenário, que chegou a ser geologica-mente esboçado, mas acabou interrompido por razões ainda não totalmente compreendidas, a América do Sul teria uma área bem menor, e o continente africano uma forma que lembraria mais um triângulo do que o atual “L” de cabe-ça para baixo. “O Carnaval de Salvador teria de ser brincado do outro lado do oceano”, comenta David Lopes de Castro, geofísico da UFRN e um dos quatro autores do estudo.

A pesquisa, publicada no Journal of Geodyna-mics, retrata a evolução da chamada bacia Poti-guar, formação localizada na costa do Ceará e do Rio Grande do Norte, a última parte da América do Sul a se desprender da África.

Como se sabe, ao longo do tempo geológico, os continentes estão numa dança constante, ora se juntando, ora se afastando, em razão da dinâmica das placas tectônicas. Essas placas rígidas, de até 100 quilômetros de espessura, deslizam vagaro-samente carregando consigo o que há em cima delas, como se fossem imensas balsas navegando sobre o interior pastoso da Terra.

Cerca de meio bilhão de anos atrás, África, Amé-rica do Sul, Austrália, península Arábica, Índia e Antártida estavam reunidas num supercontinente que os geólogos batizaram de Gondwana.

52  fevereiro De 2012

“Na região que hoje é o noroeste africano e o nordeste sul-americano havia uma cadeia de montanhas, não muito diferente dos Andes”, diz Francisco Hilário Bezerra, coautor da pesquisa, também da UFRN.

A região era instável, como seria de esperar de um pedaço de terra em via de se dividir em dois. A separação completa entre América do Sul e África aconteceu cerca de 100 milhões de anos atrás. O racha deu origem à bacia Potiguar, do lado sul- -americano, e à bacia Benue, do lado africano. No meio, nasceu o oceano Atlântico.

dEcIFrAndo A dIvISãoO que o grupo brasileiro se propôs a fazer foi buscar as peças do quebra-cabeça dos dois lados do oceano, a fim de descrever principalmente as características geológicas do lado de cá.

Os pesquisadores trabalharam com dados gra-vimétricos e magnetométricos. Apesar dos no-mes complicados, são técnicas que se baseiam em conceitos simples. O primeiro diz respeito a variações no campo gravitacional da Terra, o segundo, no campo magnético.

Pode parecer estranho, mas a massa terrestre – responsável pelo campo gravitacional – não está igualmente distribuída em todo o globo. Por conta disso, há flutuações regionais e, ana-lisando-as, os geofísicos conseguem calcular o que há por baixo do solo.

A mesma coisa se dá com relação ao campo magnético. Dependendo da composição das ro-chas sob o solo, ele aparece com maior ou menor intensidade. “Depende da intensidade de magne-tização de cada rocha”, explica David Castro.

“As rochas sedimentares que formam a bacia Potiguar têm campo magnético de baixa inten-

Page 53: Pesquisa Fapesp 192

FON

TE

cA

str

o, D

. l. E

t a

l. I

MA

gEN

S 1.

nA

sA /

co

rbi

s /

glo

wim

Ag

es 2

. mA

riA

so

usA

/ u

frn

PESQUISA FAPESP 192  53

sidade e isso gera o contraste com as rochas do embasamento”, conta.

Os dados brutos, em sua maioria, não foram coletados pelos próprios cientistas. Do lado brasi-leiro, muitas das informações vieram de levanta-mentos pregressos feitos pela Petrobras e repas-sados aos pesquisadores pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Já do lado africano, as informa-ções vieram de bancos de dados internacionais de acesso livre. Ainda assim, o grupo precisou coletar alguns dados gravimétricos. O esforço consistiu em levar um gravímetro – dispositivo um pouco maior que um computador convencional – pelas estradas do Rio Grande do Norte e do Ceará e fazer medições em diversos pontos das viagens. “Nós o colocamos no chão, fazemos a medida e seguimos em frente”, diz Castro.

Muitos dos dados fornecidos pela ANP foram coletados por aerolevantamentos – em sobre-voos de avião, são tomadas medidas que ajudam a estimar o campo geomagnético da região. No entanto, os pesquisadores optaram por não uti-lizar dados gravimétricos coletados por satélites nas regiões continentais. Embora eles ofereçam uma cobertura muito mais ampla de todo o glo-bo, a resolução não seria suficiente para dar o nível de precisão que eles buscavam para o de-talhamento da constituição da bacia Potiguar e suas adjacências.

A linha vermelha marca a área onde provavelmente ocorreu o início da separação entre áfrica e América do Sul, que gerou as fraturas sobre as quais se assentam as bacias Potiguar, Jatobá e tucano-Recôncavo, no Nordeste brasileiro (acima)

bacia Jatobá

áFrIcA

brASIl

OCeANOAtlâNtICO

bacia Potiguar

bacia tucano- -recôncavo

1

2GeOlOGIA

Page 54: Pesquisa Fapesp 192

54  fevereiro De 2012

Em média, os pesquisadores tomavam uma medida a cada quilômetro (alguns dos dados obtidos com a ANP têm espa-çamento ainda menor, de 500 metros). Reunindo todas essas informações, eles puderam estimar a configuração do sub-solo daquela área. Com a gravimetria, é possível verificar as características de ro-chas a até 50 quilômetros de profundida-de. No caso da magnetometria, o alcance é menor, mas ainda assim impressionante: cerca de 20 quilômetros.

Os dados das duas técnicas foram en-tão combinados para produzir o levan-tamento da região – por vezes chegando a mapear a rocha até a interface entre a crosta da Terra e a camada imediata-mente inferior, o manto. Com isso, os pesquisadores conseguiram identificar o alinhamento preciso da bacia Potiguar com outras duas, adjacentes e situadas mais ao sul, a bacia Jatobá e a Tucano- -Recôncavo. Juntas, suas bordas traçam uma linha no sentido norte-sul, que vai do limite entre o Ceará e o Rio Grande do Norte ao nordeste da Bahia.

FrAtUrA ProFUndACom a análise precisa dos dados da Po-tiguar, eles conseguiram identificar o alinhamento e a presença de uma fratura muito profunda – acredita-se que esse seja o sinal mais claro de que Gondwa-na originalmente começou a se partir naquela região, em vez de mais para o leste, como acabou ocorrendo milhões de anos mais tarde.

A pergunta que não quer calar, dian-te dessa evidência surpreendente de um

-cabeça que acabaram ficando em lados opostos do Atlântico.

Quando dois continentes se separam, a divisão não é muito diferente das criadas pelo homem com suas fronteiras. Assim como o Muro de Berlim dividiu famílias e até casas na capital alemã após a Se-gunda Guerra Mundial, a separação en-tre a América do Sul e a África apartou regiões-irmãs, constituídas por formações geológicas que começam num lado do Atlântico e terminam no outro.

Por essa razão, não foi surpresa quando o novo mapeamento revelou falhas geológicas com continuida-de linear da América até a África. Chama a atenção o fato de que, em 130 milhões de anos, as coisas quase não tenham mudado, ainda que um oceano tenha nascido entre os dois continentes.

A bacia Potiguar tem in-teresse especial não só pela

curiosidade científica, mas também pelo potencial econômico – trata-se de uma região com consideráveis reservas de petróleo. Daí a abundância de dados co-lhidos pela Petrobras. “A bacia é o que se convencionou chamar de um campo de petróleo maduro, e as grandes reservas já foram descobertas”, diz Castro.

Para ele, o estudo pode ajudar em fu-turas prospecções, mas não só na Amé-rica do Sul. “É possível, a partir dos re-sultados, procurar as mesmas situações geológicas na África. Dizem que por lá também tem o pré-sal, tal como cá.”

Uma contribuição dos novos resultados é realimentar a pesquisa básica. Ou seja, tudo começa com prospecção científica, passa à exploração econômica, que agora, com os dados colhidos, leva tudo de volta à ciência. E assim o ciclo prossegue.

“O que estamos buscando são os deta-lhes finos, tentar entender a história evo-lutiva da região”, diz. “E, de forma genéri-ca, também é importante para prosseguir com a busca por mais petróleo, pois pas-samos a conhecer melhor os mecanismos que o geram e o acumulam.” n

FON

TE

cA

str

o, D

. l.;

Et a

l.

quase-racha continental, é: por que ele não foi até o fim? Ninguém tem uma resposta exata, mas especula-se que aquela região pudesse ser mais resistente à quebra que o local onde de fato ocorreu, centenas de quilômetros a leste. Além disso, alguns geó- logos sugerem que a tensão iniciada mais para dentro do continente sul-americano acabou se transferindo para outras falhas, levando ao rompimento em outro ponto. Contudo, ainda não há evidências con-clusivas que expliquem a interrupção da

quebra na borda da bacia Potiguar. É razão, portanto, para seguir pesquisando.

O trabalho do grupo brasileiro, do qual participa o geólogo Reinhardt Fuck, da UnB, aprofundou uma linha de pesquisa estabelecida em meados dos anos 1990 pelo pesquisador Roland Raymond Trom-pette, que já foi professor da Universida-de de São Paulo e hoje trabalha no Cen-tro Nacional de Pesquisa Científica da França. O estudo brasileiro valida os re-sultados do francês e dá mais detalhes da geologia da região, além de mostrar como se encaixam as peças do quebra-

Fratura profunda sugere que gondwana começou a se partir mais a oeste

cicatriz geológicaProfundidade da bacia sedimentar em que se assentam o Rio Grande do Norte e o Ceará varia de 22 a 31 quilômetros

latitude

Profundidade (km)

longitude

Profundidade (km)

14,3

22,3

26,3

27,8

28,4

31,0

OCeANO AtlâNtICO

BACIA POtIGuAR

Artigo científicoCASTRO, D.L. et al. Influence of Neoproterozoic tectonic fabric on the origin of the Potiguar Basin, northeastern Brazil and its links with West Africa based on gravity and magnetic data. Journal of Geodynamics. v. 54, p. 29-42. mar. 2012.

Page 55: Pesquisa Fapesp 192

biota-bioen-PFPmcg Joint Workshop: science and Policy for a greener economy in the context of Rio+20

A FAPeSP vai realizar nos dias 6 e 7 de março um workshop conjunto de seus programas de pesquisa sobre biodiversidade (Biota), bioenergia (Bioen) e mudanças climáticas globais (PFPMCG), com o objetivo de contribuir para as discussões da Conferência das Nações unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (uNCSD), também chamada de Rio+20, que acontecerá em junho no Rio de Janeiro.

O workshop vai abordar o tema central da Rio+20, que é a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza, além de apresentar a contribuição da pesquisa paulista para a conferência, com ênfase em tópicos como a produção de bioenergia, os mecanismos de mitigação das mudanças climáticas e a conservação da biodiversidade, entre outros.

6 e 7 de março, das 9h00 às 17h00Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo - FAPeSPAuditório Carvalho PintoRua Pio XI, 1500, 4º andar - Alto da lapa, São Paulo

Informações e inscrições: www.fapesp.br/rio20

workshop conjunto biota-bioen-PfPmcg: ciência e políticas para uma economia mais verde no contexto da rio+20

eDu

Ar

Do

ces

Ar

Page 56: Pesquisa Fapesp 192

tEcnologIA

56 fevereiro De 2012

Page 57: Pesquisa Fapesp 192

o Brasil fechou 2011 com uma base de 242,2 milhões de assinantes de telefonia móvel, o que dá uma mé-dia de 123 celulares para cada grupo de 100 habitantes – ou seja, mais de

um celular por brasileiro. A evolução em relação ao final do ano anterior foi de 39,3 milhões de te-lefones. No mesmo período, a produção desses aparelhos no país atingiu 64 milhões de unidades, das quais 7,2 milhões foram exportadas. Esses nú-meros fazem do Brasil um dos mais aquecidos e cobiçados mercados de telefonia celular do mun-do, ocupando o quinto lugar no ranking global de contratos de celulares. Mas poucos sabem que o Brasil também possui alguns resultados impor-tantes quando o assunto é inovação tecnológica em telefonia móvel.

Os principais fabricantes de celulares instala-dos no país, como Nokia, Motorola, Sony Erics-son, Samsung e LG, possuem centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e investem milhões de dólares anualmente para criar soluções ino-vadoras que irão equipar modelos vendidos no Brasil e no mundo. Aparelhos que recentemente

conexão celular

se transformaram em pequenos computadores pessoais com a possibilidade de acesso à internet, leitura de e-mails, localização por satélite, além de recepção de rádio e TV digital.

As inovações realizadas no país estão basica-mente atreladas a softwares, aplicativos, sistemas de produção e testes de produtos que as empresas trazem para o país, mas há também uma vasta criação local muitas vezes em colaboração com institutos independentes como o Centro de Es-tudos e Sistemas Avançados de Recife (Cesar), em Pernambuco, o Venturus – Centro de Inova-ção Tecnológica, de Campinas (SP), e o Institu-to Eldorado, com unidades em Campinas, Porto Alegre (RS) e Brasília.

Embora considere importante os investimentos em P&D feitos pelos fabricantes de celulares no Brasil, o pesquisador Rodrigo Abdala Figueiras de Sousa, da Diretoria de Estudos e Políticas Se-toriais de Inovação, Regulação e Infraestrutura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que não ocorrem no país as chama-das inovações radicais, que levam ao desenvol-vimento de novos produtos, transformam a tec-

Cresce a participação de

softwares para a telefonia móvel

desenvolvidos por fabricantes

de aparelhos no país

_ teleCOMuNICAçõeS

teXtO yuri vasconcelos

IluStRAçãO gabriel bitar e nana lahóz

PESQUISA FAPESP 192 57

economia

tecnologia da informação

Page 58: Pesquisa Fapesp 192

58 fevereiro De 2012

nologia e criam valor para a empresa e o país. “Uma pesquisa a ser publicada neste ano vai mostrar que o Brasil não participa de elaborações mundiais de tecnologias de informação e comuni-cação”, afirma Sousa.

Os destaques tecnológicos realizados no país são de pequeno número, mas alguns conquistam espaço e visibilida-de no exterior. É o caso da plataforma MotoDev, destinada ao desenvolvimen-to de aplicativos em Android, sistema operacional desenvolvido pelo Google que está sendo cada vez mais aceito pa-ra equipar os aparelhos recém-saídos da linha de produção. O sistema foi de-senvolvido pelo Instituto Eldorado em parceria com a Motorola, uma união que vem desde o final dos anos 1990, quando o instituto exerceu a coordenação do programa de capaci-tação tecnológica da empresa.

“O MotoDev é uma plataforma aberta, livre, usada no mundo todo. No ano passado, foi re-conhecido como o aplicativo mais amigável no Eclipse Com 2011, uma conferência internacio-nal sobre ferramentas abertas para softwares promovida pela Fundação Eclipse, do Canadá. Esse prêmio ajudou a nos projetar internacio-nalmente”, conta Loiberto Ararigboia Verwiebe, gerente de arquitetura e engenharia de sistemas do Instituto Eldorado. Ele explica que o foco da instituição é o desenvolvimento de softwares para sistemas operacionais de celulares e que, além da Motorola, já foram feitos projetos em parceria com a Samsung.

Em 2011, o Eldorado ganhou o Prêmio Finep de Inovação, concurso da Financiadora de Estudos e Projetos para empresas e instituições de pes-quisa que investem em inovação. A participação do instituto se deu por meio de seis projetos das áreas de TI e Telecom desenvolvidos em sua uni-dade de Campinas, entre eles o Acesso Fácil, uma plataforma digital de distribuição de conteúdos que permite enviar aplicativos, jogos, livros, ar-quivos de áudio e vídeo para qualquer dispositivo conectado à internet. Seu principal diferencial em relação aos concorrentes é a capacidade de reconhecer o dispositivo que se conecta com ele, seja um celular, tablet, notebook , TV ou qualquer outro equipamento, distribuindo conteúdos ade-quados à tecnologia de cada aparelho. “O Acesso Fácil começou a ser desenvolvido em 2010 e nas-ceu para ser usado na distribuição de conteúdos para celulares”, afirma Verwiebe.

Um bom exemplo de aplicativos para celulares desenvolvidos no Brasil e que já ganhou o mun-do é o Track Id, criado pelo Venturus em par-ceria com a Sony Ericsson. Essa empresa é uma joint-venture da japonesa Sony Corporation com

a sueca Ericsson, que foi desfeita e passou a osten-tar apenas a marca Sony em outubro de 2011. O Track Id é uma aplicação para reconhecimento de músicas a partir de uma pequena amostra grava-da pelo aparelho ou pela aproximação do celular de um equipamento eletrô-nico que toca música ou mesmo do rádio do pró-prio celular. A amostra é enviada para um servidor que contém mais de 2,5 milhões de músicas dis-

poníveis e é atualizado constantemente. O servi-dor devolve como resposta ao usuário o nome da música, cantor, álbum, biografia e músicas mais famosas desse artista ou banda.

Sediado no Polo II de Alta Tecnologia de Cam-pinas, o Venturus é, desde 2003, parceiro estra-tégico da Sony Ericsson, que tem centros de pes-quisa e desenvolvimento na Suécia, China, Japão, Estados Unidos. “Somos considerados o centro de pesquisa deles no país, mesmo sendo um ins-tituto parceiro. As aplicações que desenvolvemos para a Sony Ericsson possuem o mesmo nível de complexidade daquelas feitas nos demais cen-tros de pesquisa mundiais da empresa”, destaca Marcelo Abreu, gerente de programa do cliente Sony Ericsson no Venturus. “Temos três linhas de pesquisa de softwares: aplicações globais, que é o carro-chefe da parceria, protótipos de softwares

Uma aplicação para reconhecimento de músicas a partir de uma pequena amostra gravada pelo aparelho celular

Page 59: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 59

Outra aplicação recente surgida no Brasil e que já está em muitos modelos de celulares da marca Nokia no mundo é o aplicativo Facelock, que reconhece o rosto do dono do aparelho e desbloqueia o telefone automaticamente. Ba-sicamente, o aplicativo compara duas imagens, uma previamente armazenada no aparelho – do rosto do dono do celular – e outra capturada pela câmera frontal. “Esse aplicativo foi vencedor do concurso Nokia World 2010 e hoje é usado no mundo todo”, diz André Erthal, diretor da área de experiências em serviços no Instituto Nokia de Tecnologia (INdT), o centro de pesquisas da empresa que conta com filiais em Manaus (AM), Brasília, Recife (PE) e São Paulo.

