Petsociaisufpr.files.wordpress.com 2009 05 as Palavras e as Coisas Letc3adcia Wons

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  • PET CINCIAS SOCIAIS Letcia Wons Resenha de As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault

    As obras de Michel Foucault mais discutidas e problematizadas no meio acadmico so posteriores a As Palavras e as Coisas (1966); um exemplo disso a grande popularidade de Vigiar e Punir (1975). Porm, ao voltarmos nosso olhar a sua produo num sentido mais amplo, podemos destacar As Palavras e as Coisas como pea-chave de um argumento que se estende por toda sua trajetria e marco de uma preocupao que est implcita em seus trabalhos anteriores e que consegue se desenvolver nos seus trabalhos posteriores.A Arqueologia do Saber, de 1969, s pde surgir em decorrncia da receptividade crtica de As Palavras e as Coisas.

    Quando Foucault escreve A Histria da Loucura na Idade Clssica (1961), sua preocupao est em compreender como uma cultura pode generalizar uma diferena que a limite; j em As Palavras e as Coisas, seu grande questionamento entender como se experimenta a proximidade entre diferentes saberes numa mesma esfera e como se d sentido s ordens de pensamento. No incio, ele se voltava para a compreenso do Outro, buscando, a partir da, definir o Mesmo. Ele passa ento a olhar para o Mesmo e procurar as marcas que definem as identidades e as relaes entre as coisas.

    Essa abordagem marcadamente epistmica e a grande contribuio que podemos retirar de Foucault seu olhar arqueolgico e as implicaes de mtodo decorrentes a partir da. Fazendo uma crtica historia das cincias e histria das ideias, Foucault pretende desenvolver uma anlise que no se paute na continuidade do saber e na causalidade entre diferentes tipos de pensar. Ele nega a suposio de que condies materiais permitem determinados tipos de pensamento, ou que entre pensamentos distintos em pocas diferentes, um seja tributrio daquele que lhe anterior. Foucault, ao longo de uma extensa argumentao em As Palavras e as Coisas, demonstra que h autonomia entre pensamentos que costumamos imaginar como contnuos; como sendo um o desenvolvimento do outro. A possibilidade lgica dos conhecimentos se deve antes epistm em que esto inseridos do que ao desenvolvimento temporal das ideias ou da acuidade racional e tcnica pela qual so produzidos. Para Foucault, no porque nos racionalizamos cada vez mais que pudemos desenvolver as cincias que compreendemos hoje; essas cincias no so possveis a partir de condies materiais ou histricas que as permitam, mas a partir de um determinado pano de fundo de pensamento que lhes d sentido e que permite que pensemos as coisas que pensamos. A isso, Foucault denomina a priori histrico: um princpio orientador. Em suas palavras, aquilo que, numa dada poca, recorta na experincia um campo de saber possvel, define o modo de ser dos

  • objetos que a aparecem, arma o olhar cotidiano de poderes tericos e define as condies em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro1.

    Nesta resenha, meu objetivo apresentar o conceito de epistm e descrever as trs epistms das quais Foucault trata em seu livro, problematizando suas caractersticas prprias e apontando para as rupturas entre elas. A partir da, irei apresentar a obra de Edward Said, Orientalismo (1978), explicando o que o autor entende como orientalismo e como esse tipo de saber pode ser alocado dentro das consideraes de Foucault. Com isso, no pretendo colocar Said como simples exemplo das ideias foucaultianas, mas fazer uma leitura de Said atravs do vis que Foucault permite com sua abordagem arqueolgica para, ento, mostrar que os argumentos de Said podem ser colocados em paralelo aos de Foucault, pois ambos apontam para tipos de pensamento posicionados em perodos especficos e que s fazem sentido dentro de suas epistms.

