PETUCO, Denis. Imagens e Palavras

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    MESTRADO EM EDUCAO LINHA DE PESQUISA - EDUCAO POPULAR

    Dnis Roberto da Silva Petuco

    Entre imagens e palavras

    O discurso de uma campanha de preveno ao crack

    Joo Pessoa, junho de 2011.

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    Dnis Roberto da Silva Petuco

    Entre imagens e palavras

    O discurso de uma campanha de preveno ao crack

    Orientador Prof. Dr. Erenildo Joo Carlos

    Joo Pessoa, junho de 2011.

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Educao. Programa de Ps Graduao em Educao. Centro de Cincias Humanas, Letras e Humanidades. Universidade Federal da Paraba.

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    P512e Petuco, Dnis Roberto da Silva. Entre imagens e palavras: o discurso de uma campanha de

    preveno ao crack / Dnis Roberto da Silva Petuco.-- Joo Pessoa, 2011.

    131f. Orientador: Erenildo Joo Carlos Dissertao (Mestrado) UFPB/CE

    1. Educao e Sade. 2. Uso de drogas campanhas preveno. 3. Uso de drogas problemas sociais. 4. Anlise do discurso.

    UFPB/BC CDU: 37+614(043)

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    Um novo arquivista foi nomeado na cidade. Mas ser que foi mesmo nomeado? Ou agiria ele por sua prpria

    conta? As pessoas rancorosas dizem que ele o novo representante de uma tecnologia, de uma tecnocracia

    estrutural. Outros, que tomam sua prpria estupidez por inteligncia, dizem que um epgono de Hitler, ou, pelo

    menos, que ele agride os direitos do homem (no lhe perdoam o fato de ter anunciado a morte do homem).

    Outros dizem que um farsante que no consegue apoiar-se em nenhum texto sagrado e que mal cita os

    grandes filsofos. Outros, ao contrrio, dizem que algo de novo, nasceu na filosofia, e que esta obra tem a beleza

    daquilo que ela mesma recusa: uma manh de festa.

    Gilles Deleuze Foucault

    Para se matar um co, acusam-no de ter raiva. Claude Olievenstein Droga, Adolescentes e Sociedade: como um anjo canibal

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    AGRADECIMENTOS

    minha companheira, Flvia Fernando Lima Silva, pelo carinho, afeto, e companheirismo. Passamos por mais esta, linda. Nunca a metade foi to inteira / Uma medida que se supera / Metade ela era a companheira / Outra metade, era eu que era

    Aos meus pais, Sadi Petuco e Jussara da Silva Petuco, por todo o apoio, por terem segurado minha onda nos momentos de enlouquecimento. Vocs so absolutamente responsveis por tudo de bom que eu venha a efetuar no mundo.

    Ao meu orientador, Erenildo Joo Carlos, parceiro de dilogos foucaultianos, pelo acolhimento tico e esttico. H um novo arquivista na cidade?

    Aos professores Luiz Pereira de Lima Jnior, Jos Vaz Magalhes Nto e Erinaldo Alves do Nascimento, pela gentileza com que acolheram minha solicitao de dilogo.

    A Eymard Mouro Vasconcelos, um dos responsveis pela minha vinda para Paraba.

    Ao amigo e irmo Luis Vieira, o Prncipe do Baio, legtimo filho das terras do Baro Vamp de Satolep. Plantas, abraos e silncios nos difceis momentos iniciais em Jampa.

    s amigas e aos amigos pessoenses, este frgil e precioso bando. Sem vocs, a vida seria impossvel. Em especial a Rnio Dreissen e Enrique Mexicano Chaves.

    Aos camaradas do CAPSad Primavera, usurios e trabalhadores, e em especial, aos participantes das oficinas de msica nas segundas-feiras pela manh, em Cabedelo.

    Bezerra da Silva, Jorge Benjor, Jorge Arago, Zeca Pagodinho, Paulinho da Viola, Jackson do Pandeiro e todos os mestres que frequentaram as oficinas de msica do CAPSad Primavera nas segundas-feiras pela manh, em Cabedelo.

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    Aos irmos Diego Figueira da Silva e Rafael Gil Medeiros. Tem muito de vocs dois aqui. Espero que vocs considerem isto um elogio.

    A Edzia Almeida e Maria Milaneide de Souza, pela confiana e abertura de espaos quando tudo se fechou. Sem o seu trabalho, um homem no tem honra, e sem a sua honra, se morre e se mata.

    Gerncia de Sade Mental do Governo do Estado de Pernambuco, por aceitar minhas contribuies na construo de mais e melhores polticas pblicas para pessoas que usam lcool e outras drogas. Em especial, s amigas Melissa Azevedo e Marcela Lucena, e ao amigo Flvio Campos.

    A todos os professores e professoras, funcionrios e funcionrias do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal da Paraba.

    A todo o povo brasileiro, por sustentar minha graduao em Cincias Sociais, e agora meu mestrado em Educao. Por uma universidade cada vez mais pblica, capaz de constituir passarelas por meio das quais possam irromper, em plena praa, os sonhos e as vozes das minorias.

    A todas as pessoas que usam crack.

    Aos amigos Gilberto Prata e Carlos Alexandre, in memoriam.

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    RESUMO

    O uso de crack apresentado como um dos grandes problemas sociais da contemporaneidade. Apontado direta ou indiretamente como causa da morte de uma grande quantidade de pessoas, especialmente homens jovens e pobres, o crack amplia em muito a vulnerabilidade de todas as pessoas ligadas a qualquer uma das etapas do processo de produo, circulao, comrcio e consumo. Em meio a este problema, as campanhas de preveno ao uso de drogas. O objetivo deste estudo contribuir para a necessria reflexo sobre o discurso em campanhas de preveno ao uso de drogas. Nesta investigao, foram analisados enunciados na campanha Crack nem pensar, organizada pela Rede Brasil Sul de Comunicao (RBS), assim como outras campanhas, e encontrados vestgios que permitem apontar o discurso ali constitudo. Para tanto, foram utilizados elementos da Anlise Arqueolgica do Discurso, de Michel Foucault, alm de elementos reflexivos expressos em autores da Filosofia da Diferena e da Educao Popular. Conclui que o discurso inscrito pelas campanhas tm como sujeito o usurio de crack, inscrito como figura monstruosa e perigosa, capaz de prejudicar e/ou fazer sofrer as pessoas que o cercam.

    PALAVRAS CHAVE Uso de Drogas; Educao em sade; Preveno; Anlise do discurso

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    ABSTRACT

    Crack use is presented as one of the major social problems of contemporaneity. Aimed directly or indirectly as a cause of death of large numbers of people, especially poor young men, the crack expands greatly the vulnerability of all persons, especially young and poor man, connected with any of the stages of production, circulation, trade and consumption. Amid this problem, the prevention campaigns to drug use. The aim of this study is to contribute to the necessary reflection about the discourse in prevention campaigns to drug use. In this investigation, we analyzed the statements in the campaign Crack nem pensar, by Rede Brasil Sul de Comunicao (RBS), like other campaign, and found traces which may point out the discourse made there. To this end, we used elements of Archaeological Analysis of Discourse of Michel Foucault, and reflexive elements expressed by authors of the Philosophy of Difference, and Popular Education. Concluded that the discourse of the campaigns have as subject the user crack, registered as monstrous and dangerous figure, capable of damaging and/or make hurt the people around you.

    KEY WORDS

    Drugs use; Health education; Prevention; Discourse analysis

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    RESUMEN

    El consumo de crack (paco) se presenta como uno de los principales problemas sociales de la contemporaneidad. Apuntado directa o indirectamente como una de las causas de la muerte de un gran nmero de personas, especialmente hombres jvenes e pobres, el crack (paco) hace expandir en gran medida la vulnerabilidad de todas las personas relacionadas con cualquiera de las etapas de produccin, circulacin, comercio y consumo. En medio de este problema, las campaas de prevencin al consumo de drogas. El objetivo de este estudio es contribuir a la necesaria reflexin sobre el discurso en campaas para prevenir el consumo de drogas. En esta investigacin, se analizaron enunciados en la campaa Crack nem pensar, de Rede Brasil Sul de Comunicao (RBS), as como otras campaas, y se encontr rastros que indican el discurso inscripto all. Para esto, hemos utilizado elementos de Anlisis Arqueolgica del Discurso de Michel Foucault, y los elementos reflexivos expresados por los autores de la Filosofa de la Diferencia, y la Educacin Popular. Lleg a la conclusin de que el discurso de las campaas tienen como objeto el usuario de crack (paco), registrado como figura monstruosa y peligrosa, capaz de daar y/o hacer sufrir a la gente que te rodea.

    PALABRAS CLAVE

    Uso de drogas; Educacin sanitaria; Prevencin; Anlisis del discurso

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    SUMRIO 1. Pra no dizer que no falei de flores .......................................................................... 14

    2. No meio do caminho tinha uma pedra ....................................................................... 21

    3. Educao sobre drogas, educao antidrogas: uma reviso ...................................... 25

    4. Das imagens: outra reviso ........................................................................................ 31

    5. A pesquisa (tema, objeto, problematizao terica e aspectos metodolgicos) ........ 41 6. Arqueologia do presente escavaes em uma campanha contra o crack................. 50

    6.1 Vender o corpo por uma pedra de crack ............................................................................ 50

    6.2 Perder todos os amigos ...................................................................................................... 55

    6.3 Perder totalmente a dignidade ........................................................................................... 58

    6.4 Bater na prpria me ......................................................................................................... 62

    7. Articulando achados arqueolgicos ........................................................................... 65

    8. A segunda etapa da campanha ................................................................................... 80

    8.1 Sua me desistindo de voc ............................................................................................... 81

    8.2 Sua filha com vergonha de voc ........................................................................................ 84

    8.3 Seu pai desesperado por voc ............................................................................................ 86

    8.4 Seu irmo fugindo de voc ................................................................................................ 88

    8.5 Seu melhor amigo evitando voc ...................................................................................... 91

    8.6 Sua namorada com repulsa de voc ................................................................................... 93

    8.7 Seu filho com medo de voc ............................................................................................. 96

    9. O usurio de crack e seus outros ............................................................................... 99

    10. Interregno: entre imagens e palavras ..................................................................... 109

    11. Arqueologia do horror: discursos em uma campanha de preveno ao crack ....... 115

    12. Referncias ............................................................................................................ 127

    13. ndice de imagens .................................................................................................. 135

    14. Anexos ................................................................................................................... 140

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    Aos meus dois irmos: Francisco Carlos da Silva Petuco, falecido em 1985 aos 17 anos, e Matheus da Silva Petuco, falecido em 2010 aos 23 anos.

    H tempos so os jovens que adoecem

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    1. APRESENTAO (ou pra no dizer que no falei de flores) Se voc no me conhece, permita apresentar-me. Sou natural de Porto Alegre,

    morando em Joo Pessoa desde fevereiro de 2009. Minha atuao militante e profissional est ligada ao tema das drogas, especialmente em suas interfaces com Educao e Sade. Sou redutor de danos1, graduado em Cincias Sociais. Em 1989, tive contato com um movimento disparado a partir da campanha de Lula presidncia da Repblica. O Movimento Pr Comunidades Artsticas de Base era uma articulao de ativistas do campo da cultura, que buscava ultrapassar a noo de levar cultura ao povo. Foi neste contexto meu primeiro contato com a Educao Popular.

