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Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/4153 Fernando Pessoa SALOMÉ SALOMÉ [SALOMÉ] — A minha beleza faz os homens sonâmbulos, e o som (encanto) da minha voz distrai-os de sonhar. As suas preferidas odeiam-me sem saber se existo, porque entre as palavras vagas dos seus discursos amorosos, a minha imagem embarga as frases e elas sentem-me passar, como um canto de sereia, nos esquecimentos da voz, e nos abrandamentos dos braços e das mãos, que cingem ou que apertam. Sou o perfume que, uma vez sonhado, lhes faz aura à imaginação, e não poderão ter esposa, nem noiva, nem até irmã a que acarinhem, porque se lembram de que eu sou a princesa que um dia lhes foi toda a vida. Os meus passos vão leves sobre as relvas, como se fossem memórias. Nos gestos que faço com os braços há um sorriso da minha boca triste. Os meus olhos não conhecem uma promessa certa, e quando são baixos e só os cílios vivem, os corações anseiam com uma grande tortura. Dizem que sou a maravilha, mas eu não sei quem sou. Habita em mim um fluido de desastres que cai sobre as épocas futuras como uma chuva que é nevoeiro. Morreriam milhares só por beijar minhas mãos. Milhares deixariam seus lares só por ouvir a própria voz chamar-me a mim princesa. Pelo meu desprezo visível trocariam muitos todos os amores que lhes foram dados, e até aqueles que desejariam. Sou fatal como as noites e os outonos, e no meu coração há já uma saudade de todos quantos matarei. Os escravos rastejam com os olhos quando mal me podem olhar. Passo entre as alas dos soldados e sinto-os que tremem como folhas ao vento. Levarão saudades desse momento como de uma grande maldição, e acordarão nas grandes noites de estio, quando o suor entra na alma, pávidos da memória sinistra que vive do meu perfil entrevisto, dos meus olhos desviados, do recorte das minhas sobrancelhas muito negras contra a pele morena muito branca da minha fronte coroada de sombras. As escravas invejam-me com amor, e cada uma sonha, a sós com o leito sem outro peito, em como haveriam seus olhos de fazer amar os cães, e seus gestos 1/6 Obra Aberta · 2011-02-09 05:59

PESSOA, Fernando. Salomé

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Salomé

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    Fernando Pessoa

    SALOM

    SALOM

    [SALOM] A minha beleza faz os homens sonmbulos, e o som (encanto)da minha voz distrai-os de sonhar. As suas preferidas odeiam-me sem saber seexisto, porque entre as palavras vagas dos seus discursos amorosos, a minhaimagem embarga as frases e elas sentem-me passar, como um canto de sereia,nos esquecimentos da voz, e nos abrandamentos dos braos e das mos, quecingem ou que apertam. Sou o perfume que, uma vez sonhado, lhes faz aura imaginao, e no podero ter esposa, nem noiva, nem at irm a que acarinhem,porque se lembram de que eu sou a princesa que um dia lhes foi toda a vida.

    Os meus passos vo leves sobre as relvas, como se fossem memrias. Nosgestos que fao com os braos h um sorriso da minha boca triste. Os meusolhos no conhecem uma promessa certa, e quando so baixos e s os cliosvivem, os coraes anseiam com uma grande tortura.

    Dizem que sou a maravilha, mas eu no sei quem sou. Habita em mim umfluido de desastres que cai sobre as pocas futuras como uma chuva que nevoeiro.

    Morreriam milhares s por beijar minhas mos. Milhares deixariam seuslares s por ouvir a prpria voz chamar-me a mim princesa. Pelo meu desprezovisvel trocariam muitos todos os amores que lhes foram dados, e at aquelesque desejariam. Sou fatal como as noites e os outonos, e no meu corao h juma saudade de todos quantos matarei.

