Pesuisa Em Educação

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    1/10

    263Educ. Pesqui., So Paulo, v. 41, n. 1, p. 263-272, jan./mar. 2015.

    Em busca da liberdade nas universidades: para que serve

    a pesquisa em educao?I

    Antnio NvoaI

    Resumo

    O texto, que corresponde transcrio da palestra proferidano Porto, no Congresso Europeu de Pesquisa Educacional (4de setembro de 2014), inicia-se com quatro histrias que sosintomas da corroso atual das universidades e da pesquisa.Depois, na parte central, a partir de trs palavras comeadaspor E e mais uma, criticam-se as ideologias de modernizaoque esto a dominar as universidades: excelncia,empreendedorismo, empregabilidade, mais europeizao. Naparte final, tiram-se concluses para a pesquisa educacional,defendendo-se a necessidade de reforar: a) prticas dedebate e culturas de colegialidade; b) lgicas de diversidadee de convergncia; c) processos de desenvolvimento de umaeducao plena num quadro de abertura e de compromissosocial. A primeira e a ltima palavra deste texto liberdade,pois, sem ela, no h pensamento, nem cincia, nem educao,isto , no h universidade.

    Palavras-chave

    Excelncia Empreendedorismo Empregabilidade Europeizao Liberdade Universidades.

    I- O texto, originalmente publicado noEuropean Educational Research Journal, traduzido do ingls e corresponde transcrio da palestra proferida no Porto, noCongresso Europeu de Pesquisa Educacional(4 de Setembro de 2014). Por essa razo,mantm os traos da oralidade.II- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.Contato: [email protected]

    http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015400100301

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    2/10

    264 Educ. Pesqui., So Paulo, v. 41, n. 1, p. 263-272, jan./mar. 2015.

    What is educational research for?I

    Antnio NvoaII

    Abstract

    This text is a transcript of the keynote address delivered

    in Porto, at the European Conference on Educational

    Research (4 September 2014). It begins with four stories

    that are symptoms of the current corrosion of universities

    and research, which we cannot ignore. Then, in the second

    section, three words, plus one, are presented to criticize

    the ideologies of modernization that are dominating the

    university world: excellence, entrepreneurship, employability,

    and Europeanization. At the end, some conclusions are drawn

    for educational research, advocating the need to strengthen: (i)

    dialogical practices and cultures of collegiality; (ii) methods

    of diversity and convergence; (iii) educational development

    in a framework of openness and social commitment. The first

    and the last word of this text isfreedom,because without itthere is no thought, no knowledge, no education, that is, there

    is no university.

    Keywords

    Excellence Entrepreneurship Employability

    Europeanization Freedom Universities.

    I- The text is a transcript of akeynote address. Thus, it has somecharacteristics of orality (CongressoEuropeu de Pesquisa Educacional (Porto, Portugal, 4 de Setembro de 2014).

    II- Universidade de Lisboa, Lisboa,Portugal.Contact [email protected]

    http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015400100301

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    3/10

    265Educ. Pesqui., So Paulo, v. 41, n. 1, p. 263-272, jan./mar. 2015.

    Depois de sete anos, de grandeintensidade, como Reitor da Universidade deLisboa, passei o ltimo ano no Brasil. Foi umaexperincia extraordinria. Pude viver,in loco,a realidade de outro pas, de outro continente, etomar conscincia de como so semelhantes asquestes que nos afetam, de um e do outro ladodo Atlntico, em todos os lugares do mundo.

    Ao longo de 2014, durante a preparaodesta palestra, apercebi-me melhor da insani-dade que est a tomar conta da vida acadmi-mi-mi-ca. Os sinais no so novos, mas tm vindo aagravar-se ano aps ano. O nosso mal-estar grande, mas parecemos resignados e apti-cos, como se tudo isto fosse inevitvel, comose no houvesse alternativa. Chegou o tempode dizer no.

