236
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA SHEILA PAULINO E SILVA Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento Filosófico Versão Corrigida São Paulo 2016

Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,

  • Upload
    others

  • View
    6

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

SHEILA PAULINO E SILVA

Phronesis e Noesis em Platatildeo

A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico

Versatildeo Corrigida

Satildeo Paulo

2016

Prof Dr Roberto Bolzani Filho

SHEILA PAULINO E SILVA

Phronesis e Noesis em Platatildeo

A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico

Versatildeo Corrigida

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia do

Departamento de Filosofia da Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

da Universidade de Satildeo Paulo para a

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em

Filosofia sob orientaccedilatildeo do Prof Dr

Roberto Bolzani Filho

2016

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte

Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Silva Sheila Paulino e Silva

Phronesis e Noesis em Platatildeo A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico Sheila Paulino e Silva Silva orientador Roberto Bolzani Filho Bolzani - Satildeo Paulo 2015

245 f

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Filosofia

1 PLATONISMO 2 FILOSOFIA GREGA 3 RACIOCIacuteNIO

(PENSAMENTO) 4 DIAgraveLOGOS 5 586 I Bolzani Roberto Bolzani Filho orient II Tiacutetulo

1

Para os meus pais

Dona Claudineacuteia e Sr Valter os quais

sem saberem ensinaram-me a

importacircncia de questionar sempre

2

Agradecimentos

Meus francos agradecimentos ao meu orientador Prof Dr Roberto Bolzani Filho

pela oportunidade

Aos Professores Francis Wolff da Eacutecole Normale Superieacuteure- Paris pela preciosa

orientaccedilatildeo e Dimitri El Murr da Universiteacute de Paris I pela generosa acolhida

Pela gentil e orientadora arguiccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo meus

agradecimentos agrave Professora Eliane Christina de Souza (UFSCAR) e Marco Antocircnio

Zingano (USP)

Aos professores Prof Dr Daniel Rossi Nunes Lopes e Prof Adriano Machado

Ribeiro pelo diaacutelogo em aulas e corredores

Aos colegas e professores dos estudos claacutessicos com os quais muito pude

aprender nos grupos de estudos Maria Eduarda Oliveira Prof Dr Andreacute Malta

Vicente de Arruda Sampaio e especialmente ao colega e professor de liacutengua grega

Maacutercio Mauaacute Chaves Ferreira por emprestar inteligecircncia e entusiasmo

Ao pessoal da secretaria Maria Helena Mariecirc Luciana Geni e Susan

Meu muito obrigado aos amigos Deborah Akemi Leila Andreacute Mayra Marina

Rineu Quinaglia e Prof Dr Thomaz Kawauche Agrave minha matildee irmatildeos e agrave Nina

A realizaccedilatildeo desta pesquisa natildeo seria possiacutevel sem as bolsas de estudos que me

foram concedidas a bolsa de doutorado do Conselho Nacional de Pesquisa ndash CNPQ a

qual garantiu que eu pudesse me dedicar exclusivamente a esta pesquisa e a ldquobolsa-

sanduiacutecherdquo concedida pela Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash CAPES imprescindiacutevel para a realizaccedilatildeo dos estudos em Paris

3

RESUMO

SILVA S P Phronesis e Noesis em Platatildeo - A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico

2015 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015

Pretende-se averiguar neste trabalho a concepccedilatildeo de pensamento ou

inteligecircncia que os diaacutelogos A Repuacuteblica VI e VII e Feacutedon apresentam Trata-se de

pontuar a partir da anaacutelise das questotildees que envolvem o trabalho cognitivo da alma

mais precisamente os temas sobre o conhecimento a reminiscecircncia o meacutetodo dialeacutetico

e a apreensatildeo das ideias a concepccedilatildeo de excelecircncia da racionalidade que o pensamento

filosoacutefico sugere Dada a hipoacutetese de que os diaacutelogos oferecem uma visatildeo de aquisiccedilatildeo

de superioridade da alma visatildeo coincidente em muitos aspectos tem-se a sugestatildeo do

pensar nos termos de atividade e de estado igualmente superiores ou excelentes no

qual se tem a plena realizaccedilatildeo das capacidades racionais O cerne da pesquisa consiste

em verificar na descriccedilatildeo da atividade filosoacutefica o que caracteriza a inteligecircncia e obter

uma compreensatildeo acerca desse trabalho do pensamento em sua maacutexima capacidade o

qual se desenvolve na busca do conhecimento que possa dizer acerca das questotildees mais

importantes como o Bem e a imortalidade

Palavras-chave inteligecircncia excelecircncia superaccedilatildeo filoacutesofo

4

ABSTRACT

SILVA S P θξόλεζηϛ and Nόεζηϛ in Plato ndash The Excelence of Philosophic Thought

2015 Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015

It is intended to investigate in this paper the concept of thought or intelligence

that is presented in the dialogues Republic VI and VII and Phaedo It concerns to point

out from the analysis of the issues surrounding the cognitive work of the soul more

precisely the themes about knowledge the reminiscence the dialectical method and the

apprehension of ideas the concept of the excellence of rationality that the philosophical

thought suggests Given the hypothesis that the dialogues offer a view on acquisition of

superiority of the soul coinciding view in many aspects there is the suggestion of

thinking in terms of activity and state equally superior or excellent in which one has the

full accomplishment of the rational capacities The research core consists in verifying

the description of philosophical activity which characterizes the intelligence and

acquiring an understanding of this work of the thought in its full capacity which

develops in the pursuit of the knowledge that can tell about the most important issues

such as Good and immortality

Key-Words intelligence excellence resilience philosopher

5

Lista de abreviaturas

A Repuacuteblica = Rep

Feacutedon = Fed

Meacutenon = Men

Teeteto = Teet

Fedro = Fedr

Livro ou livros = Liv

6

Sumaacuterio

Parte I A Repuacuteblica

Introduccedilatildeo 8

I A Excelecircncia do Filoacutesofo 15

11 O filoacutesofo governante 16

12 A melhor parte da alma 19

13 O Conhecimento dos valores 23

14 O objeto de desejo do filoacutesofo 30

15 A postura intelectual 33

II A Cogniccedilatildeo 37

21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem 37

22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento 41

23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios 51

24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel 56

III Atividade Inteligente 63

31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα 65

32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ 76

33 A funccedilatildeo da dialeacutetica 83

34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo 89

IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento 93

41 Operaccedilotildees e regras do pensamento 93

42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma 101

43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο 105

44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ 110

45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel 117

V A perspectiva da inteligecircncia 125

Conclusotildees sobre a λόεζηϛ 133

Parte II Feacutedon

7

I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel 139

11 O filoacutesofo agrave beira da morte 139

12 O pensar e o estado de morte 142

13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro 146

14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva 157

II A natureza inteligiacutevel 161

21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva 161

22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο 173

23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia 176

24 Distinccedilotildees entre alma e corpo 181

25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο 183

III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico 190

31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο 193

32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο 198

33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico 204

IV Atividade do puro pensamento 208

41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa 209

42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese 211

43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento 214

Conclusotildees sobre a θξόλεζηο 219

Conclusatildeo geral 222

Bibliografia 224

8

Introduccedilatildeo

O que eacute o pensamento Antes de se embrenhar na questatildeo que motivou esta

pesquisa eacute necessaacuterio se dispor a seguir os caminhos ora tortuosos que os textos

colocam para o seu leitor Deve-se dizer que essa natildeo eacute uma questatildeo formulada nesses

termos com este enquadramento aparentemente direto mas erige e tem suas resoluccedilotildees

na medida do que pede o tratamento do assunto tema de cada diaacutelogo Talvez agrave exceccedilatildeo

do Teeteto diaacutelogo o qual apresenta a necessidade de discernir acerca do trabalho

intelectual em oposiccedilatildeo agraves sensaccedilotildees para defender a razatildeo como faculdade cognitiva1 e

do Sofista onde Platatildeo se obriga a responder acerca da possibilidade do falso e desse

modo mostrar a saiacuteda para um loacutegos verdadeiro2 as indagaccedilotildees sobre a atividade do

pensamento eacute dada na maioria das vezes como um questionamento sobre o proacuteprio

exerciacutecio intelectual No desenrolar do exerciacutecio dialoacutegico incontornavelmente os

dialogantes se deparam e precisam em alguma medida pontuar algo acerca do

exerciacutecio racional para dar prosseguimento agrave investigaccedilatildeo

Embora postas nesses termos natildeo se deve concluir que sua importacircncia eacute

deixada em segundo plano Ao contraacuterio trata-se de uma questatildeo pela qual todas as

outras em anaacutelise ganharatildeo legitimidade e revelaratildeo seu fundamento filosoacutefico Sem a

certeza de o diaacutelogo ou no sentido mais teacutecnico o meacutetodo dialeacutetico constituir de fato

uma atividade cognitiva de onde se pode apreender algum conhecimento ou sem a

seguranccedila de seus resultados como conclusotildees vaacutelidas a inquiriccedilatildeo do filoacutesofo natildeo

alcanccedilaria seus objetivos e a investigaccedilatildeo filosoacutefica seria inoacutecua

Os aspectos da atividade do pensar tal como as vaacuterias concepccedilotildees que se pode

ter acerca dele satildeo dadas concomitantemente agraves indagaccedilotildees e respostas que compotildeem o

diaacutelogo filosoacutefico Parece natildeo fazer sentido mostrar o pensar senatildeo em sua atuaccedilatildeo De

fato natildeo parece apropriado tomar o pensamento como uma entidade ou instacircncia

1 Teeteto 189e ldquoMas por pensar entendes a mesma coisa que eurdquo Teeteto trad Carlos Alberto Nunes

Ed UFPA 2001 3a ediccedilatildeo

2 Sofista 263d9-e1 ldquo- E entatildeo natildeo eacute evidente desde jaacute que o pensamento a opiniatildeo a imaginaccedilatildeo satildeo

gecircneros suscetiacuteveis em nossas almas tanto de falsidade como de verdade () Compreenderaacutes mais

facilmente a razatildeo se me deixares explicar em que eles consistem e em que diferem um dos outrosrdquo

Sofista Trad Jorge Poleikat e Joatildeo Cruz Costa Ed Abril Cultural 1972

9

independente ainda que muitas vezes seja inferido e analisado de modo destacado tal

como sugerem as divisotildees e classificaccedilotildees da linha no Livro VI d‟A Repuacuteblica3 e a

formulaccedilatildeo de pensamento puro no Feacutedon4 Tais ocorrecircncias se datildeo a meu ver segundo

o foco narrativo e o contexto em que se daacute ecircnfase agrave atividade mais nobre da alma

Parece plausiacutevel supor que Platatildeo talvez adote como estrateacutegia natildeo perguntar acerca da

racionalidade nesses termos por preferir chamar toda a atenccedilatildeo evidentemente para o

tema eleito Ou ainda eacute possiacutevel conjecturar que a opccedilatildeo de dedicar um diaacutelogo para

responder exclusivamente a esta questatildeo obrigaria o filoacutesofo a acomodar ou a encaixar

subordinadamente os demais temas agraves definiccedilotildees ali atribuiacutedas como uma peccedila nuclear

que faz funcionar as outras que integram um sistema perfeito - concepccedilatildeo de conjunto

que diga-se de passagem parece estar longe de ser aquela que se pode encontrar nos

diaacutelogos O tema do pensamento mais precisamente da racionalidade em seu modo

mais alto mostra assim suas caracteriacutesticas de acordo com o que pede a questatildeo pois

sua realizaccedilatildeo enquanto capacidade se daacute com o desenrolar da investigaccedilatildeo

A polissemia que se atribui aos termos λόεζηϛ e θξόλεζηο demonstram tal

complexidade Ambos assumem ao longo das explanaccedilotildees vaacuterios sentidos ganhando

assim diversas traduccedilotildees tais como saber razatildeo bom senso de acordo com a tocircnica e

com o argumento em que se analisam as questotildees propostas De maneira parecida a

traduccedilatildeo por conhecimento parece seguir a coerecircncia do contexto expondo junto com as

questotildees acerca do pensar em seu grau de excelecircncia a tese sobre o verdadeiro

conhecimento Tais nuanccedilas de sentido quando consideradas propotildeem uma

interpretaccedilatildeo sobre a passagem e sobre o proacuteprio pensamento que muitas vezes vai aleacutem

da reafirmaccedilatildeo da concepccedilatildeo de conhecimento e de inteligecircncia Natildeo se trata

evidentemente de tentar fixar um sentido para cada termo que designa uma atividade

intelectual tampouco considerar as distinccedilotildees que os textos oferecem sobre o pensar um

exerciacutecio a fim de precisar uma nomenclatura Vale a pena verificar o sentido que

Platatildeo parece atribuir ao termo e ao mesmo tempo o que se pode apreender da questatildeo

com essa atribuiccedilatildeo5 Desse modo natildeo se deve admirar as vaacuterias perspectivas em que

ele eacute dado e a evoluccedilatildeo de seu refinamento no interior dos diaacutelogos e na aproximaccedilatildeo

3 As citaccedilotildees do texto seratildeo realizadas a partir da ediccedilatildeo brasileira Platatildeo A Repuacuteblica tradduccedilatildeo Anna

Lia Amaral de Almeida Prado Martins Fontes Satildeo Paulo 2006

4 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizar-se aacute Platatildeo Feacutedon traduccedilatildeo Maria Teresa Schiappa de Azevedo

Imprensa Oficial UNB 2000 5 Platatildeo esclarece ao fim do Livro VII a verdadeira intenccedilatildeo ao realizar as distinccedilotildees e as designaccedilotildees

acerca dos meacutetodos e da atividade racional neles envolvido Longe de ser uma discussatildeo sobre o nome

com o qual se deve referi-los diz pretender examinar as questotildees que suscitam (Rep 533d3)

10

possiacutevel entre as obras Parece ser mais eficiente mostrar as caracteriacutesticas da razatildeo em

seu exerciacutecio por ser a sua atividade o meio mais fiel de dizer a capacidade da alma

buscar a sua excelecircncia

Conveacutem adiantar que embora se pressuponha uma identidade entre o

pensamento nos dois diaacutelogos natildeo se pretende ler um diaacutelogo agrave luz de outro Mais

proveitoso do que tentar responder questotildees e dificuldades da formulaccedilatildeo que um

diaacutelogo apresenta sobre o tema a partir de outro eacute verificar em detalhes o problema em

cada texto e a partir de entatildeo refletir acerca de uma concepccedilatildeo de razatildeo e de atividade

racional no seu modo mais elevado Apesar das diferenccedilas que se pode encontrar em

uma comparaccedilatildeo entre os textos acerca do meacutetodo dialeacutetico das teorias e das visotildees

acerca da alma as quais seratildeo devidamente notadas quando parecer necessaacuterio cabe

assinalar que o emprego desses para o tratamento das questotildees que preocupam o

filoacutesofo parecem ter o mesmo objetivo e oferecem assim uma visatildeo do pensamento

Os aspectos acerca do tema da racionalidade nos diaacutelogos levam inevitavelmente

a diferentes abordagens Em geral os autores que optaram por enfrentar o problema

diretamente valeram-se de uma abordagem loacutegica na qual veem o trabalho intelectual

da filosofia em uacuteltima instacircncia com um propoacutesito de obter definiccedilotildees O caminho para

investigar acerca do pensamento surge nesse segmento da anaacutelise da conceituaccedilatildeo e do

aparato metodoloacutegico especiacutefico sendo o pensar filosoacutefico considerado detidamente

nesta atividade compreendida nos termos de um saber proposicional Outra perspectiva

em que se coloca a questatildeo do pensamento vai na direccedilatildeo oposta na qual se pretende

explicar o conhecimento filosoacutefico como um saber intuitivo uma apreensatildeo ou visatildeo

o qual se obteacutem ao fim de um processo de cogniccedilatildeo Nessa abordagem natildeo raro se

considera a metodologia limitada a qual embora importante parece natildeo ter peso

decisivo na aquisiccedilatildeo dos objetos especiacuteficos da filosofia O pensamento mais

precisamente a inteligecircncia constitui nesse enfoque o movimento que culmina nessa

intuiccedilatildeo

Natildeo se pretende neste trabalho travar uma discussatildeo acerca das visotildees que as

duas correntes pretendem defender Da mesma forma natildeo se tem o objetivo de se situar

em uma delas O que proponho para discussatildeo diz respeito ao modo de interpretar

passagens que permitam sugerir uma compreensatildeo sobre a racionalidade a partir do

estudo destes dois diaacutelogos Suponho que o pensar em seu modo excelente consista

sobretudo na superaccedilatildeo do intelecto em direccedilatildeo aos objetos e domiacutenios superiores

sendo assim a capacidade de alta cogniccedilatildeo e o movimento ascendente que tem em vista

11

as questotildees e as aquisiccedilotildees mais importantes o bem a imortalidade e a felicidade O

pensar compreende desse modo todo o movimento no qual o intelecto atua para sair do

plano das percepccedilotildees e lidar com os objetos que lhe satildeo proacuteprios

Desse modo natildeo se abordaraacute os diaacutelogos a partir de uma perspectiva

cronoloacutegica Pretende-se levantar e analisar as mesmas questotildees independentemente do

que suporia o intervalo entre a feitura e a anterioridade de um ou de outro Deu-se

atenccedilatildeo aos temas que permitem uma anaacutelise detida do assunto sendo considerado

importante para isso destacar os passos na construccedilatildeo do perfil da racionalidade Assim

o contexto em que se coloca e se desenvolve a questatildeo o meacutetodo os objetos a

distinccedilatildeo de planos e a cogniccedilatildeo satildeo temas que pontuam tal construccedilatildeo

O tema nos diaacutelogos

De maneira preacutevia parece pertinente apontar alguns temas e questotildees que

mostram a conveniecircncia de ter os dois diaacutelogos como fonte para o estudo que se propotildee

Cabe alguns comentaacuterios primeiramente acerca da necessidade comum agraves duas obras

de empreender uma investigaccedilatildeo sobre a cogniccedilatildeo e verificar desse modo seu alcance

seus limites procedimentos proacuteprios e validade do pensamento para levar a cabo o

exame da questatildeo tema do diaacutelogo Agrave sua maneira tanto os livros centrais d‟A

Repuacuteblica sobretudo o sexto e seacutetimo livro quanto o Feacutedon mostram que a resposta

acerca do que investigam natildeo dispensa paracircmetros teoacutericos e de meacutetodo adequado que

garantam um exame de acordo com a proposta da filosofia de conhecer

verdadeiramente Sendo assim ambos apresentam as caracteriacutesticas do trabalho racional

segundo a filosofia de modo a oferecer o procedimento e o significado conferido por

ela ao pensamento

Nesse sentido tem-se a importacircncia do estudo acerca de uma noccedilatildeo de um bem

metafiacutesico e compreensiacutevel pelo intelecto para averiguar os fundamentos da cidade

justa tal como mostra o livro VI A conveniecircncia de investigar a ideia do bem surge da

necessidade ter definiccedilotildees e certa clareza acerca do conhecimento ao modo filosoacutefico

uacutenico capaz de apreender tais alicerces Desse modo a cogniccedilatildeo sobretudo torna-se

objeto de investigaccedilatildeo por ser ela a atividade pela qual deve se dar tais apreensotildees e

12

pela qual o filoacutesofo governante deve ter as suas orientaccedilotildees para o comando da cidade

Ao ter a filosofia entre os temas da poliacutetica e uma vez traccedilado o perfil do futuro

governante de acordo com o Livro V faz parte da investigaccedilatildeo distinguir os elementos

que compotildeem o caraacuteter intelectual do filoacutesofo governante e que contribuem por meio

dele para a constituiccedilatildeo da cidade perfeita6 De modo sucinto dado o caraacuteter do

governo e da cidade a saber justo bom virtuoso e saacutebio conveacutem averiguar o que os

torna enquanto tais a saber o uso da racionalidade agrave maneira filosoacutefica Os Livros VI e

VII consistem desse modo nas seccedilotildees onde o filoacutesofo que investiga acerca da justiccedila

tem de se debruccedilar sobre as questotildees especiacuteficas ao tema do pensamento para mostrar a

relevacircncia e magnitude do estudo mais importante

As consideraccedilotildees sobre a alma e sobre o exerciacutecio filosoacutefico no Feacutedon tambeacutem

apontam para a necessidade de discernir acerca dos elementos que compotildeem o trabalho

racional Dada identificaccedilatildeo da alma quase exclusivamente agrave faculdade racional a

cogniccedilatildeo seraacute a atividade que restaura a sua natureza e desse modo que permite

encontrar os meios atraveacutes dos quais eacute possiacutevel dar a ela o tratamento adequado que

garantiraacute as qualidades necessaacuterias a saber virtude e inteligecircncia no mais alto grau

possiacutevel (Fed107c8-d2) Desse modo a filosofia como preparaccedilatildeo para a morte sugere

o percurso desse cuidado que consiste em linhas gerais em uma depuraccedilatildeo racional Eacute

necessaacuterio a partir desse contexto distinguir testar e validar o uso da razatildeo nesse

empreendimento filosoacutefico que tem como fim o bom destino e como objetivo imediato

no episoacutedio em que se passa o diaacutelogo o sucesso de uma investigaccedilatildeo sobre a

imortalidade Tanto a depuraccedilatildeo racional do Feacutedon quanto a elevaccedilatildeo cognitiva do

aprendiz d‟A Repuacuteblica VII datildeo mostras da atuaccedilatildeo do pensamento em busca de atingir

seu niacutevel mais superior

A especificaccedilatildeo da filosofia sobre o pensamento surge nos dois diaacutelogos da

necessidade de investigar e propor no que consiste a sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave esfera

que contempla os oacutergatildeos e os dados da sensibilidade Este seraacute provavelmente o grande

alvo a ser atacado isto eacute o qual deveraacute ser analisado para uma vez expostas as suas

fragilidades elucidar atraveacutes das suas contrastantes diferenccedilas com o inteligiacutevel o

trabalho organizado e preciso da racionalidade Quer no contexto da separaccedilatildeo da alma

6 Rep504e ldquoNatildeo seria ridiacuteculo que nos esforcemos e que tudo faccedilamos para que coisas insignificantes

fiquem tanto quanto possiacutevel mais exatas e niacutetidas mas natildeo consideremos que as mais importantes

mereccedilam tambeacutem maior exatidatildeo ndash Seraacute muito ridiacuteculo [Boa a tua ideacuteia] Mas qual eacute o estudo mais

importante Que objeto atribuis a elerdquo Platatildeo A Repuacuteblica traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado

Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

13

em relaccedilatildeo ao corpo quer no contexto da escolha do futuro governante o qual deve ser

educado para superar a ignoracircncia elevando-se da crenccedila nas imagens a anaacutelise da

atividade intelectual deveraacute contar com as objeccedilotildees lanccediladas ao domiacutenio do sensiacutevel

para propor a positividade do empreendimento racional em relaccedilatildeo aos objetos

metafiacutesicos proacuteprios do intelecto As indagaccedilotildees em torno do pensamento e de sua

legitimidade apontam para elementos afins como as ideias e o meacutetodo dialeacutetico os

quais obtecircm suas determinaccedilotildees junto com os desdobramentos do atividade racional em

oposiccedilatildeo ao que eacute proacuteprio agraves sensaccedilotildees Tal assunto apesar dos diferentes enfoques que

recebe nos diaacutelogos e mesmo apesar das distinccedilotildees que os textos apresentam sobre as

mesmas teorias demonstra o esforccedilo do filoacutesofo em apontar o exerciacutecio filosoacutefico como

a saiacuteda para as questotildees que afligem o homem como a morte e a convivecircncia na cidade

e ao mesmo tempo indicar o exerciacutecio do pensamento como o meio mais adequado para

buscar as possiacuteveis resoluccedilotildees Em outros termos ao eleger a distinccedilatildeo sensiacutevel-

inteligiacutevel como o mote para privilegiar a faculdade cognitiva da alma para o trato

destas questotildees os textos atribuem ao pensar a funccedilatildeo de condicionar a alma ao seu

melhor estado

Outro dado que tornam proacuteximos os diaacutelogos diz respeito agrave figura do filoacutesofo

Ao ocupar o foco das atenccedilotildees seja como aprendiz e governante da cidade ideal seja

como o filoacutesofo nos seus instantes finais o filoacutesofo eacute a personagem que representa o

pensamento filosoacutefico e a sua excelecircncia Como modelo de conduta e de capacidade

cognitiva o filoacutesofo exibe o que deve ser entedido por excelecircncia moral e intelectual

Nesse sentido o que se tem a partir da figura do filoacutesofo que os livros VI e VII d‟ A

Repuacuteblica eacute uma narrativa acerca do processo de aquisiccedilatildeo de uma condiccedilatildeo de

cogniccedilatildeo privilegiada definida como inteligecircncia (λόεζηϛ) a qual pode por isso

especular acerca do bem No Feacutedon tal figura sugere a imagem do processo acabado e

seus resultados e portanto o pensar plenamente desenvolvido (θξόλεζηο) capaz de

conjecturar sobre a imortalidade

Ambas as figuras mostram um modelo de excelecircncia moral e cognitiva que se

realiza concomitantemente agrave aquisiccedilatildeo de uma superioridade intelectual que se

especifica como tal sobretudo pela sua capacidade de apreender seres superiores Tais

seres servem de modelos e paradigmas para a conduta reta e justa e para o proacuteprio uso

da razatildeo que a partir deles pode conjecturar com plausibilidade uma dimensatildeo sempre

superior um domiacutenio que ultrapassa a sua proacutepria capacidade de apreensatildeo do qual

fazem parte o bem e a imortalidade inapreensiacuteveis em sua totalidade

14

A presenccedila de um horizonte amplo e que embora inapreensiacutevel totalmente pelo

pensamento devido agrave sua grandeza tambeacutem eacute um ponto incomum e importante para a

questatildeo a ser investigada nesse estudo A magnanimidade do bem e a

incomensurabilidade do domiacutenio da imortalidade ou estado de morte constitui um

contraponto para o que se refere agrave distinccedilatildeo do pensar ao modo filosoacutefico pois coloca

em questatildeo seu alcance e limite Ao constituir o bem o estudo mais importante

entretanto impossiacutevel de ser conhecido plenamente a investigaccedilatildeo acerca dele deve ser

questionada Do mesmo modo ao ser a morte e a imortalidade o tema sobre o qual vale

a pena arriscar uma explicaccedilatildeo mas que no entanto sobre ele natildeo se pode ter certezas

apenas convicccedilotildees conveacutem perguntar acerca da pertinecircncia desse empreendimento As

questotildees que decorrem desse problema e que conduzem ao tema da pesquisa buscam

saber o que pode a racionalidade conhecer sobre esta dimensatildeo a qual compreende o

bem e a imortalidade Tal propoacutesito obriga a averiguaccedilatildeo dos problemas e das possiacuteveis

respostas que surgem a partir da formulaccedilatildeo do pensamento em seu niacutevel mais alto de

cogniccedilatildeo em sua condiccedilatildeo de excelecircncia considerado o mais indicado para tecer

explicaccedilotildees sobre eles

15

I A Excelecircncia do Filoacutesofo

Diante desta perspectiva na qual um discurso sobre o pensar eacute possiacutevel a partir

de seu exerciacutecio Platatildeo se ocupa em pocircr em relevo nos diaacutelogos A Repuacuteblica e Feacutedon o

pensamento filosoacutefico ou seja o pensamento em seu niacutevel mais alto e portanto

exemplar de modo a constituir um modelo de excelecircncia do pensar anaacutelogo agrave figura do

filoacutesofo O que se apresenta a partir desta figura consiste no modelo de uso da

capacidade maacutexima do intelecto de modo a conquistar seu estado mais distinto e com

isso todos os benefiacutecios que se pode adquirir atraveacutes dele as virtudes a competecircncia

poliacutetica o conhecimento autecircntico a purificaccedilatildeo e o bom destino apoacutes a morte Como

modelo ideal de vida motivada pela busca da sabedoria e pautada no governo da razatildeo

o filoacutesofo e o desenvolvimento de seu intelecto descrito no processo de formaccedilatildeo do

seu caraacuteter no livro VII apresenta um exemplo e uma concepccedilatildeo de magnanimidade

realizaacutevel por meio da busca deste conhecimento superior Distinto de outras

experiecircncias psiacutequicas incluindo as emoccedilotildees e outras atividades mentais as quais

deveratildeo ganhar no Livro VI tratamento para contrastar com o intelecto a razatildeo deve

responder agraves possibilidades de relaccedilatildeo entre uma benignidade identificaacutevel ao divino

com a esfera da vida humana no seu aspecto praacutetico Dito de outro modo a inteligecircncia

tal como se quer formular ganha seu papel a partir da proposta de estabelecer os meios

adequados para que uma vida digna como tem o filoacutesofo do Feacutedon e um governo justo

como pretende o filoacutesofo governante d‟A Repuacuteblica tornem-se realizaacuteveis Desse modo

as accedilotildees do intelecto seus procedimentos e respostas satildeo dadas em busca de

estabelecer esta relaccedilatildeo

Diante de tais objetivos o pensar deve reconhecer a si mesmo ou seja refletir

sobre a sua atividade e sobre as coisas com as quais tem de lidar Essa autorreflexatildeo

sugerida pelo criticismo do filoacutesofo sempre atento aos rumos e procedimentos do

diaacutelogo mostra o exerciacutecio dialeacutetico do ιόγνο filosoacutefico como instrumento da

racionalidade e portanto afim com os propoacutesitos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos

O caraacuteter desta figura se constitui ao mesmo tempo em que esta maneira distinta de uso

da razatildeo apresenta suas especificidades

Assim partindo-se do jaacute enunciado pressuposto de haver uma simeacutetrica

correspondecircncia entre filoacutesofo alma e razatildeo nos diaacutelogos pretende-se tratar em uma

16

primeira parte a questatildeo n‟ A Repuacuteblica e em uma segunda do diaacutelogo Feacutedon Deve-se

ressaltar e analisar os elementos que compotildeem a distinccedilatildeo do filoacutesofo destacando as

questotildees que ganharatildeo tratamento e conceituaccedilatildeo filosoacutefica e que por isso deveratildeo

auxiliar a formar o perfil do pensamento mais alto Desse modo caracteriacutesticas como

qualidades perspectivas objetos seratildeo postos na primeira seccedilatildeo do primeiro capiacutetulo

correspondente a cada parte de modo a contextualizar a questatildeo

11 O filoacutesofo governante

Ao se depararem com a necessidade de perseguir a verdadeira natureza da justiccedila

(Rep 472a-c) e de definir o lugar do filoacutesofo na poacutelis (Rep 474b-c) Soacutecrates e Glaacuteucon

observam a mudanccedila de direccedilatildeo que a investigaccedilatildeo deve tomar no que diz respeito agrave

administraccedilatildeo da cidade (ηῶλ εἰξεκέλσλ πόιηο νἰθήζεηελ Rep 473a8) pondo em foco

assim a questatildeo preliminar mas natildeo menos importante ao tema do pensamento o que

estaacute na base das boas accedilotildees poliacuteticas Com esta questatildeo o diaacutelogo se lanccedila na direccedilatildeo

da causa e do modo justo de agir que ao ser investigada em profundidade conduziraacute

agravequela que parece constituir a verdadeira causa das accedilotildees humanas boas e justas Longe

de se tratar de um mero exerciacutecio abstracionista a investigaccedilatildeo do conceito de justiccedila

aparece indissociaacutevel da anaacutelise da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo poliacutetica exigindo nesta

perspectiva identificar e averiguar os elementos responsaacuteveis por uma praacutetica do

governante conforme o ideal de governo verdadeiramente justo a natureza filosoacutefica e a

formaccedilatildeo adequada Este governante justo e bom que deve comandar a kaliacutepolis uma

vez guardiatildeo das leis e das instituiccedilotildees (Rep 484b-c) representa cabe adiantar por via

do caraacuteter filosoacutefico exposto nos livros centrais o comando e a soberania da razatildeo

Modelo de um ἔζνο superior o filoacutesofo abriga todas as virtudes e conhecimentos

igualmente superiores servindo portanto de paradigma para uma reflexatildeo acerca dos

valores e seus fundamentos

A natureza distinta do filoacutesofo exibido no Livro V oferece um tipo de

personalidade intelectualista sobre a qual se teraacute nos proacuteximos livros explicaccedilotildees sobre

este traccedilo que o caracteriza o intelectualismo Aqui apresentado como aquele que ama

verdade (Rep 474d θηινζε κνλεο 476b) cujo pensamento (δηάλνηα) eacute capaz de ver

17

(eideicircn) a natureza do belo e se apegar a ele ( ἀζπάδνκαη Rep 476b8) capaz de buscar

o proacuteprio belo e de contemplaacute-lo em sua essecircncia (kath‟auto) (Rep 476d) discernindo a

essecircncia das coisas que dela participam (Rep 476d) mostra a distinccedilatildeo do filoacutesofo em

termos morais e poliacuteticos e cognitivos

Por ter o verdadeiro conhecimento o filoacutesofo deve ser o chefe da cidade pois pode

assim salvaguardar as leis e as suas instituiccedilotildees e se necessaacuterio estabelecer as leis do

belo do justo e do bom e mantendo sob guarda as que jaacute existem (Rep 484b-c) O

conhecimento das ideias que fundamentam os valores importantes para uma vida

harmocircnica na cidade deve garantir a manutenccedilatildeo da ordem e da convivecircncia A

sabedoria que o governante deve ter encontra seu fim na conservaccedilatildeo da poacutelis sendo

importante a conduccedilatildeo orientada da maneira correta ou seja orientada na justiccedila e no

verdadeiro bem Assim aquele que naturalmente pode governar ou seja que tem

inclinaccedilatildeo para buscar este saber indispensaacutevel para bem conduzir a cidade deve

apresentar desde a infacircncia caracteriacutesticas que indicam predisposiccedilatildeo para o

conhecimento Tem-se como condiccedilatildeo que a alma do verdadeiro filoacutesofo daquele que

possui alma filosoacutefica e que portanto deve ser treinado de modo a desenvolvecirc-la seja

dotada das seguintes qualidades ama a ciecircncia por inteiro (Rep 485b) natildeo sofre as

vicissitudes da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (Rep 485b) recusa por natureza toda a mentira

e tem afeiccedilatildeo pela verdade e por tudo o que eacute afim com o bem (Rep485c) tem gosto

pelo aprendizado deve se exercitar na busca da verdade (Rep 485d) e ter boa memoacuteria

(Rep 486d1)

O conjunto destas qualidades referentes agrave verdade e ao conhecimento denota a sua

inclinaccedilatildeo para adquirir a virtude da sabedoria Para o filoacutesofo o prazer eacute o prazer da

proacutepria alma fluindo na direccedilatildeo do conhecimento desprezando desse modo os prazeres

e os impulsos do corpo (Rep 485d10-e1) Por via de tal comportamento apresenta

desse modo a virtude da temperanccedila (Rep 485e) Dono de uma natureza incomum

aquele que tem aptidatildeo para a filosofia demonstra possuir grandeza magnanimidade por

ambicionar alcanccedilar o divino e o humano em sua inteireza (Rep 486a) e natildeo teme

desse modo a morte (Rep 486b1) Do mesmo modo dada a sua inteligecircncia considera

mais importante as coisas divinas em oposiccedilatildeo agraves humanas

As virtudes que o acompanham sabedoria justiccedila temperanccedila e coragem advindas

da educaccedilatildeo filosoacutefica atestam o seu lugar de comando na vida puacuteblica e aponta ser o

exerciacutecio filosoacutefico o meio de aquisiccedilatildeo de todas as virtudes Este perfil torna-se

completo com a explicaccedilatildeo em termos epistemoloacutegicos dos traccedilos de sua atividade no

18

livro VI e seu processo de formaccedilatildeo no livro VII Por enquanto tais caracteriacutesticas

expotildeem o caraacuteter cientiacutefico que Platatildeo pretende associar agrave elaboraccedilatildeo de um novo

modelo (παξάδεηγκα) poliacutetico A argumentaccedilatildeo acerca da importacircncia da formaccedilatildeo

intelectual do filoacutesofo desloca para o plano filosoacutefico as questotildees sobre a poacutelis

introduzindo assim um registro de inteligecircncia distinto daquele em que aparentemente

tais questotildees costumam ser consideradas Importa a partir de entatildeo verificar e propor

os elementos estruturantes desta racionalidade que confere todas as virtudes a este que

se mostra um exemplo de maioridade moral e intelectual capaz de realizar do melhor

modo possiacutevel a comunhatildeo entre εἶδνο e πξάμηο ou seja entre o saber intelectual dado pelo

conhecimento das ideias e praacutetica atraveacutes da participaccedilatildeo na vida poliacutetica

Para isso a proposta de uma nova noccedilatildeo de conhecimento (ἐπηζηήκε) e de

inteligecircncia (λόεζηϛ) ganham atenccedilatildeo ao assumir a funccedilatildeo de meio para a aquisiccedilatildeo

daquele que permite intuir sobre o bem a saber a ideia do bem a qual deve constituir

um paradigma para uma boa πξάμηο poliacutetica Parece conveniente dar atenccedilatildeo agrave figura do

guardiatildeo no livro V tal como a do aprendiz no livro VII por ser atraveacutes delas que se

revelam a finalidade e o processo de aquisiccedilatildeo deste tipo de conhecimento Somente no

caso do filoacutesofo natureza e poder poliacutetico coincidem e o processo de treinamento

intelectual do filoacutesofo aprendiz mostra a coerecircncia entre a capacidade cognitiva e

verdadeiro conhecimento habilidade natural e conhecimento especiacutefico caracteriacutesticas

que ao serem desenvolvidas pela filosofia resultam nas qualidades personalizadas na

figura do filoacutesofo

Junto com os desdobramentos epistemoloacutegicos que a discussatildeo ganha ao conduzir a

questatildeo da justiccedila na direccedilatildeo do que seria o governo justo e qual a sua verdadeira causa

surge o tema do pensamento Para que a inteligecircncia que tipifica o filoacutesofo como figura

excelente e portanto mais indicada para o governo tenha fundamento eacute necessaacuterio fazer

consideraccedilotildees acerca daquele que parece constituir o oacutergatildeo proacuteprio a capacidade

proacutepria para o conhecimento e que portanto torna possiacutevel a sua realizaccedilatildeo Na

perspectiva que analogamente toma a cidade como a alma tem-se o pensar se referindo

agrave melhor parte da alma agrave sua parte racional (o logistikon) e ao governante da cidade

Uma explanaccedilatildeo acerca da atuaccedilatildeo do pensamento e a conquista do estado mais alto se

torna o tema central das questotildees poliacuteticas e epistemoloacutegicas que a figura da excelecircncia

do filoacutesofo suscita As bases cientiacuteficas pedidas para nortear as reflexotildees acerca de um

modelo de cidade ideal ilumina o tema da inteligecircncia no conjunto de questotildees

19

relevantes por ser esta a atividade e estado (patheacutemata) crucial para a possibilidade de

uma vida feliz na poacutelis

12 A melhor parte da alma

Para que se chegue agrave cidade perfeita (πόιηο ηειέσο ἀγαζή Rep 427e7) eacute preciso

o arranjo harmocircnico entre as partes que a constituem A organizaccedilatildeo entre os cidadatildeos e

entre as outras cidades depende desse modo de um governante cujo conhecimento

(ἐπηζηήκε) compreenda a cidade como um todo (ὑπὲξ αὑηο ὅιεο) e seja por isso

capaz de estabelecer a melhor relaccedilatildeo entre as partes (Rep 428c11-d3) Adveacutem dos

conhecimentos desse distinto governante a sabedoria que conduziraacute a cidade tornando-a

saacutebia por natureza (Rep 428e8-429a3) Esta forte afirmaccedilatildeo prenuncia a investigaccedilatildeo

dos Livros VI e VII acerca daquela que se mostraraacute a atividade que pode

verdadeiramente realizar tal governo o pensamento em sua excelecircncia realizaacutevel ao

modo da filosofia O domiacutenio da melhor parte da alma dita no Livro IV expressa por

analogia a proposiccedilatildeo de um governo cientificista baseado no conhecimento exercido

pelo filoacutesofo cujo treinamento intelectual lhe permite desenvolver as quatro virtudes na

cidade sabedoria coragem temperanccedila e justiccedila A especificidade do treino dado ao

filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo propotildee deixaacute-lo apto a ocupar a posiccedilatildeo de

governante ao desenvolver sua natural disposiccedilatildeo para o comando Tal

desenvolvimento entretanto natildeo se daria sem um metoacutedico e especiacutefico exerciacutecio que

constitui a experiecircncia intelectual da filosofia Dito de outro modo a experiecircncia do

pensamento nos termos da educaccedilatildeo filosoacutefica confere ao filoacutesofo uma condiccedilatildeo tal que

permite realizar o melhor governo

A conveniecircncia da analogia entre a cidade e a alma mais precisamente sua parte

racional apresentada no livro IV e aparentemente concluiacuteda no Livro VII mostra-se

nesse sentido na possibilidade de investigar com maior profundidade a parte da alma

que deve governar e sobretudo o processo de aquisiccedilatildeo e o significado da excelecircncia

deste que deve ser o elemento dominante ndash ldquo-Ah E um homem justo em nada diferiraacute

de uma cidade justa em relaccedilatildeo ao proacuteprio gecircnero da justiccedila mas seraacute semelhante

(ὅκνηνο)rdquo (Rep 435b1-2) Empregada como um procedimento para a investigaccedilatildeo a

comparaccedilatildeo entre cidade e alma individual permite desse modo a anaacutelise de uma

20

atividade que como modelo deve ser transposta para pensar a cidade como um

organismo harmocircnico e assim justo7 A comparaccedilatildeo serve igualmente aos propoacutesitos

de investigar o pensamento nos termos que concernem agrave aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε a qual

em uacuteltima instacircncia traduz-se no processo de conversatildeo da alma ao bem e agrave ideia do

bem realizada pelo pensar ateacute o seu grau excelente

A elevaccedilatildeo da melhor caracteriacutestica da alma tal como apresentaraacute o Livro VII

(νῦ βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ Rep 532c3-6) realiza-se pelo correto e adequado exerciacutecio por

meio do qual se mostraratildeo as potencialidades e o caraacuteter especiacutefico da racionalidade nos

seus diferentes graus O que no Livro IV eacute sugerido como a cidade justa ou seja o

cumprimento do que determina a natureza de cada classe de acordo com as condiccedilotildees e

disposiccedilotildees de cada uma (πάζε ηε θαὶ ἕμεηο Rep 435b7435b4-5) os livros VI e VII

mostraratildeo como resultado de um processo de desenvolvimento desta natureza dentre as

quais a natureza filosoacutefica se mostra exemplar O desenvolvimento da natureza da alma

filosoacutefica consiste no treino e na busca intelectual do objeto de desejo da alma o bem

que pertence a determinado gecircnero e para isso requer uma atividade caracteriacutestica A

investigaccedilatildeo sobre a justiccedila versa nesses livros especialmente sobre o que deve

cumprir a alma de natureza filosoacutefica a partir da qual se faz uma diferenciaccedilatildeo nos

termos de condiccedilotildees e disposiccedilotildees intelectuais Assim o governo que naturalmente o

filoacutesofo deve exercer encontra nas inquiriccedilotildees sobre a inteligecircncia e seus objetos

especiacuteficos o fundamento racional que justifica tal domiacutenio8 Da mesma forma o objeto

7 Em 368e-369a a analogia aparece justificada como procedimento de maneira mais evidente ldquo() A

justiccedila eacute proacutepria de um indiviacuteduo Eacute tambeacutem proacutepria da cidade toda ndash Sem duacutevida disse ele ndash E a

cidade eacute maior que o indiviacuteduo ndash Maior disse ndash Ora num espaccedilo maior talvez haja mais justiccedila e seja

mais faacutecil entendecirc-la Se quiserdes portanto primeiro examinemos como ela eacute nas cidades depois a

examinemos no indiviacuteduo procurando na forma do menor a semelhanccedila com a da maiorrdquo

8 Anaacutelogo aos conflitos na cidade o conflito que a triparticcedilatildeo ou biparticcedilatildeo apresenta propotildee ao mesmo

tempo os princiacutepios que fundamentam as accedilotildees Desse modo uma accedilatildeo justa tem como base a relaccedilatildeo

equilibrada entre as partes equiliacutebrio alcanccedilaacutevel somente pelo domiacutenio da parte racional Robinson

explica melhor que se pretende argumentar ldquo() Mesmo na alma bipartite do iniacutecio da Repuacuteblica o

conflito era visto como interno as duas bdquonaturezas‟ eram bdquoopostas‟ e precisavam ser bdquoafinadas‟ (375c7-

8 410e) Isso natildeo eacute menos verdade quando o bdquoelemento filosoacutefico‟ eacute considerado realmente o bdquoelemento

raciocinativo‟ e quando o bdquoelemento irasciacutevel‟ longe de ser algo desiderativo eacute visto como bastante

distinto daquilo que eacute genuinamente desiderativo A justiccedila no indiviacuteduo e no Estado acaba sendo o

bdquofazer o proacuteprio trabalho‟ por parte de cada um dos elementos constituintes em um ou outro e a

injusticcedila o oposto (443c-e) Do mesmo modo define-se bdquosobriedade‟ ou bdquoequiliacutebrio‟ em termos que se

encaixam bem com a analogia de uma cidade ou Estado compartimentalizado um homem eacute bdquosoacutebrio‟

bdquodevido agrave amizade e agrave concoacuterdia dessas mesmas partes quando explicitamente o princiacutepio que governa

e seus dois suacuteditos unem-se na crenccedila de que a razatildeo deve governar e natildeo se rebelam contra elerdquo

Robinson T M A Psicologia de Platatildeo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2007 pg 85 Como se daacute o domiacutenio da

razatildeo sobre o desejo e sobre o iacutempeto eacute algo que natildeo parece ser explicado no Livro IV e tampouco nos

Livros VI e VII A razatildeo convenceria as outras partes da alma a cada uma cumprir devidamente sua

funccedilatildeo ou seria uma dominaccedilatildeo feita com reacutedeas curtas como parece ser a atitude da parte racional em

relaccedilatildeo agrave irasciacutevel no Fedro 256b1-3ldquo() senhores de si e disciplinados subjugam o que faz nascer a

21

que deve servir de modelo para as questotildees morais e o procedimento racional descrito

na atividade do dialeacutetico constituem os paracircmetros racionais para a atividade do bom

governo

Por ora natildeo se realizaraacute uma anaacutelise mais profunda sobre as questotildees que

envolvem a triparticcedilatildeo da alma no Livro IV Interessa abordar tal questatildeo na medida em

que se questiona acerca daquilo que eacute indicado como a parte racional da alma que deve

dominar as demais Parece inquestionaacutevel que a parte capaz de realizar as operaccedilotildees

racionais tal como descreveraacute os Livros VI e VII eacute a parte raciocinante por outro lado

vale ressaltar que os aspectos trabalhados nos livros citados mostram justamente como o

domiacutenio da razatildeo se mostra possiacutevel As influecircncias da parte irasciacutevel da alma natildeo

parecem estar em questatildeo Ao contraacuterio como a experiecircncia da conduccedilatildeo da alma feita

pelo pedagogo mostraraacute ao ser bem treinada a alma desenvolve as habilidades que

permitiratildeo no caso do dialeacutetico ter o conhecimento sobre as questotildees que se

relacionam ao bem e ter o discernimento necessaacuterio sobre sua proacutepria arte requisitos

necessaacuterios para o governo Se o dialeacutetico representa a parte racional da alma e em

contrapartida as outras classes de cidadatildeos estatildeo analogamente inferidos pelas demais

em seu uso correto o pensar domina ateacute mesmo a parte irasciacutevel a qual pode ter como

aliada

Todavia uma anaacutelise dos argumentos acerca da relaccedilatildeo entre alma e objeto no

Livro VI e do tratamento das disciplinas matemaacuteticas sobre as sensaccedilotildees ao final do

Livro VII mostram o que verdadeiramente constitui um estiacutemulo para o pensar Ainda

que a alma possua uma parte impetuosa que pode colaborar com sua racionalidade (Rep

440e-441a) no que diz respeito agraves operaccedilotildees e alcance racionais a interaccedilatildeo com os

seres inteligiacuteveis e a provocaccedilatildeo do sensiacutevel sobre a alma se revelam estiacutemulos proacuteprios

para a atividade do pensar Ao que parece o iacutempeto constituinte da alma tal como traz

a triparticcedilatildeo no Livro IV representa muito mais ao que tange o poder e a forccedila de um

dado governo na cidade do que ao tipo de estiacutemulo que trazem as anaacutelises acerca do

pensamento Diferentemente deste iacutempeto irasciacutevel o qual pode associar-se tanto agrave

razatildeo quanto aos desejos (Rep 440b) tais estiacutemulos se datildeo por meio do exerciacutecio

intelectual e assim estatildeo necessariamente em colaboraccedilatildeo com a razatildeo

maldade na alma e deixam em liberdade as forccedilas pelas quais se gera a virtuderdquo Os livros VI e VII

mostram a parte racional em sua operacionalidade sem entrar diretamente ao que parece em questotildees

acerca das demais motivaccedilotildees Pode-se supor somente a possibilidade e como se daacute esse apaziguamento a

exemplo dos resultados que se tem com a educaccedilatildeo do pedagogo no Livro VII Por enquanto vale

acompanhar a descriccedilatildeo das partes para verificar como e em que medida eacute possiacutevel o domiacutenio da razatildeo

22

Um dos pontos que a proposta do filoacutesofo governante com a sua arte dialeacutetica

parece querer mostrar se refere ao que seria um governo inteiramente baseado no

conhecimento e assim sem o risco de sucumbir a uma classe que demonstre

desobediecircncia Do mesmo modo argumentar a favor da racionalidade como ordenadora

das relaccedilotildees entre partes distintas demonstra o interesse em defender o pensamento sua

atividade e resultados Trata-se de propor a organizaccedilatildeo segundo os ditames e

procedimentos inteligentes em oposiccedilatildeo ao que se pode obter a partir do desejo e do

impulso Nesse sentido o pensamento como quer mostrar os Livros VI e VII e como se

propotildee este estudo refere-se exclusivamente ao pensar nos termos da parte racional da

alma a qual em resumo revela-se nas operaccedilotildees que envolvem a percepccedilatildeo nos termos

da opiniatildeo e da aquisiccedilatildeo do conhecimento A justiccedila e o bom governo tecircm como base

diante do que se analisa a formulaccedilatildeo de uma epistemologia baseada na excelecircncia do

exerciacutecio do pensamento tema que ganha ecircnfase nos livros centrais d‟A Repuacuteblica

sobretudo nos Livros VI e VII e a partir do qual se torna possiacutevel dar tratamento

racional agraves questotildees acerca do bem comum e da conduta moral centro das preocupaccedilotildees

e do filoacutesofo

Apoacutes essa explanaccedilatildeo introdutoacuteria sobre o filoacutesofo e sua alma filosoacutefica cabe

comentar alguns dados antes de prosseguir Deve-se natildeo perder de vista o horizonte da

investigaccedilatildeo filosoacutefica que se apresentou na anaacutelise a saber o conhecimento o bem e a

morte Estes satildeo os alvos finais da inquiriccedilatildeo filosoacutefica e devem receber atenccedilatildeo dado

que somente a razatildeo em sua potecircncia maacutexima pode arriscar como se veraacute qualquer

conjectura sustentaacutevel acerca deles Dito de outra perspectiva uma especulaccedilatildeo de

objetos tatildeo grandes e portanto exigentes do ponto de vista cognitivo podem oferecer

informaccedilotildees sobre a inteligecircncia e sobre a concepccedilatildeo de conhecimento que estaacute em

jogo Os dois temas acabam assim por colaborar para mostrar o empreendimento da

cogniccedilatildeo na exploraccedilatildeo de um plano que se distingue da vida prosaica e da mesma

forma para apresentar as minuacutecias de um aparato teoacuterico e metodoloacutegico proacuteprio da

filosofia para superar as dificuldades da investigaccedilatildeo a saber as teorias das ideias e da