    Os anos seguintes foram vividos entre militncia poltica, ativismo cultural, lcool e cocana. Em 1999, submeti-me a um tratamento, depois do qual me dediquei ao trabalho em comunidades teraputicas; posteriormente, interessado por me aproximar de pessoas ainda em uso, aceitei o convite para trabalhar em uma instituio ligada igreja catlica progressista, que realizava trabalhos sociais na periferia de Porto Alegre.

    Neste trabalho, eu tive minha segunda aproximao com a Educao Popular. Trabalhava com jovens participantes de cursos de formao profissional, debatendo temas diversos (trabalho, gnero, sexualidade, uso de drogas, sade, questo racial, violncia, direitos humanos...). Usvamos teatro, msica, filmes e muitas, muitas rodas de conversa. Ali, tive colegas com quem aprendi muito sobre Paulo Freire.

    Um de nossos interesses era ajudar jovens que tivessem problemas com o uso de drogas. Descobrimos que o Programa de Reduo de Danos2 da Prefeitura de Porto Alegre (PRD/PoA) atuava naquela comunidade, e buscamos contato. Curioso, ofereci-me para acompanh-los no trabalho de campo. Era uma quinta-feira quando subimos o morro. Adentramos as artrias da comunidade, e entramos em um casebre com alguns homens jogando sinuca. Enquanto dois redutores de danos distribuam preservativos, uma redutora entrou em outro cmodo, uma espcie de prostbulo. Descortinava-se outro mundo dentro da comunidade na qual eu trabalhava havia cerca de dois anos. Pouco tempo depois, eu j fazia parte daquela equipe.

    1 Os redutores de danos so trabalhadores ou voluntrios que executam aes de educao em sade

    diretamente nos locais em que se renem pessoas que usam drogas (e tambm dentro de servios de sade). Seu objetivo problematizar a relao das pessoas com as drogas, mesmo que estas no consigam ou no queiram deixar o uso (DOMANICO, 2006; RIGONI, 2006; PETUCO, 2007). 2 Por Reduo de Danos entende-se uma forma de pensar o cuidado de pessoas que no querem ou no

    conseguem (momentaneamente ou no) abandonar o uso de lcool e outras drogas.

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    Trabalhar com Reduo de Danos disparou em mim coisas que no foram percebidas em um primeiro momento. Destas, talvez a que mais me chame ateno, hoje, que naquele momento eu me afastei dos debates e reflexes relativos ao campo da Educao. No conseguia perceber que o trabalho em sade era tambm um trabalho educativo. Abandonei o estudo de autores dedicados Pedagogia, e passei a devorar tudo o que encontrava sobre Sade Coletiva, especialmente coisas que relacionassem Sociologia e Antropologia da Sade ao tema do uso de drogas.

    No incio de 2005, entretanto, aconteceu algo que representou minha terceira aproximao com a Educao Popular. Pela quarta vez, Porto Alegre recebia o Frum Social Mundial, e o PRD participou do GT de Sade, e da construo do espao de Sade e Cultura. Num dos encontros, caiu em minhas mos um folder da Articulao Nacional de Movimentos e Prticas de Educao Popular e Sade (ANEPS).

    Instantaneamente, comecei a sentir as camadas que eu arbitrariamente havia construdo entre Sade e Educao serem destrudas. Acessava um entendimento que no se tem com a racionalidade, com a reflexo, mas com as vsceras. Aquilo produzia efeitos no meu corpo. Eu no pensava; eu sentia! E o que eu sentia? Isto que fazemos

    na Reduo de Danos Educao Popular em Sade.

    Creio que preciso explicar porque este momento em que eu descobri que existia algo como Educao Popular e Sade foi to importante. No se trata simplesmente de dar nome quilo que se faz, mas de algo muito mais importante do que isto. Acontece que a Educao Popular e a Reduo de Danos possuem a potncia dos saberes insurgentes... No se tratava de encontrar uma categoria terica capaz de domesticar a Reduo de Danos, inscrevendo cada pequeno ato em um circuito de significao, mas de cruzar saberes indomveis em um dilogo que no buscava acomodaes, mas o oposto: a amplificao de dvidas, de incertezas, de asperezas e de potncia. Um acontecimento.

    Lembro de uma histria que vivi durante o seminrio Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas, realizado em Porto Alegre em 2008, promovido pelo Conselho Regional de Psicologia. Nos trabalhos em grupo, usamos um lindo poema do Carlinhos Guarnieri, redutor de danos em Porto Alegre, para disparar as reflexes acerca daquilo que cada um de ns produzia em termos de cuidado de pessoas que usam lcool e outras drogas:

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    Detergente

    No vale queixa, Isto no deixa

    Enxergar, pensar direito, A lgrima no olho,

    A dor no peito... A mgoa

    S enxgua No desabafo,

    No deixa safo Da sujeira vigente

    H de ter gente Movida pelo corao

    Mas guiada pela razo Visando a perspectiva

    Em discusso produtiva Pra levar o real

    Mais perto do ideal A expectativa

    me da decepo A rede s fica viva

    Por convico e ao!

    De repente, ela falou. Era uma jovem educadora social, algo entre 25 e 30 anos. Estava acompanhada de um grupo de jovens com quem trabalhava em algum tipo de projeto ligado ao cumprimento de medidas scio-educativas. Dentre as atividades programadas para estes jovens, estava a oficina de marcenaria. A educadora explicou que depois de uma aula sobre Reduo de Danos, alguns dos jovens passaram a questionar porque eles no poderiam participar da marcenaria quando estivessem sob efeito de drogas. Segundo a compreenso deles, participar da oficina seria mais seguro do que ficar na rua, nas mesmas condies. A educadora considerou o questionamento; quando soube do seminrio, inscreveu a si mesma e a todo o grupo de estudantes.

    O que talvez parea simples para a Educao Popular, um grande avano para pensar o cuidado de pessoas que usam lcool e outras drogas. As contribuies para pensar mltiplos aspectos da problemtica das drogas so imensas. Interessa-me sobremaneira a extensa tradio freireana de respeito horizontalidade, dialogicidade, a potncia do processo pedaggico que se esfora para partir da realidade do educando, e no do desejo do educador; interessa-me a complexidade freireana, que poderia nos ajudar em uma compreenso das drogas, para alm dos aspectos frmaco-qumicos, como fenmeno poltico e cultural; interessa-me, sobretudo, a imensa f na vocao ontolgica para o ser mais (FREIRE, 1996, p. 18).

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    No campo da Sade, as contribuies de Freire podem ser reconhecidas, por exemplo, nas diretrizes da Poltica Nacional de Humanizao da Sade, dentre as quais destaco a noo de Projeto Teraputico Singular, que orienta a construo do tratamento de modo dialgico. Em outros territrios de Saber/Poder, entretanto, este direito de participao no se verifica. Pelo pas afora, so raros os casos de pessoas que usam drogas em conselhos sobre drogas (sejam municipais, estaduais ou o federal). Nos seminrios e congressos relacionados ao tema, raro ouvi-los. Sua livre manifestao tem sido taxada como apologia s drogas, e suas organizaes investigadas por suspeita de associao ao trfico. A partir de 2007, tornou-se comum a proibio dos eventos conhecidos como Marcha da Maconha em diversas cidades brasileiras, situao revertida apenas em junho de 2011, com aprovao unnime de uma ao movida pela Procuradoria-Geral da Repblica, em defesa da liberdade de expresso.

    Em sua ltima entrevista, Paulo Freire fala sobre a marcha que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizava naquele momento3:

    Eu morreria feliz se eu visse o Brasil cheio, em seu peito histrico, de marchas. Marchas dos que no tem escola, marcha dos reprovados, marcha dos que querem amar e no podem, marcha dos que se recusam a uma obedincia servil, marcha dos que se rebelam, marcha dos que querem ser e so proibidos de ser [grifo nosso]. (FREIRE, 1997)

    Seria uma temeridade colocar na boca de Paulo Freire um pretenso apoio, por extenso, Marcha da Maconha, neste seu discurso em defesa da marcha dos trabalhadores rurais sem terra. No obstante, no seriam eles tambm proibidos de ser?

    Sobre drogas, de prprio punho, Paulo Freire escreveu pouco. Na Pedagogia do Oprimido, encontramos a histria do borracho de Santiago, em que Freire elogia a postura acolhedora de um psiquiatra, seu orientando, na abordagem do uso de lcool junto s classes populares:

    Imaginemos, agora, o insucesso de um educador [...] moralista, que fosse fazer prdicas a esses homens contra o alcoolismo, apresentando-lhes como exemplo de virtude o que, para eles, no manifestao de virtude. (FREIRE, 2005, p. 132)

    3 Em 1997, o MST realizou a Marcha Nacional por Reforma Agrria, Emprego e Justia, caminhando

    com destino Braslia a partir de trs diferentes pontos do pas. A marcha ocorreu um ano depois da chacina de Eldorado dos Carajs (CHAVES, 2000). Paulo Freire morreria em abril de 1997.

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    Em Pedagogia da indignao, Freire fala de drogas a partir de sua luta contra a dependncia de tabaco. A partir desta ponte de empatia, deste esforo em colocar-se no lugar do outro, tanto no que diz respeito vulnerabilidade quanto potncia, Freire diz:

    Com a vontade enfraquecida, a resistncia frgil, a identidade posta em dvida, a autoestima esfarrapada, no se pode lutar. Desta forma, no se luta contra a explorao das classes dominantes como no se luta contra o poder do lcool, do fumo ou da maconha. Como no se pode lutar, por faltar coragem, vontade, rebeldia, se no se tem amanh, se no se tem esperana. Falta amanh aos esfarrapados do mundo como falta amanh aos subjugados pelas drogas. (FREIRE, 2000, p. 47)

    Meu projeto de pesquisa original, apresentado seleo para o mestrado em Educao na UFPB, dizia respeito aos diferentes padres de educao em sade expressos em lugares de tratamento para pessoas que usam lcool e outras drogas. Logo nas primeiras reunies, meu orientador poca, o Prof. Dr. Eymard Mouro Vasconcelos, ponderou a possibilidade de que eu buscasse ouvir de perto estas pessoas.

    Coloquei-me em estado de pesquisa, atento a todos os contatos possveis. No foram poucos: pessoas que usam drogas, estas podem ser encontradas em bares, salas de aula, parques... Na vida! Gilberto Velho j denunciava, nos anos 70, a inexistncia de um mundo das drogas, e a existncia de mundos das drogas, absolutamente plurais (VELHO, 1998). Domiciano Siqueira, personagem histrico na construo de polticas e prticas de Reduo de Danos no Brasil, lembra-nos que vivemos em uma sociedade com drogas desde tempos imemoriais, e por mais que o Estado Brasileiro e as Naes Unidas sustentem, em seus documentos oficiais, o projeto/utopia de um mundo livre das drogas, no plausvel imagin-lo como projeto real (SIQUEIRA, 2006).