    Este ano, celebra-se o centenrio daPrimeira Grande Guerra (1914-1918). Vale apena recordar que ela aconteceu, como todasas guerras, no tanto por causa das atitudesblicas e agressivas de alguns, mas sobretudopor uma espcie de consentimento generalizadode muitos, que acabariam por ser as suasprincipais vtimas1.

    Vemos, ouvimos e lemos. No podemosignorar. Esses versos de Sophia de MelloBreyner, cantados durante as lutas pelaliberdade em Portugal, explicam a decisode usar o meu tempo no para uma palestraconvencional2, mas para juntar a minha voz agrupos e movimentos que esto a combater astendncias dominantes no espao universitrio,a combater por novas formas de organizao davida acadmica.

    Vemos, ouvimos e lemos. No

    podemos ignorar!

    O que vi, ouvi e li, e no posso ignorar?A lista longa, mas deixo-vos apenas quatroexemplos, simples, mas esclarecedores.

    1- Ver o discurso de Roger Martin du Gard no banquete oficial do PrmioNobel, em Estocolmo, no dia 10 de dezembro de 1937.

    2 - A palestra teve incio com a imagem do famoso cachimbo de Magritte,acompanhada pela seguinte frase: This is not a keynote address.

    Primeiro.Vi as notcias sobre o embustepreparado por John Bohannon, que conseguiupublicar diferentes verses de um falso artigocientfico em 157 peridicos de livre acesso,alguns da responsabilidade de importanteseditoras internacionais como a Wolters Kluwer,a Sage e a Elsevier.

    A questo : Por que que aceitamospagar quantias considerveis parapublicar o nosso trabalho num sistemaeditorial to medocre? Por que quenos resignamos perante essa insanidade?O que que nos est a acontecer?

    Segundo. Ouvi o prmio Nobel RandySchekman apelar a um boicote a revistasinternacionais de referncia, como a Naturee a Science, porque, na sua opinio, esto adistorcer o processo cientfico e a impor umatirania que deve ser rejeitada.

    A questo: Por que que no fazemosnada contra esta indstria editorial queest a causar tantos danos cincia? Porque que permitimos que as prioridadesdo nosso trabalho sejam definidas porinteresses comerciais e orientaesnocivas ?

    Terceiro.Li a histria de Haruko Obokata,a jovem cientista japonesa acusada de falsearimagens numa pesquisa sobre as clulas-tron-co, uma histria semelhante a tantas outras dosltimos anos.

    A questo : Por que que aceitamosas presses dessa cultura de publicarou perecer3? Por que que aceitamos ocontrole das nossas vidas por fatores deimpacto e um produtivismo cego? Porque que consentimos? Por que quenos resignamos?

    3 - Em ingls, publish or perish culture.

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    4/10

    266266 Traduo: Antnio NVOA. Em busca da liberdade nas universidades: para que serve a pesquisa em educao?

    Quarto. Recentemente, vi, ouvi e li asnotcias sobre a avaliao do sistema cientficoportugus, conduzido atravs de um acordoentre a Fundao para a Cincia e Tecnologia(Portugal) e a European Science Foundation. Oacordo previa que apenas metade dos centrosde pesquisa deveria ter financiamento4. Nocaso da pesquisa em educao, mais de 70%dos centros foram eliminados logo na primeirafase. A avaliao foi conduzida da pior maneirapossvel, por avaliadores estrangeiros, atravsde mtricas absurdas, sem um conhecimentomnimo da realidade do pas, sem uma visitaaos centros, sem qualquer discusso com ospesquisadores

    A questo :Por que que aceitamosparticipar nesses painis, usandomtodos e cumprindo orientaespolticas desse tipo? Por que queaceitamos colaborar na eroso do nossoprprio campo cientfico? Por que queaceitamos o inaceitvel? Por qu?

