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PESQUISA FAPESP JANEIRO DE 2013 JANEIRO DE 2013 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR n.203 BUROCRACIA Escritórios de apoio liberam cientista para produzir conhecimento MEDICAMENTO Proteína sintética pode tratar hipertensão na gravidez AÇAÍ Impasses da cadeia produtiva revelam os limites do extrativismo ENTREVISTA JOÃO STEINER A astronomia brasileira já merece respeito Estudo contesta associações entre medidas do rosto e comportamentos antiéticos

Pesquisa FAPESP 203

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A maldade não te cara

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burocraciaEscritórios de apoio liberam cientista para produzir conhecimento

medicamentoProteína sintética pode tratar hipertensão na gravidez

açaíImpasses da cadeia produtiva revelam os limites do extrativismo

entrevistajoão steiner A astronomia brasileira já merece respeito

Estudo contesta associações entre medidas do rosto e

comportamentos antiéticos

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PESQUISA FAPESP 203 | 3

Diferenciação celularAs duas fotos acima mostram a transformação in vitro

de “células-tronco” de eucalipto (à esquerda) em

traqueídes, células que controlam o processo de

formação da madeira (à direita). O pesquisador Pedro

Barrueto, da Escola Superior de Agricultura Luiz de

Queiroz (Esalq/USP), conseguiu fazer a diferenciação

tratando o material com hormônio. Com eucalipto,

é a primeira vez que se faz esse processo em

laboratório. A pesquisa tem interesse por estar

relacionada com os genes envolvidos na síntese

de lignina, um polímero importante para as plantas

e para a indústria do papel e celulose.

FotolAb

Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Foto enviada por Pedro Barrueto Cid, do Laboratório Max Feffer de Melhoramento de Plantas da Esalq/USP, coordenado por Carlos Labate

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4 | janeiro De 2013

PolítIcA cIEntíFIcA E tEcnológIcA

32 EducaçãoMostra premia projetos do ensino básico de São Paulo e atrai alunos de escolas públicas à pesquisa

36 DifusãoConferências levarão conhecimento sobre biodiversidade a alunos e professores do ensino médio

38 Pesquisa oceanográficaNavio Alpha-Crucis sai em missão para coletar informações sobre a variação de calor no Atlântico Sul

42 FomentoUm número crescente de universidades e instituições cria escritórios de apoio ao pesquisador

46 GeociênciasNova microssonda eletrônica começa a funcionar na USP

cIÊncIA

50 GeologiaNo último 1,3 milhão de anos, a bacia do rio São Francisco perdeu espaço para a do rio Doce, que cedeu área à do Paraíba do Sul

54 AstronomiaGás soprado por explosões estelares interrompeu crescimento de galáxias anãs

58 EcologiaProliferação de espécies nativas resistentes a perturbação no ambiente reduz biodiversidade de mata atlântica

62 ZoologiaEstudo identifica patologias ósseas comuns em baleias jubartes da costa brasileira

18 cAPAEstudo de pesquisadores ibero-americanos contesta trabalhos que associam a largura da face do homem a comportamentos antiéticos e agressivos

EntrEvIStA

24 João SteinerAstrofísico da Universidade de São Paulo fala sobre as mudanças na astronomia brasileira nos últimos 30 anos

tEcnologIA

64 Recursos naturaisAumento do consumo de açaí acirra concorrência, promove uma crise de preços e expõe a dificuldade em passar do extrativismo para o agronegócio

69 Pesquisadores pretendem ampliar produtividade do guaraná com novas variedades e ajustes nas técnicas de plantio

72 BioquímicaCientistas brasileiros desenvolvem droga pioneira para tratar hipertensão que atinge até 7% das mulheres gestantes do país

76 Pesquisa empresarialInovações nas áreas de saúde da mulher e proteção solar da Johnson & Johnson são exportadas para o resto do mundo

hUmAnIdAdES

80 Ocupação territorialLivro mapeia o papel dos engenheiros militares no Brasil Colônia

86 PersonalidadeObras de Oscar Niemeyer foram analisadas em estudos

SEçÕES

3 Fotolab6 Cartas7 Carta da editora8 Dados e projetos9 Boas práticas10 On-line11 Wiki12 Estratégias14 Tecnociência90 Memória92 Conto94 Resenhas

JAnEIro 2013

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6 | janeiro De 2013

revistaA edição 201 de Pesquisa FAPESP está simplesmente sensacional. Portugal, baía de Todos os Santos, flamingos, mergu-lhões, câncer, proteína antitumoral são artigos, entre outros, de importância fun-damental para mim, professor de biologia em São Paulo e autor de livros didáticos. Sou também assinante da Nature, Science, Scientific American e New Scientist por necessidade de autor e professor, além da Ciência Hoje. O número 201 se equipara a esses outros periódicos pela relevância e importância dos artigos. Sem dúvida, utilizarei as informações das reportagens na elaboração de textos de atualização de minhas obras. Fiquem sossegados que citarei, com todos os detalhes necessários e com prazer, as fontes dos textos que elaborarei. Meus parabéns. Armênio Uzunian

São Paulo, SP

Acesso livre“Conhecimento livre” (edição 201) é uma importante reportagem sobre o acesso livre ao conhecimento científico que me fez refletir sob a ótica de quem faz pes-quisa. Vamos supor que um pesquisador produziu um manuscrito e precisou pa-gar por um artigo ou outro citado em sua pesquisa que não estava disponível em base de dados de acesso livre ou, infeliz-mente, não estava incluído na base paga de certa instituição a que tinha acesso. O manuscrito esbarrará em diversas co-branças de revisores, que implicitamente estarão avaliando o pesquisador por sua capacidade de boa escrita, seu conheci-mento científico, sua criatividade etc. Se ultrapassar essas avaliações plausíveis, em alguns casos, ainda precisa pagar pela publicação de seu trabalho. Não é para se sentir expropriado?Ana Paula Francisco

Faculdade de Saúde Pública/USP

São Paulo, SP

cerveja congeladaNa edição 199 está uma explicação do congelamento da cerveja (seção Wiki). Luiz Menezes deu uma boa explicação

microscópica, mas notei que faltou um aspecto macroscópico importante. Talvez meu colega não seja bebedor inveterado de cerveja... Os processos termodinâmicos podem ser reversíveis ou irreversíveis. Assim, se uma garrafa de cerveja está bem fechada, tem-se um sistema isolado, e o processo é reversível. Não há como evi-tar o congelamento, pois só é detectado depois que ocorre. O ideal para revertê-lo é deixar a garrafa num balde e encher de água fria. A transferência de calor será adiabática, e depois de algumas dezenas de minutos poderá ser aberta sem pre-juízo. Por outro lado, se a lata ou garrafa forem abertas, aí o sistema não é mais isolado, a entropia aumenta, o gás escapa e a água da cerveja cristaliza, dissociando o conjunto anteriormente harmônico. Este é um processo irreversível. Felipe rudge

Faculdade de Engenharia Elétrica/Unicamp

Campinas, SP

genéticaDevo informá-los de que a reportagem “Herança americana” (edição 182), de Ricardo Zorzetto, nos deu subsídios concretos para prosseguir com o estu-do de doenças étnicas e genéticas. Foi o primeiro trabalho publicado de uma pesquisa deste gênero que me pareceu relevante e consistente.Francisco J.b. Sá

Salvador, BA

cArtAS [email protected] Empresa que apoia a ciência brasileira

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

CELSO LAFERPresiDente

EDUARDO MOACyR KRiEgERvice-PresiDente

conSElho SUPErIor

ALEJAnDRO SzAnTO DE TOLEDO, CELSO LAFER, EDUARDO MOACyR KRiEgER, FERnAnDO FERREiRA COSTA, HORáCiO LAFER PivA, HERMAn JACOBUS CORnELiS vOORWALD, JOãO gRAnDinO RODAS, MARiA JOSé SOARES MEnDES giAnnini, JOSé DE SOUzA MARTinS, LUiz gOnzAgA BELLUzzO, SUELy viLELA SAMPAiO, yOSHiAKi nAKAnO

conSElho técnIco-AdmInIStrAtIvo

JOSé ARAnA vARELADiretor PresiDente

CARLOS HEnRiQUE DE BRiTO CRUzDiretor científico

JOAQUiM J. DE CAMARgO EngLERDiretor aDministrativo

conSElho EdItorIAlCarlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira

comItÊ cIEntíFIcoLuiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo negrão, Douglas Eduardo zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli

coordEnAdor cIEntíFIcoLuiz Henrique Lopes dos Santos

dIrEtorA dE rEdAção Mariluce Moura

EdItor chEFE neldson Marcolin

EdItorES Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes)

rEvISão Márcio guimarães de Araújo, Margô negro

ArtE Laura Daviña (Editora), ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli

FotógrAFoS Eduardo Cesar, Léo Ramos

mídIAS ElEtrônIcAS Fabrício Marques (Coordenador) IntErnEt Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora executiva - licenciada)Júlio Cesar Barros (Editor em exercício) Rodrigo de Oliveira Andrade

rádIo Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

colAborAdorES Ana Lima, Artionka Capiberibe, Chico Lopes, Claudia izique, Claudio Angelo, Daniel Bueno, Daniel da neves, Fabio Otubo, igor zolnerkevic, Mariana zanetti, Mateus Acioli, Otávio zani, Rafael Biar Marquese, Salvador nogueira, valter Rodrigues (Banco de Imagens), veridiana Scarpelli, vinicius Abate e yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEm PrévIA AUtorIzAção

PArA FAlAr com A rEdAção (11) [email protected]

PArA AnUncIAr (11) 3087-4212 [email protected] ASSInAr (11) 3038-1434 [email protected]

tIrAgEm 49.300 exemplaresImPrESSão Plural indústria gráficadIStrIbUIção DinAP

gEStão AdmInIStrAtIvA inSTiTUTO UniEMP

PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP

FAPESP Rua Pio Xi, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP

SECRETARiA DE DESEnvOLviMEnTO ECOnôMiCO,

CiênCiA E TECnOLOgiA govErno do EStAdo dE São PAUlo

FUnDAçãO DE AMPARO à PESQUiSA DO ESTADO DE SãO PAULO

iSSn 1519-8774

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PESQUISA FAPESP 203 | 7

os sinuosos caminhos do conhecimento

mariluce moura

DiRETORA DE REDAçãO

cArtA dA EdItorA

o vaivém de determinadas ideias na cena da produção do conhecimento leva por vezes a revivals francamente desconfortáveis.

É este o caso de alguns estudos que nos últimos cinco anos procuraram restabelecer vínculos entre traços fisionômicos e inclinações de cará-ter, numa anacrônica tentativa de exumação das proposições lombrosianas. Mas, como o método científico sabiamente carrega antídotos contra seus próprios equívocos, estudos mais recentes elaborados por um grupo de geneticistas e an-tropólogos físicos do Brasil, Argentina, México e Espanha, trabalhando sobre uma larga base de dados de cerca de 5 mil indivíduos pertencentes a 94 diferentes grupos populacionais modernos, reuniram evidências suficientes para afirmar que, diferentemente do que pretendiam seus colegas, más disposições de caráter não estão impressas nos ossos da face dos homens.

O artigo resultante dessa pesquisa, com publi-cação acertada para a primeira quinzena de ja-neiro na PLoS One, é o objeto da capa da primeira edição de 2013 de Pesquisa FAPESP (página 18). Elaborada por nosso editor especial Marcos Pi-vetta, a reportagem apresenta os caminhos que permitiram ao grupo refutar com vigor a ideia canhestra de que indivíduos de sexo masculino com rostos mais largos teriam comportamento mais agressivo. Ou, ainda, que eles teriam expe-rimentado uma suposta vantagem reprodutiva no processo evolutivo. Vale a pena conferir e refletir neste começo de um novo ano sobre a permanente sinuosidade do processo de cons-trução do conhecimento.

Na seção de política científica e tecnológica, gostaria de chamar a atenção para um texto que mostra como está se tornando realidade em São Paulo algo que tem sabor de sonho para – eu ou-saria dizer – 10 entre 10 pesquisadores brasilei-ros. Refiro-me aos escritórios de apoio em fase de multiplicação nas universidades paulistas (a partir de uma iniciativa da FAPESP) que simples-

mente livram os pesquisadores da administração burocrática de projetos e os liberam para seu trabalho primordial: produzir conhecimento. A reportagem de nosso editor de política, Fabrício Marques, explica como isso se dá (página 42).

Em tecnologia, destaco duas reportagens: pri-meiro, a partir da página 72, elaborada pelo jor-nalista Yuri Vasconcelos, aquela que trata de um medicamento pioneiro que está sendo desenvol-vido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da empresa União Química para tratar a hipertensão em grávidas, condição que atinge entre 5% e 7% das gestantes no Brasil. Como se sabe, elas não podem nem de-vem tomar medicamentos que ponham em risco o desenvolvimento do feto, caso dos anti-hiper-tensivos hoje existentes. E a hipertensão assusta porque está associada à pré-eclampsia, que pode evoluir para a eclampsia, doença responsável por estimados 40% dos 1.719 casos anuais de morte (2010) associados à gravidez e ao parto no país. Se esse medicamento, que já passou da primeira fase dos testes clínicos, comprovar sua eficácia e atoxicidade nas demais fases, estaremos diante de uma bela notícia. Em segundo lugar, chamo a atenção para a reportagem de nosso editor es-pecial Carlos Fioravanti (página 64), sobre os es-forços e as dores da transição de uma economia extrativista para a agroindústria que hoje envolve o açaí na região Norte do país. Fioravanti e nos-so fotógrafo Eduardo Cesar viajaram a Belém, Manaus e Maués para ver de perto esse processo e, além do foco no açaí, terminaram por tratar também do guaraná, cuja produtividade pode aumentar em breve naquela região, graças ao desenvolvimento de novas variedades da plan-ta e ajustes nas técnicas de plantio (página 69).

Concluo recomendando a leitura da bela en-trevista do astrofísico João Steiner, feita por Pivetta e por nosso editor-chefe, Neldson Mar-colin, antes de desejar a todos um 2013 de pra-zerosas realizações.

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8 | janeiro De 2013

Dados e projetos

tEmátIcoSbehavioural and neuroendocrine mechanisms regulating hydromineral metabolism – a lifelong perspectives (FAPESP-rcUK)Pesquisador responsável: José Antunes RodriguesInstituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USPProcesso: 2011/52108-4vigência: 01/11/2012 a 31/10/2015

Suplementação de bovinos em pastagem tropical Pesquisador responsável: Flavio Augusto Portela SantosInstituição: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/USPProcesso: 2012/09535-1vigência: 01/12/2012 a 30/11/2015

oxigênio singlete e peróxidos em química biológica Pesquisador responsável: Paolo Di MascioInstituição: instituto de Química/USPProcesso: 2012/12663-1vigência: 01/12/2012 a 30/11/2016

contaminação ambiental pelos protozoários Giardia spp. e Cryptosporidium spp. e por Ascaris suum: desafios de detecção, remoção e inativação das formas infectantesPesquisadora responsável: Regina Maura Bueno FrancoInstituição: instituto de Biologia/UnicampProcesso: 2012/50522-0vigência: 01/01/2013 a 31/12/2017

Patogênese e terapêutica da doença renal crônica: papel da imunidade inata na lesão de glomérulos, túbulos e interstício Pesquisador responsável: Roberto zatz

tEmátIcoS E JovEm PESQUISAdor rEcEntESProjetos contratados entre novembro e dezembro de 2012

Instituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USPProcesso: 2012/10926-5vigência: 01/12/2012 a 30/11/2017

células-tronco: dos papéis de receptores de cininas e purinas às aplicações terapêuticasPesquisador responsável: Alexander Henning UlrichInstituição: instituto de Quimica/USPProcesso: 2012/50880-4vigência: 01/12/2012 a 30/11/2017

Síntese, estudo cinético e aplicações de substratos e inibidores de enzimas proteolíticasPesquisadora responsável: Maria Aparecida JulianoInstituição: Escola Paulista de Medicina/UnifespProcesso: 2012/50191-4vigência: 01/12/2012 a 01/12/2012

São PAUlo ExcEllEncE chAIrS (SPEc)caracterização da proteína fosfatase UIS2 de Plasmodium como alvo para desenvolvimento de drogas contra malária Pesquisador responsável: victor nussenzweigInstituição: Escola Paulista de Medicina/UnifespProcesso: 2012/50399-4vigência: 01/10/2012 a 30/09/2015

JovEm PESQUISAdormetagenômica e metatranscriptômica do microbioma de rúmen para a descoberta de genes degradadores de biomassaPesquisador responsável: Rodrigo MendesInstituição: Embrapa Meio Ambiente

Processo: 2012/03848-8vigência: 01/11/2012 a 31/10/2016

novos métodos híbridos para resolução de problemas de otimização combinatóriaPesquisador responsável: Antonio Augusto ChavesInstituição: instituto de Ciência e Tecnologia/UnifespProcesso: 2012/17523-3vigência: 01/01/2013 a 31/12/2015

Papel dos receptores nlrs nos mecanismos de imunorregulação do diabetes dos tipos 1 e 2: identificação de novos alvos terapêuticosPesquisadora responsável: Daniela CarlosInstituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USPProcesso: 2012/10395-0vigência: 01/12/2012 a 30/11/2016

Efeito magnetocalórico e efeito barocalórico: novas técnicas experimentais, materiais

e modelos teóricosPesquisador responsável: Alexandre Magnus gomes CarvalhoInstituição: instituto de Ciência e Tecnologia/UnifespProcesso: 2012/03480-0vigência: 01/12/2012 a 30/11/2016

caracterização molecular das proteínas S6Ks na obesidade e em suas doenças associadasPesquisador responsável: Fernando Moreira SimabucoInstituição: Faculdade de Ciências Aplicadas/UnicampProcesso: 2012/13558-7vigência: 01/03/2013 a 28/02/2017

Estudo das vias de transdução de sinal em Schistosoma mansoni e sua relevância na interação parasita-hospedeiro (Schisto-SIg)Pesquisadora responsável: Katia Cristina Pereira Oliveira SantosInstituição: instituto Adolfo Lutz/SSSPProcesso: 2012/50115-6vigência: 01/01/2013 a 31/12/2016

Estudos compartilhadosStatus do pesquisador e incidência de colaboração internacional em artigos publicados – em %

todos os campos biologia Química ciências da terra

total da amostra 24 25 24 33

nascidos no exterior 34 31 32 43

cientistas que retornaram a seu país 29 29 27 43

cientistas que não saíram do país 20 20 18 25

obs.: Dados de 14.471 cientistas de Alemanha, Austrália, Bélgica, Brasil, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Índia, itália, Japão, Reino Unido, Suécia e SuíçaFonte: nBER Working Paper 18613 (http://www.nber.org/papers/w18613)

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PESQUISA FAPESP 203 | 9

vícios de origem em projetos de pesquisa

Mais fraudes do que erros

Boas Práticas

Agências de fomento e instituições de pesquisa começam a se preocupar com um tipo ainda pouco discutido de má conduta científica: a cópia ou fabricação de dados em pedidos de bolsas e de recursos para projetos de pesquisa. Segundo a National Science Foundation, o número de casos de plágio e fraude encontrados em propostas de financiamento de pesquisa enviadas a agências dos Estados Unidos triplicou na última década. Em artigo publicado na revista eletrônica The Chronicle of Higher Education, a diretora do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da University of Rhode Island, Karen Markin, afirma que essas fraudes não são praticadas somente por estudantes, mas também por pesquisadores experientes. No caso de plágio, Karen lembra que há softwares capazes de identificar trechos copiados e enumera alguns cuidados que o pesquisador sempre deve ter: não esquecer o uso de aspas; saber parafrasear corretamente, ou seja, reescrever um conceito com outras palavras, não apenas substituindo uma por outra; revisar cuidadosamente o texto final e receber treinamento especial sobre boas práticas e ética na pesquisa.

Já quando há fabricação de dados, a descoberta pode demorar algum tempo. Em novembro, o US Office of Research Integrity (ORI) – órgão norte-americano responsável pelo desenvolvimento de políticas regulatórias e monitoramento de casos de má conduta em pesquisas científicas – anunciou o resultado de uma operação que investigou, ao longo de dois anos, uma série de falsificações em artigos e relatórios de pesquisa de um experiente professor da University of

Kentucky. O biomédico Eric Smart, especializado em doenças cardiovasculares e diabetes, foi acusado de adulterar dados em pesquisas durante os últimos 10 anos.

Em nota oficial, o Departamento de Saúde dos Estados Unidos (HHS, na sigla em inglês) afirmou que Smart publicou dados experimentais que jamais existiram e fabricou 45 imagens em cinco pedidos de subvenção, três relatórios de pesquisa e uma dezena de papers, alguns deles com mais de 100 citações. De acordo com reportagem publicada no site da revista The Scientist, muitas das imagens fraudadas eram de western blots, método usado na biologia molecular para identificar proteínas. Especialistas ouvidos pela revista disseram que os artigos de Smart foram altamente citados e que é difícil avaliar os impactos do caso.

Smart recebeu US$ 8 milhões em financiamentos de agências e

Uma análise publicada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences sugere que más condutas científicas, como fraudes e plágios, são causas mais frequentes da retratação de artigos por periódicos científicos do que erros não intencionais. Arturo Casadevall, professor de microbiologia e imunologia do Albert Einstein College of Medicine analisou 2.047 artigos desqualificados por revistas médicas que os publicaram. Concluiu que 67% dos casos foram causados por má conduta, sendo 43,4% atribuídos a fraudes, 14,2% a publicações duplicadas e 9,8% a il

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plágio. Apenas 21% do total estavam relacionados a erros não intencionais. Os 12% restantes não puderam ser qualificados, uma vez que boa parte das publicações não costuma informar a razão da retratação. A maioria dos casos de má conduta envolvia grandes revistas, como Science, Nature e Cell, o que, segundo Casadevall, sugere uma correlação entre a ocorrência de fraudes e o alto fator de impacto das publicações. A conclusão do artigo contradiz a de dois estudos publicados em 2006 e em 2011, que apontaram os erros como causa mais frequente de retratação de artigos.

órgãos federais. Desde que as investigações começaram, em maio de 2011, o biomédico deixou a universidade e passou a dar aulas de química em uma escola local. Nos próximos sete anos, Smart está proibido de concorrer a qualquer subvenção federal, prazo que supera os tradicionais três ou cinco anos de punição.

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10 | janeiro De 2013

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Pesquisadores do goddard Space Flight Center da nasa deram um passo importante para a compreensão do complexo comportamento dos buracos negros, corpos celestes com massa que chega à de bilhões de sóis que arrastam para seu interior toda matéria e energia que se aproxima deles. O estudo, coordenado pelo astrofísico brasileiro Rodrigo nemmen e publicado em dezembro na Science, verificou que os buracos negros de diferentes espécies convertem parte da matéria prestes a ser engolida em jatos de altíssima velocidade nos quais a mesma fração de energia é usada para gerar luz em raios gama.

A estratégia bem-sucedida de descentralizar suas pesquisas, fomentar equipes menores de cientistas e promover parcerias adotada pela glaxoSmithKline (gSK) é tema da entrevista de Moncef Slaoui, vice-presidente da área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) do laboratório britânico. “Tentamos encontrar ótimas pesquisas em qualquer parte do mundo e estabelecer parcerias, não para controlá-las ou ser o dono delas. valorizamos o fato de essa ciência ser diferente da nossa. Queremos identificar áreas em que os cientistas brasileiros são os melhores”, afirma.

exclusivo no site

rádio

Newton da Costa conta quais as aplicações da lógica paraconsistente em situações reais 

vídeo do mês

Em visita ao Brasil, Roberto Salmeron fala sobre sua vida e física de partículas elementares

Concepção artística de um buraco negro

ima

gem

na

sa

Alana tenório_ Achei muito interessante. gostei e vou comentar na próxima aula de genética. (Rastros da miscigenação)

leonardo Sokolnik_ Parabéns pela seção Boas Práticas com informações sobre transparência nos ensaios clínicos.

marina maciel_ Parabéns pela entrevista com José Marques de Melo! interessantíssima, e o tema muito pertinente! (Entrevista)

Jaqueline vieira de Souza_ Sensacional, espero que nos próximos 15, 10 anos isto já ocorra em território brasileiro. (Cidades do futuro)

Antonio costa_ Aprendemos a publicar. A questão agora é: como fazê-lo em revistas de alto impacto? (O novo mapa da ciência)

Katia obermuller_ isso precisa ser divulgado aos jovens. (Uso de crack mata mais neurônios que cocaína)

nay Farias_ A última do ano de 2012. E ainda nem terminei de ler a de novembro. Huhu quentinha do forno (Edição de dezembro)

nas redes

Assista ao vídeo:

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PESQUISA FAPESP 203 | 11

autônomo, por meio do núcleo do nervo vago, localizado no sistema nervoso central. isso pode provocar manifestações neurovegetativas, as conhecidas náuseas, vômito, sudorese, palidez, taquicardia ou, em alguns casos, diarreia. O mal-estar pode também ser causado em outras situações de conflito entre visão e sistema vestibular, como em sessões de filmes 3D no cinema.Contudo, o fenômeno não tem ligação com a evolução humana. Embora o sistema nervoso autônomo tenha função de defesa, neste caso o enjoo é apenas uma manifestação de um distúrbio vestibular.

O enjoo que surge em viagens de carro ou navio decorre da relação entre o sistema vestibular – que inclui os órgãos do ouvido interno (labirinto), um dos responsáveis pelo equilíbrio – e o sistema nervoso autônomo, dividido em sistema nervoso simpático e parassimpático. Toda vez que há um conflito sensorial entre o labirinto, que é responsável pela orientação espacial e a detecção da posição e da movimentação da cabeça, e o sistema visual, a harmonia entre ambos é afetada, e a pessoa passa a sentir tontura, ou seja, ilusão de movimento.O conflito é repassado para o sistema nervoso

O objetivo da biomimética é descobrir princípios que regem a organização da estrutura de materiais biológicos e implementá-los na construção de materiais sintéticos de alto desempenho. Os avanços deste ramo científico, que tenta “imitar a vida”, são alcançados tanto em nível acadêmico quanto em aplicações práticas na indústria, envolvendo diversos campos do conhecimento, como engenharia de materiais, robótica, mecânica de fluidos, arquitetura e química.

Um exemplo de solução encontrada a partir da biomimética é o efeito lótus, flor cujas folhas conseguem manter sua superfície lisa graças a microestruturas que impedem que a água seja absorvida. Ao entrar em contato com a folha, a água escorre pelas estruturas, levando a sujeira embora. O mecanismo foi copiado por indústrias de vidros, tecidos, forros e telhados, para facilitar a remoção de resíduos. Outro caso é o estudo da microestrutura de conchas e dentes, para a fabricação de materiais extremamente resistentes.

Em laboratórios, a biomimética vinculada à nanotecnologia tem contribuído para o desenvolvimento de catalizadores sintéticos, capazes de realizar transporte de nutrientes e reações biológicas, funções naturalmente realizadas por enzimas. A vantagem do processo é que, diferentemente das enzimas, a versão sintética pode ser fabricada em laboratório em grande quantidade, permitindo, por exemplo, a fabricação de medicamentos e as promissoras células a combustível.

o QUE é, o QUE é?

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Mande sua pergunta para o e-mail [email protected], pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp

Qual a relação entre a falta de equilíbrio e o enjoo?

Pergunte aos pesquisadores

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Especialistas consultados henrique Eisi toma, Universidade de São PauloAndré Studart, Departamento de Materiais do ETHZAntônio c. guastaldi, Universidade Estadual Paulista

Biomimética

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12 | janeiro De 2013

estratégias

O simpósio Fronteras de la Ciencia – Brasil y Espanha en los 50 años de la FAPESP reuniu nas cidades de Salamanca e Madri, entre 10 e 14 de dezembro passado, pesquisadores do estado de São Paulo e de diferentes instituições de ensino e pesquisa do país ibérico, numa programação intensa, diversificada e aberta ao público em comemoração ao cinquentenário da FAPESP. A série de conferências foi aberta pelo sociólogo e ex- -presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que discorreu sobre o panorama da ciência política no Brasil e suas perspectivas. Foi anunciada no primeiro dia do evento a abertura da primeira chamada de propostas no âmbito do acordo de cooperação

Simpósio em Madri e Salamanca

científica da FAPESP com a Universidade de Salamanca (Usal). A programação do simpósio reuniu pesquisadores dos dois países para discutir os avanços obtidos nos últimos anos em ciências da saúde, ciências políticas e humanas, nanotecnologia, ciência dos materiais e fotônica. “O Brasil é um sócio estratégico da Espanha, mas ainda há necessidade de aumentar a colaboração em ciência e tecnologia e há espaço para fazer isso”, disse Román Arjona, secretário-geral de Ciência, Tecnologia e inovação do Ministério da Economia e Competitividade da Espanha, que participou da abertura da etapa em Madri, no dia 13. “A FAPESP pode ser um instrumento para viabilizar esse aumento”, afirmou.

A presidente Dilma Roussef agraciou no dia 18 de dezembro os vencedores da 26ª edição do Prêmio Jovem Cientista, cujo tema foi “inovação tecnológica nos esportes”. na categoria graduado o primeiro lugar ficou com Rodrigo gonçalves Dias, que atualmente é aluno de pós-doutorado no instituto do Coração (inCor) do Hospital das Clínicas da USP e está vinculado a um projeto temático coordenado por Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente da FAPESP. Parte do trabalho que Dias inscreveu no prêmio, no qual identificou uma mutação genética capaz de comprometer a vasodilatação muscular durante a prática esportiva, foi feita durante o doutorado, entre 2005 e 2008, com bolsa da FAPESP. Ele esteve matriculado no instituto de Biologia da Unicamp,

sob orientação de Marta Krieger, mas desenvolveu toda a parte experimental no inCor, sob orientação de Carlos Eduardo negrão. O ganhador na categoria Estudante do Ensino Médio foi João Pedro Wieland, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. na categoria Estudante do Ensino Superior, o primeiro lugar ficou com Priscila Ariane Loschi, da Universidade do Estado de Minas gerais. O prêmio de Mérito institucional Ensino Superior foi para a USP, por conta da “vanguarda da ciência esportiva e o investimento em projetos olímpicos”. O prêmio é concedido pelo Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CnPq), Fundação Roberto Marinho, gerdau e gE.

gonçalves Dias (dir.), bolsista da FAPESP, discursa ao receber o prêmio

Fernando Henrique abriu a série de conferências em Salamanca

Jovens cientistas e o esporte

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O governo do iraque anunciou investi-mentos de US$ 9 bilhões nos próximos cinco anos na reconstrução da infraes-trutura científica do país. O ministro da Pesquisa e da Educação Superior, Ali Al--Adeeb, disse à agência SciDev.Net que o plano envolve a criação de 12 novas universidades e 28 centros de pesquisa e a reforma das instalações das 28 uni-versidades existentes de forma a reforçar

a capacidade científica do país. “A aber-tura de novas instalações e a renovação das antigas buscam ampliar o número de pesquisadores e engenheiros a um nível próximo do de países desenvolvidos”, disse. As novas universidades serão dis-tribuídas por várias províncias e algumas se especializarão em campos como me-dicina, engenharia ou agricultura. A pri-meira etapa deve ser concluída em 2013,

com a criação da universidade ibn Sina, em Bagdá, e as reformas das universida-des de Karbala e Mosul. Estão previstos investimentos de US$ 70 milhões em formação e treinamento de pesquisado-res. “A principal fraqueza das universida-des públicas iraquianas é a falta de do-centes com experiência internacional”, disse Mohamed Al-Rubeai, pesquisador iraquiano radicado na irlanda.

Iraque quer reconstruir sua infraestrutura científica

A Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) realizou no dia 27 de novembro cerimônia de posse de 97 novos membros, entre os quais José Arana varela, diretor-presidente do Conselho Técnico- -Administrativo da FAPESP e professor do instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Hernan Chaimovich, coordenador dos Centros de Pesquisa, inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP e professor do instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). vanderlan Bolzani, membro da coordenação do programa Biota- -FAPESP e diretora da Agência de inovação da Unesp, e Dora Fix

ventura, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), foram empossadas. glaucius Oliva, presidente do Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CnPq) e coordenador do Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural, um Cepid da FAPESP, Elson Longo, diretor do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, também um Cepid, e Paulo Artaxo, membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas globais e professor do instituto de Física da USP, também se incorporaram aos quadros da Aciesp.

Estudantes de medicina da Universidade de Basra: novas instituições

interesse no Brasil

A revista britânica Times Higher Education, especializada em ensino superior e pesquisa e conhecida pela edição de rankings de universidades no mundo, divulgou no dia 13 de dezembro uma reportagem sobre o interesse político e acadêmico internacional nas instituições de pesquisa do Brasil. A reportagem mostra que duplicou o número de artigos de autores brasileiros entre 1997 e 2007 no Science Citation index, da empresa Thomson Reuters, colocando o país na 13ª posição entre os maiores produtores de ciência no mundo. A revista também destaca a posição 158 da Universidade de São Paulo na edição 2012-13 de seu ranking de universidades, relacionando-a a seu orçamento e ao apoio da FAPESP. As três universidades estaduais públicas paulistas com foco em pesquisa somam receita equivalente a 9,57% da arrecadação

fiscal do estado. Elas também se beneficiam, assim como as demais instituições de pesquisa paulistas, dos recursos da FAPESP, que opera com repasse de 1% da mesma fonte. Trabalhando com rigor, a própria FAPESP, segundo a Times Higher Education, obteve a reputação de um parceiro internacional confiável para colaboração. A Fundação mantém acordos com agências de fomento da Holanda, França, Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Reino Unido, e com universidades de todo o mundo.

novos membros da academia

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14 | janeiro De 2013

Algumas espécies de árvores da Amazônia podem sobreviver à elevação da temperatura atmosférica prevista para ocorrer até o fim deste século. é que várias delas já enfrentaram climas até mais quentes no passado. Com pesquisadores do Panamá e da inglaterra, o biólogo Christopher Dick, da Universidade de Michigan, analisou o material genético de 12 espécies de árvores de ampla distribuição na Amazônia para estimar quando teriam ocupado esse ecossistema. Eles verificaram que 9 das 12 espécies existem na região há pelo menos 2,6 milhões de anos. Das 9, 3 surgiram há mais de 8 milhões de anos – a mais antiga delas, a gigante africana Symphonia globulifera, de até 60 metros de altura, chegou à Amazônia há cerca de 15 milhões de anos. Entre 11,5 milhões e 3,6 milhões de anos atrás, essas espécies

Preparadas para o calor

enfrentaram períodos bastante quentes, com temperatura semelhante à que os modelos climáticos projetam para 2100 (Ecology and Evolution, 14 de dezembro). “nossos resultados indicam que espécies de árvores neotropicais bem comuns viveram em climas mais quentes que o atual, sugerindo que poderiam tolerar o aquecimento associado às mudanças climáticas”, conta Dick. Ele e os colegas acreditam ser pouco provável que o aumento da temperatura, por si só, induza à extinção em massa das espécies amazônicas. Mas afirmam que o futuro da floresta é incerto. é que a região passa por um nível de transformação jamais visto no passado, com aumento da temperatura e das concentrações de gás carbônico e a derrubada da vegetação.