23

reminiscecircncia e a dialeacutetica Seraacute por isso que Platatildeo pretendeu nos dois diaacutelogos colocar

alvos tatildeo magnacircnimos O primeiro dado que se verifica eacute que estes temas bem e morte

fazem parte das preocupaccedilotildees daquilo que provavelmente o filoacutesofo considera serem

estas as questotildees de maior importacircncia e que portanto devem ser investigados mesmo

que seja impossiacutevel compreendecirc-los totalmente sendo o bem desse modo considerado

o estudo mais importante e morte-vida a questatildeo sobre qual vale a pena se ocupar

O outro ponto para o qual se deve chamar atenccedilatildeo o qual interessa muito aos

propoacutesitos deste estudo diz respeito ao dado de que ambos apresentam uma perspectiva

a qual ganha conceituaccedilatildeo e participa portanto deste aparato teoacuterico de que se vale a

filosofia a suposiccedilatildeo de um outro plano uma dimensatildeo diferente que de algum modo

orienta a atividade filosoacutefica por abrigar as coisas de mais alto valor anaacutelogo portanto

ao domiacutenio inteligiacutevel A investigaccedilatildeo do filoacutesofo pretende em uacuteltima instacircncia

apreender esses altos valores de modo a compreendecirc-lo o quanto lhe for possiacutevel A

magnanimidade moral que distingue o filoacutesofo dos demais cidadatildeos refere-se agrave tentativa

de apreender no que consiste a maioridade de valores como bondade e justiccedila as quais

ele julga comparaacuteveis agraves coisas divinas Conveacutem assim averiguar a atividade do

pensamento filosoacutefico no que se refere a apreensatildeo dos maiores valores

13 O Conhecimento dos valores

Para tentar compreender como se constituem as qualidades do filoacutesofo e assim

a importacircncia e o significado da superioridade do pensamento ao modo da filosofia

cabe averiguar a concepccedilatildeo do bem que esta a ser construiacuteda Natildeo se pode entender a

excelecircncia do filoacutesofo sem se perguntar o que significa ser bom Assim vale comeccedilar

pelo conhecimento mais importante para o filoacutesofo governante o conhecimento do bem

Tema presente na voz do senso comum o bem seraacute averiguado em um primeiro

momento naquilo que se mostra como qualidade de outras noccedilotildees igualmente

importantes para a cidade O questionamento acerca da justiccedila e de outras virtudes

indicam a inquiriccedilatildeo da noccedilatildeo de ἀγαζόο como a mais urgente por ser a caracteriacutestica

presente em tudo o que eacute concebido como algo considerado positivo Em outros termos

as qualidades que apresentam a justiccedila e as coisas consideradas belas mostram a noccedilatildeo

do bem entre os atributos que aparentemente as constituem e as qualificam

24

positivamente Desse modo o objeto mais especulado e como natildeo poderia deixar de

ser o mais incompreendido segundo a concepccedilatildeo do filoacutesofo recebe a partir de entatildeo

um tratamento agrave luz do que se revelaraacute ser o verdadeiro conhecimento

ldquo- () Mas qual eacute o estudo mais importante Que objeto

atribuis a ele Acreditas que algueacutem te deixaria ir embora sem que te

fizesse essas perguntas (νἴεη ηηλ ἄλ ζε ἔθε ἀθεῖλαη κὴ ἐξσηήζαληα ηί

ἐζηηλ)

- De forma alguma disse eu Vamos Pergunta Em todo caso

natildeo poucas vezes ouviste isso e neste momento ou natildeo pensas nisso

ou tens em mente criar-me dificuldades com tuas objeccedilotildees Acredito

que mais seja isso que pretendes Eacute que jaacute me ouviste dizer muitas

vezes que o estudo mais importante eacute a ideia do bem e que eacute atraveacutes

dela que as accedilotildees justas e outras accedilotildees se tornam uacuteteis e proveitosas

(ἐπεὶ ὅηη γε ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα κέγηζηνλ κάζεκα πνιιάθηο ἀθήθναο ᾗ

δὴ θαὶ δίθαηα θαὶ ηἆιια πξνζρξεζάκελα ρξήζηκα θαὶ ὠθέιηκα

γίγλεηαη) E agora jaacute sabes que eacute isso que vou dizer e aleacutem disso que

natildeo temos conhecimento suficiente dessa ideia Se poreacutem natildeo a

conhecemos ainda que conheccedilamos as outras isso de nada nos

serviraacute como quando possuiacutemos algo sem ter o bem (ὥζπεξ νὐδ εἰ

θεθηῄκεζά ηη ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ) Ou crecircs que haveraacute vantagem na

posse de qualquer coisa que seja se ela natildeo for uma coisa boa Ou

em compreender tudo o mais mas natildeo o bem e nada de belo e bom

(ἢ νἴεη ηη πιένλ εἶλαη πᾶζαλ θηζηλ ἐθηζζαη κὴ κέληνη ἀγαζήλ ἢ

πάληα ηἆιια θξνλεῖλ ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ κεδὲλ

θξνλεῖλ)9

- Por Zeus eu natildeo disserdquo (Rep 504e6-505b4)

Deve-se acompanhar a progressatildeo daquilo que se apreende como qualidade para

a noccedilatildeo de ideia A beleza e a justiccedila qualidades das coisas justas e belas satildeo

consideradas boas e dessa forma parecem expressar uma positividade nos termos de

um valor O que eacute tido como belo justo uacutetil e proveitoso eacute inegavelmente bom e por

isso satildeo atributos que demonstram um valor positivo apreciaacutevel ldquoO bomrdquo confere aos

demais atributos tal positividade que potildee a ideia do bem (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα) como a

caracteriacutestica fundamental de todo o conjunto de coisas que apresentam tais qualidades

Ela torna bom tais atributos e se mostra por isso a origem de tudo o que parece ser

considerado positivo

9 A ediccedilatildeo inglesa utiliza ldquothinkrdquo e ldquoin high regardrdquo para natildeo perder as variaccedilotildees de sentido do termo φρονεῖν que muito enriquecem o trecho - Plato Republic Loeb Harvard University Press 2013 (Classical Library) traduccedilatildeo Chris Emlyn-Jones and William Preddy Vale notar que a utilizaccedilatildeo da palavra neste instante sugere um conhecimento intelectual ao modo filosoacutefico e portanto uma atividade inteligente como se desenvolveraacute mais adiante Observe-se que se atribui a esta atividade um valor uma certa superioridade

25

Cabe notar as perspectivas que levaram agrave funccedilatildeo de origem da ideia do bem para

que se possa assim compreender melhor o sentido em que se pode apreendecirc-la

Embora apareccedila em um plano menos evidente nessa ultima passagem note-se que a

conjugaccedilatildeo bem-positividade sugere tal como se observa ser uma caracteriacutestica da

ideia do bem conferir uma noccedilatildeo de valor Do mesmo modo ao mesmo tempo em que a

noccedilatildeo de ldquobomrdquo aparece quase como um componente das coisas com qualidades

apreciadas ndash afinal ningueacutem diria que as coisas uacuteteis natildeo satildeo boas - o bem se mostra

tambeacutem uma referecircncia a partir da qual se lanccedila um julgamento acerca de algo Este

parece ser o criteacuterio impliacutecito na concepccedilatildeo da maioria que elege algo como apreciaacutevel

Assim tido como um paracircmetro o bem eacute apreendido ele mesmo nos termos de um

valor o que provavelmente justifica a sua apariccedilatildeo apoacutes a tentativa de falar sobre as

virtudes10

Observe-se que esta abordagem valorativa do bem evolui para outros planos As

perspectivas que introduzem a investigaccedilatildeo sobre a ideia do bem satildeo dadas

indistintamente tal como uma abordagem comum Soacutecrates e Glaacuteucon parecem ter

neste momento a consciecircncia desta confusatildeo e da insuficiecircncia de conhecimento acerca

da noccedilatildeo que agora se mostra como a mais importante Dito de outro modo visto como

um valor como um atributo de um conjunto de coisas e por uacuteltimo como a origem das

mesmas o bem exige um estudo que permita dizecirc-lo distintamente de modo que torne

possiacutevel a partir daiacute verificar as virtudes e outras noccedilotildees Desse modo o bem visto

inicialmente como a qualidade comum em um conjunto de coisas apreciaacuteveis tem

destacado a sua posiccedilatildeo de condiccedilatildeo essencial sem a qual tais coisas natildeo existiriam natildeo

seriam como tais isto eacute natildeo apresentariam tal positividade e sobre as quais natildeo seria

possiacutevel saber nada A passagem mostra desse modo a transposiccedilatildeo da perspectiva

comum para a filosoacutefica onde se apresenta a evoluccedilatildeo da anaacutelise das coisas

consideradas justas e belas (δίθαηα κὲλ θαὶ θαιὰ Rep 505d5) e portanto boas ao modo

da apreensatildeo da generalidade de objetos particulares para uma ideia como a ideia do

10 Penner natildeo ignora que mesmo com a investigaccedilatildeo ontoloacutegica a ideia do bem apresente as qualidades no sentido do que eacute beneacutefico e uacutetil ldquoQuanto ao que eacute a Forma do Bem isso seraacute obviamente tatildeo difiacutecil de vir a conhecer (R 506b-507a Phd 97b-100c) quanto eacute difiacutecil em Soacutecrates saber o que satildeo a virtude ou o bem Contudo uma interpretaccedilatildeo do caminho mais longo torna de fato claro que a Forma do Bem eacute a Forma do Vantajoso ou Beneacutefico natildeo eacute como eacute nas interpretaccedilotildees mais influentes desde cerca de 1920 () a forma de um bem impessoal ou quase moralrdquo Penner T ldquoAs Formas e as Ciecircncias em Soacutecrates e em Platatildeordquo in Benson H (Org) Platatildeo Porto Alegre Artmed 2011 p 171 Longe de argumentar a favor da existecircncia de uma ldquoforma do Vantajosordquo como sugere o comentador importa trazer esse dado porque atraveacutes dele se volta atenccedilatildeo para a presenccedila da benignidade da ideia do bem na esfera da vida comum importante para as questotildees poliacuteticas como se veraacute mais adiante

26

bem e da beleza (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ) Esse novo objeto de

investigaccedilatildeo a ideia exige uma abordagem e uma anaacutelise especiacutefica a partir da qual a

ideia do bem seraacute visto na sua condiccedilatildeo de origem e atributo essencial Analisar a

justiccedila e as virtudes natildeo satildeo suficientes sem o conhecimento disto que parece ser o

fundamento delas11

A constataccedilatildeo do verdadeiro objeto a ser investigado note-se exige da mesma

forma uma investigaccedilatildeo acerca de sua apreensatildeo Desse modo o outro ponto importante

a ser avaliado para que se possa investigar o bem como fundamento passa a ser a

aquisiccedilatildeo do bem e a noccedilatildeo de conhecimento Note-se que adquirir o conhecimento

supotildee como quer a filosofia uma noccedilatildeo de saber que aparece nesta atividade Por se

tratar de um novo tipo de investigaccedilatildeo na qual o objeto eacute visto de um acircngulo distinto

exige-se uma capacidade e um modo de investigar igualmente distintos que por

apreender um objeto tal como a ideia do bem consiste em um modo de aquisiccedilatildeo com

suposta superioridade com um valor mais elevado em comparaccedilatildeo ao modo de

investigaccedilatildeo feito ateacute entatildeo Empreende-se uma κέγηζηνλ κάζεκα e portanto uma

aquisiccedilatildeo (θηζηο) que constituiraacute ao que tudo indica o conhecimento nos termos de

uma apreensatildeo em um grau maior

Tal suposiccedilatildeo parece ser confirmada no trecho seguinte Deve-se observar as

distinccedilotildees que passam a ser traccediladas natildeo somente em relaccedilatildeo ao objeto analisado mas

tambeacutem no que se refere a sua abordagem e apreensatildeo Vale ter em vista essa

superaccedilatildeo da particularidade para a universalidade da ideia que sugere a ideia do bem

e ao mesmo tempo a noccedilatildeo de conhecer que o trecho propotildee para acompanhar passo a

passo a relaccedilatildeo entre os propoacutesitos poliacuteticos apresentados anteriormente e a

epistemologia do livro VI Nesse sentido satildeo postas as questotildees que concernem ao

pensamento nos termos de uma apreensatildeo que se daraacute ao modo da filosofia como uma

11 Como natildeo seraacute um tema que o Livros VI e VII levaratildeo adiante conveacutem adiantar as consequecircncias da

inversatildeo intelectualista que Platatildeo propotildee no que se refere ao que se considera ldquobomrdquo Em oposiccedilatildeo ao

prazer as qualidades do Bem que seraacute tratado com mais detalhes nos livros seguintes satildeo dadas como

aquelas caracteriacutesticas que provocam o intelecto e oferecem a ele subsiacutedios para a atividade intelectual

tal como as noccedilotildees geomeacutetricas que satildeo inteligiacuteveis Schuhl indica esse limite nos seguintes termos ldquoSoacute

se poderia pois corretamente julgar pelo prazer o que natildeo apresenta nem utilidade nem verdade nem

semelhanccedila nem sem duacutevida nada prejudicial mas tem como uacutenica razatildeo de ser o encanto () Platatildeo

sublinha que natildeo se pode mais se referir ao prazer quando intervecircm a semelhanccedila e a igualdade sob

qualquer forma que seja pois o que faz o igual ser igual e simeacutetrico o simeacutetrico natildeo eacute a opiniatildeo do

primeiro que se encontra nem o encanto que ele possa encontrar nisso eacute antes de tudo a verdade o

resto praticamente natildeo contardquo Schuhl P M Platatildeo e a Arte de Seu Tempo Discurso Editorial

Barcarolla Satildeo Paulo 2010 p 80-81

27

aquisiccedilatildeo da ideia ou ao modo do senso comum como uma apreensatildeo da aparecircncia

daquilo que se supotildee ser o bem

ldquo- Eis algo que sabes Para a maioria das pessoas o bem eacute o

prazer mas para os mais requintados eacute a inteligecircncia (ηνῖο δὲ

θνκςνηέξνηο θξόλεζηο)

- Sem duacutevida disse

- E sabes meu amigo que os que pensam assim natildeo conseguem

dizer o que eacute a inteligecircncia mas acabam por ser forccedilados a

mencionar a inteligecircncia do bem (νἱ ηνῦην ἡγνύκελνη νὐθ ἔρνπζη

δεῖμαη ἥηηο θξόλεζηο ἀιι ἀλαγθάδνληαη ηειεπηῶληεο ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ

θάλαη)

- E isso eacute muito ridiacuteculo disse

- E como deixaria de ser disse eu se apesar de censurar-nos por

natildeo conhecermos o bem de novo falam como se conhececircssemos Eacute

que dizem que eacute a inteligecircncia do bem como se de nossa parte

estiveacutessemos entendendo o que estatildeo dizendo uma vez que

pronunciam a palavra bem (ἐπεηδὰλ ηὸ ηνῦ ἀγαζνῦ θζέγμσληαη

ὄλνκα)rdquo(Rep 505b8-c4)

Um dos primeiros indiacutecios da mudanccedila de abordagem do bem consiste na

diferenciaccedilatildeo agora anunciada entre o nome e o proacuteprio objeto Haacute uma diferenccedila entre

o bem tal como eacute geralmente dito concebido no senso vulgar e o sentido que se tem em

vista a partir de agora O nome bem proferido comumente ganharaacute um sentido

especiacutefico caracteriacutestico que soacute pode ser desvelado nesta pesquisa que procura

apreendecirc-lo segundo o que eacute (ηί ἐζηηλ) Aqueles que se engajam nesse tipo de

investigaccedilatildeo compreendem as distinccedilotildees do bem O primeiro passo para a averiguaccedilatildeo

da ideia do bem consiste em desassociaacute-la daquilo que ela qualifica Da mesma forma

compreende-se que ele consiste em algo ainda natildeo conhecido mas que estaacute aleacutem

daquilo que se designa como ldquobemrdquo Note-se que tal distinccedilatildeo eacute intriacutenseca agraves questotildees

que envolvem o pensamento O processo de conhecimento que se propotildee nesse instante

natildeo pode ser realizado sem que se tenha uma concepccedilatildeo clara ou ao menos que se

propotildee elucidar sobre os processos que envolvem tal aquisiccedilatildeo Com a passagem de um

registro a outro do comum para o filosoacutefico justifica-se cada vez mais a anaacutelise acerca

da atividade intelectual que efetiva o conhecimento de acordo com o que se propotildee a

partir de agora

Nesse contexto em que se atribui agrave ideia do bem a posiccedilatildeo de origem e a

considera por isso como a mais importante entre todas as noccedilotildees o pensar eacute dito nos

termos do θξνλεῖλ e o conhecimento nos temos de uma apreensatildeo realizada pelo

28

pensamento acerca da ideia do bem Compreender no que consiste esta mais alta

apreensatildeo constitui a proposta epistemoloacutegica do filoacutesofo que seraacute investigada em todo

o livro VI e se tornaraacute no Livro VII o centro das investigaccedilotildees por fundamentar a

pedagogia que se ocuparaacute de mostrar como tornar esta alta intelecccedilatildeo realizaacutevel Parece

inevitaacutevel uma verificaccedilatildeo acerca do pensar em suas variadas maneiras de ocorrer e

principalmente no seu niacutevel mais elevado ao se pretender falar sobre o conhecimento de

qualquer virtude e sobre aquilo que se mostra um objeto de desejo comum a todos

filoacutesofos ou natildeo o bem

Apesar da polissemia12

do termo θξνλεῖλ o que o texto mostra eacute a necessidade

de uma atividade dada ao modo intelectual cujo estatuto cognitivo se distingue de

outras atividades intelectivas Entretanto vale salientar a diferenciaccedilatildeo que

concomitantemente se faz entre o filoacutesofo e o natildeo filoacutesofo Aqueles que compreendem

as distinccedilotildees do bem satildeo considerados por isso mais refinados (θνκςνηέξνηο) em

oposiccedilatildeo agravequeles que possuem uma acepccedilatildeo vulgar sobre ele e buscam somente o

prazer considerando equivocadamente o que eacute prazeroso como bom Observe-se que a

diferenciaccedilatildeo feita sob um criteacuterio epistemoloacutegico tambeacutem apresenta um parecer moral

Aleacutem de exprimir a capacidade superior de cogniccedilatildeo sugerida pelo θξνλεῖλ essa

maneira de se referir aos que conhecem verdadeiramente o bem propotildee uma

qualificaccedilatildeo que ultrapassa o senso vulgar O refinamento dito nesse contexto

certamente parte desta nova abordagem que supotildee o conhecimento do bem tambeacutem

como criteacuterio para a distinccedilatildeo do filoacutesofo e de suas qualidades Conhecer o bem nesse

sentido tornou-se criteacuterio para o julgamento da postura de quem se propotildee a se

pronunciar sobre o bem ou sobre qualquer outra noccedilatildeo

O texto ainda natildeo oferece maiores esclarecimentos sobre o bem como uma

referecircncia nos termos da moralidade Antes eacute necessaacuterio investigaacute-lo de modo a abordar

aquilo que ele eacute essencialmente e elucidar o meacutetodo adequado para conhececirc-lo Apoacutes o

que se analisou das passagens vale ter em vista a progressatildeo de uma perspectiva a outra

e os elementos que vatildeo aos poucos sendo iluminados pela necessidade de investigar a

12 Neste trecho θξόλεζηο recebe vaacuterias traduccedilotildees ldquointelligencerdquo ediccedilatildeo francesa ED Les Belles Lettres

1996 ldquoknowledgerdquo segundo a ediccedilatildeo inglesa Loeb Classical Library Harvard University Press 2013 A

ediccedilatildeo brasileira como a francesa opta por utilizar um termo ldquointeligecircnciardquo que tambeacutem traduz a palavra

λνήζηϛ o que eacute evidentemente autorizado dado que na analogia da linha dividida o texto apresenta uma

explicaccedilatildeo dessa apreensatildeo cognitiva no niacutevel mais alto Desse modo entende-se λνήζηϛ e θξόλεζηο

como designando tal apreensatildeo A mesma conotaccedilatildeo do termo a saber de apreensatildeo e de elevaccedilatildeo

intelectual apresenta-se no Feacutedon

29

ideia do bem como a posiccedilatildeo que o bem passa a ocupar a noccedilatildeo de conhecimento e as

exigecircncias da ordem cognitivas

ldquo- E os que definem o prazer como um bem Seraacute que estatildeo menos

errados que os outros Esses tambeacutem natildeo seratildeo forccedilados a

reconhecer que haacute prazeres maus (Τί δὲ νἱ ηὴλ ἡδνλὴλ ἀγαζὸλ

ὁξηδόκελνη κῶλ κή ηη ἐιάηηνλνο πιάλεο ἔκπιεῳ ηῶλ ἑηέξσλ ἢ νὐ θαὶ

νὗηνη ἀλαγθάδνληαη ὁκνινγεῖλ ἡδνλὰο εἶλαη θαθάο)

- Natildeo teratildeo outra saiacuteda

- E o que acontece eacute que creio eu eles reconhecem que as mesmas

coisas satildeo boas e maacutes Natildeo eacute

- Entatildeo estaacute evidente que sobre essa questatildeo as divergecircncias

(ἀκθηζβεηήζεηο) satildeo grandes e numerosas

- Como deixariam de serrdquo (Rep 505c6-d1)

A conduccedilatildeo da questatildeo do bem para o plano que se contrapotildee agrave percepccedilatildeo do

sensiacutevel na qual se encontram o prazer e as aparecircncias O pensar a ideia do bem e as

coisas que satildeo que ganham foco na pesquisa compotildeem o polo oposto ainda indefinido

Tal dicotomia marca natildeo soacute o que se mostraraacute uma distinccedilatildeo de gecircnero e domiacutenio de

objetos e de atividades intelectivas como uma distinccedilatildeo de conduta aqui dita na

dicotomia entre a maioria que escolhe as aparecircncias (πνιινὶ ἂλ ἕινηλην ηὰ δνθνῦληα) e

os que investigam os que buscam as coisas que satildeo a realidade (ηὰ ὄληα δεηνῦζηλ) Na

mesma direccedilatildeo cabe reparar a maioria opta pelas aparecircncias enquanto os que buscam a

realidade e portanto dispotildeem do pensamento para conhecer satildeo forccedilados

(ἀλαγθάδνληαη) a reconhecer a ideia do bem Os que se apegam agraves aparecircncias o fazem

ao que parece a partir de uma escolha natildeo havendo imposiccedilatildeo de nenhum tipo para tal

enquanto os que investigam estatildeo submetidos ao que mostra a investigaccedilatildeo

Pode-se dizer que por via dessa distinccedilatildeo e contraposiccedilatildeo entre planos surgem a

noccedilatildeo de conhecimento e a perspectiva filosoacutefica tatildeo preciosa ao tipo de governo que

se almeja Ao mesmo tempo deve-se analisar que tal divisatildeo mostra a tensatildeo entre esses

polos que em algum momento teratildeo definidos o seu caraacuteter e o seu lugar segundo a

noccedilatildeo de organizaccedilatildeo que se tem em vista para a cidade Ao lanccedilar luz sobre a conduta e

ao avaliaacute-la segundo pressupostos epistemoloacutegicos que envolvem o conhecimento do

bem o texto deixa no horizonte a ligaccedilatildeo entre a esfera moral neste instante dada como

postura ante o conhecimento e a esfera cientiacutefica que deve ser a base para as questotildees

morais e poliacuteticas relaccedilatildeo que somente o filoacutesofo pode dar conta As questotildees que

envolvem o conhecimento a saber objeto e meacutetodo ofereceratildeo o teor das diferenccedilas

aqui anunciadas mas para isso uma detalhada explanaccedilatildeo acerca do pensamento ganha

30

destaque jaacute que seu caraacuteter e operacionalidade revelaratildeo os elementos fundamentais

para a realizaccedilatildeo do governo do filoacutesofo

14 O objeto de desejo do filoacutesofo

A formulaccedilatildeo filosoacutefica do bem introduz sob um novo prisma as questotildees acerca

da alma e as suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel O que se viu sugerido como um valor

cientiacutefico acessiacutevel portanto pelo pensamento e que consiste ao mesmo tempo em uma

referecircncia para um julgamento da conduta passa a ser esclarecido assim como as

peculiaridades desta atividade de conhecer tiacutepica dos que buscam apreendecirc-lo Ao

reconhecer as distinccedilotildees dos que se lanccedilam a tal apreensatildeo e portanto ao pensamento

no niacutevel mais elevado Soacutecrates e Glaacuteucon se empenham em detalhar este objeto e este

tipo de investigaccedilatildeo que inevitavelmente traratildeo consequecircncias para o entendimento

sobre a alma e sobre aquela que parece ser a sua atividade excelente Do mesmo modo

esclareceratildeo acerca da possiacutevel apreensatildeo que o natildeo filoacutesofo dado na figura do

guardiatildeo pode ter deste objeto tatildeo valioso para a vigilacircncia da cidade

ldquo- E aquilo que toda alma busca e eacute objeto de todas as suas

accedilotildees (Ὃ δὴ δηώθεη κὲλ ἅπαζα ςπρὴ θαὶ ηνύηνπ ἕλεθα πάληα

πξάηηεη) Embora suspeite que seja algo de valor ela natildeo tem como

apreender suficientemente o que ele eacute nem sentir-se confiante e

segura como a respeito de outras coisas (ἀπνκαληεπνκέλε ηη εἶλαη

ἀπνξνῦζα δὲ θαὶ νὐθ ἔρνπζα ιαβεῖλ ἱθαλῶο ηί πνη ἐζηὶλ νὐδὲ πίζηεη

ρξήζαζζαη κνλίκῳ νἵᾳ θαὶ πεξὶ ηἆιια) e por isso natildeo consegue o

que lhe seria uma ajuda A respeito de algo tatildeo grande como isso

afirmaremos que devem ficar na escuridatildeo tambeacutem os que satildeo os

melhores da cidade em cujas matildeos vamos entregar tudo

- De forma alguma disse

- Em todo caso falei creio que quando se ignora em que o

belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha um

guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes

disso conheceraacute o justo e o belo de maneira suficiente

- E teu prognoacutestico eacute acertado disse

31

- Entatildeo nossa constituiccedilatildeo estaraacute perfeitamente em ordem se

um tal guardiatildeo aquele que sabe disso mantiver vigilacircncia sobre ela

(ἐὰλ ὁηνηνῦηνο αὐηὴλ ἐπηζθνπῆ θύιαμ ὁ ηνύησλ ἐπηζηήκσλ)rdquo (Rep

505e-506b2)

Ao se questionarem sobre o verdadeiro objeto de busca da alma e o que pode ser

a causa de suas atividades aparece o bem No fundo desse questionamento estatildeo as

relaccedilotildees da alma com esta que se mostra ser a ideia com qualidades e com estatuto

ontoloacutegico privilegiado como se analisaraacute reconhecida portanto como a ideia para o

fundamento epistemoloacutegico e moral que o filoacutesofo governante tem em vista A busca de

tal fundamento deve-se atentar inicia com uma advertecircncia que prenuncia a natureza

distinta deste objeto comparaacutevel ao divino (ἀπνκαληεύνκαη) cuja apreensatildeo por

conseguinte natildeo deve ser precipitadamente tomada como suficiente ou como uma

convicccedilatildeo inabalaacutevel A compreensatildeo acerca de tal ideia e portanto acerca do alcance e

das tratativas que a alma possui com o bem note-se que isso se estende agraves almas dos

cidadatildeos (ἅπαζα ςπρὴ) deve se realizar de maneira distinta pois ilumina um ponto

crucial para a conduccedilatildeo e para a organizaccedilatildeo da cidade a causa e o modo de agir da

alma Embora o texto natildeo apresente ainda o meacutetodo especiacutefico para a anaacutelise de um

objeto como a ideia do bem como se daraacute nas proacuteximas passagens importa averiguar

na noccedilatildeo de bem o caraacuteter e as consequecircncias desse fundamento

Natildeo se deve ao que parece entregar a cidade nas matildeos de quem desconhece o

bem e a justiccedila pois disso depende a harmonia da cidade ndash ldquo-Em todo caso falei creio

que quando se ignora o belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha

um guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes disso conheceraacute o

justo e o belo de maneira suficienterdquo (Rep 506a4-7) O objeto almejado por todas as

almas eacute o bem e ao que tudo indica tanto o filoacutesofo quanto o guardiatildeo podem de

algum modo acessaacute-lo Entretanto ele natildeo eacute apreensiacutevel por todas elas como mostraraacute

o livro VII e eacute preciso saber em que medida e em que condiccedilotildees tal acesso eacute possiacutevel e

o que os diferencia aleacutem das determinaccedilotildees dadas pela natureza da alma de cada um A

primeira diferenccedila que surge neste registro parece consistir em uma certa postura que

pode ser cientiacutefica ou permanecer no niacutevel das acepccedilotildees vulgares ou seja natildeo

cientiacuteficas

O filoacutesofo se dispotildee a buscar o bem e portanto demonstra ter conhecimento e

inteligecircncia diferentemente da maioria que natildeo se daacute conta da possibilidade de realizar

tal busca e prefere se fiar nas aparecircncias A figura do guardiatildeo diferente da maioria

32

sugere que eacute possiacutevel para o natildeo filoacutesofo apreender o bem e nesse caso

especificamente tal possibilidade parece se realizar de alguma forma o que eacute

necessaacuterio acontecer para o bem da cidade Cabe chamar atenccedilatildeo para o dado de que a

postura de natildeo se dar conta da importacircncia de tal busca e portanto das relaccedilotildees que o

bem manteacutem com o que eacute belo e justo retrata a ignoracircncia (ἄγλνηα) e a sua funccedilatildeo

peculiar no desenvolvimento da tese moral Ao que parece trata-se justamente de uma

condiccedilatildeo na qual a alma natildeo estaacute submetida agraves condiccedilotildees da busca e por isso natildeo chega

agrave ideia do bem mas que por outro lado apresenta a possibilidade de reconhecer de

algum modo as relaccedilotildees com ele

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar inteiramente o perfil do filoacutesofo do guardiatildeo e da maioria

sem antes verificar a especificidade da relaccedilatildeo que estes mantecircm com o bem

Entretanto eacute bom natildeo perder de vista essas trecircs categorias que apresentam em algum

grau uma relaccedilatildeo com ele seja na apreensatildeo no niacutevel mais alto seja em uma eventual

apreensatildeo de suas relaccedilotildees ou na completa falta de percepccedilatildeo de qualquer ligaccedilatildeo das

coisas com a ideia do bem O objeto legiacutetimo da alma cujos termos da uacuteltima passagem

permitem tomaacute-la como um gecircnero natildeo como um ἅπαζα ςπρὴ eacute o bem e o desafio do

governo do filoacutesofo consiste justamente em empreender o modo de governo explorando

as potencialidades de cada perfil de cidadatildeo

A necessidade de analisar a cogniccedilatildeo o que particularmente objetiva este estudo

surge nos textos a preocupaccedilatildeo em estabelecer um paradigma para os valores morais

Especialmente no livro VI como se viu importa construir uma noccedilatildeo de bem estaacutevel e

universal a qual escape agrave vulnerabilidade do senso comum e que sirva portanto de

modelo para as accedilotildees Nesse sentido se torna elucidado o papel da cogniccedilatildeo como

atividade de conhecer os valores em seu fundamento Assim o exerciacutecio racional

descrito a partir daqui deve ser tomado como o pensamento que conhece os valores

autecircnticos uma vez que apreende o que os fundamenta13

A associaccedilatildeo entre

13 Tal compreensatildeo acerca dos valores e padrotildees eacute na verdade bastante proacutexima da interpretaccedilatildeo de

Brisson e Meyerstein sobre a relaccedilatildeo da Teoria das Formas com as questotildees eacuteticas ldquoOra esta eacutetica

normativa que implica o estabelecimento de valores eacuteticos absolutos Platatildeo a funda a partir do Feacutedon

sobre a existecircncia de realidades natildeo-sensiacuteveis que escapam ao devir que representam a realidade

verdadeira e que ele chamaraacute ldquoFormasrdquo (eidos ou idea) A coragem eacute uma Forma imutaacutevel que para um

ou outro homem representa um padratildeo de medida dessa virtudePor consequecircncia o grau de perfeiccedilatildeo

ao qual o homem atinge este domiacutenio se mede pela distacircncia em relaccedilatildeo agrave este padratildeo idealrdquo Brisson

33

conhecimento e eacutetica ligaccedilatildeo a qual somente o filoacutesofo pode assimilar apoia-se de um

lado na existecircncia destes modelos que natildeo resultam de convenccedilotildees ou seja que natildeo se

estabelecem pelo haacutebito ou por interesses particulares e por outro pelo tipo de atitude

intelectual que se deve empreender A concepccedilatildeo de racionalidade estaacute submetida agraves

necessidades eacuteticas e poliacuteticas e deve ter em vista a cogniccedilatildeo deste tipo de objeto a

saber a ideia do bem e agraves demais noccedilotildees que possuem relaccedilatildeo com ela como a justiccedila

A postura filosoacutefica tem deste modo um comprometimento moral sendo o

conhecimento apreendido no exerciacutecio da filosofia o meio de executaacute-lo e desempenhar

o papel de governante Dado assim vale adiantar o proacuteprio pensamento nesta condiccedilatildeo

constitui algo de grande valor sendo o proacuteprio empreendimento racional uma

demonstraccedilatildeo de virtude Esta conclusatildeo eacute dada mais objetivamente no Feacutedon onde a

θξόλεζηο a qual tambeacutem recebe a conotaccedilatildeo de sabedoria eacute analogamente dita ser a

moeda mais valorosa (Fed 69a7-c3) A anaacutelise da atribuiccedilatildeo de sentido agrave razatildeo no

Feacutedon seraacute realizada posteriormente pois apesar de mostrar semelhanccedilas com o que se

tem visto neste toacutepico merece ser examinada com exclusividade na seccedilatildeo dedicada ao

diaacutelogo Por enquanto deve-se acompanhar as minuacutecias que mostram o caraacuteter

intelectualista fundamental na constituiccedilatildeo moral do filoacutesofo para compreender no que

consiste o intelectualismo filosoacutefico

15 A postura intelectual

As indagaccedilotildees sobre o bem recebem agora delimitaccedilotildees que mostram o registro

em que deve se dar a investigaccedilatildeo ldquo() afirmarias que o bem eacute ciecircncia ou prazer ou

algo outro (πόηεξνλ ἐπηζηήκελ ηὸ ἀγαζὸλ θῂο εἶλαη ἢ ἡδνλήλ ἢ ἄιιν ηη παξὰ ηαῦηα)rdquo

(Rep 506b2-4) O foco de anaacutelise se dirige de maneira digna de nota ao campo que

deve oferecer o bem anaacutelogo ao modo de conhececirc-lo O modo de perguntar por ele natildeo

seria como feito anteriormente ldquoo que eacute o bemrdquo A suspeita que se pode ter acerca

desta comparaccedilatildeo diz respeito agrave relaccedilatildeo que pode haver entre ele e a alma Dado que o

L Meyerstein F W Puissance et Limites de la Raison ndash Le Problegraveme des Valeurs Paris Les Belles

Lettres 2014 p 33

34

bem eacute o objeto que a alma busca e o conhecimento o modo de adquiri-lo faz sentido

assim perguntar se o bem eacute a ἐπηζηήκε ou a ἡδνλή se as considerarmos maneiras de

conceber a bondade do bem ou ao modo do conhecimento filosoacutefico ou ao modo

vulgar respectivamente O que eacute sugerido neste novo acircngulo de anaacutelise eacute novamente a

apreensatildeo mas agora verificando se o bem corresponde ao conhecimento

De acordo com as delimitaccedilotildees para investigaacute-lo natildeo eacute justo dizer o bem sem

conhececirc-lo nem parece uma boa estrateacutegia considerar as opiniotildees dos outros sobre ele

como um conhecimento sem ter ao menos uma opiniatildeo proacutepria Do mesmo modo

fingir saber o que ele eacute natildeo corresponde a uma postura cientiacutefica e justa (Rep 506b)

Tais exemplos traccedilam um perfil que seraacute associado ao natildeo filoacutesofo O que tem sido

considerado pela maioria eacute identificado como as ηὰ δόγκαηα (Rep 506b9) uma visatildeo

comum ou mesmo um percepccedilatildeo individual sobre o assunto mas motivada por uma

aparecircncia de sabedoria

ldquo- O quecirc disse eu Na tua opiniatildeo eacute justo que algueacutem fale do que

natildeo sabe como se soubesse

- Como se soubesse De forma alguma Mas como algueacutem que

quer dizer o que pensa (Τί δέ ἦλ δ ἐγώ δνθεῖ ζνη δίθαηνλ εἶλαη πεξὶ

ὧλ ηηο κὴ νἶδελ ιέγεηλ ὡο εἰδόηα Οὐδακῶο γ ἔθε ὡο εἰδόηα ὡο

κέληνη νἰόκελνλ ηαῦζ ἃ νἴεηαη ἐζέιεηλ ιέγεηλ)rdquo ( Rep 506c2-5)

Eacute importante notar que haacute nessa passagem a distinccedilatildeo de postura intelectual que

seraacute definitiva para a formulaccedilatildeo da noccedilatildeo de conhecimento e para a compreensatildeo do

pensamento Antes de iniciar a investigaccedilatildeo acerca da definiccedilatildeo da ideia do bem parece

importante verificar o que a ela se relaciona tal como a maneira mais adequada de

conhececirc-la Assim uma criacutetica acerca de sua abordagem deve ser dada nos termos dessa

postura uma vez que a alma tem o bem como objetivo Uma opiniatildeo sem conhecimento

eacute considerada uma postura vergonhosa e aquelas consideradas melhores para natildeo dizer

menos comprometedoras do ponto de vista moral carecem de esclarecimento e podem

ser comparadas a uma cegueira (Rep 506c) O que vem a seguir explica esse peso

moral do conhecimento que se pretende dar

ldquo() Ou para ti haacute alguma diferenccedila entre cegos que percorrem

seu caminho no sentido correto e os que tecircm uma opiniatildeo verdadeira

embora natildeo tenham inteligecircncia (ἢ δνθνῦζί ηί ζνη ηπθιῶλ δηαθέξεηλ

ὁδὸλ ὀξζῶο πνξεπνκέλσλ νἱ ἄλεπ λνῦ ἀιεζέο ηη δνμάδνληεο Rep

506c7-9)rdquo

35

Os que opinam sem conhecimento satildeo considerados cegos e no pior dos casos

insolentes Mesmo quando vatildeo pelo caminho correto e entatildeo incorram em um acerto

afirmando algo verdadeiro aqueles que opinam natildeo possuem inteligecircncia (λνῦο)

Chama atenccedilatildeo o dado a mais que parece ser colocado nessa passagem Entre os

que opinam se distinguem aqueles que podem ir pelo caminho correto e opinar algo

verdadeiro Esses satildeo melhores que aqueles que simplesmente proferem opiniotildees

somente por querer dizer (ἐζέιεηλ ιέγεηλ) De todo modo opiniotildees satildeo desprovidas de

inteligecircncia no entanto haacute a possibilidade do acerto Como um cego que tateia para

encontrar o caminho correto e o encontra natildeo se sabe por qual razatildeo o δνμάδνληεο natildeo

parece orientado por um discernimento acerca do que opina Tal comportamento sugere

ser a opiniatildeo verdadeira um juiacutezo correto acertado mas natildeo resulta do trabalho da

inteligecircncia O primeiro questionamento que adveacutem dessa afirmaccedilatildeo consiste em pensar

o que torna possiacutevel e como se daacute o acerto sem conhecimento No entanto antes de

tentar responder a tais perguntas vale reparar que tal acerto se daacute sem haver base

princiacutepio do qual se tenha partido e que servisse de paracircmetro para chegar a algo

verdadeiro Diferentemente do que conhece e tem inteligecircncia os que opinam com

acerto natildeo deixam de ter uma postura errante justamente por natildeo conhecerem a verdade

e seu fundamento inteligiacutevel - que consiste na ideia do bem como se veraacute adiante14

Esse talvez seja um dado a ser investigado no avanccedilar da pesquisa em

comparaccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo uma vez que provavelmente indica a possibilidade do natildeo

filoacutesofo ser governado pelo filoacutesofo e com isso se relacionar com a ideia do bem ainda

que indiretamente Todavia no momento natildeo parece haver elementos suficientes para

compreender no que pode consistir a opiniatildeo verdadeira sem uma investigaccedilatildeo acerca

da relaccedilatildeo entre a alma e o bem Por enquanto o estudo mais importante prossegue

investigando o bem a partir daquilo que se relaciona a ele tendo em vista justamente as

ligaccedilotildees que se podem apreender e que de algum modo o denunciam15

A noccedilatildeo de

acerto e as ligaccedilotildees entre o bem e o que dele deriva dito ldquofilho do bemrdquo sugerem a

complexidade das relaccedilotildees que envolvem essa ideia e portanto da noccedilatildeo do

14 Vale trazer o comentaacuterio de Julia Annas sobre a diferenccedila entre opiniatildeo verdadeira e conhecimento de

acordo com o Livro X dado que o argumento em anaacutelise apresenta a distinccedilatildeo entre um e outro embora

natildeo resolva ldquoO conhecimento envolve do mesmo modo a possibilidade de formular claramente o que eacute

o objeto conhecido e as razotildees pelas quais ele eacute como eacute ora isto implica que se saiba o que permite dar

conta de seu aspecto bom ou mal A opiniatildeo verdadeira natildeo necessita de nada dissordquo Julia ANNAS

Introdution agrave la Reacutepublique de Platon Presses Universitaires de France Paris 1a Ed 1994 pag 243-244

15 Rep 506e3-4 ldquoo que me parece ser o filho do bem e o que eacute muito semelhante a ele (ὃο δὲ ἔθγνλόο ηε

ηνῦ ἀγαζνῦ θαίλεηαη θαὶ ὁκνηόηαηνο ἐθείλῳ)rdquo

36

pensamento como sede e atividade de aquisiccedilatildeo do conhecimento tema que estaacute em

questatildeo Diante da possibilidade do acerto e da verdade na opiniatildeo eacute provaacutevel que a

oposiccedilatildeo opiniatildeo-conhecimento esboce um ponto de contato No entanto seja qual for

esta ligaccedilatildeo mostraraacute a superioridade da inteligecircncia

Vale observar que a oposiccedilatildeo entre conhecimento e opiniatildeo marcam duas

questotildees muito importantes para o prosseguimento da anaacutelise Em primeiro lugar

reforccedila a postura do filoacutesofo como uma questatildeo moral tornando possiacutevel a relaccedilatildeo

conhecimento e praacutetica isto eacute filosofia e governo Dito de maneira mais direta o

intelectualismo do filoacutesofo natildeo pode ser visto como um distanciamento da vida poliacutetica

ao contraacuterio tem seu papel assegurado nela agrave medida que a filosofia se revela

imprescindiacutevel para o bom governo Por extensatildeo a ἐπηζηήκε tem funccedilatildeo poliacutetica

definida e dessa maneira demonstra ter o trabalho racional um aspecto pragmaacutetico no

sentido fraco

Tal eacute o segundo ponto a ser observado no intelectualismo do filoacutesofo O uso da

razatildeo diante das questotildees poliacuteticas tem em vista tambeacutem o lado praacutetico do pensar o

qual se realiza no governo O pensamento que ateacute este ponto se mostra como a

inteligecircncia que conhece as ideais que fundamentam os valores morais como a ideia do

bem deve ter assim seus procedimentos objetos e alcance cognitivo explicados para

mais tarde no livro VII narrar a aplicaccedilatildeo deste conhecimento Desta forma as relaccedilotildees

e classificaccedilotildees que aparecem no livro VI constituem um rico argumento para analisar o

que talvez possa ser considerado o pensar em seu niacutevel mais alto em contraste com

outras atividades mentais Evidentemente que natildeo se exploraraacute as outras atividades aleacutem

deste propoacutesito ou seja fazer um contraponto com a inteligecircncia A busca do filoacutesofo

governante por padrotildees eacuteticos passa agora a ser analisada sob o prisma epistemoloacutegico

O dialeacutetico do livro VI mostra o caraacuteter teacutecnico da filosofia vista de agora em diante

como um exerciacutecio de aquisiccedilatildeo onde aparece com maior ecircnfase o filoacutesofo cientista ou

37

da perspectiva que mais interessa o pensamento nos termos da cogniccedilatildeo a qual a partir

de entatildeo se define como a atividade de buscar as ideias

II A Cogniccedilatildeo

21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem

A pesquisa sobre o que eacute o bem eacute posta de lado sem mais nenhuma explicaccedilatildeo

aleacutem da previsatildeo de se tratar de um objeto cujas exigecircncias demandam um esforccedilo que

vai aleacutem do acircnimo (ηὴλ παξνῦζαλ ὁξκὴλ Rep 506e2)16

de Soacutecrates Dada magnitude

do bem a questatildeo passaraacute a ser investigada a partir do ldquofilho do bemrdquo recurso definido

como o que parece ser mais semelhante a ele (Rep 506d8-e5) O cuidado versaraacute sobre

realizar uma inquiriccedilatildeo de modo a oferecer uma explicaccedilatildeo um caacutelculo verossiacutemil

como o proacuteprio texto diz disto que se revelaraacute herdeiro das caracteriacutesticas do bem ndash ldquo

Recebei portanto os juros e o proacuteprio filho do bem (Rep 507a 4-5) segundo a

16 A ediccedilatildeo inglesa apresenta uma traduccedilatildeo interpretativa mas sem duacutevida bastante coerente para ηὴλ

παξνῦζαλ ὁξκὴλ ldquopresent state of thinkingrdquo Emlyn-Jones C Preddy W op cit p 85 O texto sugere a

incapacidade de apreensatildeo do pensamento diante magnanimidade da ideia do bem mas ao mesmo tempo

a pesquisa intelectual dado por uma acircnimo e por isso um vinculada a uma instacircncia desiderativa Uma

das caracteriacutesticas que distingue o filoacutesofo dos demais se refere a esta postura de busca do conhecimento

que nessa passagem aparece nos termos da ὁξκὴ Vale atentar para a noccedilatildeo de acircnimo intelectual que a

investigaccedilatildeo supotildee o qual agora eacute dita por Soacutecrates como um impulso um esforccedilo Esse seraacute um tema

tratado no livro VII durante a explicaccedilatildeo da proposta propedecircutica na qual se verificaraacute qual a disciplina

apresenta o impulso uacutetil e necessaacuterio para o trabalho intelectual

38

capacidade de apreendecirc-lo ndash ldquoTeremos o maior cuidado que pudermos disserdquo

(Εὐιαβεζόκεζα ἔθε θαηὰ δύλακηλ) (Rep 507a6) As questotildees jaacute levantadas e

definidas em discussotildees anteriores sobre as coisas boas e belas (Πνιιὰ θαιά θαὶ πνιιὰ

ἀγαζὰ) seratildeo revistas a partir desta proposta que comeccedila por distinguir a generalidade

das muacuteltiplas coisas belas e boas da essencialidade da ideia que pressupotildee o novo foco

de investigaccedilatildeo Assim o que era pensado como uma pluralidade de coisas que

apresentavam a benignidade e a beleza como caracteriacutesticas agora abre ocasiatildeo ao que eacute

essencialmente bom e belo que natildeo pode ser outra coisa que a ideia do bem e a ideia do

belo

ldquo- E o proacuteprio belo e o proacuteprio bem e da mesma forma todas

as coisas que naquele momento tiacutenhamos como muacuteltiplas (Καὶ αὐηὸ

δὴ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ θαὶ νὕησ πεξὶ πάλησλ) noacutes agora num

movimento contraacuterio consideramos cada uma em relaccedilatildeo a uma ideia

uacutenica agrave qual damos o nome de essecircncia ndash (ἃ ηόηε ὡο πνιιὰ ἐηίζεκελ

πάιηλ αὖ θαη ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο ldquoὃ ἔζηηλrdquo

ἕθαζηνλ πξνζαγνξεύνκελ)

- Eacute assim

- E das coisas muacuteltiplas afirmamos que satildeo vistas mas natildeo

pensadas enquanto as ideias satildeo pensadas mas natildeo vistas (Καὶ ηὰ

κὲλ δὴ ὁξᾶζζαί θακελ λνεῖζζαη δ νὔ ηὰο δ αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ

ὁξᾶζζαη δ νὔ)rdquo (Rep 507b5-c10)

Este constitui um importante movimento da investigaccedilatildeo ao descrever uma

postura e um foco inteiramente intelectual A perspectiva a partir da qual se pretende

apreender o bem apresenta um elemento que mostra o que haacute de essencial nele a ἰδέα

Deve-se observar a construccedilatildeo deste foco trata-se agora do proacuteprio belo e do proacuteprio

bem (αὐηὸ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ) O que era dito ldquoo bemrdquo e ldquoideia do bemrdquo recebe

agora especificaccedilotildees nos termos de sua identidade A questatildeo parece superar as

caracteriacutesticas e benesses do bem e da beleza para enfatizar aquilo em que mostram ser

autecircnticos ldquoele mesmordquo (ηὸ αὐηό) literalmente o bem ele mesmo o belo ele mesmo

exprimindo dessa forma a sua identidade Tal deve ser o modo a se considerar o bem o

belo e qualquer objeto que estiver sob investigaccedilatildeo O acircngulo que exprime o ηὸ αὐηό eacute

dado conforme uma ideia uacutenica (θαη ἰδέαλ κίαλ) na qual estaacute posto o que eacute essencial

oferecendo por isso o que ele eacute (ὃ ἔζηηλ) A ideia uacutenica consiste portanto no objeto

que exprime o que eacute essencial ao bem ao belo ou ao que se investiga e eacute partir dela

que se daraacute o conhecimento Os termos utilizados para questionar o bem anteriormente