    Os escravos rastejam com os olhos quando mal me podem olhar. Passo entreas alas dos soldados e sinto-os que tremem como folhas ao vento. Levarosaudades desse momento como de uma grande maldio, e acordaro nasgrandes noites de estio, quando o suor entra na alma, pvidos da memriasinistra que vive do meu perfil entrevisto, dos meus olhos desviados, do recortedas minhas sobrancelhas muito negras contra a pele morena muito branca daminha fronte coroada de sombras.

    As escravas invejam-me com amor, e cada uma sonha, a ss com o leito semoutro peito, em como haveriam seus olhos de fazer amar os ces, e seus gestos

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    Obra Aberta 2011-02-09 05:59

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    de fazer relinchar os cavalos, nas grandes noites em que a virgindade se sentenas entranhas.

    Os gatos roam-se contra as minhas pernas e sentem-se tigres at ao sexo.As aves cantantes calam-se quando passo, e as rosas altas roam pela minhaface porque eu tenho o privilgio dos caminhos.

    [SALOM] Trazei, disse, vossos sonhos para este terrao de onde se v omar. Quero sonhar convosco em voz alta, e que a minha voz tea com as vossaso casulo de uma histria em que nos fechemos da vida. Para aqui so as terrasdo reino do que me como pai, para ali o mar e as terras do outro rei: ambostm gente a quem governam, em ambas amam os que amam e so forasteirosos que passam; ( . . .)

    Contai, sim, o que vos conto que vos contar-vos. Sonharmos, sonharemos omesmo sonho. Se o sonharmos todas, ele ser mais belo do que , e ter umavida longnqua e trmula como a candeia das imagens que vivem no fim domundo.

    Eu, filha de Herode, no tenho dia em que no queira a noite nem noite queno anseie pelo dia. (. . .) A minha vida uma plancie a que se segue outraplancie. No raia sol que me traga a alegria do outro, nem lua que me lembremais os sonhos que no sei sonhar.

    [SALOM] Sinto-me menos imortal que as cousas que sonho. Quando osol nasce ou morre, a minha sombra infinita. (. . .) Projecto-me quando sonhosobre todas as pocas. Quando sonho sinto que no morro. quando acordo, eescuto com o meu sangue, que eu ouo passar a vida.

    S[ALOM] Minha vida tem um cansao de mais cousas do que a minhavida. No sei mais que sonhar, mas hoje, que me pesa tanto o no saber maisque sonhar, e tenho sem querer a necessidade do sonho, quero que sonheiscomigo. Quero que sonhemos juntas. Se uns vivem juntos, porque no sonharojuntos outros? H alguma diferena entre o sonho e a vida?

    A Mas como, senhora, sonharemos juntas? Tenho sono, e gostaria desonhar; mas no quero dormir, porque os sonhos, quando se dorme, so deoutra alma, e cruzam-se com os que desejaramos ter, como os peregrinos nasencruzilhadas.

    S[ALOM] Eu farei para mim um sonho, e esse sonho ser uma histria.Irei contando alto essa histria, e vs ouvireis e sonh-la-eis comigo. Uma ououtra de vs, quando a histria lhe for ensopando a alma, me ir dizendo oque v na alma dessa histria, e que eu me esquecesse de contar. Ser como umcanto em que cantemos juntas num sentido, e cada uma por sua vez na voz.

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    Dizei-me que pode ser assim, para que eu passa sonhar a histria que h-de ser.A2 Se a histria for bela, senhora, ser pena que fosse apenas sonho; se

    no for bela, ser pena que se houvesse contado.S[ALOM] Se a contarmos bem e for bela, e por isso a sonharmos bem,

    ser mais que um sonho, nalgurn lugar, algum momento, ela ter de ser, porqueas coisas que acontecem no so seno como so narradas depois. O queaconteceu ningum o sabe, porque ningum sabe o que est acontecendo; osolhos tm a venda de ver e os ouvidos esto tapados com o ouvir. Os livrosgrandes que meu Pai l contam coisas maravilhosas do passado. Essas coisasso narradas, porm talvez nunca se dessem. Mas as coisas deram-se porqueforam narradas. Que temos ns com o que foi? O que foi morto e como seno fora nunca. O que do que foi verdadeiramente hoje foi antes. O mais pensar de loucos ou de crianas, que querem a verdade ou a lua nas grandesnoites de vero, como esta em que a alma ampla e triste.