“Somos o principal braço tecnológico da Nokia na América Latina. Nossa maior força é desen-volver inovações personalizadas para o consumi-dor brasileiro e latino-americano. Temos várias inovações em software, mas também criamos muita coisa em hardware e tecnologia de rede”, diz Erthal. Outro aplicativo criado pela institui-

ção para rodar em celulares foi o Ginga móvel (Ginga-NCL), programa que per-mite aos usuários ter acesso ao serviço de TV digital, a mesma dos televisores, com interatividade no celular.

Entre as funções dos centros de pes-quisa das empresas produtoras de apa-relhos ou ligadas a elas também estão os testes de resistência e durabilidade dos celulares. O Instituto Nokia, por exemplo, desenvolveu o Drop Tester, um equipamento para testar os apa-relhos. Patenteado em parceria com a Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica (Fucapi), de Ma-naus, o aparelho é adotado pelos demais centros globais de pesquisa da Nokia.

Ainda na área de testes, o INdT desenvolveu o primeiro laboratório de colorimetria de displays e LEDs do Brasil. Batizado de Disco Lab, ele é conveniado ao Instituto Nacional de Metrologia, Normatização e Qualidade Industrial (Inmetro) e tem capacidade para realizar ensaios de fidelida-de de resposta cromática, luminância e contraste, entre outros parâmetros, usados em celulares e telas de até 17 polegadas.

A Motorola foi uma das pioneiras na instalação de um centro de verificação e integração de testes de softwares para celulares no país, o Brazil Test Center, implantado em 2004. “Esse projeto con-solidou todas as etapas do processo e revolucio-nou a forma de olharmos os testes de celulares. Criamos ferramentas, disciplinas e processos que até hoje são usados em vários países onde a empresa está presente”, diz Rosana Fernandes, diretora de P&D da Motorola. Atualmente, a fabri-cante conta com cerca de 400 pessoas dedicadas

Entre as funções dos centros de pesquisa dos fabricantes estão os testes de resistência e durabilidade dos celulares

e desenvolvimento de produtos para empresas locais parceiras da Sony Ericsson.”

Outro produto desenvolvido para a Sony Erics-son foi o suporte ao usuário, que permite ao dono do celular interagir com o aparelho e aprender sozinho suas funcionalidades. Dotado de vídeos, tutoriais, dicas e informações, ele foi projetado para substituir o manual de papel. “Começamos a desenvolver esses dois aplicativos do zero e hoje eles estão integrados a todos os celulares produ-zidos mundialmente pela empresa”, diz Abreu.

O instituto conta com 160 funcionários, dos quais 40 dedicados exclusivamente aos proje-tos da fabricante de celular. A cada três meses, o centro de pesquisa realiza workshops inter-namente com o objetivo de discutir e propor possíveis inovações para a Sony Ericsson. “Te-mos uma aplicação aprovada e já em desen-volvimento surgida nesses workshops que de-ve ser lançada em meados deste ano, mas não podemos revelar ainda do que se trata”, diz o gerente do Venturus.

17universidades participaram do programa de capacitação tecnológica da Motorola

Page 60: Pesquisa Fapesp 192

60 fevereiro De 2012

à atividade de P&D no país, entre funcionários e pesquisadores lotados em instituições parcei-ras. Em agosto de 2011, a divisão de celulares da Motorola foi vendida para o Google.

A execução do Brazil Test Center foi feita em parceria com o Cesar, de Recife, centro de pes-quisa que foi parceiro da Motorola em vários aplicativos para a empresa. “Trabalhamos com uma metodologia de design centrada no usuário. Quando recebemos uma demanda do fabrican-te, vamos a campo e fazemos um estudo social e físico do consumidor para entendermos suas necessidades e desejos. Com os dados dessa pesquisa em mãos, desenvolvemos as aplica-ções para os celulares, fazemos um protótipo, o validamos com o usuário final e, por fim, im-plementamos a tecnologia”, explica Eduardo Peixoto, diretor-executivo do Cesar.

A Motorola é também uma das poucas empresas que chegaram a elaborar projetos de hardware, ou conceber um aparelho celular no país. O primei-ro, com o desenvolvimen-to de hardware e softwa-re, foi o C353 lançado em 2003, vendido no Brasil e exportado para toda Amé-rica Latina. Em 2008, foi a vez do modelo MotoroKR W6, criado pelo Centro de P&D da empresa em Jagua-riúna (SP). Ele foi exporta-do também para a América Latina e para a China.

A empresa voltou a lan-çar outro aparelho con-cebido no país no final de 2010. É o Spice, o primei-ro smartphone com siste-ma operacional Android desenhado e construído no Brasil. “Coordenamos mundialmente o desenvolvimento desse apare-lho”, diz Rosana. A Motorola foi o primeiro gran-de fabricante a montar uma estrutura voltada à pesquisa e ao desenvolvimento de celulares. Em 1998, a empresa lançou um programa de capaci-tação tecnológica que envolveu 17 universidades e lançou as bases para a criação de aplicações móveis no Brasil. Em quatro anos de duração, o programa renovou 20 laboratórios e formou 8.200 profissionais em tecnologia da informação.

“Como naquela época existiam pouquíssimos profissionais capacitados, nosso primeiro desafio foi trabalhar com universidades e centros de pes-quisa para criar competência na área, formando profissionais e montando laboratórios”, afirma Rosana. Nessa primeira etapa a empresa investiu R$ 23 milhões em quatro anos. Desde 1998 até 2011, os investimentos cresceram. Foram mais de

US$ 500 milhões, cerca de US$ 36 milhões por ano, em média, em pesquisa e desenvolvimento de novos softwares, aplicativos, componentes e hardwares para celulares no país.

Os investimentos feitos aqui por algumas em-presas multinacionais são importantes, mas se comparados com os gastos em P&D global dessas mesmas empresas ainda são pequenos. Os dis-pêndios com P&D da Motorola em 2010 foram de US$ 1,5 bilhão para um faturamento de US$ 11,5 bilhões em todo o mundo, apenas para área de celulares e tablets. A empresa não divulga dados de faturamento regional. Outra empresa global, a Samsung, faturou US$ 137 bilhões, sendo US$ 5 bilhões no país em 2010, com todo o seu portfó-lio de produtos eletrônicos, com celulares, TVs e câmeras fotográficas. Desse total foram US$ 20 bilhões de P&D, dos quais R$ 100 milhões in-vestidos no Brasil, segundo reportagem do jornal Brasil Econômico de 21 de outubro de 2011.

Para fomentar a pesquisa e desenvolvimento no país, o caminho das empresas é fazer parce-rias com universidades, uma alternativa também usada pelo INdT da Nokia. O instituto é equipado com laboratórios de nível internacional e man-tém há três anos um programa de cooperação técnico-científica com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Seu objetivo é gerar conhe-cimento para o desenvolvimento de tecnologias para plataformas de telefonia móvel na região. Os alunos do programa criaram e já publicaram mais de 10 programas na loja de aplicativos da Nokia, a Ovi Loja.

Segundo Erthal, do INdT, o Brasil tem um mercado potencial aberto para que inovações radicais na área de telefonia móvel sejam feitas

o brasil é um mercado potencial aberto para que inovações radicais em telefonia móvel possam ser feitas aqui

10programas para celulares foram elaborados por alunos da Ufam e estão na loja de aplicativos da Nokia

Page 61: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 61

aqui. “O Drop Tester é um exemplo de inova-ção. Para que elas possam ser mais frequentes e em maior número, é preciso incentivar a for-mação de novos doutores. Investir em massa crítica é fundamental para o país inovar cada vez mais”, afirma.

Para o Brasil dar passos à frente nessa área, segundo alguns analistas, é preciso necessaria-mente modernizar a Lei da Informática. As em-presas instaladas no país se valem dos benefícios dessa lei para desenvolver atividades de P&D em centros próprios ou por meio de parcerias com universidades e institutos de pesquisa. Promul-gada em 1991, durante o governo Collor, a Lei de Informática representou um estímulo à inovação no país. Ela concede incentivos fiscais – redução de 80% do Imposto sobre Produtos Industriali-zados (IPI) – para fabricantes de diversos pro-dutos eletrônicos, inclusive telefones celulares, mas exige como contrapartida que a companhia invista 4% do faturamento decorrente dos pro-dutos incentivados em atividades de pesquisa e desenvolvimento de produtos no país.

“Como a Lei de Informática, na prática, re-duziu o preço final dos produtos incentivados, todos os fabricantes de celulares no Brasil, uma hora ou outra, decidiram investir em P&D. De outra forma, seus produtos não seriam compe-titivos”, afirma Rodrigo Sousa, do Ipea e autor do artigo “Vinte anos da Lei de Informática: estamos no caminho certo?”, publicado na edi-ção de outubro de 2011 do Boletim Radar do mesmo instituto.

De acordo com o pesquisador, a Lei de Infor-mática, que completou 20 anos em 2011, é um instrumento defasado. “Ela não sofreu nenhuma

A cadeia de inovação na área de celulares está crescendo no país e já existe um grande número de aplicativos

inovação substancial nas duas últimas décadas. Dá ênfase ao hardware e não estimula a criação de softwares e componentes. Isso fez do Brasil um montador de equipamentos.”

Para ele, o governo deveria exigir das mul-tinacionais algumas contrapartidas, como, por exemplo, maior produção de inovações radicais para o mercado mundial, aumento do nível de exportação, inserção de novos elementos na ca-deia produtiva, como aplicativos e componentes, e diversificação de produtos. Sousa argumenta que a lei distorceu o mercado em direção da mon-tagem e ressalta que os fabricantes instalam seus centros de P&D conforme a tradição tecnológica do país. “Para o Brasil se tornar uma plataforma geradora e exportadora de inovação na área de telecomunicações e celulares é necessário uma política de desenvolvimento científico e tecno-lógico específica”, diz Sousa.

Para Loiberto Verwiebe, do Instituto Eldo-rado, a cadeia de inovação na área de celulares

está crescendo no país e já existe um número grande de aplicativos criados lo-calmente para esses ter-minais telefônicos móveis. Mas, segundo ele, como há um retardo médio de lan-çamento de novos mode-los de aparelhos no Brasil de seis meses a um ano, é pequena a chance de de-senvolvermos aplicativos ligados a um terminal ino-vador. “O que não impede de, usando a criatividade de nossos desenvolvedo-res, obtermos aplicativos de grande relevância pa-ra o mercado consumi-dor”, ressalta Verwiebe.

Ele destaca também que as equipes de desen-volvimento de hardware para celulares estão, em sua grande maioria, concentrados na China e na Coreia do Sul.

“Esses países criaram uma rede de desenvol-vedores, formada por ODMs (sigla para original design manufacturer ou fabricante de projeto original), que fazem os celulares para os fabri-cantes. A concepção e o design do produto são feitos nos Estados Unidos e na Europa, mas seu desenvolvimento acontece na China”, diz. Is-so pode explicar o fato de que as inovações em hardware ainda serem em número muito menor no Brasil quando comparadas àquelas ligadas a aplicativos e softwares. “O número de patentes brasileiras nesse setor é insignificante. Adotamos tecnologias desenvolvidas em outros países", diz Sousa, do Ipea n

Page 62: Pesquisa Fapesp 192

62 _ fevereiro De 2012

Argila sintética elimina resíduos no

processamento de nanotubos de carbono

dinorah Ereno

um método simples e inovador para o tratamento de resíduos que sobram nos laboratórios após a purificação de nanotubos de carbono – forma-dos por folhas de átomos de carbono

enroladas na forma de tubo – foi desenvolvido pelo grupo de pesquisa do professor Oswaldo Al-ves, do Laboratório de Química do Estado Sólido da Universidade Estadual de Campinas (LQES-Unicamp). Utilizando nanopartículas de hidro-talcita sintética, um tipo de argila, os pesquisa-dores conseguiram remover cerca de 99% das impurezas do efluente resultante do processo de purificação.

A hidrotalcita é uma argila altamente adsor-vente composta por camadas positivamente car-regadas – íons com carga elétrica positiva – de hidróxido misto de metais, geralmente alumínio e magnésio, intercaladas por camadas de ânions – íons com carga elétrica negativa –, como o car-bonato. No processo de adsorção, as moléculas ou íons ficam retidos na superfície da hidrotalcita por interações químicas ou físicas.

O método inédito de limpeza de efluentes ge-rados em sistemas de purificação de nanotubos resultou no depósito de uma patente nacional e sua extensão internacional pela Agência de Inovação da Unicamp, a Inova. A patente inter-

Altíssimaqualidade

nacional foi requerida para resguardar os resul-tados do trabalho apresentados no Congresso NanoSafe 2010, em Grenoble, na França, com a participação de pesquisadores que trabalham com os riscos da nanotecnologia e de empresas produtoras de nanomateriais.

A necessidade de purificação dos nanotubos no laboratório teve início em 2003, quando os pesquisadores planejavam estudar a interação das nanoestruturas com organismos vivos. Uma das pesquisas feitas nessa linha, essencial para o desenvolvimento do processo de purificação, foi conduzida pelo biólogo Diego Stéfani Martinez durante o seu doutorado orientado por Alves. Também participaram ativamente da pesquisa, que engloba desde a purificação e caracterização das nanoestruturas até a interação entre elas e os diferentes níveis de organização dos biossiste-mas, os pesquisadores Antonio Gomes de Souza Filho e Natália Parizotto. O objetivo era analisar os impactos que os nanotubos poderiam causar, por exemplo, no ecossistema aquático.

Para o estudo foi utilizado o microcrustáceo bioindicador Daphnia similis, conhecido como pulga-d’água. Diferentes concentrações de nano-tubos colocados em água mineral por até 48 horas foram avaliadas com a intenção de verificar se in-terferiam na mobilidade da pulga-d’água, o que

Nanotubos de paredes múltiplas

purificados são detectados em

microscópio eletrônico de

transmissão na unicamp

_ NOvOS MAteRIAIS

Page 63: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 63

nanotubos sejam dispersos em água e com-patíveis com diferentes materiais, é feito um tratamento com misturas altamente oxidantes, que contêm ácido sulfúrico e ácido nítrico.

Para eliminar essas impurezas, foi necessário adicionar ao processo uma solução de soda cáustica (hidróxido de sódio) diluída, usada na indústria na fa-bricação de papel, tecidos, detergentes, alimentos e biodiesel. No entanto, não dava para descartar sem nenhum tipo de tratamento o efluente resultante, um lí-quido de cor escura constituído de uma complexa mistura de substâncias po-liaromáticas e matéria orgânica. Se não for tratado adequadamente, ele pode contaminar lençóis freáticos e rios com substâncias químicas difíceis de serem retiradas em estações de tratamento de água antes do consumo humano.

“Decidimos então partir para a puri-ficação da purificação”, diz Alves. Foi aí que os pesquisadores resolveram testar a hidrotalcita, que desde os anos 1990 era estudada no laboratório pelas suas pro-priedades físico-químicas. Tanto que ela havia sido empregada em um processo lq

es /

un

icA

mP

Artigos científicos1. STÉFANI, D. et al. Structural and proactive safety aspects of oxidation debris from multiwalled carbon nanotubes. Journal of Hazardous Materials. v. 189, p. 391-96. 2011.

2. ALVES, O. L. et al. Hydrotalcites: a highly efficient ecomaterial for effluent treatment originated from carbon nanotubes chemical processing. Journal of Physics: Conference Series. 304 012024. 2011.

seria considerado um efeito adverso. O resultado apontou ausência de toxicidade aguda para o microcrustáceo até a con-centração de 30 miligramas por litro.

Para desenvolver esse e outros estudos similares era necessário ter nanotubos de alta qualidade, sem resíduos de carbono amorfo ou de catalisadores metálicos usa-dos no processo de síntese. “A purifica-ção é uma etapa essencial para criarmos novos usos químicos para os nanotubos e também para que possamos empregar as nanoestruturas em estudos de intera-ção com sistemas biológicos”, diz Alves. Na época, os nanotubos encontrados no mercado apresentavam uma heteroge-neidade muito grande. Em uma mesma amostra podiam ser encontradas estru-turas com diferentes formas, diâmetros e teor de impurezas.

Era necessário ter um padrão. Foram quatro anos até chegar a um protocolo constistente de purificação, mas um no-vo resíduo surgiu e precisava ser tratado. “Conseguimos eliminar as impurezas da síntese, mas não as impurezas da oxidação, chamadas de debris de oxidação”, diz Alves. Isso ocorre porque, para permitir que os

de tratamento de efluentes da indústria têxtil, desenvolvido em parceria com a empresa Contech (ver edição 155 de Pes-quisa FAPESP).

Nos testes feitos, a argila eliminou os resíduos formados no processo de purifi-cação dos nanotubos, gerando um sólido escuro que pode ser separado por decan-tação. Além da vantagem da eliminação das impurezas de oxidação, a solução de hidróxido de sódio restante pode vol-tar para o processo e ser reusada com a mesma eficiência. O pó escuro obtido, ao passar por um tratamento térmico, elimina a matéria orgânica e volta a ser branco. Nessa forma, pode também ser reutilizado em um novo processo de re-moção sem perda de eficiência. n

Page 64: Pesquisa Fapesp 192

64 _ fevereiro De 2012

Page 65: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 65

equipamento testa no sangue,

em poucos minutos, microrganismos

ligados a 20 doenças

um equipamento de diagnóstico capaz de detectar até 20 doenças em apenas alguns minutos está sendo desenvol-vido por um consórcio liderado por três instituições de pesquisa do Pa-

raná. Chamado de plataforma para diagnósticos multiplex, o kit será produzido industrialmente, a partir de 2014, pela empresa Lifemed, com sede em Pelotas (RS). No início, o aparelho será utili-zado para diagnóstico de HIV, citomegalovirose, rubéola, sífilis, toxoplasmose e hepatite A, B e C em exames de pré-natal na Rede Cegonha, progra-ma do Ministério da Saúde de assistência a mães e bebês. A pesquisa para o desenvolvimento do produto é liderada pelo Instituto Carlos Chagas (ICC), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e pelas universidades Federal (UFPR) e Tecnoló-gica Federal (UTFPR), todos de Curitiba, além de outras sete instituições de outros estados, com a articulação promovida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) para Diagnóstico em Saúde Pública.

Segundo Marco Aurélio Krieger, pesquisador do ICC e coordenador do projeto, o novo equipa-

diagnóstico

fácil

mento foi desenvolvido baseado em dois concei-tos, lab-on-a-chip (todo o laboratório contido em um cartão descartável) e point of care (de execu-ção simples em consultórios ou ambulatórios). Assim, ele é portátil, pode funcionar a bateria e possibilita a realização do teste no próprio con-sultório médico ou até mesmo em locais remotos. “Além disso, todo o desenvolvimento do aparelho é nacional”, diz Krieger.