39

recebem nessa passagem uma formulaccedilatildeo especiacutefica Eacute necessaacuterio ter em vista tais

especificaccedilotildees ao se referir a ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα ou para fazer qualquer investigaccedilatildeo da

ordem do conhecimento O termo ὃ ἔζηηλ antes proferido sem maiores especificaccedilotildees

(Rep 506a-b) tem determinado o seu conteuacutedo cognitivo Perguntar-se sobre o bem

consiste em saber o que ele eacute e desse modo eacute perguntar-se sobre a sua essecircncia

manifesta pela ideia Tal relaccedilatildeo entre o bem a ideia e o chamado ldquoo que eacuterdquo mostra

assim aquilo que Soacutecrates considera possiacutevel de apreender17

As especificaccedilotildees sobre a ideia e o ser ganharatildeo explicaccedilotildees O proacuteximo passo

como jaacute previsto diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja agrave apreensatildeo da

ideia Assim o pensamento nos termos do λνῦο aparece como a atividade intelectual

adequada para apreendecirc-las em contraposiccedilatildeo a uma percepccedilatildeo sensiacutevel A dicotomia

enunciada em passagens anteriores como filoacutesofo e natildeo filoacutesofo opiniatildeo e

conhecimento tem uma versatildeo epistecircmica que deve integrar as distinccedilotildees necessaacuterias

para apurar a formulaccedilatildeo dessa perspectiva cientiacutefica o que eacute visiacutevel e o que eacute pensado

Em termos literais as ideias satildeo pensadas enquanto as coisas muacuteltiplas satildeo vistas (ηὰο δ

αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ ὁξᾶζζαη δ νὔ) O pensamento consiste assim na faculdade para

a apreensatildeo das ideias contraposto agraves sensaccedilotildees que apreende somente o que eacute sensiacutevel

(Rep 507c3-4)

Para traccedilar um perfil mais preciso do pensamento e da postura intelectual que o

conhecimento do bem exige vale analisar primeiro o caraacuteter das sensaccedilotildees e das coisas

sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo ao que se refere ao inteligiacutevel Note-se que o que estaacute em

jogo nesse momento eacute muito mais uma definiccedilatildeo de apreensatildeo e que para isso vale

elucidar o que se refere a cada tipo quer da sensibilidade quer do pensamento No caso

das coisas sensiacuteveis antes abordadas nos termos da aparecircncia (ηὰ δνθνῦληα Rep

505d9) o texto mostra os oacutergatildeos da sensibilidade como o que traz a capacidade de

sentir Esses satildeo todavia insuficientes para oferecer qualquer elemento da ordem do

inteligiacutevel Interessa notar o elemento que estaacute para aleacutem da insuficiecircncia dos sentidos e

desse modo delimitar as diferenccedilas entre sensaccedilatildeo e pensamento que se tornam cada

vez mais precisas Importa averiguar aquilo que possibilita a apreensatildeo meio sem o

17 Adam entende que o que eacute tomado como πνιιὰ cada coisa a que se referem diz respeito a uma uacutenica

ideia mas adverte acerca das dificuldades de uma traduccedilatildeo que ofereccedila um sentido claro e simples acerca

de πνιιὰ e ἰδέαλ κίαλ O que lhe parece claro eacute que estes formam uma antiacutetese a qual denota a

contraposiccedilatildeo entre a proacutepria ideia e os πνιιὰ Adam entende que ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ consiste na forma

generalizada de o proacuteprio belo o proacuteprio bem e que o ldquobalanccedilo mais preciso entre ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ e

ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ eacute ldquouma ideia de cada umrdquo chamada ldquoo que eacuterdquo Adam J The Republic of Plato vol II

Cambridge University Press 2009 Pg 81-82

40

qual nenhuma capacidade (δύλακηο Rep 507c8) sensiacutevel e intelectual como se veraacute

poderia exercer a sua funccedilatildeo Entre o ato de ver e o objeto visto se supotildee um terceiro

elemento que torna possiacutevel esse fenocircmeno da visatildeo a luz Sem ela as cores e outras

caracteriacutesticas sensiacuteveis nos objetos seriam invisiacuteveis Natildeo seria possiacutevel utilizar o

oacutergatildeo da visatildeo uma vez que faltaria algo externo a ele que o permitisse ver (Rep

507d11-508a3) A luz eacute descrita como o viacutenculo (ζύδεπμηο Rep 508a1) entre a

sensaccedilatildeo da visatildeo e a capacidade de ser visto Ela consiste portanto naquilo que faz a

ligaccedilatildeo entre percepiente e objeto perceptiacutevel de modo a tornar possiacutevel o

desenvolvimento da capacidade da percepccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de uma

imagem e de tornar o objeto sensorial passiacutevel de ser apreendido mecanismo que

caracteriza o do fenocircmeno da visatildeo

De modo anaacutelogo e paralelo tem-se em foco delinear a capacidade de apreensatildeo

do pensamento e o que o permite atuar Eleito o oacutergatildeo de aquisiccedilatildeo das ideias parece

necessaacuterio investigar a sua relaccedilatildeo com o objeto tiacutepico de uma busca intelectual de

modo a verificar as suas potencialidades Para melhor dizer a respeito do bem faz-se

necessaacuterio especificar natildeo somente as ideias mas ter uma compreensatildeo acerca da

faculdade capaz de estabelecer relaccedilotildees com elas Nesse sentido a pesquisa do bem tal

como eacute feita nas uacuteltimas passagens lanccedila luz agraves questotildees do intelectualismo no que se

refere a sua atuaccedilatildeo como um fenocircmeno da capacidade intelectiva e seu alcance

Representado na figura do filoacutesofo ao longo dos Livros V e VI a intelectualidade

comeccedila a exibir determinaccedilotildees natildeo somente no campo da moralidade mas tambeacutem do

seu exerciacutecio cientiacutefico especiacutefico O que era analisado sob o crivo de um valor moral

como se notou nas abordagens iniciais do bem passa a ser investigado segundo a

formulaccedilatildeo da ciecircncia Da mesma maneira todos os elementos que acompanham a

questatildeo do conhecimento como a ideia e o pensamento satildeo alvo de explicaccedilotildees

Assim as proacuteximas passagens mostraratildeo as operaccedilotildees intelectivas no desenrolar da

explicaccedilatildeo sobre o bem onde seraacute possiacutevel acompanhar as formulaccedilotildees acerca de uma

tiacutepica aquisiccedilatildeo inteligente

41

22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento

A relaccedilatildeo entre faculdade de apreensatildeo e objeto apreensiacutevel depende de algo

exterior que promove a ligaccedilatildeo entre eles A luz aparece assim como um importante

elemento (ἄηηκνλ Rep 508a3) que promove uma relaccedilatildeo entre capacidades ndash de ver e

de ser visto segundo o texto Ela constitui o viacutenculo de descendecircncia entre a causa e

suas derivaccedilotildees entre o sol e o que eacute iluminado por ele possibilitando o conhecimento

acerca dos mesmos O que vem a seguir mostraraacute contudo que mais importante que

este viacutenculo entre δύλακηο como a luz eacute o que a origina a exemplo do sol (Rep

508a8) A analogia propotildee desse modo uma explicaccedilatildeo para a noccedilatildeo de viacutenculo nos

termos de uma relaccedilatildeo natural (θύσ Rep 508a9) ou seja uma relaccedilatildeo que se justifica

dada a sua origem na qual o ser originaacuterio da onde derivam os outros seres assume

maior importacircncia

ldquo- Seraacute assim a relaccedilatildeo natural da visatildeo com esse deus ( Ἆξ νὖλ

ὧδε πέθπθελ ὄςηο πξὸο ηνῦηνλ ηὸλ ζεόλ)

- Como

- A visatildeo natildeo eacute o sol nem a proacutepria visatildeo em si nem o lugar onde

dizemos que ela se daacute isto eacute os olhos

- Natildeo eacute

- Mas eacute creio eu entre os oacutergatildeos dos sentidos o olho eacute mais

semelhante ao sol (Ἀιι ἡιηνεηδέζηαηόλ γε νἶκαη ηῶλ πεξὶ ηὰο

αἰζζήζεηο ὀξγάλσλ)

- De longe o mais semelhante

- Entatildeo tambeacutem o poder que o olho tem ele natildeo o possui com algo

que como um fluxo procede do sol (Οὐθνῦλ θαὶ ηὴλ δύλακηλ ἣλ ἔρεη

ἐθ ηνύηνπ ηακηεπνκέλελ ὥζπεξ ἐπίξξπηνλ θέθηεηαη)

- Eacute bem assim

- Seraacute entatildeo que tambeacutem o sol natildeo eacute a visatildeo mas sendo a causa

dela eacute visto por meio da proacutepria visatildeo (Ἆξ νὖλ νὐ θαὶ ὁ ἥιηνο ὄςηο

κὲλ νὐθ ἔζηηλ αἴηηνο δ ὢλ αὐηο ὁξᾶηαη ὑπ αὐηο ηαύηεο)rdquo (Rep

508a9-b10)

O sol natildeo eacute o fenocircmeno da visatildeo tampouco os olhos oacutergatildeo da visatildeo

(ἡιηνεηδέζηαηόλ Rep 508a9-11) embora os olhos constituam o oacutergatildeo mais semelhante

e portanto mais afim com o sol A capacidade de visatildeo que tecircm os olhos adveacutem do sol

ou seja eacute posta em atividade por ele que no seu papel de fonte originaacuteria transmite tal

habilidade como um fluiacutedo funccedilatildeo desempenhada pela luz A explicaccedilatildeo dada por esta

analogia descreve a relaccedilatildeo de causa e explicita o que se deve entender por uma relaccedilatildeo

42

a ligaccedilatildeo que promove um fenocircmeno a partir do desenvolvimento das capacidades do

objeto apreensiacutevel e do oacutergatildeo que o apreende Trata-se da atribuiccedilatildeo de capacidades e o

que permite o desenvolvimento delas que se explica a partir de uma figura originaacuteria e

superior como o sol Ao que tudo indica a importacircncia de pocircr em foco os elementos

que participam dessa relaccedilatildeo de modo a elencaacute-los e distingui-los estaacute em pocircr em

questatildeo a natureza do que causa o desdobramento da percepccedilatildeo a partir do mecanismo

que constitui o fenocircmeno da visatildeo Natildeo seria correto para a investigaccedilatildeo reconhecer a

causa errada de uma apreensatildeo tampouco superestimar a superioridade do que assume

tal funccedilatildeo

De modo anaacutelogo a natureza inteligiacutevel da ideia do bem natildeo deve ser

confundida nem ter a sua superioridade mitigada reconhecendo-se assim a

superioridade disto que se mostraraacute mais adiante ser o gecircnero inteligiacutevel Da mesma

forma admite-se a superioridade da alta intelecccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees que se tem

na opiniatildeo uma vez que somente nesse niacutevel se pode conhecer algo sobre a verdadeira

causa O estudo do bem como αἴηηνο se revela como um ganho ao mostrar a cadeia de

relaccedilatildeo que eacute possiacutevel inferir a partir da relaccedilatildeo que se mostra entre causa e o que eacute

causado Como sugere a analogia o sol ao emanar seus fluiacutedos permite o conhecimento

do que eacute iluminado e a inferecircncia acerca dele proacuteprio Natildeo eacute conveniente para o

momento discutir a relaccedilatildeo de causalidade que sugestivamente eacute dada na analogia antes

das uacuteltimas informaccedilotildees que o texto iraacute apresentar sobre o bem e a ideia do bem

Interessa observar na analogia a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pensamento e objeto que o

desdobramento da δύλακηο promove a partir da descriccedilatildeo desse ser causador e superior

Tal desdobramento que por ora aparece nos termos do fenocircmeno da percepccedilatildeo sensiacutevel

e da aquisiccedilatildeo inteligiacutevel indicaraacute a origem do comportamento do filoacutesofo do guardiatildeo

e dos outros cidadatildeos quando observado como estados (παζήκαηα) da alma

oferecendo assim uma explicaccedilatildeo mais objetiva sobre as operaccedilotildees do pensamento

Outro dado ao qual se deve dar atenccedilatildeo diz respeito agrave natureza do oacutergatildeo de

apreensatildeo semelhante ao ser originaacuterio Essa consiste em uma importante informaccedilatildeo

para compor a caracterizaccedilatildeo do pensamento como faculdade do conhecimento e

portanto afim com a ideia e com o bem A exemplo dos olhos o oacutergatildeo dos sentidos

mais semelhante com o sol e que sugere portanto uma afinidade natural com ele

descreve a relaccedilatildeo que o pensamento como oacutergatildeo do conhecimento e da inteligecircncia

deve estabelecer com as ideias inteligiacuteveis as quais oferecem de algum modo o bem

A natureza do pensamento eacute semelhante agrave natureza do bem e das ideias e portanto deve

43

ser o meio para reconhecer a relaccedilatildeo que haacute entre o ἀγαζόο e as outras coisas que dele

derivam Deve-se observar que posto nos termos de uma relaccedilatildeo natural de filiaccedilatildeo o

pensamento deve apresentar as caracteriacutesticas afins com o bem Entretanto o texto

ainda natildeo oferece tais elementos antes de propor uma anaacutelise das complexidades do

pensar como uma atividade na alma Por enquanto a distinccedilatildeo entre apreensatildeo

capacidades e fonte de origem parece importante para que se possa mais adiante

empreender uma anaacutelise das operaccedilotildees intelectuais ateacute aqui sugeridas Do mesmo modo

tais diferenciaccedilotildees parecem fundamentais para caracterizar e qualificar o pensar e o

conhecimento de modo a compreender uma certa hierarquia que se constroacutei a partir da

noccedilatildeo de valor a saber a magnanimidade do bem e a importacircncia da ideia do bem

analogamente descrita na superioridade do sol como paracircmetro como referecircncia Como

um paracircmetro tal superioridade permite qualificar algo como niacutetido ou verdadeiro

quando posto em relaccedilatildeo ao bem18

O jogo de oposiccedilotildees que se tem observado ao longo desta pesquisa mostra na

oposiccedilatildeo visiacutevel-inteligiacutevel dita diretamente na analogia do sol as relaccedilotildees que se pode

estabelecer entre os diferentes domiacutenios Vale examinar este tracircmite na figura da luz e

na descriccedilatildeo da relaccedilatildeo de descendecircncia entre o sol e seus filhos onde satildeo sugeridas as

noccedilotildees de causalidade e semelhanccedila como elementos importantes para a atividade

intelectual

ldquo- Pois bem disse eu Deves pensar que eu afirmo que o sol eacute o

filho do bem aquele que o bem engendrou como anaacutelogo a si mesmo

(ηὸλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἔθγνλνλ ὃλ ηἀγαζὸλ ἐγέλλεζελ ἀλάινγνλ ἑαπηῷ)

cuja relaccedilatildeo no mundo inteligiacutevel com a inteligecircncia e as coisas

inteligiacuteveis eacute a mesma que o sol tem no mundo visiacutevel com a vista e

as coisas visiacuteveis (ὅηηπεξ αὐηὸ ἐλ ηῷ λνεηῷ ηόπῳ πξόο ηε λνῦλ θαὶ ηὰ

λννύκελα ηνῦην ηνῦηνλ ἐλ ηῷ ὁξαηῷ πξόο ηε ὄςηλ θαὶ ηὰ ὁξώκελα)rdquo

(Rep 508b12-c2)

18 As palavras de Giovanni Casertano trazem este raciociacutenio de maneira melhor resumida ldquoParece-me

claro que aqui a ideia do bem eacute o que transforma conhecimentos nun sistema fortemente organizado a

que podemos chamar ciecircncia ἐπηζηήκε e ao mesmo tempo valida a niacutevel superior os mesmos

conhecimentos eacute o que daacute um valor maior aos mesmos conhecimentos Neste sentido deve-se entender

que ela eacute a causa tambeacutem da verdade e esta ideia do valor maior conferido da ideia do bem aos

conhecimentos seraacute reafirmado logo depois realccedilando ainda que o sentido do que se quer dizer eacute iacutensito

na imagem que se estaacute usandordquo Casertano G ldquoO Bem e a Linhardquo in Xavier D Cornelli G (orgs) A

Repuacuteblica de Platatildeo ndash Outros Olhares Satildeo Paulo Loyola 2011 p 291 A perspectiva cientiacutefica tal como

aqui se pretende delinear coloca o bem como mostra claramente o comentaacuterio em uma posiccedilatildeo de

superioridade em uma hierarquia que deve ser entendida nos termos de uma divisatildeo na qual os elementos

se organizam em relaccedilatildeo a ele Sendo assim a valoraccedilatildeo que se atribui aos termos diz respeito ao grau de

cognoscibilidade que oferecem nessa relaccedilatildeo

44

O texto se encaminha de modo a pontuar conclusotildees sobre as questotildees postas

aqui O sol eacute a causa (αἴηηνο) da visatildeo uma vez que oferece a luminosidade para que se

realize o fenocircmeno da percepccedilatildeo De modo anaacutelogo conclui-se que o sol eacute a ideia do

bem o filho do bem e que por ser seu descendente eacute semelhante a ele O conhecimento

por sua vez eacute representado nos termos da acuidade da visatildeo do ver nitidamente o que

se observa (Rep 508c4-d2) exibindo assim uma condiccedilatildeo desta formulaccedilatildeo de

conhecimento que vem sendo construiacuteda a condiccedilatildeo de clareza que seraacute explorada mais

adiante Agora dito explicitamente o texto confirma a equiparaccedilatildeo do sol ao filho do

bem Toda a narrativa acerca do fenocircmeno da visatildeo serve para introduzir e estabelecer

os temas considerados importantes no que se refere agrave inteligecircncia Comparado ao sol no

mundo sensiacutevel o bem eacute a causa e o pensamento e as coisas pensadas apresentam com

ele a mesma relaccedilatildeo que a haacute entre o sol a vista e as coisas visiacuteveis A figura da

descendecircncia que aos poucos eacute dita em termos cada vez mais precisos apresenta aquela

que seraacute uma importante noccedilatildeo para a apreensatildeo inteligiacutevel a semelhanccedila que pode

haver em uma analogia Dada como uma caracteriacutestica herdeira do bem ela mostra a

potencialidade de oferececirc-lo ainda que natildeo de modo fidedigno como se veraacute Ela

consiste desse modo em um dos meios pelo qual o pensamento pode se lanccedilar em

busca de uma apreensatildeo pois eacute possiacutevel inferir que o exprime da maneira mais

proacutexima Note-se que ao afirmar que o sol eacute semelhante ao bem o texto valida as

relaccedilotildees feitas na analogia e as consequecircncias que se pode tirar delas Ao mesmo tempo

pontua os graus de descendecircncia e portanto em que grau os objetos em questatildeo se

relacionam com ele

Tais comparaccedilotildees tecircm seus propoacutesitos melhor compreendidos e averiguados

quando analisados em relaccedilatildeo agrave alma A pesquisa do filoacutesofo mostra a sua importacircncia agrave

medida que compreende o quanto que lhe for possiacutevel o valor do bem como fonte

originaacuteria O que antes era sugerido como objeto altamente valoroso (ἀπνκαληεπνκέλε

Rep 505e1) e que por isso qualificava aqueles que empreendiam a sua busca

(θνκςνηέξνηο Rep 505b6) tem explicita a sua importacircncia e distinccedilatildeo nas conclusotildees

da analogia

ldquo- () Pensa assim tambeacutem a respeito da alma Quando ela se

apoacuteia no que a verdade e o ser iluminam ela o concebe e parece ter

inteligecircncia (Οὕησ ηνίλπλ θαὶ ηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη19

ὅηαλ κὲλ νὗ

19 Para compreender melhor a passagem e a proacutepria analogia vale trazer a versatildeo do texto grego

estabelecido por Proclus que Eacutemile Chambry apresenta em seu aparato criacutetico ldquoηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη ηὸ

45

θαηαιάκπεη ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ εἰο ηνῦην ἀπεξείζεηαη ἐλόεζέλ ηε

θαὶ ἔγλσ αὐηὸ θαὶ λνῦλ ἔρεηλ θαίλεηαη) Quando poreacutem se apoacuteia em

algo em que se mistura com a escuridatildeo aquilo que vem a ser e

perece ela emite opiniotildees e a visatildeo turva porque vai mudando suas

opiniotildees numa e noutra direccedilatildeo e entatildeo se assemelha a algueacutem que

natildeo tem inteligecircncia (δνμάδεη ηε θαὶ ἀκβιπώηηεη ἄλσ θαὶ θάησ ηὰο

δόμαο κεηαβάιινλ θαὶ ἔνηθελ αὖ λνῦλ νὐθ ἔρνληη)rdquo (Rep 508d4-9)

Ao reconhecer superioridade do bem a pesquisa pontua os objetos herdeiros

dele ao mesmo tempo em que confere agrave inteligecircncia a superioridade de sua capacidade

cognitiva Dito de outro modo o λνῦο mostra sua aptidatildeo inteligiacutevel ao se revelar o

meio adequado para investigar tais objetos adquirindo deles aquilo que eacute apreensiacutevel

intelectualmente como a ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Nessa atividade reside o alto valor da

intelecccedilatildeo em comparaccedilatildeo ao tipo de apreensatildeo que se tem na opiniatildeo a percepccedilatildeo A

nitidez necessaacuteria para o conhecimento mostra a verdade e o ser caracteriacutesticas do bem

as quais a alma se fixa (ἀπεξείδσ Rep 508d5) ou se apoia como prefere a traduccedilatildeo

para ter aquela que parece ser a sua melhor condiccedilatildeo o seu melhor estado a λόεζηο Ter

inteligecircncia supotildee este processo de aquisiccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de tais atributos

ao mesmo tempo iluminados (θαηαιάκπεη) dados pelo bem

Conveacutem notar assim o sentido em que o texto oferece a verdade que

acompanha o ser nessa passagem como um atributo do bem apreensiacutevel pela alta

intelecccedilatildeo Diferentemente de como foi referido anteriormente (Rep 506c) a verdade

natildeo aparece nos termos de um acerto que pode eventualmente se dar mas como uma

caracteriacutestica do bem que oferece condiccedilotildees para reconhecer o que eacute inteligiacutevel

comparaacutevel agrave luz do sol A passagem mostra os elementos a partir dos quais se daacute a

aquisiccedilatildeo do bem e o proveito que a alma tem desse conhecimento sendo a verdade e o

ser o que deve ser conhecido Cabe considerar assim que este ldquofixar-serdquo da alma diz

respeito agrave apreensatildeo entretanto vale questionar o sentido em que se pode compreendecirc-

lo como uma aquisiccedilatildeo No registro do conhecimento como se tem visto refere-se a um

ὄκκα ηο ςπρο ᾧ δε λόεη ndash Chambry La Republic ed Belles Lettres p 138 As ediccedilotildees biliacutengues no

geral natildeo optam pela versatildeo de Proclus mas cabe comentar as opccedilotildees dado que a passagem sugere o

pensamento anaacutelogo aos olhos e a aquisiccedilatildeo da ideia comparaacutevel ao fenocircmeno da visatildeo Considerar a

inteligecircncia como ldquoos olhos da almardquo parece uma analogia plenamente possiacutevel nessa oraccedilatildeo uma vez

que tal expressatildeo aparece em 533d2 Deve-se entender a inteligecircncia como ldquoolhos da almardquo no sentido de

autecircntico oacutergatildeo do conhecimento e acompanhar o seu desempenho no contexto do estabelecimento de

papeacuteis na relaccedilatildeo cognoscente-cognosciacutevel Seguindo a simetria que a analogia apresenta ao longo da

argumentaccedilatildeo a λνήζηϛ corresponde agrave visatildeo (ὄςηο ὁξάσ) os olhos (ὀθζαικόο ὄκκα) oacutergatildeos da visatildeo ao

λνῦο faculdade da cogniccedilatildeo as vistas o exerciacutecio da visatildeo se refere ao exerciacutecio do intelecto e ao

conhecimento Da mesma forma o sol eacute anaacutelogo agrave ideia do Bem a luz eacute anaacuteloga agrave verdade e as cores

assim como o que se apreende como fenocircmeno visual corresponde agraves ideias

46

tomar posse adquirir caracteriacutesticas inteligiacuteveis do bem verdade e ser Em um outro

sentido bastante possiacutevel mas que natildeo parece conveniente nesse contexto diz respeito

ao fitar ter em mira bastante afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo da ideia inteligiacutevel

aparentemente ainda natildeo sugerida aqui De qualquer modo ter inteligecircncia (λνῦλ ἔρεηλ)

compreende um contato com o inteligiacutevel conduzido pela verdade que promoveraacute um

efeito dito conhecimento O modo e as razotildees para a alma se manter presa a esses

aspectos se daraacute em parte ao longo da explanaccedilatildeo sobre o meacutetodo Por enquanto tem-

se enunciado a importacircncia desta aquisiccedilatildeo e a descriccedilatildeo da postura daquele que pode

adquirir o conhecimento por se lanccedilar a esse exerciacutecio o qual se pode denominar

intelecccedilatildeo no maior grau

Deve-se chamar atenccedilatildeo para o desenlace da sugestatildeo de inteligecircncia como alta

capacidade de aquisiccedilatildeo que o texto apresentou anteriormente (Rep 505b4) nos termos

do θξνλεῖλ e do λνῦο Os desdobramentos desta noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo que vem sendo

construiacuteda qualifica a divisatildeo dos dois tipos de apreensatildeo Segundo o que sugere a

ultima analogia a aquisiccedilatildeo inteligente eacute considerada a mais alta dado o valor dos

abjetos que adquirem enquanto as percepccedilotildees do sensiacutevel ao modo da opiniatildeo eacute posto

em um niacutevel inferior A partir da argumentaccedilatildeo acerca dos aspectos do bem que devem

ser conhecidos e portanto o alvo cognosciacutevel da alma justifica-se a valorizaccedilatildeo pela

busca do bem e o desprezo pela aparecircncia agora nos termos epistemoloacutegicos como quer

a formulaccedilatildeo de conhecimento para a filosofia Tecircm-se os elementos que estatildeo em vista

no verdadeiro conhecimento e com isso uma descriccedilatildeo da conduta da alma nessa

atividade de alta intelecccedilatildeo A retidatildeo da alma do que foi pensado e conhecido

demonstra a relaccedilatildeo natural entre o bem e o resultado dessa relaccedilatildeo ter a verdade e o

ser permanecer de algum modo vinculados a eles o que descreve a θξόλεζηο e a

λόεζηϛ20

Este parece ser um tema crucial de acordo com as intenccedilotildees poliacuteticas do filoacutesofo

Pode-se depreender que o conhecimento como posse da verdade e do ser dado nesta

vinculaccedilatildeo da alma eacute o que garante o bom governo e a organizaccedilatildeo da cidade A

importacircncia de investigar acerca do pensar e evidentemente os seus modos de

apreensatildeo estaacute justamente em tornar expliacutecito o exerciacutecio intelectual que acontece na

20 Descrita assim a noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo eacute bastante parecida com a que se encontra no Feacutedon 79d uma

relaccedilatildeo do pensamento com os seres do domiacutenio inteligiacutevel na qual se tem concomitantemente agrave

aquisiccedilatildeo da ideia a atividade desta apreensatildeo sendo ela proacutepria o resultado da interaccedilatildeo entre a alma e a

ideia Esta talvez constitua a visatildeo mais patente do pensamento nos termos de uma faculdade no qual o

intelecto eacute agente do conhecimento e paciente ao receber do inteligiacutevel estiacutemulo para continuar em

atividade

47

mais alta intelecccedilatildeo e que vai garantir ao filoacutesofo governar com justiccedila Do mesmo

modo iraacute permitir ao filosoacutefo conhecer o alcance e o comportamento intelectual do natildeo

filoacutesofo conhecimento bastante uacutetil para organizar harmonicamente as categorias que

compotildeem a cidade Tal vinculaccedilatildeo entretanto parece ganhar maiores detalhamentos na

analogia da linha Ateacute aqui o que se tem constitui uma caracterizaccedilatildeo ainda pouco

teacutecnica do pensar mas suficiente para oferececirc-lo no sentido restrito aos interesses da

filosofia Deve-se ter em vista que os passos dados pontuam as questotildees que unem o

objetivo poliacutetico e epistecircmico ao lanccedilar para a alma os temas analisados No entanto o

teor desta ligaccedilatildeo entre conhecimento e organizaccedilatildeo poliacutetica seraacute elucidado somente

apoacutes uma anaacutelise da atividade da alma que aparece como se examinaraacute nos termos da

percepccedilatildeo sensiacutevel e da cogniccedilatildeo A aquisiccedilatildeo do conhecimento teraacute a sua explicaccedilatildeo

como fenocircmeno psiacutequico permitindo propor ao mesmo tempo a atividade inteligente de

modo autecircntico e as consequecircncias eacuteticas desta aquisiccedilatildeo temas indiretamente

enunciados nessa vinculaccedilatildeo da alma que pressupotildee a θξόλεζηο e a λόεζηϛ A

formulaccedilatildeo da ideia do bem tem junto com a explicaccedilatildeo do conjunto de atividades

mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo sua posiccedilatildeo definida da onde teraacute explicitado seu papel

de paracircmetro modelo e causa

Antes de um exame minucioso sobre as operaccedilotildees intelectivas cabe ainda

analisar com detalhes o que o texto conclui sobre o bem apoacutes a exposiccedilatildeo da sua relaccedilatildeo

com as ideias e com o pensamento tal como se viu Deve-se observar a transposiccedilatildeo

dos elementos da analogia para a teoria do conhecimento e da ideia do bem que se

propotildee Nesta transposiccedilatildeo estatildeo os dados epistemoloacutegicos que passam a ser utilizados

na investigaccedilatildeo os quais constituem a perspectiva cientiacutefica que Soacutecrates pretende dar

aos objetos em questatildeo

ldquo- Pois bem Eis o que deves afirmar Eacute a ideia do bem que

confere verdade ao que estaacute sendo conhecido e capacidade ao que

conhece (ηὸ ηὴλ ἀιήζεηαλ παξέρνλ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο θαὶ ηῷ

γηγλώζθνληη ηὴλ δύλακηλ ἀπνδηδὸλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέαλ θάζη εἶλαη)

Deves pensaacute-la como causa da ciecircncia e da verdade na medida em

que esta eacute conhecida (αἰηίαλ δ ἐπηζηήκεο νὖζαλ θαὶ ἀιεζείαο ὡο

γηγλσζθνκέλεο κὲλ δηαλννῦ) mas embora a ciecircncia e a verdade

sejam belas pensaraacutes com acerto se pensares que a ideia do bem natildeo

se confunde com elas e as supera em beleza (ἄιιν θαὶ θάιιηνλ ἔηη

ηνύησλ ἡγνύκελνο αὐηὸ ὀξζῶο ἡγήζῃ ἐπηζηήκελ δὲ θαὶ ἀιήζεηαλ)

Como aqui eacute correto considerar que a luz e a visatildeo satildeo semelhantes

ao sol (ἡιηνεηδ) mas natildeo eacute correto tecirc-las como o sol assim tambeacutem

eacute correto considerar que laacute sejam semelhantes ao bem (ἀγαζνεηδ)

mas natildeo eacute correto considerar que uma ou outra seja um bem Ao

48

contraacuterio deve-se atribuir um valor ainda maior agrave natureza do bem

(ἀιι ἔηη κεηδόλσο ηηκεηένλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ)

- A beleza de que falas eacute extraordinaacuteria disse se ela potildee agrave nossa disposiccedilatildeo a ciecircncia e

a verdade mas as supera em beleza (εἰ ἐπηζηήκελ κὲλ θαὶ ἀιήζεηαλ παξέρεη αὐηὸ δ ὑπὲξ ηαῦηα

θάιιεη ἐζηίλ) E tu natildeo deves estar falando que o belo eacute o prazerrdquo (Rep 508e-509 a)

A ideia do bem eacute a causa do conhecimento e da verdade mas natildeo eacute nem a

proacuteprio conhecimento nem a verdade Como causador natildeo pode ser confundida com os

seus derivados dado que esses apresentam algumas de suas caracteriacutesticas como a

verdade e a ciecircncia que satildeo belos Apesar de compartilharem caracteriacutesticas o causador

excede (ὑπέξ) em grau as qualidades atribuiacutedas por ele ao seu derivado Tais qualidades

satildeo suficientes para conferir a benignidade do bem ao que dele deriva entretanto

permitem apenas inferir a partir deles uma dimensatildeo do bem sugestivamente inatingiacutevel

O pensamento como a capacidade de atingi-lo pode no seu exerciacutecio inferir acerca

dele mesmo que natildeo possa apreendecirc-lo totalmente Tal limitaccedilatildeo do pensamento natildeo

representa apesar disso um impedimento para o conhecimento de sua natureza

inteligiacutevel Saber o que eacute o bem nesse sentido constitui um empreendimento para aleacutem

das possibilidades de uma intelecccedilatildeo elevada O que eacute cognosciacutevel acerca dele natildeo deve

ser confundido com ele proacuteprio e este parece consistir em um dos primeiros

discernimentos para a sua apreensatildeo

Para melhor definir e compreender no que consiste uma atuaccedilatildeo inteligente

deve-se analisar as uacuteltimas conclusotildees da analogia sobre o bem segundo a analogia do

sol Como se viu tem-se por objetivo avaliar a sua condiccedilatildeo (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ Rep

509a5) de modo a verificar o seu papel de fundamento da justiccedila e das virtudes

conforme enunciado no iniacutecio da investigaccedilatildeo As uacuteltimas palavras da analogia do sol

coloca finalmente a questatildeo na perspectiva ontoloacutegica que eacute introduzida a partir de

outra analogia uma imagem do bem (ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ Rep 509a9)

ldquo- Creio que diraacutes que o sol natildeo soacute proporciona aos objetos

visiacuteveis a capacidade de serem vistos mas tambeacutem a gecircnese o

crescimento e a nutriccedilatildeo embora ele proacuteprio natildeo seja a gecircnese (ηὴλ

ηνῦ ὁξᾶζζαη δύλακηλ παξέρεηλ θήζεηο ἀιιὰ θαὶ ηὴλ γέλεζηλ θαὶ

αὔμελ θαὶ ηξνθήλ νὐ γέλεζηλ αὐηὸλ ὄληα)

- Como poderia

- Pois bem Deves dizer tambeacutem que natildeo soacute eacute sob a accedilatildeo do bem

que a faculdade de serem conhecidos estaacute presente nos objetos (ηνῖο

γηγλσζθνκέλνηο ηνίλπλ κὴ κόλνλ ηὸ γηγλώζθεζζαη θάλαη ὑπὸ ηνῦ

ἀγαζνῦ παξεῖλαη) mas tambeacutem que eacute sob a accedilatildeo dele que eles ainda

49

vecircm a ter a existecircncia e o ser (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ ὑπ

ἐθείλνπ)21

muito embora o bem natildeo seja essecircncia mas esteja muito

aleacutem da essecircncia em majestade e poder (πξεζβείᾳ θαὶ δπλάκεη )rdquo

(Rep 509b)

O sol proporciona a geraccedilatildeo o crescimento e a nutriccedilatildeo mas ele proacuteprio natildeo eacute a

geraccedilatildeo Condiccedilatildeo anaacuteloga ao bem que proporciona ao objeto a possibilidade de ser

conhecido ser e essecircncia a qual como se veraacute seraacute apreendida nos termos da

realidade Ele proacuteprio natildeo eacute uma essecircncia ele age sobre o que a ele se relaciona O bem

nessa condiccedilatildeo distingue-se de tais objetos do ser e da essecircncia denotando assim a

superioridade de sua posiccedilatildeo e de sua potecircncia Note-se que a ultima passagem

apresenta definiccedilotildees importantes A primeira se refere agraves caracteriacutesticas do bem que os

objetos recebem o ser e a realidade (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ) e a cognoscibilidade

Disso decorre principalmente a definiccedilatildeo em termos ontoloacutegicos do conhecimento a

aquisiccedilatildeo dessas caracteriacutesticas dadas aos objetos na relaccedilatildeo com o bem ou seja a

apreensatildeo da realidade e do ser que neles se apresentam O bem consiste portanto na

causa do ser e da realidade que traz a essecircncia apreensiacuteveis pelo intelecto mas natildeo

pode ser conhecido em sua integridade apenas inferido por aquela que consiste na ideia

mais proacutexima mais semelhante a ele a ideia do bem (Rep 508e-509a4)22

A abordagem ontoloacutegica do bem oferece a perspectiva cientiacutefica como quer a

filosofia Ao apresentar os verdadeiros objetos cognosciacuteveis nesses termos tem-se a

especificidade dos objetos da intelecccedilatildeo da cogniccedilatildeo (γλῶζηο) e da ἐπηζηήκε que

exigiraacute uma explicaccedilatildeo acerca deste gecircnero filiado agrave ideia do bem e desse tipo de

apreensatildeo Vale por enquanto pontuar o que a analogia pretendeu esclarecer o bem eacute

21 Na ediccedilatildeo inglesa temos ldquobeing and realityrdquo opccedilatildeo que parece conveniente ao contexto uma vez que

a questatildeo ontoloacutegica natildeo parece abordar nesta e nas proacuteximas argumentaccedilotildees a questatildeo da existecircncia mas

da realidade dos objetos promovida por esta participaccedilatildeo na ideia do bem Emly-Jones Preddy op cit p

95

22 Para elucidar o que aqui se explica vale citar o que diz Gosling sobre no que consiste a definiccedilatildeo a

partir da noccedilatildeo de conhecimento n‟A Repuacuteblica ldquoPara Platatildeo tambeacutem se concebe o conhecimento como

satisfazer a pergunta bdquoo que eacute X‟ Expresso nos termos de bdquoX eacute F e G‟ isso natildeo parece ser um defeito na

linguagem mas reflete o fato necessaacuterio de que vaacuterias formas satildeo inextrincavelmente inter-relacionadas

Gosling JCB The Argument of the Philosophers Routledge London and New York 3a ed 2001 pg 120

Este seria o caso dos bdquofilhos do bem‟ como se veraacute em seguida no qual todos apresentam o Bem como

causa e por isso se relacionam a ele necessariamente em termos loacutegicos B bsup1 bsup2 bn Desse modo o Bem

pode ser visto a partir da perspectiva inversa ou seja a partir do que dele se origina como acontece com

a verdade com a realidade e com o justo por exemplo Nesse sentido parece compreensiacutevel e pertinente

a questatildeo e a resposta de Gosling as quais antecipam a questatildeo ontoloacutegica e a noccedilatildeo de conhecimento

que seraacute trabalhada no Livro VI e especialmente no Livro VII ao se averiguar as operaccedilotildees especiacuteficas da

matemaacutetica e da dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar a proposta e as distinccedilotildees entre bem e ideia

introduzidas neste argumento cujas diferenciaccedilotildees se apresentaratildeo ao longo da formulaccedilatildeo de

conhecimento (γλῶζηο e ἐπηζηήκε)

50

superior e inapreensiacutevel A ideia do bem o ser a essecircncia a verdade e o conhecimento

satildeo originados pelo Bem Dentre esses a ideia do bem eacute a ideia semelhante a ele sendo

possiacutevel supor portanto uma distinccedilatildeo entre a ideia do bem e as outras ideias Todo

objeto cognosciacutevel tem ser essecircncia e verdade caracteriacutesticas que o torna cognosciacutevel

O pensamento (θξόλεζηο e λόεζηϛ) como oacutergatildeo do conhecimento mostra-se afim desse

tipo de objeto e por consequecircncia afim com a ideia do bem (ἀγαζνεηδ Rep 509a3)

Assim o pensamento como faculdade da cogniccedilatildeo e capacidade cognitiva eacute da mesma

maneira afetado pela accedilatildeo do bem cujo efeito seraacute o desdobramento da capacidade de

intelecccedilatildeo

Eacute importante atentar para as consequecircncias da teoria do bem e da ideia do bem

para que se possa precisar com mais detalhes o pensamento especialmente no que diz

respeito agrave cogniccedilatildeo Parece imprescindiacutevel para compreender as perspectivas em que o

texto o evoca a saber como faculdade e atividade do conhecimento as diferenciaccedilotildees

que esta hierarquia entre bem ideia do bem e outros objetos que possam ser alvo de

uma atividade de cogniccedilatildeo supotildeem Diante do que se tem examinado as caracteriacutesticas

do objeto satildeo condiccedilotildees para a cogniccedilatildeo tanto quanto a faculdade de conhecer Ambos

faculdade do conhecimento e o objeto tecircm de possuir o caraacuteter inteligiacutevel dado pelo

bem como mostrou a analogia do sol ao enfatizar a capacidade do objeto de ser

percebido e a capacidade do percepiente de perceber Desse acircngulo o estudo sobre o

bem serviu para pontuar a condiccedilatildeo de cada elemento de modo a estabelecer e a elucidar

a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo entre eles Nesta ligaccedilatildeo parece clara a ideia do bem como

fundamento a partir do qual se tem um elemento ativo o intelecto e um passivo o

objeto inteligiacutevel Assim tatildeo importante quanto delimitar e elucidar no que consiste

uma atividade inteligente eacute discernir e definir qual eacute o objeto proacuteprio da inteligibilidade

No desenrolar da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento e sobre o conhecimento da justiccedila

e das virtudes por consequecircncia faz-se necessaacuterio averiguar na mesma medida a postura

intelectual o procedimento intelectual e as condiccedilotildees de cogniccedilatildeo que objeto em

questatildeo oferece

51

As explicaccedilotildees acerca da ideia do bem fazem parte da enunciaccedilatildeo e da divisatildeo

que o discurso tiacutepico da filosofia realiza (θακέλ ηε θαὶ δηνξίδνκελ ηῷ ιόγῳ Rep

507b3) De outro acircngulo pode-se verificar assim no que consiste o caraacuteter racionalista

de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica e as suas bases teoacutericas Dados os esclarecimentos sobre

seu objeto especiacutefico ao mesmo tempo se observa a formulaccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo

entre pensamento e sensaccedilotildees a qual recebe uma diferenciaccedilatildeo no registro ontoloacutegico

Com a uacuteltima explicaccedilatildeo sobre a essecircncia antes definida como ldquoideia uacutenicardquo temndashse a

explicaccedilatildeo da origem dos objetos especiacuteficos do pensamento e do que os constituem

enquanto objetos da cogniccedilatildeo (507b) No entanto natildeo parece haver uma completa

compreensatildeo das dificuldades que envolvem o estudo do bem sem antes verificar a

atuaccedilatildeo do intelecto nessa empresa de compreender o que dele se pode conhecer A

busca racionalista do bem parece demandar ainda um maior entendimento sobre sua

inteligibilidade que consequentemente estaacute envolvida na cogniccedilatildeo Ao mesmo tempo

o procedimento adequado para um conhecimento dessa natureza seraacute um ponto

decisivo uma vez que deve se mostrar afim como se analisaraacute com o gecircnero

intelectualista do bem Nesse sentido parece importante antes averiguar o que a

analogia da linha apresenta acerca do gecircnero e dos procedimentos inteligiacuteveis a fim de

obter uma maior compreensatildeo sobre as ideias sobre a suposta hierarquia que haacute entre

elas e sobre as distinccedilotildees e procedimentos da atividade do pensamento nessa aquisiccedilatildeo

23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios

O que se pode considerar ser o ldquopensamentordquo a partir da analogia da linha no livro

VI d‟A Repuacuteblica diz respeito ao conjunto de operaccedilotildees que constituem a percepccedilatildeo

sensiacutevel e a apreensatildeo das ideias a uacuteltima dita conhecimento (ηὸ γλσζηόλ Rep

510a11) Nela se pode depreender um detalhamento da atividade perceptiva e cognitiva

em suas diferentes etapas concomitantemente agrave especificaccedilatildeo dos seus respectivos

52

fenocircmenos de apreensatildeo Desse modo o conhecimento ou de modo mais fiel ao texto

o que eacute da ordem do conhecimento e por isso o que eacute de fato cognosciacutevel ganha

explicaccedilatildeo mais detalhada nas divisotildees que a analogia propotildee O tipo de apreensatildeo mais

importante para os propoacutesitos do filoacutesofo portanto a atividade noeacutetica eacute dada de

acordo com os seus diferentes modos de atuar ou seja segundo o que cada teacutecnica

emprega nos seus diferentes meacutetodos matemaacutetico e dialeacutetico (Rep 510b-c) Para

realccedilar o contraste desta seccedilatildeo que diz respeito agrave inteligecircncia a divisatildeo que pretende

analogamente propor a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel nos termos de gecircnero e lugar

supondo assim um plano sensiacutevel e um plano inteligiacutevel oferece a perspectiva de cada

domiacutenio que daacute base para a explicaccedilatildeo acerca da aquisiccedilatildeo de conhecimento

ldquo() - Pois bem disse eu Pensa que como diziacuteamos eles satildeo dois

e reinam um sobre o gecircnero e mundo inteligiacuteveis e o outro em

compensaccedilatildeo sobre o mundo visiacutevel (βαζηιεύεηλ ηὸ κὲλ λνεηνῦ

γέλνπο ηε θαὶ ηόπνπ ηὸ δ αὖ ὁξαηνῦ) Natildeo falo que reina sobre o ceacuteu

para que natildeo penses que estou fazendo sutil jogo de palavras Mas tu

estaacutes entendendo bem esses dois gecircneros o visiacutevel e o inteligiacutevel

- Eu aceitaria disse e muito bemrdquo (Rep 509c3-d6)

Vale observar as distinccedilotildees tal como a analogia propotildee γέλνs e ηόπνs A

distinccedilatildeo entre gecircnero e lugar marca o plano em que seraacute discutida a questatildeo do

verdadeiro conhecimento e consequentemente do seu modo correto de apreensatildeo A

proposta ao que tudo indica eacute determinar o domiacutenio em que se situa o saber filosoacutefico

o que dito de outro modo consiste em determinar a sua posiccedilatildeo e a sua especificidade

em relaccedilatildeo aos outros conhecimentos Ao mesmo tempo marcar as distinccedilotildees do que se

refere ao conhecimento filosoacutefico ao inteligiacutevel portanto em comparaccedilatildeo ao que

concerne agrave opiniatildeo A noccedilatildeo de lugar ou mundo como prefere a maioria das traduccedilotildees

oferece a posiccedilatildeo para as coisas dos diferentes gecircneros e permite conforme sugere o

texto estabelecer as diferenccedilas e as semelhanccedilas entre eles A dupla forma que a linha

mostra (δηηηὰ εἴδε ὁξαηόλ λνεηόλ Rep 509d4) parece ser uma estrateacutegia para poder

mais tarde argumentar novamente a favor da ideia do bem como paradigma Em outros

termos ao pontuar uma posiccedilatildeo para traccedilar esta distinccedilatildeo o texto categoriza os objetos

e ao mesmo tempo posiciona-os em relaccedilatildeo a uma referecircncia Tal divisatildeo permite

abordar desse modo algumas das noccedilotildees como semelhanccedila e modelo (ηὸ ὁκνησζὲλ

53

πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε Rep 510a11) imitaccedilatildeo (κηκήζηο Rep 510b4) e a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (κεηέρεηλ Rep 511e5)

Do mesmo modo a distinccedilatildeo de gecircnero colabora para a introduccedilatildeo de tais

noccedilotildees agora no que concerne agrave questatildeo do estatuto ontoloacutegico dos objetos de cada

domiacutenio anteriormente sugerido como uma hierarquia Classificar os objetos em

determinados gecircneros torna possiacutevel qualificaacute-los em relaccedilatildeo a um modelo em um

primeiro momento sugerido pela verdade que parece constituir um dos atributos das

ideias inteligiacuteveis As coisas verdadeiras ou as coisas que apresentam a verdade dada

pela ideia do bem mostram as qualificaccedilotildees do inteligiacutevel e satildeo por isso importantes

para compreender o grau de cognoscibilidade que se pode ter em cada domiacutenio quando

postas em contraste agrave carecircncia do sensiacutevel Segundo o contexto comparativo da analogia

da linha dividida ldquoquanto mais os objetos participarem da verdade tanto mais clareza

teratildeordquo (Rep 511e3-4) o que sugere que uma maior cogniccedilatildeo acerca dos objetos

investigados depende de sua participaccedilatildeo no inteligiacutevel e que a clareza pode ser um

criteacuterio para distinguir um objeto inteligiacutevel de um objeto sensiacutevel Esta eacute uma relaccedilatildeo

uacutetil para verificar a questatildeo da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo pois mostra em

que medida os atributos inteligiacuteveis consistem em princiacutepios condutores da

racionalidade

A divisatildeo propotildee desta forma as relaccedilotildees e os criteacuterios que Platatildeo julga

importantes para mostrar a natureza do conhecimento e do conhecer ao modo filosoacutefico

Ela situa e qualifica os objetos postos em questatildeo mostrando a relaccedilatildeo entre os

domiacutenios e o trabalho do pensamento nesta ligaccedilatildeo Note-se que a atividade intelectual

capaz de apreender as ideias e a ideia do bem satildeo as que Platatildeo parece ter em vista para

diferenciar o pensamento caracteriacutestico daquele que filosofa Desse modo a analogia da

linha para a defesa do governo do filoacutesofo se mostra estrateacutegica ao apresentar as

operaccedilotildees envolvidas na apreensatildeo dos objetos inteligiacuteveis e portanto no conhecimento

ao modo filosoacutefico de modo a elucidar o processo intelectual e o meacutetodo especiacutefico que

culmina nesta apreensatildeo Igualmente importantes embora natildeo enfatizado na analogia

satildeo as compreensotildees acerca da percepccedilatildeo e do juiacutezo dado que consiste no modo de

pensar da maioria que deve ser governada pelo filoacutesofo

Antes de analisarmos os domiacutenios e o trabalho de cogniccedilatildeo envolvido em cada

um deve-se ainda observar a proposta de distinccedilatildeo entre eles por via da noccedilatildeo de

desigualdade e pela noccedilatildeo de proporccedilatildeo entre as seccedilotildees Soacutecrates pede que Glaacuteucon

imagine uma linha com partes desiguais (ἄληζα) e segundo a mesma proporccedilatildeo (ἀλὰ ηὸλ