    Foi durante estes momentos iniciais que me senti interpelado pela campanha de preveno que analiso neste estudo. Havia me mudado fazia pouco para a capital dos paraibanos, e ainda vivia muito ligado s coisas do Rio Grande do Sul. A Internet era uma ponte, por meio dos portais de notcia dos grandes grupos de comunicao. Num destes, uma campanha de preveno ao crack chamou minha ateno, especialmente por suas imagens fortes, os tons sombrios. Fui capturado: que diziam aquelas imagens, aquelas cores? Queria ouvir pessoas que usam drogas, mas no podia fugir do incmodo que me despertava aquela campanha.

    Aos poucos, um novo objeto emergia...

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    Achei importante comear esta dissertao de um modo bastante pessoal, pois entendo que isto contribui para uma melhor compreenso quanto s minhas escolhas tericas, ticas, poltica e metodolgicas. Uma espcie de anlise de implicao, moda dos esquizoanalistas (LOURAU, 1993, p. 17). O caminho que se segue a partir daqui inicia com um captulo introdutrio, que busca problematizar a emergncia das drogas como problema social a partir de uma viso catastrofista, quase sempre descolada da realidade epidemiolgica, que articula prticas de estigmatizao e criminalizao de populaes j vulnerveis a uma retrica sanitarista, num cenrio mundial em que as polticas assistenciais do Estado de Bem-Estar Social cedem espao represso em um contexto neoliberal. Situo a emergncia do crack como fenmeno poltico, social e econmico, e no apenas como uma substncia qumica prejudicial, e encerro perguntando: neste contexto, que educao sobre drogas?

    No captulo 3, Educao sobre drogas, educao antidrogas: uma reviso, busco trazer um pouco da reduzida produo acadmica em torno do tema da educao sobre drogas. Apresento alguns trabalhos de avaliao sobre campanhas de preveno, preveno na escola, projetos de educao extraclasse como dispositivos de preveno s drogas, educao em sade. Abordo tambm alguns estudos que se dedicam s interfaces entre drogas e violncia, estudos sobre mdia e drogas, estudos no campo da pedagogia, da psicanlise, da antropologia.

    O captulo 4 aborda o uso de imagens como recurso poltico-pedaggico, e o desenvolvimento das tcnicas de produo de imagens ao longo da histria. Tambm aproveito para estabelecer discusso com alguns autores que buscam problematizar as imagens e seus usos, especialmente ao longo do sculo XX e neste incio do sculo XXI, principalmente a partir da filosofia. Encerro o captulo com uma ponte entre estas reflexes e indagaes ao campo da Educao.

    No quinto captulo, defendo a relevncia e a pertinncia do projeto, delimitando tema e objeto de meu estudo. Ao mesmo tempo, exponho a caixa de ferramentas utilizada no trabalho, e diversos conceitos empregados ao longo da anlise. Busco explicar que a escrita minha grande ferramenta de trabalho; com ela percorro os enunciados, buscando explicitar ns em redes enunciativas. Chamo este ato de percorrer os enunciados em sua materialidade de cartografia, por meio da qual encontro e articulo elementos enunciativos.

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    No captulo 6, Imagens da campanha, possvel observar o mtodo em funcionamento. Percorro os enunciados com minha prpria escrita, descrevendo-os, e expondo as articulaes entre os mltiplos signos que inscrevem cada pea. Inspirei-me muito em trs trabalhos de Foucault: Isto no um cachimbo, sobre uma tela de Ren Magritte; As palavras e as coisas, especialmente no primoroso trabalho feito sobre uma tela de Velsquez; e Arqueologia do saber, com o qual penso compartilhar princpios ticos, estticos e metodolgicos.

    No stimo captulo, busco seguir as redes de signos em sua disperso, no apenas entre os cartazes da campanha escolhida como caso neste estudo, mas em um territrio preventivo ampliado, do qual as peas aqui observadas fazem parte, mas no constituem sua totalidade. Abordo trs regularidades: a juno entre sombras e exterioridade, configurando um territrio vivido; os ferimentos; as cinzas.

    No captulo 8, A segunda etapa da campanha, sigo utilizando minha prpria escrita como caminho, como forma de percorrer os enunciados em sua materialidade. Entretanto, aqui j se verifica, em meio ao prprio movimento, um esforo de conexo com o que foi descrito sobre a primeira etapa, e com o que vai sendo descrito ao longo deste prprio momento do trabalho. Ato contnuo, o captulo 9 aborda a disperso do discurso de culpabilizao do usurio de crack pelo sofrimento das pessoas que o cercam (especialmente a famlia), localizvel no apenas na campanha tomada como caso neste estudo, mas em outras campanhas de preveno.

    No penltimo captulo, antes de adentrar as consideraes finais, proponho uma parada para percorrer uma pea outra, inserida na mesma campanha. Uma pea de vdeo, um audiovisual que articula imagens, palavras e sons, uma reificao do discurso por meio de novas tecnologias visuais.

    No ltimo captulo apresento, sob a forma de um dilogo imaginrio, algumas das problematizaes construdas no mbito deste estudo, alm de possveis caminhos para pesquisas futuras.

    Que as pginas que se seguem sejam capazes de iluminar a ordem obscura que emerge nas campanhas de preveno ao uso de lcool e outras drogas (especialmente o crack). este o meu sincero desejo.

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    2. INTRODUO (ou no meio do caminho tinha uma pedra) Nunca houve uma s cultura em que no se verificasse o uso de drogas. Sempre

    existiram pessoas dispostas a beber, fumar, aspirar, sorver, comer ou friccionar sobre a pele substncias indutoras de mltiplas formas de alterao da conscincia (entorpecimento, ampliao da ateno, relaxamento, induo a estados onricos e alucinaes...), com inmeras motivaes (busca espiritual, deleite esttico, ampliao do rendimento profissional e estudantil, falta de sono ou a luta contra ele, o combate angstia e ao sofrimento, falta de coragem, fome...) (ESCOHOTADO, 1996; VARGAS, 2008; CARNEIRO, 2008). Escondidas na precria noo de uso de drogas, diferentes usos de diferentes substncias com objetivos diversos e sentidos variados.

    Em meio a toda esta multiplicidade, sempre existiram usos considerados prejudiciais: na mitologia crist, No bebe ao ponto de virar alvo de chacota dos filhos; entre os gregos, Hipcrates recomendava cuidados para diminuir os efeitos das ressacas (PESSOTTI, 1999); durante a grande internao da Idade Clssica, sempre houve lugar reservado nos asilos para os bbados de rua (FOUCAULT, 2004b), e nas fogueiras, para as bruxas e suas ervas (ESCOHOTADO, 1996). Entretanto, apenas a partir da Revoluo Industrial que veremos os usos de lcool e outras drogas constiturem-se em problema social, principalmente nos Estados Unidos:

    [...] o sculo dezenove foi o cadinho da adio. Foi quando descobriu-se ou criou-se a adio. Porm, a embriaguez crnica e a habituao a drogas no eram, de forma alguma, novas no sculo dezenove, como as consideraes sobre os sculos dezoito e anteriores vo mostrar. (BERRIDGE, 1994, p. 15)

    No Brasil, somente no sculo XX o debate em torno do tema ganha importncia. Antes, o uso problemtico de lcool era relacionado [...] defeitos morais, individuais, sociais ou raciais, e no se atribua prpria substncia grande importncia como causadora do problema [...] (FIORE, 2007, p. 27). No incio do sculo XX, emergiram dispositivos higienistas que buscavam esquadrinhar, disciplinar e controlar hbitos e comportamentos que, tolerados entre as classes privilegiadas, eram condenveis entre os pobres. Dentre estes hbitos, o uso problemtico de lcool:

    O fantasma do botequim popular (a boate ou o caf burgueses no so objetos de degenerescncia) aparece na representao deste imaginrio como instituio ameaadora para os valores da sociedade, pois o lugar do pecado e do vcio. (RAGO, 1987, pp. 196-197)

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    Nos sonhos positivistas, o Brasil do sculo XX industrializado, limpo e livre de vcios. O lema inscrito no centro da bandeira no deixa dvidas: preciso manter a ordem para garantir o progresso (CARVALHO, 2002). Os trabalhadores precisam ser fsica e moralmente saudveis. Nos anos subsequentes Revoluo Industrial, sobre o corpo que recaem os efeitos do poder, que [...] no mesmo mecanismo o torna [o corpo] tanto mais obediente quanto mais til, e inversamente (FOUCAULT, 2004, p. 119). Ou para citar uma sociloga brasileira ao referir-se ao mesmo momento histrico, nos Estados Unidos: [...] o avano tecnolgico vivenciado nesse perodo exigia uma mo-de-obra rpida, ativa e... sbria (CARLINI-COTRIM, 1998, p. 20).

    Nesta rede de sentidos, as drogas emergem no contexto poltico reflexivo brasileiro no incio do sculo XX. Nesta injuno jurdico-sanitria, engendrou-se a criminalizao da produo, circulao, comrcio, porte e consumo de uma srie de substncias qualificadas como ilcitas, que na prtica operaram efeitos de controle e segregao da populao negra (ADIALA, 1986). Exemplo disto tem-se no fato de que o rgo responsvel pela represso ao uso de maconha era, no incio da Repblica, a Inspetoria de Entorpecentes, Txicos e Mistificao, mesma instncia a qual cabia reprimir a capoeira e o candombl (VIDAL, 2008). Neste perodo surgem as palavras maconheiro e macumbeiro, terminologias policiais ordinrias de carter pejorativo, que resistem at hoje.

    Os primeiros indcios de uma poltica proibicionista sistematizada (CARVALHO, 2007, p. 8) em torno da cadeia produtiva de substncias tornadas ilcitas e no dos negros e outras populaes segregadas -, iro aparecer apenas na dcada de 1940, ainda que no cotidiano persistissem efeitos de seletividade penal. Para a lei de drogas do Estado Novo, a toxicomania uma doena de notificao compulsria, para a qual obrigatria a internao em hospital para psicopatas ou estabelecimentos privados. O comrcio e o uso eram penalizados da mesma forma (BRASIL, 1938).

    Segundo Salo de Carvalho, com a Ditadura Militar que o Brasil ingressa definitivamente no cenrio internacional de combate s drogas (CARVALHO, 2007, p. 14). dever de todos [...] colaborar na preveno e represso, e quem se recusa considerado colaborador (BRASIL, 1976). Neste contexto, ganha fora uma sistematizao em torno dos binmios dependnciatratamento e trfico-represso, reforando os esteretipos do consumidor-doente e do traficante-delinquente (CARVALHO, 2007, p. 23). J aqui, a produo do medo:

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    A tonalidade alarmista, efeito prprio das campanhas de Lei e Ordem, presente na legislao, revelando os temores que passam a nortear o senso comum sobre a matria. O discurso de pnico demonstra a distoro entre o real e o imaginrio, sobretudo porque os ndices de comrcio e consumo de drogas ilcitas no Brasil, em meados da dcada de setenta, se comparados ao de outros pases ocidentais, no substancialmente elevado. (CARVALHO, 2007, p. 26)

    Se por um lado o consumo de drogas naquele perodo no se configurava como um problema relevante do ponto de vista epidemiolgico, por outro se constitua em eficiente dispositivo de controle de populaes consideradas perigosas. Na primeira metade do sculo XX (da j referida Inspetoria de Entorpecentes, Txicos e Mistificao), era a populao negra o grupo vtima preferencial (ADIALA, 1986); durante a Ditadura Militar, os grupos de militncia poltica (VIDAL, 2008).