    AS TRS EPISTMS

    Foucault organiza As Palavras e as Coisas de tal forma que faz um recorte histrico delimitando os seguintes campos epistemolgicos: final do Renascimento (sculo XVI) como o perodo pr-clssico; sculos XVII e XVIII como perodo clssico e sculos XIX e XX como perodo moderno. Ele seleciona trs campos de pensamento aparentemente independentes e mostra como suas configuraes prprias e como as transformaes pelas quais eles passam so

    coincidentes, mesmo que no causais. Estes so: a gramtica geral, a histria natural e a anlise das riquezas (os trs pertencentes ao perodo clssico) e, posteriormente, a lingustica, a biologia e a economia (do perodo moderno). Seu principal objetivo mostrar a proximidade lgica entre as reas de conhecimento de cada perodo entre si, separadamente com o que a histria das ideias costuma colocar como contnuo entre perodos diferentes. Ou seja, ele v mais aspectos em comum entre a gramtica geral e a histria natural do que entre a gramtica geral e a lingustica.

    Isso se d uma vez que ele trabalha em termos de condies de possibilidade. Para ele, o a priori histrico que permite que se pense uma gramtica geral o mesmo pano de fundo que possibilita que a histria natural torne-se um campo de conhecimento. Segundo Cesar Candiotto, o estudo comparativo dos clssicos revela que, embora tergiversem sobre objetos diversificados, seus discursos apresentam uma regularidade ou uma espcie de isomorfismo quanto s regras de formao, quando se trata da definio dos temas especficos de seu campo de investigao, da formao dos seus conceitos e da construo de suas teorias2. A fim de explicar como se do essas

    1FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das Cincias Humanas. So Paulo: Martins Fontes, 2007. pp 219

    2 CANDIOTTO, Cesar. Notas Sobre a Arqueologia de Foucault em As Palavras e as Coisas. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, V. 21, n. 28, p.

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  • aproximaes, descreverei as caractersticas de cada epistm, destacando seus mais importantes princpios orientadores.

    No captulo A Prosa do Mundo, Foucault trata do perodo pr-clssico, fortemente marcado pela ideia da semelhana. Naquela poca, conhecer significava interpretar. O princpio norteador do conhecimento a similitude, que se d em quatro formas diferentes: convenientia, aemulatio, analogia e simpatia. No perodo pr-clssico, o mundo dobra-se sobre si, reflete-se e se duplica: os signos so entendidos como marcas espalhadas pelo mundo e cabe ao homem apenas identific-las e interpret-las. H uma repetio de informaes que so anlogas em nveis diferentes de compreenso: aquilo que se v na vida mundana tem um equivalente nos cus, aquilo que est no micro, correspondido por algo no macro. Todos os processos de conhecimento operam desta forma: comparando elementos e descobrindo as ligaes possveis entre eles. Essas ligaes no so construo humana; distribudas pelo mundo, so naturais. H um espelhamento emparelhando e ajustando aquilo que para o homem mistrio. Nesse contexto marcado pelas similitudes, ao evidenciar o parentesco entre as coisas, h a impresso de que os elementos perdem as suas identidades. Foucault, com os conceitos de simpatia e antipatia, mostra que ao mesmo tempo em que as coisas parecem estar se tornando idnticas umas s outras e desaparecendo em suas individualidades (simpatia), so impedidas de se assimilar completamente (antipatia). O papel do erudito nesse contexto de extrema relevncia; o erudito concentra conhecimento a respeito de diferentes esferas do saber e tem a habilidade de estabelecer conexes. Alm disso, o homem entendido como o centro pelo qual passam as relaes entre o micro e o macro; ele um ponto de proporo fundamental da imensa cadeia que gere o mundo, o que est de acordo com as ideias renascentistas sobre o humanismo.

    O que h de mais relevante para entendermos sobre o perodo pr-clssico o destaque que se d s marcas encontradas na superfcie das coisas. No h semelhana sem assinalao e, desta forma, h um entrecruzamento sobre o que visto e o que lido. As coisas do mundo que se apresentam ao homem so aquilo que ele l, sem outras construes acima disso. Desse modo, a linguagem faz parte do mundo, uma coisa da natureza, entendida como dada. A etimologia ganha destaque, nela se buscando o sentido originrio das palavras, como se houvessem marcas de uma nomeao primeira e propriedades intrnsecas s letras, slabas e palavras, as quais o homem deveria decifrar. No se tratava de entender o sentido da linguagem ou seu contedo representativo. Isso s foi possvel a partir do momento em que a Similitude deixou de ser o grande norteador do conhecimento, dando lugar Representao.