    Deixo-vos quatro histrias quetiveram lugar nos ltimos meses. Poderiapartilhar convosco muitas outras, como, porexemplo, o programa de computador criadopor pesquisadores do Massachusetts Instituteof Technology que fabrica falsos artigosacadmicos na rea da cincia da computao.O programa est disponvel numa pgina dainternet e, por muito inconcebvel que isso nospossa parecer, vrios artigos forjados por esseprocesso foram aceitos para publicao emimportantes editoras internacionais, como aSpringer, o Institute of Electrical and ElectronicEngineers, e muitas outras.

    Essas histrias interessam-me no em simesmas, mas como sinais, como sintomas deum mal-estar mais profundo que afeta a vidaacadmica e universitria. So sinais que tmvindo a multiplicar-se a um ritmo alarmantenos ltimos anos, sintomas de uma corroso

    4 - A esse propsito, ver o texto da astrofsica Amaya Moro-Martin (2014).

    das universidades e da pesquisa, que nopodemos ignorar. Por isso, decidi redigir esteapelo a favor de uma vida acadmica diferente,um apelo nossa responsabilidade individual ecoletiva. Chegou o tempo de dizer no.

    Contei-vos quatro histrias sobre JohnBohannon, Randy Schekman, Haruko Obokatae a avaliao da pesquisa em Portugal ecoloquei quatro perguntas que, na verdade, soapenas uma: por que que aceitamos? Por que que consentimos? Por que que colaboramos?Por qu?

    Claro que as perguntas so retricas.Todos sabemos a resposta: trata-se de uma lutapela sobrevivncia na selva acadmica. Masprecisamos problematiz-la, refletir sobre ela nocontexto das tendncias dominantes no espaouniversitrio, em todo o mundo, mas sobretudona Europa depois do Processo de Bolonha.

    Talvez essas tendncias possam serresumidas atravs da comparao entre duasideias bem conhecidas. A primeira pertence aEliot Freidson (1986, p. 436): As universidadesso invenes sociais notveis para apoiar otrabalho que no tem valor comercial imediato.A segunda de Nicholas Barr, economistaque desempenhou um papel importante nasreformas do ensino superior no Reino Unido:h 50 anos, o ensino superior no tinha granderelevncia em termos econmicos; nos diasde hoje, necessrio compreender o valoreconmico das universidades (2012)5.

    Essas ideias esto separadas por cerca detrs dcadas, mas entre uma e outra vai umadistncia de grande significado naquilo quese espera das universidades. J no se trata desublinhar a importncia do conhecimento parao desenvolvimento econmico e social. O queconta, agora, o prprio valor econmico dasuniversidades.

    Num raciocnio excessivamente breve,e at simplista, talvez seja possvel ilustraressa ideologia com trs E e mais um. EssesE so conceitos txicos, porque a nossa

    5- Ver tambm a pgina de Nicholas Barr na internet: http://econ.lse.ac.uk/staff/nb.

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    5/10

    267Educ. Pesqui., So Paulo, v. 41, n. 1, p. 263-272, jan./mar. 2015.

    sobrevivncia imediata depende da capacidadepara respirarmos nesse ambiente nocivo, aindaque tal nos condene a uma morte lenta.

    As palavras no so culpadas. O problemano est nas palavras, mas sim nas ideologiasde modernizao que olham sobretudo para ovalor econmico das universidades.

    Ideologias de modernizao?

    Trs Ee mais um

    Ede excelncia

    Excelncia um dos conceitos maisrecorrentes no mundo universitrio, sobretudoquando se trata de definir os planos estratgicosdas instituies e, em particular, de alimentara esperana de ser uma universidade depesquisa de nvel mundial6. Como bvio,ningum pode ser contra a excelncia. Mas,por trs desse conceito, est a tendncia paraum produtivismo que enfraquece as bases daprofisso acadmica.