    Ao mesmo tempo em que diversos pases da Amrica do Sul eram submetidos a governos ditatoriais articulados (GUAZZELLI, 2004), o mundo ocidental vivia o desmoronamento do Estado de Bem Estar Social e o avano avassalador do iderio neoliberal, com nfase na flexibilizao e precarizao das relaes de trabalho (CASTEL, 2003), e na diminuio das atribuies assistenciais do Estado, articulada ampliao dos investimentos em represso:

    Designa-se geralmente pela expresso Washington consensus a panplia de medidas de ajuste estrutural impostas pelos provedores de fundos internacionais como condio para ajuda aos pases endividados [...]. Convm doravante estender esta noo a fim de nela englobar o tratamento punitivo da insegurana e da marginalidade sociais que so as consequncias lgicas dessas polticas. (WACQUANT, 2001, p. 74-75)

    A opo pelo brao forte da represso, em detrimento da mo acolhedora das polticas assistenciais, coerente no apenas com o Consenso de Washington, mas tambm com as diretrizes globais para o enfrentamento da cadeia produtiva das substncias qualificadas como ilcitas4, que surgem a partir da Conveno nica de Entorpecentes de 1961, constituda para o bem da humanidade, segundo a primeira frase do texto (UNODC, 1961). No obstante, a conveno oferece sustentao poltica para aes militares contra pequenos vendedores e produtores, para o encarceramento massivo e at mesmo pena de morte em alguns pases (JELSMA, 2008, p. 267).

    4 Expresso criada por Jorge Atlio Silva Ilunianelli para designar tanto a amplitude da cadeia produtiva

    (envolvendo produo, industrializao, transporte, comercializao e consumo), quanto historicidade da qualificao de algumas drogas como ilcitas, em detrimento de outras (ILUNIANELLI, 2007).

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    Depois da Conveno nica de 1961, o tema das drogas passou a integrar a agenda permanente das Naes Unidas, resultando na criao do Escritrio das Naes Unidas para Drogas e Crime (UNODC), com a misso de articular os Estados-Membros com respeito a polticas de drogas. Com o tempo, outras convenes foram se somando, o nmero de pases envolvidos foi se ampliando, os investimentos em represso foram aumentando. A meta da conveno de 1961 era erradicar o pio em 15 anos, cocana e maconha em 25; no obstante, a produo e o consumo no apenas no diminuram como aumentaram muito, sem falar no surgimento de novas drogas (JELSMA, 2008).

    Contextualizado nesta articulao de elementos, observo o surgimento do fenmeno poltico, cultural e econmico do crack: a emergncia das drogas como problema social a partir de uma viso catastrofista, descolada da realidade epidemiolgica, que articula prticas de estigmatizao e criminalizao de populaes j vulnerveis a uma retrica sanitria, em um cenrio mundial em que polticas assistenciais cedem espao represso, em sintonia com o expresso nas convenes internacionais sobre drogas, em seu esforo transnacional. E se observo o surgimento do fenmeno..., no o fao com o olhar ingnuo de um positivista, que acredita em tudo o que v, mas reconhecendo algo do meu olho em tudo aquilo que olho. Para os produtores, o crack surge como alternativa ao controle dos precursores qumicos necessrios ao refino de cocana (notadamente ter e acetona), poltica planejada pelo departamento de represso s drogas do governo dos Estados Unidos (DEA), e rapidamente endossada pelas Naes Unidas (ESCOHOTADO, 1996, p. 182). Alm disto, a pedra tornou o consumo de cocana acessvel s classes menos favorecidas, j que diminuiu muito os custos de fabricao e transporte. O problema?

    Se a cocana representa o luxo dos vencedores, a pasta base e o crack so o luxo dos miserveis, como um sucessor mais potente e dez ou doze vezes mais barato que seu original. (ESCOHOTADO, 1996, p. 181) 5

    Em meio ao triunfo neoliberal, com milhes de pessoas [...] excludas de modo permanente (BAUMAN, 2009, p. 22), o crack [...] capaz de rasgar o bolso dos indigentes com a mesma eficcia que a cocana arranhava o dos ricos (ESCOHOTADO, 1996, p. 182) 6. Neste contexto, que tipo de educao sobre drogas vem sendo produzida? Que discursos engendram-se em sua materialidade?

    5 A traduo nossa.

    6 Idem

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    3. EDUCAO SOBRE DROGAS, EDUCAO ANTIDROGAS: UMA REVISO Segundo Berridge (1994), a emergncia das drogas enquanto objeto investido

    pelo poder cientfico data da segunda metade do sculo XIX, ainda que desde o sculo XVIII j houvesse reflexes acerca do uso de lcool. A novidade, portanto, no estava relacionada a uma profuso de conceitos, de diferentes perspectivas tericas, ou mesmo ao surgimento de um campo7 de lutas em torno do tema das drogas:

    A novidade, no sculo XIX, no foi o conceito, mas uma determinada conjuno de foras polticas, culturais e sociais que deu hegemonia a esses conceitos. Os movimentos de abstinncia e antipio preocupam-se em recuperar os bebedores, acabar com o envolvimento da Gr-Bretanha no comrcio do pio da ndia com a China e em restringir o uso de opiceos aos legtimos propsitos mdicos. A profisso mdica vinha adquirindo status, especializando-se e reivindicando o reconhecimento de sua autoridade cientfica, atravs da teoria do germe e do estudo especializado de doenas particulares bem definidas. (BERRIDGE, 1994, p. 17)

    Esta efervescncia poltica e cientfica do sculo XIX acabou desembocando no desenvolvimento de concepes que valorizavam o olhar sobre aspectos de hereditariedade no uso de lcool e outras drogas. Estas perspectivas encontram afinidades com as noes higienistas e eugenistas que esto constituindo a sade pblica, no incio do sculo XX, articulando uso de lcool s teorias da degenerao (BERRIDGE, 1994, p. 19).

    Ainda que esta forma de iniciar uma reviso bibliogrfica sobre as drogas e seus usos deixe de fora toda uma reflexo que reconhece o uso de substncias s quais chamamos drogas como algo presente em inmeras tradies, em qualquer momento histrico, interessa iniciar assim como forma de situar a emergncia, se no do uso de drogas, ao menos de um campo poltico reflexivo das drogas (MEDEIROS & PETUCO, 2008), constitudo por mltiplos e distintos sujeitos em relaes de luta e aliana. Este campo, pela prpria natureza do objeto droga na contemporaneidade, possui caractersticas extremamente complexas, articulando debates que guardam relao com as reas da Sade Coletiva (tanto na Epidemiologia quanto em estudos de carter qualitativo); Direito (Penal e Sanitrio); Assistncia Social; Psicologia,

    7 Bourdieu (2004, pp. 20-21) diz que [...] a noo de campo est a para designar esse espao

    relativamente autnomo, esse microcosmo dotado de suas leis prprias. Se, como o macrocosmo, ele submetido a leis sociais, essas no so as mesmas. Se jamais escapa s imposies do macrocosmo, ele dispe, com relao a este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada.

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    Psicanlise e Psiquiatria; Biologia, Biomedicina e Bioqumica; Antropologia e Sociologia; Neurocincias; Educao (polticas educacionais, currculo e abordagens especficas do tema em sala de aula); Histria (das polticas, dos conceitos e dos usos propriamente ditos); Polticas Pblicas. Os atravessamentos histricos institudos entre Sade e Segurana Pblica, por exemplo, mereceriam um captulo parte.

    Uma ampla reviso bibliogrfica sobre o tema das drogas, que desejasse levar em considerao toda a complexidade deste campo, justificaria uma pesquisa feita apenas em torno deste objetivo. Para o exerccio ao qual me proponho, no entanto, isto no ser necessrio. Julgo pertinente fixar o foco em apenas alguns aspectos,

    notadamente aqueles referentes s interfaces entre educao e sade, com especial ateno para os estudos e as avaliaes sobre campanhas de preveno ao uso problemtico de lcool e outras drogas, como parte de um tipo de educao preventiva que tem espao privilegiado na mdia.

    H estudos sobre preveno na escola: Carvalho & Carlini-Cotrim (1992) discutem o imaginrio nas campanhas de preveno que identificam o [...] estudante pobre, que gasta seu tempo livre nas ruas, como um sujeito potencialmente drogado (CARVALHO & CARLINI-COTRIM, 1992, p. 147); alguns anos depois, Carlini-Cotrim (1998, p. 29) critica a reproduo, na escola, do enfoque disciplinador da guerra s drogas, e defende uma nfase na formao do jovem, tido como capaz de discernir e de optar; Aquino (1998) defende que o tema das drogas seja tratado de modo transversal ao currculo escolar, operando como tema gerador de debates com os estudantes; Campos (2005) prope a substituio das campanhas antidrogas, de carter doutrinador e contedos fortemente conservadores, por uma educao sobre drogas de carter crtico, cujo objetivo central seria a ampliao da autonomia e do senso de responsabilidade entre os educandos; Moreira, Silveira & Andreoli (2006) coordenaram um estudo qualitativo, por meio de entrevistas em profundidade realizadas com coordenadores pedaggicos de escolas pblicas no estado de So Paulo, e concluram que h, da parte dos educadores, o desejo de realizar aes educativas sobre drogas, mesmo que estes se sintam despreparados para este trabalho; Prado (2007) aborda o tema da formao de docentes, advogando que possvel modificar representaes sociais de professores a respeito das drogas e seus usos, por meio da metodologia da problematizao.

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    H tambm estudos sobre as interfaces do tema das drogas com a educao que produzida fora do espao escolar. Carla Mouro (2005) nos fala da participao em projetos educativos de carter cultural como dispositivo de proteo ao uso indevido de drogas entre jovens no Rio de Janeiro; luz de Vygostky, Paulo Paes (2006), nos fala dos redutores de danos como educadores que denunciam a alienao entre pessoas que usam drogas, possibilitando a ruptura com discursos morais produzidos sua revelia.

    Existem os estudos sobre a violncia relacionada s drogas. Zaluar (1999) nos fala de um reencantamento do mal em meio a lgicas de mercado no interior das redes ilegais, fazendo recrudescer a imagem do traficante como um possudo pelo demnio, mesmo entre os prprios envolvidos; Neto, Moreira & Sucena (2001) ouviram jovens ligados venda de drogas ilegais, concluindo que possvel defini-los, nem como soldados, nem como inocentes, e propondo uma ruptura com o modelo que atesta a existncia objetiva de uma guerra na cidade do Rio de Janeiro; por fim, Feffermann (2006) escutou jovens que [...] arriscam suas vidas no cotidiano, para ter a possibilidade de se sentirem vivos (FEFFERMANN, 2006, p. 335). Segundo a autora, as redes de comrcio ilegal, mesmo rompendo com o trabalho formal, reproduzem dinmicas de explorao, reproduzindo o sistema capitalista neoliberal.