Flor de Symphonia globulifera: na Amazônia há 15 milhões de anos

tecnociência

A Lua em detalhes

Duas sondas irmãs lançadas pela Agência Espacial norte- -americana (nasa) trouxeram uma nova visão da Lua com dados mais detalhados da crosta, da gravidade e da superfície do satélite. Entre as informações disponibilizadas pela missão gravity Recovery and interior Laboratory (grail) está o fato de a crosta da Lua ser menor do que a indicada em estudos anteriores. A espessura média da crosta é de 34 a 43 quilômetros (km), cerca de 10 a 20 km menos do que previsto inicialmente. Essa espessura da crosta indica que a Lua é muito similar à Terra nesse quesito. Assim, esses novos dados reforçam o modelo teórico que sugere ser o satélite formado com material ejetado do planeta durante um impacto gigante nos primórdios da história do sistema solar. As duas sondas,

Mapas obtidos pelas sondas Ebb e Flow: formas do relevo e campo gravitacional

que ganharam o nome de Ebb e Flow, colheram dados que mostram anomalias no campo gravitacional provocadas pelo relevo lunar formado por elevações vulcânicas, crateras e outros tipos de relevos pontuados por intenso registro de impactos de meteoros e outros corpos celestes sobre a superfície. Essas anomalias da gravidade indicam a presença de estruturas verticais de magma solidificado no subsolo lunar, uma característica que também vai contribuir para o entendimento da formação da Lua. Para captar todos os dados que agora os pesquisadores estão estudando, as sondas sobrevoaram a Lua a uma altitude média de 55 km durante quatro meses. Elas obtiveram os dados por meio de sinais de rádio sincronizados que definiram precisamente a órbita, a distância entre elas e as nuances da superfície lunar.

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PESQUISA FAPESP 203 | 15

Microrrachaduras em blocos de cerâmica sob temperatura de 1.750°C

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árvore de nanofios

O mais novo dispositivo destinado a aumentar a capacidade de processamento de circuitos integrados, os chips, foi apresentado por pesquisadores das universidades de Purdue e Harvard, dos Estados Unidos, na international Electron Devices Meeting, realizada em São Francisco, no início de dezembro. São transistores formados por três nanofios empilhados na forma de um pinheiro de natal. Esse novo transistor – que controla o fluxo da corrente elétrica – ganhou o nome de 4-D (dimensões) porque possui os três nanofios empilhados na vertical, ao contrário do anterior criado pelo grupo, de

3-D, que possuía apenas um nanofio e tecnologia convencional baseada no silício. O novo é feito com índio e arseneto de gálio, materiais semicondutores que apresentam vantagens em relação à mobilidade dos elétrons no chip. A novidade vai permitir que circuitos eletrônicos possam ser construídos em tamanho menor, ofereçam mais rapidez no processamento e gerem menos calor que os atuais chips. As pesquisas lideradas pelo professor Peter ye tiveram também a participação da norte-americana Semiconductor Research Corporation (SRC), um consórcio de empresas e instituições de pesquisa.

resistência das cerâmicas

Produzir motores a jato com materiais cerâmicos traria vantagens em relação à capacidade de o equipamento suportar altas temperaturas, além de economizar combustível e diminuir a poluição. Mas, embora resista a um calor que faria der-reter alguns metais, as cerâmicas são extremamente sensíveis a rachaduras. Para tentar contornar esse problema, um grupo do Departamento de Energia e do Laboratório nacional Lawrence Berkeley,

dos Estados Unidos, criou um equipamen-to de teste para análise de compósitos de cerâmica em ultra-alta temperatura, acima de 1.750°C. A ideia é fazer experi-mentos em que possam ser testados materiais para uso em jatos hipersônicos e na próxima geração de motores de tur-binas a gás. Assim os compósitos poderão ser testados em condições reais de ope-ração. O equipamento utiliza recursos de raios X, fonte de luz ultravioleta e micro-

A vingança dos ácaros

Um dia da caça, outro do caçador. Esse ditado parece se aplicar à inversão de papel que ocorre às vezes na natureza. ácaros juvenis da espécie Iphiseius degenerans que sobreviveram a ataques de adultos de outra espécie desse tipo de artrópode, Neoseiulus cucumeris, vão à forra quando se tornam grandes. Da condição de presas no passado, eles se tornam predadores por excelência de exemplares juvenis da espécie que um dia foi sua perseguidora (Nature Scientific Reports, 11 de outubro). Aparentemente, os ácaros sobreviventes da espécie I. degenerans guardam na memória a identidade de seus antigos rivais, com quem dividem o hábitat, e, mesmo quando há comida disponível, optam por preferencialmente perseguir pequenos exemplares da espécie concorrente. A conclusão é de um estudo feito por

pesquisadores holandeses da Universidade de Amsterdã e por Maira ignacio, da Universidade Federal do Tocantins (UFT). “A presa reconhece a espécie do predador ao qual foi exposta durante seu estágio juvenil. nossos resultados sugerem que a experiência vivida na juventude afeta o comportamento adulto depois que há uma troca de papel (entre as espécies)”, afirmam os cientistas.

tomografia que revelam o crescimento de danos em microrrachaduras sob uma temperatura ultra-alta. Um sistema com-putacional mostra as imagens em três dimensões. O estudo foi liderado pelo pesquisador Robert Ritchie, do Berkeley, é capa da edição de janeiro da revista Nature Materials. Ele teve a colaboração da empresa Teledyne Scientific e finan-ciamento da nasa e da Força Aérea norte-americana.

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16 | janeiro De 2013

Os vencedores da inovação

A empresa Amazon Dreams foi a vencedora na categoria Micro e Pequenas Empresas no Prêmio Finep de inovação 2012. Ela produz compostos bioativos e óleos naturais com espécies nativas da Amazônia. A empresa, situada em Belém (PA), foi criada por pesquisadores da Universidade Federal do Pará. A média empresa escolhida foi a iacit, de São José dos Campos (SP), desenvolvedora de equipamentos e softwares para as áreas de controle de tráfego aéreo e marítimo, defesa e meteorologia. A categoria grande Empresa foi vencida pela Embraer, produtora de aviões, também de São José dos Campos. na categoria instituto de Ciência e Tecnologia o escolhido foi o inatel Competence Center, de Santa Rita do Sapucaí (Mg), um centro facilitador entre o instituto nacional de Telecomunicações (inatel) e empresas que absorvem a tecnologia desenvolvida na

A nova caverna digital

Um sistema de realidade virtual em grande escala chamado Cave 2 (Cave automatic virtual environment, ou caverna digital) foi finalizado pela Universidade de illinois em Chicago, nos Estados Unidos. Ele poderá, entre outros benefícios, revolucionar a prevenção e o tratamento de acidente vascular cerebral (AvC). nesse ambiente virtual é possível ver nos mínimos detalhes o cérebro e o seu fluxo sanguíneo, com artérias, veias e microvasos. O modelo do cérebro, criado como uma representação tridimensional, é fruto de um trabalho feito ao longo de anos pelos pesquisadores a partir de imagens obtidas de pacientes em tratamento e interpretadas por algoritmos de computadores. Um modelo de um paciente em estudo foi colocado no Cave 2 e em poucos minutos a equipe médica descobriu que tinha ligado artérias de forma que não correspondia

à anatomia, o que permitiu a sua correção imediata. Quem entra na caverna com paredes de 7,5 metros de diâmetro e 2,5 metros de altura tem uma visão panorâmica das imagens em 320 graus. O sistema – constituído por 72 telas LCD, 20 alto-falantes e 36 computadores – foi projetado para permitir aos pesquisadores estudar em detalhes fenômenos muito grandes ou pequenos, perigosos, complexos, ou mesmo muito distantes. Dentro da caverna eles podem adotar diversas escalas em relação ao modelo visual, para que se sintam maiores em relação a um edifício de seis andares ou menores em comparação a uma molécula, por exemplo. O Cave 2, que poderá ser usado para estudar fenômenos climáticos e outras aplicações, foi desenvolvido com financiamento da national Science Foundation (nSF).

Cave 2: pesquisadores analisam a vascularização de um cérebrohumano

instituição. na categoria inovação Sustentável, a ganhadora foi a Braskem, de São Paulo (SP), pela criação de plásticos produzidos com etanol de cana-de- -açúcar. na Tecnologia Social, o vencedor foi o instituto de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, com sede em Tefé (AM), que utilizou energia solar para captar e distribuir água limpa para as populações ribeirinhas da região. na categoria Tecnologia Assistiva ganhou a empresa Pentop, de Manaus (AM), com uma caneta dotada de um sensor na ponta e um processador capaz de identificar textos e objetos e reproduzir para pessoas com deficiência visual os sons previamente gravados. Marco Aurélio Corrêa Machado, de Campinas (SP), ganhou na categoria inventor inovador, com um digestor que solubiliza materiais como aço, cerâmica e papel para identificar os seus elementos químicos.

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Resíduo da produção de óleo vegetal, a casca de soja pode ser utilizada também para reforçar plásticos, além de servir à alimentação bovina. na forma de nanocristais de celulose, ela pode ser incorporada a polímeros para dar maior resistência a esses materiais, conforme estudo liderado pelo professor Daniel Pasquini, do instituto de Química da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas gerais. “Os nanocristais podem substituir as fibras vegetais adicionadas atualmente aos compósitos convencionais”, diz Pasquini. A vantagem é que, mesmo usando menos material, o compósito ganhará um

Casca de soja antes e depois da purificação: nanocristais para polímeros

Os vazios da próstata

Espaços vazios nas estruturas arredondadas da próstata conhecidas como ácinos representam um indício da gravidade de tumores nessa glândula dos homens – e não um fenômeno indesejado e irrelevante que apareceu durante a realização da biópsia. Quanto maior esse espaço, maior o perigo oferecido pelo tumor, segundo estudo de Wagner Fávaro, Athanase Billis e outros pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Eles examinaram dois grupos de amostras: 25 de homens que haviam morrido sem doença no aparelho urogenital e 25 de homens submetidos à extração total da próstata. O estudo

indicou alterações moleculares e celulares associadas à formação do espaço nessas estruturas da próstata (Pathology & Oncology Research, abril de 2012). na mesma edição da revista, pesquisadores da Universidade de zagreb, Croácia, chegaram à mesma conclusão: a formação de espaços vazios nos ácinos pode ser vista como um fenômeno útil para avaliar a gravidade de tumores. O câncer de próstata é diagnosticado por meio do exame de toque e das variações dos níveis do antígeno prostático específico (PSA) e da forma, organização e quantidade dos ácinos, que produzem secreções que ajudam a formar o sêmen.

imagens de infravermelho feitas por uma câmera ultraveloz ajudaram a entender a dinâmica de uma cena comum nas fes-tas de final de ano: o espocar de um champanhe. A equipe do físico gérard Liger-Belair, da Universidade de Reims Champagne-Ardenne, situada no coração da zona produtora do famoso espuman-te francês, filmou a saída de rolhas e o consequente escape de dióxido de car-bono (CO2) em garrafas que haviam sido

mantidas por 24 horas a três diferentes temperaturas, 4, 12 e 18 graus Celsius (°C). Os dados do experimento confirma-ram que, quanto maior a temperatura do líquido, maior a pressão dentro da gar-rafa e, por tabela, maior também a rapi-dez e a quantidade de gás que deixa o recipiente ao ser aberto. A 18°C, a rolha salta da garrafa a uma velocidade de 55 quilômetros por hora e o volume de CO2 disperso numa nuvem gasosa – não de-

tectável na faixa da luz visível, mas sim no infravermelho – é enorme. A 4°C, a tampa de cortiça viaja a cerca de 40 qui-lômetros por hora e a nuvem é nitida-mente menor. “Também vimos que, de toda a energia produzida pela retirada da tampa, apenas 5% saem na forma de energia cinética”, diz Liger-Belair. “A maior parte da energia do sistema pare-ce ser liberada como uma onda de cho-que, como o bang do estouro da rolha.”

Alta temperatura acelera rolha a 55 km/h

Reforço invisível

reforço igual ou até superior. “no caso de polímeros que necessitam de transparência, como filmes para embalagem, a adição dos nanocristais permite que o material também possa ser transparente.” nos compósitos convencionais, o resultado é um material opaco. Para obter os nanocristais, os pesquisadores utilizam um processo de hidrólise em que a fibra de celulose é mergulhada em uma solução ácida para ser em seguida purificada. no final sobram os nanocristais. O estudo estará na edição de março da revista Industrial Crops and Product.

Rolhas saltando de garrafa de champanhe: a 4°C (alto) a tampa sai a uma velocidade 30% menor do que a 18°C (abaixo)

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Depois de analisar dados de aproximada-mente 5 mil indivíduos pertencentes a 94 grupos populacionais modernos distintos, um grupo de geneticistas e antropólogos físicos ibero-americanos

colheu evidências suficientes para contestar uma das teorias mais estranhas e controversas que ga-nharam as páginas de importantes revistas cien-tíficas nos últimos cinco anos: a de que, ao medir um traço físico permanente do crânio de pessoas do sexo masculino, é possível obter um indicador confiável de seu grau de honestidade e de agres-sividade. Segundo essa polêmica tese, que flerta com as ideias lombrosianas defendidas no sécu-lo XIX e há tempos totalmente desacreditadas, a relação entre a largura e a altura do rosto de um homem está associada ao tipo de comportamento exibido pelo indivíduo (o mesmo raciocínio não valeria para as mulheres). Homens com rostos proporcionalmente mais largos seriam menos éticos e mais violentos.

E a culpa disso seria da seleção natural. Em termos evolutivos, sempre segundo os defensores dessa teoria, as fêmeas de Homo sapiens teriam preferido se reproduzir com os machos de cara menos estreita, que, por se sentirem líderes po-derosos e temidos, teriam maior predisposição a recorrer a artimanhas e à força para fazer valer

seus interesses. Logo, por essa linha de raciocí-nio, com o passar do tempo, os crânios mais lar-gos teriam se tornado uma marca registrada dos homens mais desejados, potentes e com maior sucesso reprodutivo, que seriam também os mais desonestos e truculentos. Dá para acreditar nessa ideia de que o tamanho da maldade está impresso nos ossos da face dos homens, exclusivamente dos homens? Não dá. É o que diz, em tom educado, mas firme, o estudo feito por cientistas do Brasil, da Argentina, do México e da Espanha que está previsto para ser publicado na primeira quinzena deste mês na revista científica PLoS One.

“Não encontramos nenhum dado significati-vo de que populações ou indivíduos com maior grau de belicosidade, comportamento agressivo ou mediado pela sensação de poder tenham um rosto mais largo”, diz a geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das coordenadoras do tra-balho. “Também não achamos nenhuma ligação entre esse traço físico e uma suposta vantagem reprodutiva no processo evolutivo.” Se os machos de cara mais larga tivessem sido, ao longo do pro-cesso evolutivo, os prediletos das fêmeas, era de esperar que esses indivíduos tivessem produzido mais descendentes do que seus rivais mais fracos (ou com imagem de mais fracos), de rosto mais

o crânio subvertidoEstudo de pesquisadores ibero-americanos contesta trabalhos

que associam a largura da face do homem a comportamentos

antiéticos e agressivos | marcos Pivetta

Page 20: Pesquisa FAPESP 203

alongado. Na amostra analisada, no entanto, o tamanho da prole de ho-mens de traços faciais mais largos não diferiu significativamente dos demais.

A afirmação de que rostos mais largos nos homens representam um traço adaptativo selecionado pelo processo de evolução natural, um ar-gumento usado para embasar a tese dos neolombrosianos, também não foi confirmada pelo novo estudo. Es-sa questão ainda não está totalmente fechada, embora a maior parte dos trabalhos afirme que o dimorfismo sexual em nossa espécie é menos pronunciado do que em outros pri-matas. Em outras palavras, machos e fêmeas não apresentam diferenças físicas marcantes que foram molda-das pelo processo evolutivo. Em al-guns animais e plantas o dimorfismo

sexual é evidente. O leão, por exemplo, tem uma vistosa e amedrontadora juba, adereço de que a leoa não dispõe.

Independentemente de a largura da face mas-culina ter sido moldada pelo processo evolutivo ou não, concluir que esse parâmetro anatômico é, por si só, uma espécie de régua biológica do caráter e da agressividade dos homens carece de fundamentos sólidos, de acordo com a equipe internacional de pesquisadores. “Correlacionar um único atributo físico a um comportamento humano complexo, como a questão da ética e da agressividade, não tem validade científica e é uma ideia perigosa”, afirma o antropólogo físi-

co argentino Rolando González-José, do Centro Nacional Patagônico, de Puerto Madryn, outro autor do trabalho na PLoS One. “Além de não se sustentar do ponto de vista científico, como mostramos em nosso trabalho, esse tipo de ra-ciocínio, que não leva em conta o contexto social e cultural das pessoas, abre uma porta para polí-ticas discricionárias e eugênicas.”

Os cientistas usaram bases de dados próprias e disponibilizadas por outros trabalhos cientí-ficos para obter informações sobre a largura da cabeça de uma amostra tão grande e diversifi-cada de crânios humanos. Entre as populações analisadas, havia grupos de contextos sociais e culturais muito variados, de sociedades com fama de serem mais ou menos violentas, como mora-dores de países desenvolvidos e em desenvolvi-mento e habitantes de tribos indígenas. Dados antropométricos de prisioneiros que estiveram retidos no início do século passado na Peniten-ciária Federal da Cidade do México, um estabe-lecimento onde, por definição, a concentração de homens desonestos e belicosos deve ter sido alta, também foram usados no estudo. “Não es-tamos dizendo que a genética ou a biologia não influenciam o comportamento das pessoas”, explica Claiton Bau, especialista em genética psiquiátrica da UFRGS, que também assina o trabalho ao lado de González-José e Maria Cá-tira. “Claro que elas influenciam, mas não têm um efeito determinista sobre comportamentos complexos, como a ética individual. Seu efeito é probabilístico. O ambiente também influencia os indivíduos ao longo de toda a vida. No caso do cérebro, o importante não é o formato, é a fun-ção (cognitiva) desempenhada em uma região.”

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teorias sem pé nem cabeça

Um calombo na região da benevolência seria um sinal de que essa característica era abundante no dono do crânio. A frenologia foi bem acolhida na sociedade vitoriana inglesa

no início do século XiX, o médico alemão publicou as ideias que originaram a frenologia, que dividia o crânio em 27 regiões, cada uma associada a supostos traços da personalidade

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Estudo dos cientistas ibero-americanos analisou medidas de 5 mil pessoas de 94 populações e não encontrou nenhuma ligação entre o formato do rosto e o comportamento

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Franz Joseph Gall

20 | janeiro De 2013

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O polêmico traço físico que estaria associado à maldade masculina é calculado a partir de um índice denominado tecnicamente relação da lar-gura e da altura da face, em inglês facial width--to-height ratio (fWHR). A largura do rosto é ob-tida por meio do registro da distância entre dois pontos do crânio conhecidos como zígio esquerdo e direito. Eles se encontram nas extremidades laterais da cabeça, perto das orelhas. A altura da face é dada pela distância entre dois outros pontos, o násio e o próstio. O násio fica no centro do rosto, entre as sobrancelhas, pouco acima da depressão nasal. Também central, o próstio se situa logo acima do lábio superior. Nos homens, quanto maior for a largura do rosto em relação à altura, maior é o índice fWHR – e, segundo os neolombrosianos, maior a falta de ética e pendor à agressividade do sujeito em questão.

O trabalho recente que explorou de forma mais explícita essa veia quase racista de ligar a deso-nestidade a um traço físico do crânio foi um artigo científico publicado em 6 de julho do ano passa-do na revista científica Proceedings of the Royal Society B, editada pela famosa e respeitada Royal Society da Inglaterra. O título do estudo é um bom indicador do seu conteúdo: “Bad to the bo-ne: facial structure predicts unethical behavior” (“Mau até o osso: estrutura facial prediz com-portamento antiético”, numa tradução livre). No artigo, Michael P. Haselhuhn e Elaine M. Wong, da Universidade de Wisconsin em Milwaukee, reportam os resultados de dois experimentos comportamentais, típicos das escolas de admi-nistração, que servem de suporte para sua tese.

No primeiro teste, 192 alunos de MBA (115 homens e 77 mulheres), com idade média de 28

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anos, participaram de uma versão do conhecido exercício de negociação Bullard Houses. No teste os estudan-tes desempenharam aleatoriamente o papel de vendedor ou de compra-dor de uma propriedade. Trata-se de uma simulação destinada a medir a ética dos negociantes. Na varia-ção do exercício proposta por Ha-selhuhn e Wong, toda a transação entre as partes foi feita por e-mail, sem que ninguém tivesse noção da aparência do seu interlocutor.

Havia um conflito em potencial que devia ser contornado para que o negócio se efetuasse. O vendedor só estava disposto a abrir mão do imóvel se houvesse uma garantia de que a construção não seria usada para fins comerciais, exigência que o comprador não estava disposto a assumir (ele não podia dizer que iria erigir um hotel no local). No final do expe-rimento, 13 compradores do sexo masculino e 5 do feminino enganaram o vendedor do imóvel. No caso dos homens, os que trapacearam tinham caras mais largas do que os que não incorreram em comportamento antiético. Nas mulheres, essa correlação não foi encontrada. As medidas faciais foram obtidas a partir de fotos digitais dos par-ticipantes da simulação.

O segundo experimento tinha como objetivo averiguar a ocorrência de outra forma de trapa-ça: mentir sobre os resultados de um jogo virtual de dados para aumentar suas chances de obter uma eventual recompensa financeira numa lo-

no meio do século XiX, as ideias de gall já estavam desacreditadas pela ciéncia e eram alvo de piadas. isso não impediu que, pouco depois, teorias derivadas surgissem e se tornassem populares. na itália, Lombroso publicou em 1876 O homem delinquente

O médico difundiu a ideia do criminoso nato, que teria feições selvagens, parecidas com as de macacos. O fora da lei seria prognata, com testa inclinada, orelhas grandes e braços alongados

1876

“Correlacionar um atributo físico a um

comportamento humano complexo

não tem validade científica”, afirma

Rolando González-José

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PESQUISA FAPESP 202 | 21

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to, o que posso dizer é que esse futuro paper tem pouco a ver com o nosso artigo ‘Bad to the bone’, com exceção de que ele faz a óbvia distinção de que comportamento antiético e comportamen-to criminal não são a mesma coisa”, disse, por e-mail, Haselhuhn. “Esse paper discorda mais diretamente de estudos anteriores que dizem que a relação fWHR vem do dimorfismo sexual. Apesar de citarmos esses estudos, explorar o di-morfismo sexual não é o foco do nosso artigo.”

O artigo de Haselhuhn e Wong é o trabalho re-cente com afirmações mais contundentes relacio-nando ética à largura de ossos do crânio em ho-mens. Mas não é o único. Num artigo publicado em 19 de agosto de 2008 na mesma Proceeding of the Royal Society B, Justin M. Carré e Chery McCor-mick, do Departamento de Psicologia da Univer-sidade Brock, do Canadá, afirmam que esse traço do rosto pode funcionar como um marcador de agressividade. Sua evidência científica: jogadores de times profissionais e universitários de hóquei com cara mais alargada sofreram mais punições por terem cometido faltas ou ações violentas no jogo. “Esses achados sugerem que a relação en-tre a largura e a altura da face determinada por dimorfismo sexual pode ser um ‘sinal honesto’ da propensão à agressividade”, escreveu a dupla. Em 2009, os mesmos pesquisadores emplacaram um artigo na revista Psychological Science de caráter bastante parecido. Relatam experimentos em que pessoas associam comportamentos agressivos a imagens de homens com rostos de traços alarga-dos. “Não consigo ver o que pode sair de bom desse tipo de estudo”, comenta Maria Cátira.

É antigo o desejo de tentar associar certos tra-ços da anatomia do crânio humano à personalida-

teria. Nesse caso foram recrutados 103 universitários com idade mé-dia de 22 anos, dos quais 49% eram homens. Também foram aplicados questionários entre os participan-tes do estudo para medir quão po-derosos eles se sentiam. Mais uma vez apareceu, segundo os autores do trabalho, uma correlação entre homens com faces largas e com-portamentos antiéticos. Os indi-víduos que reportaram os maiores resultados no jogo foram os que se definiram como mais poderosos – justamente os homens de cara lar-ga. Novamente essa correlação não apareceu entre as mulheres.

O parágrafo final do artigo da du-pla de Wisconsin resume suas teses formuladas a partir dos dois experi-mentos: “Em conclusão, nossa pes-quisa fornece uma nova perspectiva

do estudo das bases evolucionistas da moralidade ao identificar um traço físico determinado gene-ticamente que prediz o comportamente antiéti-co. Demonstramos que homens com faces mais largas (em relação à altura facial) se sentem mais poderosos e esses sentimentos de poder levam diretamente para um comportamento menos éti-co, incluindo mentir e trapacear. Talvez alguns homens sejam verdadeiramente maus até o osso.”

Contactado por Pesquisa FAPESP em meados de dezembro, Haselhuhn disse não se sentir numa posição confortável de comentar o trabalho de seus colegas ibero-americanos antes de ter acesso à versão final publicada do artigo. “Neste momen-

no século passado, ideias inspiradas ou derivadas das teses de gall ou Lombroso continuaram encontrando seguidores, como o pedagogo belga Paul Bouts (ao lado)

O psiquiatra inglês Bernard Hollander foi outro difusor dessas teorias, usadas às vezes para justificar políticas discricionárias (à direita e à esquerda)

Alguns experimentos e procedimentos dos médicos nazistas tinham raízes que remetiam à frenologia, como realizar medições no crânio

Século xx

Há tempos desacreditadas, as estranhas teses da frenologia associavam as diferentes regiões do crânio a traços distintos da personalidade humana

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de de indivíduos de nossa espécie, estabelecendo supostas relações entre alguns parâmetros físicos e a propensão à desonestidade ou à prática de atos criminosos. Entre o final do século XVIII e início do XIX, os controversos trabalhos do médico ale-mão Franz Josef Gall (1758-1828) e de seu discípu-lo Johann Gaspar Spurzheim (1776-1832) são uma referência obrigatória sobre o tema. Para Gall, a superfície do crânio funcionava como um índex das características psicológicas do indivíduo. Ele dividiu o cérebro em 27 regiões (outros depois fatiaram o órgão em mais ou menos setores). Ha-via uma área ligada à compaixão, outra ao desejo de se reproduzir e assim por diante. O tamanho de uma região era proporcional à faculdade psi-cológica por ela representada. Um calombo um pouco acima da testa era sinal de benevolência exagerada. Uma protuberância no entorno das orelhas era um indício de agressividade exacer-bada. Assim nascia a cranioscopia, popularizada por Spurzheim com o nome de frenologia. Medir o crânio era medir a psiquê humana.

Embora já em meados do século XIX a fre-nologia tenha caído em descrédito científico e se tornado alvo inclusive de charges e pinturas bem-humoradas, em que médicos esquadrinha-vam o cérebro deformado de pacientes, esse tipo de abordagem nunca deixou de encontrar adep-tos de tempos em tempos, sobretudo em certas sociedades. Esse tipo de estudo foi bastante di-fundido nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ao publicar a obra O homem delinquente em 1876, o médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909) produziu uma versão própria dessa abordagem, com foco em supostas características típicas do crânio de hipotéticos malfeitores natos. Segundo

Lombroso, o criminoso tinha fei-ções selvagens, semelhantes às dos macacos. Era prognata, tinha testa inclinada, orelhas grandes, braços alongados, entre outros atributos. Mesmo no século XX ideias racis-tas como as de Gall e Lombroso en-contraram seguidores e difusores, como o psiquiatra inglês Bernard Hollander (1864-1934) e o pedagogo belga Paul Bouts (1900-1999). “Os médicos nazistas praticavam euta-násia para manter a suposta pureza da raça ariana”, afirma Bau, numa referência a um regime que lançou mão de ideias eugênicas em parte influenciadas pela frenologia.

Para González-José, os estudos recentes que estabelecem uma su-posta correlação do tal índice fWHR e comportamentos antiéticos e/ou agressivos incorrem numa simpli-ficação extrema e perigosa. “Quando a ciência tenta explicar mecanismos escondidos em fe-nômenos complexos, é sempre necessária uma avaliação cuidadosa”, diz o argentino. “Não se pode aceitar uma simples associação estatísti-ca como prova de uma relação de causa e efeito entre largura da face do homem e comporta-mentos antiéticos.” n

Polêmicos estudos recentes publicados em revistas científicas, como a Proceedings of the Royal Society B, dizem que uma medida do crânio dos homens (mas não das mulheres) pode ser interpretada como um indicador de comportamentos antiéticos e agressivos

Os trabalhos, que parecem uma versão atual da frenologia, afirmam que, quanto maior foi a largura da face dos indivíduos (a distância entre os zígios) em relação à sua altura (do násio ao próstio), maior a sua propensão à desonestidade e belicosidade

Anos 2000

Políticas discricionárias

usaram estudos derivados da

frenologia para justificar seus atos

contra indivíduos que tinham certos

traços físicos

Artigo científico

GÓMES-VALDÉS, J. et al. Lack of support for the association between facial shape and aggression: a reappraisal based on a worldwide population genetics perspective. PLoS One. No prelo.

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24 | janeiro De 2013

Saltos astronômicos

O astrofísico João Evangelista Steiner achava que era feliz quando estudava astronomia de raios X e bura-cos negros no início de sua carreira no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP). Quando fez seu pós-doutorado na Universidade Harvard, nos

EntrEvIStA

marcos Pivetta e neldson marcolin

Estados Unidos, e foi contratado pelo Instituto Smithsonian como funcionário público norte-americano, sua visão de como fazer ciência em nível competitivo mudou radicalmente. De volta ao Brasil em 1982, Steiner tornou-se um ativo organizador e gestor de ciência e um obsessivo batalhador pela melhora das condições de infraestrutura dos estudos astronômicos.

A lista de seus trabalhos em prol da astronomia brasileira é robusta. A modernização do Observatório Pico dos Dias, a cria-ção do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA) e a participa-ção nacional decisiva no consórcio dos observatórios Gemini e Soar, ambos no Chile, são os mais conhecidos. Steiner também foi secretário-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ocupou a Secretaria de Coordenação das Unidades de Pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e dirigiu o Instituto de Estudos Avançados (IES/USP). Hoje é um severo crítico da entrada do Brasil no European Southern Observatory (ESO).

Tais empreitadas não arrefeceram seu lado pesquisador. Os anos dedicados à gestão, desde 1982, conviveram com observa-ções astronômicas frequentes, publicação de artigos científicos, supervisão de instrumentos de precisão para observatórios e um interesse nunca abandonado pelo que ocorre no Universo, o “maior e melhor laboratório que existe”, segundo costuma dizer. Agora, em 2013, Steiner está ansioso para começar um estudo sobre o centro da Via Láctea utilizando uma nova tec-

IdAdE 62 anos

ESPEcIAlIdAdE Astrofísica

FormAção USP (graduação, mestrado e doutorado)

Universidade Harvard (pós-doutorado)

InStItUIção instituto de Astronomia, geofísica e Ciências Atmosféricas (iAg/USP)

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João steiner

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26 | janeiro De 2013

nologia recém-instalada no Gemini. Ca-sado, com três filhos, o astrofísico natural de São Martinho, em Santa Catarina, deu a entrevista abaixo à Pesquisa FAPESP.

O senhor vem de uma cidade muito pe-quena em Santa Catarina, colonizada por alemães. É fato que aprendeu por-tuguês apenas com 10 anos? Sou bisneto de alemães. Essa imigração aconteceu em 1860, durante a Guerra do Paraguai e dizem que até por conta do conflito. Dom Pedro II, que tinha conexões fortes com a Áustria – a mãe dele era aus-tríaca –, queria povoar o litoral de Santa Catarina por questões geopolíticas. Meus bisavós vieram do vale do Reno, da Alema-nha, e foram para o vale do Capivari, em Santa Catarina. A família do meu pai veio de Koblenz, onde o rio Mosela entra no Reno. A minha mãe é da família Boeing e veio de Bocholt. Ela descendia de dois irmãos que fugiram do servi-ço militar alemão. O William foi para Seattle e fundou uma companhia que depois passou a fabricar aviões, a Boeing. O Werner foi para Santa Cata-rina. O ruim dessa história é que nasci no lado pobre da família. Em São Martinho eu falava alemão porque era só o que se falava. Até a Segunda Guerra Mundial as aulas eram em alemão. Aprendi português aos 10 anos, na marra, porque na escola chega uma hora que não tem jeito. Mas nunca ti-ve muitas relações científicas com a Alemanha. Mais recen-temente tenho ido mais para lá porque tenho um filho que é cantor de ópera e mora em Hamburgo.

Como seguiu sua educação? Lá tínhamos escolas de padre e de freira. Quem ia estudar, o que era raro, ia para uma ou para outra. Fui para a de padre e minha irmã para a de freira. Depois vim fazer vestibular aqui na USP.

Já tinha ideia de fazer astronomia? Era daquelas crianças que construía coisas?Não. Mas cheguei a construir um teles-cópio, por curiosidade. Também cons-truí um rádio, tentei fazer um computa-dor que nunca funcionou. Mas eu tinha curiosidade sobre o Universo. Meus pais

eram agricultores e me lembro que quan-do tinha uns 7 anos estava limpando o pasto com minha mãe e quis saber dela onde era o fim do mundo. E ela disse que o fim do mundo era muito longe dali, depois da Alemanha. Vinte anos depois, veio um parente da Alemanha nos visi-tar. Era uma viagem duríssima, quando Santa Catarina não tinha nem estrada asfaltada. Era poeira, curvas e serra. Ele chegou lá, entrou na cozinha, sentou na primeira cadeira e disse, “Agora eu sei onde é o fim do mundo!”. Me senti vin-gado. Eu já tinha uns 27. Isso dá a ideia de como as coisas são relativas.

Não tinha fixação por telescópios?Eu tinha curiosidade em saber as coisas. A física me atraía, porque respondia às

perguntas mais fundamentais da ciência. Eu queria fazer o melhor curso de física do Brasil e todos diziam que era o da USP. Vim para cá e entrei em 1970. Quando cheguei ao começo do terceiro ano, con-cluí que o melhor laboratório de física era o Universo. Muitas das questões de interesse científico seriam respondidas pela astrofísica, porque qualquer coisa que envolva grandes dimensões, grandes massas, grandes campos de gravidade, temperatura, campos magnéticos, tudo no extremo só se encontra no contexto cósmico. O problema é conseguir fazer a transformação disso em laboratório. Para isso temos de extrair muita informação. As duas questões fundamentais da físi-ca contemporânea são matéria escura e

energia escura. Descobrimos de repente que sabíamos pouco do Universo, porque ele tem essas duas entidades que domi-nam sua dinâmica. Não que eu tivesse previsto essas coisas. Absolutamente não, mas também não estava errado em achar que laboratório bom é o Universo.