    Publicar ou perecer? Essa cultura estdiretamente relacionada com modalidades deavaliao dos professores e de produo derankingsque dominam as universidades, dandoum enorme poder s grandes companhiaseditoras internacionais.

    Quem so os capitalistas maisimplacveis no mundo ocidental? perguntaGeorge Monbiot, escritor e jornalista ingls:

    Quem responsvel por prticas mo-nopolistas que fazem Walmart pareceruma pequena loja de esquina e RupertMurdoch um socialista? H muitos can-didatos, mas o meu voto no vai nempara os bancos, nem para as petrolferas,nem para as companhias de seguros, mas vejam bem para as editoras acadmi-cas (MONBIOT, 2011).

    6- Em ingls, world-class research university. Ver, a esse propsito,Robertson (2012).

    Trabalhamos todos, gratuitamente, paraas revistas e editoras acadmicas, como autoresou como revisores de artigos cientficos, e,no entanto, somos obrigados a pagar verbasescandalosas para ter acesso a essas publicaes,que foram financiadas, principalmente, porfundos pblicos (NORA, 2014). Alguma coisaest errada.

    Mesmo uma das universidades mais ricasdo mundo, a Universidade de Harvard, aprovouuma declarao, h dois anos, informando queno tinha dinheiro para pagar os preos elevadospedidos pelas revistas cientficas (HARVARDUNIVERSITY, 2012). E, nesse mesmo ano, 2012,o matemtico Tim Gowers, galardoado com amedalha Fields, lanou um movimento contra oexorbitante custo do conhecimento, apelandoa um boicote s revistas da responsabilidadeda Elsevier e adoo de formas alternativasde publicao acadmica (THE COST OFKNOWLEDGE, 2012).

    Estamos perante a induo de umprodutivismo que conduz banalizao deprticas inaceitveis, como o autoplgio, aautocitao ou o fatiamento de artigos.H mesmo quem se orgulhe de ter publicadocentenas e centenas de artigos ao longo da suavida acadmica. Ser isso uma coroa de glriaou de demncia?

    Cada dia se publica mais. Cada dia sel menos. H presses cada vez maiores paraimpor uma cultura de produtivismo. Nopodemos ser cmplices dessa corrupo dacincia e das universidades que est a destruir avida acadmica. tempo de dizer no.

    E de empreendedorismo

    O que quero criticar nessa palavra?Por um lado, quero criticar a universidade

    empreendedora, a emergncia de prticasde gesto que olham para as universidadescomo se fossem empresas. Permitam-me quemencione o Manifesto for universities thatlive up to their missions, lanado em 2012, noqual se denunciam as tendncias dominantes

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    6/10

    268268 Traduo: Antnio NVOA. Em busca da liberdade nas universidades: para que serve a pesquisa em educao?

    de governo das universidades, construdas emtorno de ideias como eficincia, rentabilidadee competitividade, ideias que esto a arruinar aliberdade acadmica.

    Um dos nossos maiores problemas a separao, cada vez mais profunda, entrea gesto e a vida acadmica. Dentro dasuniversidades, o poder tem vindo a passar dosacadmicos para os gestores e burocratas.

    Por outro lado, quero falar doempreendedorismo enquanto atitudecaracterizada pela inovao e pelo risco.Ningum pode ser contra. Infelizmente, essatendncia est a conduzir a ritmos de trabalhocada vez mais acelerados e adoo dedispositivos de avaliao que deixam na sombramuitos outros aspectos do trabalho acadmico.

    Essa situao denunciada pelossubscritores do Slow Science Manifesto,documento de 2010 em que se pode ler: Acincia necessita de tempo para pensar, de tempopara ler e de tempo para falhar. A cincia nemsempre sabe o que est certo num determinadomomento. O manifesto conclui com um ltimopedido, dirigido ao pblico: Fiquem conosco,apoiem-nos, enquanto pensamos7.