    Para trabalhar acerca das rupturas entre epistms, Foucault evita lanar mo de acontecimentos histricos ou de grandes figuras de pensamento a que usualmente nos referimos quando trabalhamos em termos da histria das ideias. Foucault procura evitar uma leitura

  • retrospectiva (que avalia os conhecimentos do passado a partir da atualidade das cincias) e assim prefere demonstrar que as rupturas no se do por materialidade, mas por mudanas radicais de pensamento. Ele usa, ao longo de todo o livro, referncias que no nos so familiares e pensadores especficos de cada rea de que trata. Desse modo, ainda que queira lidar com o plano das ideias e no dos acontecimentos, no escapa de escolher pensadores representativos para cada epistm. O que importante destacar dessa sua escolha metodolgica que mesmo quando ele diz respeito a grandes embates intelectuais, nos mostra que numa mesma epistm os debates internos so da mesma natureza, por mais que nos paream contraditrios. Assim, Foucault no pensa em termos de dialtica, pois esta pressupe continuidade e progresso da razo. Para ele, o que parece contradio entre autores , na verdade, diferentes pontos de vista operando ainda pela mesma lgica, a da epistm na qual esto inseridos. Para tentar explicar as rupturas, Foucault trabalha sempre em termos de esgotamento, ao invs de contradio. No que um pensamento supere o outro pelo ponto de vista da racionalidade ou de cientificidade; a mudana de epistm ocorre devido prpria lgica interna do pensamento, que no d mais conta daquilo a que se prope.

    Para lidar com a ruptura entre perodo pr-clssico e perodo clssico, Foucault faz uso da histria de Dom Quixote, mostrando que a unidade entre as palavras e as coisas s ainda possvel para um heri louco. Se, at o final do sculo XVI, as palavras eram entendidas como marcaes, assim como as coisas, no perodo clssico ocorre uma radical dissociao entre as palavras e as coisas, dando incio era da representao.Quando a escrita j no mais a prosa do mundo, h uma desconfiana sobre a linguagem, uma vigilncia sobre os termos, pois a verdade no est mais na relao palavra/mundo, mas nas relaes construdas entre as prprias palavras. H um rompimento entre o que se v e o que se l, j que, diferentemente do perodo pr-clssico, onde a linguagem o signo da verdade uma vez que tudo est escrito para ser decifrado, no perodo clssico, a linguagem se retira dos seres e, independente, abre possibilidade para um campo de conhecimento transparente e neutro, livre das marcaes naturais. Nesse contexto, a grande utopia do perodo clssico constituir uma linguagem pura, bem-feita, universal e que funcione como uma lgica desvinculada dos imperativosdas coisas.

    a partir da que podemos compreender por que a taxinomia e a nomenclatura se tornam as principais formas de saber durante o perodo clssico. Em qualquer rea de conhecimento, a tentativa sempre de nomear e ordenar as coisas, a partir de uma taxinomia adequada; a atribuio de uma linguagem perfeitamente transparente s coisas suficiente para nomear seu ser. As duas palavras-chave para o perodo clssico so: representao e ordem. nessa epistm que h possibilidade de se constituir a gramtica geral, a histria natural e a anlise das riquezas, pois so trscampos de conhecimento pautados no estabelecimento de uma ordem que d coerncia aos elementos. A questo agora j no mais a similitude entre as coisas, mas a identidade e a

  • diferena. O grande empreendimento da poca classificar as coisas de modo que se v do simples ao complexo; h uma identidade entre as coisas classificadas e, portanto, uma aproximao entre elas e, ao mesmo tempo, uma diferena entre essas coisas, que permita que elas sejam alocadas de modo distinto numa escala crescente. Diferente do perodo pr-clssico que lida com similitudes infinitas e que procura sempre aproximar, reduzir e reunir as coisas, o perodo clssico lida com um conjunto especificamente visado (portanto, procura atingir certeza perfeita dentro de seu recorte) e opera de modo a discernir as coisas, por meio da identidade e da diferenciao. Outro aspecto que difere esses perodos que at o sculo XVI, os signos no precisavam ser conhecidos para existirem: j estavam espalhados pelo mundo e bastava interpret-los. A partir do sculo XVII, um signo desconhecido inconcebvel: no existe marca muda; s h signo quando se conhece a possibilidade de relao de substituio entre elementos conhecidos, ou seja, quando h representao.