Seu interesse pelos buracos negros co-meçou no mestrado?Exato. A astronomia de raios X estava nascendo naqueles anos. A Cygnus X-1 foi a primeira fonte de raios X da conste-lação do Cisne descoberta. Quando me-diram a massa da Cygnus X-1 viram que ela seria muito maior que uma estrela de nêutrons, ou uma anã branca, então só po-deria ser um buraco negro. E isso foi em 1973. A minha iniciação científica foi so-

bre a identificação de fontes de raios X. Em 1974 comecei o mestrado e criei um modelo teórico para a Cygnus X-1. Fiz com o professor José Antonio de Freitas Pacheco, que atual-mente vive na França. O mes-trado foi interessante porque estava associado com as des-cobertas recentes. Cygnus X-1 foi a primeira candidata a ter um buraco negro. O mestra-do consistiu em construir o modelo teórico de disco de acreção [estrutura formada por material difuso ao redor de uma estrela ou buraco negro] e calcular o espectro de raios X que ele tinha que emitir. Mostrei que as duas coisas batiam.

E o doutorado?No doutorado peguei esse modelo de disco e apliquei às estrelas anãs bran-cas, estrelas de nêutrons e buracos ne-gros estelares e supermassivos, que são as quatro modalidades em que a acreção produz a energia liberada. Essa energia não vem de uma estrela normal, como o Sol, cuja origem é a fusão nuclear que transforma hidrogênio em hélio e depois em outros elementos mais pesados. E o diferencial da massa é transformado em energia. Esses objetos são extremamente compactos e têm um poço gravitacional muito profundo, na forma, na capacidade de acelerar matéria no campo gravitacio-nal. Qualquer gás que seja capturado co-meça a espiralar para dentro e a energia

As duas questões fundamentais da física contemporânea são matéria escura e energia escura

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gravitacional é transformada em energia cinética, em acordo com a lei de conser-vação de energia. A energia cinética nas órbitas mais internas é muito maior do que nas órbitas externas, porque a velo-cidade é muito maior. Órbitas consecu-tivas têm velocidades diferentes e isso gera fricção, que transforma a energia cinética em energia térmica. Fica uma temperatura tão alta – estamos falando em 100 milhões de graus – que emite fó-tons que escapam, sob forma de energia radiante antes que a matéria entre no buraco negro ou na estrela de nêutrons ou na anã branca.

É uma maneira de saber se há um buraco negro na região observada?No início era muito difícil distinguir se era um buraco negro ou uma estrela de nêutrons, por exemplo, ou até uma anã branca, porque todas elas emitem raios X. Estão em um sistema binário de es-trelas e, sendo assim, é pos-sível medir a massa das duas componentes. Na anã branca há um limite superior que é o de Chandrasekhar, que é 1,4 massa solar. Na estrela de nêutrons, o limite é 3,5 mas-sas solares, que é chamado de limite Volkoff-Oppenheimer. Se for mais de 3,5, a solução é o buraco negro.

Mas sabia-se isso na época?Até se sabia, mas a medida da massa era difícil de ser obti-da. O que aconteceu naquele período é que, em muitas das estrelas binárias de raios X que foram sendo des-cobertas, a fonte de raios X pulsava. São os pulsares de raios X. Isso é produzido pelos polos magnéticos que vão girando e jogam o feixe de raios X, como se fosse um farol. Buraco negro não tem campo magnético. Então nenhuma dessas fontes pulsantes poderia ser um buraco negro. Tinham de ser estrelas de nêutrons, co-mo se comprovou com a grande maioria delas. Foi uma ducha de água fria, porque achávamos que haveria uma série de bu-racos negros e que seria fácil estudá-los quando, na verdade, a grande maioria era estrela de nêutrons. Tanto assim que nós só conhecemos 20 buracos negros estelares na bibliografia, 40 anos depois.

Esse tema foi estudado no seu douto-rado também? Existia dificuldade para encontrar gente para orientar?O meu foi o terceiro doutorado em as-trofísica no Brasil. O professor Abrahão de Moraes, aqui da USP, era muito reco-nhecido e mandou estudantes fazerem doutorado na França. Em 1972, logo de-pois de sua morte, o Pacheco terminou o doutorado e voltou. Ele foi meu orienta-dor. Depois voltaram outras pessoas do exterior e a comunidade cresceu.

Quando foi para o exterior?Logo depois do doutorado, em 1979. Me interessei muito pela astronomia de raios X. O primeiro satélite capaz de detectar raios X foi lançado em 20 de dezembro de 1970, na costa do Quênia. Foi chamado

de Uhuru, que é a palavra queniana para liberdade. Muitas das estrelas binárias fo-ram descobertas por esse satélite, que era americano. Em Harvard trabalhei com o primeiro telescópio de raios X, denomina-do Observatório Einstein. A base científica ficava em Harvard embora o telescópio fosse da Nasa. Naquela época não existia telescópio espacial. O Uhuru era um equi-pamento pequenino para detectar fóton de raios X, muito primitivo. O Einstein era um telescópio e tinha grande capacidade de fotografar. Foi lançado em 1979.

E por que voltou para o Brasil? Certa-mente o senhor conseguiria uma posi-ção nos Estados Unidos.Eu consegui uma posição. Fui contratado

em Harvard pelo Instituto Smithsonian como funcionário público federal norte--americano. Foi uma história curiosa. Quando o Einstein foi lançado, as ima-gens vinham todas desfocadas. Aconte-ceu algo semelhante com o telescópio Hubble, anos depois. Os pesquisadores ficaram desesperados, porque tinham gastado uma fortuna para fazer o pri-meiro grande telescópio espacial. A Na-sa colocou todo seu pessoal para achar o problema – e não conseguiu. Harvard também tentou, sem sucesso. Eu estava lá e fiz meu primeiro trabalho científico como professor de Harvard, sobre qua-sares. Aí um professor de lá me propôs estudar o problema do telescópio. Eu disse que nunca tinha visto um satélite na vida e ele falou que era exatamente

por isso: quem já tinha vis-to não estava conseguindo resolver o problema. Quem sabe eu conseguiria? Colo-caram à minha disposição todos os computadores que eu quisesse e mais dois pro-gramadores. Comecei a tra-balhar nisso, dia e noite, com o direito de chamar os pro-gramadores a qualquer hora para fazer cálculos para mim. Demorei duas ou três sema-nas e achei a solução. Mos-trei para eles e garanti que podiam fotografar tudo de novo porque iriam conseguir o foco. Eles tinham os dados brutos arquivados e decidi-ram fazer um teste. Pegaram uma imagem bem desfocada e usaram a programação com

um sistema de 14 equações que fiz para ver o que dava. Saiu perfeito. Na verda-de, era até algo simples. Eles tinham dois telescópios ópticos no satélite, que se fi-xavam em duas estrelas. Ocorre que esse telescópio se mexe em torno da Terra e o campo magnético do planeta varia. Eles criaram uma blindagem para evitar a interferência do campo magnético. O que fiz foi mostrar que essa blindagem era 50 vezes pior do que havia sido en-comendado e a interferência do campo provocava o desfocamento.

Foi esse trabalho que levou a sua con-tratação?Americano tem isso: quando você mos-tra competência está garantido. Eles são

Quem é cientista graças à educação pública que recebeu tem um compromisso com a sociedade

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muito objetivos e organizados. Em qual-quer outro lugar do mundo eu continua-ria sendo só um brasileiro. Mas lá eu fui o cara que resolveu o problema. Isso muda o tratamento. Já era professor no IAG da USP quando pedi afastamento e fui fazer o pós-doc lá, com bolsa da FAPESP, por dois anos. A bolsa acabou, pedi afasta-mento sem vencimentos e eles me con-trataram. Fiquei um ano e tive de optar entre ficar e voltar. Voltei por duas ra-zões: a primeira é que a família queria. Àquela altura eu era casado e tinha dois filhos. Depois nasceu mais um. A segunda razão é que nunca me passou pela cabeça não retornar. Eu fui educado aqui, com recursos públicos, em instituições pú-blicas, tive bolsas da FAPESP em todos os níveis. Uma pessoa que recebe educa-ção pública, como recebi, se torna um cientista que não teria sido sem isso, tem um compromisso com a socieda-de que o sustentou. Para mim essa questão foi fundamental. O que eu queria era ficar um pouco mais de tempo lá, por-que sabia que quando voltas-se ao Brasil, em 1982, iria en-contrar uma situação difícil.

E o que era a astrofísica bra-sileira naquela época?Em Harvard havia montes de computadores, podíamos cal-cular qualquer coisa. Quando voltei para o Departamento de Astronomia, tinha cinco calculadoras de mão HP 25. Se alguém precisasse usar entrava na fila de usuários. Tínhamos também o CCE [Centro de Computação Eletrônica], órgão da Rei-toria, mas localizado na Escola Politéc-nica. Foi lá que fiz mestrado e doutorado usando um Borroughs 6900 para os cál-culos. Era preciso levar caixas cheias de cartões perfurados e entregar no guichê. Eles avisavam quanto tempo ia demorar e depois de dois dias, por exemplo, vol-távamos para buscar o print out. A gente achava o máximo. Isso antes de ir para os Estados Unidos. Lá percebi que não dava mais para fazer aquilo e, na minha volta, comecei a mobilizar a comunida-de para mudar o jogo. Foi difícil, por-que muita gente não queria. Achavam bom porque não se percebia o quanto estávamos atrasados de um modo ge-

ral. Em 1985 fui para o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] e criei lá a Divisão de Astrofísica. Começamos a adquirir equipamentos, compramos computadores para processar imagens. Meu primeiro aluno, Ivo Busko, fez uma tese que incluía processamento de ima-gens astronômicas. Quando terminou, foi trabalhar no Space Telescope Science Institute e viveu uma pequena confusão, porque ele estava lá e tinha desenhado o software para melhorar as imagens. Quando o equipamento foi lançado, des-cobriram que as imagens também eram ruins e o único cara que sabia processar as imagens era ele. O Ivo foi para lá com bolsa de pós-doc. Quando surgiu o pro-blema, a primeira coisa que a Nasa fez foi contratá-lo.

Com o avanço da tecnologia, tudo ficou menor e com melhor resolução. Isso vale para a engenharia de telescópios?Sim, mas há outra questão fundamental que é a tecnologia do infravermelho, a faixa do espectro eletromagnético mais difícil de fazer ciência. Todos nós emi-timos infravermelho. O telescópio tam-bém. Imagine construir um telescópio na luz visível e encher de lâmpadas. No momento de observar a estrela o back-ground é muito brilhante. A maneira mais inteligente de resolver isso no in-fravermelho é construir um telescópio, colocar no espaço e refrigerar de tal mo-do que a emissão térmica se torne zero, desprezível. Só que fazer isso é a fron-teira da tecnologia, algo muito difícil. O

primeiro telescópio infravermelho foi o Iras, lançado 30 anos atrás. As imagens eram borrões, ainda rudimentares. Todo equipamento espacial no infravermelho tem de ser refrigerado com hélio líquido. O Iras foi um grande sucesso porque ele conseguiu operar por nove meses. O que está ótimo, já que conseguir refrigerar hélio líquido no espaço é dificílimo. O James Webb, o próximo telescópio es-pacial que vai substituir o Hubble, será colocado fora da órbita da Terra para não ser afetado. Vai ter um anteparo que o protegerá do Sol. Como estará protegido da Terra e do Sol, a temperatura natural dele vai ser muito baixa.

Quando será lançado?Talvez em 2015. Para nós será muito in-

teressante, porque nós traba-lhamos com cubos de dados, que são conseguidos com um aparelho chamado IFU [inte-gral field unit spectroscopy]. Tudo o que o nosso grupo faz aqui agora está em for-ma de cubo de dados, porque é muito rico em informações. Desenvolvemos uma série de métodos e estamos nos tor-nando uma referência nes-sa área.

O tratamento do cubo de da-dos é know-how desenvol-vido no IAG?É nosso, meu e de meus alu-nos. E já roda em diversos outros grupos. Há alguns grupos brasileiros que nós treinamos, porque é muito

difícil. O material está publicado e o sof-tware disponível, mas é preciso treinar. Se temos uma galáxia, no modo tradi-cional você põe uma fenda em cima e tira o espectro. É do espectro que sai a informação científica. No IFU é dife-rente. Fazemos uma matriz de lentes e, debaixo de cada uma delas, colamos uma fibra óptica. Pegamos todas as fibras ópticas, alinhamos numa fenda e produ-zimos um espectro para cada fibra. Pelo computador dá para reconstruir. Então temos X, Y e λ [lambda], comprimento de onda. E aí temos um cubo em três dimensões. O Gemini tem dois IFUs. Um no óptico e um no infravermelho. São ambos muito bons instrumentos. O Webb vai ter cinco.

decifrar informações contidas no cubo de dados foi uma contribuição minha e de meus alunos

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Para trabalhar com esse método o dado já tem de ser captado em três dimensões?Tem. Os americanos estão preocupados, porque ainda têm muita dificuldade em tratar cubos de dados. Os europeus têm mais tradição e, melhor, estão dizendo que até os brasileiros têm mais tradição. É algo que se aprende, mas o sujeito, de-pois de certa idade, tem dificuldade pa-ra se reprogramar em termos de novas ferramentas. Eu comecei isso porque fui forçado. Ajudei a construir os telescópios Gemini e o Soar. Fui do board do Gemini por 5 anos e do Soar por 12 anos. Um dos diferenciais do Gemini é que ele teria es-ses instrumentos de campo integral. Fui me programando para fazer esse tipo de ciência. Quando tive a oportunidade de realizar um projeto usando o Gemini e os instrumentos, não hesitei. Agora vou estudar galáxias, núcleos de galáxias, que po-dem ser muito bem examina-dos com esses equipamentos. Recebi o primeiro cubo de da-dos e comecei a trabalhar. Co-meçou a aparecer um monte de problemas com os dados. Pedi socorro: quem sabe tra-tar esse negócio? Ninguém sabia, em nenhum lugar do mundo. Então não tive alter-nativa a não ser resolver os problemas. Bolei os métodos, mas ainda havia um baita tra-balho de programação. Eu ti-nha dois alunos ótimos nisso e fomos desenvolvendo.

Podemos dizer que decifrar as informações do cubo de dados foi uma contribuição sua?Conceitualmente e intelectualmente sim. Isso tudo é relativamente recente e essas coisas demoram certo tempo para serem assimiladas. Começamos em 2009.

O senhor participou dos projetos de gran-des telescópios. Como foi esse processo?Quando voltei ao Brasil tínhamos um te-lescópio recém-inaugurado, em Itajubá, no OPD, Observatório Pico dos Dias. Per-cebi que o telescópio era usado de for-ma absolutamente precária, com placas fotográficas para fazer espectroscopia. Comecei a luta para ter instrumentos modernos em 1982. Tanto assim que o primeiro CCD [charge-coupled device, um sensor usado para imagens digitais]

quem trouxe para o Brasil fui eu. Fiz um projeto para importar um chip CCD, que foi aprovado, receberia dinheiro para a importação. Mas o Pentágono vetou por considerar “tecnologia sensível”. E olha que não era nem dos Estados Uni-dos que ele viria, mas da Inglaterra. Fiz outro projeto para importar uma câme-ra astronômica com o CCD embutido. Combinei com o vendedor para não es-pecificar, mandei um pesquisador nosso para ajudar a montar e esconder o CCD e deu certo. Foi o primeiro chip desse tipo que entrou no Brasil, em 1986. Foi instalado no OPD e, a partir daí, a astro-nomia brasileira começou a fazer ciên-cia moderna, com CCDs, computadores e processamento de imagens. Antes se fazia com placa pantográfica, que era o

que já se usava em 1890. Na década de 1980 já não se usava mais essa tecnolo-gia nos Estados Unidos, mas processos modernos, digitais. Teve outra sutileza importante. Esse telescópio era gerido pelo Observatório Nacional, mas havia muita disputa em torno do controle dele, muitos conflitos. No Brasil havia a tradi-ção de cada grupo ter seu instrumento, cada chefe ter sua “igrejinha”. E não dá, astronomia não pode ser assim. Então propus ao CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico] a criação do Laboratório Nacional de Astrofísica, o LNA. O CNPq entendeu a proposta e topou. Foi o primeiro labo-ratório nacional que se fez no Brasil, em 1985, 15 anos antes do segundo, o Labo-

ratório Nacional de Luz Síncrotron. E foi uma luta muito grande, porque envolveu nova cultura e novas mentalidades. E in-teresses, claro. Quando o interesse entra em jogo, as coisas nem sempre ficam no campo da racionalidade.

O objetivo era um maior compartilha-mento dos equipamentos astronômicos?Era ter uma estrutura compartilhada do ponto de vista nacional. Hoje ninguém fala mais em estrutura nacional – ago-ra é internacional, porque país nenhum consegue bancar grandes projetos sozi-nho. Para fazer o LNA construímos os equipamentos, os CCDs, as câmeras, e tudo isso ajudou a modernizar a astro-nomia brasileira. Publicamos uma série de papers com esse telescópio e com as

tecnologias que introduzi-mos. E o Brasil inteiro teve acesso, porque o uso era livre. Dependia de competitivida-de interna, mas por critérios unicamente científicos. Es-se era o princípio. Fizemos o LNA não como um ato de esperteza, mas de sobrevi-vência. Ao fazer de maneira compartilhada temos mais recursos para investir. Basta fazer um único investimen-to, que é alto, mas é apenas um – e essa é uma linguagem que o governo começa a en-tender. O nível da pesquisa aumenta porque somos to-dos obrigados a competir e a gerenciar os projetos dentro das melhores práticas inter-nacionais. A gente aprendeu

a fazer e isso qualificou a astronomia bra-sileira. Quando entramos como sócios no Gemini foi uma espécie de reconhe-cimento pelo sucesso que obtivemos no LNA, apesar de o desnível ser inacredita-velmente grande. Foi aí que tive a ideia de fazer algo no nível intermediário, o Soar.

O senhor começou a defender a constru-ção do Soar em 1993. Vinte anos depois, valeu a pena tê-lo construído?Sem dúvida. Mas as coisas acontecem lentamente nessa área. Todo projeto de telescópio leva, no mínimo, 12 anos para ficar pronto. Da ideia inicial, passando pelo projeto, pelo desenho, por nume-rosas comissões e comitês... Também é preciso conseguir recursos. Até come-

Em astronomia, ninguém mais fala em estrutura nacional. Agora é preciso de união internacional

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Um telescópio leva 12 anos para ficar pronto. Isso só depois de tudo aprovado e se houver recursos

çar a construir são vários anos. Depois, até o telescópio ver a primeira luz, mais 12 anos. Aí ele precisa passar por um ano de comissionamento, de ajustes finos para funcionar bem. Em outras palavras, não basta ligar na tomada e usar. Bem, quando o telescópio está funcionando, o problema ainda não está de todo resolvido. Ele tem seus instrumentos e cada um deles é uma etapa separada. São caros, sofisticados, queremos sempre a última palavra em tecnologia e até um pouco mais para ser competitivo. Esses instrumentos levam tempo para serem construídos e o Brasil não tinha tradição nessa área. Para o Soar, no entanto, fizemos três espectrógrafos, o Sifs, o Steles e o BTFI – este último da Cláudia Mendes de Oliveira, aqui do IAG. O BTFI [brazilian tunable filter imager] é um equipamento de alta tec-nologia que permitirá avaliar tanto a composição química como os movimentos relati-vos internos de galáxias. Está pronto, agora já dá para co-meçar a fazer ciência. O Sifs é instrumento de campo inte-gral de fibra óptica. Quer dizer, são 20 anos do surgimento da ideia do Soar e não de funcio-namento, é preciso entender isso. E no Gemini não foi di-ferente, ele ficou pronto cinco anos antes do que o Soar. Para comparar o Gemini de agora com o Soar tem de ser com o Soar de daqui a cinco anos. Ele ainda está longe de chegar ao ritmo de cruzeiro. Mesmo o Gemini ainda não chegou lá. Já trouxe e vai continuar tra-zendo muitos resultados, mas há críticas de que ele poderia produzir mais, ter mais impacto. Ainda assim, o Gemini produz ciência que sai na Nature e na Science, a cada dois meses pelo menos.

Quando o Soar chegará nesse patamar? Ele ainda recebe muitas críticas.Elas fazem sentido. Todos queremos fazer melhor. Estamos evoluindo, mas o ritmo foi menor, até agora, do que gostaríamos. E isso tem fundamentalmente a ver com instrumentação, e não com os telescópios, que são ótimos. Um dos instrumentos que será muito útil para a ciência brasileira é o espectrógrafo óptico de alta resolução, o Steles, feito para o Soar. Foi feito um se-melhante, em termos de funcionalidade,

para o Gemini, pelos ingleses, mas não funcionou e começaram a projetar outro. É uma lacuna no Gemini e vai ser sanada no Soar antes. Era para ter sido enviado em novembro, mas, como sempre costuma acontecer, uma das peças deu problema. O Steles tem, só de peças mecânicas, 1.500. Resolver isso no Soar antes de resolver no Gemini vai ser um salto muito grande para a astronomia brasileira. Em 2013 o do Soar estará pronto. Já o do Gemini, acho que nem começaram a construir. Os problemas que ocorreram são reais, mas acontecem em qualquer telescópio do mundo. O fundamental, no caso do Soar, é que agora iremos começar a usar os instrumentos construídos no Brasil e aí o impacto e a produtividade irão, de fato, crescer. No Gemini temos um novo equi-

pamento que se chama óptica adaptativa conjugada, que permite corrigir as dis-torções das imagens produzidas. Ela faz a tomografia de toda a atmosfera usando quatro lasers. A primeira distribuição de tempo para os astrônomos para uso desse instrumento foi feita em novembro. O Ge-mini é o primeiro telescópio a ter isso. Te-nho um projeto para estudar o centro da Via Láctea, que foi aprovado. O Augusto Daminelli, aqui do IAG, também teve um projeto aprovado. Seremos os primeiros usuários. É uma tecnologia de frontei-ra avançada e temos grande expectativa.

Por que hoje existe a observação por fila?O modo fila foi inventado no Gemini e no Soar. Funciona assim: o pesquisador que

precisa de pouco tempo de observação diz para os astrônomos residentes do observa-tório os dados que deseja obter, eles fazem a observação e repassam as informações para o pesquisador, que não precisa estar lá fisicamente. Outros observatórios, co-mo o ESO, não usam isso. Nesses casos, quando o pesquisador ganha a noite, ele vai lá e observa. No caso do Gemini, como nós tínhamos pouco tempo, a maioria dos projetos não tinha nem uma noite. Para otimizar, decidimos que os projetos brasi-leiros iam ser feitos no modo fila. Foi uma decisão inteligente porque conseguimos produzir três vezes mais papers por hora de observação do que outros parceiros, co-mo os americanos. Temos competitividade científica alta. No Gemini, deliberamos o modo fila e não distribuímos tempo do mo-

do clássico. No Soar fazemos as duas coisas, o pesquisador pode optar pelo modo fila ou pelo modo clássico. Depen-de do projeto. Por exemplo, quero tirar espectro de alguns objetos celestes no Soar. Pa-ra isso, bastam duas horas de observação. É bobagem ir pa-ra o Chile para observar du-as horas. O modo fila resolve isso. Se eu tiver duas noites, prefiro fazer daqui e não do Chile, porque aqui posso cha-mar a equipe inteira para par-ticipar na sala de observação que temos no IAG. Lá no Chile temos um técnico que faz as operações necessárias. Abre cúpula, fecha cúpula, aponta o telescópio.

As pessoas ainda têm aquela imagem romântica do astrofísico olhando pelo telescópio, como se fazia no passado?Quando eu digo, no primeiro ano do cur-so, que telescópio não tem mais lugar para botar o olho, os alunos ficam muito de-cepcionados. É um choque. Hoje em dia o astrofísico trabalha atrás do computa-dor ligado a câmeras altamente sensíveis. Se o telescópio está no andar de cima ou no outro lado do hemisfério, não faz a menor diferença. Claro que o telescópio é um fetiche. Sair da cúpula, ver aque-le céu maravilhoso nos Andes, cheio de estrelas, é encantador. Mas para produ-zir boa ciência e formar bons cientistas a lógica é um pouco diferente e tem de ser otimizada.

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hoje trabalhamos com o computador ligado a câmeras. não importa onde está o observatório

Como o senhor vê a participação do Brasil no ESO, o consórcio europeu de telescópios situados no Chile?Para mim, o que ocorre hoje era total-mente previsível. O Brasil aceitou entrar no consórcio a um custo de € 255 mi-lhões, o que dá quase R$ 700 milhões em 10 anos; depois disso pagaríamos cerca de € 25 milhões por ano de manutenção, para o resto da vida. Escrevi uma carta indignada de seis páginas sobre isso há três anos e mandei para o Sérgio Rezen-de, que era o titular do MCTI e decidiu o assunto sem discussão nem avaliação prévias. Ele respondeu verbalmente di-zendo que eu estava equivocado. Eu pre-via que iríamos gastar muita energia, um longo tempo, perderíamos janelas de oportunidade e, no final, descobriríamos que não temos esse dinheiro para gastar.

E o que aconteceu?Está acontecendo exatamen-te isso. Quando parecíamos que éramos ricos, há pouco tempo, não tínhamos esse dinheiro para pagar. Neste momento nosso PIB cresce pouco e a derivada é negati-va. Não será agora que o go-verno vai gastar com o ESO. Não está nem no orçamento. Para ser aprovado, a presi-dente Dilma teria de man-dar para o Congresso e lá ser aprovado por cinco comis-sões e duas plenárias. E nós sabemos como nossos polí-ticos adoram astronomia... Além disso, não se trata só de uma questão de dinheiro. Nos observa-tórios Gemini e Soar entramos com X% do dinheiro e usamos X% do tempo. No ESO essa proporcionalidade não existe. Pagam-se € 255 milhões para ter o direi-to de disputar com eles em condições de desigualdade – com raras exceções. Eles são espertos e acho que estão certos, do ponto de vista deles. Cabe a nós decidir-mos qual é a nossa melhor estratégia de desenvolvimento. Existem alternativas excelentes que nos custariam pelo me-nos 10 vezes menos.

E por que o governo brasileiro concor-dou com essas condições?É difícil entender. O ano de 2010 foi elei-toral. O presidente Lula e seus ministros

estavam convencidos de que tinham co-locado o Brasil no céu. E a maior prova disso é que fomos convidados a fazer parte do maior observatório do mundo, o ESO. Isso foi dito por eles. Minha aná-lise não é política, ideológica, nada disso. Estou dizendo que naquele ano houve essa construção. Acho que é a melhor explicação. O problema é que o ministro assinou um compromisso para o resto da vida dois dias antes de sair do governo. E sem combinar com o ministro que o sucedeu depois, o Aloizio Mercadante. Esse acordo subsidiará a ciência e tec-nologia europeias com dinheiro do con-tribuinte brasileiro.

Os físicos, principalmente os que não são astrofísicos, criticaram o gasto enor-

me de dinheiro com astrofísica enquanto o novo Síncrotron seria um investimen-to que certamente daria mais retorno.O novo Síncrotron seria usado por diver-sas áreas científicas e por uma comuni-dade 20 vezes maior. Com o dinheiro do acordo com o ESO, poderíamos construir um novo anel a cada cinco anos.

Além das questões científicas da astro-nomia, o senhor dirigiu o IEA. O que o levou a essa experiência?Tive algumas atividades ligadas à políti-ca científica e tecnológica, fui presidente da Sociedade de Astronomia Brasileira e secretário-geral da SBPC. Liderei a entrada do Brasil no Gemini e fui res-ponsável por boa parte da construção do

Soar. No segundo governo de Fernando Henrique Cardoso ocupei uma das se-cretarias do MCT, na gestão do ministro Ronaldo Sardenberg. Em 2003 voltei pa-ra a USP e meses depois houve sucessão no IEA, fui convidado para entrar na lista tríplice e, meio que desavisadamen-te, aceitei. Os quatro anos que passei lá não foram ruins, mas não acho que eu tenha sido bem-sucedido em termos de construir um novo IEA. O IEA sofre de alguns problemas estruturais e na mi-nha opinião deveria ser uma instituição que tivesse um forte caráter estratégico para a USP. Mas jamais o será se a USP não quiser. Uma parceria estreita com a Reitoria é imprescindível. De qualquer modo, fizemos algumas coisas interes-santes. A revista Estudos Avançados era

quase secreta. Até conseguir colocá-la na SciELO, apesar dos protestos dos meus co-legas. Hoje é a terceira mais acessada do Brasil, com mais de 3 milhões de acessos por ano. A primeira e a segunda são da área de saúde públi-ca. Também fizemos vários ciclos de estudos e debates, mas acho que falta um cará-ter mais estratégico em ter-mos de universidade. An-tes disso tudo fui diretor de ciên cias espaciais do Inpe. A maior parte do meu envolvi-mento com política científica e administrativa aconteceu por necessidade de ter con-dições de lutar por melho-res possibilidades para fazer pesquisa, de maneira mais

ampla que um pesquisador ou um gru-po. O Síncrotron é o melhor exemplo para ilustrar essa ideia. É uma infraes-trutura aberta, pública, que precisa de grandes investimentos, mas apenas em um equipamento, que deve ser moder-nizado. Depois que ele virar obsoleto, vamos precisar de outro. É o que esta-mos vivendo agora. Mas esse tipo de investimento não fazia parte da cultura científica brasileira. E na astronomia isso é muito visível. Foi essa necessi-dade que me levou a outros campos de batalha, digamos. Tanto assim que hoje já sinto que cumpri minhas obrigações. Estou muito feliz de escrever paper e dar aula. Minhas missões eu já cumpri. Ago-ra quero ser usuário dos telescópios. n

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os novos cientistasMostra premia projetos do ensino básico de

São Paulo e atrai alunos de escolas públicas à pesquisa

A segunda edição da Mostra Paulista de Ciências e Engenharia (MOP), que aconteceu entre os dias 6 e 8 de dezembro no Espaço Cataven-to, em São Paulo, reuniu, além de

relatos fascinantes de amor pela ciência, 124 projetos finalistas de alunos de escolas públi-cas e privadas de 27 cidades do estado de São Paulo – três vezes mais do que a seleção obti-da na primeira edição do evento, que precisou convocar projetos apresentados em outras feiras de ciências para alcançar um quórum razoável. Talvez um dos maiores feitos da mostra, volta-da para alunos de ensino fundamental e médio, tenha sido atrair mais estudantes e professores orientadores de escolas públicas estaduais de São Paulo para o circuito das feiras de ciências, um público tradicionalmente refratário a essas iniciativas. “Sentíamos a necessidade de fazer um trabalho mais focalizado nos estudantes e professores de escolas paulistas, em especial das escolas públicas, que formam um universo muito vasto, mas frequentemente nem sequer cogitam participar de feiras científicas”, diz Roseli de Deus Lopes, professora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e uma das organizadoras da MOP.

Ex-diretora do museu Estação Ciência, Roseli é a coordenadora-geral da Feira Brasileira de Ciên-cias e Engenharia (Febrace), que está na 13ª edição, acontece todos os anos na USP e já reuniu, ao longo das 12 edições anteriores, projetos de estudantes de mais de 900 municípios brasileiros. “Ampliar a par-ticipação de alunos de escolas públicas e privadas nas feiras de ciências é fundamental”, diz Roseli. “Assim, eles percebem que é possível exercitar sua curiosidade científica, rompem com as limitações do ambiente e ampliam seus horizontes”, afirma.

Um contingente de 278 estudantes acompanha-dos por 103 professores apresentou seus projetos em estandes no Espaço Catavento e concorreu a prêmios nas categorias de Engenharia, Ciências Exatas e da Terra, Humanas, Sociais Aplicadas, Biológicas, da Saúde e Agrárias, além de bolsas de Iniciação Científica Júnior do Conselho Nacio-nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e vagas para a Febrace de 2013. A MOP foi promovida pela Escola Politécnica, por meio do Laboratório de Sistemas Integráveis, em par-ceria com os ministérios da Educação e da Ciên-cia, Tecnologia e Inovação, com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com CNPq e com as secretarias da Cultura e Educação do Estado de São Paulo.

bruno de Pierro e Fabrício marques

PolítIcA c&t EDUCAçãO y

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Estudantes apresentam projeto sobre monitoramento de áreas de risco, primeiro lugar na categoria Relevância Social

Embora troféus, medalhas e bolsas de estudo sejam um tempero importante da competição, um dos grandes benefícios de feiras desse tipo é a oportunidade de colocar num mesmo ambiente alunos de escolas diferentes. “É uma interação importante, pois os alunos vão à feira defender projetos que conceberam e lá vislumbram jovens da mesma idade, vindos de outros lugares e es-tratos, que conseguiram vencer desafios às vezes maiores do que o dele”, diz Roseli, que ressalta ainda a importância de as ideias de projeto par-tirem dos próprios alunos, não dos professores.

“Participar da mostra é uma forma de incenti-var a criatividade, conhecer pessoas da sua idade que se envolvem com a pesquisa e que têm o inte-resse de descobrir e compartilhar ideias”, afirma Nayrob Pereira, 16 anos, aluna do segundo ano do ensino médio da Escola Estadual Alberto Torres, na capital paulista, que obteve o primeiro lugar na categoria Ciências Agrárias, Biológicas e da Saúde, com pesquisa sobre a capacidade antimi-crobiana de peptídeos encontrados no veneno do escorpião da espécie Tityus serrulatus. O projeto de Nayrob teve motivações pessoais. Em 2011, durante uma atividade da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia no Instituto Butantan, em São Paulo, a estudante sofreu uma crise de pâni-

co ao deparar com aranhas e outros animais. “O professor mostrou os bichos e comecei a chorar de medo”, conta. O professor era Pedro Ismael da Silva Junior, pesquisador do Laboratório Es-pecial de Toxinologia Aplicada do Instituto Bu-tantan, que acompanhava o grupo de estudantes.

O susto constrangeu Nayrob e acendeu seu interesse pelo assunto. Selecionada pela escola para concorrer a uma bolsa de estudo do CNPq para o ensino médio, a garota voltou às temidas aranhas do Butantan, dessa vez para encará-las sem temor. “Foi uma surpresa para o Pedro me ver novamente”, disse Nayrob, ao explicar que decidiu realizar o projeto no laboratório do pes-quisador como uma forma de enfrentar o próprio medo. A opção foi logo pelo escorpião Tytius serrulatus e seu poderoso veneno. Junto com o orientador, a aluna observou que nos últimos anos muitos peptídeos antimicrobianos foram encontrados em venenos de escorpiões, sendo que alguns chegaram a apresentar propriedade antitumoral. Após procedimentos em laboratório, foram identificadas duas frações com atividade antimicrobiana. Para a estudante, a pesquisa está sendo decisiva na definição de seu futuro profis-sional e as afinidades com disciplinas das ciências humanas vão cedendo espaço para a biologia.