    A Assim seja, senhora, e sonhemos. Comeai vs que quereis comear,e tendes a voz das fontes escondidas, e os gestos, quando acaso os abris, daspalmeiras que mostram que h vento, quando no h vento que toque asplpebras nem brisa que roce na face a distraco dos cabelos.

    S[ALOM] (depois de uma breve pausa) Suponde que. . . No, supor perder. . . No, no assim que se sonha. . . Espera, que quero ver. . . (Outrapausa) Havia, no deserto para alm do deserto, entre a parte dos desertos que rochedos, e a solido mais dura do que nas areias e a alma mais triste queao p das palmeiras, um homem que queria um deus, porque nao havia deusdos homens que habitassem naqueles desertos nem naquela alma. Queria umdeus com mais sede que a da gua, e mais fome que a dos frutos que so comogua e so doura, e para os quais as crianas estendem o olhar e a mo. Essehomem chamava-se Joo, porque no meu sonho se chama Joo. um nome deentre os hebreus, mas no h felizmente profeta ou rabino de entre eles queainda usasse deles. Esse homem clamava-a porque a queria e no porque elahouvesse de ser. Mas ele clamava tanto que sem dvida o ouviria esse deus queele estava criando. E o deus viria em sua hora, porque para quem sonha no hhora, nem se desencontra a alma com o seu destino.

    S[ALOM] Quer, com todo o meu sonho, que este sonho seja verdadeiro.Quero que fique verdade no futuro, como outros sonhos so verdades nopassado. Quero que homens morram, que povos sofram, que multides rujamou tremam, porque eu tive este sonho. Quero que o profeta que imaginei crieum deus e uma nova maneira de deuses, e outras coisas, e outros sentimentos,

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    e outra coisa que no seja a vida. Quero tanto sonho que ningum o possarealizar. Quero ser a rainha do futuro que nunca haja, a irm dos deuses quesejam amaldioados, a me virgem e estril dos deuses que nunca sero.

    S[ALOM] O que esse grito na noite, l em baixo?A Trouxeram ao tetrarca a cabea de um bandido.S[ALOM] Tragam-me a cabea de um bandido. Tragam-ma numa salva

    de ouro.

    S[ALOM] De quem essa cabea?X De um bandido que matava nas aldeias.S[ALOM] No quero que seja de um bandido que matava nas aldeias.

    Quero que seja de um santo que criasse deuses.X Era de um bandido que matava nas aldeias.S[ALOM] Aproxima-se de mim a salva. (. . .). Vede como as plpebras

    podem ser de um sonhador, e a boca pode ser de um pecador arrependido oude um asceta que nunca pecou. As faces tm rugas podem ser de viglia oude dio, mas isso importa pouco, porque estamos criando a histria. Afasta umpouco mais a cabea. Quero v-la, mas no quero v-la bem. Afasta mais ainda.A, onde est, a luz do luar d-lhe como um malefcio. Quantos luares mais lheno daro no sonho que outros tero do meu! Leva-a mais para longe. Estoucansada. Sonhei demais. Que homem era esse?

    X Era um bandido que matava nas aldeias.S[ALOM] No te disse que essa cabea era a de um santo que fazia

    deuses? Porque me dizes que era de um bandido que matava nas aldeias?Chamai o capito da guarda o que louro e triste.

    (. . .) A princesa chama o capito de guarda.Um murmrio vago. O capito aparece.

    CAP Chamaste-me, senhora?S[ALOM] Chamei. Est ali um homem com uma salva.CAP Senhora, vejo.S[ALOM] Na salva est a cabea de um santo que criava deuses. Reparai

    no homem que tem a salva na mo.CAP. Senhora, reparo.S[ALOM] Esse homem desmentiu-me. Quero que mateis esse homem.CAP Senhora, que mate esse homem?

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    S[ALOM] Tendes a espada e a minha ordem. Que mais razo podeisquerer?