    Talvez a melhor maneira de contrariaressas concepes, erradas, de empreendedorismoseja atravs do recurso palavra francesadsintrssement, to difcil de traduzir paraoutras lnguas. No significa desinteresse,mas sim um interesse maior, mais elevado,bem definido por Jacques Derrida (2011), nasua obra Luniversit sans condition, isto , auniversidade sem condio, de uma liberdadeincondicional8.

    O movimento a favor de uma cincialenta parte de uma ao mais vasta contraas tendncias empreendedoras, no sentidonegativo do termo, que esto a destruir o tecidouniversitrio. tempo de dizer no.

    7-The Slow Science Manifestopode ser consultado na pgina da internet

    http://slow-science.org/8 - Ver tambm Holmwood (2011).

    E de empregabilidade

    O conceito de empregabilidade o maisrecorrente e txico nos debates europeus,sempre seguido por um outro conceito,ainda mais txico: educao e formaoao longo da vida9. Durante o sculo XX, odireito educao fez parte de grandes lutase movimentos sociais. Agora, com a repetiosistemtica do princpio da educao eformao ao longo da vida, a educao deixoude ser um direito e transformou-se num dever:cada um tem a obrigao de se educar ao longoda vida no sentido de melhorar os seus nveisde empregabilidade.

    As universidades foram incorporandoa ideia de empregabilidade, abdicando degrande parte das suas misses educacionais eculturais, para se focarem, primordialmente,na preparao para os empregos ou, melhordizendo, para futuros empregos.

    A aceitao acrtica dessas tendnciastorna-nos responsveis pela nossa prpriadestruio, como se explica num importantedocumento,Charte de la dsexcellence (2014),recentemente publicado por um grupo deacadmicos europeus. As nossas atitudes,muitas vezes por omisso ou consentimento,abrem caminho adoo e desenvolvimento deideologias que esto a condicionar seriamenteas universidades, a criar importantesconstrangimentos vida acadmica e a redefinirerradamente as prioridades da investigao. tempo de dizer no.

    Intencionalmente, decidi descreveros trs E confrontando-os sempre commovimentos e formas de resistncia que tmvindo a ganhar cada vez mais importncia nointerior do mundo universitrio: a declaraoda Universidade de Harvard, o boicote propostopor Tim Gowers, o Manifesto for universitiesthat live up to their missions, o Slow ScienceManifesto, aCharte de la dsexcellence10 a

    9 - Em ingls, lifelong learning.

    10 - Ver tambm uma petio recente de pesquisadores europeus, Theyhave chosen ignorance!.

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    7/10

    269Educ. Pesqui., So Paulo, v. 41, n. 1, p. 263-272, jan./mar. 2015.

    minha maneira de chamar a ateno para a nossaprpria responsabilidade, como professores,como pesquisadores, como educadores e comomembros de sociedades cientficas na rea daeducao.

    No princpio, disse-vos que apresentariatrs Ee mais um.

    O meu ltimo Erefere-se europeizao

    Estamos perante mais um conceitotxico. Depois de dcadas de europeizao, aEuropa est como est. No falarei sobre isso.Mas quero expor as divises entre norte e sul,entre centro e periferia, que as polticas daUnio Europeia no campo da cincia e inovaoesto a agravar.

    Habitualmente, sublinha-se a importnciado conhecimento para a organizao e progressodas sociedades contemporneas. esse oargumento principal para aumentar as verbaseuropeias para a cincia. O programa Horizonte2020 est, hoje, dotado com um oramento de79 mil milhes de euros.

    Curiosamente, ningum pe em causaa estratgia de fundos competitivos queregula as polticas europeias de distribuio derecursos na rea da cincia. o melhor exemploda ideologia dos trs E. O resultado bvio: osfortes ficam mais fortes; os frgeis, mais frgeis.