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“Nas feiras de ciência, você cria uma rede de pessoas que podem ajudá-lo”, explica Walter von Söhsten Xavier Lins, de 17 anos, aluno do segundo ano do ensino médio do Colégio Dante Alighieri, de São Paulo, agraciado, junto com sua colega Renata Colla Thosi, como segundo melhor trabalho na área vencida por Nayrob, com uma pesquisa sobre a utilização de uma planta para a aceleração da cicatrização em diabéticos. Wal-ter cultiva o gosto pela ciência desde cedo. Em 2010, quando cursava o nono ano do ensino fun-damental, foi convidado pela professora e orien-tadora do Programa de Pré-Iniciação Científica do colégio, Sandra Tonidandel, a realizar um projeto de pesquisa. À época, desejava estudar medicina e trabalhar com alguma doença de di-fícil tratamento. “Comecei a pesquisar e cheguei ao diabetes, doença que dificulta a cicatrização e que gera vários problemas de saúde pública”, diz ele. Além de haver poucos medicamentos específicos para a cicatrização de lesões cutâneas em diabéti-cos, a maioria é cara e não ser-ve para todo tipo de paciente. O objetivo do trabalho foi es-tudar a planta Bauhinia forfi-cata, conhecida popularmente como pata-de-vaca, largamente usada no Brasil como remédio natural antidiabético. “Estudos fitoquímicos identificaram um marcador químico, denomina-do kampferol, encontrado apenas nas folhas da planta”, explica Walter no projeto.

A proposta de Walter e Renata foi investi-gar a possibilidade de desenvolvimento de um tópico à base de extrato da planta

e avaliar a eficácia na cicatrização de ratos dia-béticos. A pesquisa contou com a colaboração de universidades paulistas. Na USP, a ajuda veio da professora Maria Luiza Salatino, do Instituto de Biociências, no processo de extração de compo-nentes da planta e produção do extrato metanó-lico. A professora Maria Valéria Robles, da Facul-dade de Ciências Farmacêuticas da USP, auxiliou os jovens na elaboração dos tópicos, cujos testes em animais serão realizados na Universidade Es-tadual de Campinas (Unicamp). Para Walter, o contato com a universidade foi necessário para completar o projeto do ponto de vista técnico. Agraciado pelo CNPq com a bolsa de Iniciação Científica Júnior, destinada a estudantes do en-sino médio, ele pretende levar a pesquisa adian-te e revela que o interesse inicial pela medicina voltou-se para outra área, a engenharia química.

Também aluno do Dante Alighieri, mas do nono ano do ensino fundamental, Vitor Martes Sternlicht ficou em segundo lugar na categoria

Ciências Exatas e da Terra, ao propor a fusão en-tre dois métodos de produção de energia limpa, o eólico e o solar. O projeto defende a construção de uma turbina eólica, em cujas pás são instaladas células fotovoltaicas de alta produtividade ener-gética, aumentando a eficiência do mecanismo. “O projeto ainda não tem parceria com a uni-versidade. É conceitual. Mas estou trabalhando na construção de um protótipo de dois metros, com pás de 50 centímetros de placa solar”, ex-plica Vitor, completando que a empreitada tem os custos cobertos por ele e pelo Dante.

Apesar da pouca idade, 14 anos, Vitor é um ve-lho conhecido das feiras de ciência. Na primeira edição da MOP, em 2011, recebeu o primeiro lugar em Ciências Exatas com um projeto de mapea-mento robótico com arduíno, plataforma de hard-ware utilizada na fabricação de computadores. O sistema, também exposto na Febrace de 2012, consiste num robô autônomo, equipado com um

Um dos grandes benefícios das feiras é colocar num mesmo ambiente alunos de colégios diferentes

Projetos vão de despoluição

de córregos (esq.) à mistura entre

música e matemática (dir.)

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software localizador, capaz de identificar vítimas em catástrofes, como desmoronamentos. Graças a esse projeto, Vitor foi convidado para participar de uma feira de jovens cientistas em Houston, nos Estados Unidos. “Só de discutir com alguém, du-rante a feira, você acaba recebendo uma sugestão sobre a qual não havia pensado antes”, avalia Vitor.

A influência que a pesquisa no ensino médio pode ter sobre as escolhas na graduação está pre-

sente no exemplo de muitos finalistas da MOP, como o projeto Prazer em conhecer ciência, segundo lugar em Ciências Hu-manas e Sociais Aplicadas. Para investi-gar o interesse de jovens pela iniciação científica, as alunas da Escola Técnica (Etec) Monte Mor, do Centro Paula Sou-za, Gabriela Nayane de Queiroz e Souza, Raquel Resende e Ingrid Bugdanovis Miranda verificaram que há um grande déficit no ensino de metodologia, devido principalmente ao estereótipo equivoca-do que considera ciência assunto apenas de pesquisadores conceituados.

“A iniciação científica no ensino médio permite ao aluno a passagem da postura passiva para a autoeducação contínua, tornando o ato de aprender prazeroso, simples e produtivo”, explica Gabriela, de 16 anos. Foi durante a Febrace de 2012 que as estudantes começaram a conceber o projeto, ao observarem o interesse de

outros alunos pela ciência e constatarem que os novatos, assim como elas, encontram na pesquisa a oportunidade de adquirir experiência para de-senvolver estudos na profissão pretendida.

F oram aplicados dois questionários em es-colas públicas de nível médio de Monte Mor, cidade localizada a 122 quilômetros

da capital paulista. O primeiro teve como ob-jetivo identificar dificuldades dos professores para lidar com a metodologia científica. Entre os problemas apontados, destacam-se a falta de interesse dos alunos, os poucos recursos técnicos e financeiros das escolas, a falta de tempo dos docentes e o fato de a disciplina de metodolo-gia não estar inserida no currículo pedagógico. O segundo questionário, direcionado aos estu-dantes, avaliou o nível de conhecimento sobre pesquisa científica e ciência, por meio do qual se verificou grande deficiência sobre o assunto. Gabriela conta que os estudantes entrevistados demonstraram pouca familiaridade com a inicia-ção científica, revelando dúvidas básicas sobre como dar os primeiros passos para a realização do projeto. Integrante do grupo de jovens cien-tistas que desponta no país, Gabriela afirma que será pesquisadora “para o resto da minha vida”. “Aprendi a amar ciência, independentemente da área”, declara a estudante, para quem a pesquisa é o principal caminho para adquirir senso crítico.

A estudante Flávia Araújo de Amorim, de 16 anos, que atualmente cursa o último ano do en-sino médio no Colégio Giordano Bruno, mostrou a colegas com dificuldade para iniciar um proje-to que muitas vezes a inspiração pode brotar de experiências do próprio cotidiano. Flávia juntou a afinidade com a pesquisa que esboça desde o ensino fundamental com o interesse em ajudar pessoas como a avó paterna, que cuida da própria mãe, já bastante idosa, vítima do mal de Alzhei-mer. A garota então pensou por que não desenvol-ver um projeto que traga novas reflexões sobre a qualidade de vida do cuidador. Flávia aproveitou a bolsa que recebera do CNPq para mapear os componentes de habilidades sociais necessários a cuidadores de pacientes com Alzheimer, que se caracteriza pela deterioração da atividade cogni-tiva e alterações comportamentais, demandando cuidados especiais.

A estudante constatou que na maioria dos ca-sos a função de cuidador é desempenhada por apenas um familiar, tornando-se vulnerável a problemas de saúde e conflitos familiares. “O bem-estar do cuidador e do paciente é correla-cionado e assim é notável a necessidade de in-tervenções para a capacitação do cuidador, para que ele possa lidar de forma mais positiva com as situações do cuidado”, explica o projeto. As habilidades sociais, portanto, são vistas como mecanismos importantes aos cuidadores na área da saúde. Flávia pretende continuar a pesquisa e graduar-se em psicologia – outro exemplo de profissão escolhida decorrente de experiências com a pesquisa precoce. n

Da esquerda para a direita: Osvaldo guimarães, diretor educativo do Espaço Catavento; a aluna nayrob Pereira, o professor Marcelo zuffo; Katie Riciluca, coorientadora de nayrob; e a professora Roseli Lopes

"A iniciação científica permite a passagem da postura passiva para a autoeducação", diz gabriela Queiroz

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Conferências levarão

conhecimento sobre

biodiversidade

a alunos e professores

do ensino médio

DiFUSãO y

o biota vai à escola

a educação será o principal foco, no ano de 2013, do Biota-FA-PESP, programa de pesquisa so-bre a biodiversidade do estado

de São Paulo iniciado em 1999. Um encon-tro que reuniu as lideranças do programa na sede da FAPESP, no final de novembro passado, anunciou um conjunto de ações de pesquisa e de difusão do conhecimento a serem executadas ao longo deste ano, entre as quais um ciclo de conferências gratuitas voltadas a professores e estudan-tes do ensino médio. Estão programados ainda o relançamento de uma exposição sobre biomas brasileiros e a produção de material didático e de apoio sobre a bio-diversidade. “Desde que foi renovado o apoio da FAPESP ao programa, em 2009, a questão da educação se tornou prioridade em nosso plano estratégico”, disse Carlos Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Biota-FAPESP.

O Biota-FAPESP (Programa de Pes-quisas em Caracterização, Conserva-ção, Recuperação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo) envolve cerca de 1.200 profissionais de

várias áreas, todos dedicados ao estudo da taxonomia, fisiologia de paisagens, mapeamento de biomas, conhecimento químico-biológico e uso sustentável da biodiversidade paulista. Em sua primeira década de existência, obteve R$ 82 mi-lhões em investimentos da FAPESP, pro-moveu mais de uma centena de projetos de pesquisa e gerou avanços no conheci-mento, como a identificação de 1.766 es-pécies (1.109 microrganismos, 564 inver-tebrados e 93 vertebrados), 640 produtos naturais registrados numa base de dados, além da publicação de mais de 1.145 arti-gos científicos, 20 livros, 2 atlas e diversos mapas que passaram a orientar políticas públicas. Também formou 190 mestres, 120 doutores e 86 pós-doutores. Atual-mente o estado de São Paulo possui seis decretos governamentais e 13 resoluções que citam as orientações do programa. As 10 patentes depositadas por pesqui-sadores do BIOprospecTA, a rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios, mostram que o programa também buscou a parce-ria com o setor produtivo.

Ficou faltando, contudo, um trabalho mais intenso na difusão do conhecimento

gerado para os cidadãos e especialmente para os jovens estudantes, que agora será alvo do programa. “A precariedade do en-sino de ciências no Brasil é preocupante e o Biota-FAPESP, sendo um programa de pesquisa consolidado, tem uma vocação natural para ajudar na formação dos nos-sos estudantes de ensino médio”, disse a professora Vanderlan Bolzani, do Institu-to de Química da Unesp em Araraquara e membro da coordenação do Biota-FA-PESP. “Como cientistas, temos uma gran-de responsabilidade com a sociedade e o país e acredito que é nossa missão criar ações que motivem as crianças e os ado-lescentes a ver o conhecimento científico não como uma obrigação curricular, mas como instrumento fascinante de descober-ta do mundo em que vivem”, afirmou. A experiência de Vanderlan com a série de conferências sobre o Ano Internacional da Química, em 2011, em parceria com Pesquisa FAPESP, serviu de estímulo à ideia (ver Especial Ano Internacional da Química – fevereiro de 2012).

Serão nove as conferências gratuitas voltadas a professores e estudantes pro-gramadas para 2013. Elas vão apresentar conceitos e valores relativos à área de bio-diversidade com o objetivo de apresentar o estado da arte sobre biodiversidade em linguagem compreensível a um público heterogêneo. As palestras serão gravadas e o conteúdo ficará disponível no portal do Biota e no portal da FAPESP. Outra ideia é adaptar uma exposição sobre os biomas do Brasil, que fez parte da Conferência Rio+20. A mostra deverá percorrer a ca-pital paulista e cidades do interior.

EdItAIS PArA PESQUISASNo encontro que anunciou as estratégias do Biota-FAPESP para 2013, uma propos-ta de edital para a chamada de pesquisas sobre educação e biodiversidade foi apre-sentada pela professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Pau-lo (USP) Martha Marandino e por Érica Speglich, professora da Unesp Rio Claro. A chamada deverá ser anunciada neste início de ano. O objetivo é estimular o de-senvolvimento de projetos em educação e comunicação que dialoguem com a base de dados do Biota-FAPESP.

Outras duas chamadas de propostas devem ser anunciadas, segundo infor-mou Joly. Uma delas será em parceria com a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e deve traba-

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PESQUISA FAPESP 203 z 37

Exposição Biomas do Brasil, apresentada na Conferência Rio+20, em junho de 2012: a ideia é levar a mostra sobre biodiversidade a vários municípios

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lhar com cenários de conservação da biodiversidade em áreas prioritárias para as próximas décadas. “Foi uma demanda da secretaria para planejar o desenvolvimento do estado levando em conta os impactos da expansão das cidades, da rede de infraestruturas – es-pecialmente estradas, dutos e linhas de transmissão – e do agrobusiness sobre áreas consideradas prioritárias para conservação”, disse Joly. A outra cha-mada ocorrerá em parceria com um projeto financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês) para restaurar a biodiversi-dade e os estoques de carbono na ba-cia do rio Paraíba do Sul. “Idealmente, gostaríamos de reconectar a serra do Mar com a serra da Mantiqueira, res-tabelecendo importantes corredores biológicos. Isto será feito de forma a também aumentar a estabilidade de encostas, reduzindo o risco de desliza-mentos, e proteger nascentes e cursos d’água, aumentando a disponibilidade e melhorando a qualidade dos recursos hídricos”, afirmou Joly. n

Fabrício marques, com Agência FAPESP

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38 z janeiro De 2013

Equipe que trabalhou na primeira missão do Alpha-Crucis, começando da esquerda: Osmar Moller (Furg), Carlos França (iO-USP), Francisco vicentini (iO), Chris Meinen (noaa), Silvia garzoli (noaa), Alberto Piola (SHn/UBA, Argentina), Ulises Rivero (noaa), Filipe Silva (iO), Edmo Campos (iO), Luis nonnato (iO), glaucia Berbel (iO), Priscila Farias (inpe), Alvaro Cubiella (UBA, Argentina), Cristina Schultz (inpe), Alyne Affonso (iO), Sarah Sarubo (iO) e Pablo Oliveira (inpe)

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PESQUISA FAPESP 203 z 39

Alpha-Crucis reúne pesquisadores de três países para coletar

informações sobre a variação de calor no Atlântico Sul

viagem pioneira

PESQUiSA OCEAnOgRáFiCA y

carlos Fioravanti, de Santos

Quando quiser, podemos ir”, disse Edmo Campos, pesqui-sador do Instituto Oceanográ-fico da Universidade de São

Paulo (USP), ao capitão José Helvécio Moraes de Rezende, às 14h10 de sábado, 1º de dezembro, na cabine de comando do navio de pesquisa oceanográfica Alpha--Crucis , atracado no porto de Santos. Enquanto Rezende, com um uniforme azul-marinho e seu nome estampado na gola, fazia as últimas checagens nos mapas e nos equipamentos, Campos, de boné e bermudas, a chave do camarote e um pen drive presos ao peito por uma fita azul, teve tempo para examinar a torre com equipamentos que Cristina Schultz e Pablo Oliveira (ela na terceira expedição marítima de 2012, ele na pri-meira vez a bordo de um navio) haviam instalado na ponta da proa para medir o fluxo de dióxido de carbono e a umidade, em um dos experimentos a serem feitos ao longo das duas semanas de viagem.

O Alpha-Crucis , comprado recente-mente para uso das universidades pau-listas com financiamento da FAPESP, partiu às três da tarde para seu primeiro cruzeiro internacional, rumo sudoes-te, com retorno previsto para 17 de de-zembro (ver mapa). A bordo estavam 20 pesquisadores (oito do Brasil, além

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de seis estudantes de graduação ou de pós, três da Argentina e três dos Estados Unidos), liderados por Campos, e 19 tri-pulantes. A viagem integra um projeto temático coordenado por Campos e um programa internacional chamado Samoc (South Atlantic Meridional Overturning Circulation), cujo propósito principal é desenvolver e implantar um sistema de monitoramento das variações do trans-porte meridional de massa e calor – e do clima em geral – no Atlântico Sul.

“Queremos entender os processos atuais e monitorar o que vai acontecer nas próximas décadas no Atlântico Sul”, disse Campos. “Qualquer variação na quantidade de calor no oceano, ainda que ínfima, tem uma grande influên-cia sobre o clima do planeta.” Segundo ele, as correntes marinhas do Atlântico Sul transportam calor para o hemisfé-rio Norte com uma potência da ordem de 1,5 petawatt, ou seja, 1,5 × 1015 joules por segundo. Isso é equivalente à ener-gia de 100 mil Itaipu, que, com suas 20 unidades geradoras, tem 14 gigawatts de potência instalada (1 petawatt = 1 × 1015 watts; 1 gigawatt = 109 watts).

“O Atlântico Sul é o único oceano que transporta calor em direção ao equador. Isso resulta em um transporte líquido de calor para o Atlântico Norte. Essa trans-

ferência de calor para o Atlântico Nor-te constitui-se em um dos mecanismos reguladores do clima global”, comentou a pesquisadora argentina Silvia Garzoli, ex-diretora da divisão de oceanografia física e atualmente cientista-chefe do laboratório oceânico e meteorológico do Atlântico (AOML) da agência de pes-quisas oceânicas e atmosféricas (Noaa), dos Estados Unidos. Vivendo nos Esta-dos Unidos desde 1980, primeiramente na Universidade de Colúmbia em Nova York e desde 1996 no Noaa-AOML, Sil-via Garzoli é uma das principais articu-ladoras das pesquisas sobre as correntes marinhas no Atlântico Sul.

“Finalmente vamos medir a variabilida-de da corrente, em um projeto financiado por três países (Brasil, Argentina e Estados Unidos) e um navio adequado”, ela come-morou. Na posição de pesquisadora mais experiente do grupo, Silvia Garzoli obser-vou que esta é também a primeira viagem do Alpha-Crucis para coleta de amostras de água e de medições de temperatura em águas profundas, com até seis quilômetros abaixo da superfície.

O Samoc inclui grupos de pesquisa da França, Brasil, Estados Unidos, África do Sul, Argentina, Rússia e Alemanha. De acordo com o planejamento, o Brasil vai fornecer uma parte dos instrumentos

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Além da preparação dos instrumentos e das sessões de treinamento das equipes, uma das tarefas previstas para os primei-ros quatro dias de viagem era fazer lança-mentos simultâneos de batitermógrafos descartáveis (XBTs) e de balões com ra-diossondas para obter informações sobre a variação de temperatura da atmosfera e dos primeiros 700 metros da coluna de água, enquanto o navio seguia para o ponto mais distante, a cerca de 1.400 quilômetros da costa. As amostragens com XBTs e radiosssondas continuaram após o início do trabalho nas estações.

Depois de alcançarem o ponto mais a leste, com a proa direcionada para a costa, os pesquisadores começaram a trabalhar com o chamado sistema de perfilagem CTD (conductivity-temperature-depth) Seabird 911-Plus, que registra condutivi-dade, temperatura e profundidade do mar (a condutividade é utilizada para o cálculo da salinidade). O CTD estava montado em uma rosete ou carrossel com 24 garrafas de Niskin de 5 litros, que coletam amostras de água para análises químicas e biológi-cas, em regiões com até 6 mil metros de profundidade. De acordo com os relatos que Campos enviou durante a viagem, o primeiro lançamento do CTD-Rosete foi feito no dia 5 de dezembro e os pesquisa-dores trabalharam durante quatro horas e meia nessa operação, colhendo amostras a até 10 metros do fundo; nesse ponto, a profundidade era de 4.750 metros.

de observação, participar das viagens de instalação, manutenção e recuperação dos equipamentos e, ao lado da França, desenvolver uma estratégia comum de modelos climáticos regionais, capazes de avaliar a influência da circulação do oceano no clima e seus impactos na Amé-rica do Sul e África.

Grupos do Brasil, da Argentina e dos Estados Unidos vão trabalhar nas regiões próximas à América do Sul e os da Fran-ça, da Alemanha e da África do Sul, nas proximidades do sul da África. “Sem tirar o mérito das iniciativas anteriores, este é um dos poucos projetos brasileiros com uma real inserção internacional, que vai tratar de fenômenos no Atlântico Sul que não são apenas locais, mas de alcance e interesse global”, disse Campos.

chUrrAScoNa tarde do dia 4, na véspera da chegada ao ponto onde seria realizada a primei-ra estação – ou ponto de coleta de infor-mações –, dois pesquisadores com dotes culinários, Osmar Moller, da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), e Alberto Piola, da Universidade de Buenos Aires, Argentina, fizeram um churrasco no con-vés superior, com o navio em movimento e sob um tempo bom, preparando todos para o trabalho árduo à frente. Depois de chegar à primeira estação, os pesquisa-dores trabalharam em turnos de 12 horas seguidas por outras 12 de descanso.

raio x do Atlântico SulEquipamentos registram condutividade, pressão, temperatura e variações nas correntes

cArroSSElCom sensor CTD para perfilagem contínua e garrafas para coleta de amostras de água

EcoSSondASArmazenam informação por até cinco anos antes de serem resgatadas

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Pies (pressure inverted echo-sounders – Ecossondas invertidas com sensor de pressão)

c-Pies (current-pressure inverted echo-sounders – Pies com correntômetro Doppler)

ctd (conductivity, temperature and depth – Sensor para condutividade, temperatura e pressão) + xbt (expendable bathi- -termograph – Bati-termógrafo descartável)

bPr (bottom pressure gauge – Sensor de pressão de fundo)

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Nessa estação foi também recuperada e relançada ao mar a primeira das qua-tro ecossondas invertidas com sensor de pressão (ou Pies, pressure inverted echo--sounders) que haviam sido fundeadas pela Noaa em 2009. Segundo Campos, as ecossondas têm autonomia para fi-car no fundo do mar por até cinco anos, amostrando e registrando internamen-te informações com frequência horária. “As informações podem ser recuperadas, downloaded, o melhor seria dizer uploa-ded, por meio de telemetria acústica”, ele explicou. “Neste cruzeiro, além das quatro Pies da Noaa, foram fundeados também três novos sensores adquiridos com o apoio da FAPESP.”

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PESQUISA FAPESP 203 z 41

tEmPEStAdEEsses novos sensores são equipados com um correntômetro, e por essa razão chama-dos C-Pies. Os pesquisadores pretendem realizar um cruzeiro por ano, para recupe-rar as informação armazenadas nesse tem-po. Ao final de quatro anos, as Pies/C-Pies são recuperadas e substituídas por outras.

“A operação consistiu em recuperar o equipamento e lançar outro, com baterias suficientes para um novo período de até cinco anos”, disse Campos. A tarefa to-mou cinco horas e meia e, nesse tempo, “o navio deve ficar completamente à de-riva, com as máquinas paradas para evi-tar que ruídos dos motores interfiram na comunicação acústica com a ecossonda”.

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Equipes do brasil, Argentina e EUA trabalham no mar próximo à América do Sul e as da França, Alemanha e áfrica do Sul, perto do sul da áfrica

Pesquisadores preparam o carrossel com as garrafas (na página à esquerda) e o lançam (ao lado) para colher amostras de água

Na tarde de sábado, dia 8, o tempo mu-dou, anunciando uma forte tempestade. “Por volta das 15 horas já tínhamos condi-ções de mar com ondas de amplitude até três metros, o que impediu a realização da estação de CTD prevista para o ponto 46.75W, 34.5S”, relatou Campos. “Com as condições de mar adversas, decidiu-se navegar até a próxima estação, onde com um pouco de dificuldade, na madrugada do dia 9, foi realizado o lançamento da segunda C-Pies [current-pressure inverted echo-sounders – Pies com correntômetro Doppler]. Como, novamente, não foi pos-sível o lançamento do CTD, a opção foi continuar lançando XBTs e balões me-teorológicos. Nesta estação, aliás, o vento já estava tão forte que três tentativas de lançamento de radiossondas falharam.”

No final da tarde, com ondas de cinco metros e rajadas fortes de vento, Campos e o capitão Rezende decidiram alterar a rota do cruzeiro, dirigindo-se para o que seria a última estação, próxima ao farol do Albardão, na costa do Rio Grande do Sul. “A decisão de navegar para oeste foi acertada, já que a tempestade se movia de oeste para leste. Após uma noite das mais severas, no final da tarde do dia 9 al-cançamos a estação ao largo do Albardão. Nessa região o mar estava bem mais cal-mo e foi dado início imediatamente à se-quência de estações costeiras, navegando em sentido oposto (de oeste para leste). Por volta das 9 horas do dia 11 chegamos ao local de fundeio da terceira e última C-Pies, em 50.31W, 30.5S. Lançamento realizado com o maior sucesso, apesar das condições de mar serem ainda um tanto adversas.” O Alpha-Crucis con-tinuou navegando para leste e algumas das atividades que haviam sido cance-ladas por causa da tempestade foram completadas. No final do dia 12 o navio iniciou a volta ao porto de Santos, onde chegou na manhã do dia 16. n

ver o Diário de bordo e mais fotos da viagem no site da revista, www.revistapesquisa.fapesp.br.

Em uma coluna de água

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Projetos

1. Impacto do Atlântico Sul na célula de circulação meridional e no clima – n° 11/50552-4; 2. (PFPMCG/Pronex FAPESP) Impact of the Southwestern Atlantic Ocean on South American climate for the 20th and 21st centuries – n° 2008/58101-9. Modalidades: 1 e 2. Projeto Temático. Coordenadores: 1. Edmo José Dias Campos – IO/USP; 2. Tercio Ambrizzi- IAG/USP. Investimento: 1. R$ 1.406.307,62 (FAPESP); 2. R$ 3.061.048,47 (FAPESP).

Perfis verticais de temperatura (°C), salinidade (unidades práticas de salinidade), pressão (decibares) e teor de oxigênio (ml/l) na estação mais profunda (34,5S; 44,5W)

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42 z janeiro De 2013

Um número crescente de universidades e instituições

cria escritórios de apoio ao pesquisador

Protegendo a ciência da burocracia

ganhou velocidade em 2012 uma iniciativa da FAPESP que estimula universidades e ins-tituições de pesquisa a reduzir o tempo gasto pelos pesquisa-

dores na administração burocrática de pro-jetos, liberando-os para fazer seu trabalho primordial, que é produzir conhecimento. Trata-se de um programa que oferece trei-namento a funcionários de universidades do estado de São Paulo responsáveis por cuidar das prestações de contas e de outras necessidades de projetos de pesquisa, deso-brigando os pesquisadores desse encargo. Ao longo do ano passado, 38 turmas com seis servidores cada uma passaram tempo-radas de quatro dias na sede da FAPESP, na capital paulista, para conhecer em profun-didade as modalidades de financiamento oferecidas pela Fundação e as exigências relacionadas a prestações de contas.

“É uma experiência gratificante, pois ao longo do treinamento os técnicos vão compreendendo o sentido das exigências nas prestações de contas e percebem co-mo podem ajudar os pesquisadores”, diz Marcia Regina Napoli, responsável pela Gerência de Apoio, Informação e Comu-nicação (GAIC) da Diretoria Administra-tiva da FAPESP, que coordena o programa desde 2010. “Os exemplos que mais avan-çaram são aqueles em que os diretores de

unidades se comprometeram com a ideia de manter um corpo de técnicos realmen-te dedicado a apoiar os pesquisadores”, afirma. Das cerca de 60 turmas que já re-ceberam treinamento na FAPESP desde outubro de 2010, pelo menos 80% insti-tuíram alguma modalidade de serviço de apoio ao pesquisador na sua instituição. A constatação foi feita pela própria equipe da GAIC, que vem visitando todas as uni-dades com funcionários treinados na FA-PESP. “Cada instituição organiza o apoio de acordo com suas necessidades. Mas o retorno tem sido muito positivo”, diz Ri-cardo Vieira Simplício, da GAIC.

A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo é um exemplo de serviço bem es-truturado que recebeu treinamento da FAPESP. Desde a criação da Secretaria de Apoio à Pesquisa (SAP), hoje com cin-co funcionários, a instituição conseguiu ampliar a quantidade de projetos sub-metidos à FAPESP e aprovados. “Temos grande tradição em ensino e em assis-tência à população, com mais de 8 mil pacientes atendidos por dia. Queremos que nossos clínicos desenvolvam tam-bém uma tradição em pesquisa”, afirma a professora Lia Mara Rossi, coordena-dora da SAP. “Começamos nosso traba-lho visitando todos os departamentos para mostrar que o serviço existe e para

FOMEnTO y

oferecê-lo. Sempre dizemos para os pes-quisadores: fiquem tranquilos, porque a parte chata é toda por nossa conta”, diz Lia. O escritório atua em várias frentes. Dá orientação sobre documentos e trâ-mites para pesquisadores interessados em apresentar projetos, alerta-os sobre o lançamento de editais e chamadas, faz a ponte entre estudantes interessados em bolsas de iniciação científica e de mes-trado com líderes de grupos de pesquisa. Com base na experiência dos projetos aceitos, os funcionários do escritório sugerem ações preventivas. “Se vamos pedir uma bolsa para um aluno que pre-cisa melhorar seu desempenho, já sugiro ao pesquisador tomar ciência das limita-ções do histórico escolar, mas salientar por que acredita no potencial do aluno. Assim, evita-se que o projeto volte com um questionamento a esse respeito. Se o pesquisador está sem publicar há algum tempo, também deve se antecipar e dar explicações sobre isso”, afirma Lia. O serviço providencia, ainda, o perfil dos pesquisadores no ResearcherID e no Google Citations, que fornecem dados sobre a produção científica individual – exigência feita por agências de fomento. “Consideramos nosso trabalho bem-feito quando o projeto é aceito pelo sistema da FAPESP e seu mérito começa a ser

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de contas de pesquisadores do instituto desde meados dos anos 1980 –, foi con-vidada a disseminar a ideia em outras faculdades da instituição e participar de uma iniciativa de treinamento criada pe-la Unesp em 2010. Marli ingressou na Unesp em 1986 como funcionária do setor de comunicações e dois anos mais tarde começou a cuidar da prestação de con-tas de professores com vários projetos de pesquisa, como José Arana Varela, atual diretor-presidente do Conselho Técnico--Administrativo da FAPESP, e Vanderlan Bolzani, membro da coordenação do pro-grama Biota-FAPESP. “Trabalhei prati-

camente sozinha durante muito tempo e era dureza quando eu tirava férias, mas fiquei muito satisfeita ao ver como esse trabalho começou a ser valorizado nos últimos tempos”, afirma.

Grandes universidades de pesquisa dispõem de serviços bem estruturados – os chamados Grant Management Of-fices – para ajudar os pesquisadores na administração de seus projetos, missão que é vista como um elo fundamental para garantir o fluxo de financiamen-to externo à pesquisa. Na Universidade Harvard, por exemplo, o gerenciamento dos projetos é coordenado pelo Escritó-rio para Programas Patrocinados (OSP, na sigla em inglês; site osp.fad.harvard.edu). Com 60 técnicos que trabalham em conjunto com as unidades da universida-de, o OSP atua em todos os momentos do ciclo de vida de um projeto, da busca de financiamento à sua preparação, da ad-ministração burocrática à prestação de contas. Desde 2007, mantém um progra-ma de treinamento para técnicos de toda a universidade, com cursos presenciais e on-line. Um guia de boas práticas está sendo desenvolvido para ajudar todo o staff da universidade a administrar re-cursos para pesquisa. A ideia, observou Ashley Rodger, coordenadora de ope-rações e treinamento do OSP, é agilizar processos e fornecer respostas para ques-

os escritórios são vistos com reserva por pesquisadores mais antigos, mas aos poucos a resistência é quebrada

avaliado”, diz Lia. Cerca da metade dos projetos é aprovada, mas o escritório in-variavelmente pede reconsideração dos projetos denegados e consegue que mui-tos deles sejam reavaliados. Desde 2008, o serviço já ajudou a administrar 226 projetos de pesquisa, acompanhando diretamente 160 deles. Desses, 89% são da FAPESP, 7% do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-nológico (CNPq) e 4% da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A toma-da de preços, a emissão de cheques e o arquivamento de notas fiscais de cada projeto são feitos pela equipe, que ar-mazena todas as in-formações em meio eletrônico. Com isso, na hora de prestar contas, está tudo or-ganizado. O pesqui-sador é alertado com antecedência sobre aquelas tarefas que não pode delegar, como escrever rela-tórios científicos. Também há um ser-viço que provê tradução para o inglês de artigos científicos e de submissão desses manuscritos a periódicos. “Nada mais natural que o conhecimento gerado se transforme num artigo científico”, afir-ma a professora Lia.

AlívIo E EntUSIASmoExiste uma experiência comum à maioria dos escritórios de apoio ao pesquisador: a princípio, eles são vistos com reservas por alguns pesquisadores, principalmente os mais antigos. Mas aos poucos, quando veem os bons resultados em projetos dos colegas, aderem com alívio e entusiasmo. “Alguns permitem que atuemos apenas em algumas tarefas. Sabemos que ganha-mos a confiança quando deixam o talão de cheques conosco”, diz Marli Mendonça da Silva, supervisora do Escritório Regio-nal de Apoio à Pesquisa e à Internaciona-lização (Erapi) do Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O Erapi (www.iq.unesp.br/#!/pesquisa/escritorio-de-pesquisa/) foi um dos primeiros a receber treina-mento na FAPESP e funciona hoje numa sala de 50 metros quadrados, com quatro funcionários. Atualmente administra uma centena de projetos.

Como Marli era experiente nesse as-sunto – começou a cuidar das prestações

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tões universais, permitindo que todos os funcionários possam ajudar na solução de problemas frequentes.

No Brasil, a complexidade da admi-nistração de projetos de pesquisa, que frequentemente envolvem equipes de várias instituições e disciplinas e traba-lham com cifras vultosas, fez com que várias universidades decidissem ampliar seus serviços. A Unicamp foi pioneira ao criar em 2003 a UAP, sigla para Uni-dade de Apoio ao Pesquisador (www.prp.rei.unicamp.br/uap). Hoje há cinco funcionários trabalhando localmente e outros dois em unidades com demanda alta por esse serviço e que, por terem captado recursos por projetos temáti-cos da FAPESP, se credenciaram a con-tar com um funcionário para a gestão desses projetos. A Universidade de São Paulo (USP) dispunha de serviços em várias unidades, mas nos últimos dois anos a Pró-Reitoria de Pesquisa decidiu disseminar as experiências por toda a instituição e requisitou treinamento es-pecializado à FAPESP. Da mesma forma, a Unesp, a partir de 2009, decidiu criar escritórios desse tipo em todas as suas unidades. Para a FAPESP, a existência de apoio institucional ao pesquisador vai se tornando um critério importante na avaliação de projetos de pesquisa.

A existência desse tipo de serviço foi uma das condições exigidas por ela das instituições sede dos novos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), que poderão receber até R$ 4 milhões por ano da Fundação. Um canal direto por e-mail com a FAPESP foi estabe-lecido com todas as equipes treinadas. “É uma forma de estimulá-los a manter um diálogo permanente com a FAPESP para que tirem rapidamente dúvidas ou peçam novas orientações”, diz Marcia Regina Napoli, da GAIC.