    O fim do perodo clssico ocorre quando o imperativo da ordem perde sua fora. Para mostrar a ruptura entre o clssico e o moderno, Foucault estabelece um recorte temporal (entre 1775 e 1825) e subdivide esse recorte em duas fases, sendo que a primeira vai de 1775 at 1795. Durante essa primeira fase, o modo de ser fundamental das positividades no muda, ainda a representao; vigoram os princpios gerais da taxinomia e o que muda a tcnica. Para exemplificar esse processo, Foucault lana mo das teorias de Adam Smith, considerado como fundador da Economia Moderna. Para Foucault, o pensamento de Smith ainda opera sob a lgica clssica e o que ele traz de novo o conceito de trabalho, encarando-o como um numerador fixo (jornada, esforo, fadiga) e tomando o nmero de objetos produzidos como denominador, ou seja, como o que varia. somente com David Ricardo que o que entendemos como Economia torna-se efetivamente moderno, uma vez que h dissociao entre formao e representatividade do valor; a Economia passa a caminhar ao lado da Histria, numa cadeia temporal prpria, o que ir se revelar um dos aspectos mais importantes da epistm moderna.

    Durante essa mudana epistemolgica, podemos dizer que o quadro aparece como mera superfcie e que o tempo e o seu fluxo passam a constituir problemas primordiais para o conhecimento. O que interessa no mais a identidade e os caracteres distintivos, mas as grandes foras ocultas que constituem os elementos. No lugar da soberania do nome, temos o interesse pelas flexes; no lugar da classificao a partir do carter, temos as relaes de funo; no lugar do estudo das riquezas, preocupamo-nos com a produo. As maneiras de ordenar a empiricidade prprias do perodo clssico no fazem mais sentido ao lado dos novos objetos de saber que vo aos poucos se formando. O discurso, o quadro e as trocas se desvanecem, dando lugar a elementos com historicidade prpria e profundidade temporal, com arranjos autnomos e forte coeso interna.

  • Os fundamentos da histria natural e da biologia so bastante significativos para mostrar como esses saberes no so contnuos, mas pertencentes a epistms baseadas em lgicas muito diferentes.At o sculo XVIII, trabalhava-se em termos de comparao de estruturas visveis, seja por sistema (elementos representados fixados desde o incio), seja por mtodo (elementos desprendidos de uma confrontao progressiva). Na epistm moderna, entra em operao um princpio estranho ao domnio do visvel, interno e irredutvel ao jogo das representaes: a organizao. Ao lado disso, surge um conceito que durante a poca da histria natural no era posto em problema, mas que agora emerge com toda a sua fora: a noo de vida. As funes essenciais do ser vivo ganham uma importncia que no procede apenas da descrio. Se antes o carter era importante pela frequncia com que se apresentava nas estruturas observadas, agora se coloca a funo como soberana ao rgo. Aparecem semelhanas onde no h um elemento idntico. Isso permite que o visvel se reporte ao invisvel, sua razo profunda; o estudo funcional do organismo permite ir de um ponto do corpo a qualquer outro. Alm disso, h um rompimento do paralelismo entre classificao e nomenclatura; na biologia, distinguir j no mais o mesmo que denominar. Toda essa abordagem abre possibilidade para que se considere cada ser em si mesmo e no, como outrora, como um ponto especfico de um fio de semelhanas que o vinculava a outros seres. Considera-se o que cerra um ser em si mesmo e no as caractersticas que ele possui para ser alocado em um quadro classificatrio. A principal consequncia da abordagem biolgica que, agora, a vida escapa s leis gerais do ser. Quando se pensa em termos de funes e se trabalha com a noo de vida, formamos um conceito que vai para muito alm do indivduo vivo e abrange uma ideia que antes do sculo XIX no existia. A vida passa ento a ser no s um conceito biolgico, mas tambm um princpio moral.