    (O capito desembainha a espada e mata o servo. Este cai com a salva. A salva e acabea, separadas, fazem estrondo alto e baixo, no cho de pedra. Entra o Tetrarca.)

    H[ERODES] Que novo sonho este, ou que novo capricho? Que malciafez que se trouxesse aqui esta cabea que pedi me fosse levada? Quem a desvioudos meus olhos para os teus?

    S[ALOM] a cabea de um bandido que matava nas aldeias.H[ERODES] No . Esta a cabea de um santo que estava a criar deuses

    pelos desertos. Mandei-o matar e quis que me trouxessem a sua cabea. Porquefoi que a pediste?

    S[ALOM] Porque foi que a pedi? Porque foi que a pedi? No sei. Nosei. Que foi isso que disseste, senhor que me tira a alma toda do corao. Nodigais que me disseste a verdade porque isso demais para o meu sonho. Ah,que talvez o sonho no crie mas veja, e no faa seno o que adivinha. Aquelacabea era de um santo que andava nos desertos?

    H[ERODES] Que vinho de luar te embebedou, que falas com os mortosentre os vivos? Aquela cabea de um santo que cantava nos desertos a memriados deuses futuros.

    S[ALOM] A cabea? Deixem-me v-la de perto. (Ajoelha ao p dela) (Toma--a nas mos) Faz medo e nojo, como os deuses. a cabea de um monstro porque a de um morto. Tetrarca, quem era este homem?

    H[ERODES] Era um homem que anunciava nos desertos, cantando egritando, a vinda do fim das coisas e de um deus que teria piedade. Gritavaentre a rochas solitrias que os deuses antigos eram como os homens quandovivem, mas o deus novo seria como os homens quando morrem, a imagem datristeza e da verdade, No lhe vi ainda a cabea. Erguei-ma na salva para queeu a veja.

    (O capito da guarda olha em redor faa. Abaixa-se, toma a salva, coloca nela acabea e ergue-a ante a vista do Tetrarca. O Tetrarca inclina a cabea para a frente e fitaa cabea com insistncia.)

    H[ERODES] a cara de um homem que viveu entre os desertos e esperava

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    novos deuses ao p de rochedos. Parece que chorou muito: as faces tm sulcoscomo os que as guas fazem nas rochas. terrvel, mas por detrs das plpebrascerradas sinto com a prpria vista que os olhos so tristes. . . Quem matouaquele escravo?

    CAP Fui eu.H[ERODES] Porque o mataste?CAP Mandou a princesa que o matasse.H[ERODES] Porque foi que mandaste matar?S[ALOM] No sei. No sei nada. Sucede qualquer coisa de to terrvel

    que no sei como falar. Mandei-o matar porque ele disse que aquela cabea erade um santo que criava deuses nos desertos.

    H[ERODES] Mas era de um santo que criava deuses nos desertos.S[ALOM] No era: era de um bandido que matava nas aldeias. Deponde

    a salva no cho, retirai-vos. Tenho sono. Pai, tenho sono. (Para as aias) Retirai-vosvs tambm. Pai, quero dormir. Deixai a salva a no cho, com a cabea. Pai,ide-vos tambm daqui.

    S[ALOM] Eu bem sabia. Eu bem sabia. No se pode sonhar sem Deussaber. A minha mentira era verdade. Era certo que no desertos havia um santoque chamava por um deus novo, um deus triste como as rochas e sozinho comoas grandes planuras. Eu bem sabia que algum haveria de querer um deus queconhece os sonhos e tem pena do que no tm nada.

    Vou fazer como se estivesse num festim. Vou bailar roda da tua cabea atcair sem vida. Vou danar no funeral das coisas que morreram com a tua vida.V, vou fazer um bailado ao luar, para dizer tudo.

    s. d.

    Fico e Teatro. Fernando Pessoa. (Introduo, organizao e notas de Antnio Quadros.) MemMartins: Europa-Amrica, 1986: 215.

    1 publ. in Fernando Pessoa et le Drame Symboliste. Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian,1977

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