A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP criou em 2010 uma estrutura para apoiar os pesquisadores,

o Centro de Gerenciamento de Projetos (CGP), e enviou servidores para treina-mento já na primeira turma do programa da FAPESP. Após o treinamento, a equi-pe visitou todos os 14 departamentos da FMRP para divulgar o serviço. “No es-tudo de viabilidade, percebeu-se a gran-de representatividade dos recursos de agências de fomento ante o orçamento da unidade”, diz Benedito Maciel, o diretor da FMRP. No rol dos serviços prestados incluem-se a realização de compras, a verificação da documentação e a presta-ção de contas. Os pesquisadores são avi-sados quando surgem editais que possam interessá-los. Em 2012, a FMRP subme-teu 22 projetos ao edital do Programa de Pesquisa para o Sistema Único de Saúde (PPSUS). No edital de 2010, apenas seis projetos foram apresentados.

A resistência inicial de alguns pesqui-sadores começou a ser vencida graças à adoção do Sistema de Informação Ge-rencial Extraorçamentário, o Sigeo, que permite ao pesquisador acompanhar pela internet a administração dos recursos de seu projeto. O Sigeo controla o saldo dos recursos, arquiva cheques e notas fiscais, alerta os pesquisadores sobre prazos e a necessidade de apresentar relatórios e ainda informa quanto foi economizado, uma vez que, depois de pedir cotações

para fornecedores, o centro ainda tenta ne-gociar descontos. Dos 100 professores da FMRP, apenas 43 são atendidos pelo cen-tro. “Priorizamos os projetos novos, por-que quando tentamos ajudar na administra-ção de projetos anti-

gos descobrimos que teríamos de gastar muito tempo para corrigir problemas”, diz o professor Maciel. A intenção ago-ra é dobrar de dois para quatro o núme-ro de funcionários, porque a demanda deve aumentar. Esses funcionários tra-balham articulados com outros serviços da faculdade. Uma pesquisa com profes-sores mostrou que 79% tinham projetos financiados por agências, mas só 28% ob-tiveram a ajuda do CGP. Segundo a mes-ma pesquisa, 92% disseram ter interesse em usar os serviços do CGP. A FAPESP é responsável por 78% dos recursos ar-recadados em projetos administrados pelo centro. n Fabrício marques

na Faculdade de medicina de ribeirão Preto os professores monitoram pela web a gestão de recursos de seus projetos

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nova microssonda eletrônica começa a

funcionar na USP para analisar elementos

químicos presentes em minerais

a mais nova versão de um equipamento que ficou famoso entre os geólogos quando os astronautas da missão Apollo trouxeram rochas da Lua entre 1969 e 1972 está funcionando num prédio especialmente

construído para ele no Instituto de Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP). A microssonda eletrônica é um instrumento de pesquisa capaz de identificar e quan-tificar de forma rápida os elementos químicos presentes em um mineral, o que se tornou importante logo após as missões lunares, quando a agência espacial norte-americana (Nasa) cedeu amostras para instituições de vários países. Saber se um mineral de rocha tem cálcio, ferro ou algum tipo de terra--rara é importante tanto para conhecer melhor a natureza geológica de determinado lugar como para saber a existência de material de valor para a mineração ou outros fins indus-triais. Também pode ser utilizado em metalurgia na análise de constituintes de ligas metálicas ou, ainda, para descobrir os meandros químicos da formação de dentes.

O equipamento, comprado de um dos dois fabricantes mun-diais, a japonesa Jeol – o outro é a francesa Cameca –, custou US$ 1,6 milhão e foi integralmente financiado pela FAPESP. Ele vem substituir com mais recursos uma microssonda com-prada em 1992, dentro de um programa de financiamento da USP e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com complementações da FAPESP. Esse, por sua vez, substi-tuiu um modelo norte-americano de 1971, o primeiro instala-do no país, inteiramente comprado com recursos do BID. Ele tinha um processo de obtenção de dados complicado e ma-

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Page 47: Pesquisa FAPESP 203

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imagens obtidas na microssonda com a técnica de dispersão de comprimento de onda e raios X. Acima, a presença de alumínio na amostra de mineral silicático, em azul, e abaixo cálcio, em verde

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como a CPRM e principalmente a Vale, que demanda uma diversidade grande de produtos minerais”, conta Gomes. “Também fazemos estudos para Petro-bras.” Os valores desses serviços servem para a manutenção do laboratório. Mas a maior procura pela microssonda, ao longo desses anos, segundo o professor Celso Gomes, é de alunos principalmente de mestrado e doutorado tanto da USP como da Universidade Estadual Paulis-ta (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e federais do Pa-raná (UFPR), Pernambuco (UFPE) e da Bahia (UFBA), que agendam horários para uso do equipamento. “Também re-cebemos pesquisadores de vários países da América Latina e de Moçambique e de Angola, na África”, diz Gomes. “Com o novo equipamento gostaria de estreitar os estudos com a área de odontologia pa-ra analisar a distribuição dos elementos químicos nos dentes, estudar como a na-tureza se comporta na dentição”, afirma.

“É ótimo ter uma nova microssonda”, diz o professor Marcos Aurélio Farias de Oliveira, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Esta-dual Paulista (Unesp), da cidade de Rio Claro. “Ela tem mais recursos e traz a possibilidade de realização de experi-mentos em menos tempo. A antecesso-ra já era muito boa, mas precisava parar

nual, além de registrar informações em cartões perfurados no computador aco-plado à máquina que ainda está no IGc. A mais antiga tinha três espectrômetros de raios X, enquanto a mais recente pos-sui cinco desses aparelhos acoplados à microssonda. Esse tipo de espectrôme-tro faz a análise dos elementos quími-cos presentes no mineral por meio da leitura do comprimento de onda gera-do pelo canhão de feixes de elétrons no momento em que ele atinge a amostra. O resultado é uma radiação em raios X, com o comprimento de onda específico irradiado pela matéria analisada que é captada por um cristal dentro da mi-crossonda. Ele faz o reconhecimento do comprimento de onda do elemento químico e sua intensidade de um ponto específico do material.

“No primeiro, a operação era muito di-fícil e exigia uma preparação e análise da amostra mais complicado e demorado; o segundo já possuía cinco espectrômetros e o mais recente nos traz maior automa-ção do processo de análise, com melhor resolução da interface gráfica e aumen-to do brilho das imagens. Será possível obter fotos de melhor qualidade, por exemplo, como minerais que possuem manganês e cádmio, capazes de emitir luz quando recebem a incidência de elé-trons sobre eles. Outra coisa importante é a maior sofisticação das condições de vácuo por onde o feixe de elétrons corre, sem serem absorvidos pelas moléculas de ar, até chegar a amostra”, diz Celso de Barros Gomes, professor emérito do IGc, que implantou e dirigiu o Laboratório de Microssonda Eletrônica do instituto, além de ser responsável pela compra dos três equipamentos, em 1971, 1992 e 2012. “É um ciclo histórico”, diz ele.

colchão dE ArEIAPara receber a nova microssonda, foi pre-ciso construir um novo laboratório de 90 metros quadrados no andar térreo do IGc. Mais sensível, o novo equipamento necessitou de um local onde não receba interferências do campo magnético de outros equipamentos do instituto. A mi-crossonda possui 1,80 metro de altura e está conjugada a uma mesa com equipa-mentos e três telas para verificação dos resultados. O equipamento está assentado em uma espécie de colchão, formado por um buraco com um metro de profundi-dade e preenchido por areia que tem a

função de absorver as vibrações resul-tantes do tráfego de veículos no entorno do prédio. A microssonda também está envolta por uma gaiola de Faraday, uma espécie de armação metálica, que faz uma blindagem eletrostática do equipamento.

Inaugurado em 14 de dezembro, o no-vo laboratório já está pronto para rece-ber, de forma mais eficiente, parceiros e consultas que as antigas microssondas estavam acostumadas a receber. “Pres-tamos serviços a empresas de mineração

A microssonda é utilizada por alunos de mestrado e doutorado, mas também serve a estudos de empresas como vale e Petrobras

Ao lado, grão de britolita, um mineral que tem concentração de fosfato de cálcio. As imagens coloridas feitas com raios X quantificam a maior presença de determinados elementos químicos. Em preto e branco, a variação de tonalidade mostra a presença de cálcio nas áreas mais escuras

Silício

composição de elementosimagens da microssonda mostram o zoneamento químico em um mineral

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PESQUISA FAPESP 203 z 49

sas informações e outras obtidas com a microssonda, em casos de ocorrência de minérios, são muito importantes para o melhor conhecimento da potencialidade de uma mina e para colaborar na sua ins-talação e na indicação da infraestrutura necessária para a exploração.

Para começar a elaborar a análise de amostras de rochas coletadas em tra-balhos de campo, os pesquisadores que utilizam a microssonda preparam o ma-

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mais vezes para manutenção e a fila de espera chegava a seis meses”, diz Olivei-ra. “Durante cerca de três anos foi a única em funcionamento no país para estudos acadêmicos porque as outras estavam avariadas, como a da Universidade de Brasília [UnB]”, explica. Ele lembra que recentemente a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) comprou uma microssonda e a UnB também, além de a própria Unesp já ter a aprovação de com-pra de um desses equipamentos com a Fi-nanciadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério de Ciência e Tecnologia.

InFormAçÕES gEnétIcASA formação de novos geólogos está por trás dos trabalhos das microssondas aca-dêmicas – existem indústrias metalúr-gicas que também possuem este tipo de instrumento, por exemplo – principal-mente em um momento de expansão de empresas como Petrobras e Vale. “Quan-tificar os elementos é a motivação na geologia. Porque com base nessa quan-tificação é possível determinar as con-dições de pressão e temperatura em que esses minerais se formaram a quilôme-tros de profundidade. São como informa-ções genéticas da composição química do material analisado”, diz Gomes. Es-

“hoje a microssonda faz parte da cultura científica da geologia”, diz celso de barros gomes, da USP

1 Microssonda, ao fundo, telas e aparelhos que compõem o equipamento

2 Lâmina de vidro com substrato de rocha preparado para a análise

2

Projeto

EMU: Aquisição de nova microssonda eletrônica para o Instituto de Geociências da USP – nº 2009/53835-7. Modalidade: Programa Equipamentos Multiusuários. Coordenador: Celso de Barros Gomes – USP. Investimento: R$ 473.729,58 e US$ 1.662.330,00 (FAPESP).

terial – no caso da USP com a assessoria de um técnico – até deixá-lo bem fino, da ordem de micrômetros (1 micrôme-tro equivale a 1 milímetro dividido por mil). Essa camada fina de rocha é fixada com uma cola transparente na lâmina de vidro que será inserida na microsson-da. Aí ela é desgastada até ficar quase incorporada ao vidro. A amostra é leva-da antes para a microscopia óptica para saber a espessura, que deve ficar entre 30 e 40 micrômetros. Depois a amostra é colocada num aparelho chamado de metalizador para receber uma camada de carbono que tem a função de tornar o material condutor.

“Quando temos uma amostra desco-nhecida, que não sabemos que mine-rais ela contém, aí usamos a técnica de dispersão de energia (EDS, na sigla em inglês), quando é possível fazer uma var-redura entre todos os elementos quí-micos da tabela periódica e indicar, por exemplo, se aquele material é um felds-pato ou um outro mineral qualquer”, diz o professor Celso Gomes. Pela com-posição química do mineral é possível identificá-lo. Para fazer a quantificação dos elementos, ou a determinação da porcentagem, por exemplo, de silício, ferro, alumínio ou magnésio, presente em cada mineral de rocha, os geólogos usam na microssonda a técnica de dis-persão de comprimento de onda (WDS na sigla em inglês) que, além desse obje-tivo principal, pode indicar, por exemplo, as condições de formação do material.

“Atualmente essas técnicas são bem co-nhecidas e difundidas, mas no passado, no início do período de comercialização das microssondas entre os anos 1960 e 1970, era difícil convencer a comunidade acadê-mica de sua importância. E o papel funda-mental desse convencimento foi a difusão da técnica com dados apresentados em congressos e conferências, além de cur-sos e estágios e publicação de trabalhos científicos”, diz Gomes. “Iniciamos há 40 anos um processo de convencimento e hoje a microssonda faz parte da cultura científica da geologia brasileira”, afirma. n

1

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gEOLOgiA ycIÊncIA

Por causa do declive, a taxa de erosão (medida em metros por milhão de anos ou m.Ma-1) é maior no sopé das escarpas do que nos pontos mais elevados

A EROSãO E SEUS RiTMOS

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direção de recuo

Estudo analisou a composição de sedimentos fluviais coletados no alto e no sopé de escarpas que separam a bacia do rio São Francisco da bacia do rio Doce e esta do rio Paraíba do Sul, distantes 140 quilômetros uma da outra (linha tracejada), a fim de estimar o ritmo de encolhimento dos planaltos do Sudeste brasileiro

bAcIA do rIo docE

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Desgaste lento e contínuo

Serra de São Geraldo

Pontos de coletaDegrau de

Cristiano Otoni

A bacia do São Francisco (marrom) perdeu espaço para a do rio Doce (amarelo) devido ao recuo do...

... degrau de Cristiano Otoni, escarpa de 30 quilômetros de extensão, vista a partir do alto na foto acima

DEgRAU DE CRiSTiAnO OTOni

bacia do rio S. Francisco

bacia do rio Paraíba do Sulbacia do rio doce

Desgaste das escarpas que separam as bacias hidrográficas leva os terrenos mais elevados a perderem espaço para os situados a altitudes menores

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Serra de São Geraldo

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O RECUO DAS BORDAS

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o tempo vem desgatando lentamente a paisagem das terras planas no interior de Minas Gerais e São Paulo. O planalto que abriga a bacia do São Francisco, rio que nasce no sudoeste de Minas Gerais e corre em direção ao nordeste até Per-

nambuco, está paulatinamente encolhendo pelo recuo das es-carpas que formam sua borda. No último 1,3 milhão de anos, esse planalto perdeu área para uma região vizinha situada a altitudes menores onde se assenta a bacia do rio Doce. Esta, por sua vez, cedeu espaço para a do Paraíba do Sul, na divisa de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Esse desgaste paula-tino da paisagem, responsável por empurrar as bordas dos planaltos cada vez mais para o interior do país, acaba de ser revelado por pesquisadores de Goiás e Minas Gerais em um estudo publicado no periódico Geomorphology.

À primeira vista, o resultado poderia preocupar quem teme pelo futuro de bacias como a do São Francisco. Mas não é o caso. Primeiro porque esse processo de desgaste ou denuda-ção da paisagem é muito lento. Segundo porque os estudos geológicos são, em certo sentido, bem parecidos com aplica-ções na bolsa de valores: resultados do passado geológico não permitem fazer projeções acuradas.

“Os dados indicam como foi o processo no último 1,3 milhão de anos e não permitem fazer especulação preditiva, pois, em ciências da Terra, existem processos de baixa frequência e alta intensidade [como os grandes terremotos] que invalidariam qualquer previsão”, afirma Luis Felipe Cherem, pesquisador

no último 1,3 milhão de anos, a bacia do rio São Francisco

perdeu espaço para a do rio Doce, que cedeu área à do

Paraíba do Sul | Salvador nogueira

a dança das bacias

SERRA DE SãO gERALDO

A bacia do rio Paraíba do Sul (verde) avança sobre a do rio Doce (amarelo) ao desgastar as encostas...

... da serra de São gerado (foto acima), escarpa que se estende por 65 quilômetros no sudeste de Minas gerais

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da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pri-meiro autor do estudo, feito em colaboração com pesquisadores das universidades federais de Ou-ro Preto (Ufop) e de Minas Gerais (UFMG) e do Centro Europeu de Pesquisa e Ensino do Meio Ambiente, na França.

As feições mais superficiais da região, desde o litoral até a chegada à bacia do São Francisco, já bem dentro do continente, são resultado em grande parte de processos geológicos violentos, causados pela tectônica de placas, o mesmo fenômeno que leva à eterna dança dos continentes pelo globo. O primeiro desses grandes movimentos ocorreu cerca de 130 milhões de anos atrás. Ele rompeu o supercontinente chamado Gondwana originando a Antártida, a América do Sul, a África, a Austrália, a península Arábica, a Índia e o oceano Atlântico.

Após esse estágio inicial de formação da costa sul-americana, dois eventos tectônicos adicionais afetaram a região nos últimos 65 milhões de anos, criando três degraus, segundo os pesquisadores da UFMG e da Ufop. O mais baixo é o da bacia do rio Paraíba do Sul, um planalto situado a cerca de 400 metros acima do nível do mar. Mais para o interior encontra-se a bacia do rio Doce, com altitude média de 800 metros e, mais adiante, as bacias dos rios São Francisco e Paraná, a 1.100 metros acima da superfície do oceano.

No trabalho que demonstrou o avanço pro-gressivo dos planaltos mais baixos em direção ao interior do continente, os pesquisadores coleta-ram amostras de sedimento fluvial do chamado degrau de Cristiano Otoni, uma escarpa com 30 quilômetros de extensão e altura variando de 250 a 350 metros que separa a bacia do São Francisco da do rio Doce. Eles também analisaram material obtido ao longo dos 65 quilômetros da serra de São Geraldo, que divide a bacia do rio Doce e a do Paraíba do Sul. Em ambos os casos, eles bus-caram amostrar material tanto na borda como no reverso das escarpas, os declives acentuados que separam um degrau do outro. O objetivo era quantificar, ao longo do último milhão de anos, o fenômeno conhecido como denudação.

Trata-se de um processo causado por erosão constante ao longo do tempo. Chuva e vento de-compõem e removem as rochas mais superficiais, descobrindo o terreno que está embaixo. É como se a superfície da região fosse paulatinamente perdida, deixando exposta a rocha do subsolo.

Para calcular o ritmo da denudação, os pesqui-sadores analisaram os sedimentos fluviais no alto e no sopé dos degraus. Contrastando o material dessas áreas, é possível estimar quantos milíme-tros são desgastados a cada mil anos (ou quantos metros a cada milhão de anos).

Como era de esperar em processos erosivos, com a ajuda do declive, as escarpas naturalmente sofrem mais denudação que os planaltos em si.

A bacia do rio São Francisco perdeu,

em 1 milhão de anos, 8,77 metros

para a do rio doce, que, por sua vez,

perdeu 15,68 metros para a do

rio Paraíba do Sul

Para o caso do planalto da bacia do São Francisco notou-se que ele per-de, em média, 8,77 metros a cada mi-lhão de anos. Já na bacia do rio Doce, a perda é de 15,68 metros no mesmo período. Nas escarpas, esse número é compreensivelmente maior: 17,5 metros a cada milhão de anos para o degrau de Cristiano Otoni e 21,22 metros para a serra de São Geraldo.

Esses resultados indicam que o processo de denudação, fenômeno de causas múltiplas que pode ocor-rer em ritmos que variam de uma região para outra, ainda se encontra em curso. Segundo Cherem, esses valores são consistentes com o que se esperaria observar na compara-ção entre os planaltos: os que se en-contram mais próximos do interior dos crátons, a parte mais estável das placas tectônicas, em geral são mais maduros e sofrem menos denudação com o passar do tempo.

contrAStE dE rESUltAdoS Cherem, Varajão e seus colegas che-garam a essas taxas de denudação ao analisar a presença de certa variedade do ele-mento químico berílio nas rochas. O berílio é o quarto elemento químico da tabela periódica, com quatro prótons em seu núcleo. Para medir a idade das rochas, os pesquisadores avaliam a presença de berílio-10, versão do elemento com seis nêutrons que tende a decair com o tempo, perdendo um de seus nêutrons. No caso do be-rílio-10, a meia-vida, tempo em que metade dos átomos da amostra leva para se desintegrar, é estimada em 1,38 milhão de anos. Assim, com-parando a quantidade dele num solo, é possível ter uma ideia da idade da amostra. “Os resulta-dos obtidos em Minas são semelhantes aos ob-servados em outras margens divergentes [onde ocorre a separação entre dois continentes] ao redor do mundo”, afirma Cherem.

Estudos anteriores feitos em uma região pró-xima dali, mas com técnicas diferentes, havia chegado a taxas de denudação distintas. Em 2010, os pesquisadores Silvio Hiruma, do Instituto Geológico de São Paulo, Claudio Riccomini, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, e colaboradores publicaram um estudo na Gondwana Research indicando que a velocidade de denudação poderia ser bem maior.

“Nossos dados sugerem que algumas partes da serra da Bocaina apresentaram denudação superior a 3 mil metros nos últimos 60 milhões de anos, o que daria algo em torno de 50 metros por milhão de anos”, diz Riccomini, que, com m

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PESQUISA FAPESP 203 z 53

apresentados em termos de taxas de denudação são fruto de medições em pontos escolhidos com base em critérios de homogeneidade nas diversas bacias”, diz. “O que essas medidas expressam é uma crença de que aquilo representa uma medida real de denudação de longo termo e generalizável a ponto de conduzir às conclusões apresentadas”, comenta o geomorfólogo da UFMG.

Além das medições do berílio usadas no estudo da Geomorphology, Cherem afirma que outros da-dos, apresentados em sua tese de doutoramento, corroboram a ideia de que, no Sudeste brasileiro, as escarpas estão recuando aproximadamente 0,01 milímetro por ano, fazendo as bacias mais altas perderem área para as mais baixas. De toda forma, ele admite que os mistérios geológicos do Sudeste brasileiro ainda estão longe de ter sido todos desvendados. “As escarpas continuam lá”, diz, “e devem continuar a ser estudadas”. n

pesquisadores da França, acaba de publicar um novo estudo sobre o assunto no Journal of Geo-physical Research.

A divergência nos ritmos de denudação pode ser decorrente de dois fatores. O primeiro é que a técnica usada pela equipe da USP permite ana-lisar o que ocorreu num período maior de tempo – e a denudação pode arrefecer à medida que os planaltos amadurecem. O segundo é que o estu-do de Riccomini e colegas se concentra na serra do Mar, que, apesar de próxima à área estudada por Cherem e colaboradores, tem uma história geológica diferente da vista nas regiões mais in-teriores do continente. “Não há contraposição ou negação mútua, mas complementaridade na busca do melhor entendimento da dinâmica do relevo do Sudeste do Brasil”, diz o pesquisador da UFG.

cAdA AmoStrA, UmA hIStórIA Segundo Cherem, o número de amostras ana-lisadas confere segurança sobre os resultados. Ainda assim é possível que as taxas de denuda-ção variem um pouco à medida que se aumente o número de amostras. “Eu poderia indicar vários locais onde os ganhos ou perdas de espaços das citadas bacias variam muito de uma para outra”, afirma Allaoua Saad, da Universidade Federal de Minas Gerais, estudioso da geomorfologia do Sudeste brasileiro.

Saadi reconhece, porém, a qualidade do estudo conduzido por Cherem e Varajão. “Os resultados

Algumas das principais bacias hidrográficas brasileiras (mapa abaixo) se assentam sobre terrenos planos situados a altitudes que variam de 400 a 1.100 metros

Planaltos escalonados

Artigo científico

CHEREM, L.F.S. et al. Long-term evolution of denudational escarpments in southeastern Brazil. Geomorphology. v. 173-4. p. 118-27. 2012. COGNE, N. et al. Post-breakup tectonics in southeast Brazil from thermochronological data and combined inverse-forward thermal history modeling. Journal of Geophysical Research. v. 117. 2012. HIRUMA, S.T. Denudation history of the Bocaina Plateau, Serra do Mar, shoutheastern Brazil: relationships to Gondwana breakup and passive margin development. Gondwana Research. v. 18. p. 674-87. 2010

Brasil

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Altitude (em metros)

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gás soprado por explosões estelares

interrompeu crescimento de galáxias anãs

estrelas que o vento apagou

Fornax, no alto da página: uma das 26 galáxias anãs que orbitam a via Láctea

Igor zolnerkevic

ASTROnOMiA y

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há algo misterioso sobre a evolu-ção das galáxias anãs. Os astrô-nomos observam um número muito menor desses pequenos

aglomerados de estrelas do que prevê a teoria atual de como o Universo se for-mou a partir de uma explosão ocorrida há 13,7 bilhões de anos, o Big Bang. Por essa razão, acredita-se que ou há algo de errado com essa teoria – opção cada vez menos aceita pelos especialistas –, ou algo aconteceu durante a formação dessas galáxias que as deixou tão vazias de estrelas que nem os mais poderosos telescópios conseguem observá-las.

Em um trabalho recém-aceito para pu-blicação na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, um grupo de astrônomos brasileiros apresenta resul-tados que fortalecem a segunda hipótese e detalham um possível mecanismo que teria impedido algumas galáxias anãs de produzirem estrelas em abundância. Por meio de simulações de computador, Diego Falceta-Gonçalves, da Universidade de São Paulo (USP), e Luciana Ruiz, Gus-tavo Lanfranchi e Anderson Caproni, da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul), propõem que uma série de explosões es-

telares ocorridas no início da formação das galáxias anãs teria expulsado delas quase todo o gás que serviria para gerar novas estrelas. Como consequência, elas se tornariam quase despovoadas.

Embora tenham ocorrido há mais de 13 bilhões de anos, pouco após a criação do Universo, essas explosões estelares podem ter deixado traços – diferenças na concentração de elementos químicos dentro e fora das galáxias – que podem ser verificados por meio de observações astronômicas e contribuir para confir-mar ou refutar o modelo. “Nosso traba-lho explica o que pode ter ocorrido tanto no interior da galáxia anã como entre os aglomerados de galáxias”, diz Lanfranchi.

As galáxias anãs existem em todo o Universo, orbitando galáxias maiores, co-mo a nossa, a Via Láctea. Em geral, elas possuem centenas de milhões de estrelas – cerca de 0,1% do total encontrado na Via Láctea. Algumas ainda contêm gás e se mantêm capazes de gerar novas es-trelas. Mas a maioria abriga apenas um grupo de estrelas velhas. Na Ursa Menor, uma das galáxias anãs que orbita a Via Láctea, por exemplo, a última estrela nasceu 9 bilhões de anos atrás.

De acordo com a teoria cosmológi-ca corrente, segundo a qual o Universo nasceu há 13,7 bilhões de anos a partir de uma explosão inicial e vem expandin-do desde então, as galáxias anãs foram os primeiros aglomerados de estrelas a se formar, em torno de 300 milhões de anos após o Big Bang. Galáxias maiores, do porte da Via Láctea, só começariam a surgir 1 bilhão de anos depois. Os as-trônomos ainda debatem se as galáxias maiores surgiram da aglutinação de anãs ou se cresceram independentemente de-las. Mas todos acreditam que as galáxias, grandes ou pequenas, nasceram do gás acumulado em regiões do espaço onde a matéria escura se concentrou.

A matéria escura é uma substância invisível e de identidade ainda desco-nhecida. Ela permeia todo o espaço e só é percebida pela influência gravitacional que exerce no movimento de estrelas e galáxias. Pelas observações cosmológi-cas, deve existir de cinco a nove vezes mais matéria escura do que matéria nor-mal no Universo. E as simulações com-putacionais baseadas na teoria do Big Bang sugerem que as galáxias maiores se formaram justamente nas regiões em

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A estrutura do UniversoUma explosão de alta energia ocorrida há 13,7 bilhões de anos, o Big Bang, originou o Universo, que, à medida que se expandiu e resfriou, organizou a matéria visível em átomos, estrelas, galáxias e aglomerados de galáxias

A simulação abaixo mostra como a matéria escura (pontos brilhantes), uma forma de matéria invisível que permeia o Universo e interage com matéria comum por meio da gravidade, teria evoluído após o Big Bang em uma região ao redor da via Láctea

que uma quantidade maior de matéria escura se aglomerou, os chamados halos.

Essas simulações também mostram que cada um desses grandes halos de matéria escura é cercado de uma constelação de centenas de halos menores, que, em prin-cípio, deveriam originar galáxias anãs. Mas em vez de centenas, foram observa-das apenas 26 delas orbitando a Via Lác-tea. “De acordo com as observações e as simulações, deve haver centenas de halos de matéria escura que não formaram qua-se nenhuma estrela”, comenta Lanfranchi.

Outro mistério a respeito das galáxias anãs é que a proporção entre a matéria normal e a escura é muito diferente da-quela observada nas galáxias maiores. A massa do halo de matéria escura que envolve a Via Láctea é 10 vezes maior que a massa total de suas estrelas. Já as galáxias anãs estudadas têm de 20 até 3,4 mil vezes mais matéria escura que massa estelar. “Por alguma razão, foram formadas proporcionalmente muito me-nos estrelas nas galáxias anãs do que na Via Láctea”, diz Gonçalves.

Para esclarecer o passado das galáxias anãs, vários grupos de astrofísicos vêm desenvolvendo simulações de como teria evoluído a concentração inicial de gás e matéria escura que as originou. Todos os trabalhos sugerem que os protagonistas dessa história são as supernovas – as ex-plosões que marcam o fim da vida de es-trelas com massa muito elevada, dezenas de vezes maior que a do Sol. Segundo os modelos teóricos, as primeiras super-novas formadas nessas galáxias teriam transferido tanta energia para o gás no interior desses aglomerados de estrelas que terminaram por expulsá-lo para o meio intergaláctico. E, sem gás, a for-mação estelar teria sido interrompida.

Nenhuma simulação até agora, porém, havia chegado a um nível de detalhe su-ficiente para explicar exatamente como esse gás escaparia nem em que quantida-de e em qual estágio da evolução galácti-ca. Os astrônomos brasileiros aceitaram então o desafio de simular o primeiro bilhão de anos das galáxias anãs da ma-neira mais realista possível, usando um

código computacional desenvolvido pelo astrofísico polonês Grzegorz Kowal, da USP. Nas simulações os pesquisadores avaliaram 11 cenários possíveis para a evolução dessas galáxias, variando parâ-metros como a distribuição de matéria escura e a taxa de formação de superno-vas. Eles também levaram em conta de-talhes como o surgimento aleatório das supernovas em várias regiões da galáxia e a quantidade de energia das explosões convertida em calor ou luz.

vEntoS UbíQUoSApesar de controlarem os parâmetros de suas simulações, os pesquisadores não tinham como saber o resultado de an-temão. “Conseguimos determinar quão rápido as galáxias perdem gás, depen-dendo de sua massa, da distribuição de matéria escura e da taxa de formação de supernovas”, explica Gonçalves.

Em todos os cenários, as simulações mostraram que as supernovas criam ventos que começam a expelir o gás da galáxia 100 milhões de anos após seu

núcleos atômicos se

formam

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neutrosnascem as

primeiras estrelas e as

galáxias anãs

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galáxias grandes, como

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nascimento. No caso mais extremo, 88% do gás foi eliminado em 1 bilhão de anos. “A maioria dos halos acaba com poucas estrelas e se tornam invisíveis”, conta o pesquisador. “As galáxias que observa-mos hoje se formaram nos cenários em que o vento foi mais brando.”

Os pesquisadores imaginavam que o gás aquecido pelas supernovas superas-se a atração gravitacional e escapasse da galáxia por ser impulsionado com muita energia, como um foguete lançado ru-mo ao espaço. Mas descobriram que não era sempre assim. De 5% a 40% do gás aquecido pelas explosões escapava em menos de 200 milhões de anos, mesmo sem energia para vencer a gravidade, ao flutuar no gás mais frio e mais denso a sua volta. “É mais como uma bexiga cheia de hélio, que sobe sozinha, sem ser lançada”, explica Gonçalves.

Esse fenômeno, conhecido como ins-tabilidade de Rayleigh-Taylor, é o mesmo responsável pela elevação de gás quente em forma de cogumelo de uma explosão de bomba atômica. Na simulação dos brasileiros, as supernovas criam bolhas de gás quente ao seu redor, que migram para as camadas mais externas e frias da galáxia, se expandindo e se fundindo, formando canais por onde o gás escapa. Uma consequência importante desse fe-

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12 nômeno é que a composição do gás que sai das galáxias anãs não é a mesma do gás primordial, composto por elementos químicos leves (hidrogênio e hélio), os primeiros a surgirem no Universo. O gás que escapa é enriquecido com elemen-tos químicos mais pesados, criados nas explosões das supernovas.

“Esses resultados são interessantes e devem ser confrontados com observações para verificar se a teoria está correta”, afirma o astrofísico Reinaldo de Carvalho, do Instituto Nacional de Pesquisas Espa-ciais, estudioso da evolução das galáxias. Os pesquisadores esperam encontrar evi-dências do que ocorreu com as galáxias anãs ao investigar a composição química de suas estrelas. Para isso, estão analisan-do uma galáxia anã, a Ursa Menor. Eles planejam comparar as conclusões com a composição do meio intergaláctico, para onde teriam sido expelidos os elementos químicos mais pesados. n

como as galáxias anãs perdem gás

velhas companheiras

Bolhas de gás aquecido e menos denso flutuam sobre o gás mais frio e denso rumo ao meio intergaláctico

Nas simulações, até 40% do gás aquecido pelas explosões de supernovas escapou da galáxia em menos de 200 milhões

As galáxias se formam nas regiões com maior concentração de matéria escura. Em cada ponto ao redor do aglomerado principal, que originou a via Láctea, deveria haver uma galáxia anã, mas só se observam 26 (ver as principais acima)

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PESQUISA FAPESP 203 z 57

Os projetos1. Campos magnéticos, turbulência e efeitos de plasma no meio intergaláctico – nº 2011/12909-8; 2. Estudo numérico de plasmas magnetizados colisionais e não colisionais em astrofísica – nº 2009/10102-0; 3. Aplicação de modelos teórico- computacionais em astrofísica – nº 2006/57824-1. Modalidade: 1. e 2. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; 3. Jovem Pesquisador. Coordenador: 1. e 2. Diego Falceta Gonçalves – USP; 3. Gustavo Amaral Lanfranchi – Unicsul. Investimento: 1. R$ 151.676,28 (FAPESP); 2. R$ 108.750,89 (FAPESP); 3. R$ 171.39 5,05 (FAPESP)

Artigo científicoRUIZ, L. O. et al. The mass loss process in dwarf galaxies from 3D hydrodynamical simulations: the role of dark matter and starbursts. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. No prelo.

momento inicial 46 milhões de anos depois2 milhões de anos depois

bolhas de gás aquecido e

menos denso

gás mais frio e denso

A matéria escura faz o gás se concentrar na porção mais interna da galáxia anã...

... até que explosões de supernovas criam bolhas de gás quente...

... que se expandem e se fundem, formando canais pelos quais o gás escapa

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Proliferação de espécies nativas

resistentes a perturbações no ambiente reduz

a biodiversidade da mata atlântica

tratada a ferro e fogo pelos seres humanos durante cinco séculos, a mata atlântica reage como pode na tentativa de sobreviver. Um estudo feito por cientistas do Brasil e do Reino Unido, que analisou fragmentos

remanescentes da floresta tropical no Nordeste, sugere que a degradação induzida por atividades humanas provoca a disseminação exagerada de umas poucas espécies de árvore mais resistentes em prejuízo de muitas. O resultado é uma mata cada vez mais homogênea – e pobre – em toda a sua extensão, onde extinções locais passam a ocorrer em cascata.