De acordo com Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, a sua pasta investirá cerca de R$ 950 milhões, em cinco anos, na compra dos kits. O número de equipamentos produzidos irá aumentar de forma progressi-va nesse período. De acordo com ele, a compra pelo governo federal irá gerar uma economia de mais de R$ 177 milhões no decorrer dos cinco anos e o preço unitário do produto terá redução de cerca de 30% no período. “No primeiro ano (2014) serão produzidos 2 milhões de kits ao valor unitário de R$ 30,40”, explica. “No último ano (2019) vão ser fabricados 10 milhões de unidades ao valor de R$ 21,50 cada uma.” São valores sem

_ ANálISeS ClíNICAS

teXtO Evanildo da Silveira

IluStRAçãO e INFOGRáFICO drüm

BIOquíMICA

MeDICINA

Page 66: Pesquisa Fapesp 192

66 _ fevereiro De 2012

impostos que incidem normalmente no produto, apenas incluem aqueles relati-vos ao pagamento de pessoal.

O equipamento é composto basica-mente de três partes: micropartículas de poliestireno (o mesmo material usado para fabricar isopor); um disco de polí-mero, semelhante a um CD, chamado pelos pesquisadores de chip; e o equipa-mento que o faz rodar. Quem desenvol-veu as partículas foi a equipe do físico Cyro Ketzer Saul, do Departamento de Física da UFPR. Cada uma delas tem cerca de 10 micrômetros de diâmetro (um micrômetro equivale à milionésima parte do metro). “Por meio de reações químicas, envolvemos as partículas com antígenos de um determinado patógeno, como vírus ou outros microrganismos causadores de doenças”, explica Krieger. O antígeno é uma proteína ou pedaço de proteína estranha ao organismo que provoca uma resposta imunológica com formação de anticorpos.

A segunda parte, o chip ou disco, também foi desenvolvida na UFPR, pe-la equipe do professor Wido Herwig Schreiner. Trata-se de um pequeno dis-co de três centímetros de diâmetro, com 40 “pocinhos”, divididos em dois círcu-los concêntricos, cada um com 20 deles. Cada par de pocinho (um do círculo in-terno e outro do externo) é ligado por uma microcanaleta ao centro do disco.

Na parte externa dele há uma borda de material absorvente, chamada pelos pes-quisadores de fraldão. A terceira parte do kit é um equipamento, desenvolvido na UFTPR pelo grupo do pesquisador Fa-bio Kurt Schneider, que faz girar o disco e dá o resultado do teste, mostrando se um determinado paciente está com uma das doenças analisadas.

Todo o processo de realização do diag-nóstico é simples. Em cada pocinho do círculo interno do chip são colocados milhares de microesferas com antígenos para um determinado tipo de doença. Nos 20 pocinhos do círculo externo são

“Sabemos que funciona e agora queremos produzir o equipamento”,diz cyro Saul

1. uma gota de sangue é colocada no centro do disco, que é inserido no equipamento para fazê-lo rodar e espalhar o líquido

inseridos anticorpos capazes de reco-nhecer anticorpos humanos. Por isso identificarão qualquer um ligado aos antígenos. Sua função é agir como con-trole. O teste é feito colocando-se uma gota de sangue no centro do disco, que é inserido no tocador para girar. À me-dida que ele gira, o sangue escorre pe-las canaletas até os pocinhos. Havendo no sangue testado anticorpo para uma determinada doença, ele vai grudar no antígeno para tentar matá-lo. Desse mo-do se sabe que a pessoa cujo sangue está sendo testado possui a doença. “Mas para que isso possa ser visualizado é colocada, de forma automática, outra proteína no centro do disco, que novamente é roda-do”, explica Saul. “A proteína é chama-da de repórter e é capaz de grudar em qualquer anticorpo que tenha aderido à partícula com antígeno.”

O último passo é fazer incidir luz ultravioleta sobre o disco. A proteína repórter vai brilhar nos pocinhos com anticorpos, imagem que é captada por uma câmera do equipamento, tanto na-queles do círculo externo de controle como no interno que tiver sangue con-taminado por uma determinada doença. “É importante o círculo de controle”, diz Krieger. “Se algum pocinho daque-les não brilhar, o teste é invalidado. É prova de que houve algum problema em sua realização.”

brilhos no discoPequenas cavidades no chip indicam de forma luminosa as doenças que a pessoa possui

2. O sangue chega às cavidades (pocinhos) que possuem, no primeiro círculo, microesferas com antígenos das doenças

3. No segundo, os pocinhos têm anticorpos que reconhecem as respostas imunológicas

4. quando existe anticorpo para uma doença no sangue, ele vai grudar no antígeno para tentar eliminá-lo

O teste é validado se todos os pocinhos do círculo externo brilharem

Os pocinhos do círculo interno que brilharem indicam a doença correspondente

Page 67: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 67

Até agora, o projeto já passou pela fase de bancada de laboratório, que compro-vou sua viabilidade. “Já temos o que se chama uma prova de conceito”, explica Saul. “Sabemos que funciona e como fun-ciona. Agora queremos produzir o equi-pamento industrialmente.” Para isso foi assinado em janeiro um convênio entre a Financiadora de Estudos e Projetos (Fi-nep), a Fiocruz e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), que prevê a liberação de R$ 8 milhões para as próxi-mas fases de desenvolvimento, validação e registro do kit. O ICC vai coordenar esta nova etapa, que será desenvolvida com participação de duas outras unidades da Fiocruz, Instituto Aggeu Magalhães, de Pernambuco, e Instituto de Tecnolo-gia em Imunobiológicos (Bio-Mangui-nhos), do Rio de Janeiro, além da UFPR, da UTFPR e do IBMP.

tEStE do ProtótIPoEssa fase também terá a participação da Lifemed. Segundo seu gerente comercial nacional, Carlos Passos, em primeiro lugar, o projeto vai envolver a área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da empresa. “A partir de uma configuração inicial e das características do equipa-mento que atendam às necessidades do Ministério da Saúde vamos desenvolver primeiro um protótipo”, explica. “Ele será testado em bancada de laboratório, antes de ser feito qualquer teste em pa-cientes. Depois disso, que normalmente é um processo demorado, será realizada a parte de testes clínicos. A produção propriamente dita é a última etapa e de-ve ocorrer de acordo com o contrato do Ministério da Saúde.”

Não deverá faltar mercado para o uso dos kits. Segundo dados do Ministério da Saúde, todos os anos nascem no Brasil cerca de 3 milhões de crianças. Levando- -se em conta que 75,5% da população brasileira não tem plano privado de saú-de, estima-se que cerca de 2,3 milhões de gestantes dependem do SUS para suas consultas e exames do pré-natal. Ainda de acordo com o ministério, conside-rando-se que o número mínimo de con-sultas realizadas no Brasil é quatro por gestação durante o pré-natal, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda não menos de seis – e que em cada consulta sejam realizados os testes recomendados para HIV, rubéo-la, sífilis, toxoplasmose e hepatite B –,

o número estimado deles é de 9,1 mi-lhões por ano.

Ainda não existem dados disponíveis sobre os gastos do SUS com a realização desses testes, mas, considerando que um imunoensaio na plataforma Elisa custa, para outros programas do ministério, cerca de US$ 2 cada um, estima-se que seriam gastos anualmente cerca de R$ 247,8 milhões por ano com os exames.

Outros dados do ministério também mostram a importância dos investimen-tos para desenvolver tecnologias nacio-nais para o atendimento em saúde, prin-cipalmente no pré-natal. Eles mostram que em 2009, por exemplo, foram reali-zados 19,4 milhões de consultas com ges-tantes. Um aumento de 125% no acesso aos serviços de saúde para as consultas do pré-natal em relação a 2003.

Com a implantação total do progra-ma Rede Cegonha em 2014, que tem co-mo um dos seus objetivos a ampliação do acesso das gestantes aos serviços de

A Fiocruz apoia a criação de empresas para a produção de peças do equipamento

FOT

O E

FO

NT

E D

O IN

FOg

FIC

O i

cc

Simulação do funcionamento do disco sob luz ultravioleta

saúde, o Ministério da Saúde espera um au-mento significativo no número de consultas. Para Gadelha, do minis-tério, os acordos com instituições de pesqui-sa e empresas nacionais para o desenvolvimento de produtos e tecnolo-gias possuem um cará-

ter sistêmico de inovação, envolvendo o avanço em novas abordagens biotecno-lógicas e o esforço para a produção de equipamentos e dispositivos médicos no Brasil.

Um dos objetivos do projeto é a máxi-ma de nacionalização possível do equi-pamento. Dispositivos como o chip e a câmera devem ser importados. A meta é que outros componentes do kit sejam nacionalizados como as proteínas (antí-genos e anticorpos), o disco de polímero da base do chip, as micropartículas de poliestireno que se ligarão às proteínas e o dispositivo acionador do chip. “No caso das micropartículas já está em andamen-to um processo de solicitação de patente pela Fiocruz”, diz Saul. Além da Lifemed, que produzirá o dispositivo acionador do chip e fará a montagem e comercializa-ção do produto, a Fiocruz está apoian-do a criação de empresas spin off para a produção dos componentes plásticos que comporão o disco do chip. n

Page 68: Pesquisa Fapesp 192

68 _ fevereiro De 2012

vladimir Airoldi ao lado do reator de fabricação de diamantes

Page 69: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 69

vladimir Airoldi, da Clorovale,

exporta brocas de diamante

sintético e ganha Prêmio Finep

Desde que retornou ao Brasil no início de 1991, após o término de um pós- -doutorado no Laboratório de Propul-são a Jato da agência espacial norte- -americana (Nasa, o físico Vladimir

Jesus Trava Airoldi decidiu conduzir seus projetos de pesquisa com um propósito muito bem definido – o de que eles tivessem ao mesmo tempo um alto nível científico e alto potencial de aplicação.

Ao retomar o trabalho no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Cam-pos, no interior paulista, seu primeiro projeto foi o desenvolvimento de diamantes sintéticos para aplicações no espaço e na indústria. “Na época os estudos de diamantes sintéticos ainda eram muito teóricos, não dava para ter a dimensão exata do que eles representariam”, diz Airoldi. O que se sabia é que era um material com compatibilidade biológica e química, com o menor coeficiente de atrito entre os materiais sólidos e, por isso, seria possível usá-lo como lubrificante sólido em do-bradiças de painéis solares de satélites.

Além disso, era um material com condutividade térmica mais elevada do que todos os outros ma-teriais e com um grande intervalo de transmissão óptica, que abrange desde o infravermelho até o raio X, possibilitando aplicações em ferramentas de corte e abrasão, protetores de superfícies con-tra corrosão química, ferramental médico-odon-

trajetória vitoriosa

FOT

O e

Du

Ar

Do

ces

Ar

_ eMPReeNDeDORISMO

tológico e outras. A ideia inicial era desenvolver diamantes sintéticos para a área espacial, como dissipadores de calor, lubrificantes sólidos e pro-tetores ópticos. Mas isso era considerado pouco para o pesquisador. “Desde o início o projeto foi lançado como um gerador de spin-offs, empresas que utilizassem a tecnologia”, disse Airoldi.

Duas décadas depois, em dezembro do ano passado, Airoldi recebeu o Prêmio Finep de Ino-vação 2011 na categoria Inventor Inovador, da Financiadora de Estudos e Projetos, como re-conhecimento pelo seu trabalho. Atualmente, o pesquisador tem 12 patentes depositadas e os artigos científicos publicados pelo seu grupo de pesquisa somam mais de uma centena e meia. O grupo agrega 30 pessoas, entre pesquisadores, alunos e pós-doutorandos.

Um dos desdobramentos do projeto inicial foi a criação da empresa Clorovale Diamantes, em 1997, para produzir pontas de diamante sin-tético destinadas a brocas odontológicas. Essas brocas, acopladas a aparelhos de ultrassom em substituição aos tradicionais de rotação, são ven-didas para o mercado interno e externo. “Somos a única empresa no mundo a empregar o diaman-te CVD na área de odontologia”, diz Airoldi. O diamante CVD (chemical vapor deposition, ou deposição química na fase vapor) é produzido com gases como hidrogênio e metano. A patente

FíSICA

Page 70: Pesquisa Fapesp 192

70 _ fevereiro De 2012

já foi concedida nos principais mercados do mundo, a exemplo dos Estados Unidos, Europa, Austrália, Ja-pão e China.

Airoldi relata que no início enfrentou a desconfiança de institutos financiado-res de pesquisa, que não queriam apoiar projetos com teor de aplicação elevado, e a decepção com os empresários de in-dústrias das áreas médica, odontológi-ca e de metalurgia, procurados por ele para a apresentação da tecnologia que necessitava de investimentos para seguir em frente. “O período de 1991 a 1997 foi muito sombrio, mas continuei firme e ti-vemos a aprovação do projeto Pipe pela FAPESP que deu início à Clorovale”, re-lata. O projeto na modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empre-sas (Pipe), na sua avaliação, foi o grande catalisador de todo o processo, já que permitiu criar a empresa. Desde então teve aprovados outros quatro projetos pela FAPESP na mesma modalidade, além de dois projetos temáticos e três auxílios regulares a pesquisa para sua área de pesquisa no Inpe.

A escolha da odontologia como pri-meira aplicação industrial para o dia-mante sintético foi fruto de uma es-tratégia baseada no grau de instrução elevado dos dentistas e do fato de que eles precisam de produtos com tecno-logia agregada para ter um diferencial no consultório. “Mesmo assim, quando começamos a vender o nosso produto em 2003 enfrentamos muitas dificuldades”, diz Airoldi. “Vendemos o suficiente para sobreviver até 2011, quando conseguimos dobrar o nosso faturamento.” Até então o faturamento se mantinha constante na casa dos R$ 700 mil. Os ventos favorá-veis só começaram a soprar efetivamente em 2009, quando a Clorovale começou a exportar o produto após receber a apro-vação da União Europeia.

Em 2010, a empresa ganhou um no-vo fôlego no modelo de negócios com o apoio do Criatec, um fundo de investi-mentos de capital semente criado pe-lo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em parce-ria com o Banco do Nordeste do Brasil. O Criatec entrou como sócio e detém 35% do capital da empresa. Atualmente a Clorovale conta com nove sócios, três dos quais são sócios investidores, e 23 funcionários. Na avaliação de João Fur-tado, membro da Coordenação Adjunta de Pesquisa para Inovação da FAPESP e professor da Escola Politécnica da USP, as principais qualidades de Airoldi são a tenacidade e a determinação. “Ele não esmoreceu nem mesmo em alguns mo-

mentos muito difíceis.” Para Furtado, não bas-

ta apenas uma boa ideia. “Um empreendimento é feito por um trabalho árduo, sistemático e pla-nejado.” Além disso, ou-tra qualidade que con-tribuiu para o sucesso do empreendimento foi colocá-lo em outra pers-

pectiva, além da científica e tecnológica. “Ao longo do tempo, Airoldi conseguiu entender melhor o mercado e sua dinâ-mica e compreendeu que a abordagem envolvia diversas dimensões.”

AdESão mEtálIcAO pesquisador diz que as vantagens do uso do diamante em aparelhos de ultras-som não foram criadas pelo seu grupo de pesquisa. “Dentistas já haviam relatado na década de 1950 que o uso de brocas em aparelho de ultrassom para fazer o preparo de cavidades do dente era mais indolor que o método tradicional e não provocava sangramentos”, diz.

Mas a técnica relatada não evoluiu porque não havia na época uma ponta de diamante que pudesse suportar a ação do ultrassom quando este colide com o te-cido duro, composto pelo esmalte e den-tina. “Essa foi a grande sacada nossa e meu trabalho foi justamente fazer o dia-mante sintético nascer e crescer em uma superfície metálica”, relata. Mas isso não bastava. Era necessário que ele estivesse extremamente aderente. “A adesão do diamante à área metálica é a parte mais importante do invento, o objeto da pa-tente.” Por trás do segredo estão vários

o fundo criatec, um dos três sócios investidores, detém 35% do capital da empresa

Dois entre os mais de 30 modelos de pontas odontológicas

Pontas de diamante sintético recebem tratamento de gás plasma dentro do reator

Page 71: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 71

desenvolvimentos, como densidade do gás utilizado, preparação da superfície no substrato, temperatura, composição e pressão interna dos reatores.

Hoje são mais de 30 modelos de pon-tas odontológicas desenvolvidas a pedi-do de dentistas e professores. Elas po-dem ser usadas em remoção de cáries, no desgaste e acabamento de dentes, em processos de corte ósseo para implante de dentes. Vários laboratórios dentro de universidades ensinam os alunos a tra-balhar com a tecnologia de pontas de diamante CVD com ultrassom. “O pri-meiro curso de odontologia ultrassônica do planeta foi criado na Universidade de São Paulo em Bauru”, diz Airoldi. Atual-mente, a USP de Bauru conta com dois cursos, um para a área de dentística e outro para a de odontopediatria. A Fa-culdade de Odontologia da USP de São Paulo e a Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara e São José dos Campos também têm cursos similares.

O diamante sintético não se limita apenas a aplicações odontológicas. Ou-tra linha de pesquisa na empresa, feita em colaboração com o Inpe, são os dia-

FOT

OS

eDu

Ar

Do

ces

Ar mantes sintéticos amorfos, cuja estrutu-

ra de carbono não é tão bem organizada como os cristalinos. Os amorfos não têm a mesma dureza que os cristalinos, mas ainda assim são mais duros do que todos os metais conhecidos. A vantagem é que, enquanto o diamante cristalino cresce no máximo até centímetros, portanto pode ser usado apenas em peças muito pequenas, o amorfo atinge proporções da ordem de metros. Excelente bactericida, ele pode ser empregado tanto em ferra-mentas usadas em cirurgias ortopédicas como para revestimentos em prótese de joelho e de válvulas do coração. mAIS dUrávEl E EStávElOs diamantes sintéticos amorfos também foram utilizados em brocas de perfura-ção para poços de petróleo testadas pe-la Petrobras. As brocas tradicionais de perfuração já usam um pó de diamante nas pontas. Na pesquisa desenvolvida pela Clorovale, pequenos tarugos (pe-daços) de diamante sintético são incor-porados à ponta da broca. No primeiro ensaio, uma broca de pequenas dimen-sões, feita com tarugos de diamante de até 20 milímetros de comprimento por 2 milímetros, foi testada na perfuração de poços de água.