    Quanto s campanhas de preveno, Canoletti e Soares (2005) dizem que a produo acadmica da dcada de 1990 em torno do tema pauta-se pela crtica ao modelo de guerra s drogas, num caminho oposto quilo que foi efetivado nas campanhas pblicas e privadas do mesmo perodo, demonstrando uma situao paradoxal: as campanhas de preveno ao uso indevido de drogas tm sido realizadas sem que se busque conhecer as reflexes realizadas, no mbito da academia, sobre estas mesmas campanhas (ou ao menos sem que se leve em considerao tais estudos). Monteiro, Vargas & Rebello (2003) avaliam um dispositivo de preveno utilizando mtodos qualitativos, as pesquisadoras produzem dados que permitem questionar basicamente a dois elementos: primeiro, o fato de que eventuais jogos pedaggicos no so capazes de substituir as dinmicas que se estabelecem entre educadores e educandos; segundo, que a criao de jogos e outras dinmicas pedaggicas no deveria jamais prescindir da necessria reflexo pedaggicas, ou mais especificamente, sobre o campo da Educao em Sade. Estudo numa linha bastante semelhante foi conduzido por Rua & Abramovay (2001), para avaliar as aes de preveno da Aids e do uso indevido de drogas em ambiente escolar. O estudo sugere que...

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    [...] uma das formas mais eficazes de conter o avano das DST, das infeces por HIV e do uso indevido de drogas so esforos amplos, consistentes e permanentes de formao de atitudes e comportamentos seguros entre os adolescentes e jovens. Nesse esforo junto a uma populao potencialmente mais vulnervel, num pas de dimenses continentais e dotado de acentuada diversidade cultural, todas as instituies devem ser envolvidas, com especial destaque para as escolas. (RUA & ABRAMOVAY, 2001, p. 224)

    Ainda no mbito dos trabalhos de flego, Vivarta (2005) se debrua sobre a abordagem da mdia com respeito s drogas e seus usos, indicando que os veculos da chamada mdia jovem tem uma maior preocupao com abordagens mais profundas e diversificadas que os veculos da assim chamada mdia tradicional, nos quais imperam noes de senso comum, estigmatizantes, reprodutoras de prticas preconceituosas, alheias diversidade de abordagens tericas e teraputicas para o tema. J o psicanalista Eduardo Leite (2005, p. 109) aproveita uma ampla campanha de preveno em meio televisivo, organizada por uma das mais ativas ONGs brasileiras dedicadas ao tema da preveno ao uso de drogas, para questionar [...] se, de fato, as campanhas representam a melhor forma de preveno dependncia, e indica que a melhor estratgia para proteger aos jovens do uso abusivo de drogas estaria na [...] expanso do universo semntico dos sujeitos [...], por meio de [...] prticas que viabilizem o movimento de simbolizao e questionamento das dificuldades da existncia, prticas de relanamento do desejo. Defende, para tanto, a expanso de polticas que possibilitem o acesso produo artstica, bem como a incluso de disciplinas como Filosofia e Sociologia no ensino mdio, questionando o carter tecnicista dos currculos escolares.

    J o artigo de Beatriz Carlini (2010) ele mesmo uma reviso. Inscrito em um amplo manual que busca abordar diversos aspectos do fenmeno conhecido como dependncia qumica, busca dar conta de uma ampla problematizao acerca do tema da preveno, que emerge dividido em duas grandes abordagens: aquelas alinhadas perspectiva de guerra s drogas, e outra, alinhada Reduo de Danos. Explica, no entanto, que a traduo destas diferentes abordagens [...] no simples nem linear (CARLINI, 2010, p. 788). Busca apresentar resumidamente alguns aspectos de diferentes modelos de preveno (amedrontamento, apelo moral, treinamento para resistir, presso de grupo positiva, orientao de pais, conhecimento cientfico, educao afetiva, oferecimento de alternativas, educao para a sade, educao normativa). Dedica uma ateno especial ao modelo definido como modificao das

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    condies de ensino, ao qual subdivide em quatro abordagens, que podem ser complementares, ou no (modificao das prticas instrucionais, melhoria do ambiente escolar, incentivo ao desenvolvimento social, oferecimento de servios de sade).

    Cavallari & Sodelli (2010) problematizam a adequao das ideias relacionadas s noes de Reduo de Danos e Vulnerabilidade para o desenvolvimento de estratgias de preveno na escola. Da noo de vulnerabilidade, os autores buscam aproveitar desde a gnese do conceito, associada luta pelo desenvolvimento de polticas pblicas de promoo dos direitos humanos, a partir de reconhecimento das fragilidades individuais como decorrentes de processos histricos, polticos, sociais, culturais (em franca oposio noo de grupo de risco, que culpabiliza os sujeitos). J da noo de Reduo de Danos, deve-se aproveitar a ideia de ruptura com fatalismos, o acolhimento da diversidade de diferentes usos de distintas drogas, e uma perspectiva dialgica que tambm comum ao pensamento freireano, por exemplo:

    Trabalhar a preveno ao uso de risco e dependncia de drogas na perspectiva da Reduo de Danos compreender que o melhor caminho para lidar com o fenmeno do consumo de drogas no decidir e definir pelos outros quais os comportamentos mais adequados e corretos. Assim, essa abordagem considera que nem todos os tipos de uso de drogas deveriam ser compreendidos como resultado de uma patologia. (CAVALLARI & SODELLI, 2010, p. 800)

    O ltimo artigo referenciado nesta breve reviso foi recentemente publicado no canadense Epidemiol Community Health Journal, e se refere a uma ampla reviso bibliogrfica realizada por pesquisadores das reas de DST/Aids e Sade Coletiva da Universidade de Vancouver, no Canad (WERB et all, 2011). Foram pesquisados inicialmente 462 estudos, dos quais 49 preencheram os requisitos iniciais, resultando finalmente em uma amostra de 11 pesquisas sobre preveno ao uso de drogas ilcitas. Os resultados so pouco animadores: dos estudos avaliados, apenas um observou impacto positivo das campanhas miditicas de preveno sobre o uso de drogas ilcitas; em outros dois, observou-se uma ampliao do desejo de usar drogas ilcitas por parte das pessoas expostas a programas de preveno; todos os demais estudos apontam que os anncios ligados a campanhas de preveno ao uso de drogas ilcitas no produzem qualquer tipo de efeito sobre o desejo de se usar drogas.

    Deste trabalho de reviso em torno do tema da preveno ao uso de drogas, emerge uma certeza: h poucos estudos sobre o assunto, e eles diminuem ainda mais se

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    levamos em considerao o fato de que alguns dos estudos observados contemplam as drogas como parte do tema da preveno a Aids, numa perspectiva de Reduo de Danos8. No obstante, e mesmo que sejam poucos, as orientaes que emergem destes trabalhos apontam na direo da crtica a um modelo preventivo alinhado perspectiva de guerra s drogas, e que encontra referente, ao menos no que tange s campanhas de preveno, quilo que alguns estudiosos vo chamar de pedagogia do horror, to presente nas campanhas de preveno de acidentes automobilsticos, e nos primeiros anos da estratgia brasileira de preveno a Aids.

    Na campanha que tomo como objeto de estudo, e em todas as outras com as quais estabeleo articulaes ao longo das pginas que se seguem, a direo tem sido justamente oposta a tudo aquilo que recomendado pelos estudos observados neste trabalho de reviso. Ao que tudo indica, os pesquisadores brasileiros que se dedicaram ao tema ao longo dos ltimos 15 anos, e as pessoas e grupos responsveis pela realizao de campanhas de preveno ao uso de lcool e outras drogas, pensam coisas radicalmente distintas. Nos primeiros anos do sculo XXI, pesquisas observavam uma diminuio desta distncia entre o pensamento acadmico e o que era efetivado nas campanhas de preveno. Hoje, h um recrudescimento dos modelos de pedagogia do horror. Talvez fosse o caso de buscar um retorno ao estado da arte observado por Canoletti & Soares:

    A abordagem do combate s drogas que se deixa transparecer na maior parte das vezes por uma linguagem blica - representa uma minoria entre as aproximaes tericas e prticas utilizadas nos estudos selecionados, o que provavelmente seja fruto de uma mudana de discurso do Estado e da sociedade civil, principalmente do setor acadmico, que passa, durante a dcada de 1990, a censurar tanto os discursos alarmistas e estritamente repressivos, como a reduo do problema das drogas a apenas um de seus ngulos a droga propriamente dita. (CANOLETTI & SOARES, 2005, p. 124)

    8 No caso brasileiro, as iniciativas de Reduo de Danos iniciaram com programas que previam a troca de

    seringas junto a usurios de drogas injetveis, como forma de evitar o compartilhamento de seringas contaminadas pelo HIV (BRASIL, 2001).

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    4. DAS IMAGENS: OUTRA REVISO

    Na sociedade ocidental (da qual o pensamento acadmico herdeiro, mesmo na Amrica Latina, sia ou frica), a escrita possui lugar de destaque. por meio da palavra que hegemonicamente se expressa o conhecimento, expresso que designa, de um modo geral, a produo cientfica sobre os mais variados temas (MARTINS, 2009, p. 9). Mesmo nas disciplinas em que se opera a partir de outros dispositivos (Artes Visuais, Antropologia Visual e da Performance, Msica...), no permitido aos pesquisadores abrir mo da palavra em artigos, teses e dissertaes. Mas, no apenas mtodo, a palavra tambm objeto de mltiplos campos de saber, atravessada por distintos saberes (MARTINS, 2009, pp. 10-11). Nos dizeres de Foucault:

    No que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visvel, num dficit que em vo se esforaria por recuperar. So irredutveis uma ao outro: por mais que se diga o que se v, o que se v no se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faa ver o que se est dizendo por imagens, metforas, comparaes, o lugar onde estas resplandecem no aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucesses da sintaxe definem. (FOUCAULT, 2004a, p. 12)

    Dentre os diversos elementos que constituem as campanhas de preveno, privilegiei, neste estudo, as imagens e demais aspectos visuais, signos que inscrevem os enunciados preventivos sobre drogas. A campanha escolhida como ponto de partida s problematizaes, caso central desta pesquisa, exuberante em sua dimenso imagtica: cores, formas, usurios de crack e familiares, cenrios em que so posicionados, todos so signos extremamente fortes, a tal ponto que os textos soam como meros elementos

    coadjuvantes ante a eloquncia de imagens que, como no dito popular, falam mais que mil palavras.

    Importante que se diga: no estou aqui desprezando as palavras e sua importncia nos enunciados percorridos e descritos ao longo do presente estudo. Afirmar isto deporia inclusive contra a prpria escolha do nome desta dissertao, que afirma o discurso entre imagens e palavras, e no apenas nas imagens. Se considero necessrio afirmar a importncia das imagens, justamente por causa do privilgio conferido s palavras no pensamento acadmico ocidental, como discutido no primeiro pargrafo. Ademais, concordo com Foucault (2007, p. 20) quando diz, sobre uma tela de Magritte, que no h oposio ou diviso entre os elementos do quadro, posto que todos (imagens e palavras) compem o enunciado em sua indivisibilidade.