    Depois de quase trs dcadas naUnio Europeia, Portugal continua a serum contribuinte lquido11 para os fundoseuropeus de cincia. Ironicamente, poder-se-iaargumentar que os cidados dos pases menosdesenvolvidos esto a pagar a cincia que se faznos pases mais desenvolvidos. Que estranhaeuropeizao.

    E depois somos confrontados com histrias,como aquela que vos contei anteriormente, sobrea avaliao dos centros de pesquisa em Portugal. Otrabalho realizado sob os auspcios da EuropeanScience Foundation, com a cumplicidade de

    11-- Contribuinte lquido significa que Portugal contribui com mais verbas

    para o oramento europeu nesse setor do que aquelas que recebe da UnioEuropeia.

    alguns dos nossos colegas. desnecessrio dizerque tudo feito de acordo com os melhorespadres internacionais, legitimados comlinguagens e mtricas de excelncia, inovao ecompetitividade, empreendedorismo, transfernciade conhecimento e mrito tecnolgico, outputs,produtividade e impacto. Mas o problema estprecisamente aqui. Em nome da europeizao,reproduzem-se as mesmas fraturas de sempre. tempo de dizer no.

    Quatro vezes no. excelncia.Ao empreendedorismo. empregabilidade.A esta europeizao. No por causa daspalavras, mas por causa das ideologias queelas carregam.

    Deixem-me ser totalmente claro. Noalimento nenhuma nostalgia acadmica. Masisso no me obriga a aderir a ideologias demodernizao que esto a destruir a nossavida acadmica e a nossa liberdade intelectual.Essas ideologias esto a empobrecer o trabalhocientfico, em particular no campo da pesquisaem educao. o que tentarei explicar na ltimaparte desta palestra.

    E a propsito da pesquisa em

    educao?

    Deixar-vos-ei, de novo, trs ideias, emais uma.

    Em vez de excelncia, precisamos de debate e

    cultura

    Em vez da ideologia da excelncia,devemos basear a pesquisa em educao nodebate e na cultura. Um entendimento erradodo conceito de excelncia conduz a separaros melhores dos outros, esquecendo que, nassociedade do sculo XXI, central que todostenham acesso ao conhecimento e que hajauma valorizao no apenas da cincia mastambm da cultura cientfica.

    O debate, o seminrio e as comunidadesde dilogo so elementos fundamentais dauniversidade. Essa tradio tem sido posta em

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    8/10

    270270 Traduo: Antnio NVOA. Em busca da liberdade nas universidades: para que serve a pesquisa em educao?

    causa por um sistema de reviso pelos pares12cada vez mais desacreditado, por avaliaespuramente quantitativas ou bibliomtricas epor tendncias que medem fatores de impactoduvidosamente definidos.

    necessrio reconstruir uma culturade debate e de crtica, marcada pela interao,pelo dilogo, pela leitura conjunta dos nossostrabalhos, pela capacidade de nos envolvermosnuma conversa intelectual com os outros. Nopodemos nos resignar perante a tirania dosnmeros, perante dispositivos quantitativos deavaliao que esto a pr em causa a criatividadee a liberdade. Precisamos reinventar a pesquisacomo uma prxis coletiva aberta e colaborativa.

    Para transformar as universidades, necessrio haver confiana em ns e nosoutros, dentro (nas instituies) e fora(na sociedade). Sem confiana, a tendnciadominante ser sempre reproduzir lgicasburocrticas e mtricas quantitativas,empurrando a vida acadmica para umprodutivismo tantas vezes sem sentido. Tudoprecisa de tempo, colaborao e compromisso,colegialidade e liberdade.

    Em vez de empreendedorismo, precisamos de

    diversidade e convergncia

    A ideologia do empreendedorismotende a reduzir a pesquisa a desenvolvimentostecnolgicos ou a exerccios aplicados. Um certoestreitamento tem, por vezes, o efeito de voltaro trabalho cientfico para dentro do prpriocampo educativo. Ora, a histria educacionalmais inspiradora baseia-se no contrrio, numadiversidade de abordagens, de metodologias ede maneiras de pensar.

    estranho que, neste incio do sculo XXI,quando as correntes cientficas mais inovadorasprocuram dinmicas de convergncia e defertilizao mtua, alguns pesquisadores estejampreocupados sobretudo com as questes da

    12- Em ingls, peer-review system.

    identidade e da disciplinarizao das cinciasda educao.