54

αὐηὸλ ιόγνλ) a qual deve descrever ao que parece a relaccedilatildeo entre os domiacutenios a

relaccedilatildeo entre as classes de objetos e por consequecircncia uma diferenciaccedilatildeo de grau

cognitivo (Rep 509d8-510a) O texto natildeo parece chamar atenccedilatildeo para tais noccedilotildees na

representaccedilatildeo sensiacutevel do desenho de uma linha propriamente mas ao contraacuterio propotildee

a partir dessas duas concepccedilotildees os termos para uma comparaccedilatildeo entre objetos de tipos

distintos23

Igualdade a noccedilatildeo que estaacute sendo sugerida pela analogia24

e proporccedilatildeo

parecem constituir a base da estrutura das classificaccedilotildees que Soacutecrates propotildee

analogamente dita uma linha dividida por oferecer os criteacuterios para a disposiccedilatildeo entre

os objetos e a verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre eles Ao mesmo tempo em que se tem desse

modo um criteacuterio para situar os elementos se sensiacuteveis ou se inteligiacuteveis tem-se em

que medida se relacionam sendo assim niacutetidos e obscuros um em relaccedilatildeo ao outro25

23 Rep 509d10 ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια Natildeo se pretende realizar uma longa discussatildeo sobre

o diagrama da linha divida As questotildees acerca do desenho da linha e as interpretaccedilotildees que podem surgir

a partir dele satildeo para esta anaacutelise relevantes nos termos que se propotildee aqui ou seja o sentido das

distinccedilotildees que ela sugere Por consistir em uma representaccedilatildeo sensiacutevel a escolha da parte do desenho que

receberia um tamanho maior a partir desta desigualdade parece deste modo mostrar que algo como um

diagrama deve ser apenas um ponto de partida para buscar o sentido do que estaacute sendo representado a

noccedilatildeo de desigualdade como vemos agora Denyer pontua de modo bastante objetivo este antigo debate

ao comentar ldquoPor que temos de fazer uma escolha tatildeo arbitraacuteria Quando desenhamos um diagrama em

obediecircncia agraves discussotildees de Soacutecrates estamos produzindo uma representaccedilatildeo Tal representaccedilatildeo conteacutem

inevitavelmente caracteriacutesticas irrelevantes caracteriacutesticas que em nada correspondem agrave realidade

representada caracteriacutesticas que natildeo podem ser explicadas pela referecircncia pelo propoacutesito da

representaccedilatildeo A proacutepria resposta para tais caracteriacutesticas eacute claramente ignoraacute-las abstrair a partir da

desordem e pensar aleacutem da representaccedilatildeo em vista da realidade que ela representardquo Denyer N Sun and

Line in Plato‟s Republic 2007 Cambridge p 293 Cabe natildeo perder de vista as distinccedilotildees feitas na

analogia do sol que continuam presentes na linha A principal delas eacute a distinccedilatildeo entre juiacutezo e

conhecimento e entre objeto e pensamento Ao que parece a novidade da linha nos termos de uma

analogia estaacute em mostrar as relaccedilotildees entre a ideia do bem e ideias e do mesmo modo entre ideias e o

pensamento em dois planos de anaacutelise ontoloacutegico e cognitivo deixando evidentes as distinccedilotildees entre as

operaccedilotildees do pensamento O proacuteprio texto apresenta ao fim do Livro VII um parecer sobre o uso da

analogia A passagem 534a6-8 mostra que esta natildeo consiste em uma discussatildeo que deve estar em

primeiro plano sendo mais importante as relaccedilotildees que se estabelecem entre os elementos citadosrdquo ()

Quanto agrave correspondecircncia de que dependem essas coisas e quanto agrave divisatildeo de cada uma das duas

categorias a do opinaacutevel e a do inteligiacutevel deixemos isso de lado Glaacuteucon para que natildeo caiamos em

discussotildees mais complexas que as anterioresrdquo

24 Deve-se notar a discussatildeo acerca do estabelecimento do termo se ἄληζα estabelecido por Plutarco ou

α λ‟ η ζα estabelecido por Stallbaum As traduccedilotildees no geral seguem a opccedilatildeo de Plutarco sendo quase

consenso que o uso tanto de um quanto do outro propotildeem a noccedilatildeo de igualdade como nota Chambry op

cit p 140 Como Chambry Adam op cit p 63 nota 27 concorda que a interpretaccedilatildeo comum ao aceitar

ἄληζα eacute que a desigualdade se refere agrave diferenccedila de clareza e de verdade dos gecircneros sensiacutevel e

inteligiacutevel e entre opinaacutevel e cognosciacutevel De qualquer modo interessa averiguar o sentido desta particcedilatildeo

que apresenta partes iguais ou desiguais segundo os gecircneros que estatildeo sendo formulados

25 Pierre Aubenque compreende a funccedilatildeo do ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ na linha muito proacutexima ao que se

pretende defender nesta anaacutelise Para ele o propoacutesito da analogia da linha divida eacute pensar uma igualdade

de relaccedilotildees entre termos desiguais O interesse da operaccedilatildeo eacute desse modo construir uma proporccedilatildeo uma

analogia cuja estrutura eacute dada no seu modo de construccedilatildeo Uma analogia que trouxesse termos iguais (do

tipo 1=1) perderia a funccedilatildeo pois o objetivo maior eacute estabelecer uma mediaccedilatildeo entre termos extremos

Aubenque P ldquoDe L‟ Egaliteacutes des Segments Intermeacutediaires dans La Ligne de La Reacutepubliquerdquo in Sophie

Maietores ndash Chercheurs de Sagesse Institut d‟Etudes Augustiniennes Paris 1992 p 39 40

55

Desse modo na primeira parte a seccedilatildeo mais inferior da linha se refere agraves

sombras e aos reflexos de objetos originais que por serem da ordem do sensiacutevel natildeo satildeo

senatildeo imagens Estas recebem um estatuto mais baixo por constituiacuterem a imagem de um

objeto tambeacutem sensiacutevel representado na segunda subseccedilatildeo da linha Nesta primeira

seccedilatildeo apresenta-se a relaccedilatildeo objeto ndash reflexo ou ainda modelo e suas derivaccedilotildees

Assim exposto o domiacutenio das coisas visiacuteveis ou da sensibilidade compreende as

imagens como reflexo dos objetos originais e os objetos do mundo fiacutesico ndash ldquoos seres

vivos que nos rodeiam todas as plantas e todos os gecircneros de artefatosrdquo (ηά ηε πεξὶ

ἡκᾶο δῷο θαὶ πᾶλ ηὸ θπηεπηὸλ θαὶ ηὸ ζθεπαζηὸλ ὅινλ γέλνο Rep 510a14) os quais satildeo

considerados os modelos A linha classifica e qualifica as seccedilotildees e as subseccedilotildees e a

ligaccedilatildeo que entre eles eacute estabelecida de acordo com a noccedilatildeo de semelhanccedila (ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) que observe-se evoca a noccedilatildeo de igualdade Do mesmo

modo a verdade serve para a divisatildeo e distinccedilatildeo das partes assim como a noccedilatildeo de

cogniccedilatildeo Objetos originais e imagens assim como os seres matemaacuteticos e a ideia

suprema satildeo relacionados segundo tais noccedilotildees e teratildeo o seu caraacuteter exposto de acordo

com elas Entretanto todas estas noccedilotildees tem base em uma mesma ideia a ideia do bem

que deveraacute norteaacute-las e que seraacute o paracircmetro para qualificar cada um dos objetos

Deve-se no entanto averiguar o que o texto sugere ao descrever as etapas que

antecedem o ponto alto da linha que culmina na aquisiccedilatildeo das formas Elas informam

os outros niacuteveis de cogniccedilatildeo que se distinguem do conhecimento filosoacutefico os quais por

sua vez representam o grau de cogniccedilatildeo dos outros integrantes da cidade Do mesmo

modo que parece importante mostrar a divisatildeo e as peculiaridades de cada classe da

poacutelis para sugerir o funcionamento conjunto e harmocircnico da cidade interessa mostrar

analogamente este conjunto de capacidades da alma por meio das quais se supotildee

apresentar as atividades intelectuais mais importantes no que se refere ao conhecimento

Ao formular o lugar e o gecircnero da opiniatildeo e do conhecimento o texto propotildee uma

concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo fundada neste trabalho da alma dito racional e portanto na

cogniccedilatildeo das coisas verdadeiras Ao mesmo tempo propotildee o domiacutenio do pensamento

revelando ser semelhanccedila e verdade as qualidades que devem orientar o estudo da ideia

do bem

56

24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel

Para analisar a questatildeo do pensamento segundo a analogia da Linha Dividida

antes eacute preciso averiguar como as suas seccedilotildees descrevem de algum modo diferentes

maneiras do pensamento atuar isto eacute em que medida se pode ver a percepccedilatildeo e a

atividade intelectual nas distintas potencialidades e meacutetodos Ao especificar os

domiacutenios a fim de elucidar as caracteriacutesticas do verdadeiro conhecimento entra em

cena o modo de apreensatildeo e incontornavelmente os aspectos do pensamento

ldquondash Pois bem Toma uma linha dividida em duas seccedilotildees desiguais

(ἄληζα) e de novo corta cada seccedilatildeo segundo a mesma proporccedilatildeo

(ηέκλε ἑθάηεξνλ ηὸ ηκκα ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ) a do gecircnero visiacutevel e

a do inteligiacutevel De acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de

nitidez (ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ) que tenham entre si no mundo visiacutevel

teraacutes uma das seccedilotildees as imagens (εἰθόλεο) Chamo as imagens em

primeiro lugar as sombras depois as apariccedilotildees refletidas nas aacuteguas

e nas superfiacutecies opacas lisas e brilhantes e tudo o mais que seja

assim Entendes (θαηαλνεῖο)

- Mas sim estou entendendo (θαηαλνῶ)

- Pois bem Supotildee como outra seccedilatildeo a que se assemelha a essa os

seres vivos que nos rodeiam todas as plantas e todo o gecircnero de

artefatos

- Suponho disse

- Seraacute que aceitarias afirmar disse eu que o gecircnero visiacutevel estaacute

dividido em verdade e natildeo verdade e que como o opinaacutevel estaacute para o

cognosciacutevel assim tambeacutem a imagem estaacute para o modelo (δηῃξζζαη

ἀιεζείᾳ ηε θαὶ κή ὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) (Rep 509d8-510a)

Vale analisar a partir dos criteacuterios estabelecidos a distinccedilatildeo entre os objetos Na

primeira seccedilatildeo reflexos (θαληάζκαηα) e sombras (ηὰο ζθηάο) satildeo na sua condiccedilatildeo de

imagens (ηὰο εἰθόλαο) semelhantes ao modelo ou seja satildeo derivados de um objeto

naquilo que diz respeito agrave sua aparecircncia (ἔνηθελ Rep 510b3) Esses ganham a forma do

objeto ao refleti-lo tornando-os aparentes dando a ele portanto uma forma visiacutevel em

superfiacutecies igualmente visiacuteveis - aparecem na aacutegua e nas superfiacutecies lisas e brilhantes

como diz o texto (Rep 509e-510a2) Ao darem a este objeto uma aparecircncia as imagens

se constituem enquanto tal e tecircm no objeto fiacutesico aparentado o seu modelo A imagem

obteacutem do seu modelo a aparecircncia e estabelece com ele desse modo a relaccedilatildeo de

semelhanccedila - natildeo semelhanccedila As aparecircncias que trazem as imagens eacute conforme o

texto a imitaccedilatildeo do modelo do qual derivam (Rep 510b3)

57

A explicaccedilatildeo sobre o inteligiacutevel apresenta por comparaccedilatildeo este como mais um

dado importante sobre o sensiacutevel a aparecircncia como imitaccedilatildeo (κ κεζηο)26

do objeto

original Sua importacircncia se daacute na medida em que reafirma o caraacuteter derivado do reflexo

e acrescenta a ele a explicaccedilatildeo sobre o que se pode fazer com uma imagem como

mostra o exemplo do procedimento matemaacutetico Dito de outro modo ao compreender a

aparecircncia como a imitaccedilatildeo de um modelo ressalta-se a sua carecircncia de conteuacutedo

cognitivo uma vez que natildeo exprime de modo suficiente o original ao qual se

assemelha27

Em contraste com o inteligiacutevel tal caracteriacutestica o exclui do processo do

conhecimento No domiacutenio sensiacutevel proacuteprio da opiniatildeo a alma apreende como imagem

isto que eacute imitaccedilatildeo dos objetos originais constituindo assim a εηθαζία a conjectura

atividade que parece ser tiacutepica no plano da δόμα Natildeo parece haver neste domiacutenio outro

tipo de atuaccedilatildeo como nos sugere o verbo ἀλαγθάδσ e por consequecircncia outro modo

de fazer especulaccedilatildeo no plano do sensiacutevel Ao ter dividido em gecircnero e lugar as

atividades que a alma realiza aparecem submetidas agraves condiccedilotildees do domiacutenio em que se

descreve sendo a conjectura portanto a atividade possiacutevel no domiacutenio sensiacutevel Ao se

fiar nas imagens para construir hipoacuteteses atribui-se agrave elas uma confianccedila da qual natildeo

satildeo dignas visto serem apenas uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo destituiacuteda de qualquer

conteuacutedo o que seraacute discutido no final do argumento da linha (Rep 511d7-e) Desse

26 Toda a recusa da poesia na educaccedilatildeo do guardiatildeo se explica por meio de um conceito caro a Platatildeo n‟A

Repuacuteblica o conceito de miacutemesis imitaccedilatildeo No Livro III ele se refere agrave relaccedilatildeo entre alguma coisa ou

uma pessoa com a sua representaccedilatildeo na poesia e na pintura Dado que a cidade platocircnica se funda na

suposiccedilatildeo de que cada cidadatildeo executa apenas uma tarefa uacutenica para a qual eacute naturalmente haacutebil

escrever e desempenhar o papel de uma personagem torna-se perversotildees do seu papel social pois atribui agrave

pessoa mais que uma uacutenica natureza (Rep 397d-398a) O mimetismo conduz os jovens aos maus haacutebitos

agrave linguagem grosseira respostas inapropriadas e agraves crises (Rep 395c-d) Quando muito os jovens

deveratildeo dramatizar a vida e os feitos de modelos de virtudes (Rep 396b-e) mas Platatildeo termina a criacutetica

no Liv X 595a-602c Haacute por traacutes dessa criacutetica uma tese que teraacute suas bases ontoloacutegicas explicadas no

livro VI e X que em linhas gerais consiste na tese de que se imita aquilo que se contempla No liv X a

imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo que se faz na poesia eacute uma imitaccedilatildeo da aparecircncia A poesia imita as accedilotildees

humanas (393b-c 395c-396d 605ac) mas na cidade ideal haacute de se imitar os melhores homens (396c-

397b 604e 607a)

27 Natildeo se pretende fazer uma longa anaacutelise sobre a imitaccedilatildeo de modo a recuperar dos outros livros o que

eacute dito sobre este conceito Interessa verificar a partir do seu caraacuteter sensiacutevel como tal caracteriacutestica eacute

oposta ao inteligiacutevel e o uso que a alma pode fazer dela na ascese Cabe entretanto conferir como Schuhl

compreende a noccedilatildeo de imitaccedilatildeo que Platatildeo considera em relaccedilatildeo agrave arte que diga-se de passagem parece

bastante afim nesse contexto Ele entende haver dois sentidos para a imitaccedilatildeo 1ordm a imitaccedilatildeo como coacutepia

(εηθαζηηθήλ) que na arte eacute dada como uma reproduccedilatildeo a qual se conforma agraves proporccedilotildees do modelo 2ordm

uma imitaccedilatildeo que constitui a arte da aparecircncia (θαληαζηηθήλ) Em ambas os recursos disponibilizados

como as proporccedilotildees que envolvem noccedilotildees matemaacuteticas satildeo utilizados para se adequarem ao sentido da

visatildeo e produzirem uma imagem que proporcione prazer esteacutetico Note-se que Platatildeo ataca uma

concepccedilatildeo de arte e de imitaccedilatildeo que atribui agraves sensaccedilotildees os criteacuterios para o juiacutezo a qual abandona a

verdade e o arrazoamento privilegiando assim as aparecircncias - ldquoA parte da Oacutetica chamada de cenografia

investiga como conveacutem desenhar as imagens dos edifiacutecios Como as coisas natildeo parecem tais quais elas

satildeo examina-se natildeo como representar as proporccedilotildees reais mas como as tornar tais quais elas

pareceratildeordquo Schuhl op cit p 30 58

58

modo o procedimento ao modo da opiniatildeo natildeo conduz ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico

dado que estagna nas imagens

Este eacute um ponto importante para o que concerne agrave cogniccedilatildeo Junto com a noccedilatildeo

de aparecircncia que surge da relaccedilatildeo modelo e suas derivaccedilotildees estatildeo as qualidades que vatildeo

classificar os elementos das seccedilotildees no que se refere agrave cogniccedilatildeo como as imagens e os

objetos fiacutesicos das primeiras partes Atributos como clareza verdade e cognoscibilidade

satildeo introduzidos a partir desta uacuteltima distinccedilatildeo de modo a qualificar os objetos A

intenccedilatildeo em usar a analogia da linha com vistas para o que seria o mais alto

conhecimento eacute sugerida na sequecircncia onde aparece de modo mais evidente nas partes

inteligiacuteveis a descriccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da alma Pode-se compreender da

analogia as atividades intelectuais que dizem respeito agrave cogniccedilatildeo ou seja agraves operaccedilotildees

que estabelecem a relaccedilatildeo com as ideias e podem assim apreendecirc-las Nas partes

inferiores da linha tem-se ao mesmo tempo as operaccedilotildees que antecipam a ascensatildeo ao

niacutevel inteligiacutevel e que por natildeo oferecerem o conhecimento em nenhum grau mas por

constituiacuterem de alguma forma uma operaccedilatildeo da mente podem ser consideradas preacute-

cognitivas A linha dividida nesse sentido mostra aquilo que se pode apreender do

sensiacutevel com a percepccedilatildeo e do inteligiacutevel com a cogniccedilatildeo em seus diferentes graus e

maneiras de proceder

Para isso deve-se comeccedilar por analisar ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ as

diferenccedilas e a relaccedilatildeo da linha nessa perspectiva entre o domiacutenio do opinaacutevel e do

cognosciacutevel Na seccedilatildeo que se refere ao sensiacutevel satildeo dados os elementos a partir dos

quais se fundam o juiacutezo a opiniatildeo Eacute importante fazer tais especificaccedilotildees acerca da

imagem para que se possa delimitar o plano no qual o juiacutezo estaacute envolvido e para em

seguida marcar definitivas distinccedilotildees do conhecimento e do seu meacutetodo especiacutefico em

relaccedilatildeo agrave opiniatildeo Cabe observar que a divisatildeo pressupotildee uma relaccedilatildeo entre as partes e

portanto entre os elementos que as compotildeem na qual os planos inferiores se mostram

reflexos do plano superior de acordo com o que propotildee a relaccedilatildeo modelo-imagem28

Tal observaccedilatildeo parece importante por oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da funccedilatildeo

da imagem na linha Ao se questionar acerca da inferioridade da aparecircncia da relaccedilatildeo

original-reflexo que o modelo-imagem propotildee a resposta mais imediata provavelmente

28 Note-se que a preposiccedilatildeo ldquoπξὸοrdquo parece indicar que haacute entre as partes a mesma relaccedilatildeo de

espelhamento que haacute entre modelo e a imagem Do mesmo modo os adveacuterbios ὡο e νὕησ sugerem que se

trata de uma comparaccedilatildeo na qual uma seccedilatildeo um domiacutenio tem seu aspecto analisado em relaccedilatildeo a outro -

laquoζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιειαrdquo (Rep 509d10) laquoὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζεrdquo (Rep 510a10-11)

59

seria a que sua inferioridade se deve ao fato de ser ela a coacutepia de um original Esse pode

ser um argumento vaacutelido se se tem em vista a superioridade ontoloacutegica do objeto

referido Dito de outro modo o objeto do qual se originam as imagens eacute autecircntico

como os animais e os artefatos do mundo fiacutesico na segunda parte da linha enquanto as

sombras e os reflexos derivados dele isto eacute as imagens natildeo satildeo pelas seguintes razotildees

1ordm natildeo satildeo o proacuteprio objeto 2ordm natildeo dizem o objeto original fidedignamente 3ordm como

satildeo imagens variam ao se referir ao objeto original como se veraacute na alegoria da

caverna 4ordm como satildeo derivadas do objeto dependem dele para existir29

Tais

caracteriacutesticas acabam por definir a aparecircncia e expor suas deficiecircncias sendo a

imagem desse modo um elemento que representa toda a debilidade dos objetos da

esfera sensiacutevel para os fins gnosioloacutegicos que Platatildeo pretende formular

Tal compreensatildeo eacute possiacutevel vale reparar somente se se tem em vista a clareza

como abalizadora da relaccedilatildeo entre o domiacutenio da opiniatildeo e o domiacutenio do conhecimento

(Rep 510a9) Deve-se perguntar a razatildeo de Platatildeo propor uma distinccedilatildeo entre domiacutenios

e objetos e estas relaccedilotildees de superioridade - inferioridade que a linha sugere a partir

desta relaccedilatildeo modelo-coacutepia Tais diferenciaccedilotildees sugerem que a analogia da linha

dividida pretende antes traccedilar e definir planos graus e objetos especiacuteficos em vista da

ἀιήζεηα A divisatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel acompanhada das subdivisotildees recebe

especificaccedilotildees no que diz respeito agraves variaccedilotildees dos objetos e potencialidades de

cogniccedilatildeo agora avaliados segundo o criteacuterio de clareza que exprime a realidade do

objeto em questatildeo A escolha da clareza como criteacuterio provavelmente se deve a

autenticidade que ela confere ao objeto dado que se trata de uma qualidade acessiacutevel

pela cogniccedilatildeo mas tambeacutem por constituir as noccedilotildees importantes para a construccedilatildeo de

valores importantes para a cidade do filoacutesofo Dado que a verdade constitui junto com o

ser e a essecircncia a benignidade do bem uma vez que satildeo atribuiacutedos por ele (Rep 508e-

509a6) este constitui um criteacuterio bastante razoaacutevel para mensurar a proacutepria cogniccedilatildeo e o

que eacute tido como um valor Natildeo parece viaacutevel pensar uma cidade justa e boa sem antes

especificar a noccedilatildeo de justiccedila e de bem e ao mesmo tempo sem discerni-las em seu

modo proacuteprio real Dito de outro modo o que eacute bom apresenta ser essecircncia e verdade

qualidades reconheciacuteveis apenas pelo intelecto

29 Stocks enumera do mesmo modo as diferenccedilas da imagem em relaccedilatildeo ao seu objeto Para ele esta eacute

uma indicaccedilatildeo clara da condiccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos objetos inteligiacuteveis sendo a

analogia da linha um bom exemplo da relaccedilatildeo unilateral de dependecircncia e a equaccedilatildeo da linha uma

explicaccedilatildeo desta relaccedilatildeo entre os dois domiacutenios ndash Stocks J L ldquoThe Divided Line of Rep VIrdquo in The

Classical Quartely vol 5 no 2 1911 p 75

60

Vale considerar as nuanccedilas de sentido de verdade Note-se que o contexto que

coloca verdade - natildeo verdade apresenta as condiccedilotildees em que ela aparece no domiacutenio

visiacutevel Cabe reparar que a abordagem da verdade no registro da sensibilidade tal como

aparece agora eacute posta relativamente ou seja como termo de avaliaccedilatildeo na relaccedilatildeo

modelo-reflexo diferentemente do contexto do estudo da ideia do bem no qual era

apresentada como atributo inteligiacutevel Todavia ela serve para mensurar algo que seraacute

dito verdadeiro ou natildeo a partir da correspondecircncia com um modelo Como se viu em

506c mesmo que constitua um criteacuterio de avaliaccedilatildeo ela eacute dada nos termos da

eventualidade sendo o mesmo nessas circunstacircncias que ldquocorresponde - natildeo

corresponderdquo Natildeo parece haver no domiacutenio sensiacutevel outra maneira de conceber a

verdade dado que natildeo se tem em vista seu fundamento inteligiacutevel A relaccedilatildeo que estaacute

em jogo diz respeito a uma identificaccedilatildeo do objeto com o modelo natildeo se tratando

portanto da realidade do objeto ou do modelo

Desse modo a verdade natildeo acompanha neste plano uma concepccedilatildeo da cogniccedilatildeo

mas o nome que se daacute agrave percepccedilatildeo entre dois elementos que se mostram equivalentes

no caso imagem - modelo sombra - objeto original em uma relaccedilatildeo de

correspondecircncia Parece importante definir o plano em que se enuncia a verdade para

justamente estabelecer a plausibilidade de uma relaccedilatildeo No campo do sensiacutevel natildeo haacute a

garantia de um termo que fundamente as relaccedilotildees como a de semelhanccedila por exemplo

da mesma forma que se encontra no inteligiacutevel estando a verdade desse modo apenas

no plano do ὄλνκα (Rep 505c4) 30

Desse modo uma das noccedilotildees que a linha propotildee diz respeito a esta realidade do

objeto a qual serve de referecircncia e deve ser considerada o verdadeiro objeto a ser

conhecido Um dos esforccedilos de Platatildeo nesta analogia parece consistir em apresentar

uma noccedilatildeo de realidade e a sua relaccedilatildeo com a verdade Realidade e verdade se mostram

em um plano diferente do comum diferente das opiniotildees vulgares Faz parte da tarefa

do filoacutesofo discernir a verdade das vaacuterias aparecircncias de verdade e verificar a natureza

dos objetos e o modo adequado de lidar com eles Esse discernimento comeccedila com a

compreensatildeo da deficiecircncia do domiacutenio da sensibilidade e do juiacutezo em relaccedilatildeo a um

plano mais autecircntico e por isso superior o plano da realidade no domiacutenio inteligiacutevel

Por enquanto nas duas primeiras partes da linha o texto oferece os dados e os tipos de

relaccedilotildees com as quais o leitor deve analisar as proacuteximas etapas

30 Parece vaacutelida tal interpretaccedilatildeo dado que em 505c esta perspectiva eacute posta como adversaacuteria da visatildeo

filosoacutefica que vai buscar a inteligecircncia do bem (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ θάλαη Rep 505b9)

61

Cabe notar que o questionamento acerca do objeto que deve servir de modelo eacute

sugerido tambeacutem pela relaccedilatildeo clareza - natildeo clareza falta de clareza Ao dividir os

objetos segundo o criteacuterio de clareza que apresentam acerca da realidade este parece ser

um dado que potildee diretamente em questatildeo a capacidade de apreensatildeo de alguma verdade

a partir de determinados objetos ao mesmo tempo em que se suspeita da possibilidade

desses oferecerem a realidade acerca de algo31

O domiacutenio sensiacutevel natildeo oferece verdade

acerca dos objetos os quais satildeo derivados de objetos fiacutesicos e portanto sensiacuteveis

sendo considerados assim deficientes A linha nesse sentido mostra com suas seccedilotildees

diferentes graus de apreensatildeo o que estaacute de algum modo relacionado com capacidade

de um objeto mostrar o seu modelo ou dito metaforicamente com a clareza dos

objetos32

A perspectiva que a analogia da linha propotildee a saber a condiccedilatildeo ontoloacutegica

dos objetos e o que eacute possiacutevel apreender deles e atraveacutes deles em termos gnosioloacutegicos

exige verificar a cogniccedilatildeo em seus niacuteveis de apreensatildeo Ao utilizar a noccedilatildeo de clareza

como criteacuterio tem-se sugerido uma realidade dada como modelo a qual natildeo aparece

com carga ontoloacutegica nas primeiras duas seccedilotildees da linha Tal proposiccedilatildeo surge

analogamente da relaccedilatildeo onde os objetos fiacutesicos originais satildeo os objetos reais e nesse

contexto portanto verdadeiros As imagens por outro lado como derivaccedilotildees como

reflexos apenas natildeo satildeo verdadeiras no sentido prosaico do termo Pretende-se mostrar

agora que a sombra de um boneco natildeo eacute o proacuteprio boneco ou seja que o reflexo natildeo eacute

igual ao modelo O que estaacute em questatildeo eacute a diferenccedila entre a coisa e a aparecircncia desta

coisa aparecircncia que ao imitar33

algo ao referi-lo natildeo deve ser confundida com ele

Deve-se ainda observar que o primeiro problema posto pela analogia se refere

justamente ao tipo de diferenciaccedilatildeo entre os objetos Dito de outro modo em que campo

operam as distinccedilotildees as quais se realizam por meio das noccedilotildees de igualdade

semelhanccedila e clareza Na perspectiva ontoloacutegica ou no esboccedilo de uma perspectiva

ontoloacutegica como parece ser o caso natildeo estaacute em questatildeo se um objeto tem mais ser que

outro em termos existecircncia A sombra natildeo existe menos que os bonecos que ela

31 O trecho ldquoDe acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de nitidez (σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφείᾳ) que

tenham entre si no mundo visiacutevel teraacutes uma das seccedilotildees as imagens -(θαί ζνη ἔζηαη ζαθελείᾳ θαὶ

ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια ἐλ κὲλ ηῷ ὁξσκέλῳ ηὸ κὲλ ἕηεξνλ ηκκα εἰθόλεο)rdquo (Rep 509d 10-509e1) parece

deixar evidente a comparaccedilatildeo que se faz na linha dividida os objetos uns em relaccedilatildeo aos outros conforme

se mostram claros ou obscuros ou seja segundo o que podem mostrar acerca do objeto de referecircncia A

clareza eacute vista aqui como a capacidade de manifestar algo a que se refere 32 Cf Stocks op cit p 80

33 Mais adiante em 510b4 o texto notaraacute a aparecircncia como uma imitaccedilatildeo do objeto original

62

reflete34

entretanto por natildeo ser ela mesma o objeto que ela reflete a sombra o oferece

apenas em algum grau Eacute neste sentido que a graduaccedilatildeo de clareza parece atuar posto

que a atenccedilatildeo da linha se volta especialmente como visto para os propoacutesitos acerca da

cogniccedilatildeo A clareza e a verdade satildeo dadas no niacutevel que manifestam o seu modelo e cada

domiacutenio apresenta um niacutevel caracteriacutestico de apreensatildeo35

Pode parecer impreciso falar de uma ldquograduaccedilatildeordquo ao analisar as duas primeiras

seccedilotildees da linha uma vez que as noccedilotildees que servem de criteacuterio satildeo dadas nos termos de

verdade ndash natildeo-verdade claro-obscuro ou seja X ou natildeo-X Tal graduaccedilatildeo vale

adiantar fica mais evidente a seguir com a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e

as especificaccedilotildees acerca do princiacutepio natildeo hipoteacutetico (Rep 510b6) No domiacutenio da

opiniatildeo as caracteriacutesticas atribuiacutedas agraves aparecircncias que as imagens supotildeem se

apresentam como um preacircmbulo para as duas seccedilotildees seguintes que concernem ao

inteligiacutevel e trazem assim as debilidades do sensiacutevel em comparaccedilatildeo com a realidade

da qual ele carece Eacute preciso contrastar as formas inteligiacuteveis os verdadeiros seres com

as suas ocorrecircncias ou seja com as aparecircncias as quais constituem o domiacutenio sensiacutevel

dito natildeo verdadeiro Este ldquonatildeo verdadeirordquo que consiste no natildeo-real no sentido de natildeo

ser idecircntico ao modelo mostra primeiro as mudanccedilas e a multiplicidade caracteriacutesticas

do sensiacutevel para depois expor a estabilidade e a autenticidade do real Enquanto

existentes as imagens possuem alguma realidade no entanto natildeo no mesmo grau que o

seu modelo No mundo sensiacutevel animais e plantas satildeo reais todavia muito mais que a

sombra que as refletem A diferenciaccedilatildeo eacute dada na comparaccedilatildeo de uma seccedilatildeo com a

outra e desse modo natildeo-verdade e sem clareza compreendem a inferioridade das

imagens36

34 Chen explica que a relaccedilatildeo entre os componentes dos niacuteveis mais baixos eacute dada nos termos de

realidade o que equivale a diferentes graus de verdade (aleacutetheia) em relaccedilatildeo ao ser Natildeo haacute ainda nos

niacuteveis mais baixos a verdade no sentido epistemoloacutegico As subdivisotildees da linha mostram a assimetria

das proporccedilotildees de participaccedilatildeo dos objetos os quais satildeo ditos mais ou menos verdadeiros equivalente a

dizer ter mais ou menos clareza Chen op cit p 105-106

35 Vlastos compreende que se pode reconhecer uma variedade de predicados intermediaacuterios entre real e

natildeo-real e portanto uma divisatildeo entre ser e natildeo-ser verdadeiro e falso natildeo eacute a interpretaccedilatildeo adequada do

ldquomais realrdquo ldquomenos-realrdquo Deve-se considerar que no sentido de ldquomais realrdquo cognato a mais verdadeiro e

metaforicamente dito mais claro estatildeo compreendidas as seguintes noccedilotildees 1ordm) melhor revelaccedilatildeo do que

eacute a coisa 2ordm) o sentido de modelo eacute ldquox-mesmordquo isto eacute a Forma Vlastos G ldquoDegrees of Realityrdquo in

Platonic Studies Princeton University Press 1981 p 62

36 Vlastos entende que as caracteriacutesticas do sensiacutevel satildeo como F (Forma) e natildeo-F F no sentido que

possui o ser em um grau que garante ao menos a sua existecircncia e natildeo-F no sentido que ldquosua natureza F foi

adulterada por caracteriacutesticas contraacuterias o que entatildeo poderia nos dar apenas uma ideia confusa e incerta

do que eacute F Algo que poderia ser sujeito de constantes flutuaccedilotildees como encontramos ocorrecircncias de F que

acabaram por serem diferentes em um ou mais aspectos a partir dos quais baseamos nossa concepccedilatildeo

preacutevia de Frdquo Vlastos idem p 63

63

Vale natildeo perder de vista a intenccedilatildeo maior do argumento o conhecimento da

ideia do Bem O objetivo eacute desfazer o mal-entendido de atribuir alguma legitimidade ao

que aparenta ser certo e verdadeiro anaacutelogo agraves sombras e aos reflexos pelo modo

vulgar de apreendecirc-los e de dar algum assentimento acerca deles Nesse sentido a

delimitaccedilatildeo do objeto especiacutefico do conhecimento mostra tal como se vecirc na descriccedilatildeo

do plano sensiacutevel que diante de objetos que satildeo apenas reflexos aparecircncias de

realidades a atividade da alma natildeo consiste mais do que em um juiacutezo ou em uma

convicccedilatildeo Dito de outro modo natildeo eacute a experiecircncia empiacuterica que daraacute a verdade acerca

de algo nem se enunciaraacute alguma verdade conjecturando o que se experiencia de modo

a emitir um juiacutezo como resultado pois no plano do sensiacutevel os objetos natildeo podem

revelar a realidade em toda a sua superioridade

III Atividade Inteligente

Estabelecidos os termos proacuteprios da atividade filosoacutefica tais como seus objetos

domiacutenio de atuaccedilatildeo e objetivos o que vem a seguir versaraacute sobre o conhecimento de

modo a elucidar a operacionalidade que constitui uma aquisiccedilatildeo da ideia Ter-se-aacute

dessa maneira uma explanaccedilatildeo do procedimento inteligente segundo um meacutetodo A

apreensatildeo do inteligiacutevel anteriormente referida como ldquoter inteligecircnciardquo ldquofixar-serdquo no

inteligiacutevel mostra-se agora na sua realizaccedilatildeo permitindo compreender pela via do

meacutetodo o alcance cognitivo e a distinccedilatildeo intelectual e moral do filoacutesofo Nessa

perspectiva vale adiantar tem-se novamente o pensamento nos termos da interaccedilatildeo

entre faculdade e objeto tal como no exemplo do sol mas desta vez com o acreacutescimo

das minuacutecias da realizaccedilatildeo desta ligaccedilatildeo A inteligecircncia aparece nesse contexto como

um efeito desta relaccedilatildeo e como realizaccedilatildeo da natureza inteligente do filoacutesofo que se daacute

na investigaccedilatildeo sobre o bem

Uma vez tratadas as caracteriacutesticas deacutebeis dos objetos no plano sensiacutevel a

exemplo da imagem e as consequecircncias cognitivas de seu uso o foco da explanaccedilatildeo se

64

volta sobretudo para a positividade da realidade a partir da qual se pode realizar a

verdadeira cogniccedilatildeo Os objetos e seus estatutos satildeo explicados a partir de agora em

comparaccedilatildeo com as ideias e em relaccedilatildeo agraves formas adequadas de intelecccedilatildeo para o

conhecimento

ldquo- De outro lado examina tambeacutem como deve ser divida a seccedilatildeo

correspondente ao inteligiacutevel

- Como

- A alma na primeira seccedilatildeo era forccedilada a pesquisar a partir de

hipoacuteteses usando objetos laacute imitados como imagens caminhando na

direccedilatildeo natildeo do princiacutepio mas do fim na outra poreacutem vai da

hipoacutetese ao princiacutepio que natildeo admite hipoacuteteses sem servir-se de

imagens como no outro caso e encaminha sua pesquisa soacute por meio

das proacuteprias ideias ndash(ηὸ δ αὖ ἕηεξνλ - ηὸ ἐπ‟ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ ndash ἐμ

ὑπνζέζεσο ἰνῦζα θαὶ ἄλεπ ηῶλ πεξὶ ἐθεῖλν εἰθόλσλ αὐηνῖο εἴδεζη δη‟

αὐηῶλ ηὴλ κέζνδνλ πνηνπκέλε)rdquo (Rep510b)

No plano inteligiacutevel que concerne ao cognosciacutevel a alma natildeo parte das imagens

para formular as hipoacuteteses mas das proacuteprias hipoacuteteses para chegar ao que constitui o

conhecimento o princiacutepio e o princiacutepio maior (ἀλππόζεηνο) A subida a este princiacutepio

que dispensa as imagens e utiliza um novo elemento as hipoacuteteses seraacute o novo

empreendimento do filoacutesofo no domiacutenio inteligiacutevel segundo o argumento da linha Os

objetos inteligiacuteveis natildeo podem ser atingidos senatildeo de acordo com o meacutetodo especiacutefico

para o conhecimento das ideias e do princiacutepio uacuteltimo que se mostra na atividade do

pensamento em relaccedilatildeo agraves hipoacuteteses O bem e a ideia do bem ganham agora

determinaccedilotildees metodoloacutegicas uma vez definidos seu estatuto e sua posiccedilatildeo no interior

da organizaccedilatildeo do quadro epistemoloacutegico em que se desenrola a atividade cognitiva A

noccedilatildeo de princiacutepio de tudo e por isso natildeo-hipoteacutetico satildeo as designaccedilotildees dadas a eles e

seratildeo conceituadas nos termos do meacutetodo dialeacutetico A inapreensiacutevel grandeza do bem

sugerida pela essecircncia de sua ideia pode ser inferida pelo procedimento dialeacutetico por

meio do qual o pensamento pode apreender o grau de cognoscibilidade possiacutevel acerca

dele Cabe analisar as tratativas do pensamento nesta operaccedilatildeo com as ideias e

sobretudo com a ideia do bem de modo a verificar a relaccedilatildeo objeto - pensamento que aiacute

se mostra

65

31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα

Apoacutes a seccedilatildeo das imagens e dos objetos originais estatildeo na primeira seccedilatildeo do

domiacutenio inteligiacutevel os objetos matemaacuteticos Estes apresentam as propriedades

inteligiacuteveis e demandam por isso um trabalho intelectual que consiste no raciociacutenio

(δηάλνηα)

ldquo- Ora explico outra vez Com a introduccedilatildeo que vou fazer

entenderaacutes com mais facilidade Creio que tu sabes que aqueles que

se ocupam da geometria com caacutelculos e assuntos como esses potildeem

como hipoacuteteses o par e o iacutempar as figuras trecircs espeacutecies de acircngulos e

outras coisas afins de acordo com o objeto de sua pesquisa e de um

lado como se as conhecessem tomam-nas como hipoacuteteses e acham

que natildeo tecircm de prestar contas nem a eles mesmos nem aos outros

(νὐδέλα ιόγνλ νὔηε αὑηνῖο νὔηε ἄιινηο ἔηη ἀμηνῦζη πεξὶ αὐηῶλ

δηδόλαη) sobre isso que segundo eles eacute coisa evidente para qualquer

um e de outro lado comeccedilando a partir dessas hipoacuteteses jaacute ao expor

o restante de maneira consequente acabam por chegar agrave

demonstraccedilatildeo (ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο) daquilo que os levou a

essa pesquisa

- Isso eu sei muito bem disse ele

-Entatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis

que discutem sobre elas ainda que natildeo estejam pensando nelas mas

naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedila Discutem a propoacutesito do

proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a propoacutesito da

diagonal que desenham e o mesmo fazem a respeito de outras

figuras Das figuras que modeladas e desenhadas por eles produzem

sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem imagens

buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam ser vistos

senatildeo com o pensamentordquo (Rep 510c-511a1)

Haacute duas classes de objetos inteligiacuteveis que demandam dois tipos de operaccedilotildees

intelectivas diferentes para que possam ser conhecidos37

Embora as duas seccedilotildees se

baseiem nas hipoacuteteses a abordagem dos seres inteligiacuteveis e o modo de operar pelas

hipoacuteteses faz Platatildeo distinguir na linha a atividade segundo a matemaacutetica e a dialeacutetica

Entre os geocircmetras e os matemaacuteticos (νἱ πεξὶ ηὰο γεσκεηξίαο ηε θαὶ ινγηζκνὺο Rep

510c2) os objetos inteligiacuteveis satildeo os trecircs tipos de acircngulo (γσληῶλ ηξηηηὰ εἴδε Rep

37 Para Cornford ldquoa distinccedilatildeo de objetos eacute uma questatildeo de expediente ao ensinarrdquo- Cornford

Mathematics and Dialectic in The Republic VI ndash VII (I) in Mind New Series vol 4 no 161 Oxford

University Press 1932 p 38 Embora seja inegaacutevel o uso propedecircutico que Cornford aponta interessa

ressaltar as especificidades das ideias matemaacuteticas em relaccedilatildeo agraves ideias morais como a ideia do bem

Dado que a intenccedilatildeo do filoacutesofo no Livro VI consiste em verificar o que fundamenta a justiccedila e a bondade

da cidade ideal conveacutem natildeo perder de vista uma distinccedilatildeo de tipos de ideias o que seraacute melhor defendido

apoacutes a anaacutelise dos argumentos d‟A Repuacuteblica

66

510c5) a noccedilatildeo de par e de iacutempar e as figuras geomeacutetricas (ηὰ ζρήκαηα) que

representam os seres matemaacuteticos como o quadrado e o triacircngulo Os matemaacuteticos

tomam por hipoacuteteses tais objetos sem fazer maiores questionamentos e sem oferecer

maiores explicaccedilotildees sobre eles (Rep 510c6) Do mesmo modo consideram o proacuteprio

meacutetodo matemaacutetico tambeacutem adequado e suficiente para dar o que entendem ser o

conhecimento uma conclusatildeo acerca do que investigavam a qual se tem

consensualmente ndash ldquo() de maneira consequente acabam por chegar agrave demonstraccedilatildeo

daquilo que os levou a essa pesquisardquo (ἤδε δηεμηόληεο ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ

ηνῦην νὗ ἂλ ἐπὶ ζθέςηλ ὁξκήζσζη Rep 510d)38

Com esta criacutetica o foco da analogia da linha ilumina a questatildeo do meacutetodo de

cogniccedilatildeo e ao mesmo tempo as caracteriacutesticas de uma apreensatildeo do inteligiacutevel Natildeo

parece estar mais em questatildeo somente a relaccedilatildeo objeto original e seu reflexo como

exposto nas primeiras seccedilotildees da linha agora parece importante ter em vista tal relaccedilatildeo

no que concerne este tipo de objeto inteligiacutevel e seu modo de apreensatildeo Geometria

matemaacutetica e toda a disciplina desta natureza parecem natildeo corresponder inteiramente ao

processo de cogniccedilatildeo por utilizarem cada uma um meacutetodo sugestivamente inadequado

(Rep 510c5) Nesta parte da linha o meacutetodo aborda a natureza do objeto e ao mesmo

tempo diz de algum modo a atividade intelectual que ele demanda ao mostrar os

pormenores do procedimento como se daraacute na sequecircncia

Vale analisar em detalhes a descriccedilatildeo do procedimento matemaacutetico para

compreender melhor o domiacutenio inteligiacutevel e o que diz a primeira seccedilatildeo sobre a

cogniccedilatildeo A explicaccedilatildeo acerca da construccedilatildeo das hipoacuteteses vem em seguida A

geometria e a matemaacutetica utilizam em seu argumento elementos do visiacutevel das formas

visiacuteveis que eles proacuteprios moldam desenham (πιάηηνπζίλ ηε θαὶ γξάθνπζηλ Rep

510e) Apesar disso a figura geomeacutetrica natildeo parece consistir entretanto a melhor

maneira de exprimir o resultado do que a alta intelecccedilatildeo pode conceber39

Dito de outro

38 Algumas traduccedilotildees como a ediccedilatildeo em portuguecircs que se utiliza para as citaccedilotildees do texto traduzem o

trecho ldquoηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ ηνῦηνrdquo por ldquodemonstraccedilatildeordquo Deve-se notar que algumas traduccedilotildees

preferem ser fieis aos termos do texto grego optando por ldquoagreementrdquo como a traduccedilatildeo de Emlyn-Jones e

Preddy op cit p 101 Ao menos por enquanto parece importante expor a criacutetica ao caraacuteter infundado ou

de base questionaacutevel como se veraacute adiante de uma conclusatildeo ao modo do procedimento matemaacutetico

uma vez que se daacute nos termos de um acordo Cabe adiantar que este seraacute um ponto a ser abordado e

reformulado na dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar o desenvolvimento desta criacutetica ao que se tem

como fundamento na matemaacutetica

39 Rep 510d5 ldquoEntatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis que discute sobre elas

ainda que estejam pensando nelas mas naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedilardquo (ὅηη ηνῖο ὁξσκέλνηο

εἴδεζη πξνζρξῶληαη θαὶ ηνὺο ιόγνπο πεξὶ αὐηῶλ πνηνῦληαη νὐ πεξὶ ηνύησλ δηαλννύκελνη ἀιι ἐθείλσλ

πέξη νἷο ηαῦηα ἔνηθε)

67

modo natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo que se pode dar a um raciociacutenio noeacutetico pois

embora natildeo seja precisamente um reflexo a figura geomeacutetrica consiste na aparecircncia dos

objetos que os geocircmetras procuram O equiacutevoco da geometria parece estar no dado de

que tais formas visiacuteveis satildeo para eles o proacuteprio quadrado e a proacutepria diagonal sobre as

quais se constroacutei um ιόγνο40

O que se tem em vista eacute a noccedilatildeo de quadrado e de

diagonal que natildeo consistem em representaccedilotildees sensiacuteveis ao modo de um espectro como

acontecia com as sombras e com os reflexos nas superfiacutecies e na aacutegua (ηὰο ζθηάο

θαληάζκαηα Rep 510a1) Haacute uma distinccedilatildeo neste instante da forma visiacutevel (ηνῖο

ὁξσκέλνηο εἴδεζη) a figura geomeacutetrica por via da qual o geocircmetra busca o inteligiacutevel

Este tipo de imagem a figura da geometria refere-se a conceitos da geometria e de

algum modo oferece este conteuacutedo que eacute apreensiacutevel somente pela δηάλνηα

ldquo() Das figuras que modeladas e desenhadas por eles

produzem sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem

imagens buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam

ser vistos senatildeo com o pensamentordquo (ηνύηνηο κὲλ ὡο εἰθόζηλ αὖ

ρξώκελνη δεηνῦληεο δὲ αὐηὰ ἐθεῖλα ἰδεῖλ ἃ νὐθ ἂλ ἄιισο ἴδνη ηηο ἢ ηῆ

δηαλνίᾳ (Rep 510e ndash 511a)

Antes de analisar o pensar nesse contexto a δηάλνηα propriamente vale verificar

esse dado que parece ser importante para distinguir a primeira seccedilatildeo inteligiacutevel e para

conferir o grau de conhecimento da realidade dos objetos da investigaccedilatildeo matemaacutetica O

conteuacutedo inteligiacutevel da figura geomeacutetrica estaacute na ordem dos conceitos o que define o

quadrado ldquoo proacutepriordquo impliacutecito em ldquoo proacuteprio quadradordquo e nas outras noccedilotildees

matemaacuteticas como a noccedilatildeo de par e de iacutempar e os tipos de triacircngulos Todavia a criacutetica

ao uso das imagens natildeo apresenta ao menos por enquanto maiores especificaccedilotildees

acerca da realidade dos seres matemaacuteticos O ldquoproacutepriordquo do quadrado natildeo deixa claro se

o que se entende por conceito matemaacutetico constitui uma ideia do quadrado como

poderia conceber a dialeacutetica ou se se trata de um quadrado dado pelo raciociacutenio

matemaacutetico e portanto uma demonstraccedilatildeo que conta com a representaccedilatildeo graacutefica

distinccedilotildees que seratildeo examinadas mais adiante Por parecer uacutetil a uma definiccedilatildeo de

atividade intelectual o texto chama atenccedilatildeo para o dado de que na praacutetica dos

40 Rep 510d8 ldquoDiscutem a propoacutesito do proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a

propoacutesito da diagonal que desenham ()rdquo (ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ ἕλεθα ηνὺο ιόγνπο πνηνύκελνη θαὶ

δηακέηξνπ αὐηο ἀιι νὐ ηαύηεο ἣλ γξάθνπζηλ)

68

geocircmetras se confere a tais imagens a funccedilatildeo de refletir conceitos41

Dito de outro

modo eles buscam as noccedilotildees matemaacuteticas a partir de uma representaccedilatildeo sensiacutevel por

compreenderem equivocadamente ser a figura capaz de referir as noccedilotildees inteligiacuteveis e

ao domiacutenio sensiacutevel simultaneamente

Ao considerar o que jaacute foi exposto sobre a aparecircncia e a sua debilidade em

relaccedilatildeo a uma referecircncia plena de realidade natildeo parece haver a completa aprovaccedilatildeo

deste meacutetodo no que se refere ao mais alto conhecimento Mesmo que se apreenda tais

noccedilotildees atraveacutes da figura geomeacutetrica as mesmas natildeo podem ser compreendidas em toda

a sua realidade por um recurso sensiacutevel como a imagem Em outros termos as noccedilotildees

inteligiacuteveis natildeo satildeo ditas em sua integridade em sua realidade pelas figuras sendo a

argumentaccedilatildeo e a explicaccedilatildeo matemaacutetica obscura carente de clareza ao se atribuir agrave

representaccedilatildeo graacutefica e agrave demonstraccedilatildeo o conhecimento do objeto em questatildeo como se

argumentou no iniacutecio da criacutetica

Dada a carecircncia de clareza da figura embora em menor grau comparada agraves

sombras o ιόγνο matemaacutetico fica comprometido o que explica a conclusatildeo nos termos

de um acordo Esse meacutetodo natildeo alcanccedila o que parece constituir o fundamento do

quadrado e dos conceitos matemaacuteticos o que mostra que a evidecircncia que busca o ιόγνο

geomeacutetrico tem iniacutecio e fim nas figuras sensiacuteveis ainda que seu procedimento e as

proacuteprias figuras envolvam noccedilotildees inteligiacuteveis42

A criacutetica ao meacutetodo matemaacutetico vale

antecipar estaraacute completa apoacutes o exame das disciplinas que colaboram na educaccedilatildeo do

governante e do guardiatildeo da cidade no livro VII Neste instante tem-se avaliados

observe-se os aspectos que ressaltam as limitaccedilotildees da aritmeacutetica e da geometria em

relaccedilatildeo agravequele que se mostraraacute o modo de pensar mais eficiente para o mais alto

conhecimento Assim importa mostrar as fragilidades do meacutetodo dos matemaacuteticos para

mais tarde expor o seu alcance intelectual e a sua utilidade propedecircutica

41 Embora haja a sugestatildeo de uma realidade ao dizer o ldquoquadrado mesmordquo tal indicaccedilatildeo natildeo parece

totalmente clara ao menos ainda A nota de James Adam sobre a ambiguidade de ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ

vale ser citada pois ajuda a pocircr a questatildeo acerca da realidade dos seres matemaacuteticos Ele nota que o