O efeito é semelhante ao que se observa quando uma espécie exótica invasora coloniza um novo ambiente: sem inimigos naturais, ela aumenta rapidamente sua população, eliminan-do as espécies nativas que competem com ela pelos mesmos recursos no ambiente. “Os especialistas sempre temem o es-palhamento de espécies exóticas, mas não é preciso esperar uma invasão. Uma nativa pode desempenhar o mesmo papel ecológico que as exóticas”, diz o botânico Marcelo Tabarelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele, Felipe Melo, também da UFPE, e o ecólogo paraense Carlos Peres, da Universidade de East Anglia, no Reino Unido, assinam um ar-tigo na edição de outubro do periódico Biological Conservation no qual descrevem o fenômeno da homogeneização de biomas causada por espécies nativas, que chamaram de vencedoras.

A relação entre vencedores e perdedores em ecologia foi descrita pela primeira vez em 1999 pelos pesquisadores norte--americanos Michael McKinney, da Universidade do Tennes-see, e Julie Lockwood, então na Universidade da Califórnia em Santa Cruz. O trabalho da dupla descrevia um cenário de

ECOLOgiA y

Florestas mais iguais

catástrofe para a biodiversidade, no qual algumas espécies com um conjunto de características especiais – crescimento rápido, tolerância a perturbações no ambiente e facilidade de transporte – colonizavam novos ecossistemas e causavam ho-mogeneização. “McKinney estava explorando os impactos da urbanização na diversidade de espécies e eu estava trabalhan-do com espécies invasoras”, lembra Julie, hoje professora da Universidade Rutgers, em Nova Jersey. “Quando começamos a conversar, percebemos que havia um tema unificador, o dos ganhadores e perdedores.” O mais importante, segundo a pes-quisadora, é que o sucesso de algumas espécies sob as novas condições não parecia ocorrer ao acaso. “Eu vejo isso como a humanidade podando a árvore da vida”, diz Julie. “Alguns ramos são cortados, outros são deixados crescer, talvez sem controle.”

O estudo da dupla, porém, só considerava o fenômeno apli-cado à invasão de espécies exóticas. Essas ganhadoras globa-lizadas de fato podem causar, e causam, problemas sérios em ecossistemas insulares e em latitudes elevadas. Ecossistemas tropicais continentais, no entanto, são praticamente imunes a esse tipo de invasão. “É claro que temos problema com es-pécies exóticas no Brasil, mas temos espécies nativas que são muito mais bem-sucedidas e na literatura ninguém fala sobre isso”, afirmou Peres, de passagem por Belém, sua cidade natal.

Pode parecer óbvio a qualquer observador atento que a mata atlântica – e outras florestas altamente impactadas por atividades humanas – perca diversidade por conta da fragmen-tação. Afinal, esta favorece, a partir da borda da mata degra-dada, a proliferação de espécies de árvore conhecidas como pioneiras. Elas são as primeiras a nascer numa área perturba- P

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Degradação induzida por atividades humanas provoca a disseminação exagerada de umas pouca espécies

› Porte diminuto› necessitam de sol› Sementes pequenas, dispersadas por vento ou pequenos animais› Crescimento rápido› Reprodução anual

› árvores de madeira de lei› Tolerantes à sombra› Sementes grandes, disseminadas por mamíferos› Crescimento lento› Reprodução plurianial

Embaúba (Cecropia pachystachya): espécie pioneira, que, como o pau-pombo e o caboatã-de-leite,

se dissemina rapidamente em áreas perturbadas

Sapucaia (Lecythis pisonis): uma das espécies de crescimento lento que, como os jatobás e as

ucuúbas, perdem espaço na floresta degradada

Perdas e ganhos

Favorecidas Prejudicadas

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relli, um gaúcho radicado em Recife desde o fim dos anos 1990. “Isso é impensável em florestas tropicais não perturbadas.”

Segundo Julie, parte da resistência desses biomas a espécies invasoras po-de decorrer justamente do fato de que a diversidade é alta e de cada região ser diferente da outra. “Quanto mais espécies nativas, menos provável que haja nichos ecológicos abertos que possam ser ocu-pados por uma espécie exótica”, afirma a ecóloga. A homogeneização pode minar essa imunidade natural do ecossistema e criar problemas para as florestas brasi-leiras no futuro: à medida que a América do Sul cresce em importância econômica e se incorpora cada vez mais às rotas do comércio internacional, afirma a pesqui-sadora, cresce também sua exposição a espécies invasoras trazidas a bordo de navios e aviões. “Eu não espero que o pa-drão de resistência a espécies invasoras se mantenha por muito tempo em lugares como o Brasil e a Índia”, diz.

O risco futuro de invasões, porém, é o menor dos problemas trazidos pela proliferação de vencedoras nativas. Ao substituir florestas antigas e de cresci-mento lento por matas mais ralas e me-nos diversas – o que Tabarelli chama de capoeirização –, ela compromete várias funções ecológicas, como a capacidade de abrigar animais de grande porte, de armazenar carbono e de controlar as cheias dos rios. Interações cruciais en-tre espécies, como a de grandes animais dispersores de sementes e as árvores que lhes dão alimento, são perdidas, resultan-do em extinção, local ou total. Uma das vítimas mais conhecidas desse processo é o mutum-do-nordeste (Mitu mitu), o caso mais bem documentado de extinção de ave de grande porte na mata atlântica, hoje encontrada só em cativeiro.

A esse ciclo perverso se soma outro fator de pressão: a caça, que elimina prin-cipalmente animais de grande porte em fragmentos já atingidos pelo efeito de bor-da, a alteração na estrutura da floresta que ocorre em suas margens, mais expostas ao vento e ao sol. Em estudo publicado no ano passado na PLoS One, Peres e cole-

gas descobriram que a maior parte da mata atlântica no Nordes-te está “desabitada”, praticamente des-provida de mamífe-ros com mais de cinco FO

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da, por gostarem de sol, terem sementes pequenas, dispersadas por vento ou por pequenos animais, crescimento rápido, muitas vezes terem porte diminuto e reprodução anual. Algumas dessas ca-racterísticas, não por acaso, são compar-tilhadas com as exóticas vencedoras. En-tre as espécies nativas que se saem bem nessas condições estão o pau-pombo ou cupiúba (Tapirira guianensis), que se tor-nou uma das espécies mais comuns da mata atlântica, além do caboatã-de-leite (Thyrsodium spruceanum) e do leiteiro (Hymatanthus phagedaenicus), espécie cuja densidade aumentou mais de 750% no Nordeste. Já madeiras de lei e árvo-res tolerantes à sombra, de crescimen-to lento, com sementes dispersadas por mamíferos grandes e reprodução pluria-nual, como virolas, sapucaias, jatobás e ucuúbas, sucumbem ao chamado efeito de borda. São as perdedoras do processo.

EScAlA rEgIonAlAcontece que as evidências de homoge-neização em escala regional, para além de pequenos fragmentos, ainda são es-cassas. Um dos primeiros trabalhos a mostrar o tamanho do problema foi pu-blicado pelo grupo de Tabarelli no ano passado na revista Diversity and Distri-butions. Os pesquisadores de Pernambu-co estudaram uma região de 56 mil qui-lômetros quadrados que vai de Alagoas ao Rio Grande do Norte, comparando

milhares de registros de flora em 12 áreas dessa macrorregião em dois momentos: de 1902 a 1980, quando a expansão da cana-de-açúcar arrasou praticamente toda a floresta contínua que existia por ali, e entre 1981 e 2006, após o fim do ciclo de expansão do Proálcool.

O grupo descobriu que, na média, as flo-ras ao longo da mata atlântica nordestina ficaram 28% mais parecidas após 1980. “Foi uma homogeneização muito rápida, num período relativamente curto, de déca-das”, conta Melo. “Hoje eu vou a Pernam-buco e vejo uma coisa e 300 quilômetros para cima, no Rio Grande do Norte, obser-vo algo muito semelhante”, relata Taba-

A perda de diversidade da mata atlântica pode minar a imunidade natural desse ecossistema à invasão de espécies exóticas

Prata da casa: embaúba, espécie de crescimento rápido e grande disseminação em áreas perturbadas da mata atlântica1

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PESQUISA FAPESP 203 z 61

Os resultados do estudo reforçam a necessidade de aplicar rigorosamente as determinações do novo Código Florestal, que contribui para aumentar o risco de homogeneização à medida que reduz a dimensão das faixas de vegetação a se-rem permanentemente preservadas ao longo dos rios. A nova lei altera a forma de medir essas faixas por contar sua lar-gura a partir do ponto médio, e não do li-mite da cheia, como mandava a lei antiga. E exige a restauração de pelo menos 15 metros (m) em propriedades que desma-taram até a beira d’água – a maior parte delas. A princípio, pode-se imaginar que a exigência de restauração de pouco serve para reabilitar a biodiversidade em uma floresta já tão afetada pela fragmentação e pelo efeito de borda. “Essa é uma inter-pretação perigosa”, afirma Peres. “É como dizer, ‘meu tio está com hepatite, então vamos logo matá-lo”, compara. Mesmo fragmentos atrofiados da mata atlântica ainda fornecem serviços que um pasto ou uma lavoura não fornecem.

A substituição de vegetação antiga por matas ralas compromete as funções ecológicas da floresta

homogeneização regionalEstudo comparou a ocorrência de espécies em 12 trechos de mata atlântica do nordeste em dois períodos (1902-1980 e 1981-2006)

quilos. O grupo percorreu 196 fragmentos de floresta em busca de 18 espécies que ali já ocorreram (antas, muriquis, queixadas e onças) e não encontrou mais que quatro ao mesmo tempo em nenhum fragmento. Na maioria dos locais visitados os mora-dores não tinham memória da existência desses bichos na região.

trAnSFormAção globAl“O trabalho deles ilumina um processo de mudança global que está acontecen-do numa escala muito grande e suge-re que isso que vemos hoje nos nossos quintais possa ser o ‘novo normal’”, diz Julie, que, como McKinney, elogiou o trabalho dos brasileiros.

A pesquisa, afirma Peres, tem implica-ções diretas nas políticas de conservação da mata atlântica. “Uma das mensagens é que é importante preservar as áreas grandes e contínuas, porque nelas o efei-to de borda consegue adentrar menos”, diz o cientista. “Tamanho, nesse caso, é documento.”

Artigos científicos

TABARELLI, M. et al. The ‘few winners and many losers’ paradigm revisited: Emerging pros-pects for tropical forest biodiversity. Biological Conservation. Out. 2012. CANALE, G.R. et al. Pervasive Defaunation of Forest Remnants in a Tropical Biodiversity Hotspot. PLoS One. 14 ago. 2012. LOBO, D. et al. Forest fragmentation drives Atlantic forest of northeastern Brazil to biotic homogenization. Diversity and Distributions. v. 17. p. 287-96. 2011. CARDOSO DA SILVA, J. M. e TABARELLI, M. Tree species impoverishment and the future flora of the Atlantic Forest of northeast Brazil. Nature. v. 404 (6.773), p. 72-4. 2000. MCKINNEY, M.L. e LOCKWOOD, J.L. Biotic homogenization: a few winners replacing many los-ers in the next mass extinction. Trends in Ecology and Evolution. v. 14 (11), p. 450-53. 1999.

“O Código Florestal não permite que as florestas escapem à homogeneização”, pondera Tabarelli. Ele afirma que a faixa de 15 m a 20 m de largura que a lei obri-gará os fazendeiros a reflorestar “é uma grande borda florestal”. No Nordeste, porém, mesmo essas bordas fazem falta. “Independentemente do grau de homo-geneização, quando chove um pouquinho aqui alaga as cidades, quando para de cho-ver falta água.” Embora não solucionem o problema, as matas ciliares a serem recom-postas podem ajudar a conectar fragmen-tos de floresta hoje condenados a perecer devido ao efeito de borda.

“Mesmo um fragmento homogêneo é extremamente rico”, diz Tabarelli. Se-gundo ele, a melhor forma de lidar com o problema da homogeneização é adequar tecnologias de reposição florestal às po-líticas de proteção. Tabarelli lembra que no estado de São Paulo, por exemplo, o reflorestamento da mata atlântica exi-ge o plantio de pelo menos 80 espécies. “Não tem que abandonar a recomposi-ção, tem que torná-la mais eficiente.”

Agora o grupo começa a olhar para outras regiões em busca de sinais de ho-mogeneização induzida por espécies na-tivas. Dados de Peres e seus colegas suge-rem que o fenômeno também ocorra na Amazônia, no Arco do Desmatamento, embora numa escala menos destrutiva. A equipe da UFPE também está fazendo parcerias com pesquisadores da Paraíba e do México para realizar comparações de maior escala. “Ainda é um fenômeno que precisa de confirmação em outros sítios para ser mais robusto”, diz Melo, “mas é algo esperado, porque tem base teórica e empírica”. n

Tipos de vegetação

Ecótono

Floresta semidecidual

Floresta aberta

Floresta tropical úmida

vegetação em regeneracão

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56,000 km2

Brasil

Esenbeckia grandiflora 848,8%

Himatanthus phagedaenicus 753,9%

Eriotheca crenulaticalyx 706,5%

Sorocea hilarii 706,5%

Cecropia pachystachya 611,6%

Mabea occidentalis 611,6%

Xylopia laevigata 564,2%

Aumento no nº de exemplares das espécies

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Estudo identifica anormalidades ósseas

comuns em jubartes da costa brasileira

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Pesquisadores de São Paulo e da Bahia estão desenvolvendo um esforço conjunto para conhecer melhor como vivem e de que

morrem as baleias jubartes (Megaptera novaeangliae) que frequentam a costa brasileira. Todos os anos entre julho e novembro centenas desses grandes ce-táceos se deslocam das águas geladas da Antártida para regiões quentes do litoral brasileiro para procriar. Embora essa rota de migração seja bem conhecida, ainda se sabe pouco das condições de saúde das baleias e das razões que as levam a adoecer. O motivo é simples: não é fácil obter amostras de tecidos em condições adequadas para estimar o estado de saúde desses mamíferos ma-rinhos que podem alcançar 16 metros de comprimento e pesar 40 toneladas e que vivem em constante movimento.

Um grupo de médicos veterinários da Universidade de São Paulo (USP) e do Projeto Baleia Jubarte (PBJ), que é financiado pela Petrobras, trabalha atualmente para mudar esse cenário. Sob a coordenação de José Luiz Catão Dias, da USP, eles iniciaram um progra-ma sistemático de coleta de amostras de pele e de material biológico ejetado com o borrifo (ar expirado) das baleias. Com base na análise dos tecidos obtidos de animais vivos e também do material extraído da ossada de baleias que enca-lharam na costa do país, os pesquisado-res planejam produzir um inventário da saúde das jubartes brasileiras.

“A partir do material biológico cole-tado dos animais vivos, estamos investi-gando diversos patógenos”, conta Catão.

Ele e seu grupo estão analisando o acer-vo de fotos do projeto tiradas durante as expedições para verificar se os animais acompanhados ganharam ou perderam peso, desenvolveram lesões cutâneas ou pariram. “Queremos entender a dinâmi-ca da saúde das baleias e como as ativi-dades humanas podem influenciá-las, contribuindo para o encalhe e a morte dos animais”, afirma Catão.

lESÕES E mAlFormAçÕESNo início de novembro, Catão e Kátia Groch, sua orientanda no doutorado na USP, e os médicos veterinários Milton Marcondes e Adriana Colosio, do PBJ,

de que morrem as baleias

apresentaram os primeiros resultados desse projeto em um artigo publicado na revista Diseases of Aquatic Organisms. Trata-se de um dos maiores levantamen-tos do mundo, segundo os pesquisado-res, das enfermidades ósseas das baleias jubartes. No trabalho, eles analisaram os ossos de 49 animais que encalharam entre 2002 e 2011 na região de Abrolhos, no sul da Bahia.

Das 49 baleias, 12 apresentaram pelo menos um tipo de problema ósseo. Ha-via cinco casos de malformações con-gênitas; quatro de lesões inflamatórias; cinco de alterações degenerativas; e qua-tro de trauma (alguns possivelmente as-

“A análise das alterações ósseas pode fornecer dados valiosos sobre a vida das baleias”, diz Kátia groch

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PESQUISA FAPESP 203 z 63

são afetados pela exploração e modifi-cação do ambiente marinho, que pode aumentar com as atividades de explo-ração de petróleo na camada do pré-sal. “As baleias e os golfinhos são indicado-res da saúde do ecossistema marinho”, diz Kátia. “O resultado desses estudos é essencial para entender as ameaças às populações de baleias e subsidiar políticas públicas para sua proteção.”

No Brasil, a caça à baleia foi permi-tida até três décadas atrás, quando foi aprovada a lei federal n° 7.643, que proi-biu a caça dos cetáceos. Mais tarde, em 2008, o decreto n° 6.698 declarou as águas jurisdicionais marinhas brasilei-ras “santuário de baleias e golfinhos”. Hoje a legislação nacional de proteção às baleias é considerada muito boa. “As baleias já estão sujeitas a grandes desa-

1 Análise de espécime em praia de Abrolhos

2 Jubarte flagrada em salto característico

3 Equipe durante expedição de campo

4 Dardo coleta amostra de pele

5 Costela com calo ósseo (retângulo)

ProjetoAnálise de aspectos sanitários de baleias jubartes (Megaptera novaeangliae) na costa sudeste e nordeste do Brasil, com ênfase em interações antropogênicas – n° 2011/08357-0. Modalidade: Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa. Coordenador: José Luiz Catão Dias/FMVZ-USP. Investimento: R$ 67.661,40 (FAPESP).

Artigo científicoGROCH, K. R. et al. Skeletal abnormalities in humpback whales Megaptera novaeangliae stranded in the Brazilian breeding ground. Diseases of Aquatic Organisms. 8 de nov. 2012.

sociados a choque com embarcações). “A análise de alterações ósseas dos ani-mais pode fornecer dados valiosos so-bre a história de vida das baleias e suas condições patológicas”, conta Kátia. “Algumas dessas alterações podem ter contribuído para o encalhe das baleias, principalmente em decorrência de lesões na região da cauda, que encontramos em dois animais”, explica.

Na opinião dos pesquisadores, é ne-cessário um monitoramento constante para entender o quanto esses animais

fios naturais para se manterem vivas”, afirma Kátia. “A efetividade das políti-cas de proteção depende da eficiência da fiscalização e da conciliação entre o crescimento econômico, a exploração dos recursos marinhos e a preservação do ambiente.” n

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Açaí Do pé para o lanche

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tEXtO carlos Fioravanti

FOtOs Eduardo cesar,

de Belém, Pará

Aumento do consumo acirra

concorrência, promove uma

crise de preços e expõe

a dificuldade em passar do

extrativismo para o agronegócio

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PESQUISA FAPESP 203 z 65

Máquinas antigas e uma ideia nova: motor a vapor (detalhe ao lado) move os equipamentos que extraem óleo da folha de pau-rosa (acima)

Açaí Do pé para o lanche

Em 15 segundos, usando uma argola de folha de palmei-ra para prender os pés, Antonio da Silva sobe em um açaizeiro de 15 metros de altura, tira o facão preso às costas, corta um cacho com frutos maduros e desce.

Com as mãos, puxa os pequenos frutos arredondados dos cachos, deixa-os cair sobre um cesto de palha e recomeça. De setembro a fevereiro, Silva, de 28 anos, baixo, forte, cabe-los à Neymar, repete essa operação de 20 a 30 vezes por dia para colher os frutos dos 10 mil açaizeiros, “nem sei direito quantos são”, espalhados em meio à mata próxima a Belém.

A produção de açaí, a principal indústria extrativa vegetal do Pará, é predominantemente artesanal e informal. Em uma feira que se forma todos os dias das quatro às seis da manhã ao lado do mercado público, os produtores expõem em mi-lhares de cestos a produção do dia anterior, colhida das ilhas próximas e trazida por pequenos barcos em viagens de até 12 horas. Vendedores, compradores e carregadores se misturam, mal iluminados pelas tênues lâmpadas dos postes, a luz mais intensa vem de um bar em frente à feira. Cada produtor se põe à frente dos cestos empilhados e murmura o preço aos interessados. Com rapidez, os compradores pagam em di-nheiro e viram os cestos em sacos. A todo momento passam estivadores apressados puxando ou empurrando carrinhos de mão com a carga empilhada, gritando para os pedestres saírem da frente. Em uma conta rápida, a feira movimenta R$ 2 milhões em duas horas. Não há nem sombra de fiscais ou de notas fiscais.

Feira do açaí, ao lado do mercado: informalidade

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As estruturas sedimentadas de produção e comercialização de açaí em Belém refletem o desafio de aprimorar a exploração de recursos naturais da região; com o guaraná, outro fruto de valor econômico nativo da Amazônia, também se nota a dificuldade para passar do extrativis-mo para a agricultura (ver reportagem na página 69). Equipes distintas da Embrapa selecionaram variedades mais produtivas de açaí e de guara-ná e, ao mesmo tempo, lutam para convencer os produtores a dar mais atenção ao plantio, à adu-bação e ao cultivo, tendo em vista a possibilidade de ampliar a produtividade e a qualidade.

Em novembro de 2004 a Embrapa Amazô-nia Oriental, de Belém, começou a distribuição de uma variedade de açaizeiro selecionada de alta produtividade, a BRS-Pará, com início de produção aos 3 anos de idade, dois anos a me-nos que os açaizeiros das populações nativas, e a primeira frutificação a uma altura média de 1,12 metro do solo.

“A BRS-Pará já está sendo plantada em mais de 70 dos 140 municípios do Pará, e os frutos no início da produção são colhidos com facilida-de, apenas com o auxílio de uma faca, e com o passar do tempo por meio de escadas ou varas de alumínio”, diz Maria do Socorro Padilha de Oliveira, pesquisadora e curadora do banco de germoplasma em palmeiras da Embrapa Ama-zônia Oriental. “Oferecemos sementes de quali-dade e métodos de plantios para os produtores, que aos poucos estão entendendo que precisam cuidar mais e melhor do cultivo para que tenham retorno econômico.” Duas novas variedades de-vem ser lançadas nos próximos anos, de modo a ampliar a área plantada de açaí, hoje de cerca de 50 mil hectares, ainda restrita se comparada com o estimado 1 milhão de hectares ocupados com as populações nativas de açaizeiros.

UnIvErSoS PArAlEloSEm um estudo recém-concluído, um grupo de pesquisadores do Núcleo de Altos Estudos Ama-zônicos (Naea) da Universidade Federal do Pará (UFPA) identificou movimentos e tensões que estão redefinindo o equilíbrio da economia do açaí. A área plantada está em expansão e aos pou-cos tende a se impor, por causa da maior produ-tividade, sobre a produção das áreas em que as palmeiras crescem em meio à mata. O consumo, também em expansão, acirrou a concorrência en-tre as empresas e fez o custo da matéria-prima subir. As políticas públicas capazes de promover a inovação, reduzir perdas e resolver problemas antigos ainda são escassas. Ninguém sabe o que fazer com a quantidade imensa de caroços, já que se retira apenas uma fina camada superficial do fruto para fazer o líquido espesso consumido no café da manhã ou nas refeições. A possível utili-

zação dos caroços como combustível para fornos ou em adubos orgânicos parece não acompanhar a velocidade com que se acumulam em terrenos vazios ou em sacos espalhados pela cidade.

Dois universos paralelos emergiram da pes-quisa da UFPA. Um é o dos batedores de açaí, um grupo difuso com estimados 4 mil pequenos comerciantes, identificados por placas vermelhas – Açaí do Edil, do Jesus, do Gordinho – em frente às casas. Eles se abastecem diariamente das fei-ras de produtores e vendem açaí batido na hora por R$ 5 ou R$ 6 o litro para consumo imediato de um público que mora a poucas quadras de distância do ponto de venda. O outro universo é o das empresas processadoras de polpa de açaí, geralmente pequenas, que consomem a produção dos plantios e abastecem os distribuidores do Rio de Janeiro e de São Paulo. Enquanto os batedores avançam sem grandes problemas, os represen-tantes das empresas relataram dificuldades para financiar a produção, investir em novas tecnolo-gias e se manter. De acordo com esse estudo, se-te empresas permaneceram, sete entraram e 14 faliram desde 2002. Os pesquisadores acreditam que outras podem fechar nos próximos anos por causa do aumento do custo da matéria-prima, agora mais disputada pelos batedores.

Como as sandálias Havaianas, o açaí era coi-sa de pobre, mas caiu no gosto da classe média

14 empresas faliram de 2002 a 2010 e outras podem fechar nos próximos anos

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PESQUISA FAPESP 203 z 67

e o preço da matéria-prima subiu porque há mais demanda”, diz Costa (ver gráfico abaixo).

“Conseguimos entender os fundamentos da crise estrutural por que passa esse negócio. Se não for reconhecida, essa crise pode levar a uma concen-tração de empresas no Pará, com o fechamento das mais frágeis, e ao fortalecimento das empresas em estados vizinhos. Já estão surgindo outros centros de produção de açaí”, afirma Costa. Segundo ele, a ausência do poder público implicará o avanço do latifúndio em detrimento de sistemas agroflores-tais como o do açaí e da concentração, em vez da distribuição de renda. “Esses efeitos se colocariam na contramão do discurso que apregoa a floresta como um insumo e um desenvolvimento susten-tável e inclusivo para a região.”

Costa começou a analisar as conexões entre a economia rural e a urbana em 1977. Depois de um estudo pioneiro sobre a produção de borracha natural no Pará pela Ford, ele mostrou que as co-munidades camponesas têm capacidade própria de inovar, renovando cultivos e técnicas de traba-lho, e não são passivas e destinadas ao desapare-cimento, conforme o senso comum. Ele ajudou a desfazer conceitos equivocados sobre a região ao demonstrar que os ciclos econômicos, como o da borracha, complementaram – e não substituíram, como se costuma dizer – estruturas econômicas já estabelecidas, fundamentadas na agropecuária. Com apoio da Fundação Ford, Costa lançou em ou-tubro os primeiros seis livros da coleção Economia Política da Amazônia, com os principais estudos, revistos e atualizados, sobre desenvolvimento re-gional da Amazônia realizados nos últimos 35 anos.

bAIxA govErnAnçAPara ele, os impasses do chamado arranjo produti-vo local (APL) do açaí expõem as dificuldades em aproveitar os recursos naturais da Amazônia de modo organizado e sustentável, que pressupõem uma maior atuação do poder público como força organizadora: “Governança e políticas públicas, que praticamente inexistem, poderiam evitar a elevação de custos e estimular a produtividade”.

Em 2003, ao examinarem a economia do açaí pela primeira vez, Costa e sua equipe observaram uma fraca articulação institucional. Havia, porém, uma mobilização crescente entre os produtores, representantes de centros de pesquisa e organi-zações do governo estadual e federal que pare-ciam interessadas na valorização de organizações coletivas como as do açaí. “Todos pareciam crer que estava se formando uma política de efetiva valorização dos APLs, mas aos poucos a mobili-zação se desfez, à medida que o poder decisório se concentrou, e hoje cada um está resolvendo seus próprios problemas, sem a visão do coleti-vo”, observou Costa. Ele foi coordenador-geral de planejamento da Agência de Desenvolvimen-

Equilíbrio e rapidez: Antonio da Silva colhe um ramo com grãos maduros de açaí (esquerda) e os separa sobre um cesto (acima)

A PRESSãO DOS CUSTOS

gastos com matéria-prima sobem, reduzindo a lucratividade

120.000,00

100.000,00

80.000,00

60.000,00

40.000,00

20.000,00

0,00

1,20

1,00

0,80

0,60

0,40

0,20

0,00

16.833,4310.418,95

123.256,00

119.738,68

73.528,14

61.725,11

2002 2007 2010

FOntE naea / ufPa

depois que começou a ser exportado e foi ado-tado como parte da dieta dos esportistas. Suas qualidades nutritivas também ganharam valor: a polpa dessa fruta é rica em gorduras monoinsa-turadas, que previnem doenças cardíacas e obe-sidade, e em antocianina, o pigmento arroxeado que ajuda a reduzir os resíduos conhecidos como radicais livres.

“O açaí ganhou legitimidade social”, diz o eco-nomista Francisco de Assis Costa, coordenador do estudo, apresentado em janeiro de 2012 a empre-sários e representantes do governo e de centros de pesquisa. Refletindo o crescente interesse dos consumidores, de 2002 a 2010 a produção saltou de 300 mil para 800 mil toneladas, o número de empregados de 679 para 1.052 e o valor da produ-ção de R$ 23 milhões para R$ 83 milhões, mas a margem de lucratividade caiu de 50% para 12%. “O preço de venda caiu em razão da concorrência

n Quantidade de matéria-prima (t)n Custo da matéria-prima (R$ 1.000)n Preço (R$ 1.000/t de fruto)

0,62

0,97

1,19

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68 z janeiro De 2013

to da Amazônia (ADA) de 2003 a 2005 e desde 2011 coordena a diretoria de estudos e políticas regionais do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), de Brasília.

Em 2011, ao reexaminar a cadeia produtiva do açaí na Região Metropolitana de Belém, a equipe da UFPA detectou um cenário de desolação, mar-cado pelo distanciamento entre produtores e pro-cessadores de açaí, ausência de políticas de apoio, dificuldades de acesso a empréstimos bancários e escassez de governança. “Faltam políticas públi-cas também para estimular a inovação e definir a qualidade do açaí. Ninguém sabe hoje dizer o que é um bom açaí”, diz o economista Danilo Araújo Fernandes, professor da UFPA que participou do estudo. “Se houvesse um controle de qualidade mais forte, haveria mais proteção contra a compe-tição desonesta. Uma maior regulação do governo ajudaria a criar marcas locais, definindo lugares de origem, como se faz com o vinho.”

AçAí nA cAIxInhAOs pesquisadores verificaram que o interesse das empresas e produtores por inovações cresceu de 2002 a 2007, refletindo a expansão do mercado, mas caiu de 2007 a 2010, em consequência do aumento do custo da matéria-prima e da crise de liquidez (ver gráfico abaixo). As empresas enfa-tizaram o desenvolvimento de novos produtos, como o açaí liofilizado, o mix de açaí – um sorvete com polpa dessa fruta, pasteurizado e misturado com outras frutas e às vezes com granola – e de energéticos e de suco em embalagens tetrapack.

“Entrei nesse negócio em 2002 e logo vi que agregar valor e criar produtos era a saída”, diz o empresário paraense Bony Monteiro. Empreen-dedor arrojado, ele está implantando novas estra-tégias para transformar um comércio centenário.

Monteiro conta que comprou uma empresa pro-cessadora de polpa, contratou engenheiros para desenvolver máquinas de extração da polpa sem contato manual, depois vendeu a empresa e em 2012 comprou outra, em Igarapé-Miri, um centro produtor de açaí, a 300 quilômetros de Belém.

Durante a safra, saem de lá três caminhões-pi-pa por semana com o açaí que será envasado em embalagens tetrapack em duas fábricas no Rio de Janeiro. “Tivemos muitas dificuldades no início”, ele relembra. “Ao ser envasado, o açaí entupia, azedava, mudava de cor.” Criativo e crítico das atuais formas de produção e comercialização, Monteiro lançou sua marca própria, Bony Açaí, promovida por meio de atletas que ele patrocina, e pretende lançar em breve combinações com outras frutas ou alimentos à base de açaí para serem consumidos entre as refeições.

Na Estação das Docas, ao lado do mercado municipal, uma sorveteria vende sorvetes de açaí e outras frutas regionais como uxi, bacuri e cupuaçu. Um quiosque expõe biojoias – pulseiras, colares, anéis – feitas de jarina, a semente de uma palmeira dura a ponto de ser chamada marfim da Amazônia. Os sorvetes e as bijuterias indicam que a exploração da biodiversidade amazônica ainda depende predominantemente de iniciativas individuais, intuição, sorte e capital privado. n

18% é a atual taxa de lucratividade. em 2002 era de 50%

O SOBE E DESCE DA inOvAçãO

investimentos em design e certificação continuam em alta. variação por item e por ano do Índice de inovação Total (iiT)*

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0

56

44

16

n 2002n 2007n 2010

* o iit rePresenta a relação entre oPortuniDaDes realizaDas e o total De oPortuniDaDes De inovação FOntE naea/ufPa

Produto Processo Embalagem Design Ambiental gestão Marketing Comercialização Certificação

Em 10 anos a cadeia produtiva passou da mobilização coletiva para o salve-se quem puder

iiT (%)

média anual (%)

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PESQUISA FAPESP 203 z 69

quase sem suar sob o forte sol do meio-dia do início de novembro, o maranhense José de Ribamar Cavalcante

Ribeiro apresenta as novas variedades de guaranazeiro (Paullinia cupana) que crescem no campo experimental da Embrapa Amazônia Ocidental em Maués, principal município produtor de guaraná no estado do Amazonas. A Luzeia, um dos cultivares, impressiona pela alta produtividade, elevada resis-tência genética às doenças mais comuns a essa cultura e – uma característica que interessará diretamente aos consumi-dores – pelo teor de cafeína, de 4,6%, considerado alto para o guaranazeiro.

O teor médio de cafeína das varieda-des de guaranazeiro consumidas atual-mente é 3% mais alto que o do café (de 1% a 2%). Além disso, o efeito estimulan-te da cafeína do guaraná pode ser mais prolongado, por causa das ligações com

Pesquisadores pretendem ampliar

produtividade com novas variedades

e ajustes nas técnicas de plantio

luzeia o superguaraná

tEXtO carlos Fioravanti

FOtOs Eduardo cesar,

de Maués, Amazonas

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70 z janeiro De 2013

os taninos. Por sua vez, os taninos res-pondem por 7% do peso seco e ajudam a reduzir os resíduos do metabolismo celular conhecidos como radicais livres, cujo excesso prejudica o organismo.

Nos testes em campo, algumas plan-tas mais produtivas desse novo cultivar, provavelmente por causa do microclima da estação experimental, produziram até 35 quilogramas (kg) de frutos por planta, o que rende até 5 kg de sementes torra-das. A BRS Maués, até agora a varieda-de mais produtiva, lançada em 2000 e bastante cultivada, produz acima de 1,5 kg, podendo atingir até 3 kg de sementes torradas por planta, segundo Firmino José do Nascimento Filho, engenheiro agrônomo paulista que trabalha no me-lhoramento genético dessa espécie des-de 1983 e integra a equipe da Embrapa dedicada ao guaranazeiro.

José Clério Rezende Pereira, fitopato-logista da Embrapa, depois de seis anos de testes intensivos em campo, verificou que a Luzeia apresenta uma resistência elevada a duas doenças causadas por fungos que são comuns no guaranazeiro – a antracnose, que ataca as folhas e reduz a produção de frutos, e o superbrotamento, que deforma os brotos e as flores. Uma característica adicional é uma provável resistência à seca. “Estamos há 20 dias sem chuva”, diz Ri-beiro, o supervisor do campo experimental da Embrapa em Maués, alongando o olhar sobre a terra seca, “e parece que essa va-riedade nem sentiu a estiagem”.