    Transformaes anlogas podem ser verificadas entre a gramtica geral e a lingustica. A primeira est preocupada com um conhecimento nominalista e com as relaes entre linguagem e mundo. Na era da representao, so acontecimentos exteriores que modificam e desdobram as lnguas. Todas as palavras portam uma significao mais ou menos oculta e suas primitivas razes de ser residem numa designao inicial; isso o que permite pensar na linguagem como um campo neutro e, a partir da, surgem os esforos de taxinomia, uma linguagem pura. J na epistm moderna, as coisas escapam ao espao do quadro, enrolam-se sobre si e definem para si um espao interno prprio; aqui tambm operam os princpios de historicidade, leis e objetividade interiores. O espao de ordem da gramtica geral rompido, pois h organizao prpria lngua. nesse contexto que a filologia ganha fora, pois ela desfaz as relaes entre linguagem e histria externa para definir uma histria interior. Alm disso, as lnguas so confrontadas no mais por aquilo que as palavras designam, mas pelo que as ligam umas s outras. Se a representao priorizava o nome, agora a flexo que ganha destaque. No se pensa mais numa raiz primordial e o resto se alterando

  • para se conformar s suas modificaes; dessa vez, a raiz que alterada e as flexes que so anlogas. O estudo de sistema de parentesco entre lnguas se d a partir das estruturas das flexes e no da representatividade dos sons. Ao conceber essas ideias, tambm se permite pensar em termos de descontinuidade e, portanto, o espao da ordem j no faz mais sentido.

    Se nesse contexto que a taxinomia e a ordem perdem fora, podemos entender que a neutralidade da linguagem foi colocada em risco; a verdade do discurso burlada pela filologia. A partir dessas ideias, agora introduzo resumidamente os argumentos centrais de Edward Said ao caracterizar o orientalismo, principalmente na medida em que ele entende o orientalismo enquanto um discurso operando pela lgica da ordem.

    ORIENTALISMO

    Para Edward Said, o orientalismo consiste num fenmeno histrico, num modo de pensar, num problema contemporneo e numa realidade material3. As consequncias sobre essa viso de mundo etnocentricamente construda vo desde o corrente imaginrio popular at s mais graves dinmicas polticas. Para se entender o orientalismo, deve-se pensar num tipo de poder intelectual projetado por e para o Ocidente. O orientalismo moderno remonta ao fim do sculo XVIII e incio do XIX, principalmente a partir da invaso napolenica ao Egito, em 1798. O que ocorria ento era uma apropriao cientfica de uma cultura por outra, de modo que o conhecimento adquirido era justificativa para domnio e autoridade. Ao colocar toda a diversidade oriental sob status de raa submetida, o Ocidente se confere o direito de penetrar e manipular o Oriente, uma vez que proclama conhecer o Oriente melhor do que o Oriente conhece a si prprio. A dominao colonial a partir do sculo XIX fundamentou-se essencialmente na linguagem, pensamento e viso fornecidos pelo orientalismo.

    O primeiro interesse dos estudos orientalistas foi despertado pelo perodo clssico oriental, compreendido atravs de um universo essencialmente textual. O contato com o Oriente moderno visava comprovar as mximas enunciadas a partir desses textos, mas, como a realidade moderna no se justape a essa experincia clssica, o Oriente foi dado como degenerado, com seus grandes momentos reservados apenas ao passado4. O Oriente do tempo presente era ento um mundo a ser conhecido, invadido, possudo e recriado. As naes europeias e, posteriormente, os Estados Unidos, valeram-se de um conjunto de figuras representativas para estabelecer posies de

    3 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. So Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 78.