Os resultados foram alentadores. A broca mostrou ter durabilidade duas ve-zes e meia maior, além de cortar 30% mais rápido e dar maior estabilidade ao eixo de perfuração do que a convencio-nal com pó de diamante. A Petrobras de-cidiu testar a tecnologia para perfuração em poços profundos de petróleo e ficou satisfeita com o resultado. Diante disso, encomendou outros dois protótipos de brocas à Clorovale e está se preparando para fazer testes mais conclusivos ainda no primeiro semestre deste ano.

Os diamantes amorfos podem ser depo-sitados também em grandes superfícies. A sua aplicação enriquece as proprieda-des químicas, físicas e mecânicas de ma-teriais como o aço, por exemplo. A cria-ção de outros produtos além das brocas odontológicas é, na avaliação de Furtado, a terceira grande qualidade do empreen-dimento, acompanhada da determinação e da visão de mercado. “O pesquisador compreendeu que o programa Pipe pode ser um auxílio permanente e, por meio dele, é possível alargar os horizontes tec-nológicos da empresa com novos desafios e novas competências. n dinorah Ereno

Broca para perfuração de poços com pedaços de diamante na ponta

oS ProJEtoS

1. Desenvolvimento de dispositivos em diamante CvD para aplicações de curto prazo – nº 1997/07227-6 2. Novos materiais, estudos e aplicações inovadoras em diamante CvD e diamond-like-carbon (DlC) – nº 2001/11619-4 3. Diamante CvD para um novo conceito de ferramentas de alto desempenho para perfuração e corte – nº 2006/60821-4 4. Filmes de DlC para aplicações em superfícies antibacteriana, antiatrito, espaciais, industriais e para tubos de perfuração de poços de petróleo nº 2006/60822-0

modAlIdAdE1. 3 e 4. Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas empresas (Pipe) 2. Projeto temático

co or dE nA dorES

1. Kiyoe umeda (Clorovale) 2. vladimir Airoldi (Inpe/Clorovale) 3. leônidas lopes de Melo (Clorovale) 4. Alessandra venâncio Diniz (Clorovale)

InvEStImEnto1. R$ 329.585,13 (FAPeSP)2. R$ 576.456,12 (FAPeSP)3. R$ 550.661,41 (FAPeSP)4. R$ 505.917,65 (FAPeSP)

Page 72: Pesquisa Fapesp 192

72  fevereiro De 2012

Colombianos criam gado entre

árvores e inspiram brasileiros

carlos Fioravanti

um dos destaques de um congresso de restauração florestal realizado em novembro em São Paulo foram os re-sultados de 26 anos de trabalho em campo de pesquisadores da Colômbia

na criação de gado em meio a florestas, o cha-mado sistema silvipastoril, ainda incipiente no Brasil. É simples: os bois, em vez de abaixarem a cabeça e comerem apenas capim sob o sol forte, se espicham e, à sombra, se fartam de folhas e frutos de arbustos e árvores no meio do pasto. Como resultado, pode-se manter até cinco ani-mais por hectare e produzir de 10 mil a 15 mil litros de leite por ano por hectare sem adubação e quase sem suplementação alimentar, enquan-to as pastagens comuns, sem árvores, abrigam um animal por hectare – a média na Amazônia brasileira é ainda menor, de 0,9 animal por hec-tare – e rendem 400 litros de leite por ano por hectare. Além disso, as árvores preservam as nascentes, protegem o solo da erosão e reduzem bastante as populações de moscas e carrapatos, que transmitem doenças, permitem a diminui-ção dos gastos com medicamentos veterinários, fertilizantes e pesticidas, além de recuperarem parte da biodiversidade original, perdida com a atividade agropecuária, ao atraírem aves e outros animais.

A carne da floresta

_ PeCuáRIA

Na Colômbia quase 2 mil fazendeiros converte-ram cerca de 45 mil hectares de pastagem degra-dada em pastagem arborizada, como resultado de uma colaboração entre a Federação Colombiana de Pecuaristas (Fedegan), o Centro de Pesquisa em Sistemas Sustentáveis de Produção Agropecuária (Cipav), a organização não governamental The Nature Conservancy (TNC) e o Banco Mundial. De modo pioneiro, Enrique Murgueitio Restre-po, diretor do Cipav, começou a cultivar florestas em pastagens depois de convencer os proprietá-rios rurais de que as folhas e os frutos de árvores poderiam ser tão nutritivos para o gado quanto a alfafa e o capim.

Seus argumentos foram bem recebidos porque nessa época os proprietários rurais da Colômbia procuravam uma alternativa para sair de uma crise dos mercados de açúcar e café. À medida que colecionava bons resultados, a equipe do Ci-pav ampliou o trabalho para fazendas de outros países – Bolívia, Guiana, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Guatemala e México – e estabeleceu colaborações com pesquisadores da Universidade Yale, dos Estados Unidos.

A equipe de 40 pesquisadores do Cipav traba-lha atualmente para ampliar a área de pastagens arborizadas na Colômbia para mais 45 mil hec-tares, valendo-se de um financiamento de US$ 7

Page 73: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192  73

MA

RIA

MeR

CeD

eS M

uR

Gu

eIt

IO /

CIP

Av

Bois bem nutridos à sombra, na Colômbia

milhões do Banco Mundial. Segundo ele, essa será a primeira etapa de um ambicioso plano de conversão de 10 milhões de hectares de pastagens tradicionais, liderado pela Federação Colombiana de Pecuaristas. Na Colômbia, as pastagens ocu-pam cerca de 40 milhões de hectares “e a média de desmatamento de 2005 a 2010 foi de 285 mil hectares, mais da metade da área para utilização final de pastagens”, diz Murgueitio.

“A grande batalha não é na Colômbia, mas aqui no Brasil”, afirma. Somente no estado do Pará, ele observa, 10 milhões de hectares de pastagens de-gradadas poderiam ser convertidas em pastagens florestadas de melhor aproveitamento econômico. A seu ver, mantendo quatro animais por hectare – e não apenas um, como na média nacional – em uma área de 100 hectares, com a mesma quantidade de animais, sobrariam 75 hectares para outras ativi-dades. A pecuária extensiva, com uma cabeça de gado em média por hectare, predomina no Brasil. De acordo com o censo agropecuário de 2006, o mais recente, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a pecuária ocupa quase metade (48%), o equivalente a 158 milhões de hectares, do total de terras agrícolas do país, enquanto a agri-cultura cobre 59 milhões de hectares. O rebanho bovino, de 206 milhões de cabeças, é maior que a população, de 190 milhões de pessoas.

AMBIeNte

Page 74: Pesquisa Fapesp 192

74  fevereiro De 2012

“Já temos bastante informação para es-palhar essa técnica no Brasil”, diz Ricardo Rodrigues, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). “As pastagens degradadas poderiam ser re-vertidas em pastagens florestadas, com benefício ambiental e também econômico, principalmente as pastagens degradadas em áreas agrícolas de baixa aptidão, que apresentam grandes riscos para proces-sos erosivos e deslizamentos, como os recentes da região serrana brasileira.” Essa seria uma forma de ampliar a pro-dutividade e ainda evitar a erosão, que em 5, 10 anos degrada o solo de pastos sem árvores.

Em maio e outubro do ano passado, a convite de pesquisadores da Universidade Yale, Rodrigues e Sergius Gandolfi, tam-bém da Esalq, estiveram na Colômbia e vi-sitaram as fazendas cujos proprietários se renderam aos argumentos de Murgueitio. Acostumados a ver pastagens no Brasil, os dois se encantaram ao ver o gado bem nutrido no meio do mato e se alimentan-do de uma espécie de árvore considerada invasora no Brasil, a leucena (Leucaena leucocephala). Também não esperavam ver cercas vivas, formadas por árvores, e não por mourões como no Brasil. “A vantagem da cerca viva é que não tem de reformar nem apodrecem como os mou-rões”, diz Gandolfi. “E pode ser uma fon-te de renda, já que os produtores podem podar os galhos e vender a madeira para carvão.” As árvores reduzem a tempera-tura em dois, três graus, criando espaços agradáveis para os animais.

Em 2009, entrevistando produtores rurais da região de Quindío, Colômbia, Alicia Calle e Florencia Montagnin, da Escola de Estudos Ambientais e Flores-tais da Yale, e Andrés Felipe Zuluag, do Cipav, verificaram que a gliricídia (Gliri-cidia sepium) era a árvore preferida para formação das cercas porque cresce rapi-damente e fornece sombra para o gado. Os pesquisadores viram que mudas de árvore dessa espécie tinham sido plan-tadas recentemente ao longo de cinco quilômetros do perímetro das pastagens das fazendas visitadas.

AvAnçoS E rESIStÊncIASVários estudos feitos no Brasil nos últi-mos anos, principalmente pelos pesqui-sadores da Embrapa, indicam as vanta-gens das pastagens arborizadas, em com-paração com as convencionais: a falta de sombra, por exemplo, pode reduzir em até 20% a produção de vacas leiteiras. Em um levantamento nacional, Jorge Ribaski, da Embrapa Florestas, sediada em Colombo, Paraná, registrou um avan-ço das pastagens arborizadas, adotadas

no brasil, pecuaristas resistem, se queixam dos custos de plantio e temem o fogo, que pode destruir tudo

sAsK

iA s

An

tA

mA

ríA

/ e

lti-y

Aleem geral em áreas com solos mais sus-

cetíveis à erosão. No noroeste do Paraná a motivação dos 200 produtores rurais que deixaram as árvores crescer em cer-ca de 7 mil hectares era ter alimento para o gado no inverno, quando as pastagens comuns podem escassear.

O ganho de peso tem sido fácil de de-monstrar. Ribaski verificou que os ani-mais jovens podem chegar a 450 quilo-gramas em 60 meses em pastagens arbo-rizadas na caatinga, na Região Nordeste, enquanto nos métodos tradicionais de criação atingem em média 360 quilo-gramas em 54 meses. Segundo ele, com base nos resultados dessas pesquisas, a Secretaria de Agricultura de Alegrete, no Rio Grande do Sul, construiu um viveiro com capacidade para produzir 350 mil

mudas de árvores pa-ra serem distribuídas aos produtores rurais da região, caracteri-zada pelo avanço in-cessante de campos arenosos sobre áreas agrícolas.

Também há resis-tências, já que a ado-ção de uma tecnologia não depende apenas de argumentos técni-

cos: os ganhos de biodiversidade e con-forto para o gado não são o bastante para convencer os produtores rurais. Moacyr Dias Filho e Joice Ferreira, pesquisado-res da Embrapa Amazônia Oriental, de Belém, Pará, verificaram que os agri-cultores que poderiam se beneficiar de sistemas silvipastoris encontram-se em geral em regiões de abundância de áreas naturais para expansão agrícola e, por-tanto, a motivação para implantar novos métodos é baixa. Além disso, os proprie-tários rurais se queixam de que os bene-fícios são de longo prazo, enquanto os custos com cultivo e plantio de mudas e mão de obra especializada são ime-diatos. Outra barreira é o risco de fogo acidental, que pode queimar tudo o que foi feito – e gasto.

Mesmo assim, já há o que mostrar. Os pesquisadores da Embrapa Sudeste, além de selecionarem as espécies de árvores nativas mais adequadas para o conví-vio com o gado, estão acompanhando a implantação experimental em fazendas de Brotas, Ibirá, Olímpia, Aspásia, Rio-lândia e Votuporanga. As experiências

uma fileira de Swietenia macrophylla: árvores cercam pastagem e fornecem madeira

Page 75: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192  75

em São Paulo. Em uma aula que deu no curso de agronomia da Esalq em 2011, ele contou a história de dois surfistas norte-americanos que vieram curtir o mar do Rio de Janeiro, encantaram-se com o açaí, voltaram à Califórnia e, com outros dois surfistas, criaram uma em-presa que vende suco de açaí brasileiro para esportistas nos Estados Unidos. No final, ele perguntou por que os estudan-tes não faziam como os surfistas e cria-vam um negócio para ganhar milhões de dólares aproveitando as riquezas das florestas brasileiras. n

mico, a serem cortadas com autorização legal ao longo de 40 anos, com ciclos de 12 anos, em uma área de 300 hectares no município de Campinas.

Em 2011, Ana Cláudia Sant’Anna, da Esalq, comparou a renda obtida com o extrativismo vegetal de pequi (Caryocar brasiliense), uma fruta nativa do cerrado brasileiro muito utilizada na cozinha re-gional, com a do cultivo de soja na região de Iporá, em Goiás, e Pirapora, em Minas Gerais. A conclusão foi que o extrativis-mo sustentável de pelo menos 10 árvores de pequi em reservas legais de cerrado pode ser tão – ou mais – lucrativo quanto a produção de soja. Seu trabalho serve de argumento para os produtores rurais deixarem de ver como intocáveis as re-servas legais.

“Não há nenhuma incompatibilidade na coexistência do uso da terra para pro-dução e para preservação”, diz Gandol-fi no simpósio de restauração florestal

INFO

gR

áFI

CO

An

A P

Au

lA c

Am

Po

s

Artigos científicos1. CALLE, A. et al. Farmer’s perceptions of silvopastoral system promotion in Quindío, Colombia. Bois et Forêts dês Tropiques. v. 300, n. 2, p. 79-94. 2009.

2. MURGUEITIO, E. et al. Native trees and shrubs for the productive rehabilitation of tropical cattle ranching lands. Forest Ecology and Management. v. 261, n. 10, p. 1.654-63. 2011.

mais árvores, mais animais, mais leite

1.500 a 1.750800 a 1.200

2.6003.000

5.3 mil10 mil

10.8 mil

na Colômbia, principalmente sobre as melhores técnicas de convencimento dos potenciais usuários, podem ser úteis. “A maioria dos pecuaristas não confia em técnicos nem em cientistas”, diz Mur-gueitio. “Só aceitam o que outros pro-dutores já aplicaram.”

o PEQUI E oS SUrFIStAS No Brasil, ressalta Rodrigues, áreas de vegetação nativa que devem ser manti-das como reserva legal, correspondente a 20% da área total da propriedade rural na Região Sudeste e a 80% na Região Norte, podem ser utilizadas de forma sustentá-vel para produção econômica. “Poucos proprietários rurais conhecem as possi-bilidades de uso sustentável das matas mantidas de reserva legal, geralmente vistas como intocáveis”, diz ele. Para de-monstrar essa possibilidade, Rodrigues e sua equipe estão acompanhando o plantio de árvores nativas com interesse econô-

4,6

0,6

5

Precipitação (mm por ano)

4

Animais por hectarelitros de leite por hectare por ano Altitude (m)

FONTE ciPv, yAle e funDAción ProDuce michoAncán

400

SIStEmAS convEncIonAIS

SIStEmAS SIlvIPAStorIS

200 a 1.000

600 500

1.450 a 1.800

colômbIAEncostas andinasCom plantas forrageiras e adubo orgânico

méxIco E colômbIATrópicos secos Sem fertilizantes complementares

coStA rIcATrópicos úmidosSem árvores e com fertilizantes químicos

AmAzônIA colombIAnATrópicos úmidosPastagem degradada, sem árvores

Page 76: Pesquisa Fapesp 192

76 fevereiro De 2012

Segundo pesquisa, fecundidade nacional cai cada

vez mais e se concentra entre os adolescentes

na Copa de 2050, segundo projeções demográficas divulgadas no ano pas-sado pela ONU, os torcedores brasi-leiros terão de se contentar em can-tar “222 milhões em ação, salve a se-

leção” em vez dos esperados “300 milhões em ação”. Isso pode soar como uma boa notícia para os que profetizam os perigos de uma “explosão demográfica” no país, mas a realidade é outra, e igualmente preocupante há várias décadas. A fecundidade feminina vem caindo rapidamente e se, em 1960, a taxa era de 6,3 filhos por mulher, esses números caíram para 5,6 (1970), 2,9 (1991), 2,4 (2000) e 1,9 em 2010. “A população brasileira já atingiu uma fecundidade abaixo do nível de reposição. Este declínio deu-se em todas as fai-xas etárias, estratos socioeconômicos e regiões do país. Outro aspecto a destacar é que a tran-sição da fecundidade obedece a um padrão de rejuvenescimento, ou seja, a partir de 1991 são as mulheres de 20 a 24 anos que apresentam a maior taxa específica de fecundidade, o que correspondia em anos anteriores à faixa dos 25 a 29 anos. Também a participação relativa da fecundidade das jovens de 15 a 19 anos, na fe-cundidade total correspondente a todo período reprodutivo, passou de 9% em 1980 para 23% em 2006”, explica a demógrafa Elza Berquó, do

brasil em transição demográfica

hUmAnIdAdES _ FAMílIAS eNCOlHIDAS

teXtO carlos haag IluStRAçãO veridiana Scarpelli

Page 77: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 77

Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde coordena a pesquisa Reprodução na Juventude e após os Trinta Anos.