αὐηνῦ se refere antes de tudo ao quadrado ele mesmo (ldquoitselfrdquo) e natildeo diz respeito portanto ao desenho

do quadrado Pode se referir tanto a ideia de quadrado quanto ao quadrado matemaacutetico o qual segundo

ele Platatildeo diz ser distinto da ideia Em seguida Adam vecirc a possibilidade de a ambiguidade ser desfeita a

partir 511a ao se falar do δηαλννύκελνη os quais entende serem os seres matemaacuteticos Adam op cit pg 68

42 Aubenque faz um comentaacuterio que vai nessa direccedilatildeo ldquoQue este objeto intermediaacuterio seja o objeto dos

matemaacuteticos eacute o que se extrai da passagem 510d seg onde o matemaacutetico eacute apresentado como

raciociacutenio sobre as figuras que ele traccedila no sensiacutevel () mas das quais ele se serve como imagens (hoacutes

eikoacutesin) bdquodestas realidades mais altas‟ com as quais tais figuras se assemelham (eacuteoike)rdquo Aubanque op

cit p 42-43

69

A explicaccedilatildeo do procedimento dos geocircmetras expotildee desse modo as

caracteriacutesticas do domiacutenio inteligiacutevel O detalhamento das especificidades acerca deste

plano prossegue com a exposiccedilatildeo da atividade inteligente da alma

ldquo- Pois bem Eis o gecircnero que eu dizia ser o inteligiacutevel Ao

buscaacute-lo a alma eacute obrigada a servir-se de hipoacuteteses e natildeo se

encaminha para o princiacutepio uma vez que natildeo pode elevar-se aleacutem de

hipoacuteteses mas servindo-se das proacuteprias imagens imitadas pelos

objetos da seccedilatildeo inferior que em comparaccedilatildeo com as outras satildeo

tidas e apreciadas como mais niacutetidas

- Entendo disse ele que falas do que se faz na geometria e nas

artes que lhe satildeo afins (ἀδειθαῖο ηέρλαηο)rdquo (Rep 511a3- b2)

Com um tom conclusivo a criacutetica aos matemaacuteticos termina mostrando a que se

deve o erro e as consequecircncias do meacutetodo Como sugerido anteriormente nas condiccedilotildees

que esta seccedilatildeo da linha apresenta a alma eacute impelida a buscar o inteligiacutevel no entanto

natildeo pelo princiacutepio mas pelas hipoacuteteses (Rep 511a3) Ela eacute incapaz de sair das hipoacuteteses

na direccedilatildeo de um niacutevel superior justamente porque permanece presa agraves representaccedilotildees

sem buscar compreender mais profundamente as noccedilotildees apreendidas (Rep 511d5-7)

Ao comparar as imagens como aparecircncias do niacutevel mais baixo e como graacuteficos

do meacutetodo geomeacutetrico a alma as julga e as preza como dotadas de clareza O geocircmetra

considera assim as imagens como fidedignas agraves hipoacuteteses e de certo modo aos objetos

fiacutesicos tomando o resultado que se tem atraveacutes delas como o proacuteprio conhecimento

Desse modo compreende como clareza a adequaccedilatildeo entre a representaccedilatildeo e o objeto

representado Tal uso da imagem ressalta o caraacuteter inoacutecuo da aparecircncia e sugere ser o

meacutetodo matemaacutetico tatildeo insuficiente nos termos da alta cogniccedilatildeo quanto o que se tem

na opiniatildeo uma vez que ao final perde de vista os conceitos Por se fixar a imagens e

assim natildeo desenvolver o grau necessaacuterio de intelecccedilatildeo para apreender o fundamento dos

conceitos aritmeacuteticos natildeo pode ir aleacutem de hipoacuteteses que o levaratildeo apenas a outras

hipoacuteteses Desse modo uma vez que a intenccedilatildeo eacute demonstrar a premissa e chegar a uma

conclusatildeo no sentido de ὁκνινγνπκέλσο a matemaacutetica natildeo alcanccedila os princiacutepios O

movimento intelectivo que o matemaacutetico faz consiste desse modo das premissas para a

conclusatildeo sendo as hipoacuteteses o meio para tal43

43 Nickolas Pappas oferece uma explicaccedilatildeo sobre o que Platatildeo compreende por hipoacutetese ldquoTatildeo

improvadas asserccedilotildees sobre entidades matemaacuteticas podem ser aquilo a que Platatildeo daacute o nome de

hipoacutetesesrdquo Para o autor Platatildeo procura um fundamento para toda a matemaacutetica e de algum modo

simultaneamente para a Metafiacutesica ndash papel desempenhado pela Ideia do Bem Haacute o desejo de encontrar

aquilo que nos termos da contemporaneidade se chamaria certeza loacutegica certeza que o axioma

70

Cabe averiguar qual deve ser a compreensatildeo sobre as hipoacuteteses no argumento

dos matemaacuteticos e dos dialeacuteticos no Livro VII Pelo que se tem ateacute agora elas se

referem agraves premissas a partir das quais se constroacutei o raciociacutenio matemaacutetico e uma

conclusatildeo a qual deve estar de acordo com o pressuposto primeiro Desse modo as

hipoacuteteses constituem os pressupostos que satildeo sempre reafirmados ao final do processo

e nesse sentido todo o ιόγνο pode ser compreendido como a explicaccedilatildeo da premissa

ou melhor dizendo como uma demonstraccedilatildeo44

O meacutetodo matemaacutetico se resume agrave

demonstraccedilatildeo de premissas e natildeo ascendem de modo a entender por isso agrave natureza da

ideia envolvida na operaccedilatildeo Com as premissas por sua vez os loacutegicos e os geocircmetras

pretendem dizer o que satildeo os objetos do mundo sensiacutevel e a demonstraccedilatildeo delas

pressupotildee o conhecimento destes objetos Eles compreendem que a evidecircncia (θαλεξόλ)

acerca do objeto investigado eacute dada com esta demonstraccedilatildeo matemaacutetica de algo

existente do mundo fiacutesico atraveacutes das figuras abstendo-se de investigar ou oferecer uma

explicaccedilatildeo acerca do que fundamenta a hipoacutetese ou seja de buscar o ἀλππόζεηνο ou os

proacuteprios princiacutepios que utilizam a ἀξρή

Vale ainda atentar para a singularidade da seccedilatildeo que concerne agrave matemaacutetica O

primeiro ponto a ser notado diz respeito agrave possibilidade de natildeo adquirir conhecimento

nos termos da filosofia mesmo ao lidar com objetos inteligiacuteveis Os matemaacuteticos assim

como os dialeacuteticos como se analisaraacute em detalhe lidam com seres inteligiacuteveis

entretanto devido ao meacutetodo natildeo apropriado para a apreensatildeo deste objeto de grau mais

alto este contato natildeo constitui exatamente um conhecimento nos termos da ἐπηζηήκε

como quer o filoacutesofo O geocircmetra e o matemaacutetico natildeo chegam ao princiacutepio e o ponto

para o qual a analogia parece lanccedilar luz eacute justamente a importacircncia do meacutetodo e

consequentemente da operaccedilatildeo intelectiva que ele demanda Ao problematizar as

condiccedilotildees para o conhecimento questionando os objetos e o procedimento Platatildeo

sugere as diferenccedilas de abordagem epistemoloacutegica Dito de outro modo o caraacuteter

intermediaacuterio que parece ter a matemaacutetica uma vez que estabelece as tratativas entre o

sensiacutevel e o inteligiacutevel oferece as condiccedilotildees para mostrar as possibilidades de

operacionalidade do pensamento em uma primeira etapa do processo de cogniccedilatildeo

matemaacutetico natildeo oferece mas acreditam os geocircmetras estar evidente nas suas demonstraccedilotildees A dialeacutetica

tem a tarefa de definir em termos mais amplos simples e mais abstratos os objetos da matemaacutetica que

carecem de definiccedilatildeo A ascese dialeacutetica da Linha Dividida pode ser vista como uma ldquoclarificaccedilatildeo

definitoacuteriardquo ao inveacutes de uma ldquocerteza axiomaacuteticardquo Pappas op cit p 176-177 Na verdade o que o

dialeacutetico compreende como ideia o matemaacutetico toma como axiomas e noccedilotildees e os utiliza como hipoacutetese

44 Para Cornford o matemaacutetico restringe hipoacutetese agrave afirmaccedilatildeo de uma existecircncia e natildeo de uma definiccedilatildeo

A definiccedilatildeo na matemaacutetica eacute um ιόγνο no sentido de uma explicaccedilatildeo e natildeo de uma causa Cornford op

cit p 39

71

Se nas primeiras seccedilotildees da linha a deficiecircncia das aparecircncias mostrava a

debilidade do sensiacutevel e consequentemente a impossibilidade da cogniccedilatildeo nesta parte

da linha o conhecimento depende mais da atividade que se estabelece em relaccedilatildeo aos

objetos ou seja do meacutetodo45

A geometria que pretende mensurar algo fiacutesico e no

entanto utiliza elementos inteligiacuteveis mostra a possibilidade de uma relaccedilatildeo do sensiacutevel

com o inteligiacutevel que a imagem sozinha natildeo oferecia Mesmo que o meacutetodo da

geometria natildeo ascenda agraves causas e agrave ideia ultima e termine por mirar o domiacutenio

sensiacutevel as tratativas com os conceitos inteligiacuteveis demonstram a capacidade da alma

de inteligir em diferentes niacuteveis e de acordo com a analogia ao menos de dois modos

como um raciociacutenio (δηάλνηα) e como uma intelecccedilatildeo em seu maacuteximo grau (λόεζηο)

Desse modo a distinccedilatildeo entre o princiacutepio e o objeto matemaacutetico merece alguns

esclarecimentos O princiacutepio que Platatildeo sugere nessas passagens se refere a ἀξρή e ao ηὸ

ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ causa dos princiacutepios e dos conceitos matemaacuteticos Eacute a ele que os

objetos da matemaacutetica devem sua realidade O objeto com o qual lida a matemaacutetica eacute o

ηὸ αὐηό ldquoo mesmordquo que exprime o conceito como visto Nesse sentido conhecer as

noccedilotildees matemaacuteticas naquilo que elas tecircm de inteligiacutevel e real constitui um

conhecimento no sentido de cognosciacutevel embora natildeo seja o mesmo conhecimento do

dialeacutetico (ἐπηζηήκε) que justamente apreende o primeiro princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico Os

objetos da matemaacutetica por serem inteligiacuteveis datildeo condiccedilotildees para a alma ter um grau de

frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel mesmo que os matemaacuteticos natildeo se deem conta dos

45 A ambiguidade desta parte da linha fez autores repensarem a verdadeira divisatildeo da linha Stocks por

exemplo entende que pode haver trecircs pares na divisatildeo conforme clareza ou verdade A e B (imagens e

originais) C e D (objetos matemaacuteticos ndash ideias) e AB e CD Entre B e C (originais e objetos matemaacuteticos)

haacute uma dissimetria natildeo havendo uma continuidade no sentido de uma passagem progressiva do grau

maior para o menor Os objetos do sensiacutevel B tem sua representaccedilatildeo em A D a seccedilatildeo mais alta tem a sua

verdade revelada em C na matemaacutetica Deve-se considerar B uma forma esclarecida de A e D uma forma

esclarecida de C ndash Stocks op cit p 76 77 De qualquer modo Stocks percebe haver entre os

seguimentos dos objetos fiacutesicos e o da matemaacutetica uma brusca distinccedilatildeo que ao final agruparia os

elementos da linha nos grupos domiacutenio sensiacutevel- domiacutenio inteligiacutevel e objetos originais fiacutesicos e

metafiacutesicos Chen entende que esta distinccedilatildeo de objetos entre imagem-original eacute assimeacutetrica enquanto a

relaccedilatildeo entre originais fiacutesicos-objetos matemaacuteticos e objetos matemaacuteticos-ideias eacute simeacutetrica uma vez que

a relaccedilatildeo dada pelo caacutelculo eacute intermediada pela noccedilatildeo de igualdade Natildeo se trata portanto de uma mesma

relaccedilatildeo e o texto entende Chen lida com a relaccedilatildeo assimeacutetrica - Chen op cit p 104 Em outras palavras

eacute possiacutevel ver uma riacutegida separaccedilatildeo entre os segmentos intermediaacuterios como Stocks considera ou uma

relativa continuidade como entende Chen As duas posiccedilotildees mostram a meu ver a complexidade da

parte que se refere agrave matemaacutetica na linha como bastante oportuna para propor uma noccedilatildeo de atividade do

pensamento que perpasse de algum modo os domiacutenios e possa chegar a mais superior das ideias a ideia

do bem No caso de Chen o comentaacuterio elege a noccedilatildeo de igualdade (equality) como a noccedilatildeo reguladora

que o caacutelculo utiliza para fazer as relaccedilotildees entre os domiacutenios Esta parece ser uma observaccedilatildeo pertinente e

importante do aspecto da cogniccedilatildeo pois evidencia os tipos de noccedilotildees inteligiacuteveis capaz de fazer esta

relaccedilatildeo entre os domiacutenios e as seccedilotildees Natildeo parece ser qualquer elemento inteligiacutevel que poderia

proporcionar este tracircnsito mas elementos especiacuteficos presentes tanto no domiacutenio sensiacutevel quanto no

inteligiacutevel isto eacute noccedilotildees a partir das quais eacute possiacutevel uma verificaccedilatildeo tanto empiacuterica quanto intelectual

como parecem ser as noccedilotildees matemaacuteticas

72

princiacutepios Sendo o princiacutepio e o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico a causa do conceito (ηὸ αὐηό)

deve-se atentar o matemaacutetico tem a via para a apreensatildeo deles que erroneamente

ignoram Tal noccedilatildeo de causalidade que seraacute detalhada adiante mostra a relaccedilatildeo entre as

duas partes em que se divide o domiacutenio inteligiacutevel e propotildee ao mesmo tempo a

passagem de um niacutevel a outro

Desta vez ao se referir aos objetos matemaacuteticos o texto parece tratar de maneira

mais objetiva a realidade deles e deixar para a questatildeo da cogniccedilatildeo as diferenciaccedilotildees

que propotildeem as divisotildees da linha Pode-se suspeitar que tais noccedilotildees tenham

peculiaridades que fazem Platatildeo utilizaacute-las para ilustrar o processo cognitivo na etapa de

transiccedilatildeo do sensiacutevel para o inteligiacutevel dado que com as noccedilotildees geomeacutetricas eacute possiacutevel

se referir de maneira inteligente ao sensiacutevel ou seja eacute possiacutevel dar um tratamento aos

objetos do mundo sensiacutevel a partir de noccedilotildees inteligiacuteveis Ao fazer uso de elementos

inteligiacuteveis para oferecer uma explicaccedilatildeo que tem por objetivo final dizer sobre o

domiacutenio sensiacutevel tal como se viu na demonstraccedilatildeo o meacutetodo matemaacutetico apresenta a

relaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel e ao mesmo tempo a participaccedilatildeo desta disciplina

em ambos os domiacutenios Desta perspectiva as noccedilotildees matemaacuteticas enviam diretamente

ao ser sem demandar outro tipo de objeto que natildeo sejam as noccedilotildees suscitadas pelas

figuras geomeacutetricas e pelas hipoacuteteses ao modo de axiomas46

A partir disso pode-se experimentar traccedilar um perfil da δηάλνηα visto que eacute a

operaccedilatildeo envolvida nessa tratativa entre seres de inteligibilidade tal como os conceitos

da matemaacutetica e da geometria com vistas para o sensiacutevel Ela apresenta as seguintes

caracteriacutesticas 1) opera partindo da premissa para a conclusatildeo por meio de hipoacuteteses 2)

faz a intermediaccedilatildeo entre conceitos inteligiacuteveis e imagens sensiacuteveis (graacuteficos da

geometria) 3) natildeo chega ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico embora os elementos com os

quais opera sejam inteligiacuteveis e por isso permitiriam fazecirc-lo Pode-se compreender o

movimento do pensamento do raciociacutenio com um grau ascendente e horizontal Em

termos cognitivos ou seja no que se refere ao alvo do conhecimento a atividade do

pensamento ao modo de um raciociacutenio se restringe a ir das hipoacuteteses agrave afirmaccedilatildeo acerca

de algo existente o qual natildeo define nos termos do raciociacutenio matemaacutetico Tal atuaccedilatildeo

parece ser suficiente para caracterizar um movimento que vai do sensiacutevel para um grau

46 Cornford faz uma observaccedilatildeo sobre o que ele chama de bdquoclasses de ideias‟ a qual parece ir ao encontro

desta hipoacutetese ldquoMatemaacuteticos podem usar bdquoimagens visiacuteveis‟ () Ele sabe que natildeo estaacute pensando a

partir destas coleccedilotildees [de representaccedilotildees de coisas] e de figuras mas de ideias Na classe das ideias

morais natildeo haacute imagens visiacuteveis suas semelhanccedilas no mundo satildeo propriedades invisiacuteveis da alma ()

Assim a matemaacutetica serve como o caminho mais faacutecil do mundo sensiacutevel para o mundo inteligiacutevel e deve

preceder ao estudo das ideias moraisrdquo Cornford op cit p 38

73

do inteligiacutevel mas que natildeo vai muito aleacutem da inteligibilidade dos nuacutemeros dos

conceitos matemaacuteticos e das hipoacuteteses

De outro modo em termos de operacionalidade no que diz respeito ao modo e

aos elementos dispostos no raciociacutenio matemaacutetico o procedimento demonstrativo

mostra que o movimento do pensamento consiste em um movimento horizontal uma

vez que permanece em torno da relaccedilatildeo princiacutepio-conclusatildeo tomando-os nos termos da

relaccedilatildeo entre hipoacuteteses A operaccedilatildeo desse modo fica restrita ao princiacutepio do qual

partiu constituindo um movimento de transiccedilatildeo entre as noccedilotildees envolvidas ao modo de

uma variaccedilatildeo entre os elementos que serve para demonstraacute-lo passando de um para

outro sem se lanccedilar questionamentos acerca deles proacuteprios Natildeo haacute nenhum movimento

que considere os elementos tomando-os da perspectiva de sua realidade Mesmo que ldquoo

proacuteprio quadradordquo possibilite inferir um grau ontoloacutegico superior parece ser satisfatoacuterio

para os propoacutesitos dos matemaacuteticos o grau de apreensatildeo do inteligiacutevel que os permita

fazer suas deduccedilotildees e voltar a imagem Parece natildeo haver necessidade de conhecer o

fundamento das noccedilotildees envolvidas no meacutetodo de demonstraccedilatildeo dado que a operaccedilatildeo

consiste justamente em intermediar os conceitos que estatildeo entre a premissa e a

conclusatildeo47

Tal descriccedilatildeo eacute o que torna possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da δηάλνηα ateacute aqui Vecirc-

se que se trata da operaccedilatildeo do pensamento que embora engajado na demonstraccedilatildeo de

noccedilotildees inteligiacuteveis natildeo chega ao princiacutepio maacuteximo e ocupa assim a posiccedilatildeo

intermediaacuteria entre a δόμα e a λόεζηϛ Conforme a primeira seccedilatildeo do domiacutenio

inteligiacutevel seu campo de atuaccedilatildeo versa sobre os inteligiacuteveis entretanto somente sobre

aqueles que mantecircm alguma relaccedilatildeo com o sensiacutevel isto eacute que podem de algum modo

dizecirc-los Dessa maneira a δηάλνηα constitui o primeiro grau do pensamento intelectivo

nos termos da cogniccedilatildeo e ganha lugar no domiacutenio do cognosciacutevel pois se refere ao uso

47 Diante da criacutetica ao procedimento dos matemaacuteticos conveacutem conferir o que Brisson e Meyerstein

explicam sobre o procedimento dos geocircmetras e a apropriaccedilatildeo em certa medida deste tipo de prova por

parte do filoacutesofo ldquoPara o filoacutesofo que na Greacutecia antiga toma como modelo os passos dos geocircmetras

provar implica 1) Por provisoriamente axiomas tambeacutem chamado ldquohipoacutetesesrdquo 2) verifica-se que esses

axiomas natildeo se contradizem 3) verifica-se que deduccedilatildeo obedece agraves regras da loacutegica 4) determina-se se

as consequecircncias decorrentes correspondem na realidade sensiacutevel agravequelas que devem ser 5) se as

respostas agraves questotildees 2 3 e 4 satildeo positivas retornam sobre seus passos para verificar se as hipoacuteteses satildeo

verdadeiramente primordiais ou se em vez disso necessitam de axiomas complementaresrdquo Brisson L

Meyerstein FW op cit p 47-48 Note-se que apesar das diferenciaccedilotildees que Platatildeo se esforccedila em

realizar a matemaacutetica foi uma disciplina de grande inspiraccedilatildeo para o modelo investigativo que pretendia

elaborar para a filosofia Em comum com a matemaacutetica o meacutetodo dialeacutetico teraacute um procedimento que

utiliza hipoacuteteses ou seja parte de ideias e tem a necessidade de investigaacute-las Essa parece ser a grande

contribuiccedilatildeo das matemaacuteticas para a proposiccedilatildeo de um meacutetodo filosoacutefico cabendo a partir de entatildeo

discernir acerca de como proceder segundo os interesses da filosofia

74

e ao consequente entendimento dos elementos inteligiacuteveis ao procurar organizaacute-los de

modo a elaborar uma explicaccedilatildeo48

Uma compreensatildeo mais profunda e detalhada sobre a δηάλνηα pode ser dada com

uma anaacutelise acerca das disciplinas matemaacuteticas no Livro VII Por meio da descriccedilatildeo da

ascese do aprendiz em direccedilatildeo ao conhecimento filosoacutefico eacute possiacutevel mensurar melhor o

grau de inteligecircncia e de cogniccedilatildeo do raciociacutenio O texto trata o raciociacutenio sob o

argumento de que toda disciplina matemaacutetica que conduz agrave ideia do bem pois obriga a

alma a se voltar para o inteligiacutevel e para a contemplaccedilatildeo do ser eacute uacutetil aos propoacutesitos do

pedagogo filoacutesofo49

Assim pretende especificar como ocorre a colaboraccedilatildeo da

geometria da astronomia e da harmonia na educaccedilatildeo do futuro governante e expotildee com

isso o objeto inteligiacutevel de cada uma Do mesmo modo a despeito do que argumenta a

maioria dos geocircmetras e dos astrocircnomos (Rep 526a) a geometria e a astronomia

desempenham o mesmo papel como disciplinas que promovem tal orientaccedilatildeo na medida

em que exigem o trabalho do raciociacutenio atraveacutes das relaccedilotildees que cada uma opera por via

das figuras geomeacutetricas e da observaccedilatildeo do movimento dos corpos celestes

De fato aleacutem de ser um conhecimento uacutetil para a guerra a geometria conhece os

objetos que apresentam a qualidade inteligiacutevel do que eacute perene ou literalmente do que

sempre eacute (ηνῦ ἀεὶ ὄληνο) e natildeo as figuras ou desenhos do que se observa empiricamente

ndash ldquondash Eacute faacutecil ficar de acordo quanto a isso A geometria eacute o conhecimento daquilo que

sempre eacute (Rep 527b7)rdquo Assim conceitos trabalhados pela geometria como

profundidade e pela astronomia como distacircncia movimento e velocidade expressam

relaccedilotildees apreensiacuteveis pelo raciociacutenio matemaacutetico como igualdade e duplicidade e por

isso constituem um aprendizado que treina a alma a trabalhar com o que eacute invisiacutevel e

com o ser (Rep 529b-c) Observe-se que o que vale satildeo as relaccedilotildees matemaacuteticas que

acompanham os conceitos da astronomia e da geometria os quais assim como a noccedilatildeo

de unidade treinam a faculdade inteligente da alma (ηὸ θύζεη θξόληκνλ ἐλ ηῆ ςπρῆ

Rep 530c1) para conhecer qualidades inteligiacuteveis essenciais agrave ideia do bem como

imutabilidade e verdade (Rep 530a3-b4) Do mesmo modo por utilizarem-se dos

nuacutemeros e do caacutelculo o geocircmetra o astrocircnomo e o muacutesico satildeo forccedilados agrave mesma

48 Cornford ldquoSeu entendimento intelectual de uma coerecircncia embora isolada peccedila do raciociacutenio

dedutivo eacute a diaacutenoiardquo Cornford op cit p 51

49 Rep 526e2-4 ldquoTende para laacute afirmamos noacutes tudo quanto obriga a alma a voltar-se para aquele

lugar onde estaacute o mais feliz dos seres () (ἀλαγθάδεη ςπρὴλ εἰο ἐθεῖλνλ ηὸλ ηόπνλ κεηαζηξέθεζζαη ἐλ ᾧ

ἐζηη ηὸ εὐδαηκνλέζηαηνλ ηνῦ ὄληνο) Rep 526e6 ldquoEntatildeo se obriga a contemplar a essecircncia ela nos

conveacutem se obriga a contemplar o devir natildeo nos conveacutemrdquo (Οὐθνῦλ εἰ κὲλ νὐζίαλ ἀλαγθάδεη ζεάζαζζαη

πξνζήθεη εἰ δὲ γέλεζηλ νὐ πξνζήθεη)

75

abstraccedilatildeo que o filoacutesofo e por consequecircncia adquirem o mesmo grau de conhecimento

por lidarem com a inteligibilidade do nuacutemero50

Conveacutem notar que a criacutetica quanto ao meacutetodo empregado e quanto aos objetivos

que tecircm em vista cada disciplina permanece O Livro VII oferece uma versatildeo

pormenorizada acerca da cogniccedilatildeo ao expor com detalhes a operaccedilatildeo intelectual e seu

grau de conhecimento envolvido nas matemaacuteticas Entretanto o argumento natildeo perdeu

de vista os limites destas disciplinas para uma elevaccedilatildeo mais alta ao apontar o equiacutevoco

por parte dos matemaacuteticos no que se refere ao verdadeiro objeto em questatildeo a ideia do

bem e a real contribuiccedilatildeo delas para tal O que o argumento diz da visatildeo dos geocircmetras

acerca da geometria vai ao encontro do que se observou no final do argumento da linha

(Rep 511a) onde se verifica a abstraccedilatildeo inteligiacutevel a partir da experiecircncia empiacuterica que

se realiza ao modo da adequaccedilatildeo do que se vecirc agraves figuras geomeacutetricas - ldquo() ao fazer

suas declaraccedilotildees falam em quadrar em construir uma figura acrescentar usando

sempre termos como esses Ora toda dedicaccedilatildeo a esse aprendizado tem em vista o

conhecimentordquo (Rep527a6-b1) Este parece constituir o objetivo uacuteltimo da geometria

a transposiccedilatildeo do sensiacutevel em direccedilatildeo agraves formas do inteligiacutevel na qual a racionalizaccedilatildeo

se daacute nos termos desse procedimento De todo modo a cogniccedilatildeo acontece todavia sem

ter em vista um conhecimento maior (ἐπηζηήκε)

O mesmo se observa entre os astrocircnomos os quais acreditam ser a astronomia

um conhecimento que equipara os fenocircmenos naturais com os astros sem considerarem

o que haacute de imutaacutevel e verdadeiro neles o que haacute de inteligiacutevel portanto (Rep 530a)

Tambeacutem entre os muacutesicos que julgam ser a harmonia o estudo que mensura e equipara

os sons dados da sensibilidade sem se darem conta da relevacircncia de examinar os

nuacutemeros que satildeo harmocircnicos e as razotildees que haacute para serem como tais (Rep 531a-d) ou

50 Cabe aqui trazer um esclarecimento de Trabattoni que vai ao encontro do que se analisa sobre a

δηάλνηα ldquoConveacutem no entanto esclarecer que natildeo satildeo as expressotildees oacuteticas em si que excluem esta

possibilidade e que para resolver a questatildeo eacute necessaacuterio investigar aleacutem dessa perspectiva Parece-me

que uma anaacutelise mesmo que resumida da metaacutefora da linha nos forneccedila argumentos suficientes para

estabelecermos que Platatildeo conceba que o conhecimento intelectual antes de qualquer coisa eacute um tipo de

pensamento discursivo O esquema dos manuais de filosofia segundo os quais apresentam a diaacutenoia

como o tipo de pensamento discursivo e proposicional que ocupa o terceiro segmento da linha e a noacuteēsis

como o quarto segmento e que seria portanto um pensamento intuitivo e natildeo proposicional natildeo se

verifica de maneira alguma no textordquo Trabattoni F ldquoIl Sapere del Filosofordquo in Vergetti M (Ed) La

Repubblica Naacutepoles Bibliopolis 2003 vol 5 p 158 O comentaacuterio expotildee a complexidade que envolve os

trabalhos do intelecto e a dificuldade ao se pretender dar uma classificaccedilatildeo riacutegida aos tipos de operaccedilatildeo

cognitivas O que Platatildeo parece ter em vista com a divisatildeo eacute primeiramente distinguir o que cada

conhecimento tem em vista para entatildeo mostrar a partir do meacutetodo de cada uma seus alcances e

limitaccedilotildees Raciociacutenio matemaacutetico e inteligecircncia mostram a intelecccedilatildeo ainda que em graus e de maneira

diferentes e que classificaacute-los como conhecimento proposicional o qual busca sobretudo definiccedilotildees ou

intuitivo pode dizer muito pouco sobre o intelecto e sua atividade

76

seja natildeo se questionam no que consiste a harmonia De modo geral diferentemente dos

dialeacuteticos os matemaacuteticos natildeo ascendem ao proacuteprio problema (ἀιι νὐθ εἰο πξνβιήκαηα

ἀλίαζηλ Rep 531c2) na perspectiva do filoacutesofo Mesmo que trabalhem com objetos

inteligiacuteveis e que tenham portanto um grau de intelecccedilatildeo e de cogniccedilatildeo os

matemaacuteticos natildeo demonstram ter o que para o filoacutesofo constituiria um conhecimento

pleno da sua disciplina o fundamento que as torna comuns e afins o natildeo hipoteacutetico

inteligiacutevel a ideia do bem

32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ

A descriccedilatildeo do meacutetodo de cogniccedilatildeo na uacuteltima parte da linha dividida apresenta a

apreensatildeo de ideias a cogniccedilatildeo no seu grau superior A operaccedilatildeo empreendida no

processo e as especificidades dos objetos da cogniccedilatildeo satildeo dadas agrave luz da formulaccedilatildeo

filosoacutefica Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e do conhecimento

proacuteprio deste tipo de apreensatildeo dita inteligente mostra-se segundo o caraacuteter da filosofia

e portanto da atividade cognitiva do filoacutesofo a partir de um meacutetodo especiacutefico

denominado ciecircncia dialeacutetica

ldquo- Pois bem Fica sabendo agora que eu digo que a seccedilatildeo das

coisas inteligiacuteveis eacute aquela em que eacute a proacutepria razatildeo que as apreende

com a forccedila da dialeacutetica (αὐηὸο ὁ ιόγνο ἅπηεηαη ηῆ ηνῦ δηαιέγεζζαη

δπλάκεη) considerando as hipoacuteteses natildeo como princiacutepios mas

realmente como hipoacuteteses como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο

ηε θαὶ ὁξκάο) para chegar ao princiacutepio de tudo aquele que natildeo

admite hipoacuteteses (κέρξη ηνῦ ἀλππνζέηνπ ἐπὶ ηὴλ ηνῦ παληὸο ἀξρὴλ

ἰώλ) Num movimento inverso por sua vez presa a tudo o que

depende desse princiacutepio vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem

servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias ideias

por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (εἴδε)

- Entendo disse mas natildeo como gostaria porque me parece que

estaacutes falando de uma tarefa muito pesada Queres determinar que o

conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da dialeacutetica

(ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο) eacute mais claro (ζαθέζηεξνλ εἶλαη) que

o que se tem por meio das ciecircncias cujos princiacutepios satildeo as hipoacuteteses e

que os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o

pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηῶλ ηερλῶλ αἷο αἱ

ὑπνζέζεηο ἀξραὶ θαὶ δηαλνίᾳ κὲλ ἀλαγθάδνληαη ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ

77

αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη) de outro lado por examinaacute-los sem voltar

ao princiacutepio (δηὰ δὲ ηὸ κὴ ἐπ ἀξρὴλ ἀλειζόληεο) mas a partir de

hipoacuteteses eles natildeo te parecem ter inteligecircncia a respeito deles ainda

que sejam inteligiacuteveis por meio de um princiacutepio Parece-me que

chamas pensamento (δηάλνηαλ) a disposiccedilatildeo (ἕμηλ) dos que estudam

geometria e ciecircncias afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo

inteligecircncia (λνῦλ) jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a

opiniatildeo e a inteligecircncia (ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ

νὖζαλ)rdquo (Rep 511b3-d5)

A primeira distinccedilatildeo do domiacutenio inteligiacutevel eacute dada pela peculiaridade do modo

de apreensatildeo de ideias O ιόγνο apreende toca (ἅπηεηαη) segundo os termos metafoacutericos

do texto o que eacute do gecircnero inteligiacutevel nesta uacuteltima seccedilatildeo da linha Tal relaccedilatildeo a qual

descreve uma apreensatildeo tem seu procedimento explicado logo em seguida tomar as

hipoacuteteses natildeo como princiacutepio mas por aquilo que elas mesmas satildeo utilizando-as

assim como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο) indo ateacute o natildeo-

hipoteacutetico o princiacutepio de tudo De posse do que se apreendeu desse princiacutepio uacuteltimo

retornar na direccedilatildeo de uma conclusatildeo usando as ideias e natildeo as sensaccedilotildees chegando

assim a outras ideias (ηειεπηᾷ εἰο εἴδε) Tal procedimento eacute dado pela potecircncia

dialeacutetica da razatildeo51

que exprime as potencialidades da alma no que se refere agrave

capacidade de cogniccedilatildeo

Vaacuterias satildeo as questotildees que se deve analisar a partir desse trecho Deve-se

comeccedilar por verificar o sentido de hipoacutetese que a ciecircncia dialeacutetica tem em vista e o uso

que faz delas Por conhececirc-las verdadeiramente por saber no que elas consistem o

dialeacutetico procede de acordo com o gecircnero inteligiacutevel Ele utiliza as hipoacuteteses como

hipoacuteteses ou seja sem atribuir a elas maior valor cognitivo e sem tomaacute-las como

axiomas como acontecia no meacutetodo de demonstraccedilatildeo Do mesmo modo natildeo satildeo tidas

pelo filoacutesofo como princiacutepio uacuteltimo a partir do qual se deve iniciar uma inquiriccedilatildeo

tampouco constituem a conclusatildeo do processo cognitivo constituindo apenas graus a

serem superados para que se chegue a um princiacutepio irrefutaacutevel Note-se que a definiccedilatildeo

de hipoacutetese eacute dada por analogia e no que se refere a sua funccedilatildeo dentro do meacutetodo Tal

perspectiva importa observar natildeo a concebe necessariamente nos termos de um

51 O termo ldquorazatildeordquo para a traduccedilatildeo de ιόγνο parece de acordo com os propoacutesitos da descriccedilatildeo da

atividade dialeacutetica O trecho potildee em evidecircncia a distinccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico que diferentemente do

meacutetodo de demonstraccedilatildeo utiliza exclusivamente elementos racionais em toda a sua capacidade de

apreensatildeo Deve-se ter em vista que a palavra ldquorazatildeordquo parece sintetizar assim o alcance cognitivo do

meacutetodo e da potencialidade intelectual da alma do filoacutesofo

78

conceito podendo ser elas proposiccedilotildees ou axiomas A posiccedilatildeo de intermediaacuterias no

movimento de ascese chama atenccedilatildeo para sua utilidade no que se refere ao

procedimento dando a sugestatildeo desse modo de que pode consistir em uma proposiccedilatildeo

qualquer proacuteximo do que tambeacutem se encontra no Feacutedon (Fed 100d)52

justificando por

isso uma averiguaccedilatildeo do seu fundamento Evidentemente a criacutetica ao procedimento

matemaacutetico parece tomar como hipoacuteteses os axiomas e conceitos matemaacuteticos do

mesmo modo o dialeacutetico do livro VI parece considerar apenas as ideias Todavia este

tipo de abordagem coloca em foco o seu uso apontando-as antes de tudo como os

meios que conduzem o pensamento a um grau maior de cogniccedilatildeo Mesmo que se trate

de conceitos enquanto hipoacuteteses natildeo satildeo vistas em seu valor cognitivo jaacute que sua

natureza inteligiacutevel natildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo Conveacutem compreender assim que

diferentemente dos matemaacuteticos para o dialeacutetico importa averiguaacute-las em sua natureza

rumo agrave ideia mais importante sendo esta a caracteriacutestica do pensamento posta em

destaque nesse procedimento

Como se vecirc natildeo se deve atribuir a elas um estatuto de princiacutepio devendo ter

por isso seu conteuacutedo cognitivo questionado ateacute que se chegue ao seu fundamento No

fundamento delas e de tudo (Rep 511b7) no ponto mais alto estaacute a ideia do bem

Parece ser nesse sentido que as hipoacuteteses se mostram os meios para chegar ao princiacutepio

de tudo pois se apresentam como elementos transitoacuterios de modo que se faz necessaacuterio

investigar uma a uma sucessivamente

A passagem entre hipoacuteteses que se eleva para outras ideias eacute dada nos termos de

um movimento ascendente tal como sugerem ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο no qual se

apreende o natildeo-hipoteacutetico Haacute uma notaacutevel progressatildeo nesse movimento dada a

superaccedilatildeo de um elemento provisoacuterio para um elemento basilar o que natildeo se via no

meacutetodo de demonstraccedilatildeo Logo adiante descreve a finalizaccedilatildeo do processo como uma

volta (πάιηλ) do dialeacutetico pelas ideias uma vez que jaacute conheceu o fundamento de tudo

Nesse retorno o dialeacutetico termina por averiguar o que estaacute em questatildeo utilizando desta

vez as proacuteprias ideias valendo-se portanto de elementos inteligiacuteveis o que faz a

conclusatildeo a finalizaccedilatildeo do processo natildeo ser outra que tambeacutem uma ideia O dialeacutetico

tem em mira diferente do geocircmetra natildeo a existecircncia de objetos sensiacuteveis mas as

52 A hipoacutetese no Feacutedon natildeo deve ser compreendida tal como acontece no Liv VI apenas como uma

ideia a ser superada O contexto dialoacutegico em que surge o tema insinua hipoacutetese no sentido mais amplo o

qual compreende natildeo apenas elementos inteligiacuteveis como as ideias mas qualquer afirmaccedilatildeo que se usa

como premissa em uma investigaccedilatildeo De qualquer modo ambos diaacutelogos como se veraacute propotildee a

hipoacutetese como elemento usado no meacutetodo dialeacutetico que colabora para a ascensatildeo a um conhecimento ao

ser analisado e superado

79

proacuteprias ideias que satildeo os objetos inteligiacuteveis proacuteprios deste domiacutenio e que

fundamentam as noccedilotildees matemaacuteticas e os objetos dos niacuteveis antecedentes os objetos

fiacutesicos e as imagens53

Em termos cognitivos se vecirc um movimento linear ascende e a

permanecircncia em um niacutevel superior o qual consiste na saiacuteda das hipoacuteteses para a ideia e

da ideia para outras ideias Visto de outra maneira a compreensatildeo acerca da natureza da

hipoacutetese tal como sugere a dialeacutetica permite a apreensatildeo da ideia que a fundamenta e

potildee o pensamento assim a trabalhar apenas com ideias o que constitui uma elevaccedilatildeo

da atividade inteligente

Deve-se observar no que consiste o tracircmite entre ideias que constitui o meacutetodo

dialeacutetico e a noccedilatildeo de inteligibilidade aiacute envolvida Com a distinccedilatildeo das ideias em

comparaccedilatildeo agraves hipoacuteteses agora o meacutetodo apresenta o procedimento de maneira

condizente com a natureza inteligiacutevel delas A consequecircncia do detalhamento desta

ciecircncia apropriada para a aquisiccedilatildeo do conhecimento e para a frequentaccedilatildeo no domiacutenio

inteligiacutevel eacute a sugestatildeo dos diferentes graus de cogniccedilatildeo e da capacidade intelectiva

inteligente no seu maacuteximo poder de apreensatildeo Sendo as ideias o objeto especiacutefico do

inteligiacutevel a ascese mostra o trabalho do pensamento dado na sua autenticidade uma

vez que natildeo demanda qualquer auxiacutelio de recursos sensiacuteveis como as imagens o que

culmina na cogniccedilatildeo do fundamento inteligiacutevel e portanto no conhecimento maacuteximo

o da realidade A elucidaccedilatildeo acerca do inteligiacutevel eacute um dos propoacutesitos da ciecircncia

dialeacutetica e assim determinar que eacute mais claro mais evidente o que refere ao ser e agrave

contemplaccedilatildeo do inteligiacutevel em comparaccedilatildeo agrave evidecircncia da matemaacutetica e da geometria

denominadas teacutecnicas eacute uma tarefa (ἔξγνλ) do dialeacutetico (Rep 511c4-6)

Desse modo diferenciaccedilotildees importantes satildeo realizadas em torno das atividades

(ἔξγνλ) das disciplinas e das suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel As teacutecnicas tomam as

hipoacuteteses como princiacutepio operam somente com hipoacuteteses e impotildeem a atividade

cognitiva ao modo de um raciociacutenio Desse modo matemaacuteticos e geocircmetras natildeo tecircm

(ἴζρσ) inteligecircncia mesmo que os seres com os quais lidam sejam inteligiacuteveis e

portanto tenham relaccedilatildeo com o princiacutepio o ser inteligiacutevel (Rep 511d1) A relaccedilatildeo que

a matemaacutetica manteacutem com o inteligiacutevel eacute portanto desprovida do grau maacuteximo de

inteligibilidade diferente da dialeacutetica dita ser propriamente uma ciecircncia (ἐπηζηήκε)

53 Rep511b7-c2 ldquo() Num movimento inverso por sua vez presa a tudo que depende desse princiacutepio

vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias

ideias por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (ἁςάκελνο αὐηο πάιηλ αὖ

ἐρόκελνο ηῶλ ἐθείλεο ἐρνκέλσλ νὕησο ἐπὶ ηειεπηὴλ θαηαβαίλῃ αἰζζεηῷ παληάπαζηλ νὐδελὶ

πξνζρξώκελνο ἀιι εἴδεζηλ αὐηνῖο δη αὐηῶλ εἰο αὐηά θαὶ ηειεπηᾷ εἰο εἴδε)rdquo

80

Para compreender a noccedilatildeo de ἐπηζηήκε que acompanha o meacutetodo dialeacutetico isto que

parece ser o niacutevel maacuteximo de cogniccedilatildeo possiacutevel no inteligiacutevel deve-se verificar a noccedilatildeo

de inteligecircncia que se pode ter a partir do que mostram as comparaccedilotildees entre dialeacutetica e

matemaacutetica Desse modo cabe voltar agrave definiccedilatildeo de imagem como a imitaccedilatildeo (κηκήζηο)

do inteligiacutevel que parece se completar apoacutes a introduccedilatildeo da ideia (Rep 510b4)

Haja vista que a imitaccedilatildeo consiste na semelhanccedila de um original na imagem

derivada de um objeto vale verificar tal definiccedilatildeo agrave luz dos objetos inteligiacuteveis que por

serem tais apresentam-se em sua realidade inteligiacutevel diferentemente dos objetos das

outras seccedilotildees da linha Dito ser a imagem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel tem-se duas

consequecircncias para a relaccedilatildeo que se estabelece entre os objetos das seccedilotildees A primeira

diz respeito ao tipo de relaccedilatildeo que vista nestes termos sugere 1) que todos os objetos

satildeo relacionados entre si o de menor grau de clareza constituindo a imitaccedilatildeo do objeto

da seccedilatildeo subsequente de maior grau e 2) os objetos de todas as seccedilotildees estatildeo

relacionados agrave ideia objeto inteligiacutevel do niacutevel mais alto Em termos mais explicativos

as imagens satildeo imitaccedilotildees dos objetos fiacutesicos os objetos fiacutesicos por sua vez satildeo

imitaccedilotildees das ideias inteligiacuteveis as quais aparecem na matemaacutetica como conceitos Da

mesma maneira as imagens por imitarem os objetos sensiacuteveis e esses por sua vez ao

constituiacuterem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel revelam que os objetos de todos os niacuteveis satildeo

derivados do inteligiacutevel e recebem por conta disso a realidade Tal encadeamento ao

mesmo tempo em que coloca o inteligiacutevel como causa dos objetos sensiacuteveis confere ao

sensiacutevel a condiccedilatildeo de reflexo do inteligiacutevel

Essa anaacutelise tem consequecircncias importantes A primeira consiste na explicaccedilatildeo

em certa medida da diferenciaccedilatildeo de grau de conhecimento da realidade e o grau de

manifestaccedilatildeo desta realidade entre os objetos de cada seccedilatildeo e entre os domiacutenios A

segunda na evidente intenccedilatildeo da linha em mostrar a importacircncia do meacutetodo e por

consequecircncia a especificidade de cada operaccedilatildeo cognitiva O conhecimento a partir dos

objetos do sensiacutevel se exclui agrave medida que eles consistem na imagem de outros que

podem ser tambeacutem reflexos onde se tem entatildeo as duas situaccedilotildees a coacutepia do inteligiacutevel

e a coacutepia da coacutepia Assim a realidade tal como manifesta o domiacutenio sensiacutevel natildeo pode

ser via para o conhecimento porque todo ele eacute uma coacutepia uma imagem do domiacutenio

inteligiacutevel sendo pertinente considerar a realidade nessa seccedilatildeo somente do aspecto da

existecircncia Pelo que se vecirc os conceitos geomeacutetricos tratam de inteligiacuteveis com

determinadas caracteriacutesticas que permitem dar tratamento inteligente ao sensiacutevel mas

sobre as quais os geocircmetras natildeo investigam devidamente ou seja natildeo as apreende em

81

seu fundamento A realidade dos seres matemaacuteticos permanece preservada na penuacuteltima

seccedilatildeo da linha e o que coloca os conceitos da geometria em penuacuteltima posiccedilatildeo parece

ser na verdade o meacutetodo de apreensatildeo que aiacute se apresenta

Tal compreensatildeo eacute importante para o propoacutesito de uma pesquisa que versa sobre

o pensamento Ao ter as duas primeiras seccedilotildees como preacircmbulo para a elucidaccedilatildeo de

um domiacutenio inteligiacutevel e de um meacutetodo para a apreensatildeo dessa inteligibilidade as duas

uacuteltimas seccedilotildees se mostram o alvo da verdadeira questatildeo da linha dividida mostrar qual

eacute o verdadeiro objeto a ser conhecido as ideias e a forma de apreendecirc-lo Uma vez que

constituem os objetos no inteligiacutevel as ideias matemaacuteticas satildeo iguais agraves ideias da

dialeacutetica no que diz respeito agrave realidade mas aparecem de maneira desigual no que se

refere ao meacutetodo Isso explica provavelmente porque a partir da terceira parte da linha

se faz referecircncia ao meacutetodo natildeo havendo concomitantemente uma comparaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos com as ideias da uacuteltima seccedilatildeo como acontecia entre imagem e

objeto original nas duas primeiras partes No inteligiacutevel o foco se volta para a operaccedilatildeo

da alma dito raciociacutenio e inteligecircncia respectivamente expressos pelo meacutetodo

demonstrativo e dialeacutetico Nesse sentido os termos potecircncia dialeacutetica e ter inteligecircncia

se justificam dado que estatildeo em relevo os modos de atuaccedilatildeo da alma e as condiccedilotildees

para o conhecimento nas operaccedilotildees que exprimem os meacutetodos Assim ao apreender as

ideias o meacutetodo dialeacutetico apreende a realidade enquanto os matemaacuteticos mesmo

lidando com elas natildeo as compreendem em sua realidade

Outra distinccedilatildeo do tipo de abordagem e uso das ideias que o dialeacutetico realiza em

comparaccedilatildeo ao geocircmetra estaacute na descida ou melhor na finalizaccedilatildeo do processo Por

apreender as ideias o dialeacutetico se mostra capaz de utilizaacute-las como referecircncia em uma

inquiriccedilatildeo ou seja capaz de abordar o objeto em questatildeo tendo em vista o seu

fundamento inteligiacutevel a ideia que lhe confere realidade Ao compreender este

fundamento o dialeacutetico mostra que compreende a realidade da ideia ou seja mostra

que reconhece o que eacute verdadeiro acerca do objeto em questatildeo Todo este movimento

que remonta a cogniccedilatildeo eacute dito ter inteligecircncia e eacute nesse sentido que a conhecimento que

acompanha a dialeacutetica deve ser compreendida como o conhecimento do verdadeiro

fundamento da ideia que embasa os objetos Em outras palavras conhecer a ideia eacute ao

mesmo tempo apreender a realidade e a verdade do termo em questatildeo

A partir da compreensatildeo do meacutetodo dialeacutetico se pode iniciar uma caracterizaccedilatildeo

da λόεζηϛ o processo cognitivo de apreensatildeo da ideia proacuteprio do meacutetodo dialeacutetico

Tem-se assim as seguintes caracteriacutesticas 1) realiza dois movimentos a) ascese

82

superaccedilatildeo das hipoacuteteses b) descida averiguaccedilatildeo das hipoacuteteses a partir do princiacutepio e

conclusatildeo 2) apreende a realidade inteligiacutevel que se diz ldquoo ser inteligiacutevelrdquo e ldquoideiardquo