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    Avanando um pouco mais, considero igualmente importante explicitar minha opo, nesta dissertao, por uma problematizao scio-histrica das imagens e seus usos, em detrimento da mdia. Desde o incio tive dvidas a respeito da necessidade de se investir em uma problematizao do universo de inscrio da campanha de preveno que tomo como caso nesta dissertao. Entendia ainda entendo que a opo pela internet no era assim to relevante, posto que as peas ali inscritas tambm poderiam ser encontradas e efetivamente o so! - em diversas outras bases (outdoors, panfletos, cartazes, peas televisivas, banners, marcadores de pginas, imagens em pontos de nibus, etc...). Fosse este um estudo de recepo, e tal problematizao seria totalmente necessria, j que o pblico que acessa informaes a partir da internet bastante diferenciado de outros pblicos. Mas, como este estudo se caracteriza por uma anlise do discurso em uma campanha de preveno, justifica-se a escolha por problematizar, no a internet, mas a utilizao de imagens como recurso educativo e miditico.

    Outro aspecto a ser considerado antes de encontrar alguns autores em um percurso scio-histrico, diz respeito opo em restringir o foco s imagens estticas: estampas, pinturas, gravuras, fotografias, retratos, desenhos. Ocorre que a maior parte do material com o qual estabeleci contato ao longo desta pesquisa constitui-se de imagens fixas. So principalmente cartazes, composies visuais com imagens e palavras. H tambm outdoors, e mesmo um marca-pginas. Os filmes comearam a aparecer nos momentos finais da pesquisa, em pequeno nmero, e principalmente: reificando a materialidade discursiva com que eu j vinha me deparando no ato de acompanhar o discurso em sua disperso. Por estas razes, pareceu-me aconselhvel restringir o foco aos escritos sobre a imagem, seus usos e efeitos.

    A comunicao social por meio de imagens remete aos primrdios. Lembro dos inmeros vestgios de desenhos feitos por homens e mulheres em paredes de cavernas, com a utilizao de pigmentos ou pela escavao em rochas, como na misteriosa Pedra do Ing, no interior da Paraba (BRITO, 2009). Nas mais diferentes culturas, em diferentes bases de inscrio e por meio das mais variadas tecnologias, homens e mulheres, individual e coletivamente, tm produzido imagens com os mais variados fins. Uma prtica social cuja idade remonta a aurora dos tempos, e que no apenas alcana, mas constitui a contemporaneidade9 (ELIADE, 1979).

    9 Assim como o uso de drogas. Ntida semelhana entre este pargrafo e o primeiro da pgina 21.

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    O uso de imagens como dispositivo poltico-pedaggico, como estratgia de convencimento, de propaganda, de inculcao, de debate, de luta, pode ser observado desde muito tempo na histria da humanidade. Caravaggio usava prostitutas e brios como modelos para pinturas crists, num momento em que a Igreja Catlica buscava aproximar-se das classes populares. Na Frana, Jacques-Louis David emprestou sua arte derrubada da Bastilha, ajudando a construir uma mitologia da revoluo (e dos revolucionrios). No Brasil, o uso de imagens em contexto pedaggico est ligado prpria presena do Padre Anchieta em sua misso de evangelizao dos nativos amerndios (CARLOS, 2010, p. 14). Em Roma, as imagens influenciavam posies polticas e religiosas, indo para alm da simples representao, mas encarnando o prprio objeto representado:

    Imagens, especialmente esttuas, eram uma importante forma de comunicao e mesmo de propaganda no mundo antigo, sobretudo em Roma na era de Augusto. Essa arte oficial romana influenciou a iconografia dos primrdios da Igreja Catlica: a imagem de Cristo em sua majestade, por exemplo, era uma adaptao da imagem do imperador. Para os cristos, as imagens eram tanto um meio de transmitir informao como de persuaso. [...] Beijar uma pintura ou uma esttua era um modo comum de expressar devoo, o que ainda hoje em dia se v nos mundos catlico e ortodoxo. (BRIGGS & BURKE, 2006, pp. 17-18)

    No possvel determinar o momento exato em que as imagens, de produes singulares (ainda que aos milhares!), tornaram-se cpias, sries de signos articulados, fac-smiles de um original perdido no tempo e na memria. Segundo Benjamin (1994, p. 166), ainda que a reproduo de obras de arte tenha sempre existido, a xilogravura pode ser considerada a primeira expresso daquilo que ele mesmo vai chamar de reprodutibilidade tcnica10 (Idem, p. 166-167). Em sua obra sobre a histria social da mdia, Asa Briggs & Peter Burke (2006, p. 44) referem-se ao final do sculo XIV como o momento em que surge a primeira xilogravura conhecida, cerca de cem anos antes da Bblia de Gutenberg. A gua-forte, tcnica de gravao de imagens a partir placas de ferro trabalhadas com cido, surge entre os sculos XVI e XVII (Idem, p. 45). No fim do sculo XVIII, a gravao de imagens em blocos de pedra (litografia) permitiria, pela primeira vez, a produo e reproduo de imagens coloridas (Ibidem, p. 45). Dizem os autores:

    10 A reprodutibilidade tcnica atinge, de maneiras diferentes, as mais diferentes formas de produo

    artstica: a msica (gravao); pintura (psteres); teatro (cinema?); escritos (impresso)...

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    provvel, por exemplo, que as mais memorveis e vvidas imagens do Novo Mundo no sejam aquelas relatadas por Cristvo Colombo e viajantes posteriores, mas as xilogravuras representando ndios ornados de cocares de penas, cozinhando e comendo carne humana. A devoo popular era estimulada por imagens de santos em xilogravuras distribudas nos dias de festa; imagens similares de Lutero ajudaram a difundir as ideias dos reformadores da Igreja em 1520. As pinturas de Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo foram reproduzidas sob a forma de gravuras e xilogravuras e apresentadas para um pblico bem maior, assim como as pinturas de Rubens no sculo XVII. (BRIGGS & BURKE, 2006, p. 45)

    Aps a litografia, a inveno da fotografia seria o prximo passo nesta escalada evolutiva. ainda Walter Benjamin quem diz, em um artigo chamado Pequena histria da fotografia que j se pressentia, no caso da fotografia, que a hora de sua inveno chegara (BENJAMIN, 1994, p. 91). E com a fotografia, algo de novo surge na forma como ns, seres humanos, nos relacionamos com as imagens. Benjamin aborda estas transformaes, falando dos rostos retratados em peas familiares:

    Se os quadros permaneciam no patrimnio da famlia, havia ainda uma certa curiosidade pelo retratado. Porm depois de duas ou trs geraes esse interesse desaparecia: os quadros valiam apenas como testemunho do talento artstico do seu autor. Mas na fotografia surge algo de estranho e novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o cho com um recato to displicente e to sedutor, preserva-se algo que no se reduz ao gnio artstico do fotgrafo Hill, algo que no pode ser silenciado, que reclama com insistncia o nome daquela que viveu ali, que tambm na foto real, e que no quer extinguir-se na arte. (BENJAMIN, 1994, p. 93)

    Se Walter Benjamin v a fotografia como um avano das tecnologias anteriores, Briggs & Burke (2006, pp. 166-167) posicionam-na como etapa anterior na evoluo do cinema e da televiso. As primeiras notcias sobre a produo de imagens a partir de efeitos da luz sobre o nitrato de prata datam de 1802, mas o desenvolvimento mais sistemtico d-se apenas a partir de 1839, na Frana. Os primeiros daguerretipos (denominao das primeiras fotografias, em homenagem ao seu idealizador, Louis Daguerre) eram peas nicas, feitas em metal pesado, das quais no se imaginava ainda a produo de cpias. Mesmo assim, a novidade teve tanto sucesso que em 1861, j havia mais de dois mil fotgrafos registrados na Gr-Bretanha. Em 1888, nos Estados Unidos, surge uma das invenes mais populares de todos os tempos: a cmera Kodak, que vendeu mais de cinco mil unidades em apenas cinco anos (BRIGSS & BURKE, 2006, p. 167).

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    A entrada da imagem na realidade miditica brasileira muito posterior ao mesmo advento em terras europeias. O primeiro nmero do Correio Braziliense, de 1808, jornal de oitenta pginas, tinha apenas uma ilustrao: a ilustrao de um campo de batalha numa notcia referente s guerras napolenicas (MOREL & BARROS, 2003, p. 64). Em 1860, surge o primeiro peridico em que as imagens so levadas, com o perdo da palavra, srio: trata-se da revista humorstica Semana Illustrada, organizada por Henrique Fleiuss, desenhista e litgrafo. Antes dela, houve apenas um ou outro pequeno jornal de caricaturas. Na sua esteira, entretanto, surgiram diversas outras revistas, dentre as quais se destacaram O Charivari (1862), assim como O Merrimac e O Bazar Volante (1863) (MOREL & BARROS, 2003, p. 66). Neste mesmo momento, comeam a surgir tambm as primeiras tiras e histrias em quadrinhos (MARTINS, 2001, pp. 40-41). Mas o primeiro acontecimento com ampla cobertura visual foi a Guerra do Paraguai:

    Fotgrafos, pintores e jornalistas deslocaram-se at os campos de batalha e acompanharam os exrcitos nos acampamentos. A cobertura da campanha trouxe inmeras novidades, como fotos do cotidiano da guerra. Essas imagens no eram publicadas diretamente na imprensa diria devido s dificuldades tcnicas de reproduo, j que ainda se utilizava o mtodo litogrfico. As informaes visuais apareciam em maior quantidade na forma de desenhos e charges. (MOREL & BARROS, 2003, p. 67)

    As fotografias e no o desenho de fotografias tiveram de esperar at 1900 para fazer parte dos peridicos brasileiros. O primeiro foi a Revista da Semana, seguida por Fon-Fon, Careta e O Malho. Os jornais dirios tiveram de esperar at os anos 20 para incorporar o avano s suas edies. Desde ento, o uso de fotos e demais formas de imagens no cotidiano vem se tornando cada vez mais comum, especialmente em um pas no qual o analfabetismo s passou a ser enfrentado de modo mais sistemtico h muito pouco tempo (MOREL & BARROS, 73).