    Pessoalmente, acredito que precisamosalargar o espectro do nosso trabalho, numaperspectiva muito prxima da que defendidapor Michel Serres:

    Dedicados procura da verdade, nemsempre a atingimos quando a buscamospor anlises e equaes, por experinciasou evidncias formais; por vezes, precisorecorrer ao ensaio; e quando o ensaio nochega, sigamos pelo conto, se for possvel;se a meditao fracassa por que no tentara narrativa? (1991, p. 249).

    A questo central como enriquecer,aprofundar e diversificar a nossa compreensodos temas educacionais. No h um caminhonico e, certamente, no podemos esperar quese obtenha um consenso na forma de organizare de orientar o campo cientfico em educao.Mas podemos trabalhar para que a pesquisaacolha a diversidade e procure a convergncia.No nos podemos fechar no interior de umadisciplina nica. Precisamos trabalhar nasfronteiras de vrios conhecimentos, juntarperspectivas diferentes na compreenso dosfenmenos educativos.

    Em vez de empregabilidade, precisamos de

    plenitude e abertura

    Vale a pena recordar a ironia de DavidLabaree, numa palestra dirigida a jovenspesquisadores em educao: Errem, sejampreguiosos e irrelevantes; e pensem no vossotrabalho como um esforo para equilibrar osvalores da verdade, da justia e da beleza(2012, p. 74). Esses conselhos no podem serinterpretados literalmente, mas sim como umacrtica s tendncias utilitaristas que dominamas universidades.

    A pesquisa deve ser capaz de reforaruma educao superior ampla, que no seesgota na empregabilidade. Para isso, importa

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    9/10

    271Educ. Pesqui., So Paulo, v. 41, n. 1, p. 263-272, jan./mar. 2015.

    consolidar os laos entre a educao e a cincia,entre a formao e a pesquisa, enriquecendo avida universitria num duplo sentido: por umlado, construindo uma educao de base, qued a cada um os instrumentos de conhecimentoe de autoconhecimento, de desenvolvimentode uma vida plena tambm na relao com otrabalho; por outro lado, realizando um esforopara levar a pesquisa at um pblico maisalargado, de modo a ligar a reflexo cientficaaos debates pblicos sobre educao.

    Todos sabemos que a educao estsaturada de opinies e de certezas e, porisso, to difcil instaurar e legitimar umconhecimento especializado nesse campo. Masessa dificuldade , ao mesmo tempo, uma dasnossas principais vantagens, pois torna maisfcil uma relao prxima entre a cinciae a sociedade, uma abertura decisiva para associedades do sculo XXI.

    Aqui ficam as minhas trs respostas questo Para que serve a pesquisa emeducao? Mas prometi-vos trs respostas, emais uma. A minha ltima resposta diz respeito Europa. Se acreditamos, como gostamos dedizer, que a educao e o conhecimento soelementos centrais para o desenvolvimentodos pases, ento temos de repensar a formacomo os fundos europeus de cincia esto a serdistribudos. No podemos aceitar acriticamenteo argumento de que os fundos esto a serconcedidos apenas de acordo com a qualidadee o mrito das equipes de investigao, dasinfraestruturas e das projetos apresentados. Naverdade, essa poltica reproduz, cinicamente, asdesigualdades de partida. Por essa via, nuncanos tornaremos mais iguais no espao europeu.