Segundo as pesquisadoras Elza Berquó e San-dra Garcia, também pesquisadora do Cebrap, o principal objetivo desse trabalho é mostrar que no Brasil a transição demográfica tem características próprias. Por um lado, o rejuvenescimento da fe-cundidade já apontado e de outro, um adiamento da reprodução para após os 30 anos. A convivên-cia desses dois regimes de fecundidade moldará o futuro próximo do país. "Essa transição pode ser positiva ou não, dependendo de como a sociedade lidará com essas mudanças. Como a fecundidade caiu muito e a população está envelhecendo, além de a expectativa de vida ter se elevado, no futuro, entre 2030 e 2035, teremos uma carência séria de mão de obra jovem, como acontece nos países mais desenvolvidos, onde há décadas há mais idosos do que jovens, o que coloca cada vez mais um peso so-bre a população economicamente ativa", analisam as pesquisadoras. "Mas, no Brasil, há esse elemento novo, o rejuvenescimento da fecundidade, não ve-rificado nos países desenvolvidos. Em 1980, o pico da fecundidade estava entre os 25 e 29 anos. Hoje, está na faixa das jovens de 20 a 24 anos. Isso mos-tra que há um fôlego, ainda que, logo, os jovens vão pesar cada vez menos e os idosos, mais.”

demografia

Page 78: Pesquisa Fapesp 192

78 fevereiro De 2012

rejuvenescimento da fecundidadePercentual de mulheres que concordam com cada uma das razões apresentadas por terem engravidado antes dos 20 anos, segundovariáveis sociodemográficas

Analisando os diversos fatores que vieram influenciando a redução do ta-manho da família no país, Elza cita que, antigamente, as famílias tinham muitos filhos, porque sentiam o efeito das altas taxas de mortalidade infantil e era preci-so essa compensação para que houvesse sobreviventes que cuidassem dos pais na velhice. Com a Previdência Social, o Estado assumiu, em princípio, esse papel. Ao mesmo tempo, a política de crédito ao consumidor dos anos 1970 levou as pessoas a ter maiores aspirações de consumo e a pensar em como ajustar desejos de consumo e número de filhos. A grande mudança ocorrida na área das comunicações, em especial com a televi-são, que chegou a um grande número de lares e lugares, acabou por influenciar, principalmente através das telenovelas, valores e estilos de vida, via famílias pe-quenas. Surgia também na época a pílula anticoncepcional, que certamente deu às mulheres oportunidade de regulação da fecundidade.

bônUS“Até meados do século XXI teremos uma população envelhecida. Mas, no caso brasileiro, ainda há tempo de se aprovei-tar isso como um ‘bônus demográfico’, não mais viável no caso europeu. Na edu-cação, por exemplo, a redução do ritmo de crescimento da população ao lado do envelhecimento podem ser um bônus, já que há chances de melhorar a cober-tura e a qualidade do ensino. Diminui- -se a pressão também sobre os recursos naturais e o meio ambiente”, observa a demógrafa. “Mas é uma janela que se fechará rapidamente, por volta de 2030, permitindo uma arrancada no desenvol-vimento e um aumento na qualidade de vida, desde que esse bônus seja inteligen-temente aproveitado”, avisa o demógrafo José Eustáquio Diniz, coordenador da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Se perdermos essa chance ficaremos apenas com as desvantagens de uma população envelhecida, que pode significar a queda no crescimento econômico face à crise no mercado de trabalho e o peso dos ve-lhos sobre os mais jovens”.

Mas não há apenas a velhice a mol-dar a transição demográfica. “A pesquisa confirmou o início cada vez mais precoce da vida sexual, fruto de um mundo mais liberal em que a virgindade não é mais

desejo de casar

desejo de sair da casa dos pais

desejo de ser pai/mãe

desconhece métodos anticoncepcionais

D e e C A e B

41,9%

35,3%

23,6%

D e e C A e B

29,5%

19%13,3%

Classe econômica

Classe econômica

D e e C A e B

55,8%52,5%

23,5%

D e e C A e B

71,3% 69,1%

80,2%

0 a 4 5 a 8 9 ou mais

42,7% 41,9%

31,2%

0 a 4 5 a 8 9 ou mais

37,9%

25,9%

15,5%

Anos de estudo

Anos de estudo

0 a 4 5 a 8 9 ou mais

61,9%

53,1%46,8%

0 a 4 5 a 8 9 ou mais

68,1% 70,5%73,8%

estuda atualmente

Sim26,9%

Não40,9%

estuda atualmente

estuda atualmente

estuda atualmente

trabalha atualmente

Sim34,7%

Não39,8%

trabalha atualmente

Sim20,6%

Não26,2%

trabalha atualmente

trabalha atualmente

Sim77,1%

Não69,5%

Não71,2%

Sim70,8%

Não53,1%

Sim49,5%

Não55,8%

Não26,1%

Sim16,5%

Sim46,1%

Classe econômica

Classe econômica

Anos de estudo

Anos de estudo

FON

TE

Pes

qu

isA

nA

cio

nA

l D

e D

emo

gr

Afi

A e

sA

úD

e –

20

06

Page 79: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 79

um valor. Mas isso não foi acompanhado por um maior conhecimento e utiliza-ção dos métodos contraceptivos”, fala Elza. Ainda que o conhecimento desses métodos seja universal entre as jovens menores de 20 anos, apenas 60% das sexualmente ativas usavam algum mé-todo para prevenir gravidez. Das não usuárias, 40% não sabiam onde obtê-los e uma em cada cinco engravidaram na primeira relação sexual, situação que chega a 68% para as jovens das classes D e E e 70% para as menos escolarizadas. Das jovens que engravidaram antes dos 20 anos, 78% dentre elas desconheciam noções básicas sobre fisiologia da repro-dução e do período fértil no ciclo ovu-latório”, conta a pesquisadora. O estudo sugere que os comportamentos sexual e reprodutivo são moldados pelas pos-

sibilidades estruturais e pelas normas culturais. Assim, as mais pobres e me-nos escolarizadas apresentaram menor percentual do uso de contraceptivos, o que realiza uma ponte direta entre gra-videz antes dos 20 anos e pobreza com pouca escolaridade.

“Há também uma percepção altamen-te positiva das jovens sobre as implica-ções da gravidez em sua vida amorosa e em sua autoestima, espantosos 96,2%. Isso está na contramão de quem vê na gravidez adolescente uma falta de pro-jeto de vida. Os dados parecem indicar que, na ausência de uma melhor educa-ção, de melhores condições de vida e de oportunidades, essa gravidez, embora não prevista, se configura como proje-to de vida e não a ausência dele”, diz Sandra. “Para boa parte da sociedade, a gravidez na adolescência é um mal de grandes proporções, uma irresponsa-bilidade, quase uma tragédia nacional, já que o que se espera dos jovens é que estudem e se preparem para o mercado. Essa visão ideal não leva em conta que as oportunidades não são oferecidas de maneira igual para todos na sociedade brasileira”, observa Maria Luiza Heil-born, professora do Instituto de Medi-cina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). “É o mesmo equívoco de achar que as populações po-bres estão prestes a criar uma explosão demográfica. Em geral, nos segmentos mais pobres, a maternidade é vista como um status social face à falta de perspec-tivas profissionais, uma forma de entrar no mundo adulto. Nas classes médias, a maternidade só é bem aceita mais tarde, quando as questões profissionais e finan-ceiras estão resolvidas. Daí, a recorrência ao aborto nesses estratos”, analisa.

Para a pesquisadora, ao mesmo tem-po em que a gravidez jovem é inde-sejada, um indicador de “subdesen-

volvimento”, a sociedade fechas as por-tas de acesso a métodos contraceptivos e criminaliza o aborto e a pílula do dia seguinte. “Há uma censura contra a gra-videz na adolescência, mas não há o mes-mo consenso em permitir o uso de certos métodos de interromper a gravidez”, avalia Maria Luiza. “As escolhas contra-ceptivas e reprodutivas estão sendo feitas em um contexto de ilegalidade do aborto e de pouca informação e provisão ina-dequada da contracepção de emergência

dificuldade de acesso

casou cedo

Sem outra opção

Classe econômica

D e e C A e B

30,4%

20,9% 23,1%

Classe econômica

D e e C A e B

54%47,8%

43,9%

Classe econômica

D e e C A e B

16,9% 14,7%17,4%

Anos de estudo

0 a 4 5 a 8 9 ou mais

37,3%

26,1%21,3%

Anos de estudo

0 a 4 5 a 8 9 ou mais

63,3%

49,8%46,3%

Anos de estudo

0 a 4 5 a 8 9 ou mais

15,1%18,3%

13,4%

estuda atualmente

estuda atualmente

estuda atualmente

trabalha atualmente

trabalha atualmente

trabalha atualmente

Não54,2%

Sim38,5%

Sim47,4%

Não52,9%

Sim18,2%

Sim11,1%

Não17,6%

Não15,5%

Não28,1%

Sim19,3%

Não28,7%

Sim21,9%

Page 80: Pesquisa Fapesp 192

80 fevereiro De 2012

transmissíveis a questão da gravidez? Foi uma falta terrível de visão”, nota Elza. A pesquisadora não é tão otimista sobre o entusiasmo das jovens que engravidam na adolescência. “Em geral, essa visão positiva é post facto, ou seja, uma forma de aceitar algo já posto”, diz.

A demógrafa também não concor-da totalmente com a tese de que boa parte das jovens que deixou

a escola ao se verem grávidas teria saí-do de qualquer forma ou já estavam fo-ra dela antes da gravidez. “É pertinente perguntar por que isso ainda aconte-ce numa sociedade em que as melhores oportunidades de emprego estão asso-ciadas a maiores níveis educacionais. Não há programas especiais para mães jovens nas nossas escolas e, ainda que não tenhamos dados concretos, temos que considerar que ser mãe quando já há tão poucas chances para pessoas com baixa educação terá consequências sérias nas vidas dessas adolescentes”, acredita a demógrafa. Uma jovem sem filhos tem 60 vezes mais chances de continuar na escola do que uma mãe da mesma idade e estrato social e econômico.

“No Brasil, a falta de educação e opor-tunidades está induzindo muitas ado-lescentes a começar uma família como projeto de vida. Num sistema educacio-nal e econômico melhor, isso, com certe-za não ocorreria, como se vê nos países avançados em que também há queda na

no Brasil. Vale lembrar ainda o reduzido nível de implementação dos programas de educação em sexualidade nas escolas públicas. Qual seria a trajetória dessas jovens se as instituições melhorassem sua ação e o país tivesse oportunidade mais igualitárias?”, pergunta-se Sandra. Afinal, estar informado sobre métodos contraceptivos durante a relação sexual não garante seu uso adequado. “Nessa idade, há uma grande imprevisibilida-de dos encontros sexuais e, logo, não há incorporação da contracepção ao coti-diano juvenil. Existe vergonha em falar com a família ou ir a uma farmácia para comprar preservativos. Já a pílula, com seus efeitos colaterais sobre o corpo das jovens que vivem numa sociedade que cobra formas perfeitas, a tendência eco-lógica dos jovens de não ingerir produtos químicos, e o esquecimento de tomar a pílula, determinam a gravidez indese-jada”, avalia Eliane Brandão, do IMS/Universidade Federal do Rio de Janeiro. A tudo isso se reúnem as falhas no uso dos contraceptivos e o despreparo dos profissionais de saúde em atender jovens e explicar os métodos.

“No fundo, o sexo entre adolescentes é um tabu, algo não assumido e que não é contemplado com a atenção necessá-ria pelas autoridades, pela escola e pela família. Por que as campanhas do uso da camisinha contra o HIV, que tive-ram grande repercussão, não atrelaram ao problema das doenças sexualmente

fecundidade geral, mas sem concentração em faixas etárias baixas”, pondera Elza. Quem efetivamente planejaria ser mãe tão jovem num país sem creches ou apoio à maternidade adolescente, obrigando-as a contar com a solidariedade familiar e de vizinhos para sobreviver e entrar no mer-cado. “Isso explica as grandes filas para esterilização, que expõem as mulheres a DSTs. Exercer a sexualidade não é fácil. É um direito natural, mas há riscos.” Ao mesmo tempo, nas classes mais abastadas, a pesquisa revelou um fenômeno curio-so: 44% das jovens entre 15 e 20 nunca tiveram relações sexuais. “Esse número nos impressionou. Elas afirmam ter ou-tras coisas para fazer e ocupar o tempo e querem casar virgens: não se trata apenas de não engravidar ou não iniciar a vida sexual. É um conservadorismo crescente que pode estar associado ao aumento dos evangélicos”, observa Elza.

o ProJEtoReproduão assistida no Brasil: aspectos sociodemográficos e desafios para as políticas públicas – nº 2010/14827-6

modAlIdAdEJovem Pesquisador

co or dE nA dorASandra Garcia – Cebrap

InvEStImEntoR$ 142.680,00

reprodução postergadaProporção de mulheres com 30 anos ou mais que não tiveram filhos antes dos 30 anos, por perfil sexual e reprodutivo, segundo razões por não terem tido filhos. Brasil, 2006. Respostas múltiplas e estimuladas

FONTE PesquisA nAcionAl De DemogrAfiA e sAúDe – 2006

queria estudar e ter profissão antes de ter filhos

queria aproveitar a vida antes de ser mãe

Nunca quis ou ainda não quer ter filhos

Companheiro não quis ter filhos

Nunca se casou ou não teve parceiro com quem quisesse ter filhos

Medo da gravidez e do parto

Aborto espontâneo

Aborto provocado

63,3%

66,5%

56,8%

52,3%

6,4%

3,9%

35,7%

28,2%

14,5%

8,8%

25,8%

25,9%

28,1%

58%

G1 Mulheres que iniciaram atividade sexual antes dos 30 anos e nunca engravidaram

G2 Mulheres que iniciaram a vida sexual antes dos 30 anos e engravidaram com 30 anos ou mais

Page 81: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 81

mais recentemente, a Medida Pro-visória 577 do governo federal que instituiu um cadastro na-

cional de gestantes e puérperas, cuja intenção seria a de diminuir a morta-lidade materna, pode ter como conse-quência a identificação de ocorrência de abortos, “o que seria uma invasão direta da intimidade das mulheres e a possibilidade de pressão de grupos conservadores para propostas e medi-das que viessem a retroceder os avanços já obtidos nesse campo, como conge-lamento de embriões e experimentos com célula-tronco”, fala Elza.

Para complementar o novo quadro demográfico que se desenha, há o fe-nômeno da gravidez após os 30 anos. A pesquisa mostra que “são as mulheres de estratos sociais e educacionais pri-vilegiados que optam por não ter filhos e se concentrar na realização pessoal e profissional. Mas chama a atenção que, dentre elas, 45% nunca se casaram ou se uniram. Entre 1996 e 2006, a proporção de mulheres que não tiveram filhos antes dos 30 anos cresceu de 5,3% para 9,2% e a daquelas que os tiveram com 30 anos ou mais cresceu de 4,8% para 6,7%”, fala El-za. A percepção que essas mulheres têm de sua vida é que fizeram a escolha certa e que serão melhores mães com mais de 30 anos. Quando, porém, o adiamento da maternidade passa limites biológicos, acarretando problemas de fertilidade, entra em cena o mais novo componen-

te da transição demográfica em curso: a reprodução assistida. “Trinta e sete por cento das mulheres em idade fértil de-claram não poder ter filhos, por serem estéreis ou terem sido esterilizadas. O número cresce para 57% na faixa dos 35 aos 49 anos. Já das férteis dessa idade 7% afirmaram que querem ter filhos. Se levarmos em conta ainda o arrependi-mento das esterilizações, a reprodução após os 30 anos, teremos um porcentual grande de mulheres que querem usar os serviços de reprodução assistida”, expli-ca Sandra Garcia, do Cebrap, e autora da pesquisa Reprodução assistida no Brasil, que tem apoio da FAPESP na categoria Jovens Pesquisadores.

reprodução assistida ganha forte demanda interna, mas não há ainda regulamentação para garantir segurança

um fenômeno presente em vários países europeus e nos EUA, a re-produção assistida tem uma cres-

cente demanda no Brasil, mas, na grande maioria, os tratamentos são feitos em clí-nicas privadas com um alto custo. “Hoje não são apenas os casais mais abasta-dos, mas a população mais pobre que quer ter o direito ao processo, que está garantido pela Constituição na questão do direito à reprodução. É do Estado a responsabilidade de disponibilizar os tratamentos para a população em geral”, conta Sandra. Lésbicas e homossexuais masculinos, ao lado de pessoas solteiras, também reivindicam esse direito. Em 2005 foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Hu-mana Assistida, ligada ao SUS, mas logo em seguida foi suspensa. “É um desres-peito ao direito de cidadania, bem como deixa a prática sem qualquer regulação, vulnerabilizando as mulheres. Não é in-comum, quando uma nova tecnologia em reprodução assistida é divulgada na midia, haver uma corrida às clínicas que a realizam, na busca de soluções tecnoló-gicas que ainda estão sendo apropriadas pelo mercado e necessitando de maior tempo para sua validação.” conta a pes-quisadora. Para Sandra, a reprodução assistida não vai impedir a queda da fe-cundidade, mas pode trazer realização a muitas pessoas. “Falta, porém, uma mo-vimentação maior das mulheres por esse direito. Isso pode ser devido ao fato de que os movimentos de mulheres lutam há muito tempo pelo direito de acesso ao aborto e aos métodos contraceptivos, demandas prioritárias ainda não ple-namente atendidas”, diz Sandra. “Por outro lado, o trabalho de desconstrução da maternidade como destino feminino, pelos movimentos feministas, levou a que parte desse movimento exercesse fortes críticas e resistência às tecnolo-gias reprodutivas”, acrescenta.

A pesquisadora Elza Berquó afir-ma que “homens e mulheres devem ter o direito de decidir tanto sobre se-xualidade quanto orientação sexual e reprodução, cabendo ao Estado infor-mar e dar condições para que o sexo seja seguro e, portanto, prazeroso”. É na intimidade que se desenha o novo mapa demográfico do país. Conhecê-lo e compreendê-lo pode vir a contribuir para a garantia e a ampliação dos direi-tos sexuais e reprodutivos. n

Page 82: Pesquisa Fapesp 192

82 _ fevereiro De 2012

Boneco de Albert einstein na estação Ciência, em São Paulo

_ PeRCePçãO DA CIêNCIA

o que você não quer ser quando crescerPesquisa mostra que menos de 3% dos

adolescentes latino-americanos desejam

seguir uma carreira científica

mesmo vivendo num mundo imerso em tecnologia, o jovem, ao se depa-rar com a célebre pergunta “o que você quer ser quando crescer?”, di-ficilmente responderá “cientista”.

Segundo a pesquisa Los estudiantes y la ciência, projeto do Observatório Ibero-americano de Ciên- cia, Tecnologia e Sociedade (Ryct/Cyted), organi-zado pelo argentino Carmelo Polino, apenas 2,7% dos estudantes secundaristas (de 15 a 19 anos) da América Latina e Espanha pensam em seguir uma carreira nas áreas de ciências exatas ou naturais, como biologia, química, física, e matemática (as ciências agrícolas mal aparecem). Realizada en-tre 2008 e 2010, foram consultadas cerca de 9 mil escolas, privadas e particulares, em sete ca-pitais: Assunção, São Paulo, Buenos Aires, Lima, Montevidéu, Bogotá e Madri. Curiosamente, 56% dos entrevistados se disseram interessados em se profissionalizar em ciências sociais e um quinto deles optou pelas engenharias. A equipe brasilei-ra participante do projeto veio do Laboratório de Jornalismo da Unicamp (Labjor), coordenado pelo linguista Carlos Vogt, responsável pelo capítulo “Hábitos informativos sobre ciência e tecnologia” do livro, lançado em espanhol e disponível ape-

nas para download pelo link www.oei.es/salactsi/libro-estudiantes.pdf.