    4 importante diferenciar os usos dos termos clssico e moderno entre Said e Foucault. Por perodo clssico oriental, Said

    compreende os grandes momentos de glrias culturais dos povos do Oriente, antes das aes imperialistas do sculo XIX. um perodo em conformidade com o que Foucault entende por clssico para o Ocidente, mas que tambm pode se estender a muito antes. A nossa epistm pr-clssica no faria sentido ao Oriente; ali, sob a leitura orientalista, haveria apenas dois momentos: o clssico, de exotismo e sabedoria, e o moderno, de degenerao. Para ver mais: SAID, Ibid, pp 88, 89.

  • dominao, criando uma viso de si e do mundo em categorias simtricas, porm desniveladas numa distino entre inferioridade e superioridade. A prpria palavra oriental carrega uma srie de valores atemporais e imutveis que colocam a clareza, a integridade e a nobreza como caractersticas ocidentais em contraposio ao despotismo, sensualidade e irracionalidade conferidos ao Oriente. As percepes derivadas da justificam e estimulam o avano colonial e ao mesmo tempo consolidam e reafirmam o senso comum sobre a imagem do Oriente. Essa imagem nunca contestada, uma vez que o que existe o que se conhece e o que se conhece essa formulao. Dessa maneira, o Oriente aquilo que o Ocidente diz e impe a respeito dele e somente as ideias orientalistas do inteligibilidade e realidade ao mundo oriental. a criao de uma nova taxinomia classificadora. O conhecimento orientalista produz uma doutrina dinmica e eficiente, generalizando a complexidade oriental e criando um imaginrio no qual o Oriente uniforme, contnuo, regular e imutvel (assim como elementos dispostos num quadro). Dessa forma, administrar orientais torna-se a mesma coisa em toda parte e o domnio sempre baseado nas mesmas percepes. O orientalismo contm e representa o Oriente, transformando-o num objeto de erudio europeia a ser examinado, julgado, disciplinado e governado. O discurso engloba duas esferas, a cientfica e a literria. um conhecimento sistemtico pautado tanto em estudos etnolgicos, histricos, filolgicos, quanto em romances, poemas e tradues. Esse conhecimento dado como testado e inaltervel e qualquer considerao acerca do Oriente no passa pelas fontes originais, pelos dados empricos, mas antes pelo material elaborado e consolidado dos cdigos orientalistas, de sua ordenao. O Oriente percebido o Oriente orientalizado e as formulaes esto todas restritas a um sistema fechado de insensvel esquematizao.

    O orientalismo se coloca ento na condio de verdade cientfica e a partir da precisa-se lidar com uma atmosfera oriental e com uma personalidade oriental estritamente dogmticas, sempre entendendo o Oriente como reduto de mistrio, luxria, exotismo, hostilidade e, ao mesmo tempo, curiosidade e temor. Por se atribuir um conhecimento de causa, a autoridade textual do orientalismo, ratificada pela academia, pelo governo e por diferentes instituies, permite que o Ocidente crie o Oriente de acordo com seus interesses e que faa uso desse Oriente da maneira que lhe aprouver. O imperialismo dado como uma vantagem tanto para o dominador quanto para o dominado, uma vez que a ocupao e o controle se justificam pelo conhecimento profundo da realidade oriental, legitimando a ao ocidental. Somente o Ocidente est em posio de adentrar e conferir significado ao Oriente; o inverso no possvel devido prpria posio inferior do Oriente assim dada. Alm de estabelecer caractersticas culturais, tnicas e comportamentais prprias ao Oriente, o orientalismo tambm cria uma histria e uma geografia imaginativas que intensificam a distncia

  • e reafirmam a identidade opositiva entre o Leste e o Oeste. Desse modo, o Oriente sempre localizado em termos de lugares perigosos, misteriosos, longnquos e caricatos, numa percepo nem um pouco objetiva, mas que encerra grande carga simblica. O orientalismo deriva tanto de preconceitos populares quanto da presuno das naes e dos eruditos; ao estabelecer uma diferena radical entre o familiar e o estranho, entre ns e eles, constri-se um vocabulrio especfico, assim como uma imagtica e retrica apropriadas. Essas categorias coagem e limitam as reflexes sobre o Oriente fazendo com que coisas novas sejam vistas como verses de algo j conhecido. O orientalista confirma o Oriente aos olhos de seus leitores, ratifica as imagens exticas, distantes e estranhas e com a distino entre superioridade e inferioridade abre espao ao jugo colonial.