    Abandono um pouco o esforo retrospectivo dos historiadores, pela reflexo contempornea de filsofos e socilogos. Para Roland Barthes, possvel analisar imagens a partir dos conceitos de Saussure, nas relaes entre significante e significado, ainda que numa foto um cachimbo seja sempre um cachimbo (BARTHES, 1984, p. 15). Convencido do poder da fotografia, diz haver duas formas de domestic-la: fazendo dela uma arte, ou banalizando-a (preocupao comum a diversos autores), sendo que esta segunda vertente contribuiria para tornar as sociedades mais falsas (Idem, p. 173):

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    O que caracteriza as sociedades ditas avanadas que hoje essas sociedades consomem imagens e no crenas, como as do passado; so, portanto, mais liberais, menos fanticas, mas tambm mais falsas (menos autnticas) coisa que tradu-zimos, na conscincia corrente, pela confisso de uma impresso de um tdio nauseabundo, como se a imagem, universalizando-se, produzisse um mundo sem diferenas (indiferente), donde s pode seguir, aqui e ali, o grito dos anarquismos, marginalismos e individualismos: eliminemos as imagens, salvemos o desejo imediato (sem mediao). (BARTHES, 1984, p. 174-175)

    Guy Debord inicia sua obra clssica nos lembrando, j no pargrafo quarto, que o espetculo no um conjunto de imagens, mas uma relao social entre pessoas, mediada por imagens (DEBORD, 1997, p. 14). O espetculo no seria apenas algo ligado ao mundo miditico da comunicao de massas, mas a prpria natureza de nosso tempo, com a caracterstica de fazer ver o mundo que j no se pode tocar diretamente, mundo este em que a viso torna-se o sentido privilegiado (DEBORD, 1997, p. 18). Nas palavras do prprio filsofo:

    O espetculo no pode ser compreendido como o abuso de um mundo da viso, o produto das tcnicas de difuso macia das imagens. Ele uma viso de mundo11 que se tornou efetiva, materialmente traduzida. uma viso de mundo que se objetivou. (DEBORD, 1997, p. 14)

    As reflexes de Debord encontram afinidades em diversos autores que se dedicam ao estudo das imagens (em especial da fotografia). Benjamin, por exemplo, em um clssico artigo de 1936, fala sobre a destruio da aura da obra de arte, decorrente dos mltiplos processos de reprodutibilidade tcnica, dos quais a fotografia apenas um exemplo (cita ainda a gravao musical e o cinema). A saturao decorrente do irrefrevel processo de reproduo guarda semelhanas com o que Debord chama de abuso de um mundo da viso:

    Cada dia fica mais ntida a diferena entre a reproduo, como ela nos oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematogrficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam to intimamente como, na reproduo, a transitoriedade e a repetibilidade. Retirar o objeto do seu invlucro, destruir sua aura, a caracterstica de uma forma de percepo cuja capacidade de captar o semelhante no mundo to aguda, que graas reproduo ela consegue capt-lo at no fenmeno nico. (BENJAMIN, 1994, p. 170) [grifo do prprio autor]

    11 No original, Weltanschauung.

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    Em um extraordinrio trabalho acerca da fotografia, a filsofa Susan Sontag aborda o tema a partir de mltiplos focos, uma prtica comum dos fotgrafos. Fala de voyeurismo, da violncia implcita no ato do fotografar, sobre o modo como as fotografias terminaram por modificar, de modo at mesmo brutal, todo nosso cdigo visual, definindo o que vale pena olhar e o que temos o direito de observar (SONTAG, 2007, p. 13). Semelhante noo de destruio da aura, Sontag uma leitora de Benjamin fala sobre a banalizao do sofrimento:

    Sofrer uma coisa; outra coisa viver com imagens fotogrficas do sofrimento, o que no refora necessariamente a conscincia e a capacidade de ser compassivo. Tambm pode corromp-las. Depois de ver tais imagens, a pessoa tem aberto a sua frente a caminho para ver mais - e cada vez mais. As imagens paralisam. As imagens anestesiam. (SONTAG, 2007, p. 30)

    Em Sobre fotografia, Sontag inicia um percurso reflexivo que vai acompanh-la at a morte. J Diante da dor dos outros (SONTAG, 2003) problematiza as imagens de violncia, ou mais precisamente, da guerra e do terrorismo. No primeiro, a banalizao das imagens de dor fator de enfraquecimento da nossa capacidade de indignao; no segundo, as fotos de corpos mutilados podem servir tanto como apologia da paz, quanto da vingana.

    Talvez a principal diferena entre Sobre fotografia e Diante da dor dos outros seja que o segundo livro questiona a previsibilidade dos efeitos das imagens, em especial das fotografias. No h como prever se os efeitos sero a banalizao (como postulado no primeiro livro), ou a indignao diante da dor, do sofrimento, at mesmo da estupidez da guerra e da violncia, e vaticina: todas as fotos esperam sua vez de serem explicadas ou deturpadas por suas legendas (SONTAG, 2003, p. 14)

    Alm da autocrtica, Sontag dirige crticas a Debord e Baudrillard (SONTAG, 2003, p. 91). A diferena? Debord guardaria preocupao com o espetculo, enquanto Baudrillard estaria confortvel com o simulacro. De prpria voz, Baudrillard fala da impossibilidade de certeza ante a dicotomia real/simulao, e afirma que diante desta dvida nunca assumida, sempre optamos por fazer funcionar o mundo a partir da perspectiva do real, cedendo aos esforos do poder, cujo objetivo seria justamente reinjectar real e referencial em toda parte (BAUDRILLARD, 1991, pp. 31-32). O esforo de comunicar inclusive por meio de imagens esgota-se na encenao da comunicao (Idem, p. 105). Diz o filsofo, que se auto-intitula um niilista:

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    J no h cena, j nem sequer a iluso mnima que faz com que os acontecimentos possam adquirir fora de realidade j no h cena nem solidariedade mental ou poltica: que nos importa o Chile, ou Biafra, os boat people, Bolonha ou a Polnia? Tudo isto vem aniquilar-se no ecr da televiso. Estamos na era dos acontecimentos sem consequncias (e das teorias sem consequncias). (BOUDRILLARD, 1991, p. 201)

    Alberto Manguel (2009) tem s imagens como narrativas, ainda que diferentes de um filme feito para o cinema, ou mesmo de um romance: enquanto estes s se expressam em uma fatia de tempo necessrio ao desdobramento de uma sequncia narrativa com incio, meio e fim, as imagens [...] se apresentam nossa conscincia instantaneamente, encerradas pela sua moldura a parede de uma caverna ou museu em uma superfcie especfica (MANGUEL, 2009, p. 25). Seu foco, ao menos neste livro, no so fotografias, mas obras de arte. Ao longo do livro, o autor visita artistas como Picasso, Caravaggio, Aleijadinho, Joan Mitchell e outros vrios. Em cada um destes diversos artistas (dentre os quais no h s pintores, mas tambm arquitetos, escultores, fotgrafos...), o autor encontra uma ideia forte, uma perspectiva que opera como uma espcie de amplificador de determinados aspectos da vida, do tema, da sociedade, dos processos em meios aos quais engendra-se cada imagem, cada conjunto de imagens. Quando aborda Caravaggio, por exemplo, Manguel fala da imagem como uma pea de teatro, como [...] um palco, um local para representao (Idem, p. 291). Mas no qualquer palco: trata-se de estabelecer uma relao em que o espectador insinua-se na obra, na prpria narrativa, no cenrio, no contexto. Um palco em que no h separao entre atores e plateia. Ao utilizar, como modelos em suas obras, a gente ordinria do povo de Npoles, em meados do sculo XVIII, Caravaggio joga o espectador no turbilho das ruas, em meio ao burburinho das massas de miserveis, sobre as quais...

    [...] os napolitanos projetavam tambm seus sentimentos de frustrao, raiva, ridculo e subverso. Enquanto os mendigos e seus aparentados eram caados e temidos nas praas e ruas, sua lngua, seus gestos e humor eram resgatados e traduzidos no teatro popular. (MANGUEL, 2009, p. 297).

    Nota-se claramente a opo de Manguel em relacionar-se com as imagens a partir de um instrumental terico-metodolgico de uma caixa de ferramentas bastante diferenciada da forma pela qual optei no projeto que aqui se apresenta. Percebe-se a emergncia de respostas outras, para perguntas outras. Quando fala de Picasso, por exemplo, ser a violncia o sentimento referenciado, no porque isto esteja dado na obra em si, mas algo produzido pelo artista, por sua intencionalidade histrica,

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    objetiva, presencial. Dito de outro modo: Manguel no est preocupado com a dimenso produtiva da arte, com seus efeitos no mundo, mas com sua dimenso reprodutiva, com sua capacidade em espelhar uma sntese das relaes entre a obra, o contexto e o sujeito, sendo que este sujeito, aqui, no o sujeito da oba da arte, mas sim o artista como sujeito de sua obra (MANGUEL, 2009, pp. 205-220).

    Quero voltar uma vez mais a Sontag, quando pergunta: que fazer com um conhecimento como o que trazem as fotos de um sofrimento distante? (SONTAG, 2003, p. 83). Tal questionamento provoca o campo da Educao, campo no qual as reflexes a respeito dos modos de problematizao da realidade que nos cerca tm lugar privilegiado. Pois neste caso, parece um consenso o fato de que estamos imersos em um oceano de imagens, em meio ao qual navegamos (mergulhamos?) com pouca lucidez.

    Somos cercados por diversos tipos de imagens: fotografias, desenhos, pinturas, outdoor, escultura, charges, estampas, computador, televiso, filmes e outros. Na maioria das vezes, no nos damos conta das mensagens que elas nos transmitem: valores sociais, polticos, econmicos e culturais, o que requer uma leitura crtica. (SILVA, 2008, p. 57)

    O professor Erenildo Joo Carlos, orientador nesta pesquisa, lembra Paulo Freire em A importncia do ato ler, chamando ateno para o fato de que o mundo que nos cerca no feito apenas de palavras (CARLOS, 2008, p. 15). Tal compreenso deveria nos levar busca de uma educao que tornasse mais crtico o olhar, preparando-nos para viver num mundo em que as imagens ocupam, cada vez mais, um lugar de extrema relevncia (IDEM, p. 33). Um mundo em que a imagem ela mesma texto, uma forma de ser da linguagem (IBIDEM, p. 16), [...] que produzem efeitos sobre a conscincia e a conduta de indivduos em suas diferentes fases psicossociais: infncia, adolescncia, juventude e adulta (IBIDEM, p. 16). Justifica-se, portanto, a constituio de um campo de estudos em torno de uma pedagogia crtica da visualidade. Sobre esta, diz Carlos:

    A pedagogia crtica da visualidade anuncia um campo possvel de reflexo, problematizao e exerccio de uma prtica pedaggica especfica, fundada no entendimento de que a linguagem pode funcionar como uma estratgia mediadora entre o ato de ensinar e o de aprender, entre o indivduo que aprende e sua constituio como sujeito social. (CARLOS, 2010, 21)

    Em texto mais recente, Carlos & Faheina (2010) vo reafirmar a importncia da constituio de processos reflexivos sobre as imagens e seus usos, no apenas em ncleos universitrios de pesquisa, mas tambm (talvez principalmente) em ambiente

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    escolar, e chama ateno para o fato de que a imagem sirva no apenas como mediadora de conhecimentos, mas como objeto de estudo, de problematizao. Apontam ainda para a necessidade de incluso de estudos sobre visualidades na formao de pedagogos, e defendem uma gesto interdisciplinar do conhecimento que ...