“São dados preocupantes para sociedades em cujas economias há uma intensa necessidade de cientistas e engenheiros, mas há um baixo inte-resse dos jovens por essas profissões. E as razões alegadas igualmente são desanimadoras: 78% dos estudantes explicam sua opção por achar que as ciências exatas e as naturais são ‘muito difíceis’, quase metade dos alunos as considera ‘chatas’, enquanto um quarto deles afirma que esses campos oferecem oportunidades limitadas de emprego”, afirma Polino. “O número de alu-nos de ciências já está num patamar insuficien-te para as necessidades da economia e indústria e, acima de tudo, para lidar com os problemas a serem enfrentados pelas sociedades no futuro.” Ainda segundo os entrevistados, o desânimo em face do desafio das ciências está ligado, em boa parte, à forma como elas são ensinadas, e recla-mam que os recursos utilizados em sala de aula são limitados. Metade dos adolescentes tampou-co acredita que as matérias científicas tenham aumentado sua apreciação pela natureza, nem que sejam fontes de solução para problemas de vida cotidiana.

Page 83: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 83

eDu

AR

DO

CeS

AR

COMuNICAçãO

eDuCAçãO

Page 84: Pesquisa Fapesp 192

84 _ fevereiro De 2012

“Há barreiras culturais, porque os jovens de hoje acham que para ter êxi-to na vida, ter dinheiro, não é preciso estudar muito. É possível escolher uma carreira de resultados econômicos mais rápidos. A cultura do esforço, que é a cultura da ciência, vem perdendo es-paço. Temos a necessidade urgente de uma política pública de educação e co-municação da ciência”, avisa Polino. Em alguns pontos a nova pesquisa reforça algumas tendências observadas no estu-do anterior do grupo, Percepção pública da ciência (ver “Imagens da ciência” na edição 95 de Pesquisa FAPESP; “Leitores esquivos”, na 188; e “Avanços e desafios”, na 185), de 2004, mas a pesquisa recen-te, com o foco nos jovens, traz novos e preocupantes dados. “Num país como o nosso, cujo futuro depende dos avan-ços de ciência e tecnologia, e onde há uma grande carência de profissionais técnicos e engenheiros, esses números demandam atenção das autoridades e da sociedade em geral para despertar nesses jovens o interesse pelas carrei-ras científicas. Acima de tudo, é um pa-radoxo, porque vivemos num mundo estruturado pela presença da tecno-logia em todos os espaços da vida das pessoas”, analisa Vogt. “Apreciamos as benesses do esforço científico, mas não nos interessamos em continuar esse trabalho. As facilidades são ofertadas, mas são ilusórias, porque se quisermos tomar posse dessas conquistas é preci-so capacitação científica, capacidade de abstração, mesmo com todas essas dificuldades que advêm do estudo das ciências exatas e naturais.”

“Já existem obstáculos grandes para os jovens adentrarem o mundo das ciên- cias, visto como hermético, uma coisa de iniciados com linguagem própria que pouco tem a ver com o mundo sensível em que vivemos, exigindo um alto grau de abstração, e nem sempre se pode en-contrar com facilidade analogias na vida pessoal dos estudantes”, observa Vogt. “Imagine tudo isso num país como o

nosso em que apenas 2% dos formados desejam seguir uma carreira no magis-tério. A situação de ensino é lamentável e, na maioria dos casos, quem dá aulas de ciências vem de campos alternativos, como engenheiros ou médicos, pouco interessados em facilitar ou renovar a maneira de ensinar.”

são, portanto, sutis as razões que levam um estudante a optar pela carreira científica. Segundo a pes-

quisa, 4 em cada 10 estudantes seguiriam a profissão por dois motivos: viajar muito e trabalhar com novas tecnologias. Pa-ra um terço dos interessados, o salário, que consideram atrativo, é também uma variável a ser levada em conta para essa

escolha. Bem atrás, com menos de 18%, estão motivos como: descobrir coisas novas, solucionar problemas da huma-nidade e avançar o conhecimento. Bem abaixo, com menos de 5%, estão razões como exercer uma profissão socialmen-te prestigiada ou trabalhar com pessoas qualificadas. No campo dos fatores que desanimam os jovens, o grande “vilão” é a didática das ciências nas aulas, que afasta da cabeça dos estudantes o desejo de uma carreira científica ou um futu-ro laboratorial. Em seguida, para 6 em cada 10 alunos, a dificuldade em enten-der as matérias é um filtro negativo. O “tédio” assola metade dos jovens. Daí, outro fator que os desanima é a ideia de que escolher a área científica é seguir estudando “indefinidamente” algo que consideram “chato”. Em quarto lugar, com 24%, está o receio de que existam poucas oportunidades de conseguir um emprego na área.

Isso não impede os jovens de ver aque-les que escolheram a ciência para profis-são como figuras socialmente prestigia-das, cujo trabalho está associado a fins altruístas e ao progresso, e a imagem dos cientistas que predomina é a de apaixo-

nados pelo seu traba-lho, com mentes aber-tas e um pensamento lógico, não vigorando mais o estereótipo do cientista “solitário” e “distante da realidade”. Há, porém, um ponto controverso: os jovens estão convencidos, em sua maioria, de que os cientistas são donos de

uma inteligência superior, que embora possa ser vista como uma característica positiva e atrativa afugenta os jovens, que não se consideram capazes de alcançar os patamares dessas “figuras excepcio-nais”, afetando negativamente a escolha pela carreira científica. “É preciso anali-sar esses dados a partir do seu potencial, pois é possível mudar esse paradigma atual que reverta a situação, trazendo não apenas mais jovens para as carreiras científicas, como também melhorando a experiência de aprendizagem da educa-ção secundária”, observa Polino.

Diante da afirmação “que a ciência traz mais benefícios do que riscos à vida das pessoas”, 7 em cada 10 entrevista-dos concordaram com a premissa. Mas

num país com poucos engenheiros preocupa esse desinteresse dos jovens

evOluçãO DOS uNIveRSItáRIOS FORMADOS POR áReA DO CONHeCIMeNtO

1.200.000

1.000.000

800.000

600.000

400.000

200.000

0

1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008

FONTE elAborADo com bAse em DADos obtiDos PelA ricyt (www.ricyt.org.br)

• Ciências agrícolas

• Humanidades

• engenharia e tecnologia

• Ciências médicas

• Ciências naturais e exatas

• Ciências sociais

Page 85: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 _ 85

diante da assertiva “a ciência e a tecno-logia estão produzindo um estilo de vida artificial e desumanizado”, as posições são menos definidas e a resposta mais recorrente (21,5%) foi “não concordo, nem discordo”. O contexto social reve-lou aspectos interessantes: os jovens de escolas públicas são menos entusiastas das comodidades oferecidas pela tecno-logia. “Não é de estranhar que os que têm menos acesso a ela percebam menos a sua importância em facilitar a vida das pessoas”, nota Polino. Diante das afir-mações “contraditórias” de que a ciência está “tirando postos de trabalho” e que “a ciência trará mais chances de trabalho para as gerações futuras” os resultados revelam que mais jovens (37%) têm me-do de perder seu emprego por causa da ciência do que são otimistas com o futu-ro (32%). Segundo os pesquisadores, as respostas seguem o padrão da juventude latino-americana, para quem a “merito-cracia” no trabalho é mais mito do que realidade. Quando o meio ambiente entra em cena, tudo piora.

em face das assertivas “ciência e tec-nologia eliminarão a pobreza e a fome do mundo” e “a ciência e a

tecnologia são responsáveis pela maior parte dos problemas ambientais”, 3 em cada 10 estudantes não acreditam no poder de “cura” científico e a cifra se

res, se bem aproveitado pode servir de base a uma cidadania mais crítica e res-ponsável. “Instalar uma usina em Angra sem consultar a sociedade é, hoje, algo impensável. Os jovens pressupõem que exista um sistema que enfatiza a demo-cratização nos processos científicos, o que não implica votar em quem vai ou não para um laboratório”, observa Vogt. “Eles aceitam uma cultura científica que realize uma ligação entre razão e huma-nidade, entre ciência e sociedade.”

Isso talvez explique um dado curioso descoberto na pesquisa realizada pelo Labjor. Se o caminho do conhecimento científico principal continua a ser a te-levisão, seguida pela internet, a ficção científica, em livros, filmes, HQs ou ga-mes, ganhou um honroso terceiro lugar como fonte de informação sobre ciências para os jovens. “Ao lado da internet, es-ses meios diferenciados oferecem um grande potencial de atrair jovens para a ciência de forma lúdica e interessante, uma forma estratégica de atingir essa camada da população para a divulgação de assuntos científicos”, nota Vogt. Até porque em vários lugares pesquisados as instituições oficiais são pouco conhe-cidas ou mesmo ignoradas, assim como os locais onde se pode informar sobre ciência, como museus ou zoológicos. Assim, curiosamente, uma cidade como São Paulo, onde há uma concentração de centros de pesquisa, universidades, e onde o acesso à informação científica é favorecido pela presença de museus e uma oferta midiática rica, mostrou ín-dices de consumo informativo da popu-lação abaixo da média. n carlos haag

repete na certeza de que a ciência está afetando o meio ambiente negativamen-te. Aqui também as mulheres mostram sua visão: elas são as mais céticas, com 5 em cada 10 rejeitando a capacidade da tecnologia em pôr fim às mazelas glo-bais. No cômputo total, porém, há certo otimismo juvenil: 52% dos adolescentes estão abertos e favoráveis ao que a ciên- cia e a tecnologia possam realizar em nossas sociedades, mostrando que não vigora mais a fé cega e absoluta diante de seus resultados, sendo bem mais mo-derados e conscientes dos riscos do que os adultos, o que, dizem os pesquisado-

O que AFAStA OS JOveNS DAS CIêNCIAS (em %)

FRequêNCIA COM que OS JOveNS Se INFORMAM SOBRe CIêNCIA

Dificuldade das matérias de ciência

Preferência por outras opções profissionais

Tédio nas matérias de ciência

Desinteresse em seguir estudando indefinidamente

Poucas chances de conseguir emprego

Preferência por empregos com horários mais regulares

Orientação da ciência para objetivos econômicos

Falta de bons salários

Necessidade de sair do país para ser cientista

Falta de estabilidade dos empregos em ciência

Dificuldade de ganhar fama

Feiras e olimpíadas

Rádio

livros

Revistas

Museus, centros e exposições

Conversas com amigos – C&t

Jornais

Internet

televisão – C&t

zoológicos e jardins botânicos

Conversa com amigos – meio ambiente

Filmes, livros e revistas – ficção científica

televisão – natureza e vida animal

FONTE PesquisA ibero-AmericAnA com estuDAntes De nível méDio, observAtorio –oei (2009)

0 0,5 1 1,5 2 2,5

Nunca = 0

quase nunca = 1

De vez em quando = 2

quase sempre = 3

Sempre = 4

média

FONTE PesquisA ibero-AmericAnA com estuDAntes De nível méDio - observAtorio – oei (2009)

Assunção

55,1

60,3

46,9

26,9

29,3

17,9

11,9

6,9

11,1

8,1

6,9

Bogotá

46,8

47,3

53,7

25,8

27,7

14,5

17,4

10,8

9,5

10,4

10

Buenos Aires

66,6

54,6

58,3

36,1

17,7

12,2

8,4

9,3

6,8

4,9

4,8

lima

51,4

40,1

58,7

26,8

29,9

15,9

13,8

12,4

12,3

13,3

7,7

Madri

72,5

46,4

47,2

51,7

24,7

6,5

9,3

11,1

4,2

5,2

3,1

Montevidéu

78,9

47,2

47,5

42,6

21,3

7,9

6,6

5,7

11,3

5,1

2,6

São Paulo

47,3

70,7

42,3

30,3

20,9

12,1

10,3

6,5

3,7

4

6,5

Total

60,7

51,6

50,6

34,8

24,6

12,2

11

8,9

8,6

7,3

5,8

Page 86: Pesquisa Fapesp 192

86  fevereiro De 2012

Gênero musical foi importante

instrumento de consciência negra

na década de 1970

gonçalo Júnior

uma música pode mudar tudo, provo-car um movimento, uma revolução. Ou torna-se emblemática por possuir um conteúdo inédito em seus versos. Foi o que aconteceu em 1970, quan-

do o compositor carioca Candeia (1935-1978) lançou o samba Dia de graça, que trazia em seus versos a frase emblemática: “Negro, acorda, é hora de acordar/ Não negue a raça/ Torne toda manhã dia de graça”. “Jamais, em toda história do samba e talvez da música popular brasileira, uma exortação explícita à ação direcionada ex-clusivamente aos negros havia sido imiscuída em meio a versos de canções”, observa Dmitri Cer-boncini Fernandes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador da pesqui-sa A cor do samba: música popular e movimento negro, integrada pelos professores Sergio Miceli, da Universidade de São Paulo (USP), e Gustavo Ferreira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), com apoio do Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O projeto é um desenvolvimento do pós-douto-rado de Cerboncini, A cor do samba: música po-pular e movimento negro, apoiado pela FAPESP.

_ SONS e IDeOlOGIAS

A política que acaba em samba

1

Page 87: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192  87

O verso chamou tanto a atenção do pesquisador que o levou a pesquisar a biografia do autor. No caminho encontrou um movimento extremamen-te ativo na década de 1970 que envolveu outros sambistas engajados em questões da negritude, como Paulinho da Viola e Nei Lopes, assim como textos desses personagens que, de uma forma ou de outra, “reescreviam” a história do samba como legado da cultura africana no Brasil.

Até então o samba tinha sido descrito por cro-nistas, críticos e especialistas como emblema na-cional, síntese das contribuições das três raças na formação brasileira, legado do construto da democracia racial que imperava desde a década de 1930. “Após a atuação desses sambistas, esse panorama começou a mudar.” Surgiram versos em louvor à africanidade e à inclusão de instrumen-tos musicais ligados às religiões afro-brasileiras, além da aproximação inédita ensaiada pelos sam-bistas com os países da África. E um panorama bem diverso irrompeu. “Paralelo a isso, ocorria o ressurgimento do movimento negro, pela primeira vez num tom afirmativo, que prezava a identida-de negro-africana-brasileira e sua cultura. Creio que esses são os indícios mais fortes que apontam para a direção de um novo ‘caldo’ nascente no

Duas visôes do mundo negro: ao lado, sambistas de escola carioca visitam jornal e se apresentam; acima, longe do exótico, uma passeata do movimento negro no Rio

FOT

OS

1. A

cer

vo

uh

/ f

olh

AP

res

s 2

. nie

ls A

nD

reA

s /

folh

AP

res

s

2

MúSICA

SOCIOlOGIA

Page 88: Pesquisa Fapesp 192

88  fevereiro De 2012

período, que mescla o surgimento de uma intelectualidade negra consciente, politica-mente ativa, reunida

contra a ditadura militar e que passava a enxergar no samba um dos principais legados negros a serem defendidos e va-lorizados”, observa o pesquisador.

AUtÊntIcoEntre as conclusões da pesquisa, o pro-fessor descobriu a existência de uma re-presentação surgida nos anos 1970, que conferiu ao samba “autêntico” uma nova identidade, a de legado da cultura afro-brasileira em concorrência com a de “na-cional”. “Tal construto foi estabelecido por um grupamento de sambistas, jorna-listas e demais intelectuais engajados nas questões latentes do período, como, por exemplo, a suposta descaracterização do Carnaval e a comercialização desenfreada e empobrecedora do samba”, explica.

Ao mesmo tempo, o movimento negro retornava com força de um longo período de desaparição forçada, “o que ensejou o encontro de ideários formulados por artistas e intelectuais afins, traçando um espaço de intercâmbio entre eles”. Fer-nandes acrescenta que a lógica atinente à atividade musical popular ligou-se as-sim às dinâmicas externas a ela, no caso, a de um dos movimentos sociais flores-centes, “resultando em uma espécie de samba que participava da afirmação da identidade negra em diversos âmbitos e,

em contrapartida, de um movimento ne-gro que utilizava o samba e os sambistas como exemplos máximos da expressivi-dade da cultura negra”. O pesquisador destaca que não se trata de afirmar que questões raciais não eram tratadas antes em versos de canções de samba, mas que as canções que falassem desses assuntos se pautavam ora por denúncias vazias, ora pelo humor – geralmente assenta-do nas bases do racismo cordial –, ora por motivos diversos. “O que importa ressaltar, contudo, é que jamais esses versos enalteciam a vinculação do negro ao samba como seu exclusivo produtor, criador ou cultor, fato este que só veio a irromper na década de 1970.”

Segundo ele, é difícil precisar como, no bojo de ampla frente formada con-tra o inimigo comum, a ditadura mili-tar, um amálgama reunindo ativistas de esquerda, jornalistas, intelectuais e artistas filiados a tendências variadas ensejaria o surgimento de um grupo particular de sambistas contestadores daquela ordem, cujas atividades se nota-bilizaram pelo viés politizado impresso em diversas instâncias – sobretudo em suas obras musicais e literárias. “Cada sambista possuía uma trajetória distin-ta e havia diversos canais que interfe-riram na formação daquela figuração. Paulinho da Viola, Candeia e Martinho da Vila possuíam grande proximidade com jornalistas, acadêmicos, artistas e intelectuais pertencentes aos quadros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), casos de Sérgio Cabral e Lena Frias, o que facilitava o escoamento de suas de-clarações, da realização de entrevistas e de suas investidas, artísticas ou não, nas mídias em que esses personagens trabalhavam.” Outros, como Nei Lopes, tinham uma formação política tenden-do ao trotskismo em razão de contatos estabelecidos no período em que cursou a faculdade de direito. “Posição que era, em tese, mais afim com a dos líderes do movimento negro renascente.”