    UM SABER CLSSICO OU MODERNO?

    Como pudemos ver, o orientalismo tal como descrito por Edward Said, baseia-se fortemente nos princpios epistmicos clssicos. O orientalismo estabelece um quadro a partir do qual ele classifica o que oriental e o que ocidental; ele aloca costumes, qualidades e defeitos dentro desse quadro em relao a dois polos distintos: o Leste e o Oeste. Seu principal objetivo claramente colonizador, e a colonizao justificada pelo princpio da ordem. Alm disso, a representao possui um papel crucial, pois possibilita a relao de substituio entre elementos conhecidos, ou seja, cria signos a partir dos quais se faz uma leitura sobre o Oriente. Por fim, podemos destacar o importante papel do discurso no saber orientalista, pois sem ele no se poderia compreender a sistematicidade com a qual o Ocidente foi capaz de manejar e produzir o Oriente em diferentes esferas de representao. Isso fica claro nas prprias palavras de Said: Na histria natural, na antropologia, na generalizao cultural, um tipo tinha um carter particular que fornecia ao

    observador uma designao e, como diz Foucault, uma derivao controlada. Esses tipos e caracteres pertenciam a um sistema, uma rede de generalizaes relacionadas. (...) Na escrita de filsofos, historiadores, enciclopedistas e ensastas, encontramos o carter-como-designao aparecendo como classificao fisiolgico-moral: h, por exemplo, os selvagens, os europeus, os asiticos e assim por diante5. A partir dessas consideraes, poderamos nos perguntar como o orientalismo, enquanto um tpico conhecimento clssico, entra em operao durante o perodo moderno. Afinal, como ele consegue se sustentar na epistm moderna, mesmo operando pela lgica da ordem? A resposta para essas questes talvez se encontre no que Foucault diz a respeito das Cincias Humanas. Para Foucault, antes do fim do sculo XVIII no havia conscincia epistemolgica do homem enquanto tal. At o perodo clssico, havia o mundo, sua ordem, os seres humanos, mas no 5 SAID, Edward. Ibid, pp 173.

  • o homem. Quando este surge curiosidade do saber, aparece numa posio ambgua: , ao mesmo tempo, um objeto para o saber e o sujeito que conhece; ele fundamento das positividades e elemento das coisas empricas.A modernidade no se d com o estudo do homem por mtodos objetivos, mas pela sua compreenso enquanto um duplo emprico-transcendental:ele o que dado na experincia e o que a torna possvel.