    [...] contribua para que a escola seja um lugar de refeitura da cultura e da epistemologia da visualidade, notoriamente orientada pela lgica dominante das simulaes e dos simulacros produzidos pelos interesses concretos do mercado e do poder dominante. (CARLOS & FAHEINA, 2010, p. 42)

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    5. A PESQUISA (tema, objeto, problematizao terica e aspectos metodolgicos) Os conceitos filosficos so totalidades fragmentrias que no se ajustam umas s outras, j que suas bordas no coincidem. Eles nascem de lances de dados, no compem um quebra-cabeas. E, todavia, eles ressoam... (Deleuze & Guattari, 1992, p. 51)

    O estudo aqui apresentado caracteriza-se por uma anlise do discurso que irrompe nos enunciados em uma campanha de preveno ao uso de crack, veiculada por um grande grupo de comunicao da regio sul do Brasil, em diferentes bases de inscrio. Esta campanha teve durao de cerca de dois anos, do incio de 2009 ao final de 2010, e foi dividida em duas etapas distintas, cada qual com imagens prprias e elementos visuais caractersticos. As imagens e demais elementos foram rigorosamente analisados a partir de uma caixa de ferramentas terico-metodolgicas amparada na perspectiva da anlise arqueolgica do discurso, de Michel Foucault.

    Que relevncia tem, para os estudos sobre Educao, a anlise das imagens utilizadas em uma campanha de preveno ao uso de crack? Tais imagens poderiam ser consideradas objeto da Educao, e em especial da Educao Popular, linha de pesquisa qual sou vinculado? Por outro lado, existiriam contribuies ao campo poltico-reflexivo das drogas, a partir deste estudo? Em qu estaria ajudando para a construo de alternativas aos graves problemas relacionados, tanto ao uso problemtico de drogas, quanto inadequao de muitas das estratgias desenvolvidas para o enfrentamento da questo (PETUCO, 2007) 12? Ao campo poltico-reflexivo das drogas, territrio to profundamente atravessado pelas produes tericas da Sade e do Direito, que contribuies podem emergir dos esforos empreendidos no campo da Educao, sobre um objeto to difano quanto imagens em uma campanha de preveno? No seria mais relevante aproximar-me das prprias pessoas que usam o crack, ouvi-las, conversar com elas, compreend-las, estar junto delas aprendendo sobre seus hbitos, seus desejos, suas concepes sobre sade, vida e tudo o mais?13

    12 No primeiro pargrafo do artigo aqui referenciado, eu relato o caso de uma escola que contratou ces

    farejadores para procurar drogas entre os estudantes. Claro exemplo de uma interveno inadequada para o enfretamento de um problema (PETUCO, 2007, p. 35). 13

    Referncia aos estudos da antroploga e redutora de danos Luana Malheiros, com pessoas que usam crack na Cidade Baixa, em Salvador, Bahia. Suas pesquisas tm permitido conhecer a diversidade presente em um meio que, visto superficialmente, parece extremamente homogneo. Estudos deste tipo so importantssimos para a elaborao de polticas pblicas adequadas s necessidades dos maiores interessados: as prprias pessoas que usam crack.

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    Por certo, uma coisa no anula a outra. Opera-se aqui a partir da ideia de que discursos so prticas sociais, to reais quanto qualquer outra. Este estudo no se caracteriza por uma crtica simplria, que busca apontar eventuais inverdades nos enunciados expressos nas campanhas de preveno, a partir de sua comparao com a vida vivida, como a dizer que o que se v nas campanhas muito diferente daquilo que se v nas ruas. No esta a preocupao que me move, mas o discurso como algo produtivo. Preocupa-me o discurso nas campanhas de preveno, porque penso, junto com o Foucault (2005c), que os discursos participam da produo da realidade, incidem sobre ela, compondo o feixe de foras que o prprio poder.

    Os discursos esto, pois, na vida. Quanto Educao, esta tambm no se faz apenas na sala de aula. Freire dir que ela ocorre: ao longo da vida, na prpria histria (FREIRE & GUIMARES, 2000); nas lutas dos oprimidos (FREIRE, 2008); com as manhas do povo (FREIRE, 2000); no trabalho social (FREIRE, 1980); no encontro com o outro, no mundo (FREIRE, 1996); nas raras, mas preciosas conquistas (FREIRE, 1992). J o espanhol Csar Muoz (2004) nos fala de uma pedagogia da vida cotidiana, e muitos autores falam de uma educao pelo trabalho (FREINET, 1998).

    , portanto, na vida que aprendemos. No contato com as outras pessoas em nossa vida cotidiana, no trabalho, nos movimentos sociais. E tambm no contato que estabelecemos com os produtos da atividade humana, como os produtos miditicos: em A Cultura da Mdia, Douglas Kellner (2001) analisa diversos produtos da mass media (Rambo, Top Gun, Platoon, Poltergeist, Madonna...), preocupado no apenas com o contedo, mas tambm com a forma destes produtos:

    O rdio, a televiso, o cinema e outros produtos da indstria cultural fornecem os modelos daquilo que significa ser homem ou mulher, bem sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente. A cultura da mdia tambm fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raa, de nacionalidade, de sexualidade, de ns e eles. (KELLNER, 2001, p. 9)

    Os produtos da mdia podem apresentar-se, sim, como objetos de estudo da Educao, inclusive a partir de um compromisso tico/esttico/poltico orientado pelas ideias de Paulo Freire. Os produtos miditicos que nos cercam todos os dias inscrevem a todos ns, indiscutivelmente, em dinmicas de produo de subjetividades que nos pegam desatentos, inconscientes, e muitas vezes de modo sub-reptcio.

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    Embalado pelos ventos desta mesma reflexo, pergunto: em que espaos tem se dado a construo de uma educao sobre drogas, no Brasil? Em resposta a tal questionamento, penso nos projetos que buscam levar o tema para dentro da sala de aula, como o Sade e Preveno nas Escolas, desenvolvido pelo Programa Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais, em parceira com secretarias estaduais e municipais de sade e educao, e tambm no Programa Educacional de Resistncia s Drogas e Violncia (PROERD), com atividades desenvolvidas por policiais em sala de aula. Existem tambm as ONGs e agncias de Estado (como a Secretaria Nacional de Polticas Sobre Drogas SENAD), que desenvolvem atividades e projetos de preveno por meio de palestras, folhetos, brochuras e outros materiais educativos. E existem, por fim, as campanhas de mdia, em rdio, jornais, televiso e internet, que buscam a preveno do uso de lcool e outras drogas por meio de peas publicitrias.

    De todas estas formas, possvel construir mltiplos processos de educao sobre drogas, a partir de diferentes convices, expressando diferentes discursos, diferentes mitologias preventivas 14.

    importante avaliar no apenas se estes trabalhos tm surtido efeito, mas tambm que efeitos so estes. A experincia brasileira no enfretamento epidemia de Aids trouxe ensinamentos que poderiam se extrapolados quando pensamos no tema desta pesquisa. poca, as experincias preventivas centravam o foco nos chamados grupos de risco. Foram prdigas, no na diminuio dos ndices de infeco pelo HIV, mas na produo de estigma, preconceito e discriminao (OLIVEIRA, 2007).

    Muitos questionamentos mobilizavam-me quando fui interpelado pela campanha que tomo como base para esta pesquisa. De incio, era uma curiosidade distante dos interesses acadmicos. Sem perceber, no entanto, eu j percorria a rede de enunciados que compunham os discursos ali inscritos. Aos poucos, fui visitando as diferentes instncias daquele site: suas animaes, os textos, os fruns em que especialistas respondem a questes dos internautas, as notcias e as imagens. Sobretudo, as imagens.

    Optei pela verso da campanha para a internet. Inicialmente, no julguei tal opo relevante, tendo em vista que as imagens que analiso poderiam ser encontradas nas outras verses desta mesma campanha, exceo do rdio. No obstante, percebo agora que o mundo virtual o territrio no qual esta campanha se manifesta de modo

    14 Aluso ao ttulo do livro de Fernando Lefvre, Mitologia Sanitria (1999).

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    mais exuberante. Ali pode se encontrar cartazes, peas audiovisuais, a prpria organizao do site, em seus aspectos visuais... De certo modo, no site que se consegue acessar todas as diferentes linguagens empregadas pelos idealizadores desta campanha: as imagens a partir das quais foram produzidos outdoors, cartazes, propagandas em jornais e revistas, filmes para televiso, os udios que compem peas para rdio, tudo pode ser encontrado na verso da campanha para internet. Eis a a principal razo que me fez optar pela anlise da campanha sob esta base de inscrio.

    Neste trabalho de anlise, escolhi Michel Foucault como principal companheiro. Do filsofo francs, tomei principalmente as contribuies daquilo que se costuma chamar de o primeiro Foucault, ou seja: suas elaboraes sobre o Discurso. No que no apaream no corpo destes escritos - e em diversos momentos! - alguns detalhes que nos remetam s problematizaes foucaultianas acerca do Poder (o segundo Foucault, expresso em obras como A histria da sexualidade 1 e Em defesa da sociedade) e do Sujeito (o terceiro Foucault, que pode ser encontrado em livros como A histria da sexualidade 3 e A hermenutica do sujeito); seria difcil abordar o tema das drogas a partir de uma perspectiva crtica sem adentrar tambm nestes meandros, e isto ocorre em alguns momentos desta dissertao.

    No obstante os encontros com o Poder e o Sujeito, o Discurso o tema central deste estudo. Portanto, mesmo nos momentos em que falo do sujeito, do sujeito do discurso que falo. Um sujeito que no pode ser referido como o autor, posto que no se trata aqui do indivduo ou grupo responsvel pela elaborao do enunciado em sua origem primeva; no se trata tampouco do sujeito no sentido gramatical, o sujeito a executar a ao referida na frase, um sujeito literrio. O que , ento, o sujeito do discurso?

    um lugar determinado e vazio que pode efetivamente ser ocupado por indivduos diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia ou melhor, varivel o bastante para poder continuar, idntico a si mesmo, atravs de vrias frases, bem como para se modificar a cada uma. (FOUCAULT, 2005a, p.107)

    Foucault nos fala do sujeito como [...] um lugar determinado e vazio que pode ser ocupado por indivduos diferentes. Lembro aqui do prefcio segunda edio de uma coletnea de artigos cientficos sobre maconha publicada pelo Ministrio da Sade em 1958. Em um dado momento, j no fim do texto, l-se o seguinte pargrafo:

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    Procuremos mostrar-lhes que a despersonalizao do indivduo a perda de todos os sentimentos que o nobilita. a insensibilidade diante da prostituio da esposa ou filha; o assassnio frio, por motivo ftil, da me querida ou do irmo, o latrocnio sem explicao, a ameaa permanente segurana da sociedade. (BRASIL, 1958, p. XIII)

    H um lugar ao mesmo tempo determinado e vazio, que se no est definido de modo claramente objetivo, por outro lado no poderia ser ocupado por nenhum outro sujeito que no fosse o usurio de drogas, em suas mltiplas formas. No entanto, e como bem colocado na prpria definio anteriormente referida, o sujeito no se define ao ponto de solidificar-se. Sendo assim, o lugar determinado e vazio mantm-se, ainda que o sujeito usurio de drogas se modifique, mesmo que persista: se era o usurio de maconha no texto de 1958, o usurio de crack nas campanhas de preveno do sculo XXI. Ou seja: o sujeito [...] varivel o bastante para continuar, idntico