Em cAmPo Em 2014Esse e outros três novos cultivares de guaranazeiro, alguns com resistência ain-da maior a doenças, foram lançados em 2011 para uso no estado do Amazonas. A partir de janeiro de 2013, viveiristas devem começar a produzir as mudas, a serem vendidas a partir de outubro para os produtores e plantadas até maio, na estação chuvosa de 2014. Se tudo correr bem, os frutos pretos que lembram olhos podem começar a ser colhidos três anos depois do plantio, com uma boa produti-vidade a partir do quarto ou quinto ano.

Desde 1976, quando começaram a ava-liar e selecionar os guaranazeiros mais produtivos e resistentes a doenças – em resposta à queda de produtividade na região, causada pelo avanço de pragas –, os pesquisadores da Embrapa formaram um banco de germoplasma com cerca de 300 acessos (geralmente um aces-

so corresponde a mais de uma planta). Desse material, selecionaram os 32 que mais se destacavam e até agora elegeram 19 novos cultivares, avaliados por pelo menos 10 anos em campo e repassados aos produtores a partir de 2000. Os es-pecialistas da Embrapa propuseram uma nova forma de propagação, não mais por sementes, como antes, mas por estacas, retiradas dos galhos das plantas mais saudáveis e produtivas, como forma de reduzir a variabilidade genética, que pode ser prejudicial quando excessiva.

Segundo ele, as variedades que segui-rão para as mãos dos produtores em 2013 devem manter as características apre-sentadas nos testes em campo, já que foram acompanhadas e se mantiveram estáveis durante 35 anos. Os novos cul-

tivares, se os produtores e consumidores os aceitarem, poderão ajudar a recuperar a produção da região, hoje de cerca de 250 toneladas por ano. “Era para ser de mil toneladas por ano”, diz Ribeiro. Ele acredita que esse patamar pode ser atin-gido em três anos, desde que os produto-res adotem variedades mais produtivas e mais resistentes a pragas e aprimorem as técnicas de cultivo, de modo que as plantas possam produzir mais.

Com esse propósito, a equipe do cam-po experimental da Embrapa em Maués promove cursos regulares para mostrar técnicas mais aprimoradas de plantio, adubação e poda aos 2 mil produtores da região, a maioria pequenos, cuja produ-ção não passa de 600 a 800 kg por ano. Em 2011, segundo o IBGE, a produtivi-

A estrela do momentonovo cultivar se destaca entre os já plantados

luzeia outros cultivares

tEOR DE cAFEínA (% sobre o peso seco) 4,6% 3%

PRODuçãO (Kg/planta/ano) 3,62 1,5

PRODutiviDADE (Kg/hectare) 1.200 a 1.500 600 a 750

Pesquisadores também promovem cursos regulares para mostrar aos produtores como aprimorar o cultivo

Fon

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tal

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PESQUISA FAPESP 203 z 71

dade média dos produtores de Maués, Presidente Figueiredo, Itacoatiara e Uru-cará, no Amazonas, foi de 206 kg por hectare (ha) de semente seca, abaixo da produtividade da Bahia, de 408 kg/ha. A Bahia é hoje o maior produtor brasileiro de guaraná (60% da produção nacional, de cerca de 2.500 toneladas por ano), seguida pelo Amazonas (24%) e Mato Grosso (12%). Segundo o IBGE, os fru-tos colhidos são usados na produção de refrigerantes (44%), extratos, xaropes e pó (24,5%), em laboratórios em geral (21%) ou exportados in natura (10,5%).

Firmino conta que ele e sua equipe procuram oferecer alternativas aos pro-dutores, com base nas informações dos

ção, que formará ramos novos. “O ramo novo é que produz, os ramos velhos não produzem mais”, ele insiste. No campo experimental de Maués, apenas com os cuidados básicos e sem irrigação, que os produtores não podem usar, a equipe de Ribeiro colhe pelo menos 9 kg de fru-tos ou 1,5 kg de sementes torradas por planta, “cinco vezes mais que a média dos produtores!” Ribeiro e sua equipe cuidam de 5 mil guaranazeiros adultos em plena produção e 1.036 em início de produção, selecionando as variedades mais promissoras e testando novas téc-nicas de adubação e cultivo. “Já fomos 30 trabalhando em campo, nos anos 1980, mas as vagas não foram repostas.”

Falta consenso também em como se-car e torrar os grãos colhidos. Alguns produtores secam ao sol e torram em fornos, outros adotam o método tra-dicional: em fogões a lenha, em que os grãos são mexidos continuamente, cerca de seis horas por dia, enquanto tostam lentamente. O cultivo do guaraná come-çou em Maués, chamada inicialmente de Luzeia, com os índios Sateré-Maué, que vivem ao longo do rio Maués e seus afluentes. No século XVII, o jesuíta João Felipe Betendorf observou que esses ín-dios, depois de tomarem guaraná, ca-çavam durante dias e sentiam menos fome. Em uma retrospectiva histórica do guaraná, Nigel Smith, da Universida-de da Flórida, Estados Unidos, e André Luiz Atroch, pesquisador da Embrapa Amazônia Ocidental, registraram que o guaraná era usado como fortificante, estimulante ou para tratar febres, dores de cabeça e diarreias durante o período colonial. Em 1872, um médico inglês re-latou no British Medical Journal que o guaraná do Brasil servia para neuralgia e problemas urinários como blenorreia e já era usado com mais frequência na França e na Alemanha.

O guaraná da Amazônia começou a entrar em refrigerantes industrializados e bebidas caseiras no início do século XX e hoje é sinônimo de energético, pu-ro ou batido com leite, frutas ou ovos. Os usos mais recentes indicam que o guaraná ajuda a matar a fome e a perder peso. Uma das poucas fábricas de extra-to de guaraná, usado em vários tipos de bebidas, funciona em Maués e importa matéria-prima de outros estados para complementar a produção local, que já foi a maior do país. n

Os segredos de um bom guaraná: mudas bem tratadas desde o viveiro (acima) produzem cachos carregados de frutos (ao lado) que são torrados lentamente em fogão a lenha (abaixo)

estudos em campo. “Para atingir as ci-fras mais altas de produtividade”, diz ele, “os produtores teriam de dar mais atenção às nossas recomendações”. Ou-tra possibilidade, em fase de avaliação, é o adensamento de plantas, que pode-riam ser plantadas a uma distância de 4 metros entre elas e de 4 metros entre as fileiras, resultando em 625 plantas por hectare, em vez de 5 por 5 metros com 400 plantas por hectare.

JESUítAS, índIoS E médIcoSDesfazer hábitos estabelecidos, porém, não é fácil. Ribeiro conta que muitos pro-dutores veem a planta viçosa e hesitam em fazer a chamada poda de frutifica-

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Cientistas brasileiros desenvolvem droga pioneira

para tratar hipertensão que atinge

até 7% das mulheres gestantes do país

alívio na gravidez

a pré-eclampsia, doença específica da gravidez, se caracteriza pelo au-mento da pressão arterial, inchaço nas pernas e nos pés e presença de

proteína na urina, sintomas que aparecem na segunda metade da gestação. Ela pode evoluir para uma forma grave, a eclampsia, em que a paciente apresenta convulsões. Essa doença é responsável por cerca de 40% das mortes (687 mulheres) decorrentes da gestação e do parto no país que resultaram num total de 1.719 casos em 2010. Estima-se que entre 5% e 7% das grávidas brasileiras desenvolvem a pré-eclampsia e que a eclampsia se manifesta em 1,3 caso para cada mil partos, variando de 0,6 nos países desenvolvidos a 4,5 nas nações em desenvolvimento. Apesar da alta incidência na população, as causas dessas enfermidades ainda não foram bem estabe-lecidas e não existem medicamentos no mer-cado direcionados especificamente para seu tratamento porque os remédios tradicionais podem colocar em risco o desenvolvimento do feto. A dificuldade no tratamento pode ser superada em breve porque um inédito me-dicamento anti-hipertensivo para o período da gravidez desenvolvido por um grupo de pesquisadores brasileiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da em-presa União Química já passou na primeira fase dos testes clínicos.

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“Entre 2009 e 2011, aplicamos a formulação em um grupo de 14 gestantes com pré-eclamp-sia grave, no qual a interrupção da gravidez era recomendada, e vimos que ela melhorou a fun-ção dos vasos sanguíneos, sem ter sido tóxica nem para as mães nem para os fetos”, afirma o médico Robson Augusto Souza dos Santos, professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. A droga é baseada em um peptídeo (fragmento de proteína) produzido pelo próprio organismo humano, a angioten-sina 1-7, que atua no controle cardiovascular, ajudando a dilatar as paredes das artérias. Em grávidas que sofrem de pré-eclampsia há uma redução dos níveis dessa substância no plasma sanguíneo. O próximo passo da pesquisa, pre-visto para o primeiro semestre de 2013, é am-pliar os ensaios para uma amostragem maior, de 100 mulheres, e, depois, envolver outros centros de pesquisa do país e, possivelmente, do exterior – o chamado estudo multicêntrico.

“Imaginamos a conclusão de todos os testes clínicos em dois anos e, numa previsão conserva-dora, o medicamento poderá ser lançado dentro de cinco anos. Esse prazo irá depender da parte regulatória dos órgãos competentes”, diz Santos, que também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Nanobiofarmacêutica (INCT-Nanobiofar), com sede na UFMG. Santos é também sócio-fundador da Labfar, empresa spin-off, originada do mesmo INCT, voltada à

PESQUISA FAPESP 203 z 73

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74 z janeiro De 2013

hipertensão ao fazer as artérias se estrei-tarem, além de estimular a liberação de outros hormônios que elevam a pressão sanguínea. As drogas hipertensivas con-vencionais visam impedir que a ECA que-bre a angiotensina I e tentam bloquear os efeitos da angiotensina II. Assim, agem para inibir o aumento da pressão. A ação do medicamento desenvolvido em Minas Gerais é outra. Ele atua no mecanismo fisiológico da mulher normalizando a concentração no plasma sanguíneo da angiotensina 1-7, substância que tem pro-priedades vasodilatadoras (ver a ação da nova droga no infográfico abaixo).

“Os medicamentos atuais para con-trole da pressão atuam no mecanismo vasoconstritor do sistema renina-an-giotensina e não são endógenos, ou seja, produzidos pelo próprio organismo, mas moléculas feitas em laboratório. Por esse motivo, apresentam efeitos colaterais”, explica o coordenador do INCT-Nano-biofar. “A droga que estamos desenvol-vendo não proporciona esse problema por ser o próprio peptídeo sintetizado por meios bioquímicos, mas com a mes-ma composição do existente no corpo humano.” De acordo com Santos, o me-dicamento, quando finalizado, também poderá ser usado para tratar hipertensão arterial geral. “Estudos prévios mostra-ram que a droga reduziu a pressão ar-terial de ratos hipertensos. O próximo passo será testar em humanos”, diz.

ASSIStÊncIA Pré-nAtAl“A proposta parece boa. A angiotensina 1-7 se constitui em parte ativa do sistema renina-angiotensina, tendo sido demons-trado ser um agente vasodilatador, por-tanto atuando como anti-hipertensivo”, diz o médico José Carlos Peraçoli, pro-fessor do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. “Não existe tratamento que determine a cura da pré-eclampsia, com exceção do fim da gestação. A prevenção da doença é uma das principais metas da assistência pré-natal.”

Até a década de 1980, a existência da angiotensina 1-7 era desconhecida e acreditava-se que o sistema renina--angiotensina era apenas vasoconstritor, ou seja, produzia somente efeitos ma-léficos – como a hipertensão – quando ativado de forma inadequada. Em 1980, no entanto, Santos descobriu, durante

inovação farmacêutica, química, veteriná-ria, cosmética e de equipamentos médicos. Tanto o Nanobiofar quanto a Labfar par-ticipam do desenvolvimento da droga, da mesma forma que a União Química, de capital nacional, que licenciou da UFMG patentes relacionadas ao medicamento.

A angiotensina 1-7, ou, simplesmente, ang-(1-7), é uma substância composta por sete aminoácidos que faz parte de um sistema denominado renina-angiotensi-na (SRA), formado por um conjunto de peptídeos, enzimas e receptores envol-vidos no controle do volume de líquido extracelular e na pressão arterial. Em li-nhas gerais, o controle da pressão arterial em pacientes hipertensos centra-se na angiotensina I, hormônio produzido na circulação sanguínea. Quando o sangue entra pelos pulmões, a enzima conversora de angiotensina (ECA) transforma a an-giotensina I em angiotensina II, enzima apontada como a maior responsável pela

Em 2005, a UFmg licenciou as patentes das formulações endovenosa e oral da nova droga para a União Química

Mulheres grávidas com pré-eclampsia

apresentam redução nos níveis de

angiotensina 1-7 no sangue. Esse

peptídeo, um fragmento de proteína,

possui propriedades vasodilatadoras

como funciona a nova drogaMedicamento vai atuar no mecanismo fisiológico das pacientes, normalizando níveis de uma proteína com função vasodilatadora

A queda nos níveis desse peptídeo, que

é produzido pelo próprio organismo

humano, provoca o estreitamento

dos vasos sanguíneos e o consequente

aumento da pressão arterial

PrESSão normAl hIPErtEnSão

Angiotensina 1-7em pouca concentração

Angiotensina 1-7 vaso comprimido

normalização da pressão

Sangue

trAtAmEnto A nova droga desenvolvida pela Labfar, UFMg

e União Química nada mais é do que uma

versão sintética da angiotensina 1-7. normaliza

as concentrações desse peptídeo no sangue,

reduzindo a pressão arterial das pacientes

Angiotensina 1-7sintética

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PESQUISA FAPESP 203 z 75

angiotensina 1-7. A Labfar também está envolvida em uma parceria internacio-nal, com a empresa austríaca Attoquant, que poderá participar da nova fase de testes da angiotensina 1-7.

A formulação endovenosa foi utilizada nos testes clínicos realizados até agora na fase 2A (com um grupo reduzido de grávidas) e será empregada nos ensaios programados para o início de 2013, com 100 gestantes que sofrem da doença. Pa-ra esses testes, a União Química já apro-vou investimento de R$ 400 mil a R$ 500 mil. A formulação oral já foi testada em camundongos e, a partir de 2013, será administrada em humanos saudáveis e pacientes hipertensos. “O grupo de P&D [Pesquisa e Desenvolvimento] da empre-sa, em Brasília, desenvolveu recentemente cápsulas de angiotensina 1-7 com três do-sagens, de 0,35, 1,75 e 7 miligramas, com assessoria do professor Robson, indicadas para mulheres na pré-eclampsia, quando o quadro é reversível. As pacientes com eclampsia, na fase aguda, precisam tomar a injetável”, diz Giudicissi Filho.

“Essas etapas são necessárias para garantir a segurança no uso do medica-

como inexiste fora do país, o medicamento para a pré-eclampsia deverá ocupar um importante espaço no mercado externo

seu pós-doutorado na Cleveland Clinic Foundation, nos Estados Unidos, que a ang-(1-7) era o principal produto da an-giotensina I. “A primeira demonstração do efeito biológico dessa angiotensina foi feito em um estudo realizado em hi-potálamo e hipófise de ratos, publicado na revista Proceedings of National Acade-my of Science (PNAS), em 1988”, lembra Santos. No ano seguinte, a pesquisadora brasileira Maria José Campagnole-San-tos demonstrou os efeitos cardiovascula-res dessa angiotensina em um rato vivo. Desde então, centenas de artigos já foram publicados sobre o tema.

De volta ao Brasil, o médico vislum-brou a possibilidade de desenvolver um medicamento anti-hipertensivo basea-do na ang-(1-7). A pesquisa começou na UFMG, inicialmente no ICB, e as primei-ras formulações ficaram prontas em 2003. Dois anos depois, a UFMG transferiu as formulações da nova droga, uma endove-nosa e outra via oral, para a União Quí-mica. A empresa licenciou a patente das formulações e passou a integrar a equipe responsável por seu desenvolvimento. O INCT-Nanobiofar já entrou com o pedi-do de cerca de 15 patentes relacionadas à exploração do potencial terapêutico da ang-(1-7), sendo oito já concedidas.

Os recursos financeiros para realiza-ção dos testes clínicos no grupo de 14 grávidas foram aportados pela União Química e pelo Nanobiofar, que é fi-nanciado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). “Recursos do Conse-lho Nacional de Desenvolvimento Cientí-fico e Tecnológico (CNPq) e da Fapemig, além de verba da própria UFMG, foram importantes para desenvolver o concei-to e as formulações da angiotensina 1-7. Essa etapa teve a participação do pro-fessor Ruben Sinisterra Millán, do De-partamento de Química da UFMG”, diz Santos. “Apenas em 2012 investimos R$ 1 milhão no projeto, utilizados na mon-tagem de laboratórios e compra de equi-pamentos”, diz Miguel Giudicissi Filho, diretor médico da União Química.

A Labfar entrou no projeto em 2010 para coordenar os ensaios clínicos e fa-zer a parte analítica da pesquisa. A em-presa tem a divisão Ang-Tec que ofere-ce ao mercado o trabalho de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos baseados na plataforma tecnológica da

Artigos científicos

FERREIRA, A.J.; R.A. SANTOS et al. Angiotensin- (1-7)/angiotensin-converting enzyme 2/mas receptor axis and related mechanisms. International Journal of Hypertension. Publicado on-line em 9 abr. 2012.M. T. SCHIAVONE; R. A. SANTOS et al. Release of vasopressin from the rat hypothalamo-neurohypophysial system by angiotensin-(1-7) heptapeptide. Proceedings of the National Academy of Sciences. v. 85, n. 11, p. 4.095-98. jun. 1988.

mento. Se tudo der certo, essa rota pode-rá ser utilizada em mulheres com risco de desenvolver pré-eclampsia”, destaca Santos. Ele informa, também, que para alcançar com mais facilidade o mercado mundial será importante fechar parce-rias internacionais. “Conversas iniciais com investidores de fora do país estão em andamento com essa finalidade”, diz o pesquisador, sem revelar o nome dos envolvidos. “A ideia é lançar o anti-hi-pertensivo no Brasil e fazer parcerias internacionais para ocupar um impor-tante espaço no mercado externo”, diz Fernando de Castro Marques, presidente da União Química. n*Com colaboração de Dinorah Ereno

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PESQUiSA EMPRESARiAL y

considerada uma das maiores subsi-diárias da companhia fora dos Esta-dos Unidos em produção e vendas, a Johnson & Johnson do Brasil tornou--se também referência em pesquisa e

desenvolvimento (P&D). “Hoje o centro de pes-quisa mundial na linha da saúde da mulher, com-posta principalmente por absorventes higiênicos, é aqui no Brasil, uma decisão tomada pela matriz no ano passado”, diz Samuel Abel Moody Santos, 53 anos, vice-presidente de P&D para a América Latina. O Centro de Pesquisas e Tecnologia (CPT) da Johnson brasileira está instalado dentro de um complexo industrial que ocupa uma área de 910 mil metros quadrados (m²), dos quais 700 mil m² são áreas verdes, em São José dos Campos, a 72 quilômetros de São Paulo. É também no CPT que se concentra o desenvolvimento de produtos de proteção solar para a América Latina, Europa e Ásia – um papel de protagonismo que foi con-quistado ao longo de décadas.

Em 1975, por exemplo, quando Santos come-çou a trabalhar na Johnson após terminar o se-

inovações nas áreas de saúde da mulher

e proteção solar da Johnson & Johnson

são exportadas para o resto do mundo

referência mundial

dinorah Ereno

gundo grau (atual ensino médio) em técnico me-cânico, sua função era projetar máquinas. “Na época, os equipamentos para manufaturar os nossos produtos eram desenhados e fabricados aqui, porque a importação de máquinas tinha um custo altíssimo.” O centro de P&D, que em 2012 completou 40 anos em São José dos Campos, após ser transferido do bairro da Mooca, em São Paulo, não foi no início criado para desenvolver produtos para o mercado brasileiro. Sua função era pesquisar matérias-primas para os produtos conhecidos lá fora que seriam lançados aqui. A empresa chegou ao país em 1933 para suprir o mercado brasileiro com produtos de uso hospita-lar e doméstico, como algodão, gaze, esparadrapo e compressas cirúrgicas.

O absorvente feminino Carefree, por exemplo, tinha como núcleo de absorção uma matéria--prima que até hoje não é fabricada no mercado brasileiro. Os pesquisadores daqui desenvolve-ram um produto com igual desempenho e alguns benefícios adicionais usando matérias-primas totalmente nacionais. O produto hoje é vendido

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Samuel Santos (à direita), vice-presidente de P&D para a América Latina da Johnson, com equipe de pesquisadores em São José dos Campos

na América do Norte, Europa e em toda a Ásia. “Esse desenvolvimento, de certa forma, passou a dar a esse centro credenciais globais que até então não tínhamos”, diz Santos, que, no final do curso de engenharia na Universidade de Mo-gi das Cruzes (UMC), desenhou uma máquina para testar amostras em planta-piloto, o que lhe rendeu um convite para trabalhar no centro de P&D em outubro de 1980.

Em 1994, quando já era gerente de pesquisa da Johnson no Brasil, foi a Xangai, na China, para liderar o desenvolvimento e lançamento de absorventes higiênicos no mercado chinês. Ficou por lá durante um ano e meio, período em que se dedicou ao desenvolvimento do produto, identificação das matérias-primas que seriam utilizadas na sua composição e montagem da fábrica. De Xangai, foi transferido para a sede mundial da companhia em New Brunswick, no estado de Nova Jersey, Estados Unidos. Após mais de 15 anos na matriz, voltou ao Brasil em maio de 2011 para assumir a vice-presidência de P&D para a América Latina. “Nossa pesquisa é

segmentada em áreas”, relata. “São mais de 20 áreas com focos diversos, porque nosso objetivo é ter peritos em cada área.”

Um dos grupos de pesquisa, por exemplo, cha-mado de Ciência do Consumidor, tem como foco identificar necessidades e desejos dos consumi-dores. À frente desse grupo está Rosana Rainho das Neves, 53 anos, gerente sênior de P&D, gra-duada e pós-graduada em engenharia química pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e há 30 anos na empresa. “Eu inau-gurei essa área no Brasil em 1992, quando ainda estava iniciando na Ásia”, diz Rosana. Seu traba-lho tem foco em dois momentos bem distintos do processo de desenvolvimento. Um deles é quando ainda não existe um produto. “Busca-mos entender o consumidor e captar os seus insights para que, junto com os pesquisadores, possamos gerar ideias de novos produtos.” O segundo momento é na fase de desenvolvimen-to, em que são feitos testes dos protótipos com o consumidor até chegar a um produto pronto para ser lançado no mercado.

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prescrição médica, é o segundo maior mercado da empresa no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, onde se localiza a sede da companhia. “A linha de cuidados com a pele, por exemplo, é a que mais vende globalmente”, diz Santos. Em 2011, o faturamento global da Johnson & Johnson Consumo foi de US$ 14,9 bilhões. A companhia é forma-da por mais de 250 empresas que ope-

Depois de estabelecer a área de Ciên-cia do Consumidor, onde ficou por nove anos, Rosana assumiu a gerência de pro-dutos para cuidados com a pele (skin ca-re) e há oito anos retornou para o grupo que ela criou. “Toda vez que temos um novo produto, precisamos saber a im-pressão do consumidor sobre ele e para isso fazemos testes qualitativos e quan-titativos”, diz Rosana, que fez um curso de Master of Business Administration (MBA) de 900 horas em gestão de negó-cios na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em parceria com o Instituto Tecnológico de Aeronáuti-ca (ITA). Os testes internos são feitos a partir de uma base de dados com 1.500 funcionários cadastrados, que participam voluntariamente. Quando a equipe de pesquisa chega a um protótipo de pro-duto que considera ótimo, os testes são feitos com uma base maior de consumi-dores externos, recrutados por agências.

A divisão de consumo da Johnson no Brasil, que inclui produtos para cuidados com a pele, proteção solar, higiene oral, cuidados com bebês e crianças, cuidados femininos e medicamentos isentos de

1 Hélices de um agitador mecânico

2 Avaliação de corantes em laboratório

3 Mechas usadas para testar produtos

4 Condicionador infantil em fase de testes

Samuel Abel moody Santos, vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento para a América Latina

Umc – graduação

rosana rainho das neves, gerente sênior de P&D USP – graduação e pós-graduação ESPm/ItA – MBA

Paula Scarcelli d’oliveira dantas, gerente sênior de P&D da área de cuidados com a pele

USP – graduação Fgv – MBA

Sérgio luiz de oliveira, gerente sênior de assuntos científicos, pesquisa analítica e pesquisa microbiológica

Univap e Faculdade oswaldo cruz – graduaçãoUnivap/Unicamp – mestradoFgv – MBA

José Eduardo Pelino, gerente de relacionamento científico e profissional da área de cuidado oral

Unesp – graduação e mestradoUSP – doutorado Universidade da califórnia – doutorado e pós-doutorado

inSTiTUiçõES QUE FORMARAM PESQUiSADORES DA EMPRESA

ram em 60 países e empregam cerca de 118 mil pessoas. No Brasil são mais de 5 mil funcionários, dos quais 280 traba-lham na área de P&D em toda a Améri-ca Latina – no caso estão incluídos Ar-gentina, Chile, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Panamá, Repú-blica Dominicana, Paraguai, Uruguai, Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, México e Brasil. “Desse total, 200 têm formação superior e 80 são técnicos, dos quais 80% atuam no Brasil”, diz Santos. Farmacêuticos e engenheiros químicos são as duas principais formações acadê-micas, mas biólogos, químicos, físicos, médicos e dentistas também estão entre os pesquisadores. Cerca de 30% deles têm mestrado e 10% doutorado.

O grupo de Rosana tem um canal dire-to com o grupo de desenvolvimento de produtos, do qual faz parte Paula Scarcel-li D’Oliveira Dantas, de 37 anos, gerente sênior de P&D da área de cuidados com

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a pele e graduada em farmácia bioquími-ca na USP. “Trabalhamos desde o ponto zero do projeto até o desenvolvimento do produto”, diz Paula, que passou por duas grandes empresas farmacêuticas e por uma fornecedora de matérias-primas para medicamentos e cosméticos antes de entrar na Johnson em 2005. “Desde que estou aqui tive muitas oportunidades de aprendizado.” Durante dois meses, ela trabalhou em um projeto de cosmetolo-gia em um grande centro de pesquisa da empresa perto de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. “Depois disso fiquei mais um mês no mesmo local co-mo shadow [sombra] de uma pessoa com um alto cargo gerencial para me inspirar nos meus projetos”, diz Paula. Como ela queria se aprofundar na área de consumo, fez um MBA em marketing na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Além disso, fez uma especialização em cosmetologia, na área de cabelo, no Conselho Regional de Farmácia, e um curso de avaliação em toxicologia de cosméticos na Bélgica.

grUPo mUltIdIScIPlInArA avaliação de segurança e eficácia dos produtos desenvolvidos pelo CPT é feita pela equipe de Sérgio Luiz de Oliveira, de 45 anos e há 27 anos na companhia, que ocupa o cargo de gerente sênior de assuntos científicos, pesquisa analítica e

Além da equipe interna de P&D, a John-son tem parcerias com USP, Unicamp, ITA, Univap, Instituto Nacional de Pes-quisas Espaciais (Inpe) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Na área de P&D também se encontram pesquisadores com extenso currículo aca-dêmico que fazem a ponte com professo-res de odontologia e profissionais da área, como é o caso do dentista José Eduardo Pelino, de 42 anos, formado pela Univer-sidade Estadual Paulista (Unesp) de São José dos Campos, onde também fez mes-trado na área de microbiologia com fontes luminosas, como laser e LEDs, para pre-venção de cáries, doutorado na Universi-dade da Califórnia em San Francisco, nos Estados Unidos, com foco nas proprieda-des ópticas de tecidos dentários, pós-dou-torado na mesma universidade em clarea-mento dental, além de um doutorado na USP com bolsa da FAPESP. Além de ter consultório, Pelino deu aulas de mestrado na USP sobre laser em odontologia e nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e foi diretor e coordenador do curso de pós-graduação em odontologia na Uni-versidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). Na Johnson desde 2009, Pelino ocupa o cargo de gerente de relacionamento científico e profissional. “Todos os produtos de cuida-do oral que são distribuídos pela América Latina passam pelo meu crivo científico”, diz Pelino, que ressalta: “Várias linhas de pesquisa que conduzi ao longo da carreira acadêmica hoje consigo usar na indústria como suporte para produtos”. Os estu-dos na área de cuidado oral contam com a colaboração de especialistas em óptica da Univap e do Instituto de Química da USP de São Carlos. n

“hoje uso como suporte para os produtos as várias linhas de pesquisa que conduzi na academia”, diz o dentista José Eduardo Pelino

pesquisa microbiológica de P&D. “Como as análises feitas envolvem a parte quí-mica, microbiológica e biofísica, o nosso grupo de pesquisa é multidisciplinar”, diz Oliveira, que começou na empresa como estagiário na área de P&D, após terminar o curso técnico em química. Na equipe formada por 30 pessoas encontram-se biólogos, químicos, farmacêuticos, mate-máticos e biofísicos. “Temos de garantir que a fórmula que vai para o mercado consiga suportar todas as variações cli-máticas após o lançamento”, diz. Oliveira cursou matemática na Universidade Vale do Paraíba (Univap), que tinha um con-sórcio com o ITA, e química na Faculdade Oswaldo Cruz de São Paulo, além de mes-trado na Univap, também uma parceria com a Unicamp, na área de bioengenharia, e MBA na FGV em gestão empresarial.

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hUmAnIdAdES OCUPAçãO TERRiTORiAL y

Desenho explica como levantar uma fortaleza. Exercício de José nunes da Costa, 1761, suposto discípulo da Academia da Fortificação de Lisboa

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PESQUISA FAPESP 203 z 81PESQUISA FAPESP 203 z 81

Livro mapeia o papel dos

engenheiros militares portugueses

no processo de ocupação do território

engenho e arte no

brasil colonial

Durante a expansão colonial portuguesa nos sécu-los XV e XVI a figura de proa foi o cosmógrafo, responsável pelas cartas náuticas que conduziram a esquadra lusa por mares nunca dantes navega-dos. Na ocupação do território, o papel de desta-

que coube ao engenheiro militar que projetou fortificações, planejou cidades e mapeou as novas fronteiras da metrópole que, no caso do Brasil, garantiram também a posse de uma área além daquela convencionada pelo Tratado de Tordesilhas.

A idealização desses projetos – o desenho – foi objeto de pesquisa de doutorado de Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Univer-sidade de São Paulo (USP). O estudo exigiu uma década de investigação em arquivos portugueses e brasileiros, análise detalhada de cerca de mil documentos e uma ampla pesquisa sobre a formação dos engenheiros. Os resultados, reunidos no livro Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822), editado pela Edusp com o apoio da FAPESP, é um belíssimo retrato do engenho e arte portugueses no pro-cesso de ocupação da colônia. “Os 247 engenheiros militares que atuaram no Brasil colonial não se limitaram à constru-ção de sistemas de fortificações. Eram homens polivalentes:

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fizeram igrejas, palácios de governadores, casas de câmara e cadeia, além de projetar estradas, pontes, cais, portos, aquedutos e hortos botâni-cos”, conta Beatriz.

Os engenheiros militares eram treinados para manipular com grande habilidade sua ferramenta de trabalho. “A cartilha básica do arquiteto e do engenheiro, desde os tempos de Vitrúvio [arqui-teto e engenheiro romano do século I a.C.], ensi-nava que o desenho era um instrumento eficiente para demonstração da obra a realizar-se, bem como para a visualização prévia do conjunto, permitindo antever e corrigir os erros antecipa-damente”, ela diz. A concepção prévia do projeto também permitia acomodar conveniências, orça-mentos e materiais disponíveis no local. “Todos os projetos eram feitos em duas vias: uma para orientar o trabalho de empreiteiros e oficiais nos canteiros de obras, outra para a avaliação dos conselhos de Guerra e Ultramarino, criados a partir da Restauração, em 1640”, ela registra. Parte dos documentos destinados aos conselhos foi preservada na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico Ultramarino e em outras instituições oficiais. Muitos deles compõem o acervo icono-gráfico do livro.

Os desenhos eram artefatos pragmáticos, sub-metidos à razão de Estado. “Eles revelam e ao mesmo tempo ocultam, na medida dos interesses em jogo”, sublinha Beatriz. Deixam claro, em sua avaliação, o papel de “mediador” das ações ofi-ciais da Coroa que engenheiros militares desem-penharam no processo de colonização do Brasil.

a ciência do desenho orientou a prática ofi-cial. A partir de 1573 a Coroa passou a in-vestir na formação de fidalgos e técnicos,

preparando-os para liderar “seus desígnios de conquista”. Criou, inicialmente, a Escola Particu-lar de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira, restrita à elite. Após a Restauração, os engenheiros pas-saram a ser recrutados entre os mais talentosos membros da Infantaria do Exército português, com a missão adicional de substituir profissio-nais estrangeiros então contratados a preço de ouro. “Eram homens eruditos e diferenciados, homens de campo e de gramática”, descreve Bea-triz. Aritmética, geometria, trigonometria, óptica e astronomia eram conhecimentos indispensáveis. “A arquitetura militar era uma ciência e os enge-nheiros militares versados na sciencia e pratica da profissão, que serviam como braço direito da Coroa em tempos de paz e de guerra.”

No final do século XVII foram criadas aulas de arquitetura militar também nos principais centros urbanos brasileiros – Rio de Janeiro, Salvador, Re-cife e Belém –, que acabaram por se tornar um dos

247 engenheiros militares construíram fortificações, igrejas,

palácios, portos, entre outros

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principais vetores de irradiação da cultura arqui-tetônica e urbanística erudita do Brasil Colônia, antes mesmo da criação da Escola Real de Ciên-cias, Artes e Ofícios (1816) ou da Academia Real de Belas Artes (1826). As aulas eram ministradas pelo engenheiro-mor do reino ou pelo engenhei-ro-diretor de uma província, acompanhado de um professor assistente, para um número nunca maior do que 12 jovens da estrutura do Exército, com especial talento para a profissão.

A autorização para a construção de uma obra pública obedecia a um longo ritual. O governa-dor das armas da província ou o capitão-general das capitanias do Brasil convocava engenheiros para fazer a planta e orçamento que eram sub-metidos ao rei por intermédio do Conselho de Guerra e Ultramarino que ouvia o parecer do engenheiro-mor do reino. Aprovado o projeto, o governador convocava engenheiros e o vedor--geral – representante da Fazenda Real – para que a contratação de empreiteiros e mestres de ofícios e o exame da capacidade dos fiadores in-dicados pelos empreiteiros.