Esses sambistas engajados, afirma o pesquisador, eram relativamente “ilus-trados”. Isto é, diferentemente da ima-gem que porventura se fazia dos antigos sambistas, eles tinham um bom nível educacional. Candeia passou em primei-ro lugar em concurso público para poli-cial civil; Paulinho da Viola era empre-gado da burocracia bancária; Nei Lopes era formado pela Universidade do Brasil

O sambista Candeia, um dos principais representantes do movimento

Sambistas engajados eram relativamente ilustrados e com bom nível educacional

1

o ProJEto

A cor do samba: música popular e movimento negro – nº 2010/19900-3

modAlIdAdEPós-doutorado

co or dE nA dorMarcos Napolitano – uSP

InvEStImEntoR$ 42.705,69

Page 89: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192  89

(atual UFRJ); e Martinho da Vila era sargento do Exército. “O meio artístico naquele ínterim politizava-se sobrema-neira, o que fatalmente terminava por se expressar em suas obras artísticas, haja vista que este dado fazia parte de suas vivências mais caras e imediatas.” Nesse contexto, Muniz Sodré teve importância especial, apesar de não ser sambista, mas acadêmico preocupado com as questões que envolviam o samba. Em 1979, ele pu-blicou o livro O dono do corpo (Codecri), pioneiro da história do samba pontilhada de radicalismo e que deslocava de vez a visão até então imperante de que o sam-ba era “nacional”, isto é, produto das três raças formadoras da nação.

colEtIvoNão havia, explica Fernandes, um pensa-mento coletivo, um movimento conscien-te desses artistas. “O que ocorreu estava mais para uma confluência de inúmeros fatores não planejados, uma espécie de conjunção de várias resoluções e tensões simultâneas que envolviam elementos de ordem política, artística, intelectual, econômica, entre outros.” Para citar um exemplo, a afinidade brotada entre os ideais do movimento negro na abertura política parcial na ditadura militar com as dos sambistas e demais intelectuais e jornalistas engajados na arte popular não pode ser considerada algo antevisto.

Cerboncini joga luz sobre um pe-ríodo, que conta com poucos estudos acadêmicos, de grande força musical e

comercial do gênero. “Desencontros de opi-nião refletem a falta de maior reflexão acadê-mica sobre o que teria

à análise da “alta” cultura e da intelec-tualidade, e outra ligada mais aos ele-mentos “massificados”, por assim dizer. Miceli participa do estudo do samba como pesquisador sênior. “O que mais me interessou no trabalho de Dmitri foi o empenho em restituir uma história

social dos sambistas fora dos parâmetros hagiográ-ficos usuais e, também, o empenho em qualificar os aspectos musicais no tra-balho criativo de suces-sivas gerações”, observa Miceli. “Para entender a consagração dessa insti-tuição, inclusive junto ao mercado fonográfico, é preciso entender como ela incorporou um determi-nado passado. Mais do que

isso, como ela reinventou esse passado e, ao mesmo tempo, o atualizou, com a mobilização de uma inteligência estéti-ca que ia muito além da música popular em si”, analisa o professor Marcos Na-politano, do Departamento de História Social (FFLCH-USP), que foi supervisor do pós-doutorado de Fernandes.

“A música popular brasileira não acon-teceu apenas como um conjunto de even-tos históricos, mas também como nar-rativa desses eventos, perpetuada pela memória e pela história, que articulou e rearticulou eventos como se fossem expressão de ‘tempos fortes’ e ‘tempos fracos’ da história. Expressão de uma síncope de ideias dando ritmo e fluidez na passagem do tempo, construindo um enredo vivo, aberto e imprevisível, su-jeito a revisões ideológicas, reavaliações estéticas e novas configurações de pas-sado e futuro”, avalia Napolitano. Ele destaca dois aspectos na investigação de Fernandes: “É fundamental essa análise sociológica e histórica do processo de construção intelectual de um discurso sobre o samba que valoriza suas ‘raízes africanas’. Este discurso, bem como as expressões musicais ligadas a ele, ten-tou desvincular o samba da expressão de uma ‘brasilidade mestiça’”, afirma. O pesquisador igualmente elogia a análise que destacou as conexões entre cultura e política. “No caso, o papel da esquerda (comunista e trotskista) na valorização de um samba negro e africano.” Nem sempre tudo acaba em pizza. Pode aca-bar, e bem, em samba. nFO

TO

S 1.

Ar

qu

ivo

/ A

gên

ciA

o g

lobo

2. f

olh

AP

res

s 3

. Ar

qu

ivo

/ A

e

à esquerda, Paulinho da viola, em 1974; ao lado, Martinho da vila, em 1977

ocorrido. Do que se pode afirmar com certeza, sabe-se que Martinho da Vila e Clara Nunes estavam entre os maiores vendedores da década, acompanhados por Paulinho da Viola e Beth Carvalho, também em grande fase. Cartola, Ado-niran Barbosa e Nelson Cavaquinho lan-

çaram seus primeiros LPs nessa década, a despeito de estarem há muitos anos na estrada. À exceção das obras de Candeia, Elton Medeiros e Nei Lopes, havia ainda outros sambistas, malvistos pela crítica de modo geral, casos de Benito di Paula e Luiz Ayrão, que arrebatavam grandes cifras nas vendagens de discos”, analisa o professor. Entre as atividades políticas que apoiavam o samba, acrescenta, ha-via iniciativas bem-sucedidas, como as de Hermínio Bello de Carvalho e Sérgio Cabral na Funarte.

A pesquisa possui lastros com um pro-jeto temático coordenado por Miceli e financiado pela FAPESP, A formação do campo intelectual e da indústria cul-tural no Brasil contemporâneo, do qual Fernandes também faz parte. Há, nes-se caso, duas vertentes de pesquisa que procuram se cruzar: uma mais voltada

não foi um movimento planejado, mas uma conjunção de personagens tentando resolver tensões

2 3

Page 90: Pesquisa Fapesp 192

90 | fevereiro De 2012

neldson marcolin

Há 200 anos era criado o primeiro

laboratório estatal de análises químicas

mEmórIA

ciência pragmática

cartas régias, alvarás, resoluções, decretos e leis foram produzidos em série assim que a Corte de dom João VI se instalou

no Brasil, em 1808. As ordens eram necessárias para a reorganização do Estado português, agora a partir de terras brasileiras, e para administrar o país sem perder de vista o comércio entre Portugal, África e Ásia. De certa forma, as novas resoluções ajudaram também a vislumbrar uma maneira de fazer ciência de modo pragmático, com apoio oficial. Em 1812, o decreto de 25 de janeiro criou o Laboratório Químico-Prático do Rio de Janeiro com a finalidade de analisar substâncias e produtos das colônias que pudessem ser utilizados no comércio interno e externo. Foi o primeiro laboratório estatal em que não havia vinculação da química com o ensino, como ocorria na Academia Militar desde 1810.

A proposta partiu do conde das Galveas, João de Almeida de Melo e Castro, titular de três ministérios. O laboratório funcionou por sete anos, de 1812 a 1819, sempre ligado ao Ministério e Secretaria de Estado e Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, que teve quatro titulares nesse período. Para dirigi-lo foi escolhido Francisco Vieira Goulart (1765-1839), cônego português que havia sido professor de filosofia racional e moral em São Paulo e era membro da Academia das Ciências de Lisboa.

A área escolhida para a instalação foi no bairro de Mata-Porcos (atual Largo do Estácio). A ideia era adotar o modelo do laboratório químico da Universidade de Coimbra e preparar medicamentos – além de fazer análises químicas –, embora esse plano não tenha tido sucesso. Para montá-lo solicitou-se ao Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa uma longa lista de material. Não deu certo. Além de receber apenas uma pequena parte das peças pedidas, a vidraria foi colocada junto com os artefatos de ferro. Dos 91 itens enviados ao Rio, só 42 chegaram intactos, de acordo com documentos consultados pela historiadora Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias de Estudos de História da Ciência da

Desenho de pau-brasil (1870)da coleção Flora brasiliensis, editada por Carl von Martius

1

Page 91: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 91

Conde da Barca retratado por Gregório Francisco de queiroz (c. 1804)e o alambique de seu laboratório: espionagem

FOT

OS

1. f

lor

Abr

Asi

lien

sis.

cr

iA.o

rg

.br

2. b

ibli

ot

ecA

nA

cio

nA

l D

e P

or

tu

gA

l 3

. o p

at

rio

ta

/ b

rA

sili

An

A u

sP 4

. Flo

ra

vo

n d

Eut

sch

an

d, D

e o

tt

o w

ilh

elm

th

om

é

estava a análise do pau-brasil (Caesalpinea echinata) para extração da fécula corante, que deveria ser preparada no Rio para ser vendida na China. O extrato foi feito, mas os chineses optaram por importar um lenho mais barato do Sião (atual Tailândia), e o projeto não foi em frente. Goulart testou em seguida sementes de papoula (Papaver somniferum) para fazer um extrato e produzir ópio com o objetivo de exportar para a Ásia. Ocorre que o conde das Galveas, autor da encomenda, morreu e o trabalho parou. O laboratório analisou também aguardente de cana, lenhos para tinturaria e água. Os resultados parecem não ter entusiasmado os sucessivos chefes de Goulart, que recebeu ordens de encerrar as atividades.

“De acordo com o manuscrito, contribuiu para o insucesso do laboratório estatal a concorrência de um laboratório privado, de Antonio de Araújo de

Desenho de papoula, parte da Flora von Deutschand (1885), de Otto thomé: extrato para exportação

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cesima/PUC-SP).

Há um manuscrito supostamente de Francisco Goulart em que ele relata as atividades do laboratório e as condições que decretaram seu fechamento. Embora não esteja assinado, em alguns trechos ele se traiu e escreveu em primeira pessoa. Até 2003, apenas a primeira parte do documento era conhecida. Naquele ano, Nadja Paraense dos Santos, pesquisadora do Programa de Pós-graduação de História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), encontrou o manuscrito inteiro, com 196 páginas, no Arquivo do Museu Imperial, em Petrópolis (RJ).

Goulart relata que entre os primeiros trabalhos realizados no laboratório

Azevedo, o conde da Barca, que em 1814 assumiu o ministério ao qual Goulart era subordinado”, conta Nadja dos Santos. “Pelo que sabemos, o laboratório privado do conde foi montado ainda em 1808 e fornecia medicamentos para o Exército, Armada Real e domínios ultramarinos”, diz Márcia Ferraz. O conde da Barca foi um ilustrado com múltiplos interesses e grande influência na Corte. A vinda da Missão Francesa – artistas, artesãos e arquitetos – ao Brasil teria sido uma sugestão dele.

Em seu manuscrito Goulart conta que esteve no laboratório privado a pedido de seu primeiro chefe, conde das Galveas, para observar como era preparada a aguardente. O diretor do laboratório, José Caetano de Barros, recebeu Goulart sem saber que era alguém conhecedor de química e lhe explicou todo o processo. Hoje, o episódio seria chamado de espionagem industrial.

2

3

4

Page 92: Pesquisa Fapesp 192

92 | fevereiro De 2012

Essa pluriconectividade, como ele a chama, cria pessoas egoís-tas, isoladas, fechadas em si mes-mas ou esses relacionamentos múltiplos estariam gerando uma consciência que cada um tem de se mover de vez em quando por certas causas e valores? Ou seriam ambas as coisas? Mais uma vez, ele admite, não se sabe a melhor resposta. A transformação da so-ciedade se dá em um mundo mul-tipolar e pluricultural ainda por ser entendido.

Há também o fenômeno de des-locamento de poder no mundo, embora os Estados Unidos se man-tenham no topo. Para Fernando Henrique, isso acontece em gran-

de parte graças a sua enorme capacidade não apenas de produzir tecnologias novas, mas de difundi-las com facilidade e rapidez pela socie-dade, “talvez a característica mais marcante do capitalismo americano contemporâneo”. A China entra no jogo com força, mas não se contrapõe como uma expansão do comunismo, e sim como um capitalismo de Estado com poder político centralizado. O ex-presidente fala ainda de outros temas internacionais, como a América Latina, a modernização do mundo islâmico, e repete seu já conhecido discurso sobre as drogas – “uma guerra perdida”.

No início do livro é onde estão algumas ques-tões mais pessoais, como as influências que re-cebeu e os pontos de inflexão de suas carreiras acadêmica e política. Na parte final do depoi-mento surge um Fernando Henrique menos co-nhecido, em que comenta o sentido da vida, fala de literatura, lembra-se de Ruth Cardoso e dos amigos que já se foram. Também dá uma defi-nição precisa de si mesmo como sociólogo, que ajuda a entender seus interesses atuais: “O que sempre me interessou foi fazer a sociologia do emergente, captar e buscar entender o novo, o que está surgindo. (...) Não me preocupo com o que já está. Me interessa o que vem vindo”. Não espanta, portanto, seu fascínio pelas novas rela-ções sociais de um mundo tão conectado.

Fernando Henrique Cardoso cumpre o que promete em seu mais recente livro – esponta-

neidade no falar e uma visão ampla de temas contemporâneos. Talvez a atitude provoque alguma estranheza em quem se acostumou a lê-lo co-mo um intelectual preocupado com o rigor acadêmico das ciências so-ciais ou como o político que defen-de ideias de partido ou de governo. Ocorre que a graça de A soma e o resto – Um olhar sobre a vida aos 80 anos (Civilização Brasileira, 2011) é exatamente a de oferecer opiniões pessoais de um personagem impor-tante da vida pública brasileira livre dos dois compromissos que o acom-panharam pela vida afora. O primei-ro, de intelectual engajado, cujos textos eram sempre apoiados em estudos de campo ou por teorias sociais, políticas, filosóficas ou econômi-cas. O segundo, de político com cargos relevantes, cujas declarações devem ser bem avaliadas antes de expressas, sob o risco de se voltarem contra o seu próprio governo.

O livro partiu de depoimentos dados a Miguel Darcy de Oliveira, do Instituto Fernando Henri-que Cardoso, entre maio e julho de 2011, e surgiu como uma homenagem aos 80 anos do ex-pre-sidente. A ideia é apresentar algumas questões sobre as quais ele se debruçou depois que saiu da Presidência da República (1995-2002), como as transformações sociais e econômicas globais e o esforço para entendê-las. Um dos temas que mais parecem interessá-lo é a alta conectividade entre as pessoas. “Vivemos numa sociedade em que o importante é compartilhar. Hoje, o grande divertimento dos jovens é contar o que fizeram. (...) A privacidade, que era o bem maior da so-ciedade dita burguesa, bem estabelecida, passa a ser coisa secundária. O que se quer é o contrário, que os outros saibam o que estamos fazendo”, constata. Algumas poucas páginas depois diz, perplexo, “a sociedade que está emergindo é es-tranha e complexa. O que é uma maneira elegante de dizer que não se sabe exatamente o que ela é, como funciona e para onde está indo”.

conectado no aqui e agora

rESEnhAS

A soma e o resto – Um olhar sobre a vida aos 80 anosFernando Henrique CardosoCivilização Brasileira196 páginas, R$ 29,90

neldson marcolin

FOT

OS

eDu

Ar

Do

ces

Ar

e l

eo r

Am

os

Page 93: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 93

um telhado para as estrelas

DnA dos barcos baianos

Entre 1639 e 1643 funcionou no telhado do casarão em Re-cife em que residia o conde

Maurício de Nassau, governador do Brasil holandês, um observató-rio astronômico inspirado no da famosa Universidade de Leiden e dotado da melhor instrumentação da época, inclusive de uma luneta. O alemão George Marcgrave (1610-1644), um dos naturalistas trazidos para cá por Nassau, foi o responsável pela aber-tura dessa janela para os céus em terras tropicais e seu único usuário. O livro O observatório no telhado, de Oscar T. Matsuura, professor apo-sentado do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo e atual pesquisador associado do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), reconta a história dessa empreitada científica e dos estu-dos feitos por Marcgrave nesse campo específico do conhecimento.

Mais conhecido por seus trabalhos em histó-ria natural e cartografia feitos durante sua esta-da no Brasil, de 1638 a 1643, Marcgrave é pouco lembrado por suas observações astronômicas. No livro, Matsuura enfoca justamente esse lado B do alemão, normalmente ofuscado por ele ter sido coautor, ao lado do médico Guilherme Piso, ou-tro integrante da comitiva de Nassau, do clássico Historia naturalis brasiliae, publicado em 1648. Segundo o pesquisador do Mast, Marcgrave, que estudou em Leiden (entre outros lugares) antes de vir para o Novo Mundo, foi um dos pioneiros no uso da luneta para observações astronômicas sistemáticas. Da sede do poder no Brasil holandês, Marcgrave acompanhou e fez anotações, sempre sozinho, sem auxiliares, de alguns fenômenos ce-lestes, sobretudo eclipses lunares e solares.

Astrônomo de formação, Matsuura comenta tecnicamente cada observação feita por Marc-grave em solo brasileiro e também discute a po-lêmica histórica em torno da localização exata do observatório no telhado. Fez ainda reconsti-tuições em três dimensões de como teriam sido os instrumentos e o próprio observatório, que descreve como o primeiro das Américas e do Novo Mundo. marcos Pivetta

Em seu trabalho Embarcações do Recôncavo – Um estudo de origens, publicado origi-nalmente em 1973 e agora reeditado pela

Oiti Editora, Pedro Agostinho, mestre em an-tropologia, se debruça sobre a caravela latina e a caravela redonda para entender a gênese dos saveiros baianos.

A navegação, usada no comércio e na pesca, foi durante séculos a principal via de transporte da região que viu florescer diversos tipos de embar-cação de cabotagem. Construídas basicamente de madeira, até hoje fazem parte da vida litorânea, mas há décadas, com o advento de novas técnicas e materiais para os barcos, indaga-se por quanto tempo resistirão na paisagem costeira. Segundo Pedro Agostinho, somente aquelas que se adap-tem às novas condições técnicas e econômicas poderão sobreviver.

Ajuda o leitor a imergir no tema uma edição cuidadosamente ilustrada com fotografias, mapas e gravuras comparativas das embarcações. O livro conta inclusive com imagens preciosas de Pierre Verger. São escolhas criteriosas que contribuem para o entendimento do assunto. As descrições téc-

nicas funcionam como escopo para o autor procurar as ori-gens desses barcos, que estão ligadas ao patrimônio cultural das etnias que numa época ou noutra povoaram o litoral. As embarcações baianas estuda-das originam-se da caravela redonda, surgida em come-ços do século XVI; seu DNA recebe influências portuguesa, holandesa e indígena.

Massame, moitão, amura, verga e ostaga. Quem não é um velho lobo do mar, afeito a jargões ma-rítimos, em princípio, quando esbarrar nessas palavras, pode ir a pique. O livro de Pedro Agos-tinho, longe de ser um tratado técnico sobre bar-cos, conduz o leitor nas profundezas do universo do transporte marítimo e suas origens; é fruto de um trabalho de campo completo, sistemático e original. Edição esmerada, para obter êxito com-pleto, deveria possuir um glossário que elucidas-se, por exemplo, que massame são cabos que se empregam nas embarcações a vela. leo ramos

o observatório no telhadoOscar t. Matsuura Companhia editora de Pernambuco160 páginas R$ 25,00

Embarcações do recôncavo –

Um estudo de origens

Pedro AgostinhoIphan e

Oiti editora160 páginas

RS 100,00(venda: www.

vivasaveiro.org)

Page 94: Pesquisa Fapesp 192

94 | fevereiro De 2012

criando sobre o palco vazioem momento de entressafra, Antunes Filho cogita montar Hamlet

gustavo Fioratti

ArtE

o ator que busca sentir uma emoção para for-jar os sentimentos de um personagem não pode estar no palco de Antunes Filho, 82.