    A constituio do homem delineada por um limite que no uma determinao imposta do exterior, mas uma finitude fundamental: o homem finito porque est preso aos contedos davida, da linguagem e do trabalho, por mais que estes lhes sejam autnomos. a partir da empiricidade que podemos entender a transcendentalidade do homem. O corpo finito, mas a vida no ; a fala finita, mas a linguagem permanece; as riquezas so finitas, mas o conceito de trabalho independe delas. Foucault v o homem enquanto um duplo, pois o emprico forma o transcendental e este forma o emprico, ao mesmo tempo. Alm disso, Foucault tambm problematiza o que ele chama de recuo da origem. O que d origem figura do homem aquilo que o articula com outra coisa que no ele prprio. Ele constitudo por outras coisas que comearam antes dele, a vida, a linguagem e o trabalho, e que possuem temporalidades diferentes das dele. Coloca-se a um desequilbrio: o homem aquilo a partir do qual todo conhecimento construdo e, ao mesmo tempo, autoriza o questionamento desse conhecimento. Ao mesmo tempo em que o homem se constitui como ser pensante, ele se v fora do processo que o constituiu. Ele est fora do processo, mas ocupa o lugar privilegiado de ser o nico que conhece, portanto, se reconhece como sujeito e ainda assim se v alienado. Esse aparecimento ambguo da figura do homem o acontecimento na ordem do saber que possibilita o nascimento das Cincias Humanas. Como j discutido, no se trata de aprimoramento de racionalidade ou cientificidade, mas de novas configuraes epistemolgicas. No perodo clssico, o campo do saber homogneo, uma vez que a representao se aplica a todas as reas; j no sculo XIX, o campo epistemolgico explode em diferentes direes. De acordo com Foucault, h trs dimenses na epistm moderna: as Cincias Matemticas e Fsicas, as Cincias (da linguagem, da vida e do trabalho), e a Reflexo Filosfica. As Cincias Humanasse constituem enquanto um conjunto de discursos e no como corpo de conhecimentos e, assim, tm lugar nos interstcios desse triedro, ora se aproximando de um campo, ora de outro, e lanando mo de temas e mtodos das diferentes reas. Foucault ainda destaca que a precariedade (inexatido, impreciso, fluidez) que normalmente atribuda s Cincias Humanas no se deve densidade de seu objeto, mas complexidade da configurao epistemolgica na qual se acham inseridas. Elas seriam cincias da reduplicao, pois so capazes de pensar a si mesmas (como uma sociologia da sociologia ou uma psicologia da psicologia). Isso torna difcil fixar limites entre seus objetos e mtodos, pois as Cincias Humanas se entrecruzam e podem interpretar-se umas s outras.

  • A principal concluso que Foucault tira dessas consideraes que a representao no apenas um objeto das Cincias Humanas: seu prprio campo. Seu argumento que as Cincias Humanas no contornaram o primado da representao, pois pensam em termos simblicos, de linguagem, e trabalham a partir da reduplicao. Ou seja, as Cincias Humanas s conseguem surgir na modernidade porque antes dela no havia a possibilidade da figura do homem (uma vez que no havia as ideias de vida, trabalho e linguagem), porm, mesmo que a epistm moderna seja condio para seu surgimento, as Cincias Humanas operam pela lgica clssica, pois no se desvinculam dos princpios da representao. A partir da, Foucault afirma que: A arqueologia tem, pois, para com elas, duas tarefas: determinar a maneira como elas se dispem na epistm em que se enrazam; mostrar tambm em que sua configurao radicalmente diferente daquela das cincias no sentido estrito. Essa configurao que lhes peculiar no deve ser tratada como um fenmeno negativo: no a presena de um obstculo, no alguma deficincia interna que as fazem malograr no limiar das formas cientficas. Elas constituem, na sua figura prpria, ao lado das cincias e sobre o mesmo solo arqueolgico, outras configuraes do saber6. Foucault coloca, portanto, as Cincias Humanas enquanto saberes somente possveis na epistm moderna, mas que operam pelas configuraes clssicas. Se a dvida a respeito do orientalismo era como ele conseguia se sustentar na modernidade operando a partir da ordem, do discurso e da representao, a resposta est em encar-lo enquanto uma tpica cincia humana. O orientalismo moderno tem incio no final do sculo XVIII e incio do XIX, poca em que, nas consideraes de Foucault, se d o nascimento do homem enquanto sujeito e objeto de saber. Como o orientalismo funciona como uma espcie de espelho classificador ( qualificando o outro que definimos quem somos), o homem sujeito de conhecimento, o ocidental, , ao mesmo tempo, objeto de conhecimento, mesmo que conscientemente enxergue apenas o oriental como objeto; a est sua situao enquanto duplo emprico-transcendental. O orientalismo trabalha a partir da reduplicao, pois um saber que pensa outros saberes, sejam estudos etnolgicos, histricos, filolgicos ou literrios. Portanto, o orientalismo possvel na epistm moderna mesmo operando de maneira clssica, pois faz parte das Cincias Humanas.

    BIBLIOGRAFIA:

    - CANDIOTTO, Cesar. Notas Sobre a Arqueologia de Foucault em As Palavras e as Coisas. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, V. 21, n. 28. 2009 - FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das Cincias Humanas. So Paulo: Martins Fontes, 2007. - SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. 6FOUCAULT, Michel. Ibid, pp 506.