(ηὸ ὄληνο εἴδε) 3) utiliza a ideia como princiacutepio 4) eacute promovida pela potecircncia

dialeacutetica da razatildeo (ιόγνο) Diferentemente do raciociacutenio a inteligecircncia opera a partir e

exclusivamente com elementos inteligiacuteveis sendo tal procedimento referido nos termos

da contemplaccedilatildeo54

Ter inteligecircncia e contemplar se referem a esta apreensatildeo no mais

alto grau conferindo agrave δηάλνηα assim a posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a δόμα e o λνῦο55

Tem-se desse modo a posiccedilatildeo dos meacutetodos situados segundo a divisatildeo da linha

dividida Cada meacutetodo mostra uma capacidade de apreensatildeo que oferece o

conhecimento de determinada perspectiva ou como jaacute referido antes em algum grau

Parece claro que a cogniccedilatildeo estaacute subordinada em certa medida ao objeto que o meacutetodo

tem em vista e que esse uacuteltimo seraacute o responsaacutevel por apreendecirc-lo Em outras palavras

do meacutetodo depende a cogniccedilatildeo pois a partir dele seraacute dada ou natildeo a perspectiva e a

operaccedilatildeo inteligente Deve-se notar antes de maiores conclusotildees sobre a λόεζηϛ e

mesmo sobre a δηάλνηα que a passagem 511c3-d6 termina por classificar tais operaccedilotildees

dadas pelo meacutetodo como disposiccedilotildees ἕμηο Tal maneira de se referir ao fazer da

geometria e indiretamente da inteligecircncia supotildee uma condiccedilatildeo permanente um estado

que oferece condiccedilotildees de proceder segundo mostrou cada meacutetodo Vale assim verificar

a partir do livro VII o significado desta elevaccedilatildeo do pensamento e acompanhar os

passos dessa ascese intelectual Do mesmo modo verificar as consequecircncias cognitivas

e morais que formam o caraacuteter do filoacutesofo

54 Rep 511c5-7 ldquoQueres determinar que o conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da

dialeacutetica eacute mais claro () e os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o

pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ

ζεσξνύκελνλ ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη)rdquo

55 Rep 511d4 ldquoParece-me que chamas pensamento a disposiccedilatildeo dos que estudam geometria e ciecircncias

afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo inteligecircncia jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a

opiniatildeo e a inteligecircncia (δηάλνηαλ δὲ θαιεῖλ κνη δνθεῖο ηὴλ ηῶλ γεσκεηξηθῶλ ηε θαὶ ηὴλ ηῶλ ηνηνύησλ

ἕμηλ ἀιι νὐ λνῦλ ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ νὖζαλ)rdquo Note-se a ediccedilatildeo brasileira traduz

δηάλνηα por ldquociecircnciardquo termo que para os propoacutesitos de nossa anaacutelise natildeo parece o mais adequado A

ediccedilatildeo inglesa prefere ldquoentendimentordquo (understanding) traduccedilatildeo que tambeacutem natildeo eacute afim embora

evidentemente correta com o aspecto ativo-passivo do pensamento tal como se tem analisado na linha

Uma sugestatildeo de traduccedilatildeo de acordo com o que pretende por em relevo nesse trabalho seria ldquoA mim

pareces chamar raciociacutenio a disposiccedilatildeo dos geocircmetras e de estudos desse tipo mas natildeo inteligecircncia sendo

o raciociacutenio algo intermediaacuterio entre a opiniatildeo e a inteligecircnciardquo Trabattoni comenta sobre os a

dificuldade de atribuir um sentido e uma traduccedilatildeo riacutegida aos quatro estados citados na linha e em resumo

acerca da diaacutenoia afirma que o texto natildeo autoriza uma traduccedilatildeo por ldquoconhecimento discursivordquo Conf

Trabattoni F op cit p 158

83

33 A funccedilatildeo da dialeacutetica

Referidos como ldquopoucosrdquo (ηηλεο ὀιίγνη Rep 531e2) denotando assim o

aspecto incomum de tal capacidade intelectiva (Rep 531e2) o que o texto mostra sobre

os filoacutesofos agora ditos dialeacuteticos no livro VII e sobre a dialeacutetica termina por explicar a

relaccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel e as significativas diferenccedilas acerca dos meacutetodos das

disciplinas Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico inicia no livro VII

anunciando duas das caracteriacutesticas do seu procedimento reconhecer traccedilos inteligiacuteveis

comuns entre os objetos que se analisa (Rep 531d1-2) e dar e receber ιόγνϛ (Rep

531e4-5)

ldquo- Entatildeo Glaucon falei essa jaacute eacute a proacutepria melodia que a

dialeacutetica executa Essa melodia embora soacute a razatildeo possa apreendecirc-

la seria imitada pela faculdade da visatildeo (νὗηνο ἤδε αὐηόο ἐζηηλ ὁ

λόκνο ὃλ ηὸ δηαιέγεζζαη πεξαίλεη ὃλ θαὶ ὄληα λνεηὸλ κηκνῖη ἂλ ἡ ηο

ὄςεσο δύλακηο) que diziacuteamos tenta lanccedilar seu olhar para os

animais para os astros e por fim ao proacuteprio sol (πξὸο αὐηὸλ ηὸλ

ἥιηνλ) Assim tambeacutem quando apenas com a dialeacutetica sem contar

com todos os sentidos algueacutem tentar lanccedilar-se por meio da razatildeo

em busca da essecircncia de cada coisa (νὕησ θαὶ ὅηαλ ηηο ηῷ

δηαιέγεζζαη ἐπηρεηξῆ ἄλεπ παζῶλ ηῶλ αἰζζήζεσλ δηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐπ

αὐηὸ ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ ) e natildeo desiste antes que apreenda soacute pela

inteligecircncia o que eacute o proacuteprio bem (ἂλ θαὶ κὴ ἀπνζηῆ πξὶλ ἂλ αὐηὸ ὃ

ἔζηηλ ἀγαζὸλ αὐηῆ λνήζεη ιάβῃ) ele chega ao limite do inteligiacutevel

como naquele momento aquele outro chegava ao limite do visiacutevel (ἐπ

αὐηῷ γίγλεηαη ηῷ ηνῦ λνεηνῦ ηέιεη ὥζπεξ ἐθεῖλνο ηόηε ἐπὶ ηῷ ηνῦ

ὁξαηνῦ)rdquo (Rep 532a1-b1)

Vaacuterios satildeo os aspectos que se pode analisar acerca do perfil dos dialeacuteticos e por

consequecircncia da proacutepria λόεζηϛ a partir desse argumento Deve-se dar atenccedilatildeo

primeiramente ao modo como eacute posta a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel segundo a

explicaccedilatildeo acerca da capacidade de apreensatildeo do inteligiacutevel pela dialeacutetica (ηὸ

δηαιέγεζζαη δηαιεθηηθή) e da sua independecircncia em relaccedilatildeo ao sensiacutevel Sem recorrer

aos dados da sensibilidade o dialeacutetico apreende o ser do objeto examinado atraveacutes da

razatildeo utilizando-se apenas da faculdade inteligiacutevel a λόεζηϛ Os oacutergatildeos da

sensibilidade e o visiacutevel tecircm notavelmente sua atuaccedilatildeo definida como imitaccedilatildeo da

inteligecircncia e do inteligiacutevel sendo ao que tudo indica uma coacutepia do modus operandi

do domiacutenio real - tal como foi dito ser o caso das imagens no livro VI atraveacutes das quais

84

se verificou que os objetos do niacutevel mais baixo constituiacuteam uma imitaccedilatildeo dos objetos do

niacutevel superior (Rep 510b4) Desta vez o plano inteligiacutevel eacute dado explicitamente como

referecircncia para o visiacutevel cuja relaccedilatildeo o dialeacutetico eacute capaz de reconhecer A perspectiva

do dialeacutetico ao lanccedilar o olhar para o sensiacutevel eacute diferente dos demais por conseguir

distinguir e situar devidamente os dois planos ao ter em vista do conhecimento da ideia

do bem Ele estaacute livre de cometer o equiacutevoco dos demais por buscar sempre o

inteligiacutevel mesmo quando se volta para o que eacute da ordem do visiacutevel A elevaccedilatildeo do

sensiacutevel exige pelo que se observa o reconhecimento do inteligiacutevel no que eacute visiacutevel

sendo indispensaacutevel para isso o exerciacutecio intelectual que as matemaacuteticas oferecem

cujos objetivos versam mais uma vez sobre ldquo() elevar a melhor parte da alma (νῦ

βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ) ateacute a contemplaccedilatildeo do que haacute de excelente nos seres (ηνῦ ἀξίζηνπ ἐλ

ηνῖο νὖζη) ()rdquo (Rep 532c3-6)

Assim a passagem do plano visiacutevel na direccedilatildeo do ponto mais alto do inteligiacutevel

tal como explora na alegoria da caverna recebe com esta nova exposiccedilatildeo do exerciacutecio

dialeacutetico uma elucidativa explicaccedilatildeo nos termos ontoloacutegicos suscitados no argumento

acerca das matemaacuteticas Uma vez que se tem como procedimento ldquo() olhar para as

imagens divinas na aacutegua e para as sombras dos seres (πξὸο δὲ ηὰ ἐλ ὕδαζη θαληάζκαηα

ζεῖα θαὶ ζθηὰο ηῶλ ὄλησλ) mas natildeo para as sombras das figuras (εἰδώισλ ζθηὰο)

projetadas por essa outra luz ()rdquo (Rep 532c1-2) cabe analisar a presenccedila do

inteligiacutevel no visiacutevel tal como o texto apresenta

Todavia antes de verificar este dado vale examinar acerca da dialeacutetica O texto

descreve a potecircncia dialeacutetica (ὁ ηξόπνο ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη δπλάκεσο Rep532d8) no

que se refere ao seu gecircnero e percurso Na condiccedilatildeo de etapa final do processo de

ascensatildeo conduz para o fim e para o repouso56

Do mesmo modo constitui o estaacutegio do

pensamento no qual se apreende natildeo mais as imagens reflexo do inteligiacutevel mas a

verdade ou seja uma caracteriacutestica inteligiacutevel na ordem visiacutevel (Rep 533a2-3) A

apreensatildeo do ser (πέξη ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ Rep 533b1) consiste na caracteriacutestica exclusiva

da dialeacutetica tendo as outras disciplinas como se viu outros objetivos e portanto outro

grau de apreensatildeo

ldquo- Isso pelo menos disse eu ningueacutem nos contestaraacute se dissermos

que nenhum outro meacutetodo tenta sistematicamente apreender em cada

56 Rep 532e3 ldquoEsses caminhos ao que parece jaacute estariam conduzindo para o lugar onde algueacutem laacute

chegado acharia o repouso da viagem e o teacutermino da caminhada (ὁδνῦ ἀλάπαπια ἂλ εἴε θαὶ ηέινο ηο

πνξείαο)rdquo

85

coisa o que ela eacute Ao contraacuterio todas as outras artes se referem a

opiniotildees e desejos dos homens ou estatildeo todas elas voltadas para

processos de geraccedilatildeo ou composiccedilatildeo ou para cuidados com produtos

naturais ou artificiais (ἄιιαη πᾶζαη ηέρλαη ἢ πξὸο δόμαο ἀλζξώπσλ

θαὶ ἐπηζπκίαο εἰζὶλ ἢ πξὸο γελέζεηο ηε θαὶ ζπλζέζεηο ἢ πξὸο

ζεξαπείαλ ηῶλ θπνκέλσλ ηε θαὶ ζπληηζεκέλσλ ἅπαζαη ηεηξάθαηαη)

Quanto agraves restantes as que segundo afirmamos apreendem algo do

ser (ἃο ηνῦ ὄληνο ηη ἔθακελ ἐπηιακβάλεζζαη) isto eacute a geometria e as

que dela derivam vemos que elas sonham com o ser mas despertas

natildeo lhes eacute possiacutevel vecirc-lo enquanto usando hipoacuteteses deixam-no

intocado porque satildeo incapazes de prestar contas sobre elas (ὡο

ὀλεηξώηηνπζη κὲλ πεξὶ ηὸ ὄλ ὕπαξ δὲ ἀδύλαηνλ αὐηαῖο ἰδεῖλ ἕσο ἂλ

ὑπνζέζεζη ρξώκελαη ηαύηαο ἀθηλήηνπο ἐῶζη κὴ δπλάκελαη ιόγνλ

δηδόλαη αὐηῶλ) Quando se tem como princiacutepio (ἀξρὴ) aquilo que se

desconhece e o fim e o meio estatildeo entretecidos com o que se

desconhece que expediente haveria para que tal acordo um dia viesse

a tornar-se ciecircncia

- Nenhum disse elerdquo (Rep 533b-c5)

Apreender apenas algo do ser (ηνῦ ὄληνο ηη) e a incapacidade de dar a razatildeo

(ιόγνλ δηδόλαη) do que se apreende demonstram a impotencialidade cognitiva das outras

disciplinas aqui referidas como ηέρλαη Tal incapacidade eacute atribuiacuteda ao uso equivocado

das hipoacuteteses como se viu tendo-se por consequecircncia apenas uma apreensatildeo parcial

do ser Este ldquoalgo do serrdquo ao que tudo indica refere-se aos nuacutemeros conceitos e

relaccedilotildees que as matemaacuteticas apreendem mas que por essas natildeo terem em vista o

princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico tomam apenas algumas caracteriacutesticas dos objetos

examinados Sendo impossiacutevel para elas reconhecer integralmente o que eacute cada coisa

natildeo alcanccedilam o ser Ao natildeo atingirem o ser natildeo satildeo capazes de dar a razatildeo delas isto eacute

de reconhecer e expor de maneira igualmente racional as relaccedilotildees inteligiacuteveis que dizem

respeito a dado objeto uma vez que o meacutetodo estaacute comprometido ao natildeo reconhecer o

princiacutepio (Rep 533c2-5)

Tal como sugerem as uacuteltimas linhas do excerto nas quais se verifica a falta de

clareza acerca das etapas do meacutetodo da geometria o encadeamento racional que o

meacutetodo deve realizar na cogniccedilatildeo natildeo pode ser remontado por aquele que natildeo conheceu

o princiacutepio Dar explicaccedilatildeo se efetua adequadamente quando o encadeamento

(ζπκπιέθσ) das etapas do processo de cogniccedilatildeo acerca de algo leva ao conhecimento da

essecircncia e assim ambos ser e meacutetodos podem ser expostos em uma explanaccedilatildeo pois

se tem uma perspectiva da totalidade (ζπλνπηηθόο) do que se examina (Rep 537c6-7)

Em outros termos dada a apreensatildeo do ser eacute possiacutevel reconstituir a ordem das relaccedilotildees

que se estabelece ao longo deste processo cognitivo que conduziu agrave essecircncia pois se

86

tem nele o princiacutepio a partir do qual se constitui o conhecimento (ἐπηζηήκε) de algo

Diante disso implicados o fim e o intermezzo do processo com o princiacutepio a apreensatildeo

do princiacutepio determina a orientaccedilatildeo nessas etapas e os resultados O conhecimento do

ser se mostra portanto indispensaacutevel para ter um conhecimento no niacutevel da ἐπηζηήκε e

ao mesmo tempo ser capaz de dar a explicaccedilatildeo a demonstraccedilatildeo desse conhecimento

Somente o dialeacutetico portanto pode demonstrar tal conhecimento e realizar em

um sentido inverso o qual tem em vista a ideia uma apreensatildeo atraveacutes da razatildeo (δηὰ

ηνῦ ιόγνπ) diferentemente dos matemaacuteticos cujo meacutetodo natildeo demonstra o ser mas as

hipoacuteteses das quais partiram

O uso das hipoacuteteses ao modo matemaacutetico natildeo visa superar a forma axiomaacutetica

com que utiliza os elementos e os preceitos ndash a exemplo do que se averiguou no

argumento acerca dos nuacutemeros - diferentemente da ascensatildeo dialeacutetica que ultrapassa

este niacutevel ao colocaacute-los em questatildeo buscando seu fundamento O fundamento a

essecircncia do que se investiga eacute ao mesmo tempo dado na explicaccedilatildeo agrave medida que se

tem a reconstituiccedilatildeo de sua apreensatildeo na dialeacutetica visto que aiacute natildeo se confunde ser com

hipoacutetese O dialeacutetico sabe identificar hipoacutetese e essecircncia dando a cada uma a posiccedilatildeo

que lhe cabe dentro do meacutetodo57

e portanto a ordem para tal reconstituiccedilatildeo racional

como parece constituir o ιόγνο segundo este argumento

ldquo- Entatildeo disse eu soacute o meacutetodo dialeacutetico eliminando as

hipoacuteteses caminha por aiacute na direccedilatildeo do proacuteprio princiacutepio a fim de

dar firmeza aos resultados e realmente pouco a pouco vai

arrastando e levando para o alto o olho da alma que estaacute enterrado

57 Para tornar mais claro o que se propotildee acerca do discernimento do dialeacutetico vale trazer a

diferenciaccedilatildeo que Chen apresenta sobre hipoacuteteses matemaacuteticas e o natildeo-hipoteacutetico no interior do

argumento sobre a visatildeo do todo Ao considerar as hipoacuteteses matemaacuteticas como um ponto de partida para

a transposiccedilatildeo da penuacuteltima etapa e para a ascensatildeo agrave visatildeo do bem o autor apresenta o que entende ser

as razotildees para que isso se ocorra ldquoNo primeiro caso por conta de sua caracteriacutestica essencial de ser

hipoteacutetico no segundo dada a sua propriedade comum de ser semelhante ao bem Como premissas elas

estatildeo relacionadas agrave ideia do bem como hipoacuteteses para um anhypotheton Ser anhypotheton eacute somente um

dos aspectos da ideia como o princiacutepio do todo a visatildeo dela nesse aspecto natildeo mostra sua completa

natureza Mas como eles tambeacutem tecircm a propriedade de ser semelhante ao bem (good-like) assim como os

casos do bem que o acompanham (fellow-instances) fazem veem juntas estas hipoacuteteses neste aspecto e os

casos do bem que o acompanham e desse modo terminaria na visatildeo desta ideia em todos os seus

aspectosrdquo Chen op cit p 172 A visatildeo do todo se deve segundo o autor agrave semelhanccedila do que eacute derivado

do bem e agraves hipoacuteteses que conduzem agrave hipoacutetese maior Postas como premissas em contraste com o natildeo-

hipoteacutetico ver as hipoacuteteses em conjunto como faz o dialeacutetico faz identificar a relaccedilatildeo delas com o bem

conduzindo a alma a visatildeo dele Esse discernimento do dialeacutetico tal como explica Chen mostra a

capacidade de superaccedilatildeo das hipoacuteteses ao vecirc-las no seu fundamento inteligiacutevel o que conforme tem sido

analisado eacute dado exclusivamente pela apreensatildeo do traccedilo inteligiacutevel que exprime a relaccedilatildeo do objeto em

questatildeo com o bem Embora o comentaacuterio ofereccedila a ideia de que a visatildeo do todo se daacute a partir de uma

visatildeo de conjunto os exames feitos ateacute aqui apontam muito mais para um equacionamento no qual se

apreende o inteligiacutevel do que para um apanhado de hipoacuteteses o que ficaraacute mais claro na anaacutelise acerca da

ζύλνςηο

87

em um pacircntano baacuterbaro tendo como colaboradoras e auxiliares

nessa conversatildeo as artes de que falamos Muitas vezes por haacutebito as

chamamos de ciecircncia mas carecem de outro nome que seja mais

niacutetido que o de opiniatildeo e mais impreciso que o de ciecircncia jaacute a

definimos como pensamento (δηάλνηαλ δὲ αὐηὴλ ἔλ γε ηῷ πξόζζελ πνπ

ὡξηζάκεζα) numa passagem anterior de nossa discussatildeo Natildeo se

trata poreacutem parece-me de uma disputa sobre um nome mas do

exame de questotildees tatildeo importantes quanto as que temos diante de noacutes

- Natildeo se trata disse [Basta-nos um nome que faccedila ver claramente

nosso pensamento (Ἀιι ὃ ἂλ κόλνλ δεινῖ πσο ηὴλ ἕμηλ ζαθελείᾳ

ιέγεηλ ἐλ ςπρῆ ltἀξθέζεη)]rdquo (Rep534c7-e6)

Conveacutem notar desse modo que o uso do ιόγνο aparece nesse argumento como

um procedimento formal do conhecimento o qual descreve formalmente os

movimentos da aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε pelo meacutetodo dialeacutetico58

O ιόγνο cabe reparar eacute

dado na medida em que acompanha a aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja constitui-se

como forma que expressa a coerecircncia do pensar na operaccedilatildeo dialeacutetica sendo

dependente portanto da apreensatildeo do fundamento natildeo-hipoteacutetico para ser enquanto tal

Sem a atividade entre ideias natildeo se chega agrave ideia do bem e por consequecircncia natildeo se

tem um ιόγνο que por natildeo ser coerente com ela seja capaz de dizecirc-la Desse modo um

exame acerca da racionalidade em seus vaacuterios niacuteveis procedimentos uacuteteis para o

conhecimento e alcance cognitivo satildeo indispensaacuteveis uma vez que se reconhece aiacute que

a forma loacutegica estaacute condicionada ao seu objeto maior e natildeo o contraacuterio Tem-se com as

explanaccedilotildees acerca da dialeacutetica uma definiccedilatildeo de ιόγνο filosoacutefico distinto dos demais

por meio do qual satildeo expostas as operaccedilotildees no alto niacutevel de cogniccedilatildeo e portanto o

conhecimento segundo a filosofia59

58 Chen compreende igualmente o papel do ιόγνο ao dizer Correspondente agrave λνήζηϛ nesses dois

sentidos [ἐπηζηήκε e γλῶζηο] estatildeo dois aspectos da dialeacutetica dinacircmico e estaacutetico Tanto o exerciacutecio da

δύλακηο noeacutetica resulta no estado noeacutetico (γλῶζηο) quanto o exerciacutecio da δύλακηο ηνῦ δηαιέγεζζαη resulta

na ἐπηζηήκε ηνῦ δηαιέγεζζαη Dialeacutetica no seu aspecto estaacutetico eacute o sistema de tal conhecimento Dialeacutetica

no seu aspecto dinacircmico tem duas formas raciociacutenio e ζύλνςηο da qual resulta no conhecimento

dialeacutetico Chen op cit 1992 p 164 nota 10

59 As palavras de Chen elucidam a concepccedilatildeo de razatildeo segundo a filosofia que se pretende explicar ldquoSer

conhecimento natildeo deve apenas cumprir a exigecircncia de uma consistecircncia loacutegica deve tambeacutem indicar seu

referente como referente em sua realidaderdquo O que o autor chama de consistecircncia loacutegica vale dizer diz

respeito agrave conformidade da estrutura do argumento com seu referente o que foi notado aqui como

coerecircncia entre ser e explicaccedilatildeo Ele admite a partir de 533e que a conclusatildeo de um raciociacutenio

logicamente consistente pode carecer de seu referente o que natildeo constituiria uma ἐπηζηήκε de fato Sem

entrar em detalhes como uma estrutura se mostraria logicamente consistente nessas condiccedilotildees o que natildeo

eacute posto em questatildeo pelo texto importa ressaltar a importacircncia da definiccedilatildeo de ιόγνο que se daacute no final do

Livro VII para mostrar a noccedilatildeo de conhecimento que se defende a visatildeo do ser e da ideia possiacutevel

somente pela atividade Inteligente Natildeo se trata portanto de um aparato loacutegico de manuseio do discurso

semelhante agrave retoacuterica ou eriacutestica mas de uma sofisticaccedilatildeo no uso do ιόγνο que sirva para os propoacutesitos

epistecircmicos do filoacutesofo governante Chen op cit 1992 p 168 nota 3

88

Essa perspectiva confirma a distinccedilatildeo e a classificaccedilatildeo tal como mostrou a linha

dividida O que segue mostra os estados da alma os graus de cogniccedilatildeo e de suas

respectivas distinccedilotildees como vaacutelidas para uma compreensatildeo do que possa ser um estado

de clareza na alma60

A superaccedilatildeo filosoacutefica que se daacute na dialeacutetica narra natildeo se pode

perder de vista um refinamento da alma operada pelos modos inteligentes do

pensamento tal como mostrou a linha dividida e se analisaraacute com mais detalhes na

narrativa da caverna A investigaccedilatildeo dos argumentos vista nos Livros VI e VII tem em

perspectiva assim a elevaccedilatildeo inteligente que resulta no conhecimento e nas virtudes a

qual agora eacute dita pode-se compreender uma clareza nas accedilotildees da alma Tal clareza

envolve portanto operaccedilotildees gnosioloacutegicas as quais funcionam como exerciacutecio por

meio das artes matemaacuteticas para uma efetiva elevaccedilatildeo da alma Coerente com o que eacute

dito em 511c a ἕμηο dada nos termos de uma disposiccedilatildeo um estado permanente da alma

quer do geocircmetra quer do dialeacutetico tem evidenciado o grau de apreensatildeo com o qual a

alma opera segundo o meacutetodo que utiliza e do mesmo modo a clareza que tecircm acerca

dos objetos que examina Nesse sentido observe-se ao mesmo tempo o limite cognitivo

das artes matemaacuteticas justificando sua posiccedilatildeo intermediaacuteria dentre as atividades que

ascende ao conhecimento

Os esclarecimentos que se obteacutem com a explanaccedilatildeo sobre a dialeacutetica e sobre seu

meacutetodo (Rep 533e7-534a8) corroboram as acepccedilotildees sobre as atividades da alma

descritas na analogia da linha Compreendido que o dialeacutetico eacute o uacutenico capaz de

apreender a essecircncia e prestar contas sobre ela o que demonstra seu estado de λνῦο

(Rep 534b) fica evidente sua capacidade para falar sobre o bem e se torna

inegavelmente aceita a sua distinccedilatildeo intelectual e poliacutetica cuja conduta cientificista

pautada no conhecimento da ideia do bem deve servir de paracircmetro no ensino Note-se

que a postura do dialeacutetico frente a busca do bem eacute pautada no que o meacutetodo indica

deixando clara a relaccedilatildeo entre exerciacutecio intelectual o meacutetodo e a apreensatildeo dos

direcionamentos para a praacutetica poliacutetica que se realiza na experiecircncia do pensamento

ldquo-Entatildeo acontece o mesmo a respeito do bem se algueacutem natildeo for

capaz de definir pela razatildeo a ideia do bem distinguindo-a de todas as

outras e como num combate passando atraveacutes de todas as objeccedilotildees

natildeo estiver disposto a natildeo refutaacute-las segundo a opiniatildeo mas segundo

a essecircncia (κὴ θαηὰ δόμαλ ἀιιὰ θαη νὐζίαλ πξνζπκνύκελνο

60 Rep 534e2 ldquoἕμηλ ζαθελείᾳ ιέγεηλ ἐλ ςπρῆrdquo a traduccedilatildeo da ediccedilatildeo inglesa privilegia esse mesmo

sentido que se atribui agrave frase ldquo()[ provided only that it states what corresponds to the state of clarity in

the soul]rdquo ndashEmlyn-Jones e Preddy op cit p 177

89

ἐιέγρεηλ) natildeo atravessar todas essas dificuldades com uma razatildeo

inabalaacutevel (ἐλ πᾶζη ηνύηνηο ἀπηῶηη ηῷ ιόγῳ δηαπνξεύεηαη) se for essa

a postura dele natildeo afirmaraacutes que ele natildeo conhece nem o proacuteprio bem

nem algum outro bem Mas se apreende uma imagem do bem eacute pela

opiniatildeo que a apreende natildeo pela ciecircncia (ἀιι εἴ πῃ εἰδώινπ ηηλὸο

ἐθάπηεηαη δόμῃ νὐθ ἐπηζηήκῃ ἐθάπηεζζαη) e a vida de agora passa-

a sonhando e cochilando sem despertar antes de chegar ao Hades e

laacute dormir completamenterdquo (Rep 534b8-d1)

De posse da inteligecircncia o dialeacutetico tem condiccedilotildees de cumprir os dois

movimentos que o filoacutesofo governante deve realizar ascender e com isso apreender a

ideia do bem e descer ao niacutevel comum ao plano da opiniatildeo e da ignoracircncia

analogamente o das sombras para dizecirc-lo Assim parece se dar o desfecho acerca da

relaccedilatildeo da alma com as sensaccedilotildees no argumento que descreve a dialeacutetica O pensar

conforme mostra o meacutetodo dialeacutetico e a explicaccedilatildeo daacute-se mediante a habilidade de

reconhecer as relaccedilotildees inteligiacuteveis e operar atraveacutes de ideias quer no visiacutevel quer no

inteligiacutevel dado seu conhecimento do ser e da ideia do bem Tem-se definido com isso

o modo de operar e o niacutevel cognitivo da λόεζηϛ apoacutes as mesmas deifniccedilotildees sobre a

δηάλνηα como se viu no exame acerca das matemaacuteticas Da mesma maneira o texto

atribui o estatuto do λνῦο estado da alma em que se daacute o trabalho dialeacutetico o grau mais

elevado da cogniccedilatildeo que se pode ter sobre o bem

34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo

Para bem compreender o que se diz sobre a λόεζηϛ que aparece sugerida no

exerciacutecio de contemplaccedilatildeo da ideia do bem eacute necessaacuterio analisar o sentido de realidade

dos seres inteligiacuteveis e o fundamento natildeo-hipoteacutetico Vale remontar como esta questatildeo

foi introduzida no argumento da linha e como se deu a construccedilatildeo do sentido de

realidade inteligiacutevel tatildeo importante para especificar a operaccedilatildeo de apreensatildeo das ideias

que consiste no conhecimento e no contemplar ao modo dialeacutetico As primeiras

90

distinccedilotildees entre os domiacutenios feitas nos termos de niacutetido e natildeo niacutetido (ζαθελεία θαὶ

ἀζαθεία Rep 509d5) verdadeiro e natildeo verdadeiro (ἀιεζεία ηε θαὶ κή Rep 510a9)

que acompanham a divisatildeo visiacutevel-inteligiacutevel ganham explicaccedilotildees em termos

ontoloacutegicos com a noccedilatildeo de inteligibilidade do inteligiacutevel no seu expoente maior o

princiacutepio natildeo-hipoteacutetico Cabe notar que na exposiccedilatildeo do inteligiacutevel na seccedilatildeo que se

refere agrave geometria as noccedilotildees de princiacutepio e princiacutepio de tudo que exprime o

ἀλππνζέηνο parece ter sua funccedilatildeo latente antes de serem introduzidos o ser do

inteligiacutevel os objetos de contemplaccedilatildeo ndash(ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ ζεσξνύκελνλ) Ateacute

que sejam oferecidas algumas explicaccedilotildees sobre a realidade das ideias a noccedilatildeo de

princiacutepio natildeo tem o seu sentido completo pois natildeo recebe um parecer ontoloacutegico

condizente com a noccedilatildeo de fundamento que a criacutetica ao meacutetodo de demonstraccedilatildeo

sugere A noccedilatildeo de ἀξρή desvinculada da ideia natildeo eacute vista desse modo em sua

inteligibilidade ou seja em sua relaccedilatildeo com o inteligiacutevel dando margem a um tipo de

uso como se tem na geometria Dito de outro modo o princiacutepio de que fala a linha

consiste justamente nesta relaccedilatildeo que os conceitos possuem com o inteligiacutevel que

permite deste modo a cogniccedilatildeo Uma vez natildeo esclarecido o objeto fundador o

princiacutepio basilar dos conceitos que seraacute a ideia natildeo se pode conhecer o objeto em

questatildeo no seu aspecto inteligente Assim dito a cogniccedilatildeo consiste em ver do aspecto

inteligiacutevel oferecido pela ideia (εἴδε) tal como sugere a descida do dialeacutetico

Essa interpretaccedilatildeo parece afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo que o texto

apresenta ao definir a apreensatildeo de ideias como aquisiccedilatildeo inteligente (Rep 511c-d) O

contemplar a partir do meacutetodo dialeacutetico posiccedilatildeo maacutexima no alcance cognitivo consiste

em averiguar desta perspectiva especiacutefica das ideias que analisa o objeto em seu

aspecto inteligiacutevel ou seja em sua realidade A realidade exprime o ser inteligiacutevel dado

pela ideia que eacute visto claramente ou seja visto em sua realidade na contemplaccedilatildeo e

observado parcialmente no procedimento matemaacutetico Nesse sentido a criacutetica ao

meacutetodo demonstrativo mostra que eacute a perspectiva inteligiacutevel que se deve ter em vista

isto eacute a realidade atingiacutevel somente pela potecircncia do meacutetodo dialeacutetico e natildeo a

aparecircncia da realidade a exemplo do que se tem no sensiacutevel A verdade se refere a esta

realidade que exprime o ser inteligiacutevel e a clareza agrave capacidade de observaacute-la Note-se

que o apelo da perspectiva que exige o conhecimento define-se na medida em que

mostra a progressatildeo de uma seccedilatildeo a outra de um objeto a outro de uma perspectiva a

outra tal como se daacute na progressatildeo da hipoacutetese para a ideia da ideia para outras ideias

Ao chegar no niacutevel de clarividecircncia da realidade das ideias proacuteprio da contemplaccedilatildeo

91

chega-se ao princiacutepio dito tambeacutem o princiacutepio dos seres inteligiacuteveis - λνεηῶλ ὄλησλ

κεηὰ ἀξρο61

Examinar a partir do princiacutepio dessa articulaccedilatildeo com o inteligiacutevel

constitui a via para o conhecimento daquele que parece ser eleito o mais superior entre

todos o que a contemplaccedilatildeo mostra como o principio de tudo aquele que natildeo eacute posto

sob inspeccedilatildeo como uma hipoacutetese (ἀλππνζέηνο) visto que constitui o fundamento de

todas elas

O caraacuteter inteligente da λόεζηϛ se completa com tais elucidaccedilotildees sobre a

contemplaccedilatildeo Esta visatildeo do princiacutepio de tudo dado pelas ideias o qual natildeo se deve

perder de vista consiste tambeacutem em uma ideia a qual determina a perspectiva da

inteligecircncia que o conhecimento deve possuir Por outro lado a ascensatildeo a esse

princiacutepio de tudo e a investigaccedilatildeo a partir dele que se daacute no retorno do dialeacutetico mostra

o caraacuteter praacutetico da inteligecircncia e de todo o processo de cogniccedilatildeo no sentido de ser

conveniente a aplicaccedilatildeo dos termos em questatildeo Ascese e descida pelas ideias mostram

o movimento da inteligecircncia que tem como objetivo ver a realidade o ser em toda a sua

extensatildeo apreensiacutevel como fundamento de tudo e portanto como princiacutepio do

conhecimento

Natildeo se pode todavia deixar de fazer maiores questionamentos sobre o ser como

causa e o bem como causa de tudo tal como mostrou o encadeamento feito entre os

objetos das seccedilotildees da linha e a analogia do sol Na perspectiva do princiacutepio esta noccedilatildeo

de causa ganha o sentido de 1) origem de acordo com o que sugeriu a relaccedilatildeo original-

reflexo 2) referecircncia sugerida na perspectiva inferior das imagens 3) objeto real

conforme o que se viu na relaccedilatildeo original-reflexo e na exposiccedilatildeo sobre o inteligiacutevel As

trecircs acepccedilotildees que o ser e o bem assumem como princiacutepio mostra sob vaacuterios acircngulos o

ser que a ideia exprime Como origem ele confere existecircncia aos objetos que dele

derivam- outros objetos natildeo existiriam se natildeo o refletissem Desse modo assume a

condiccedilatildeo de referecircncia pois sendo a causa da existecircncia deve ser o objeto a ser

conhecido Ao ser o objeto do qual deriva todos os outros revela-se como o elemento

uacuteltimo e mais importante em uma cadeia de derivaccedilotildees sendo portanto o uacutenico objeto

real

Algumas conclusotildees parecem ser possiacuteveis sobre a cogniccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a

realidade do ser Em primeiro lugar com a linha didividida Platatildeo parece estar

61 Deve-se compreender λνεηῶλ ὄλησλ κεηὰ ἀξρο como a relaccedilatildeo que o dialeacutetico observa do princiacutepio

com o ser Tal sutileza nem sempre privilegiada pelas traduccedilotildees mostra o reconhecimento do princiacutepio

como a articulaccedilatildeo desta relaccedilatildeo e portanto ponto de partida para a cogniccedilatildeo Somente vinculado ao ser

se pode adquirir conhecimento o que mostra a importacircncia do ἐπ‟ ἀξρὴλ ζθνπεῖλ

92

interessado em afirmar o valor de realidade ou seja de inteligibilidade clareza e

verdade do ser os quais se mostram com as ideias no processo de cogniccedilatildeo Mostrar

esta perspectiva real ocircntica como o grau mais elevado (ἀλσηέξσ) pressupotildee um valor

neste contexto dito epistemoloacutegico e cognitivo Do mesmo modo tais atributos

conferidos agrave ideia objeto do pensamento confere valor ao que resulta dele o discurso

filosoacutefico A postura intelectualista do filoacutesofo e o seu governo adquirem valor desta

forma ao empreender o conhecimento desta realidade Nesse sentido a comparaccedilatildeo

com os geocircmetras constitui um exemplo bastante uacutetil A condiccedilatildeo de intermediaacuterio do

raciociacutenio natildeo possui o mesmo valor epistemoloacutegico e cognitivo no mesmo grau que a

inteligecircncia dialeacutetica uma vez que lhe escapa essa cadeia que mostra o ser como objeto

real Entretanto dado que as ideias matemaacuteticas possuem a mesma realidade que outras

seria razoaacutevel perguntar o que as coloca como intermediaacuterias O meacutetodo matemaacutetico e

os seus objetivos finais como visto Todavia possivelmente as qualidades que

apresentam as ideias da geometria devem justificar de algum modo a escolha de Platatildeo

em utilizar a matemaacutetica para contrapor aos dialeacuteticos

Haja vista a posiccedilatildeo e a importacircncia conferidas agrave ideia do bem para os

propoacutesitos poliacuteticos do filoacutesofo governante natildeo parece descabido questionar acerca das

matemaacuteticas se estas seriam igualmente adequadas para embasar os valores eacuteticos que o

filoacutesofo tem em mira uma vez que os inteligiacuteveis nas matemaacuteticas satildeo noccedilotildees que

permitem de acordo com a sua especificidade tratar o sensiacutevel Dito de outro modo o

conceito de iacutempar o par ou o quadrado dariam conta de originar outras ideias como a

ideia de justiccedila Ateacute aqui note-se que as ideias inteligiacuteveis do uacuteltimo niacutevel natildeo recebem

maiores especificaccedilotildees aleacutem das averiguadas seu grau maacuteximo de realidade apreensiacutevel

pela inteligecircncia Parece possiacutevel no entanto arriscar que existe uma diferenciaccedilatildeo

entre as ideias no que se refere agrave singularidade de cada uma como mostrou o exemplo

da geometria e que para os propoacutesitos poliacuteticos d‟A Repuacuteblica interessa uma divisatildeo e

um discernimento acerca das ideias que se pode alcanccedilar a partir de cada meacutetodo

dialeacutetico por ser possiacutevel reconhecer desse modo sua ligaccedilatildeo com o bem

93

IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento

Diante das especificaccedilotildees da atividade cognitiva conveacutem averiguar os resultados

desse empreendimento no que se refere agraves accedilotildees Desse modo os esclarecimentos sobre

as afecccedilotildees da alma no final do livro VI e os propoacutesitos e praacuteticas do pedagogo no livro

VII constituem um bom desfecho acerca do tema da excelecircncia do pensamento ao

apresentarem o percurso de sua aquisiccedilatildeo e o significado da superioridade da

inteligecircncia Parece necessaacuterio explicar como se concretizam os saberes adquiridos pelo

filoacutesofo e desse modo uma analogia que mostra a atividade racional do ponto de vista

do comportamento psiacutequico e da praacutetica da educaccedilatildeo parecem bastante uacuteteis Ver-se haacute

as tratativas da alma e os ganhos que ela tem com o exerciacutecio da filosofia como uma

resposta agrave frequentaccedilatildeo intelectual na realidade e na verdade dos inteligiacuteveis de modo a

deixar clara a caracteriacutestica ascendente do pensamento na condiccedilatildeo de inteligecircncia Do

mesmo modo no livro VII d‟ A Repuacuteblica se analisaraacute o pensar da perspectiva que

apresenta a cogniccedilatildeo e a ascensatildeo agrave condiccedilatildeo de excelecircncia nos termos de uma

experiecircncia Narrada na educaccedilatildeo do filoacutesofo tal enredo oferece uma visatildeo linear do

desenvolvimento da potecircncia intelectual e consequentemente da consumaccedilatildeo da

natureza filosoacutefica Eacute possiacutevel verificar os efeitos da relaccedilatildeo entre a alma e o inteligiacutevel

no empreendimento pedagoacutegico de modo a ter a λόεζηϛ como resultado da experiecircncia

de cogniccedilatildeo Assim a narrativa acerca da formaccedilatildeo do caraacuteter do filoacutesofo passa a

oferecer outros aspectos da aquisiccedilatildeo da inteligecircncia antes averiguada segundo o seu

meacutetodo e objeto especiacutefico

41 Operaccedilotildees e regras do pensamento

O discernimento que se teve ateacute o momento sobre o domiacutenio do pensamento e

seus meacutetodos distintos de cogniccedilatildeo seraacute visto agrave luz de quatro παζήκαηα quatro estados

da alma que como tais expressam as operaccedilotildees ou atividades intelectivas Tal

abordagem versa sobre o comportamento da alma segundo os graus de cogniccedilatildeo nos

quais os estados podem ser tomados em certa medida como indicadores da accedilatildeo do

intelecto

94

ldquo- Entendeste de modo mais que suficiente disse eu Agora agraves

quatro seccedilotildees se aplica os quatro estados da alma (θαί κνη ἐπὶ ηνῖο

ηέηηαξζη ηκήκαζη ηέηηαξα ηαῦηα παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ γηγλόκελα

ιαβέ) inteligecircncia agrave seccedilatildeo mais elevada pensamento agrave segunda

atribui agrave terceira nome de crenccedila e agrave ultima o de verossimilhanccedila

(λόεζηλ κὲλ ἐπὶ ηῷ ἀλσηάησ δηάλνηαλ δὲ ἐπὶ ηῷ δεπηέξῳ ηῷ ηξίηῳ δὲ

πίζηηλ ἀπόδνο θαὶ ηῷ ηειεπηαίῳ εἰθαζίαλ) e coloca-as numa ordem

em que teu criteacuterio (θαὶ ηάμνλ αὐηὰ ἀλὰ ιόγνλ) seja que quanto mais

os objetos participarem da verdade (ἀιεζείαο κεηέρεη) tanto mais

clareza (ζαθελείαο) teratildeo (Rep 511d9-e)

Depois de esclarecimentos acerca da capacidade cognitiva da alma ou seja apoacutes

verificar a sua potecircncia de apreensatildeo inteligente exequiacutevel pela dialeacutetica (Rep 511b3)

as divisotildees como παζήκαηα ganham apreciaccedilotildees segundo o alcance e a organizaccedilatildeo da

razatildeo (ἀλὰ ιόγνλ) Assim a classificaccedilatildeo das atividades na alma deve ser vista segundo

o que a razatildeo reconheceraacute como verdadeiro e claro ou seja segundo a relaccedilatildeo com o

ser agora dito participaccedilatildeo na verdade e na clareza Posta dessa maneira tal

organizaccedilatildeo enfatiza a aquisiccedilatildeo do ponto de vista da alma e natildeo somente do meacutetodo

no que se refere agraves qualidades do ser Nesse sentido as atividades da alma que satildeo da

ordem do intelecto e do juiacutezo devem ser observadas como as operaccedilotildees realizadas com

vistas agrave verdade e agrave clareza de acordo com determinado domiacutenio e niacutevel Analisadas

desta perspectiva torna-se possiacutevel compreender de que maneira as aquisiccedilotildees

intelectuais se concretizam de modo a constituiacuterem o norte para as accedilotildees poliacuteticas e uma

conduta como a do filoacutesofo

Para melhor compreender em que aspecto tal reclassificaccedilatildeo se mostra

importante vale se questionar acerca do sentido de παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ A rigor o

termo compreende o sentido de uma afecccedilatildeo estado ou condiccedilatildeo As trecircs concepccedilotildees

podem ser encontradas no texto no entanto ao que tudo indica interessa em pontuar o

sentido de afecccedilatildeo nos termos do resultado de determinadas atividades sobre as quais

pretende investigar a saber o que resulta de uma atividade cognitiva e preacute-cognitiva

intelecccedilatildeo e percepccedilatildeo sensiacutevel como parece apresentar respectivamente o domiacutenio do

inteligiacutevel e da opiniatildeo Vale reparar que ao nomear as operaccedilotildees segundo a divisatildeo da

linha o texto mostra a postura e o alcance intelectual da alma possiacutevel em cada domiacutenio

e desta perspectiva o παζήκαηα como um estado uma condiccedilatildeo da alma ao lidar com a

realidade ou a imagem dela A novidade desta classificaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos argumentos

anteriores estaacute em sugerir a esses estados diferenciaccedilotildees para investigar a partir destas

95

distinccedilotildees o trabalho intelectivo ou a atividade mental como desdobramentos da

interaccedilatildeo entre a alma e a realidade Parece razoaacutevel compreender que em tais estados

esteja envolvido um trabalho psiacutequico que corresponda de alguma forma aos diferentes

graus de conhecimento das realidades e que pode ser considerado assim o resultado e

desse modo a manifestaccedilatildeo do trabalho intelectivo em diferentes niacuteveis de intelecccedilatildeo

ou de modo mais geral o pensamento em seus variados modos de operar - afinal o que

justificaria tal distinccedilatildeo entre as atividades se natildeo argumentar acerca da distinccedilatildeo da

atividade da alma e as respostas psiacutequicas diante dos distintos niacuteveis de manifestaccedilotildees

da realidade do ser Cabe analisar as seccedilotildees nesta perspectiva

O domiacutenio da δόμα mostra dois tipos de παζήκαηα O primeiro considerado

mais inferior entre todos consiste na εἰθαζία no que resulta da apreensatildeo ao modo de

uma imagem que se daacute nos termos de uma conjectura das percepccedilotildees sensiacuteveis Esta

concatenaccedilatildeo a partir das aparecircncias que se tem na opiniatildeo natildeo consiste em uma

operaccedilatildeo cognitiva dado que parte de elementos incapazes de manifestar a realidade do

ser A partir do que se analisou tem-se aiacute a percepccedilatildeo no niacutevel mais elementar da

sensibilidade no qual se assimila somente os elementos sensiacuteveis do objeto sem ter

por isso nenhuma apreensatildeo do aspecto inteligiacutevel dele Provavelmente constitui uma

afecccedilatildeo na qual a alma ainda natildeo discerniu com categorias do conhecimento isto eacute

relativas ao ser como a verdade em seu teor inteligiacutevel sendo a atividade no primeiro

niacutevel da opiniatildeo onde os objetos percebidos satildeo vazios de conteuacutedo cognitivos62

Outro estado que compotildee o plano da opiniatildeo segundo na classificaccedilatildeo da linha

refere-se agrave πίζηηο a crenccedila no sentido da convicccedilatildeo acerca dos objetos do plano fiacutesico

os artefatos os animais e outros seres da natureza que manifestam um grau maior de

realidade por constituir um modelo para os reflexos e por isso ocupam um grau acima

na escala de superioridade em comparaccedilatildeo agrave imagem Nesse contexto a alma estaacute

convicta do que observa empiricamente e portanto sem ter diante do que observa uma

postura gnosioloacutegica pois ao contraacuterio cede (ἀπνδίδσκη) a esta convicccedilatildeo permanece

alheia agraves relaccedilotildees que o objeto possui com o inteligiacutevel e desse modo natildeo tem qualquer

apreensatildeo da realidade nem suspeitam da ausecircncia dela

62 Stocks define assim a eikasiacutea ldquoEikasiacutea estado da mente produzido pela contemplaccedilatildeo de um eikoacuten e

como temos visto uma parcial percepccedilatildeo das caracteriacutesticas sensoriais dos originais dos eikoacutenes ele vecirc

o Dzocircon no eikonrdquo O autor define a imagem como uma percepccedilatildeo imperfeita dos originais no qual se

apreende parcialmente a caracteriacutestica sensiacutevel destes Mesmo o objeto sensiacutevel tendo relaccedilatildeo com o ser

na esfera da opiniatildeo natildeo se tem nenhuma apreensatildeo desta ligaccedilatildeo Deste modo a doacutexa no sentido de um

juiacutezo elaborado a partir da experiecircncia empiacuterica como as aparecircncias corresponde a um estaacutegio primaacuterio

da atividade intelectiva no qual ainda natildeo se constitui uma cogniccedilatildeo no sentido epistemoloacutegico de Platatildeo

Stocks op cit p 83

96

Deve-se ter em vista aleacutem disso que tais objetos satildeo igualmente vazios de

conteuacutedo cognitivo visto que o domiacutenio sensiacutevel consiste ontologicamente em um

reflexo na aparecircncia do domiacutenio inteligiacutevel e natildeo tem condiccedilotildees por conta disso de

oferecer base para o conhecimento A alma no registro do visiacutevel (ὁξαηόλ) apresenta

esses tipos de atividade as quais natildeo ultrapassam o niacutevel da percepccedilatildeo do sensiacutevel Em

termos operacionais pode-se dizer que a conjectura e a convicccedilatildeo juntas compotildeem a

percepccedilatildeo em termos cognitivos compotildeem o juiacutezo Ao ter como atividade a percepccedilatildeo

natildeo sendo a alma capaz de reconhecer o viacutenculo com o inteligiacutevel naquilo que observa

na opiniatildeo se abre a possibilidade para o obscuro e para a natildeo-verdade63

A

incapacidade da percepccedilatildeo de apreender uma relaccedilatildeo com o inteligiacutevel faz com que a

alma natildeo reconheccedila a verdade mostrando ser o juiacutezo faliacutevel nas suas afirmaccedilotildees Ao

mesmo tempo por se fiar nas aparecircncias ela natildeo eacute capaz de exprimir mais que outras

aparecircncias ao chegar a uma conclusatildeo visto que carece de conhecer a realidade A

passagem 511e sugere a verdade como uma caracteriacutestica do objeto tomado

intelectualmente Observe-se que no inteligiacutevel sua funccedilatildeo se daacute na relaccedilatildeo entre

cognoscente e ela mesma e natildeo entre dois elementos Se no visiacutevel a dita ldquoverdaderdquo

constituiacutea uma noccedilatildeo de equivalecircncia entre elementos postos em relaccedilatildeo no inteligiacutevel

ela aparece como caracteriacutestica do objeto que na cogniccedilatildeo mostra seu alto grau de

conhecimento e portanto seu alcance da realidade Desse modo sua mensura se daacute nos

termos de uma referecircncia constituinte do objeto a ser conhecido e natildeo como uma noccedilatildeo

vaga de equivalecircncia que empresta a palavra verdade

ao considerar que a linha estabelece uma comparaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel

comparando assim o que se considera ldquoverdaderdquo no visiacutevel domiacutenio das aparecircncias

com a verdade como qualidade do inteligiacutevel faz sentido questionar se os objetos

participam ou natildeo da verdade Nesse sentido a manifestaccedilatildeo da verdade pode ser

relacionada agrave sua apreensatildeo da realidade podendo ser a cogniccedilatildeo nestas circunstacircncias

mensurada Assim o objeto que participa da verdade manifestando-a em toda a sua

inteligibilidade eacute o objeto claro oposto agraves aparecircncias objetos do domiacutenio sensiacutevel que

natildeo satildeo capazes de oferecer o inteligiacutevel em nenhum grau e desse modo natildeo podem

conduzir a nenhuma atividade cognitiva Os objetos que constituem cada gecircnero podem

ser ditos desse modo mais ou menos niacutetidos como ocorrem em 509d10-509e1 sendo