Desde 1978, o mais velho dos diretores brasilei-ros ainda vivos é avesso aos clichês do realismo praticados por ele próprio em uma fase imediata-mente anterior àquele ano, que foi marcado pela estreia de Macunaíma, sua histórica adaptação para a obra de Mário de Andrade.

É justamente nessa passagem que, como reco-nhecem alguns teóricos teatrais brasileiros, reside a entrada para a contemporaneidade do teatro nacional. No livro Panorama do teatro brasileiro, por exemplo, o crítico Sábato Magaldi defende a montagem de Macunaíma como principal can-didata a esse marco.

Inquieto por natureza, Antunes não se satisfaz com uma posição já conquistada. Em cada trabalho procura superar a si próprio, e agora diz ter en-contrado um dos maiores desafios de sua carreira: quer encenar Hamlet, de William Shakespeare. “Não sei quando estreia, porque não quero fazer correndo; quero ter tempo para poder fazer um saravá ao teatro com essa montagem”, diz.

A investida surge no mesmo momento em que a produção mais recente de Antunes é revista por um projeto da TV Sesc, que filmou suas três últimas peças, Policarpo Quaresma, Foi Carmen e Lamartine Babo. As versões para a TV foram exibidas em janeiro.

Mas o que faz do trabalho de Antunes um pi-lar de quase tudo o que ainda hoje é produzido em termos de representação cênica em solo na-cional? Em primeiro lugar, esse legado se apoia justamente no afastamento das técnicas do rea-lismo. Imitar a vida deixa de ser a prerrogativa. Recriá-la parece ganhar mais sentido.

Na época em que Macunaíma estreou, o cinema articulava as ferramentas necessárias para recor-tar na tela o sonho naturalista, embora o próprio

Glauber Rocha (1939-1981) e outros cineastas de vanguarda tenham emprestado seu talento a um contraponto à mimese.

O teatro se reinventava, portanto, em busca de linguagens desconhecidas, cioso de algo que se perdera no paralelo com a sétima arte. Não só no Brasil. O experimentalismo varreu o mundo, inspirado sobretudo pelo trabalho de alguns ar-tistas europeus.

Antunes, conta ele, desde o início de sua car-reira nos anos 1940 dava sentido quase dogmá-tico aos métodos de Stanislavski, espécie de pai do naturalismo. Ainda hoje a metodologia do diretor e teórico russo está debaixo do braço de qualquer estudante de artes cênicas, nas princi-pais escolas do mundo.

Um dos maiores sucessos de Antunes antes da recriação de seu próprio estilo nos anos 1970 tem seus fundamentos técnicos nas teorias de Stanislavski. Plantão 21 (1959), de Sidney Kings-ley, recria situações de uma delegacia, tateando a verossimilhança típica do cinema. O espetáculo é protagonizado por um delegado cujas convic-ções éticas acabam se remodelando ao ambiente corrupto. No elenco estavam Jardel Filho, Mauro Mendonça e Laura Cardoso, entre outros.

É o estilo de Plantão 21 que Macunaíma recu-sa. O experimento cênico inaugurou o Centro de Pesquisa Teatral de Antunes (que existe até ho-je e é subsidiado pelo Sesc-SP) e valeu-se tanto do distanciamento crítico proposto pelo alemão Bertolt Brecht como da estilização gestual dos expressionistas.

Como lembra Sebastião Milaré em seu Hie-rofania, estudo sobre a trajetória e a elaboração do método de criação de Antunes, os elemen-tos cênicos da montagem pareciam “se resumir a folhas de jornal e longas extensões de tecido branco, que se transformavam em florestas, em rios, em tanta coisa”.

Page 95: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 95

FOT

OS

1. e

miD

io l

uis

i / A

cer

vo

geD

es s

esc

mem

ór

iAs,

20

10 2

. PA

qu

ito

/ A

cer

vo

geD

es s

esc

mem

ór

iAs,

19

84

Cenas de Policarpo Quaresma, de 2010, exibida em janeiro na tv Sesc, e de Macunaíma, na montagem de 1978, marco do teatro brasileiro contemporâneo

observa o palco vazio de seu centro de pesquisa, que tem, sobre a porta de entrada, um pequeno quadro, onde está escrito:

“De maneira nenhuma pode-se dizer que não haja nada num palco vazio, num palco que se pise de improviso. Pelo contrário. Existe ali um mundo transbordante de coisas. Ou melhor, é como se do nada surgisse uma infinidade de coisas e de acon-tecimentos, sem que se saiba como e quando”. O texto é de Kazuo Ohno. n

A partir de então, Antunes se abre para um verdadeiro surto criativo, que resultou em espe-táculos como Nelson Rodrigues, o eterno retorno (1981), Romeu e Julieta (1984) e Nova velha his-tória (1991). Neste último, o diretor chega a criar um idioma específico para os personagens de sua peça. O espectador, obviamente, não compreendia o que era dito, mas embarcava no fio narrativo de uma fábula absolutamente familiar.

O caminho traçado por Antunes em busca de uma linguagem própria passou então por influên-cias internacionais importantes, como os trabalhos do encenador polonês Tadeusz Kantor, o balé da co-reógrafa alemã Pina Bausch e o butô pós-catástrofe nuclear do dançarino japonês Kazuo Ohno.

A obsessão do diretor com um trabalho vocal eficiente para o palco – até hoje, quando fala na voz do ator, Antunes aponta a nuca, e não a boca, como principal fonte de emissão sonora – resul-tou em montagens históricas de tragédias gregas, como Fragmentos troianos (1999) e Medeia (2001). E de seus espetáculos saíram atores como Cacá Carvalho, Luís Melo e Giulia Gam.

Hoje Antunes se debruça sobre Hamlet, mas ainda incerto de um caminho para o clássico do autor inglês William Shakespeare.

Diz que decerto outras montagens antecede-rão esta, dada a complexidade da obra protago-nizada pelo príncipe da Dinamarca. Enquanto não decide por uma nova montagem, o diretor

1

2

Page 96: Pesquisa Fapesp 192

96 | fevereiro De 2012

os autores do telefoneSaulo dourado

conto

Em uma resolução de 2002, o imigrante ita-liano Antonio Meucci foi oficialmente consi-derado o inventor do telefone, após mais de

cento e trinta anos em que o título cabia a Graham Bell. Vivo ainda, o próprio Meucci entrou num processo contra o plágio do estadunidense, mas que nada lhe trouxe senão uma morte amargu-rada. Já quando o tempo não mais lhe importa, o processo é reativado pelo aparecimento de novas provas. Uma se destacou.

Entre desenhos e documentos que datam anos antes da patente de Bell, há um texto do punho de Meucci que ele não utilizou a seu favor, por esquecimento ou preservação, e que enfim, neste século, tornou sua defesa irrefutável. Trata-se de um recorte do diário de bordo escrito no navio que o levava de Florença ao continente ameri-cano, em 1835.

“Como não sonhar com a saudade, se em vigília tento sufocá-la? Hoje mais uma vez acordo com o peito cheio de Itália. Itália — mas o que significa isso? Não há enigma maior do que o sentimento por uma pátria... Um dos seus filhos mais intri-gantes me visitou hoje no leito, em meio a várias imagens que eu não soube decifrar. Mas me basta reaparecer apenas para que eu tenha muito pre-sente em mim toda a terra que eu deixo. Angiolo Bertini, onde está agora? Como me fascinava o toque do seu violão. Dedilhava as cordas como se ali houvesse vinte e não seis... Será que conseguiu o objetivo que um dia me segredou?”

Na ocasião, Meucci não contou de forma pre-cisa o que significava este segredo, pois, claro, a intenção do seu diário não é ter a visita de leito-res. Os seus advogados de defesa da atualidade, intrigados com a citação deste músico que nin-

guém ouvira falar, buscaram dados para esticar a história e entendê-la. Após dias de apuramento, acharam em uma biblioteca de Florença o resu-mo da história que segue.

Angiolo Bertini foi um tocador virtuoso, nasci-do em 1795 e falecido em 1834, sem procedência familiar confirmada nem ofício. Passeava todos os dias pela calçada da província com o seu vio-lão sob os braços. Executava para quem pedia ou para quem o encontrava todas as noites no mesmo lugar, ao lado do balcão e da bebida forte. Na madrugada volvia para o seu cortiço rua aci-ma, trôpego, cantando alto. Ninguém reclamava porque se sentiam quase gratos com a suavidade de sua voz.

Ele era jovem e tinha um talento inegável, mas não traduzia a sua habilidade para nada mais. Uns diziam que era por acomodação, mas outros, mais próximos, alegavam que era principalmente por seu lado obscuro. Bertini possuía uma relação vi-tal demais com a música. Ao falar dela, evocava o cosmos, a natureza e a medida dos sons como o grande comunicador universal. “Há muito não escutamos o som da Terra enquanto gira.” É uma das falas atribuídas a ele. A outra, ainda não con-firmada, dizia: “Uma vez eu o escutei”.

A boemia de Bertini terminou, sem que ele se endireitasse como todos queriam. Pelo con-trário, ficou mais recluso e não mais dispunha seu repertório. Quando saía era sem o violão e, ao perguntarem o porquê, dizia que ficara em casa, resguardado para os seus experimentos. Muitos sorriam, pensando serem os experi-mentos novas composições, mas quem enten-dia a gravidade com que ele proferia a palavra não o escutava sem o pique do sangue. Antonio

Page 97: Pesquisa Fapesp 192

PESQUISA FAPESP 192 | 97

Meucci era um dos seus amigos mais próximos e exigiu toda a explicação.

“Desconfio que os violões possam mediar vo-zes”, era o que professava a teoria de Angiolo Bertini. A sua descoberta se deu quando estava sentado na cama com o instrumento no colo e ouviu um idioma estranho sair em exclamações de dentro da abertura da madeira. Sentiu um profundo mal-estar, mas em nenhum momento lhe veio o impulso de olhar pela janela ou pela porta de onde vinham os sons vocais, pois tinha certeza da procedência. Era músico o bastante para jamais duvidar. Continuou a escutá-la por um tempo e inclusive vê-la vibrar um pouco. Ao experimentar dizer uma frase em resposta, a voz lhe devolveu um grito assustado e se calou.

Bertini passou um mês absorvido pelo aconte-cimento. Na primeira semana esperou que o fenô-meno se repetisse. Na segunda, tentou inúmeras vezes provocá-lo. Na terceira, enfim o descobriu. Ao terminar uma sequência de notas que acabara de criar, inclinou-se para a abertura do violão e citou um verso de um poeta antigo. Outro idioma, igualmente estranho, respondeu amedrontado. Bertini insistiu em falar para a outra voz sobre o acontecimento, sobre a descoberta, mas o es-trangeiro entoou apenas interrogações de quem desbrava uma caverna.

Antonio Meucci, preso por participação no Movimento de Unificação Italiana, o Risorgi-mento, recebeu uma única visita de Bertini com duração de uma hora. Supõe-se que lá o músico florentino explicou sobre os novos dados de sua pesquisa. Para ele, cada violão possuía uma me-lodia que, se tocada com exatidão por qualquer outro, abriria espaço de contato, como uma senha

que se decifra e passa a estabelecer ligações entre duas pessoas. Uma canção de trinta segundos ou cinco minutos, não importava, podia pôr aquele que a executa em conversação com o violão que o aguardava, de qualquer parte do mundo.

Poucos meses depois de liberto, o futuro inven-tor do telefone partiu para sempre de Florença, sem saber se o amigo conseguira avanços nos experimentos. Talvez no dia em que, sob o som do oceano Atlântico, sonhou com uma face e um violão, Meucci recebia no vento a humilhação que passava Bertini há milhares de quilômetros, em um pequeno teatro municipal. Entre olhares curiosos e irônicos, Angiolo demonstrou a sua teoria, ele já de barba até o peito, os olhos fundos, com o mesmo violão daquela boemia, daquela cantoria para o cortiço.

O músico tocou uma melodia de oito minutos e em seguida chamou alguém na concavidade do violão. Nenhuma resposta. “Ninguém em casa”, disse Bertini, para riso da plateia. Ele não se im-portou; dedilhou outra canção e repetiu a chama-da. Um silêncio se fez e, de tão longo, começou a se dispersar em comentários e novos risos, até uma voz em francês responder pela abertura. O violonista respondeu: “Je suis Angiolo Bertini, un musicien”. E mais não sabia, porque nenhuma outra língua lhe parecia possível de aprender. Enquanto o francês berrava consternado, Bertini direcionou-se para o público e disse: “Um dia não precisaremos falar ou ter qualquer idioma, mas apenas cantar e tocar para nos entendermos”.

Alguém gritou que havia um francês atrás das cortinas. O restante da plateia concordou e inva-diu o palco para comprovar a suspeita, derruban-do Bertini de sua cadeira e quebrando o violão, aos pisões, na altura do braço. Eles encontraram um rapaz nas cortinas e o expulsaram com gar-galhadas. Não perguntaram pela sua origem, pois se a fizessem, saberiam que falava o italiano de uma vila próxima e só queria assistir ao evento extraordinário de perto, tendo viajado sem con-tar nada aos pais. Não sabia francês, nem fraudar, mas a paralisia de todos os rostos frente ao seu lhe impediu qualquer suspiro.

Angiolo Bertini foi preso na mesma noite por calúnia e obrigado a pagar uma multa que não lhe era possível com os recursos do bolso da calça. Ficou a lavar as celas e as grades, até, por tanto assobiar, ser expulso mesmo da prisão. Dizem que faleceu na rua, dois dias depois, e eu acres-cento que tinha a mesma expressão de Antonio Meucci, anos depois, na sala de julgamento, ao tentar provar a autoria de sua recriação. n

Saulo dourado é licenciado em filosofia pela ufba e escreve contos no suplemento infantil do jornal A Tarde. em 2011 foi aprovado pelo edital de Apoio à Criação literária da Fundação Pedro Calmon para desenvolver um livro de contos. Já venceu os prêmios literários Ferreira de Castro e Correntes d’escritas/Papelaria locus, ambos na categoria juvenil, nos anos de 2005 e 2006.

Ilu

STR

ãO

An

A P

Au

lA c

Am

Po

s

Page 98: Pesquisa Fapesp 192

ClassifiCados

98 | fevereiro De 2012

CiênCia em tempo real

Na edição on-line você encontrará vídeos, galerias de fotos e mais notícias. Afinal, o conhecimento não espera o começo do mês para avançar.

o Conteúdo de pesquisa Fapesp não termina aqui.

Visite www.revistapesquisa.fapesp.br e se cadastre para receber o boletim.

Acompanhe também: @ pesquisaFapesp no twitter e a nossa página no facebook.

Concurso de Professor Doutor - Computação

O Departamento de Ciência da Computação do IME-USP abriu um concurso para a contratação de um professor doutor em RDIDP. O Departamento é responsável pelo Bacharelado em Ciência da Computação, pela Pós-Graduação em Computação e pelo Centro de Competência em Software Livre – CCSL, em São Paulo. O Departamento está interessado em pesquisadores que serão responsáveis por disciplinas de Bancos de Dados e Estruturas de Dados. Mais informações sobre a inscrição (prazos e documentação) podem ser obtidas em http://www.ime.usp.br/dcc

E-mail: [email protected] Fone: 0XX11 3091-6135

Período: Aulas quinzenais às segundas-feiras, 12h15-14h, de março/2012 a junho/2013

Público-alvo: Profissionais de Neurologia/Reabilitação/ Engenharia Biomédica (20 vagas)Alunos de graduação (10 vagas)

Processo seletivo:Envio de Curriculum Vitae: de 20/1 a 20/2/12 ([email protected])

Entrevistas: 20 a 24/2/12

Coordenação: Profa. Dra. Adriana B. Conforto e Profa. Dra. Suely K. N. Marie

Apoio: Fogarty International Center, National Institutes of Health

Não serão cobradas taxas de inscrição ou mensalidades.

Curso de Pesquisa Clínica e Neurociências Divisão de Clínica Neurológica – HC/FMUSP

Page 99: Pesquisa Fapesp 192

_ Anuncie você também: tel. (11) 3087-4212 | www.revistapesquisa.fapesp.br

www.uniscience.com.br(11) 3622 2320

NanoDrop: Simplesmente Essencial

QR CodeUtilize o QR Reader do seusmartphone para ler a imagem e solicite uma cotação

A família de equipamentos da NanoDrop utiliza uma tecnologia de retenção de amostra que mantem a amostra em um pedestal de aço inoxidável polido. Isto permite a utilização de micro volumes e uma analise rápida e precisa. O espectro é visualizado

no computador utilizando um software de análise gratuito, que salva os dados em planilhas compatíveis com o Microsoft Excel.

patenteada

NanoDrop® 2000 ou 2000cEspectrofotômetro de espectro completo (190 a 840 nm) que analisa amostras a partir de 0.5 uL em 5 segundos. O modelo NanoDrop 2000c permite também a utilização de cubetas

Exceto o modelo NanoDrop Lite. Promoção por tempo limitado

NanoDrop® 8000Espectrofotômetro de espectro completo (220 a 750 nm) que mede em 20 segundos até 8 amostras de uma só vez, utilizando de 1 a 2 ul

NanoDrop® 3300Fluoroespectrômetro com fonte de excitação de 3 LED:UV(365nm);Azul (470nm);Branco (500-650nm)

PromoçãoNa compra de qualquer equipamento da família NanoDrop ganhe um computador

Para quem anuncia, a Pesquisa FAPESP proporciona falar com um leitor qualificado, formador de opinião e que decide.

Para quem lê e assina, a Pesquisa FAPESP traz, todo mês, as melhores e mais atualizadas notícias sobre pesquisa e diversas áreas do conhecimento.

Para anunciar 11 3087-4212 | Para assinar 11 3038-1434Ou acesse www.revistapesquisa.fapesp.br

Page 100: Pesquisa Fapesp 192

anuncio_scielo_20120131.indd 1 1/31/12 9:35 PManuncio_scielo_20120131.indd 1 1/31/12 9:35 PManuncio_scielo_20120131.indd 1 1/31/12 9:35 PM