    A retrica da europeizao tem estadoao servio de divises e fraturas cada vez mais

    profundas. Nenhum de ns pode continuar ajogar esse jogo, ingenuamente, como se neleno tivssemos qualquer responsabilidade.Chegou o tempo de agir, dentro de cada umadas nossas universidades, mas tambm emassociaes como a European EducationalResearch Association.

    Est na altura de concluir esta viagem recordem-se que isto no uma palestra con-vencional por temas universitrios, pela vidaacadmica e pela pesquisa educacional. Esperoter sido capaz de juntar pontos de vista muitodistintos, no esforo para revelar dilemas e pro-blemas que nos afetam a todos.

    Comecei com uma poeta do Porto,Sophia de Mello Breyner. Permitam-me quetermine com um escritor de Lisboa, VerglioFerreira: No se pode pensar fora daspossibilidades da lngua em que se pensa(1992, p. 9). Do mesmo modo, tambm nose pode conhecer fora das possibilidadesda cincia em que se conhece. por issoque precisamos alargar o repertrio danossa cincia, dos pontos de vista terico emetodolgico. Alargar o espectro das nossasmaneiras de pensar e de falar sobre educao.Aprofundar o nosso compromisso com aincluso, a educao e a cultura. para issoque serve a pesquisa educacional.

    Todas as minhas palavras podem serresumidas numa s liberdade. As formasdominantes de organizao do trabalhoacadmico e de avaliao dos professores estoa afetar gravemente a ideia de universidade e asnossas vidas profissionais e pessoais. Chegou otempo de repensar a pesquisa educacional numaperspectiva mais ampla, com uma liberdadesem condio.Porque a liberdade tudo, e todoo resto nada.

  • 7/25/2019 Pesuisa Em Educao

    10/10

    272272 Traduo: Antnio NVOA. Em busca da liberdade nas universidades: para que serve a pesquisa em educao?

    Referncias

    BARR, Nicholas. The higher education white paper: the good, the bad, the unspeakable and the next white paper. Social Policyand Administration, v. 46, n. 5, p. 438-508, 2012.

    CHARTE DE LA DSEXCELLENCE. Verso de Janeiro de 2014. Disponvel em: .

    DERRIDA, Jacques. Luniversit sans condition. Paris: Galile, 2001.

    DU GARD, Roger Martin. Banquet speech. Nobelprize.org. Nobel Media AB 2014. Disponvel em: .

    FERREIRA, Verglio, Pensar. Lisboa: Bertrand, 1992. p. 9.

    FREIDSON, Eliot. Les professions artistiques comme dfi lanalyse sociologique. Revue Franaise de Sociologie, v. 27, n. 3, p.436, 1986.

    HARVARD UNIVERSITY, Faculty Advisory Council Memorandum on Journal Pricing, 17 de Abril de 2012. Disponvel em:.

    HOLMWOOD, John (Ed.).A manifesto for the public university. London: Bloomsbury, 2011.

    LABAREE, David. A sermon on educational research. International Journal for the Historiography of Education, v. 2, n.1,p. 74, 2012.

    MANIFESTO FOR UNIVERSITIES THAT LIVE UP TO THEIR MISSIONS. Disponvel em: .

    MONBITO, George. Academic publishers make Murdoch look like a socialist. The Guardian, 29 ago. 2011.

    MORO-MARTIN, Amaya. A call to those who care about Europes sicence. Nature, v. 514, n. 7521, 8 out. 2014.

    NORA, Dominique. Recherche publique, profits privs. Le Nouvel Observateur, n. 2583, p. 52-53, 8 maio 2014.

    ROBERTSON, Susan L. World-class higher education (for whom?). Prospects, v. 42, p. 237-245, 2012.

    SERRES, Michel. Le tiers-instruit. Paris: ditions Franois Bourin, 1991. p. 249.

    THE COST OF KNOWLEDGE. Disponvel em: .

    THEY HAVE CHOSEN IGNORANCE! Disponvel em: .

    Antnio Nvoa reitor da Universidade de Lisboa (2006-2013).