1 A cidade de Salvador, concebida por Miguel de Arruda e construída por Luis Dias (1549)

2 Planta e perfil do Forte Príncipe da Beira. Original: Mapoteca do itamaraty-RJ

Apesar dos trâmites do processo de aprovação de uma empreitada pública, o número de engenhei-ros disponíveis era inferior à demanda, sobretudo porque, na ausência de arquitetos, eles acumula-vam também tarefas civis, como a de erigir pontes, estradas, igrejas etc. “Além disso, eram autores de projetos de boa parte das novas vilas e cidades fun-dadas oficialmente pela Coroa, principalmente na metade do século XVIII e em áreas de fronteiras, e responsáveis pelo mapeamento do território. Não há dúvida de que tais profissionais foram os verdadeiros braços direitos do rei no ultramar”, comenta Beatriz.

mapear o território, ela enfatiza, signifi-cava conhecer, domesticar, conquistar e controlar, dentro dos limites convencio-

nados pela Linha de Tordesilhas. “Os resultados favoráveis para os portugueses não foram fruto da divina providência, mas da previdência da Coroa, que, desde 1792, se munira dos dados necessá-rios para formular uma estratégia de negociação com Castela, objetivando legitimar território invadido para além da fronteira convencionada de Tordesilhas. Os portugueses saíram na frente e desenharam mentalmente e materialmente o território, cuja posse queriam oficializar.”

Decifrando desenhos, aquarela e maquetes, o livro Desenho e desígnio expõe um lado até então ensombreado da relação entre a Coroa portuguesa e a colônia brasileira. “O livro mostra o modo como as grandes linhas estratégicas da política colonial portuguesa eram definidas para o Brasil e aplica-FO

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A “desordem” na ocupação do território re-fletiria outra ideia: a da desordem no processo de colonização, realizado por indivíduos degra-dados. No Império Português – “o mais antigo da Idade Moderna, o primeiro bem organizado segundo critérios de organização e administra-ção”, sublinha Rafael Moreira, da Universidade de Coimbra, principal referência de pesquisa da autora em Portugal – a circulação não era livre. “Imperava a mais estrita vigilância e um rígido controle de pessoas e bens”, ele afirma em seu texto de apresentação do livro. Os não portu-gueses, por exemplo, tinham de aportuguesar--se antes de se aventurarem no Novo Mundo. “Aportuguesar-se era, muito simplesmente, jurar obediência ao rei de Portugal, falar português, ser católico, seguir os costumes básicos portugueses e, de preferência, integrar-se bem na sociedade casando com uma portuguesa e fazendo parte de alguma instituição de solidariedade social, como a Santa Casa da Misericórdia ou uma ir-mandade religiosa.”

No Oriente, nas ilhas Atlânticas, na costa afri-cana ou no Brasil, esperava-se deles um compor-

mapear o território significava conhecer, domesticar, conquistar e controlar nos limites de tordesilhas

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das com o uso de recursos técnicos como a carto-grafia, os planos gerais de urbanização, projetos urbanísticos e de fortificações”, diz Nestor Goulart Reis Filho, da FAU, orientador da tese de doutora-do de Beatriz. “Políticas com esses objetivos não poderiam ter sido aplicadas sem a presença dos engenheiros militares portugueses e dos oficiais europeus a serviço de Portugal”, afirma Reis Filho.

e le próprio contesta, desde 1964, por ocasião de sua livre-docência, a tese da “desordem” portuguesa no planejamento das cidades. “As

normas disciplinadoras de construção e ampliação de cidades e vilas começaram a ser aplicadas no sé-culo XVI. Salvador foi fundada em 1549, com um traçado de alguma regularidade geométrica. Paraíba, hoje João Pessoa, foi fundada em 1580, com traçado regular. São Luís do Maranhão (1615), Taubaté (1645) e Itu (1657) também atendiam a norma desse tipo”, diz. “Graças à atuação dos engenheiros militares, na segunda metade do século XVIII já se registra es-forço para impor normas urbanísticas a um número grande de povoações no Brasil, inclusive esquemas referentes às fachadas das edificações.”

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de sentido da história.” A autora, segundo Morei-ra, teria sido perspicaz o bastante para “escapar da onda antilusitana e italocêntrica”.

Na avaliação de Iris Kantor, do Departamen-to de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), o livro é a sistematização “exemplar” do conhecimento que andava disperso em arquivos nacionais e estrangeiros, nos livros raros e nas monografias defendidas nas últimas três décadas, tanto no Brasil como em Portugal, ela sublinha. Desenho e desígnio transcreve quase toda legislação sobre a profissionalização dos engenheiros militares portugueses, documenta a composição das bi-bliotecas militares e inventaria minuciosamente a produção de manuais de arquitetura militar, a maior parte deles ainda inéditos e à espera de novos pesquisadores. “Com sensibilidade, Bea-triz aquilata o peso dos modelos teóricos inspi-rados nos regimes estéticos europeus; chamando a atenção, porém, aos processos de transmissão dos saberes apreendidos a partir da experiência direta vivida no terreno”, diz Iris. “De seu estudo depreendem-se as transformações e adaptações da paisagem urbanística portuguesa ao univer-so americano: os paralelismos, as homologias e as hibridações que resultaram dos desafios de ocupar, apropriar e defender um território de vastíssimas dimensões”, conclui. n

tamento digno à altura de seu juramento. Essa coesão, segundo afirma o pesquisador português, era garantida por uma instituição de má fama, o Santo Ofício da Inquisição. “Longe de ser o órgão de tortura que se pensa ou o famigerado e maca-bro instrumento de perseguição aos judeus, he-reges e desviantes sexuais, a Inquisição era, em princípio, um complexo mecanismo que zelava pelo correto comportamento, a homogeneidade dos costumes e a uniformidade ideológica da população: pela unidade do povo, em suma”, es-creveu Moreira no capítulo de abertura do livro.

o resultado dessa “onda antilusitana”, na avaliação de Moreira, compromete tam-bém a pesquisa da história da arte do Brasil

colonial. Ele lamenta que estudiosos brasileiros prefiram, muitas vezes, buscar a origem da arte brasileira na Itália, por exemplo, rejeitando a in-fluência lusa. “Penso que é um claro problema de rejeição. Portugal é hoje um pequeno país em profunda crise – quando no século XVI dominava o mundo! – diante de vizinhos muito mais ricos e poderosos, mas que nem sequer existiam como Es-tado. É claro que satisfaz muito mais o próprio ego ir buscar as raízes nestes do que naquele, mesmo incorrendo no mais total anacronismo. Mas essa é uma questão típica do Novo Mundo (encontrei a mesma atitude nos EUA): uma completa ausência

1 Exercício de geometria prática (bico de pena) da aula militar da Bahia, 1779

2 igreja n. Sra. da Candelária

3 Projeto do Quartel da Tropa da Fortaleza de Santa Cruz de Anhato-mirim, de José da Silva Paes, datável de c. 1747

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Obras do criador de

Brasília foram analisadas

em estudos

niemeyer

asimplicidade aparente das obras de Oscar Niemeyer (1907-2012) esconde o trabalho árduo do arquiteto e suas muitas reflexões sobre o fazer arquitetôni-co. A compreensão desse percurso exige o olhar

experiente e a análise aprofundada. Para dar conta dessa complexidade, que o mestre gostava de minimizar em suas de-clarações, muitos pesquisadores se debruçaram para entender como funcionava o universo personalíssimo de Niemeyer. O resultado desses esforços deu origem a uma série de estudos feitos por acadêmicos que se dedicaram a contextualizar as curvas e abóbadas na história da arquitetura, concluindo que poucos criadores mudaram tanto a sintaxe da profissão quanto Oscar Niemeyer. Pesquisa FAPESP reúne alguns dos trabalhos mais representativos sobre o mestre.

Tarefa que o próprio arquiteto deixou para os colegas. “Quando dou uma aula, declaro logo que não quero influenciar ninguém. Conto meus trabalhos, as dificuldades que encon-trei, minha maneria de agir na arquitetura e comigo mesmo. O resto é com eles”, afirmava. O recado foi compreendido nas universidades. Um dos mais prolíficos estudiosos do mestre é Roberto Segre, professor da Universidade Federal do Rio B

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no foco dos acadêmicos

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1 Colunas do Palácio do Planalto em Brasília

2 Centro Cultural Oscar niemeyer, em Astúrias, Espanha

3 Edifício Copan, centro de São Paulo

de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outros estudos, Paradojas estéticas de um Niemeyer definitivo (2008). “Ele reúne em si os princí-pios da lógica estrutural de Le Corbusier, a importância da natureza e da paisagem, jun-to com a significação da história e da tradi-ção que se complementa com a necessária racionalidade para resolver os problemas da obra de arquitetura. Após estudar o terreno, o custo, os materiais e a relação com o entorno urbano ou natural surge a ideia, a proposta inovadora final que soma intuição à racio-nalidade”, escreveu Segre. “Ele reinventou a arquitetura moderna.”

o professor Julio Katinsky, da Faculdade de Arquitetura e Urbanis mo da Univer-sidade de São Paulo (FAU-USP) e au-

tor de Caminhos do desejo: desenhos de Oscar Niemeyer na FAU-USP (2007), concorda que a trajetória do arquiteto brasileiro transcende as limitações internas e externas do fazer arqui-tetônico. “Não faltam nos ensaios de Niemeyer observações sobre aquilo que entende por be-leza e as tarefas que se impõem aos arquitetos contemporâneos. Mas, como já acentuamos, não acharemos nunca uma definição válida para todo o sempre no seu conceito de beleza”, observou no estudo Técnica e arte na obra de Niemeyer (2007). “Por outro lado, sua obra de arquiteto, a par de revelar uma notável coe-rência desde as obras anteriores a Pampulha, mas que depois desta nos mostram que nelas já estava em germe o arquiteto futuro, nos revela

também um arquiteto que, ao longo de toda sua vida, soube sempre incorporar criativamente as inovações de seu tempo, num processo de autocriação e renovação permanente, desde suas primeiras obras publicadas até aquelas que estão saindo hoje de seu escritório.”

O tema da recorrência também chamou a atenção de Edson Mahfuz, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor de O clássico, o poético e o erótico: método, contexto e programa na obra de Oscar Niemeyer (2011). No artigo “Cinco razões para olhar com atenção as obras de Oscar Niemeyer”, o pesquisador analisa os principais traços da arquitetura do criador de Brasília. “Uma das características mais mar-cantes da obra de Niemeyer, que o diferencia do que fazem 99% dos demais arquitetos, é possuir forte identidade formal. Essa qualida-de deriva da presença de estruturas formais claras como base da organização dos seus pro-jetos, da utilização de formas elementares na configuração dos seus elementos constituin-tes e do fato de que o número de elementos em seus projetos é sempre limitado”, escreve Mahfuz. “Essas características definem uma obra altamente sintética, fácil de entender e de memorizar – por isso de alto poder sim-bólico – que nunca cedeu à tentação de fazer projetos excessivos em uma época classificada por alguns como neobarroca”, avalia.

Revisitar suas obras seria uma das virtu-des de Niemeyer, segundo o professor. “Em-bora muito se fale sobre a originalidade das

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Uma das características que marcam a obra de niemeyer, que o diferencia de 99% dos arquitetos, é possuir forte identidade formal

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s concepções de Oscar Niemeyer, um exame detalhado da sua obra é suficiente para de-monstrar que seu traço característico é a re-corrência, a reutilização de soluções próprias ou de outros arquitetos, como foi o caso com a obra de Le Corbusier no início de sua car-reira. Como todo artista que se preze, Nieme-yer foi lentamente desenvolvendo um modo próprio de resolver programas arquitetôni-cos, ampliando seu repertório, adaptando e reciclando soluções já utilizadas”, analisa. “A obsessão pela originalidade implica que se espera da arquitetura de Niemeyer ino-vação constante, e em todos os níveis. Mas em função do caráter evolutivo, sua obra é previsível e facilmente reconhecível. Longe de ser um defeito, isso me parece ser uma das suas virtudes. Embora tenha dito que seu objetivo é causar espanto, o encontro com a maioria dos seus conjuntos nos transmite a sensação reconfortante de reencontro com algo já conhecido”, observou Mahfuz.

Esse sentimento nascido de formas ar-quitetônicas foi examinado, em outro regis-tro, pelo antropólogo Lauro Cavalcanti, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), que inovou ao analisar os projetos de Niemeyer por um prisma que reúne arquite-tura, estética e sociedade, como em A doce revolução de Oscar Niemeyer (2007). “Todo arquiteto em fase madura revisita alguns de seus temas principais. Niemeyer o faz em temas como abóbadas, passeios arquitetô-nicos e leveza estrutural. Mas ele sempre surpreende com soluções novas, capaz de recriar linguagens, no que é único e raro. Há nele uma coerência na diversidade das várias fases, aliando estrutura e arquitetura em favor da forma”, analisou.

coerência que levou Carlos Dias Comas, professor da UFRGS, a analisar em O direito à diferença (2007) como bases,

coberturas, curvas, clareiras foram utilizadas pelo arquiteto, exemplos de que Niemeyer ampliou o vocabulário e a sintaxe da arquite-tura moderna. “A curva para Niemeyer não é episódica ou esporádica, não se une à efeme-ridade ou casualidade da compartimentação em debate com a permanência da estrutura ortogonal. A curva pode dispensar a reta, so-brepujá-la, equilibrá-la, mas sequer aparecer. Além de valorização igual de extremos opos-tos, a ambivalência é também ambiguidade. Os interstícios entre o projeto completamente curvo e o totalmente reto comandam a aten-ção”, afirmou. A genialidade das apropriações e soluções, porém, nem sempre o deixa livre das críticas. “Por volta de 1970, Brasília vira

o símbolo de tudo o que parecia ser errado com a arquitetura moderna, condenada por elitista, frívola, superficial, formalista e desu-mana como o autor de seus palácios”, escre-veu. “A recuperação de seu prestígio começa em 1990, acompanhando, de algum modo, a recuperação da própria arquitetura moderna e o seu entendimento como polifonia, em que há lugares para o ascetismo e a diversificação formal”, pondera Comas.

Para Cêça Guimaraens, professora da Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, a polifonia é notável, mas passou a se repetir nos seus gestos arquitetônicos nas últimas décadas de sua vida, mais do que o desejável. “É preci-so reconhecer que, desde os desconcertantes volumes dos Centros Integrados de Educa-ção Popular (Cieps), o arquiteto prossegue a redesenhar as próprias e insólitas formas”, afirma em Sobre o novo em Niemeyer (2007).

Autora do Guia de obras de Oscar Niemeyer: Brasília 50 anos (2010), Sylvia Ficher, pro-fessora da Universidade de Brasília (UnB) , também questionou os projetos finais, mui-tos dos quais vê como “programas inúteis ou superdimensionados”. Tampouco aceita a li-berdade dada a Niemeyer para intervir na área tombada de Brasília “com resultados questio-náveis”. “Em geral, um arquiteto intervém na obra de outro. Niemeyer está intervindo negativamente em sua obra. Mas como afir-mar que, no futuro, Brasília vai se ressentir de ter tantas obras suas?”, pergunta-se, de certo modo, antecipando a resposta. n carlos haag

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neldson marcolin

Há 110 anos profissionais da ciência

e amadores criavam a Sociedade

Scientifica de São Paulo

mEmórIA

cientistas e diletantes

Durante os primeiros anos do século XX surgiu em São Paulo uma associação entre cientistas profissionais e amadores com a intenção de discutir e difundir

temas científicos. Foi em uma reunião na casa de Edmundo Krug, botânico e professor do Colégio Mackenzie, que se decidiu criar a Sociedade Scientifica de São Paulo em 10 de junho de 1903. “Foi um dos primeiros movimentos de cientistas do país que não era exclusivo da medicina e da engenharia, com características de juntar todas as ciências em uma única instituição”, diz o físico e historiador da ciência Thomás Haddad, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP Leste).

Na época, São Paulo tinha o Instituto Histórico e Geográfico, a Sociedade de Medicina e Cirurgia e a Sociedade de Agricultura, Comércio e Indústria. A Sociedade Scientifica surgiu num momento em que as fronteiras entre as comunidades ainda não estavam completamente estabelecidas. Isso se refletiu na composição da nova instituição, fruto da iniciativa de cientistas e “alguns diletantes”, como Krug chamava os interessados em ciência que não eram cientistas profissionais.

Entre os primeiros a formar a sociedade, além de Krug, estavam os botânicos Alberto Loefgren e Gustavo Edwall, da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, Vital Brazil, diretor do Instituto Soroterápico do Butantan, Job Lane, professor de biologia, Antonio Barros Barreto, engenheiro e professor da Escola Politécnica, Paulo Florence, professor particular, e Erasmo de Carvalho, professor de literatura do Mackenzie. Mais tarde uniram-se a eles Adolfo Lutz, médico, bacteriologista e entomólogo, Victor Dubugras, engenheiro e professor da Poli, e Belfort Mattos, futuro chefe do Serviço Meteorológico de São Paulo. Outras personalidades tornaram-se membros efetivos ou correspondentes, como Oswaldo Cruz, Emílio Goeldi,

1 Artigo de Lutz em alemão sobre insetos hematófagos, de 1905, e homenagem da sociedade a ele

2 nota de Splentore em italiano sobre toxoplasma, de 1908. na época ele ainda não havia nomeado o microrganismo

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citado na literatura científica. O médico italiano Alfonso Splentore, então trabalhando em São Paulo, publicou em 1908 uma nota com a primeira descrição do microrganismo toxoplasma, ainda sem esse nome. Também foi republicada uma série escrita pelo artista e inventor Hercule Florence sobre sua viagem exploratória do rio Tietê ao rio Amazonas, que já havia saído pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro anos antes.

Na década de 1910 a instituição minguou. “O último registro que encontrei foi uma nota de convocação no jornal O Estado de S. Paulo, em 1917”, diz Haddad. As razões, segundo ele, podem estar exatamente no enciclopedismo e no diletantismo da maioria de seus membros, que se tornaram inaceitáveis com a crescente especialização do campo científico. Em 1916 foi criada a Sociedade (e, partir de 1921, Academia) Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro, seguindo os modelos das centenárias academias de Paris e de Lisboa, com seções específicas e feitas por e para cientistas.

Euclides da Cunha e até políticos do Partido Republicano Paulista.

A missão da Sociedade Scientifica era melhorar o conhecimento da sociedade sobre descobertas científicas, lutar pelo ensino de ciências nas escolas, constituir uma boa biblioteca e até montar um museu. Apenas a biblioteca chegou a ser formada. Nos primeiros anos da sociedade havia conferências públicas em salas alugadas ou emprestadas. Em 1904 Vital Brazil, por exemplo, deu uma palestra sobre soro antiofídico, Belfort Mattos fez um relato sobre a influência das manchas im

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Primeira edição da revista, que durou até 1913. à direita, desenho retratando Hercule Florence, homenageado com a republicação de textos sobre sua viagem do rio Tietê ao rio Amazonas

solares no clima e Leopoldo de Freitas falou sobre a alma russa. “As conferências tinham um caráter assumidamente enciclopédico e eram acompanhadas por um pequeno e eclético público”, conta Haddad, que pesquisou o tema.

Em 1905 foi criada a Revista da Sociedade Scientifica de São Paulo, com circulação intermitente, que durou até 1913, e abordava assuntos muito variados. Alguns artigos publicados se tornaram referência. Para o primeiro número, Lutz escreveu, em alemão, um estudo sobre insetos dípteros hematófagos que até hoje é

Foto que compõe estudo do botânico Alfredo Usteri sobre coníferas, de 1905. é um dos raros textos ilustrados da revista

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a Corporação se erguia, vista do canto de rua onde ele se encontrava agora, como o maior edifício da cidade ilimitada, todas

as suas luzes acesas, partículas luminosas de ala-ranjado contra um fundo cinzento. Na verdade, chamar de cinzento aquele céu era condescender em usar uma cor conhecida para qualificá-lo: sua indefinição cromática era muito mais híbrida. Ao olhar para o edifício, na verdade, ele já se sentia fatigado e oprimido, com o esforço de manter a cabeça esticada para dar conta de sua altura, a imponência como uma espécie de intimidação maciça que, pelas dimensões espetaculares e as luzes, deixava o espectador, qualquer bicho humano minúsculo, indeciso entre o deslum-bramento e a hostilidade. Ele se esgueirou para um canto mais escuro da rua, como se precisasse do conforto de alguma coisa furtiva, escura, para não se sentir tão pequeno.

Desde a demissão, estava assim, sempre pro-penso a andar por ruas de pouco trânsito ao sair de casa, quando saía, quando os ruídos lá fora não eram tão assustadores, sugerindo lutas titâ-nicas entre entidades maquinais que produziam guinchos de acabar com qualquer tímpano e um fragor de aviões em queda. A demissão se dera por causa da idade, supôs, depois de uns risinhos e sinais de cabeças incrédulos, sempre silencio-sos, de outros funcionários, quando ele arriscou uma queixa. Todos inteiramente submetidos, fi-cavam satisfeitos em serem cúmplices com essas decisões de cúpula e se divertiam sempre com a infelicidade dos demitidos, mantendo um mu-tismo cheio de superioridade. Sem mulher, sem filhos, os dez anos que lhe restavam em hipóte-se otimista seriam passados ao lado de um gato, que seria trocado por outro e por mais outro, numa rua de onde as últimas árvores já teriam sido arrancadas.

Havia tempos tudo lhe doía: a região lombar, os calcanhares, o pescoço, os braços, e seus mo-vimentos haviam começado a ser mais lentos,

minuciosamente pensados, como se o chão con-tivesse hieróglifos que precisassem ser lidos com cuidado para que não caísse. Esse olhar cabisbai-xo lhe dava uma forma de conhecimento nova, muitas pernas e pés, sapatos e vozes com caras correspondentes apenas supostas, e os quadrados do calçamento entremeados de capim, alguma barata morta, restos de comida, latas de cerve-ja, sombras de esguelha, subiam até seus olhos junto com mensagens inscritas numa língua que acreditava estar começando a decifrar. Erguer a cabeça e encarar o que restara da cidade às vezes parecia requerer um esforço sem tamanho, e ele não queria ver o que sabia que veria.

Alguma coisa sucedera lá, no edifício, que o decretara inexistente. No trabalho, tinha uns im-pulsos erráticos de sociabilidade que deixavam alguns de seus colegas constrangidos, sentia-se sempre menos limpo do que era exigido, mais pesado, visceral, sem aquele ajustamento níveo e fácil dos outros. Não medira palavras, mesmo assim, não controlara adequadamente seus im-pulsos? Onde teria errado? Qual fora a infração, exatamente? A idade não explicava tudo, outros sexagenários eram mantidos em funções espe-ciais, mas ele, sempre ele, tinha reservas à filo-sofia da Corporação, isso era sentido com toda certeza. Mesmo que não as expressasse, mesmo que fosse agradável e submisso o quanto lhe era possível, o agrado e a submissão não eram intei-ros, não representavam a sujeição ideal desejada.

Sempre assim: alguns quarteirões percorridos e era voltar para casa. Voltava, os calcanhares late-jando, pressa de abrir o portão, de se deparar com a varanda familiar. As luzes da Corporação não saíam de sua vista, nem mesmo ao fechar a janela de seu quarto – umas frestas que nunca pudera tapar deixavam entrar aquele alaranjado-ouro intenso onipresente lá fora, perturbavam o seu sono povoado de espectros que desfilavam inces-santes, mutáveis, na tela de seus olhos fechados. Eram luzes que o queriam, que o exigiam insone.

conto

o lugarchico lopes

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chico lopes é autor de três livros de contos e seu romance de estreia, O estranho no corredor, foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2012.

rosto o tempo todo, e um escrúpulo fazia com que ele não a olhasse diretamente. Precisava de véus, ainda que não os tivesse, precisava evitar qualquer violação do mundo. Perguntou se ele gostava de música e sentou-se ao piano para ar-ranhar algo que talvez fosse um dos improvisos de Schubert.

A decisão, disse ela depois, era a única possí-vel para quem, como eles, só podiam infringir, e ele compreendeu. Ela pegaria em sua mão, se ele tremesse. O lugar de que ela lhe falou estava repleto de pessoas que ele nunca vira, mas que haviam morado ali, muitos anos, na vizinhança ou pouco mais além, sempre invisíveis, empare-dadas, ou sem se olharem pelas poucas ruas que lhes restavam para percorrer, e lá estariam todos juntos, protegidos por uma invisibilidade ainda maior, numa floresta com exemplares sobrevi-ventes de animais extintos e de arvoredo intei-ramente fechado. Ele beijou a mão longa, ossuda.

Sentaram-se num canto escuro entre escuri-dões, como se ela soubesse o ponto exato onde as luzes do edifício não chegariam pelos restos da janela, com os farrapos de uma persiana es-talando ao vento noturno. O gato subiu no pa-rapeito, miou, e a mulher fez um “xiu”, a que o bicho obedeceu. Ficou olhando-os longamente. Depois, despedindo-se, saltou sobre um telhado próximo e foi tragado pela noite que se incumbi-ria de conduzi-lo naturalmente a algum corpo de gata ou a alguma cozinha devassada.

Certa manhã encontrou a geladeira desprovida de uns restos de comida que o vinham sustentan-do, e, achando num canto uma lata de sardinha com óleo para o terceiro gato daquele ano lam-ber, achou que era preciso tomar uma decisão. De algum modo, isso fora sentido por alguém, uma pessoa de andar curvo, pois ele encontrara, na sua perscrutação do calçamento, algumas mensagens nem tão crípticas, não percebidas pelas viaturas sempre vigilantes da Corporação. Os cabisbaixos da cidade, todos velhos, não ofereciam a essas viaturas uma preocupação maior. E ele seguira lendo calçamento afora, sem despertar suspeita alguma. Havia um lugar. O Lugar, porque não restava dúvida que a coisa ficava subentendida em maiúsculas.

As mensagens o levaram a uma casa em ruínas num quarteirão desprovido de qualquer tran-seunte às onze de uma certa noite. Pichações e cartazes nos muros de que só restavam trechos intactos indicavam que numa das praças do cen-tro haveria execuções de indesejáveis para a Cor-poração com entrada gratuita, sob patrocínio de um novo refrigerante. Ele penetrou pelos escom-bros e foi acolhido por um gato, quase gêmeo em cores e malhas do seu. No topo de uma escada, ele miou e o secundou na entrada num cômodo escuro, de onde vinha uma única luz baça. Havia ali um vulto, encostado a um piano. Ele levan-tou-se, afastou-se devagar do instrumento e foi para uma área junto a uma janela, revelando-se: uma mulher. Envelhecera mais do que ele. Seu relato compreendia muito mais anos de entre-ga à Corporação. Ela parecia querer esconder o

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a outra travessia

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rafael bivar marquese

durante 300 anos o tráfico negreiro transa-tlântico foi o motor da economia brasileira. As estimativas mais recentes calculam que,

entre meados do século XVI e meados do século XIX, mais de 4.860.000 africanos desembarcaram em nossos portos, o que representa cerca de 40% de todos os seres humanos que foram embarca-dos como escravos na África com destino ao Novo Mundo. Essa terrível engrenagem econômica, que produziu, em um mesmo movimento, sofrimento e riqueza inauditos, continuou a funcionar no Brasil após 1850, não mais pela via oceânica, mas agora por caminhos terrestres e pela navegação costeira.

O tráfico interno de escravos – isto é, a compra e venda de cativos dentro do Brasil, fossem nascidos na África, fossem nascidos aqui – coexistiu desde sempre com o tráfico transatlântico. Na segunda metade do século XIX, porém, ele adquiriu novo vo-lume e sentido. Em que pesem as dificuldades para uma quantificação precisa, os especialistas calculam que entre 220 mil e 300 mil escravos tenham sido transacionados no mercado interno brasileiro nos 38 anos compreendidos entre a abolição do tráfico (1850) e a abolição da escravidão (1888). O destino deles também se tornou mais concentrado. Em sua grande maioria, os trabalhadores escravizados vendi-dos no mercado interno foram direcionados para as províncias cafeeiras do Centro-Sul do Brasil, isto é, Minas Gerais, Rio de Janeiro e, sobretudo, São Paulo.

José Flávio Motta, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, acaba de lan-çar um livro que traz novas luzes para a com-preensão dessa outra travessia. Escravos daqui, dali e de mais além. O tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista resultou de uma vasta pesquisa, originalmente defendida como tese de livre-docência. Motta examina 1.656 escrituras de compra, venda, permuta e doação, lavradas entre 1861 e 1887, e que envolveram 3.677 escravos nos municípios paulistas de Areias, Guaratinguetá, Piracicaba e Casa Branca. Tal recorte é bastan-te significativo. Essas cidades se localizavam no coração do Vale do Paraíba (as duas primeiras) e nos chamados “Oeste Velho” (Piracicaba) e “Oeste Novo” (Casa Branca) de São Paulo, regiões que estiveram, em distintos momentos do século XIX, dentre as maiores produtoras mundiais de café.

rafael bivar marquese é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo.

Escravos daqui, dali e de mais além. o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulistaJosé Flávio MottaAlameda Editorial387 páginas, R$ 67,00 (preço estimado)

O livro ilumina de forma admirável a dinâmi-ca de funcionamento demográfico e econômico dos negócios negreiros. Enquanto os capítulos 1 e 2 resumem muito bem o movimento territorial da cafeicultura no espaço paulista e os principais achados da historiografia relativa ao tema do tráfico interno no Brasil, os outros três são divi-didos conforme a periodização adotada para se compreender os fluxos do comércio de escravos.

Na década de 1860 (capítulo 3), em sua maioria os cativos foram transacionados dentro da própria província de São Paulo, as compras prevalecendo sobre as vendas nos municípios examinados, ex-pressão da prosperidade concomitante da cafei-cultura no Vale do Paraíba e no Oeste Velho. Na década de 1870 (capítulo 4), notadamente após 1873, o tráfico interno para a cafeicultura paulista viveu seu momento mais intenso, com o predomínio de compras interprovinciais que privilegiavam jovens do sexo masculino, em uma retomada do modelo demográfico nefasto do tráfico transatlântico. Na década de 1880 (capítulo 5), já sob os efeitos da pressão abolicionista e da interdição do tráfico in-terprovincial, os municípios nos quais a atividade cafeeira perdera competitividade – caso de Areias – tornaram-se vendedores de escravos; Casa Bran-ca, na fronteira cafeeira do Oeste Novo, continuou adquirindo a mercadoria humana até o ano anterior à Abolição. Em cada um desses capítulos, variáveis como idade, sexo e preços dos escravos são exami-nadas prestando-se atenção às distintas posições ocupadas pelos quatro municípios no tempo e no espaço, isto é, ao seu caráter cambiante como zonas pioneiras, maduras ou decadentes da cafeicultura.

O cruzamento cuidadoso entre as conjunturas do café, a política da escravidão e a dinâmica do tráfico interno oferece contribuições decisivas para outros campos da historiografia sobre a es-cravidão brasileira. Para ficarmos em apenas um exemplo: a demografia produzida pelo tráfico interno ajuda a entender por que a associação do movimento abolicionista com a revolta das senzalas teve um de seus epicentros justamente no oeste de São Paulo, e não no Vale do Paraíba.

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transformações das máquinas sociais indígenas, demarcando-se de uma concepção da dimensão política entendida como consequência da rela-ção com o colonizador, cujos efeitos devasta-dores seriam resultado de um “mau encontro”, na acepção de Pierre Clastres apropriada de La Boétie. O desafio posto é o de trazer as ideolo-gias nativas para o plano dos conceitos, de uma reflexão que possa ser apreendida enquanto filosofia, recuperando a agência indígena no processo histórico.

A conceptualização nativa encontra-se no li-vro articulada a teorias e conceitos da antropolo-gia e da filosofia. O autor incorpora as noções de Deleuze e Guattari de “segmentaridade flexível” e “linhas de fuga”, ambas meios que quebram as tendências centrípetas pelas quais se subjugam (sob um centro único, o Estado) as diferenças presentes nas distintas linhas de força da polí-tica. O Estado é, por esse meio, definido como um agregado de tendências maleáveis, passíveis de composição e recomposição. A concepção de “ação política” é portanto entendida pelo seu caráter processual. O que conta é o embate de forças e o olhar tanto para aquilo que organiza e constitui coletivos humanos e centros de de-cisão como para o que os desconstrói.

O autor alia a estas duas noções “o devir” tra-balhado por Eduardo Viveiros de Castro em sua tupinologia, indicando que o caminho explicativo para o sentido da ação política e do poder será mesmo seguido pelas “linhas de fuga”. O acento está na abertura à alteridade. Seu corolário é um movimento constante de extensão e contração de coletivos e pessoas, que pode ou não produzir momentos de cristalização de unidades, aos mol-des do Estado, abrindo espaço para uma possível política de representação. Não se deve perder de vista que tais momentos também carregam o sentido da impermanência e transição. E o au-tor nos demonstra que foi por congelar este ins-tante pausado no tempo e no espaço que Pierre e Hélène Clastres encontraram um paradoxo e uma contradição.

Se os antigos Tupi do começo da conquis-ta fazem parte do imaginário brasileiro, a antropologia política de Pierre Clastres

e a obra de Hélène Clastres sobre os profetis-mos Tupi-guarani são também parte daquilo que institui ao menos uma área dos estudos an-tropológicos. O Profeta e o principal, de Renato Sztutman, vale-se desses dois repertórios (“dois retornos”) para refletir a respeito dos limites da antropologia política, iluminando aspectos co-mo: a gênese do poder entre os ameríndios; os sentidos da chefia indígena; o surgimento (ou não) do Estado; e a dimensão política dentro do domínio da religião.

O livro tem seu mote em uma interrogação de Pierre Clastres que parece contradizer uma de suas teses centrais, aquela que propõe ser “a sociedade primitiva” guiada por uma filoso-fia política que carrega horror à centralização, agenciada pela coerção e promotora de um apa-gamento das diferenças. A questão que se põe Clastres, a partir das fontes dos séculos XVI e XVII, é a da possibilidade de um poder político coercivo surgir em uma “sociedade primitiva”, o que configuraria um paradoxo.

Hélène Clastres, por sua vez, transforma o pa-radoxo em contradição, por entender o sistema dos Tupi e Guarani antigos clivado pela distin-ção entre o político e o religioso, instâncias de natureza diversa e incompatível. O surgimento de um poder político a partir do profetismo só poderia redundar em um enviesamento, uma vez que este deveria se constituir como movi-mento de pura negação política (do coletivo, da territorialização, do colonizador). Assim, este movimento só poderia se dar como resposta ao sistema colonial opressor.

Para reposicionar estes questionamentos, Sztutman irá se valer de diferentes materiais de pesquisa – fontes históricas, historiografias, etnografias das sociedades ameríndias atuais e antigas e trabalhos arqueológicos –, produzin-do um diálogo entre tempos e espaços também distintos, que abarcam povos indígenas de di-ferentes filiações linguísticas, localizações geo-gráficas e presença na história. O livro atentará para os processos de subjetivação implicados nas

o profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens Renato SztutmanEdusp / FAPESP576 páginas R$ 85,00

Artionka capiberibe é antropóloga, professora da EFLCH/Unifesp e autora de Batismo de fogo: os palikur e o cristianismo, Annablume, 2007.

Artionka capiberibe

Dois retornos e uma linha de fuga

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