63 Gosling define assim a capacidade da doacutexa ldquoDoacutexa eacute a habilidade de julgar e o que se julga (eph‟ hoi

he duacutenamis) eacute o que as vezes eacute verdade e agraves vezes natildeordquo Ele compreende isso como uma verdade parcial

que a doacutexa eacute capaz de alcanccedilar fruto da oscilaccedilatildeo entre os objetos referidos Gosling JC B ldquoDoacutexa and

Duacutenamis in Plato‟s Republicrdquo in Phronesis no 2 vol 13 1968 p 129 130

97

as imagens obscuras e as ideias niacutetidas O juiacutezo natildeo teria portanto como apreender a

verdade ficando relegado a uma condiccedilatildeo de incogniccedilatildeo bem ao contraacuterio do raciociacutenio

e da inteligecircncia

Diante da debilidade cognitiva da conjectura e da convicccedilatildeo e da consequente

falibilidade do juiacutezo eacute possiacutevel dizer que estes dois primeiros niacuteveis da linha mostram o

pensamento em um estado muito elementar quando comparado agrave inteligibilidade da

cogniccedilatildeo nos termos da dialeacutetica Por outro lado deve-se admitir que Platatildeo parece estar

interessado em todas as disposiccedilotildees (ἕμηο) da alma tanto naquelas que envolvem o

conhecimento quanto naquelas que se referem a opiniatildeo Ao que tudo indica eacute preciso

considerar a δόμα por ser ela a ἕμηο de uma boa parte dos componentes da polis e nesse

sentido ao se ter em vista a organizaccedilatildeo da cidade em suas distintas classes vale dar

atenccedilatildeo a ela da mesma forma que ao λνῦο do filoacutesofo As distinccedilotildees feitas a partir da

comparaccedilatildeo do procedimento demonstrativo e dialeacutetico (Rep 511c3-d5) atribuem

nessa aplicaccedilatildeo da divisatildeo da linha agrave alma o caraacuteter de disposiccedilatildeo no sentido de

condiccedilatildeo da alma em determinado niacutevel em determinado contexto Assim no

cognosciacutevel no inteligiacutevel a alma tem as disposiccedilotildees necessaacuterias para inteligir ou seja

para ter contato com o que eacute verdadeiro o ser real No ambiente da sensibilidade no

visiacutevel natildeo apresenta as mesmas disposiccedilotildees e por isso natildeo atinge a verdade como se

observa

Diferentemente do sensiacutevel o domiacutenio do λνῦο oferece as condiccedilotildees necessaacuterias

para a alma desenvolver as operaccedilotildees inteligentes Nesse niacutevel os dois παζήκαηα na

alma apontam para uma frequentaccedilatildeo que ela manteacutem com os objetos inteligiacuteveis a

partir dos quais eacute possiacutevel a apreensatildeo da realidade A δηάλνηα o primeiro estado desse

domiacutenio pressupotildee a operaccedilatildeo que lida com termos inteligiacuteveis os conceitos

matemaacuteticos de modo a remontaacute-los O raciociacutenio opera pela variaccedilatildeo entre os

elementos de mesma realidade que servem para demonstrar um conceito em questatildeo

Nos termos de uma teacutecnica natildeo eacute proacuteprio do procedimento raciocinativo questionar

acerca do fundamento ontoloacutegico desses conceitos tomando-os assim todos nos

termos de hipoacuteteses uacuteteis em uma demonstraccedilatildeo Desse modo questionar e buscar as

relaccedilotildees dos elementos investigados com o criteacuterio e de clareza fica igualmente limitado

ao niacutevel da clareza e das verdades matemaacuteticas ou seja agravequilo que pode exprimir um

conceito ou o que se deduz a partir dele

A verdade como quer a matemaacutetica provavelmente diz respeito agrave singularidade

que caracterizam as ideias matemaacuteticas Da mesma forma que as ideias morais possuem

98

verdade e ser (ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Rep 508d) mas possuem evidentemente essecircncia

distinta sendo a verdade aiacute dada consequentemente nos limites da identidade do ser que

ela acompanha A ideia do quadrado natildeo tem o mesmo ser da ideia de justiccedila em

termos de identidade e consequentemente a verdade de uma seraacute diferente da outra

Natildeo haacute maiores definiccedilotildees sobre a verdade a natildeo ser a sua inteligibilidade e a

sua filiaccedilatildeo com a ideia do bem A verdade matemaacutetica eacute tatildeo inteligiacutevel quanto a

verdade de uma ideia moral entretanto o sentido em que se quer a verdade no meacutetodo

matemaacutetico eacute igualmente teacutecnico na medida em que remonta o conceito sem maiores

apreensotildees da sua natureza inteligiacutevel Raciocinar leva a alma a compreensotildees da

verdade e da clareza deste tipo sem proporcionar maiores conhecimentos acerca do ser

e do fundamento inteligente dos conceitos Desse modo a δηάλνηα constitui um niacutevel

limitado da cogniccedilatildeo no qual a alma apreende determinadas participaccedilotildees do ser e

portanto a verdade tal como as que se tem com o meacutetodo matemaacutetico Do aspecto

operacional a alma realiza tais apreensotildees com um meacutetodo o de demonstraccedilatildeo que por

natildeo ter como objetivo o conhecimento do fundamento ontoloacutegico eacute classificado como

uma teacutecnica natildeo como um saber Natildeo se pode negar que a δηάλνηα ganha com essas

acepccedilotildees o perfil de um pensamento teacutecnico que atua segundo as regras da arte

chamada aritmeacutetica Ainda que o texto natildeo pretenda marcar rigidamente as designaccedilotildees

utilizadas na linha agraves operaccedilotildees descritas nota-se a intenccedilatildeo de esclarecer a atuaccedilatildeo da

alma ao se lanccedilar a uma atividade dita intelectual No caso da δηάλνηα parece que as

regras que a alma obedece ao raciocinar uma vez que eacute forccedilada (ἀλαγθάδσ) pelos

objetos de determinado domiacutenio e pelo meacutetodo satildeo as ditadas pela matemaacutetica sendo o

raciocinar assim o exerciacutecio segundo tais procedimentos e tais regras A consequecircncia

de proceder assim eacute que a alma estagna e o matemaacutetico natildeo poderia ter a excelecircncia

intelectual e moral do filoacutesofo por conta disso pois natildeo conseguiria chegaria ao grau

maacuteximo de conhecimento possiacutevel ao intelecto

Diferentemente a λόεζηϛ mostra o estado de apreensatildeo da realidade inteligiacutevel

o qual constitui o grau mais elevado da atividade e da condiccedilatildeo da alma Tal apreensatildeo

consiste em adquirir conhecimento do ser e a partir dele reconhecer o viacutenculo dos

objetos pesquisados agrave luz de sua realidade fazendo para isso uso exclusivamente das

ideias Ao consistir na atividade em que a alma opera somente pelas ideias a inteligecircncia

demonstra ser o maior grau de interaccedilatildeo com o inteligiacutevel Ao atuar assim ela conhece

a verdade e a clareza dos objetos uma vez que eacute capaz pela dialeacutetica de observar a

participaccedilatildeo nessas duas caracteriacutesticas do ser O inteligir deixa a alma diante do

99

aspecto inteligiacutevel dos objetos investigados ou seja de posse da ideia desses

colocando-a no maior grau de cogniccedilatildeo no estado de contemplaccedilatildeo A alma que tem

inteligecircncia conhece a verdade e a clareza ao operar com todos os elementos dados pelo

ser A capacidade de apreensatildeo ao inteligir dada pela potecircncia de apreensatildeo do meacutetodo

dialeacutetico torna realizaacutevel a operaccedilatildeo inteligente Em outros termos a alma natildeo

adquiriria o ser se natildeo fizesse uso do meacutetodo adequado para isso o que demonstra a

importacircncia e a peculiaridade da ciecircncia dialeacutetica e sua coerecircncia com o alcance da

inteligecircncia Neste uacuteltimo niacutevel parece claro que o meacutetodo de investigaccedilatildeo determina o

conhecimento uma vez que parece possuir as regras adequadas para tal Ao seguir as

regras do meacutetodo dialeacutetico a alma obedece ao mesmo tempo os criteacuterios de clareza e de

verdade segundo o que se apreende das relaccedilotildees com o ser inteligiacutevel Desse modo em

uacuteltima instacircncia ao obedecer as regras impostas pela dialeacutetica a alma segue o que dita o

proacuteprio ser atuando assim de maneira inteligente As regras do meacutetodo se tornam

assim as regras por excelecircncia do pensar em sua atuaccedilatildeo inteligente O saber que busca

a filosofia se realiza nesse conhecimento da realidade e da verdade dos objetos os quais

apontam para o bem Ao conhecer tais qualidades a alma toma o bem como modelo

demonstrando estar a alma assim no estado de inteligecircncia

Talvez tais distinccedilotildees mostrem a diferenccedila mais determinante para qualificar o

homem comum o matemaacutetico e o dialeacutetico A anaacutelise da atividade intelectual a partir

das distinccedilotildees da linha apontam principalmente a disposiccedilatildeo e a capacidade de cada um

no que se refere ao comportamento Estendendo esta anaacutelise pode-se inferir que se tem

nas atividades da alma indicadas nesses estados que a linha oferece uma explicaccedilatildeo

acerca da disposiccedilatildeo e da capacidade de buscar seguir e de se submeter ao que eacute

verdadeiro ao que eacute dado segundo o ser A consequecircncia desta inferecircncia talvez possa

ser conferida nas passagens que tocam a questatildeo do criteacuterio para a organizaccedilatildeo da

cidade e a funccedilatildeo de cada classe de cidadatildeos nesta organizaccedilatildeo Os παζήκαηα

reconstituem nesse sentido o comportamento da alma do ponto de vista intelectivo

dado como uma ἕμηο uma δύλακηο e um ἔξγνλ expressos no meacutetodo naquilo que ela eacute

capaz de apreender sob a forma da cogniccedilatildeo ou do juiacutezo O foco no proceder intelectivo

revela quatro fenocircmenos mentais cuja distinccedilatildeo e compreensatildeo apresentam quatro

modos do pensamento em contextos de gecircnero diferentes isto eacute em relaccedilatildeo ao sensiacutevel

e em relaccedilatildeo ao inteligiacutevel Dados assim tais modos parecem bastante convenientes agrave

100

proposta de uma cidade com classes variadas de cidadatildeos as quais o filoacutesofo

governante deve comandar64

Evidentemente natildeo se deve compreender que essas quatro operaccedilotildees definem e

mostram o pensar em sua totalidade Deve-se admitir que o texto natildeo oferece

especificaccedilotildees acerca do tema do pensamento em seu conjunto isto eacute como o conjunto

de fenocircmenos que se datildeo a partir de uma atividade sobre os quais se pode inferir a

partir de um estado da alma Entretanto a analogia da linha aborda os quatro principais

aspectos do pensamento no que se refere ao ιόγνο que se propotildee para a cidade Tem-se

provavelmente os quatro aspectos mais importantes capazes de situar cada atividade em

relaccedilatildeo agrave verdade qualidade que ganha fundamento inteligiacutevel e colabora assim para a

teoria moral do governo do filoacutesofo Do mesmo modo as especificaccedilotildees acerca das

atividades intelectuais que traz a linha mostram os efeitos da atividade intelectual da

filosofia anteriormente anunciado como a fixaccedilatildeo da alma (ἀπεξείδσ) ao ser accedilatildeo que

descreve o λνῦλ ἔρεηλ e a θξόλεζηο (Rep 508b d) Ao especificar as operaccedilotildees da alma

tem-se explicado o procedimento os efeitos e o significado desta relaccedilatildeo intelectual

com a ideia do bem que culmina na inteligecircncia

Os distintos παζήκαηα parece se tornarem mais claros ao buscar compreender a

alma em sua caracteriacutestica ativa ao se elucidar as suas operaccedilotildees e ao mesmo tempo

ao revelar os meandros de sua natural passividade que resulta em tais afeccccedilotildees tal

como se daacute na submissatildeo da alma ao ser no caso da λόεζηϛ agraves regras do meacutetodo

matemaacutetico na δηάλνηα e a sujeiccedilatildeo agraves aparecircncias na δόμα A dicotomia atividade-

passividade que o livro VI apresenta tal como se observou nos argumentos analisados

mostra a dinacircmica das relaccedilotildees como uma das bases sobre as quais se deve interferir

atraveacutes da educaccedilatildeo para a organizaccedilatildeo da cidade Ao exibir os efeitos das interaccedilotildees

que a alma pode ter com o inteligiacutevel se mostra a necessidade de compreender a atuaccedilatildeo

64 Entre os autores que partilham da leitura de que haacute a exposiccedilatildeo acerca do trabalho intelectivo na

analogia da Linha estaacute Cornford que compreende haver ldquoquatro experiecircncias mentaisrdquo correspondentes

ao pathema en tei psykhei Note-se a cuidadosa opccedilatildeo ao traduzir paacutethema por ldquoexperiecircnciardquo buscando

muito provavelmente preservar a eiacutekasia e a piacutestis como partes de um processo que visto em todo o

conjunto comeccedila na sensibilidade e termina na apreensatildeo da ideia do bem Ainda que seu interesse seja

apresentar a diaacutenoia e a noeacutesis como as operaccedilotildees inteligentes ele admite com este comentaacuterio haver uma

relaccedilatildeo entre os diferentes niacuteveis de apreensatildeo que as partes da linha representa sendo o primeiro a

percepccedilatildeo e os dois uacuteltimos modos de operaccedilatildeo intelectivas ldquoEste eacute o primeiro lugar onde Platatildeo

contrasta dois modos de operaccedilatildeo da parte racional da almardquo Esta afirmaccedilatildeo de Cornford parece

bastante afim com a proposta do texto de esclarecer a diferenccedila entre opiniatildeo e conhecimento a partir da

dicotomia filoacutesofo-natildeo-filoacutesofo que se apresenta nos livros centrais Tais distinccedilotildees ao que parece

merecem tambeacutem serem vistas do ponto de vista da parte racional da alma tal como a linha especifica

Cornford ldquoMathematics and Dialectic in The Republicrdquoop cit p 37-38

101

dela Vecirc-se que a passividade de uma afecccedilatildeo natildeo estaacute e natildeo deve ser tomada sem a

investigaccedilatildeo da atividade que a origina

Atividade e passividade do pensamento cabe reparar eacute um tema presente que

deve ser analisado tambeacutem no Feacutedon (79d) o qual dito antecipadamente mostraraacute a

graduaccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da filosofia rumo a θξόλεζηο Tomada nos termos de

atividade de alta intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo resultado desta atividade a θξόλεζηο

descreve a interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e os beneacuteficos resultados dessa ligaccedilatildeo

para a alma A dupla funccedilatildeo que descreve os estados classificados na linha parece estar

presente desse modo em uma concepccedilatildeo de afecccedilatildeo que Platatildeo parece ter Mesmo sem

ter a intenccedilatildeo de especificar esta duplicidade observa-se na linha como se observaraacute no

Feacutedon o resultado como expressatildeo de uma atividade e assim a passividade de uma

condiccedilatildeo como efeito da atividade em do pensar em determinado niacutevel O pensamento

abarca desse modo atividade e passividade as quais devem ser vistas

concomitantemente Conveacutem assim perseguir as caracteriacutesticas deste conjunto de

atividades dita pensamento nos argumentos do Livro VII de modo a analisar os

aspectos racionais em uma progressiva interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e dessa

maneira a natureza de uma possiacutevel intervenccedilatildeo da filosofia Natildeo diferente do filoacutesofo

em processo de purificaccedilatildeo do diaacutelogo Feacutedon o aprendiz do Livro VII mostra o

processo de superaccedilatildeo do sensiacutevel como atividade e efeito deste movimento de

interaccedilatildeo do intelecto com a realidade inteligiacutevel O resultado desta superaccedilatildeo

intelectual consiste na superaccedilatildeo ao niacutevel maacuteximo nos demais domiacutenios eacutetico e

poliacutetico elevando a alma agrave melhor condiccedilatildeo que ela pode alcanccedilar ou simplesmente agrave

condiccedilatildeo de excelecircncia

42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma

A Alegoria da Caverna que abre o seacutetimo livro d‟A Repuacuteblica oferece outros

aspectos do pensamento ao sugerir uma imagem da alma nas condiccedilotildees de ignoracircncia

(ἀκαζία Rep 518a7) e de inteligecircncia (λνῦο Rep 518a1) Ao enfatizar seu

102

comportamento na situaccedilatildeo de educaccedilatildeo e de ausecircncia da educaccedilatildeo (Rep 514a1) como

trazem as primeiras linhas do livro o texto aborda o tema da racionalidade da

perspectiva da experiecircncia intelectual da alma mostrando por analogia as condiccedilotildees o

processo e os efeitos deste tipo de exerciacutecio A comparaccedilatildeo entre as naturezas se daacute

agora no que se refere agrave atitude a partir da condiccedilatildeo de ignoracircncia natural ao homem

em sua humanidade diante da possibilidade do conhecimento O movimento de ascese

que mostra a saiacuteda da ignoracircncia na direccedilatildeo do conhecimento descrito na saiacuteda do

prisioneiro liberto da caverna em direccedilatildeo agrave luz da realidade explica a accedilatildeo que promove

e justifica a excelecircncia do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum demonstrando o

caraacuteter da postura que resulta na cogniccedilatildeo ou na permanecircncia na ausecircncia de

conhecimento

Diferentemente da analogia da linha o pensar natildeo teraacute na alegoria da caverna

suas operaccedilotildees explicitadas de modo que se pode analisar cada niacutevel em suas

especificidades metodoloacutegicas A abordagem que pretende salientar as caracteriacutesticas do

filoacutesofo e do natildeo filoacutesofo em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo aponta as relaccedilotildees que se estabelece

entre estes dois tipos de trabalho mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo de modo a sugerir entre

eles uma relaccedilatildeo tal como pressupotildee a saiacuteda e o retorno do filoacutesofo agrave caverna Dito de

outro modo a descriccedilatildeo da ascese e descida do filoacutesofo sugere uma dinacircmica do

pensamento natildeo na sua operacionalidade teacutecnica isto eacute segundo o meacutetodo mas neste

tracircnsito de um plano a outro exequiacutevel pela παηδεία Nesta construccedilatildeo da imagem da

experiecircncia intelectual do conhecimento a racionalidade aparece sob o acircngulo da

condiccedilatildeo humana (ηὰ ἀλζξώπεηά Rep 517d5) sendo a inteligecircncia seu ponto alto e a

ignoracircncia a posiccedilatildeo inferior Assim tanto a figura do prisioneiro quanto a do liberto

descrevem a vivecircncia da alma em duas circunstacircncias antagocircnicas que contrapotildeem a

natural inferioridade do homem comum agrave superioridade de condiccedilatildeo do filoacutesofo dada

pela aquisiccedilatildeo do conhecimento

A mudanccedila de posiccedilatildeo que pode se dar durante a vida (δηὰ βίνπ Rep 515b1)

operada pelo exerciacutecio intelectual eacute dita atraveacutes das dificuldades no processo de

conhecer Nesta narrativa que mostra a libertaccedilatildeo do prisioneiro e a sua gradual

adaptaccedilatildeo a um novo ambiente (Rep 515e-516c6) tem-se a uma imagem da superaccedilatildeo

de um niacutevel a outro pressupondo uma progressatildeo do trabalho intelectual que vai da

percepccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo

103

Cabe acompanhar a narrativa desta experiecircncia atraveacutes da construccedilatildeo da imagem

do prisioneiro que conquista a libertaccedilatildeo Para isso deve-se comeccedilar por analisar o

ambiente e o estado que se refere agrave ignoracircncia (ἀκαζία)

ldquo() Imagina homens que estatildeo numa morada subterracircnea

semelhante a uma furna cujo acesso se faz por uma abertura que

abrange toda a extensatildeo da caverna que estaacute voltada para a luz Laacute

estatildeo eles desde a infacircncia com grilhotildees nas pernas e no pescoccedilo de

modo que fiquem imoacuteveis onde estatildeo e soacute voltem o olhar para a

frente jaacute que os grilhotildees os impedem de virar a cabeccedila De longe

chega-lhes a luz de uma fogueira que arde num local mais alto atraacutes

deles e entre a fogueira e os prisioneiros haacute um caminho em aclive

ao longo do qual se ergue um pequeno muro semelhante ao tabique

que os maacutegicos potildeem entre eles e os espectadores quando lhes

apresentam suas habilidades

- estou imaginando disse

- Pois bem Imagina homens passando ao longo desse pequeno

muro e levando toda a espeacutecie de objetos que ultrapassam a altura do

muro e tambeacutem estaacutetuas de homens e de outros animais feitas de

pedra e de madeira trabalhadas das mais diversas maneiras Alguns

dos que os carregam como eacute natural vatildeo falando e outros seguem

em silecircnciordquo (Rep 514a2-b7)

O ambiente rebaixado e de penumbra que sugere a caverna subterracircnea alude agrave

condiccedilatildeo de inferioridade do homem no que se refere ao conhecimento Tal

inferioridade parece inexoraacutevel ao considerar que este eacute o uacutenico ambiente conhecido

pelos habitantes da caverna visto que estatildeo laacute desde a infacircncia Por estarem de costas

para a abertura da gruta e portanto em posiccedilatildeo contraacuteria agrave saiacuteda tem-se a natural

oposiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo ao que pode provocar o conhecimento de outro lugar

outro plano Outro dado que talvez determine a aparente inflexibilidade desta condiccedilatildeo

eacute a imobilidade que os torna prisioneiros e em permanente estado de ἀκαζία Presos

pelos peacutes pernas e pescoccedilo os moradores da caverna estatildeo impedidos de sair e de fazer

qualquer movimento que os permita ver outro acircngulo e assim realizar qualquer

verificaccedilatildeo acerca do lugar que habitam Limitados pelos grilhotildees natildeo podem

reconhecer a fonte que oferece a baixa luminosidade para a gruta nem a origem dos

ruiacutedos que escutam e das imagens que veem projetadas na parede diante deles Imoacuteveis

e alheios a outra realidade os habitantes da caverna creem que as sombras de animais e

estaacutetuas projetadas satildeo os proacuteprios animais e os proacuteprios homens e natildeo imagens de

104

algum objeto refletido pela luz do fogo Crentes chamam tal conjuntura de real e

consideram as sombras verdadeiras sem ao menos supor um lugar diferente da gruta

permanecendo assim ignorantes (Rep 515b4-5 515c1-2)

A narrativa aponta os elementos que determinam a ignoracircncia e o principal

dentre todos cabe notar consiste na imobilidade que resulta na crenccedila Chama atenccedilatildeo

do mesmo modo que a analogia natildeo indique outro fator que fixa o homem a esta

imobilidade que natildeo seja a natureza Representado pelos grilhotildees o que coloca o

homem na posiccedilatildeo de prisioneiro parece consistir na natural sujeiccedilatildeo aos elementos que

compotildeem o cenaacuterio as sombras crenccedila e o haacutebito agrave escuridatildeo Natildeo parece estar em

questatildeo em um primeiro momento qualquer fator desiderativo para a permanecircncia

nesse estado tampouco alguma deliberaccedilatildeo em livrar-se dele Ao que tudo indica a

proposta da narrativa tem em vista descrever uma situaccedilatildeo hipoteacutetica de elevaccedilatildeo de

uma natural condiccedilatildeo de desconhecimento para a de conhecimento circunstacircncia

considerada mais elevada Para isso elege as variaacuteveis que colaboram para a construccedilatildeo

de uma imagem desobrigada a corresponder fielmente agraves questotildees na vida ordinaacuteria

mas que parecem uacuteteis aos propoacutesitos de uma comparaccedilatildeo (ἀπεηθάδσ Rep 514a1)65

Assim ainda que pareccedilam estranhas importa que tais representaccedilotildees permitam

investigar a questatildeo no registro da suposiccedilatildeo

A incapacidade de discernimento devido as caracteriacutesticas do ambiente e agrave

imobilidade das capacidades que permitiriam reconhecer os objetos verdadeiros mostra

a ignoracircncia como o estado em que a alma natildeo mobiliza suas potencialidades

cognitivas ficando alheia a um tipo de experiecircncia que soacute pode ser realizada pelo

pensamento O resultado desta postura eacute o desconhecimento de uma realidade que daacute

origem ao que ela por haacutebito (λνκίδσ) concebe como verdadeiro e real Este eacute um ponto

que ganha algumas elucidaccedilotildees na alegoria em comparaccedilatildeo ao que trazia a primeira

parte da linha Como componente do segundo grau do primeiro niacutevel na escala que

sugere a linha dividida (Rep 511d9-e) correspondente ao juiacutezo a πίζηηο aparecia como

a convicccedilatildeo nos objetos fiacutesicos tomados como verdadeiros os quais nada mais eram que

as aparecircncias dos objetos reais Por essa razatildeo naquele contexto a convicccedilatildeo natildeo

consistia em um estado em que a alma estava em via de adquirir o conhecimento mas

ao contraacuterio permanecia incapaz de efetuar qualquer relaccedilatildeo que lhe permitisse

reconhecer a realidade inteligiacutevel A crenccedila tal como descreve a linha parece estar

65 Rep 515a4-5 ldquo- Estranho eacute o quadro que descreves disse e estranhos tambeacutem os prisioneiros (-

Semelhante a noacutes disse eu (Ἄηνπνλ ἔθε ιέγεηο εἰθόλα θαὶ δεζκώηαο ἀηόπνπο Ὁκνίνπο ἡκῖλ)rdquo

105

presente na descriccedilatildeo da ignoracircncia que sofre o prisioneiro uma vez que se toma como

real o que se daacute pelo costume ou seja a partir do que regularmente se vecirc por forccedila de

sua condiccedilatildeo

Dito de outro modo o julgamento que o prisioneiro faz tem como base uma

presumiacutevel regularidade das apariccedilotildees projetadas na parede da caverna nas aparecircncias

mesmo fundamento da crenccedila Eacute possiacutevel compreender que a ἀκαζία da alegoria

corresponde agrave δόμα da linha dividida Pode-se encontrar uma correspondecircncia entre os

dois estados se considerarmos que ambos se referem ao desconhecimento da realidade

inteligiacutevel Ambas parecem compreendidas nos termos que se enuncia os riscos de

entregar a salvaguarda da cidade a um guardiatildeo que ignora (ἄγλνηα) e portanto

desconhece a ideia do bem (Rep 5064-7) Entretanto vale ressaltar que o que a alegoria

pretende enfatizar diz respeito ao desconhecimento como um estado natural ao homem

que pode por determinadas razotildees ser abandonado Se na linha se tem uma explicaccedilatildeo

do ponto de vista gnosioloacutegico e epistemoloacutegico desta ἄγλνηα cujo sentido parece

abarcar a opiniatildeo e a ignoracircncia na alegoria ela eacute dada da perspectiva existencialista e

sobretudo poliacutetica visto que marca a posiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a ideia do bem

inteligiacutevel a saber naturalmente inferior e contraacuterio a ele Conveacutem investigar nas

proacuteximas passagens o que o texto sugere acerca do processo de abandono da

inferioridade da ignoracircncia e averiguar o processo intelectivo nessa mudanccedila de

condiccedilatildeo Deve-e atentar para o caraacuteter ascendente da inteligecircncia dada na figura do

aprendiz

43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο

O processo de saiacuteda do estado de ignoracircncia dada nos termos da libertaccedilatildeo de

tal posiccedilatildeo propotildee o iniacutecio do processo do conhecimento que sugere ao mesmo tempo

os estiacutemulos necessaacuterios para o desenvolvimento do exerciacutecio intelectual de ascese e as

reaccedilotildees naturais agraves mudanccedilas de niacutevel cognitivo Diferente do que se viu na analogia do

sol a alegoria natildeo enfatiza a relaccedilatildeo entre alma e objeto e a familiaridade da alma com

106

o inteligiacutevel como suficientes para descrever o que promove a busca pelo conhecimento

ao menos em um primeiro momento A saiacuteda da caverna depende da intervenccedilatildeo de

algueacutem que por conhecer a realidade provoca e orienta esta libertaccedilatildeo Nesse sentido a

ambientaccedilatildeo do liberto agrave luz mostra as dificuldades que envolvem a ascese elevaccedilatildeo

que cabe notar natildeo constitui um processo natural

ldquo- Observa agora disse eu como seria para eles a libertaccedilatildeo dos

grilhotildees e da cura da ignoracircncia se isso lhes ocorresse de forma

natural (Σθόπεη δή ἦλ δ ἐγώ αὐηῶλ ιύζηλ ηε θαὶ ἴαζηλ ηῶλ ηε δεζκῶλ

θαὶ ηο ἀθξνζύλεο νἵα ηηο ἂλ εἴε εἰ θύζεη ηνηάδε ζπκβαίλνη αὐηνῖο)

Sempre que um deles fosse liberado dos grilhotildees e obrigado

(ἀλαγθάδνηην) a pocircr-se de peacute de repente a virar o pescoccedilo a andar e

a olhar para a luz tudo isso o faria sofrer e sob a luminosidade

intensa ficaria incapaz de olhar para aqueles objetos cujas sombras

havia pouco estava vendo O que diria ele na tua opiniatildeo se algueacutem

lhe dissesse que o que ele via antes era apenas uma nonada

(θιπαξίαο) mas que agora mais proacuteximo do ser voltado para o que

eacute mais ser estaacute enxergando (λῦλ δὲ κᾶιιόλ ηη ἐγγπηέξσ ηνῦ ὄληνο θαὶ

πξὸο κᾶιινλ ὄληα ηεηξακκέλνο ὀξζόηεξνλ βιέπνη) melhor e

apontando cada um dos objetos que estavam passando com suas

perguntas o obrigasse a dizer-lhe o que era Natildeo achas que ele se

veria em dificuldades e julgaria que os objetos que via antes eram

mais verdadeiros do que os que lhe estavam sendo mostrados

agorardquo (Rep 515c4 -d7)

O texto mostra as dificuldades de se observar a realidade na figura do prisioneiro

obrigado a pocircr-se em uma posiccedilatildeo diferente e a fazer movimentos nunca realizados

antes O embaraccedilo de lidar com uma nova realidade sugerida pela incapacidade do

receacutem liberto de ver (ἀδπλαηνῖ θαζνξᾶλ) sob luz intensa mostra a natural incapacidade

de frequentaccedilatildeo na realidade inteligiacutevel e ao mesmo tempo a necessidade de orientaccedilatildeo

e de exerciacutecio para que isso ocorra Forccedilado a sair da caverna (ἀλαγθάδσ) e sem estar

adaptado agraves novas condiccedilotildees o prisioneiro insiste em acreditar nas sombras e natildeo

confere qualquer credibilidade aos objetos que agora se apresentam uma vez que soacute tem

a ignara experiecircncia das imagens O abandono da condiccedilatildeo de ignoracircncia natildeo acontece

sem a natural reaccedilatildeo de contrariedade e sofrimento amenizados somente por um

gradativo processo de conformaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas deste novo ambiente Ainda que

fosse arrastado agrave forccedila para um plano mais alto (Rep 515e6) sua reaccedilatildeo seria a de

relutacircncia e demandaria tempo para deixar de se incomodar (ἀγαλαθηέσ Rep 516a1)

com a claridade

107

Tal eacute a descriccedilatildeo da relaccedilatildeo entre alma e objeto no processo de ascese na

narrativa da alegoria A graduaccedilatildeo entre niacuteveis dita nos termos da saiacuteda de um plano e

subida a outro mostra dessa vez a relaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel como resposta ao

contato com objetos distintos Se a analogia do sol descrevia essa reaccedilatildeo do ponto de

vista do fenocircmeno mental ou seja do que se tem na relaccedilatildeo entre faculdade cognitiva e

objeto inteligiacutevel a saber a apreensatildeo da ideia aqui a descriccedilatildeo da reaccedilatildeo do

prisioneiro agrave luminosidade leva em consideraccedilatildeo a θύζηο como um componente

determinante nessa relaccedilatildeo Nesse sentido tais dificuldades representam um aspecto

tambeacutem natural do processo de ascese uma vez que se eacute naturalmente contraacuterio e

desabituado ao inteligiacutevel A relaccedilatildeo entre alma e objeto experienciado dado na alegoria

oferece uma imagem do conhecimento como uma superaccedilatildeo na qual o pensamento se

realiza em todo o seu conjunto de operaccedilotildees ao longo da transposiccedilatildeo desses obstaacuteculos

O foco se volta para o estabelecimento dessa relaccedilatildeo com o inteligiacutevel que se efetiva

nesse percurso oferecendo dessa maneira uma narrativa da passagem da percepccedilatildeo

sensiacutevel para a cogniccedilatildeo inteligiacutevel

Vale lembrar que o propoacutesito de tal abordagem tem em vista a noccedilatildeo de παηδεία

e pretende por isso apontar a possibilidade de conduccedilatildeo ao conhecimento Desse

modo importa assinalar no contexto da alegoria as caracteriacutesticas do pensamento posto

em atividade orientado para a inteligecircncia de modo a averiguar as possiacuteveis

correspondecircncias com o que se analisou na analogia do sol e na analogia da linha

argumentos importantes para uma caracterizaccedilatildeo da racionalidade no livro VI Note-se

que o texto propotildee a superaccedilatildeo cognitiva anaacuteloga agrave gradativa ambientaccedilatildeo na verdadeira

realidade e o viacutenculo entre a alma e o inteligiacutevel sendo constituiacutedo nesta frequentaccedilatildeo

no novo ambiente ao qual aos poucos ela estaraacute familiarizada

ldquo- E se disse eu algueacutem o arrastasse dali aacute forccedila pela ladeira

aacutespera e abrupta (Εἰ δέ ἦλ δ ἐγώ ἐληεῦζελ ἕιθνη ηηο αὐηὸλ βίᾳ δηὰ

ηξαρείαο ηο ἀλαβάζεσο θαὶ ἀλάληνπο) e natildeo o largasse antes de

conseguir arrastaacute-lo para fora e expocirc-lo agrave luz do sol seraacute que ele natildeo

sofreria dores natildeo se indignaria por o arrastarem (ἆξα νὐρὶ

ὀδπλᾶζζαί ηε ἂλ θαὶ ἀγαλαθηεῖλ ἑιθόκελνλ) e quando chegasse laacute ateacute

a luz com os olhos ofuscados pelo fulgor nada seria capaz de ver do

que agora lhe dissessem ser verdadeiro

- De imediato (ἐμαίθλεο) pelo menos disse natildeo seria capaz

- Seria preciso creio que se habituasse se pretendesse ver o que

estivesse no alto (Σπλεζείαο δὴ νἶκαη δένηη ἄλ εἰ κέιινη ηὰ ἄλσ

ὄςεζζαη) Primeiro iria ver muito facilmente as sombras depois as

imagens dos homens e as dos outros objetos na aacutegua e mais tarde os

proacuteprios homens e os objetos depois agrave noite voltando o olhar para

108

a luz dos astros e da lua contemplaria o que estivesse no ceacuteu e o

proacuteprio ceacuteu com mais facilidade que durante o dia o sol se a luz do

sol

- Em uacuteltimo lugar viria creio o sol natildeo os reflexos dele na aacutegua

ou em outra superfiacutecie e ele seria capaz de ver e contemplar o

proacuteprio sol no lugar que eacute o dele tal qual ele eacute (Τειεπηαῖνλ δὴ νἶκαη

ηὸλ ἥιηνλ νὐθ ἐλ ὕδαζηλ νὐδ ἐλ ἀιινηξίᾳ ἕδξᾳ θαληάζκαηα αὐηνῦ

ἀιιαὐηὸλ θαζ αὑηὸλ ἐλ ηῆ αὑηνῦ ρώξᾳ δύλαηη ἂλ θαηηδεῖλ θαὶ

ζεάζαζζαη νἷόο ἐζηηλ)

- Necessariamente disse

- Depois disso a respeito do sol jaacute inferiria (ζπιινγίδνηην) que eacute

ele que cria as estaccedilotildees e os anos e tudo governa (ἐπηηξνπεύσλ) no

mundo visiacutevel e eacute de certo modo a causa (αἴηηνο) de tudo aquilo que

viam

- Eacute evidente que depois de passar por aquelas experiecircncias

chegariam a essas conclusotildees (Δινλ ἔθε ὅηη ἐπὶ ηαῦηα ἂλ κεη

ἐθεῖλα ἔιζνη)rdquo (Rep 515e- 516 c3)

Os passos dados na elevaccedilatildeo ao inteligiacutevel parecem francamente sugeridos nesta

progressatildeo da visatildeo que descreve o texto Apoacutes a relutacircncia e as dores de estar em um

ambiente desconhecido onde comeccedila a se acostumar com as caracteriacutesticas dele como

a luminosidade o liberto primeiro vecirc com facilidade as sombras na penumbra depois

consegue observar as imagens na aacutegua e finalmente mira diretamente os proacuteprios

objetos originais Receacutem-saiacutedo da caverna o ex-prisioneiro reconhece a multiplicidade

do mundo visiacutevel em seus variados objetos cujos reflexos promovem as sombras e as

imagens Desse modo tem-se a descriccedilatildeo do estado de percepccedilatildeo (αἴζζεζηο) no mundo

visiacutevel na qual os elementos apreendidos satildeo as imagens as sombras os animais e os

objetos do mundo fiacutesico Embora seja difiacutecil fazer uma riacutegida identificaccedilatildeo das partes da

linha com a ascese tal como trata a alegoria parece razoaacutevel entender que a percepccedilatildeo

aparece como a vivecircncia na caverna e esses primeiros momentos da saiacuteda rumo ao

conhecimento o iniacutecio do percurso da experiecircncia intelectual da ascese

No que se refere agrave elevaccedilatildeo da alma ao inteligiacutevel parece razoaacutevel supor os

primoacuterdios desta ascese neste reconhecimento da multiplicidade de elementos do

domiacutenio visiacutevel para marcar as distinccedilotildees do inteligiacutevel e a superioridade da

inteligecircncia Faz sentido mostrar desta perspectiva as evoluccedilotildees da alma que se eleva

da percepccedilatildeo da multiplicidade para a aquisiccedilatildeo do conhecimento da ideia enfatizando

com isso o exerciacutecio do pensamento que aqui eacute dado de modo progressivo e gradual

rumo agrave sua excelecircncia operacional como mostrou a linha e moral como parece propor

109

a alegoria Desse modo a passagem da conjectura para a convicccedilatildeo constitui um

progresso nos termos de um trabalho mental importante de ser dado uma vez que estaacute

em questatildeo o desenvolvimento para o exerciacutecio intelectual Mais que mostrar o prejuiacutezo

cognitivo da δόμα em relaccedilatildeo a ἐπηζηήκε a passagem de uma etapa a outra da

percepccedilatildeo eacute dada como ponto a partir do qual pode haver a mudanccedila (κεηαβνιή Rep

516c6) movimento que pode pocircr a alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel Por enquanto vale ter

em vista que conjectura e convicccedilatildeo compotildeem o conjunto de operaccedilotildees mentais tal

como o raciociacutenio e a intelecccedilatildeo e que constitui o grau de inferioridade da condiccedilatildeo da

alma que pode ser superado

Cabe reparar na sequecircncia que a segunda fase do liberto sugere a atividade

preliminar do pensamento pois parece ir um pouco aleacutem da percepccedilatildeo Nessa etapa o

liberto jaacute suporta a claridade e comeccedila a observar o que eacute reluzente na ausecircncia de luz

sendo possiacutevel para ele realizar as primeiras observaccedilotildees no claro e no escuro no dia e

na noite ateacute encarar o proacuteprio sol em toda a sua luminosidade e grandiosidade Este grau

de adaptaccedilatildeo parece ser o mais adequado para o iniacutecio da atividade intelectual uma vez

que jaacute se eacute capaz de observar em diferentes circunstacircncias e contemplar a proacutepria fonte

de luz Ao inferir (ζπιινγίδνκαη) sobre a causa (αἴηηνο) e sobre a ordenaccedilatildeo

(ἐπηηξνπεύσ) do mundo a partir da contemplaccedilatildeo do sol concluindo ser ele a origem

dos fenocircmenos a alegoria descreve um trabalho do pensar mostrando o que

provavelmente constitui seu exerciacutecio nos primeiros graus do niacutevel inteligiacutevel visto que

causa e princiacutepio satildeo questotildees presentes em uma investigaccedilatildeo racionalista como

mostrou a analogia do sol e da linha

Natildeo se deve perder de vista o objetivo moral e poliacutetico da argumentaccedilatildeo Ao

oferecer um relato das mudanccedilas e das aquisiccedilotildees cognitivas nesta experiecircncia

gnosioloacutegica a alegoria propotildee o fundamento epistemoloacutegico da poliacutetica naquilo que a

ciecircncia pode orientar e portanto intervir a partir de um modelo ideal e de um meacutetodo

adequado de educaccedilatildeo De maneira simeacutetrica o pedagogo e o governante partilham da

mesma funccedilatildeo respectivamente orientar a alma e conduzir a cidade sendo pertinente

portanto uma investigaccedilatildeo acerca do que deve ser mobilizado e dos meios adequados

para que a governabilidade de fato se realize O que eacute posto em questatildeo natildeo eacute outra

coisa que a alma e o que envolve a racionalidade Na condiccedilatildeo superior ao ter adquirido

o conhecimento da realidade portanto o liberto avalia o seu percurso e a sua condiccedilatildeo

anterior considerando depois disso os benefiacutecios de ter se lanccedilado a tal experiecircncia

(Rep 516e1)

110

Esse constitui um dos efeitos da inteligecircncia dito dessa vez nos termos da inteira

conversatildeo da alma agrave ideia do bem operada pelo pensamento no seu movimento de

superaccedilatildeo da multiplicidade sensiacutevel para a unidade inteligiacutevel A ascensatildeo ao

conhecimento estaacute completa uma vez estabelecido o viacutenculo com o domiacutenio inteligiacutevel

sendo a recompensa desse percurso a visatildeo do niacutevel mais alto (ζέαλ ηῶλ ἄλσ ηὴλ εἰο ηὸλ

λνεηὸλ ηόπνλ Rep 517b 4-5) e portanto o conhecimento da ideia do bem Conhecer a

ideia do bem vale assinalar eacute dita como as conclusotildees as quais forccedilosamente se chega

acerca de sua funccedilatildeo como causa do que eacute belo correto verdadeiro e inteligiacutevel66

Tal

conhecimento consiste na base para a accedilatildeo quer no domiacutenio da vida puacuteblica quer no

domiacutenio da vida privada Mais uma vez a apreensatildeo da ideia constitui o ponto alto da

inteligecircncia e o conhecimento dela mostra o que eacute fundamental para a boa accedilatildeo

(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) ou seja para a moral e para a poliacutetica Vecirc-se destacado aqui o

caraacuteter ascendente da inteligecircncia antes dado na superaccedilatildeo das hipoacuteteses rumo agrave ideia

do bem Este certamente constitui um dos traccedilos importantes que compotildeem a distinccedilatildeo

deste modo do pensamento e justifica a sua condiccedilatildeo de excelecircncia

44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ

A παηδεία mostra o pensamento em dois aspectos como a capacidade de

cogniccedilatildeo e como atividade do aprendizado (ηὴλ ἐλνῦζαλ ἑθάζηνπ δύλακηλ ἐλ ηῆ ςπρῆ

θαὶ ηὸ ὄξγαλνλ ᾧ θαηακαλζάλεη ἕθαζηνο Rep 518c) Dessa vez a argumentaccedilatildeo vai se

referir agrave preparaccedilatildeo necessaacuteria que antecede agrave apreensatildeo das ideias ou seja mostra a

conduccedilatildeo da alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel que constitui o aprendizado O movimento

induzido pelo pedagogo consiste em voltar (ζηξέθσ πεξηάγσ Rep 518c79) a alma

para a contemplaccedilatildeo do ser e da sua inteligibilidade tal como se viu na alegoria o que

66 Rep 517b7-c4rdquoEm todo o caso eis o que penso No mundo cognosciacutevel vem por uacuteltimo a ideia do

bem que se deixa ver com dificuldade mas se eacute vista impotildeem-se a conclusatildeo de que para todos eacute a

causa de tudo quanto eacute reto e belo e que no mundo visiacutevel eacute ela quem gera a luz e o senhor da luz e no

mundo inteligiacutevel eacute ela mesma que como senhora propicia verdade e inteligecircncia devendo tecirc-la diante

dos olhos quem quiser agir com sabedoria(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) na vida privada e puacuteblicardquo

111

exige um treinamento de modo a deixaacute-la apta para o conhecimento (Rep 518c8-d1) A

educaccedilatildeo seraacute dada como a arte de mover a alma fazendo com que ela mude de direccedilatildeo

(κεηαζηξέθσ) e contemple o bem desviando-a do que se refere ao devir

ldquo- Pois bem disse eu Pode ser que haja uma arte a arte do

desvio isto eacute de como da maneira mais raacutepida e eficiente essa

pessoa mudaria de direccedilatildeo (Τνύηνπ ηνίλπλ ἦλ δ ἐγώ αὐηνῦ ηέρλε ἂλ

εἴε ηο πεξηαγσγο ηίλα ηξόπνλ ὡο ῥᾷζηά ηε θαὶ ἀλπζηκώηαηα

κεηαζηξαθήζεηαη) Natildeo seria poreacutem para criar dentro dela a visatildeo

porque jaacute a tem mas como natildeo a manteacutem na direccedilatildeo correta e natildeo

olha para onde deve para proporcionar-lhe os meios necessaacuterios

para isso

- Eacute provaacutevel que seja assim disse

- Pois bem As outras virtudes as chamadas virtudes da alma

podem muito bem ser algo muito proacuteximo das do corpo (na realidade

natildeo existindo previamente podem ser criadas mais tarde por meio de

haacutebitos e exerciacutecios (ηῷ ὄληη γὰξ νὐθ ἐλνῦζαη πξόηεξνλ ὕζηεξνλ

ἐκπνηεῖζζαη ἔζεζη θαὶ ἀζθήζεζηλ)) a virtude do pensar poreacutem ao

que parece por ser proacutepria de algo mais divino jamais perde sua

forccedila (ἡ δὲ ηνῦ θξνλζαη παληὸο κᾶιινλ ζεηνηέξνπ ηηλὸο ηπγράλεη ὡο

ἔνηθελ νὖζα ὃ ηὴλ κὲλ δύλακηλ νὐδέπνηε ἀπόιιπζηλ) De acordo com

a direccedilatildeo que lhe eacute imposta (ὑπὸ δὲ ηο πεξηαγσγο) vem a ser uacutetil e

proveitosa ou inuacutetil e nociva ()rdquo (Rep 518d2-519a1)

Um dos importantes aspectos do pensamento que ganha ecircnfase na descriccedilatildeo da

educaccedilatildeo diz respeito agrave possibilidade de exerciacutecio e orientaccedilatildeo da capacidade cognitiva

Ao verificar no argumento como eacute dada a atividade intelectual e por quais meios eacute

possiacutevel mobilizaacute-la observa-se que nesse contexto se tem em vista o pensar ao modo

do exerciacutecio por meio do qual a alma se volta para os inteligiacuteveis a partir daquilo que

ela proacutepria dispotildee O desenrolar da capacidade e das atividades intelectuais da alma as

quais tinha como guia um meacutetodo para as suas operaccedilotildees como se viu na analogia da

linha agora tem seu desenvolvimento a partir do estiacutemulo dado pela arte de orientar do

pedagogo Do mesmo modo como caracteriacutestica indestrutiacutevel da alma o pensar no seu

modo excelente (θξόλεζηο)67

resulta da boa orientaccedilatildeo que lhe eacute dada O aprendizado

por sua vez consiste neste movimento de mudar de direccedilatildeo e manter-se tendo em mira o

inteligiacutevel tal como orienta o pedagogo para que por si mesmo adquira o

conhecimento

67 Φξόλεζηο como capacidade inteligente da alma que existe antes do nascimento e apoacutes a morte do

corpo tem a sua ocorrecircncia no Feacutedon na Teoria da Reminiscecircncia e no argumento final que constitui a

prova da imortalidade como seraacute analisado em detalhe mais tarde

112

Cabe notar que natildeo parece se tratar apenas da atividade do conhecimento ou da

capacidade de cogniccedilatildeo mas sobretudo da potencialidade de voltar-se para o bem As

qualidades que se pode adquirir com o exerciacutecio do pensar se distinguem de um tipo de

virtude que os exerciacutecios fiacutesicos e o haacutebito podem conferir ao corpo Dito deste modo

o treino para o exerciacutecio intelectual em contraste com os exerciacutecios fiacutesicos aponta mais

uma vez o pensamento como a faculdade cuja potencialidade deve ser desenvolvida e

orientada para aquisiccedilatildeo das virtudes que interessam ao filoacutesofo governante

Note-se todavia que ao mesmo tempo em que se tem uma importante afirmaccedilatildeo

acerca do pensar como uma atividade virtuosa ou que demonstra virtude da parte de

quem a realiza parece curioso o dado de que isto depende de uma orientaccedilatildeo que natildeo

seja dada pela sua relaccedilatildeo com a ideia do bem inteligiacutevel diretamente O conhecimento

que ilumina as orientaccedilotildees necessaacuterias para o bom governo natildeo seria possiacutevel sem esse

contato com a ideia do bem Entretanto a figura do pedagogo parece realizar a

mediaccedilatildeo entre os inteligiacuteveis e aquele que estaacute em processo de desenvolvimento

intelectual A intenccedilatildeo pedagoacutegica do argumento tem em vista oferecer um modelo de

educaccedilatildeo e para isso precisa sugerir os meios para mobilizar a alma e indicar o que de

fato a potildee em movimento rumo ao conhecimento Natildeo haacute motivos para supor dessa

forma que uma submissatildeo agrave ideia do bem se daria diretamente como parece ocorrer

com o dialeacutetico dispensando um processo para tal O processo nesse caso eacute orientado

pelo pedagogo e o pensar aqui eacute exibido em suas potencialidades para a aquisiccedilatildeo das

virtudes e em seu desenvolvimento como oacutergatildeo a ser treinado para a cogniccedilatildeo Natildeo se

trata portanto de impor ou transmitir um conteuacutedo considerado cientiacutefico ldquo() a

educaccedilatildeo natildeo eacute o que alguns profissionais que satildeo dizem que ela eacute Natildeo havendo

ciecircncia na alma dizem eles laacute a colocam tal qual colocassem visatildeo em olhos cegosrdquo

(Rep 518d9-c2) mas de dispor daquela que parece ser a caracteriacutestica mais importante

da alma e que deve ser atingida por aquele que tem aptidatildeo para governar

Por outro lado dito deste modo o pensar eacute sugerido como uma grande

habilidade para agir segundo a orientaccedilatildeo que lhe for imposta e de discernir sobre a

alma que estaacute para receber orientaccedilatildeo o que pode resultar na virtude ou no viacutecio Ao

modo de uma habilidade esta visatildeo eacute aparentemente incompatiacutevel com a ideia da

caracteriacutestica excelente da alma como eacute a θξόλεζηο Uma vez que o viacutecio parece

tambeacutem ser resultado dela permite a indagaccedilatildeo em que sentido tal caracteriacutestica

excelente poderia servir aos viacutecios se ela eacute excelente justamente por poder atingir a ideia

do bem

113

ldquo- Ora disse eu se uma alma cuja natureza (ηὸ ηο ηνηαύηεο

θύζεσο) eacute essa jaacute na infacircncia fosse submetida a uma cirurgia em

que lhe fosse cortado o que para ela eacute como uma chumbada algo que

tem afinidade com o devir (ηὰο ηο γελέζεσο ζπγγελεῖο ὥζπεξ

κνιπβδίδαο) e que sendo por natureza adequada (πξνζθπεῖο) aos

banquetes prazeres e glutonerias tais voltam para baixo o olhar da

alma se poreacutem jaacute liberta disso voltasse seu olhar para as coisas

verdadeiras (ὧλ εἰ ἀπαιιαγὲλ πεξηεζηξέθεην εἰο ηὰ ἀιεζ) mesmo

aquela alma a dos homens teria uma visatildeo muito niacutetida como a que

tem das coisas para as quais estaacute voltada agorardquo (Rep 519a8-b6)

Cabe problematizar a partir desta uacuteltima passagem a relaccedilatildeo entre o pensamento

como capacidade e atividade cognitiva e a natureza a qual compreende as noccedilotildees de

habilidade e aptidatildeo que o texto ora oferece A primeira questatildeo que se coloca diz

respeito agrave natureza racional da alma ou seja em que sentido o racionalismo tal como

foi analisado ateacute entatildeo estaacute de acordo com a noccedilatildeo de natureza que determina e

classifica a posiccedilatildeo dos cidadatildeos na cidade Antes de mais nada deve-se notar que a

uacuteltima passagem sugere que a educaccedilatildeo eacute capaz de corrigir a natureza Disso decorre

outra importante e inevitaacutevel questatildeo todos poderiam ser filoacutesofos a partir de uma

educaccedilatildeo adequada A tentadora resposta negativa para essa uacuteltima questatildeo viraacute mais

adiante e mostraraacute justamente como procede esta correccedilatildeo De todo modo o limite entre

o que se pode aperfeiccediloar com exerciacutecio e as potencialidades que se tem naturalmente se

encontram nesse contexto da παηδεία e do θαηακαλζάλσ o qual natildeo oferece maiores

elucidaccedilotildees acerca do assunto antes do texto sugerir um procedimento pedagoacutegico O

que eacute posto interessa observar eacute o caraacuteter racional da alma como gecircnero ou seja

distinto do corpo e como o que se refere ao indiviacuteduo o qual se divide em dois tipos os

que estatildeo voltados para a sua parte inferior e os que tecircm em vista a sua parte superior

Observe-se que ainda natildeo estaacute em questatildeo para a educaccedilatildeo somente a natureza do futuro

filoacutesofo o que se daraacute a seguir mas a partir do que como e com que finalidade a

educaccedilatildeo deve orientar a alma Tal como eacute sugerida a possibilidade de orientaccedilatildeo da

alma parece ter em vista os tipos distintos aqui resumidos nesses dois uacuteltimos

perspectiva bastante conveniente com as pretensotildees de um governo que pretende

organizar de modo harmocircnico as vaacuterias partes da cidade

Dado que o diaacutelogo se refere a naturezas diferentes vale lembrar em que sentido

o texto apresenta tal noccedilatildeo e verificar em que medida se pode compreender o

pensamento como capacidade e atividade da alma De acordo que cada cidadatildeo deve

114

exercer uma funccedilatildeo compatiacutevel com a sua natureza (Rep 453b) e de que existem

distinccedilotildees entre elas a exemplo da diferenccedila entre os homens e as mulheres (Rep

453e) Soacutecrates e Glaacuteucon se datildeo conta da importacircncia de averiguar a espeacutecie das

naturezas que se mostram distintas ou iguais Depreendida ateacute entatildeo a partir das

funccedilotildees a investigaccedilatildeo passa a abordaacute-la da perspectiva inversa a saber da natureza

em seu gecircnero e espeacutecie para a funccedilatildeo Dito de outro modo pretende-se verificar o tipo

de natureza como o fator determinante para atribuir uma funccedilatildeo (Rep 454c-d) O

primeiro ponto que se deve ter em vista se refere ao aspecto que se propotildee analisar a

natureza Parece muito mais plausiacutevel e conveniente aos assuntos da cidade observar a

natureza segundo as caracteriacutesticas que apresenta determinado indiviacuteduo Assim natildeo se

trata de considerar a natureza segundo o gecircnero feminino ou masculino mas considerar

individualmente o que se mostra natural- haacute mulheres que satildeo dotadas para a muacutesica ou

tem amor pela sabedoria mas outras natildeo (Rep 455e-456a) A natureza nesses termos eacute

dada como uma aptidatildeo que manifestaraacute ao mesmo tempo as suas afinidades (Rep

456b) e que deve ser desenvolvida pela educaccedilatildeo (Rep 456d-e) Ao constituir o

elemento individual e intriacutenseco que determina as funccedilotildees dos cidadatildeos a natureza tal

como eacute sugerida contrapotildee-se ao haacutebito fundamento ordinaacuterio para o estabelecimento

da ordem na cidade (Rep 456c) Dado que se persegue o conjunto de aptidotildees

adequadas para determinadas atividades o criteacuterio de excelecircncia para desenvolver os

indiviacuteduos e para harmonizar a cidade (Rep 456e-457a) leva em consideraccedilatildeo ao

mesmo tempo eleger os instrumentos e os meacutetodos convenientes para o

desenvolvimento da aptidatildeo ao ponto da excelecircncia sendo conveniente assim propor

uma educaccedilatildeo adequada para cada tipo de natureza

A excelecircncia nesse sentido refere-se ao desenvolvimento maacuteximo da

capacidade que se tem naturalmente No que se refere agraves virtudes a θξόλεζηο parece ser

a capacidade eleita para tal o que permite presumir que aqueles que naturalmente a

possuem podem desenvolvecirc-la a ponto de se tornar um homem virtuoso e ser ela

portanto uacutetil e proveitosa Por outro lado aqueles que a possuem mas natildeo a

desenvolvem podem adquirir viacutecios e ser tatildeo decaiacutedos quanto aqueles que naturalmente

natildeo a tecircm como parece ser o caso daqueles que satildeo considerados saacutebios mas na

verdade satildeo maus (πνλεξόο) Assim cabe perguntar a habilidade que possuem de

discernir e incutir o viacutecio natildeo eacute sinal da inteligecircncia

115

ldquo () Seraacute que a respeito dos que satildeo chamados maus mas

saacutebios ainda natildeo notaste como eacute penetrante o olhar da almazinha

deles como ela distingue nitidamente os objetos para os quais estaacute

voltada e que porque sua visatildeo natildeo eacute ruim ela eacute obrigada a servir o

viacutecio de forma que quanto mais penetrante for seu olhar tanto mais

danos ela produz ndash (ὡο δξηκὺ κὲλ βιέπεη ηὸ ςπράξηνλ θαὶ ὀμέσο δηνξᾷ

ηαῦηα ἐθ ἃ ηέηξαπηαη ὡο νὐ θαύιελ ἔρνλ ηὴλ ὄςηλ θαθίᾳ δ

ἠλαγθαζκέλνλ ὑπεξεηεῖλ ὥζηε ὅζῳ ἂλ ὀμύηεξνλ βιέπῃ ηνζνύηῳ

πιείσ θαθὰ ἐξγαδόκελνλ) (Rep 519a1-6)

Note-se que os falsos saacutebios parecem ser donos de uma potencialidade jaacute que

demonstram ter discernimento e certa perspicaacutecia entretanto mal orientados produzem

danos (θαθὰ) e prestam um serviccedilo nocivo para a cidade A capacidade que possuem a

qual lhe confere discernimento e agudez natildeo parece constituir a θξόλεζηο dado que a

consequecircncia do desenvolvimento natildeo satildeo as virtudes Ao que parece ateacute esses a

educaccedilatildeo seria capaz de corrigir se fossem orientados desde a infacircncia a desenvolver o

que naturalmente possuem de melhor Com a boa educaccedilatildeo as virtudes naturais a cada

um parecem surgir como resultado o que pressupotildee o desenvolvimento de uma

habilidade nos termos de uma aptidatildeo Bem educado cada um estaacute apto a cumprir a

funccedilatildeo que naturalmente lhe cabe desempenhando bem desse modo o seu papel na

cidade A uacuteltima passagem contrapotildee a figura do filoacutesofo e do natildeo-filoacutesofo na figura do

pedagogo e do falso saacutebio para marcar as distinccedilotildees e as consequecircncias do tipo de

conduccedilatildeo e desenvolvimento que se propotildee em contraste com uma ordinaacuteria concepccedilatildeo

de saber e de governo Do mesmo modo distingue o que pode ser considerado

maioridade excelecircncia de uma grande habilidade nem sempre desenvolvida para a

direccedilatildeo que deveria

Assim no que diz respeito ao governante da cidade haacute a exigecircncia do

conhecimento e portanto da frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel pois a verdade e as virtudes

satildeo conhecidas e adquiridas como jaacute visto nesta experiecircncia intelectual que somente o

filoacutesofo pode empreender (Rep 519b7-c1) Para os que natildeo possuem natureza filosoacutefica

natildeo satildeo possiacuteveis as mais altas aquisiccedilotildees que a filosofia oferece com o seu alto grau de

desenvolvimento intelectual Mesmo bem treinados pelo pedagogo os naturalmente

natildeo-filoacutesofos natildeo ascenderiam ao conhecimento e portanto natildeo poderiam governar O

filoacutesofo por apresentar a aptidatildeo para o conhecimento tem por natureza aptidatildeo para o

governo No entanto apesar da ascensatildeo do filoacutesofo a potencialidade de sua natureza

filosoacutefica parece natildeo estar plenamente desenvolvida se natildeo houver o movimento

descendente ou seja se natildeo houver uma atividade que varie da frequentaccedilatildeo do

116

domiacutenio inteligiacutevel para a obscuridade do domiacutenio sensiacutevel a qual analogamente se

refere agrave praacutetica da educaccedilatildeo e do governo A praacutetica de governar constitui uma

exigecircncia da funccedilatildeo que naturalmente deve desempenhar por um lado e o que parece

ser uma inescapaacutevel consequecircncia da inteligibilidade adquirida com a aquisiccedilatildeo das

ideias por outro Em outras palavras tanto a natureza filosoacutefica quanto os ditames

dados pelo conhecimento determinam que o filoacutesofo desccedila ao domiacutenio aonde deve

conduzir a cidade e os educandos na direccedilatildeo do bem

ldquo- A tarefa que cabe a noacutes fundadores que somos disse eu eacute

obrigar que as melhores naturezas cheguem ao aprendizado (ηάο ηε

βειηίζηαο θύζεηο ἀλαγθάζαη ἀθηθέζζαη πξὸο ηὸ κάζεκα) que no que

falaacutevamos haacute pouco daacutevamos como o melhor de todos isto eacute ver o

bem e fazer aquela caminhada para o alto e depois que a fizerem e jaacute

tiverem contemplado suficientemente o bem natildeo devemos permitir-

lhes o que hoje permitimos

- O quecirc

- Que permaneccedilam laacute disse eu e natildeo queiram descer outra vez

para junto daqueles prisioneiros nem partilhar com eles das labutas

e das honras sejam elas de pouco ou muito valor (εἴηε θαπιόηεξαη

εἴηε ζπνπδαηόηεξαη)rdquo (Rep 519c7-d8)

Natildeo parece haver exagero em compreender que o movimento ascendente e

descendente do percurso intelectual do filoacutesofo tal como eacute dado nessa uacuteltima passagem

resgata o movimento da λόεζηϛ como mostrou o exemplo da linha dividida Nas duas

narrativas tanto na linha quanto agora na educaccedilatildeo de posse do conhecimento apoacutes a

ascese o filoacutesofo deve voltar agraves etapas anteriores agrave condiccedilatildeo anterior no caso para

efetivamente levar a termo a sua atividade inteligente Esta parece ser a face praacutetica do

conhecimento cuja base eacute em uacuteltima circunstacircncia a relaccedilatildeo que se estabelece com o

inteligiacutevel pelo pensamento Tal como se viu na anaacutelise acerca da λόεζηϛ a benignidade

do bem conhecida em tal relaccedilatildeo impotildee-se para a alma como modelo atraveacutes do

meacutetodo dialeacutetico O exerciacutecio de pensar segundo a dialeacutetica potildee a alma em contato com

a ideia do bem que uma vez apreendida serviraacute de paracircmetro para as accedilotildees Nesse

sentido a orientaccedilatildeo e a conduccedilatildeo dada por esta arte (ηέρλε ηο πεξηαγσγο) mostra a

legitimidade do conhecimento ao modo da filosofia para a conduccedilatildeo dos cidadatildeos que

se efetiva nessa partilha das coisas valorosas adquiridas com a ascese

Ao mesmo tempo em que a alta cogniccedilatildeo fornece o conhecimento acerca da

ideia do bem como fundamento da justiccedila e das virtudes a realizaccedilatildeo do bom governo

o qual pretende harmonizar a cidade a partir do bem estar (εὖ πξάμεη Rep 519e2) em

117

todas as partes exige esse segundo movimento A lei da cidade como deve ser baseia-

se nesse princiacutepio de harmonia o qual somente o governante filoacutesofo com a

compreensatildeo do verdadeiro princiacutepio pode estabelecer pela ligaccedilatildeo (ηὸλ ζύλδεζκνλ

Rep 520a4) entre as partes assim a cumprindo efetivamente (Rep 520a) O

conhecimento obtido na contemplaccedilatildeo acerca da verdade das coisas belas boas e justas

faz com que o filoacutesofo tenha o discernimento necessaacuterio acerca das imagens sendo

possiacutevel para ele voltar ao domiacutenio das sombras sem riscos O filoacutesofo estaacute preparado

para ordenar a cidade para comandar os cidadatildeos segundo o que dita a razatildeo

45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel

O completo trabalho que o pensamento pode realizar e consequentemente as

transformaccedilotildees morais que podem ocorrer na alma devido o exerciacutecio intelectual de

ascensatildeo ao inteligiacutevel podem ser dadas somente pelo treino da educaccedilatildeo Como se vecirc a

alegoria da caverna e o argumento da παηδεία e do θαηακαλζάλσ descrevem o exerciacutecio

intelectual da filosofia como o percurso da experiecircncia do conhecimento e oferecem

para isso a figura do filoacutesofo como o modelo ideal desse desenvolvimento que a alma

experimenta a partir desta arte - ldquo- Aqui natildeo se trata de ver de que lado cai um caco de

ceracircmica mas de fazer que uma alma decirc uma volta deixando um dia carregado de

trevas para dirigir-se ateacute o verdadeiro dia isto eacute realizar uma verdadeira ascensatildeo ateacute

o ser Isso afirmamos eacute a verdadeira filosofiardquo (Rep 521c6-9) Como meio de

organizar a cidade a paideia deve mobilizar as diferentes classes de modo a se

submeterem ao governo ideal do filoacutesofo Faz sentido assim apresentar um quadro no

qual a alma estaacute sob coaccedilatildeo No caso da alma filosoacutefica interessa mostrar como se daacute

sua submissatildeo ao bem Desse modo para que o projeto de harmonizaccedilatildeo da polis se

cumpra eacute necessaacuterio averiguar os meios que na educaccedilatildeo ajudam nesse movimento As

orientaccedilotildees e aprendizados aplicados no treinamento do futuro governante devem servir

para pocircr a alma por meio da dialeacutetica obediente ao que oferece a razatildeo o ser a

verdade a ideia do bem

118

Ao especificar assim acerca das disciplinas que promovem o movimento da

alma em direccedilatildeo ao ser - ηνῦ ὄληνο νὖζαλ ἐπάλνδνλ- movimento que constitui a

ascensatildeo intelectual da filosofia tem-se o que parece consistir em uma segunda causa

para a atividade de pensar aleacutem da filiaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel O treino intelectual

para percorrer o caminho entre o devir e o ser (Rep 521d1-4) que algumas artes como a

aritmeacutetica possibilitam (Rep 522c) mostram uma via para a intelecccedilatildeo que permite a

atuaccedilatildeo do pedagogo a inquietaccedilatildeo que a contrariedade entre as percepccedilotildees do sensiacutevel

e a visatildeo do inteligiacutevel causam na alma Tal contrariedade como a que encontra o

receacutem-saiacutedo da caverna ao se deparar com os verdadeiros objetos pode consistir em um

estiacutemulo para o pensamento de modo a fazecirc-lo buscar a verdade Desse modo a

disciplina que parece tocar nessa questatildeo a contradiccedilatildeo entre as aparecircncias em

contraponto ao inteligiacutevel eacute a matemaacutetica Natildeo somente por serem o nuacutemero e o caacutelculo

presentes nas outras artes raciociacutenios e ciecircncias mas principalmente por colocarem em

questatildeo de maneira bastante uacutetil para o filoacutesofo a contradiccedilatildeo entre as percepccedilotildees e

assim a contraposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

Assim o aspecto a ser notado no argumento do Livro VII que toca sobretudo a

aritmeacutetica consiste na utilidade pedagoacutegica dessas disciplinas Natildeo somente o proveito

que se pode ter no que se refere ao treinamento militar ou seja o que se pode aproveitar

delas para fins estrateacutegicos de guerra mas sobretudo o treinamento que se pode dar ao

aprendiz atraveacutes do exerciacutecio intelectual envolvido na operaccedilatildeo com os nuacutemeros

ldquo- Pode bem ser que ele seja por natureza um dos aprendizados

que conduzem a inteligecircncia na direccedilatildeo do que buscamos (Κηλδπλεύεη

ηῶλ πξὸο ηὴλ λόεζηλ ἀγόλησλ θύζεη εἶλαη) mas ningueacutem o usa

corretamente mesmo que ele seja o que sem duacutevida eacute capaz de

arrastar-nos ateacute o ser (ρξζζαη δ νὐδεὶο αὐηῷ ὀξζῶο ἑιθηηθῷ ὄληη

παληάπαζη πξὸο νὐζίαλ) (Rep 523a1-3)

Dada a peculiaridade desse κάζεκα ao que parece eacute possiacutevel obter a destreza de

superar as sensaccedilotildees em vista de um exerciacutecio intelectual atraveacutes da aritmeacutetica na

medida em que ela potildee de forma mais objetiva a multiplicidade e a contradiccedilatildeo das

percepccedilotildees sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo agrave unidade Se no argumento da linha dividida o

meacutetodo matemaacutetico era dado para mostrar um objeto de natureza inteligiacutevel mas cujas

caracteriacutesticas implicavam em limitaccedilotildees cognitivas em comparaccedilatildeo agrave ideia do bem e ao

meacutetodo filosoacutefico agora esta mesma caracteriacutestica a saber ter certa ligaccedilatildeo com o

119

sensiacutevel potildee em certa medida a possibilidade da superaccedilatildeo que constitui o trabalho do

intelecto em relaccedilatildeo ao sensiacutevel

A passagem da contradiccedilatildeo sensiacutevel para a determinaccedilatildeo inteligiacutevel como fazem

as matemaacuteticas parece bastante uacutetil para o contexto da pedagogia e revela de fato uma

superaccedilatildeo do intelecto A noccedilatildeo de superaccedilatildeo que acontece com o caacutelculo realizado na

aritmeacutetica por exemplo a passagem da multiplicidade para a unidade tem por essa

razatildeo grande importacircncia para o aprendizado Este dado se mostra relevante na medida

em que situa a oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel apresentada no Livro VI no que se refere a

uma operaccedilatildeo da mente Na analogia da linha dividida as operaccedilotildees envolvidas nos

estados de percepccedilatildeo e de cogniccedilatildeo satildeo distintas e classificadas nos termos de estados

intelectivos da alma em relaccedilatildeo a determinados objetos O que se mostra agora eacute o

princiacutepio que faz a alma inteligir a partir das sensaccedilotildees e qual o tipo de elevaccedilatildeo que a

matemaacutetica enquanto exerciacutecio intelectual pode promover

ldquo- Vou mostrar falei se me concedes atenccedilatildeo que nas sensaccedilotildees

algumas coisas natildeo convidam a inteligecircncia agrave reflexatildeo (ηὰ κὲλ ἐλ ηαῖο

αἰζζήζεζηλ νὐ παξαθαινῦληα ηὴλ λόεζηλ) como se lhes fosse

suficiente o julgamento feito pela sensaccedilatildeo (ὑπὸ ηο αἰζζήζεσο

θξηλόκελα) mas que outras ordenam (δηαθειεύνκαη) que de toda

maneira a inteligecircncia examine como se a sensaccedilatildeo nada produzisse

de vaacutelido

- O que se vecirc de longe disse e o que eacute desenhado com luzes e

sombras Eacute evidente que eacute disso que falas

- Natildeo conseguiste apreender disse eu o que estou dizendo

- De quecirc disse estaacutes falando

- Natildeo incita agrave reflexatildeo disse eu o que natildeo resulta

simultaneamente em sensaccedilotildees opostas (Τὰ κὲλ νὐ παξαθαινῦληα ἦλ

δ ἐγώ ὅζα κὴ ἐθβαίλεη εἰο ἐλαληίαλ αἴζζεζηλ ἅκα) o que poreacutem

delas resulta eu considero que incita agrave reflexatildeo porque a sensaccedilatildeo

natildeo torna uma coisa mais evidente que seu oposto quer a percebemos

de longe ou de perto Com este exemplo compreenderaacutes melhor o que

estou dizendo ()rdquo (Rep 523b9-c4)

Diante deste novo caraacuteter conferido agrave aritmeacutetica parece vaacutelido questionar se

estaria neste argumento a resposta para uma questatildeo pertinente em relaccedilatildeo agraves divisotildees

da linha o que faz a alma realizar a passagem da segunda parte da primeira divisatildeo a

parte que conteacutem animais e objetos fiacutesicos do reino sensiacutevel para a primeira parte da

segunda divisatildeo a qual abarca os seres matemaacuteticos no domiacutenio Inteligiacutevel Ou

resumidamente qual o elemento e de que modo se daacute a passagem do sensiacutevel para o

inteligiacutevel Para tentar responder essa pergunta e para compreender a operaccedilatildeo

120

envolvida nessa superaccedilatildeo deve-se antes reparar que o argumento sugere um trabalho

mental nos termos da percepccedilatildeo que antecede a intelecccedilatildeo a operaccedilatildeo com seres

inteligiacuteveis As operaccedilotildees em torno da αἴζζεζηο satildeo dadas de dois modos ὑπὸ ηο

αἰζζήζεσο θξηλόκελα um juiacutezo sob efeito das sensaccedilotildees considerando-as suficientes e

ηὰ δὲ παληάπαζη δηαθειεπόκελα ἐθείλελ ἐπηζθέςαζζαη um exame feito a partir do

intelecto natildeo baseado nos dados sensiacuteveis No primeiro caso as sensaccedilotildees satildeo tomadas

como os uacutenicos elementos para se realizar tal atividade dita ao modo de um

discernimento (θξίλσ) consideradas portanto suficientes No segundo caso

consideradas deficientes (νὐδὲλ ὑγηὲο) as sensaccedilotildees tecircm exposta a caracteriacutestica que as

invalidam como via para o conhecimento mas que ao mesmo tempo as revelam um

estiacutemulo para a atividade de pensar no seu modo superior a λόεζηο a saber a

contrariedade que se daacute simultaneamente devido a multiplicidade dos dados sensiacuteveis

As muacuteltiplas sensaccedilotildees que assaltam a alma ao mesmo tempo especificamente

as que se apresentam contraacuterias entre si provocam o pensar na medida em que a

obrigam a realizar uma distinccedilatildeo de modo a determinaacute-lo nos termos inteligiacuteveis o que

pode ser feito tanto pela geometria quanto pela filosofia Formulado nesses termos as

percepccedilotildees do sensiacutevel como estiacutemulo se assemelham ao que se encontra no Feacutedon

onde o intelecto trabalha para promover o afastamento ente alma e corpo como resposta

da alma agraves perturbaccedilotildees advindas da sensibilidade Nesse contexto a contradiccedilatildeo eacute dada

na relaccedilatildeo alma-corpo sendo o pensamento uma resposta inteligente da alma para ela

O que se vecirc aqui no livro VII entretanto diz respeito agrave mesma contradiccedilatildeo mas agora

reunida na matemaacutetica a qual apela para elementos inteligiacuteveis a fim de dar tratamento

aos objetos do mundo sensiacutevel

Embora em contextos diferentes a contradiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel se mostra um

estiacutemulo tanto para o matemaacutetico que vecirc nisso a oportunidade de tratar o sensiacutevel

quanto para o filoacutesofo que se vecirc instigado a questionaacute-la filosoficamente O argumento

pede desse modo uma anaacutelise disto que propotildee como contrariedade para que se possa

compreender tal estiacutemulo Primeiramente longe de se sugerir a passividade de uma

mera recepccedilatildeo de dados sensoriais o texto mostra que a percepccedilatildeo constitui uma

atividade que parece ocorrer inevitavelmente acerca desses dados recebidos quer ao

modo de um discernimento quer ao de uma inspeccedilatildeo como se viu Tal contrariedade

potildee em perspectiva nesse sentido a excitaccedilatildeo advinda do sensiacutevel para um trabalho

inteligente e faz desse modo reconhecer na αἴζζεζηο um fator para que se decirc a

atividade do pensamento (δηάλνηα e λόεζηο)

121

Cabe verificar a explicaccedilatildeo que o texto oferece acerca da contradiccedilatildeo dos dados

sensiacuteveis como origem deste estiacutemulo com o ldquoexemplo dos dedosrdquo Vale a pena analisar

este argumento e compreender no que consiste essa contradiccedilatildeo seus mecanismos e as

peculiaridades disto que se mostra um estiacutemulo para o processo de cogniccedilatildeo Desse

modo o exemplo utilizado para ilustrar o que se pretende dizer acerca das sensaccedilotildees

mostra primeiro que uma sensaccedilatildeo natildeo provoca a inteligecircncia quando vista

unilateralmente ou dito de outro modo somente sob uma uacutenica caracteriacutestica

ldquo() Aqui estatildeo trecircs dedos o polegar o indicador e o meacutedio

- Eacute bem isso disse

- Pois bem Imagina que deles eu falo como se estivesse sendo

vistos de perto Vamos Observa-me a respeito deles o seguinte

- O quecirc

- Cada um deles tem igualmente a aparecircncia de um dedo e por

aiacute natildeo faz diferenccedila se eacute visto no meio ou como uacuteltimo se branco ou

negro se grosso ou fino e assim quanto a todas qualificaccedilotildees como

essas Eacute que em situaccedilotildees como essas a alma da maioria dos homens

natildeo eacute forccedilada a perguntar agrave inteligecircncia o que eacute um dedo porque a

visatildeo em nenhum momento lhe deu sinal de que um dedo eacute tambeacutem

ao mesmo tempo o oposto de um dedordquo (Rep 523b4-d6)

Uma vez observados os dedos sem levar em consideraccedilatildeo outras caracteriacutesticas

como cor e tamanho o que os diferenciam entre si natildeo apresentam nenhuma

contrariedade e por isso natildeo evocam em nada a inteligecircncia A visatildeo de um dedo

parece ser suficiente para informar que o objeto visto consiste em um dedo se se

pretende reconhecer no que consiste um dedo Diferentemente se considerados em

todas as caracteriacutesticas que se pode atribuir a um dedo como cor tamanho espessura

tem-se naquilo que eacute reconhecido como dedo caracteriacutesticas distintas e contraacuterias

pondo a alma em reflexatildeo sobre as percepccedilotildees dessas caracteriacutesticas O que eacute visto e

dito como um dedo pode ser grande e pequeno afinal o dedo meacutedio e o polegar satildeo

diferentes um do outro e ambos ditos ldquodedordquo Em outros termos reconhece-se no

mesmo sujeito o dedo atributos contraacuterios como grande e pequeno Observe-se que

diferente de compreender as sensaccedilotildees como via direta para a definiccedilatildeo de algo de

modo que sentir seja equivalente a conhecer elas satildeo dadas naquilo que proporcionam agrave

alma isto eacute nada mais que a percepccedilatildeo de dados sensoriais Opostas as sensaccedilotildees

causam algo que pode ser proveitoso se usado corretamente o ἀπνξεῖλ a dificuldade de

ter no mesmo sujeito em questatildeo percepccedilotildees antagocircnicas

122

A dificuldade o impasse no qual a alma se vecirc ao se dar conta de atributos

opostos eacute o que a faz recorrer ao intelecto Eacute nestes termos que se pode compreender a

incitaccedilatildeo (παξαθιεηηθόο ἐγεξηηθόο Rep 523e1) da alma ao pensamento a partir das

sensaccedilotildees a procura por meio da razatildeo de uma resoluccedilatildeo para tal dificuldade de

origem na percepccedilatildeo sensiacutevel

ldquo- Entatildeo disse eu em tais situaccedilotildees a alma natildeo se sentiraacute

necessariamente diante de um impasse (Οὐθνῦλ ἦλ δ ἐγώ ἀλαγθαῖνλ

ἔλ γε ηνῖο ηνηνύηνηο αὖ ηὴλ ςπρὴλ ἀπνξεῖλ) O que afinal eacute a dureza

que essa sensaccedilatildeo indica se da mesma coisa ela diz que tambeacutem eacute

mole E o que eacute a sensaccedilatildeo de leveza e de peso se o pesado eacute leve e

o leve eacute o pesado - E satildeo essas interpretaccedilotildees que desconcertam a

alma e exigem exame (Καὶ γάξ ἔθε αὗηαί γε ἄηνπνη ηῆ ςπρῆ αἱ

ἑξκελεῖαη θαὶ ἐπηζθέςεσο δεόκελαη) (Rep 524a6-b2)

Uma vez discorrido acerca de como ocorre e no que consiste o estiacutemulo das

percepccedilotildees que colaboram com o pensar vale examinar com minuacutecias a caracteriacutestica

dos nuacutemeros e do caacutelculo capaz de pocircr e de promover a superaccedilatildeo desse antagonismo

do sensiacutevel A saiacuteda do impasse posto pela sensaccedilatildeo estaacute nas operaccedilotildees intelectivas que

iratildeo investigar o que eacute a unidade em vista destas vaacuterias percepccedilotildees Assim a alma busca

o que eacute o dedo o pesado ou qualquer outra percepccedilatildeo em questatildeo como jaacute dito mas

nos termos que a matemaacutetica oferece como uma unidade de modo a examinar

(ἐπηζθνπεῖλ Rep 524b4) com o caacutelculo e com a inteligecircncia (ινγηζκόλ ηε θαὶ λόεζηλ) se

cada dado recebido diz respeito a um ou a dois objetos (Rep 524b5) Um e dois

constituem as referecircncias nas quais a alma se baseia para realizar uma interpretaccedilatildeo

(ἑξκελεία Rep524b1) do que lhe sobreveacutem Ela procede verificando primeiro se o

objeto que vecirc corresponde a um ou a dois isto eacute o que lhe aparece como dois eacute

entendido como dois nos termos de duas caracteriacutesticas distintas o pesado e o leve por

exemplo igualmente o que eacute visto tambeacutem eacute um ou seja uma uacutenica caracteriacutestica vista

individualmente o peso e a leveza Cada sensaccedilatildeo pode ser concebida como uacutenica

como peso e leveza as quais ditas deste modo supotildeem a noccedilatildeo e natildeo mais a sensaccedilatildeo

de pesado e de leve Assim podem ser concebidas duas quando entendidas como

sensaccedilotildees e uma quando entendidas nos termos de uma noccedilatildeo de natureza inteligiacutevel

Nesse uacuteltimo as caracteriacutesticas satildeo compreendidas como distintas e separadas

A alma entende nesta operaccedilatildeo que caracteriza o ινγηζκόο a unidade a

duplicidade e a relaccedilatildeo entre os objetos soma divisatildeo e ao fim o que mais interessa ao

123

filoacutesofo a indivisibilidade da unidade tal como seraacute sugerido mais adiante A divisatildeo

que a inteligecircncia opera nos termos da matemaacutetica constitui a divisatildeo (δύν

θερσξηζκέλα) daquilo que nos sentidos eacute apreendido como misturado (ἀρώξηζηά) (Rep

524c) A oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel (ηὸ κὲλ λνεηόλ ηὸ δ ὁξαηὸλ Rep 524c13) ganha

a sua versatildeo nesse argumento ao modo da distinccedilatildeo matemaacutetica isto eacute na dicotomia

confuso - distinto ou junto ndash separado (Rep 524c6-8) Constrangida a apreender as

qualidades separadamente a alma faz a distinccedilatildeo matemaacutetica entre sensiacutevel-inteligiacutevel

ao modo de uma abstraccedilatildeo na qual separa a qualidade percebida em termos inteligiacuteveis

como nuacutemero e relaccedilatildeo Uma vez separadas pelo intelecto qualidades como grandeza e

pequenez podem ser averiguadas individualmente ou conforme os propoacutesitos

filosoacuteficos nelas mesmas (Rep 524c10-11)68

Eacute nesta dicotomia que o nuacutemero se mostra capaz de estimular o exerciacutecio

intelectual do raciociacutenio (ὡο ηὰ κὲλ παξαθιεηηθὰ ηο δηαλνίαο Rep 524d2-3) visto

que potildee a unidade indivisiacutevel e o oposto que sempre a acompanha a multiplicidade (εἰ δ

ἀεί ηη αὐηῷ ἅκα ὁξᾶηαη ἐλαληίσκα Rep 524e2) Este constitui um dado importante acerca

dos nuacutemeros uma vez levantada a hipoacutetese da caracteriacutestica ligaccedilatildeo da matemaacutetica com

o sensiacutevel no Livro VI Neste trecho parece claro que tal ligaccedilatildeo se daacute nessa dicotomia

proacutepria do nuacutemero a qual possibilita tanto uma investigaccedilatildeo em vista da essecircncia

quanto uma ordenaccedilatildeo no que se refere agrave esfera do sensiacutevel Em outras palavras ao

mesmo tempo em que a simultaneidade das percepccedilotildees obriga a alma a buscar a unidade

para distinguir e definir um objeto visto tem-se no nuacutemero uma versatildeo inteligiacutevel para

compreender a pluralidade que tambeacutem caracteriza esse mesmo objeto A matemaacutetica se

mostra assim um modo de inquiriccedilatildeo que colabora com a filosofia ao constituir um

caminho para o estudo do ser Ao mesmo tempo eacute uma disciplina que oferece uma

perspectiva inteligente para o que eacute experienciado69

sendo por essa razatildeo uacutetil tambeacutem

para entender e organizar linhas de batalha como jaacute mostrou o texto (Rep 522e)

68 Trabattoni adverte que o ldquoPortanto natildeo se trata de colher a definiccedilatildeo de cada coisardquo Para o autor o

dinamismo do logos filosoacutefico natildeo tem a intenccedilatildeo de definir o objeto pois uma definiccedilatildeo justamente o

cessaria Assim considera que ldquo() na realidade este verbo [dioriacutezō] para Platatildeo significa muito mais

que definir ldquodistinguir delimitar separarrdquo A ldquodefiniccedilatildeordquo em outras palavras eacute o ato pelo qual certo

objeto eacute delimitado quando eacute individuado atraveacutes de uma especifica atribuiccedilatildeo que o diferencia em meio

agrave confusatildeo de um conjunto de outros objetosrdquo O conhecimento na filosofia natildeo deve ser entendido como

um conhecimento proposicional Trabattoni F 2013 p 169-171

69 Para deixar clara a perspectiva em que o argumento aborda os nuacutemeros os conceitos geomeacutetricos vale

trazer o comentaacuterio de Pierre-Maxime Schuhl sobre o que Platatildeo pretendia extrair dos conhecimentos

matemaacuteticos em oposiccedilatildeo ao prazer esteacutetico que se buscava nas artes especialmente escultura e

arquitetura ldquoApoacutes ter assim falado das belezas geomeacutetricas ndash a preferecircncia que lhes eacute dedicada natildeo haacute

124

Uma vez que trabalham com os nuacutemeros o caacutelculo e a aritmeacutetica estimulam

intelectualmente a alma atraveacutes do estudo da unidade a investigar a essecircncia

conduzindo-a a contemplaccedilatildeo do ser e por consequecircncia agraves qualidades proacuteprias do

inteligiacutevel como a verdade (Rep 524e5-525b1) Nisto consiste a superaccedilatildeo que a

matemaacutetica de fato proporciona a elevaccedilatildeo do sensiacutevel em busca da essecircncia inteligiacutevel

cujo exerciacutecio deste movimento torna haacutebil o guerreiro e o filoacutesofo para a funccedilatildeo que

lhes cabem ndash (εἶλαη γελέζεσο ἐμαλαδύληη Rep 525b5-6) Note-se que o argumento natildeo

sugere uma aquisiccedilatildeo da matemaacutetica anaacuteloga ou equivalente ao que se tem na filosofia

Mesmo que haja tal elevaccedilatildeo no exerciacutecio do raciociacutenio aritmeacutetico natildeo eacute a mesma que

mostraraacute a dialeacutetica visto que natildeo atinge a essecircncia mas a sugere atraveacutes da unidade e

do conhecimento da verdade

Como se viu o questionamento acerca do que eacute o um para o matemaacutetico gira

em torno do objeto que observa tendo em consideraccedilatildeo pode-se presumir a noccedilatildeo de

unidade em relaccedilatildeo agrave sua multiplicidade tendo em vista as relaccedilotildees que manteacutem com

ela soma divisatildeo multiplicaccedilatildeo O tratamento inteligente que pode oferecer ao sensiacutevel

exige ainda assim uma superaccedilatildeo das percepccedilotildees que satildeo postas em termos

aritmeacuteticos mas entretanto o objetivo maior consiste no trabalho com o caacutelculo que os

nuacutemeros possibilitam Natildeo parece haver portanto um questionamento acerca da

inteligibilidade da unidade sua natureza e relaccedilatildeo com o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico como

questionaria o filoacutesofo fazendo com que o matemaacutetico permaneccedila em um grau inferior

de elevaccedilatildeo comparado ao dialeacutetico

ldquo- Essa ciecircncia como diziacuteamos haacute pouco com muita forccedila

conduz a alma para o alto e a obriga a discutir a respeito dos

proacuteprios nuacutemeros sem jamais admitir discussatildeo caso algueacutem lhe

proponha nuacutemeros que tenham corpos visiacuteveis e palpaacuteveis Deves

saber que os peritos nesses assuntos se algueacutem usando a sua razatildeo

tenta dividir a proacutepria unidade fazem caccediloada e natildeo admitem isso

Se poreacutem tu a fazes em pedaccedilos eles a multiplicam para que jamais a

unidade se mostre como natildeo una mas como muitas partiacuteculas (ἀιι

ἐὰλ ζὺ θεξκαηίδῃο αὐηό ἐθεῖλνη πνιιαπιαζηνῦζηλ εὐιαβνύκελνη κή

πνηε θαλῆ ηὸ ἓλ κὴ ἓλ ἀιιὰ πνιιὰ κόξηα)rdquo (Rep 525d5e4)

nada de surpreendente pois elas deixam entrever as Ideias e os nuacutemeros com cujo auxiacutelio o demiurgo

deu sua forma definitiva aos elementos ()rdquo Schuhl P M op cit p 78

125

Nesse sentido o estiacutemulo que a aritmeacutetica daacute agrave λόεζηϛ eacute indireto sendo a

operaccedilatildeo intelectual da δηάλνηα ao modo do ινγηζκόο um degrau de ascensatildeo

inteligiacutevel

Dadas nesta perspectiva as matemaacuteticas explicam a origem da ascensatildeo do

domiacutenio sensiacutevel para o domiacutenio inteligiacutevel que o Livro VI indicou no exemplo da linha

dividida O acreacutescimo fundamental do ldquoargumento dos dedosrdquo para explicar a noccedilatildeo de

ascese vale notar consiste na reaccedilatildeo inteligente ao sensiacutevel que o argumento mostra

com a oposiccedilatildeo uno-muacuteltiplo operada pela aritmeacutetica a qual deixa evidente a ligaccedilatildeo

entre um plano e outro e o salto do ηόπνπ ηὸ ὁξαηνῦ para o ηὸ λνεηνῦ γέλνπο efetuada

pelo pensamento Natildeo se trata de oferecer um parecer e uma classificaccedilatildeo agrave atividade

racional de acordo com as qualificaccedilotildees sensiacutevel-inteligiacutevel como anteriormente mas

mostrar nesta experiecircncia do conhecimento tal como quer mostrar o Livro VII ao

oferecer um modelo de educaccedilatildeo porque e como as disciplinas se mostram

verdadeiramente uacuteteis para despertar e conduzir a alma para uma elevaccedilatildeo desse tipo O

argumento responde de certo modo as indagaccedilotildees acerca dos seres matemaacuteticos e da

sua cogniccedilatildeo sendo indicados o nuacutemero como o objeto proacuteprio da matemaacutetica a

unidade como o elemento inteligiacutevel primordial e o caacutelculo como a operaccedilatildeo racional

especiacutefica para este conhecimento O grau de inteligibilidade dos objetos matemaacuteticos

ganha elucidaccedilatildeo com as explicaccedilotildees sobre a unidade a qual do mesmo modo que o

meacutetodo natildeo tem sua natureza inteligiacutevel posta em questatildeo Em outros termos a

exemplo do que se viu na linha o matemaacutetico natildeo busca o um essencial agrave unidade

ficando restrito agraves operaccedilotildees que pode realizar com ele - diga-se de passagem restriccedilatildeo

bastante parecida com a que se identifica no procedimento demonstrativo Todavia tal

restriccedilatildeo serve tambeacutem para revelar o ensino da matemaacutetica como conhecimento

estrateacutegico na educaccedilatildeo do futuro governante e como atividade racional fundamental

para a elevaccedilatildeo da alma ao niacutevel mais alto de sua capacidade inteligente

V A perspectiva da inteligecircncia

A apreensatildeo do ser e da ideia segundo a λόεζηϛ constitui uma forma de visatildeo

que oferece agrave alma o objeto apreendido em sua integralidade Agrave primeira vista uma

126

afirmaccedilatildeo deste tipo pode induzir a questionar a essecircncia ou a ideia como compostos

cujas partes seriam caracteriacutesticas conhecidas no decorrer do exerciacutecio dialeacutetico Esse

natildeo consiste em um raciociacutenio naife se estiver em vista a noccedilatildeo de θαη ἰδέαλ κίαλ

ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο a ideia uacutenica que exprime a realidade a essecircncia (ldquoὃ

ἔζηηλrdquo ἕθαζηνλ) (Rep 517b) e por isso tais caracteriacutesticas Outra maneira de

compreender consiste em julgar que os atributos conhecidos pelo exerciacutecio do

pensamento no niacutevel matemaacutetico ou mesmo no niacutevel dialeacutetico como a verdade ou a

unidade formam todo o composto que a essecircncia exprime alternativa que o argumento

sobre as matemaacuteticas natildeo autoriza visto que o meacutetodo aritmeacutetico ou geomeacutetrico por

exemplo natildeo pretende conhecer a ideia e sim a unidade os conceitos e as operaccedilotildees

realizaacuteveis nesta arte Isso valeria para a dialeacutetica mas natildeo para as matemaacuteticas A

terceira opccedilatildeo a que parece mais fiel agraves dificuldades de se compreender no que consiste

uma visatildeo total do ser na dialeacutetica deixa somente a essecircncia como o que consituiu o

todo de um objeto sendo o pensamento nos termos da intelecccedilatildeo maacutexima capaz de

apreender o ser e consequentemente algumas caracteriacutesticas ataacutevicas a ele como

parece ser o caso da verdade O sentido de totalidade ou integralidade inspirado pela

declaraccedilatildeo da capacidade do dialeacutetico deve ser tomado ao que parece como o conjunto

de atributos da essecircncia apreendidos com o treino nas disciplinas matemaacuteticas o uno

imutaacutevel e invisiacutevel tal como apresenta o argumento no qual se fala das capacidades

cognitivas do aprendiz da arte dialeacutetica

ldquo- Depois desse periacuteodo disse eu a partir dos vinte anos os que

tiveram preferecircncia na escolha receberatildeo honras maiores que os

outros e as noccedilotildees que nessa etapa da educaccedilatildeo crianccedilas que eram

natildeo receberam sistematicamente deveratildeo ser reunidas para que elas

numa visatildeo de conjunto vejam a afinidade que as ciecircncias tecircm entre

si e tambeacutem a natureza do ser (νἱ πξνθξηζέληεο ηηκάο ηε κείδνπο ηῶλ

ἄιισλ νἴζνληαη ηά ηε ρύδελ καζήκαηα παηζὶλ ἐλ ηῆ παηδείᾳ γελόκελα

ηνύηνηο ζπλαθηένλ εἰο ζύλνςηλ νἰθεηόηεηόο ηε ἀιιήισλ ηῶλ

καζεκάησλ θαὶ ηο ηνῦ ὄληνο θύζεσο)

- Pelo menos falou soacute um aprendizado como esse permaneceraacute

firme naqueles em que vier a ocorrer

- Essa eacute a maior prova disse eu de que uma natureza eacute ou natildeo eacute

apta para a dialeacutetica Quem eacute capaz de visatildeo de conjunto estaacute apto

para a dialeacutetica e quem natildeo eacute capaz natildeo estaacute (Καὶ κεγίζηε γε ἦλ δ

ἐγώ πεῖξα δηαιεθηηθο θύζεσο θαὶ κή ὁ κὲλ γὰξ ζπλνπηηθὸο

δηαιεθηηθόο ὁ δὲ κὴ νὔ)ldquo (Rep 537b8-c7)

A visatildeo que o dialeacutetico possui versa sobre o inteligiacutevel isto eacute sobre a natureza

inteligiacutevel do ser e a relaccedilatildeo de familiaridade entre as disciplinas como dito antes (Rep

127

531d) A inteireza com que se pode tomar o inteligiacutevel envolve tambeacutem deve-se

observar um olhar sobre as ηέρλαη com as quais se exercita O treino do aprendiz

requer ao mesmo tempo um exame acerca dos aprendizados que recebe devendo ver

nesses natildeo somente o que eles tecircm por objeto mas tambeacutem o meacutetodo e os resultados de

cada um Assim tal como mostra o contexto da παηδεία a noccedilatildeo de totalidade de visatildeo

que demonstra ter o dialeacutetico eacute composta pela apreensatildeo da realidade e pelo olhar criacutetico

sobre o procedimento das artes sendo esta a perspectiva tiacutepica do dialeacutetico Tal visatildeo

confere a ele deve-se observar um caraacuteter cientificista dado que aposta nos

procedimentos e nos paracircmetros racionais - o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico o ser e a ideia do

bem - para obter o conhecimento de algo A ἐπηζηήκε sob esse acircngulo consiste na

visatildeo dessa integralidade para a qual o dialeacutetico eacute naturalmente inclinado e que se

constitui consequentemente tambeacutem de um exame sobre as operaccedilotildees racionais

expressas nos diferentes meacutetodos que se dispotildee para atingir os inteligiacuteveis70

Desse modo justifica-se que a destreza que se desenvolve pelo treinamento dado

pela educaccedilatildeo deve ser permanentemente exercitada por via do movimento de subida e

descida dialeacutetica A habilidade em inspecionar o objeto em questatildeo exige a inspeccedilatildeo

sobre os meacutetodos racionais uma autoinspeccedilatildeo para garantir ao final o conhecimento

Da mesma maneira na vida puacuteblica tal inspeccedilatildeo serve para assegurar um modo de vida

no qual se decirc o devido respeito e a obediecircncia ao que de fato se deve conhecer e seguir

a verdade o belo a justiccedila e o bem Sem a clara compreensatildeo do que consiste o

exerciacutecio dialeacutetico os aprendizes correm o risco de confundi-la com a arte eriacutestica ou

retoacuterica deixando reduzirem tais noccedilotildees ao niacutevel das opiniotildees (θαὶ πνιιάθηο θαὶ

πνιιαρῆ ἐιέγρσλ εἰο δόμαλ θαηαβάιῃ Rep 538d9) corrompendo assim o processo de

aprendizado e formaccedilatildeo intelectual e moral do futuro governante (Rep Rep 538d6-

539a1) e solapando a credibilidade na filosofia antes adquirida (Rep 539b9-c3) A

postura inteligente que se exprimiraacute mais tarde no governo depende dessa maneira da

dedicaccedilatildeo contiacutenua agrave filosofia por meio do exerciacutecio racional que garantiraacute o exerciacutecio

70 Gosling entende tal visatildeo como uma percepccedilatildeo intelectual da Forma provocada pelo exerciacutecio

dialeacutetico Este tipo de percepccedilatildeo como denomina oferece o conhecimento nos termos de uma

consciecircncia acerca do que se examina Gosling The Argument of the Philosophers p 120 O autoexame

que o exerciacutecio filosoacutefico propotildee tal como aqui se verifica realiza-se na observaccedilatildeo das accedilotildees segundo o

meacutetodo empregado para conhecer e consequentemente na apreensatildeo dessa Forma que constitui o

conhecimento O comentaacuterio do autor nesse sentido vai ao encontro do que aqui se analisa embora

aponte apenas para o que resulta do exerciacutecio A apreensatildeo da realidade e a autoinspeccedilatildeo que acontecem

na dialeacutetica compotildeem pelo que se vecirc esta ldquoconsciecircnciardquo de que fala Gosling dado que o conhecimento

natildeo seria possiacutevel sem que houvesse a atividade intelectual a partir do meacutetodo correto e adequado

128

do governo a favor da cidade como uma accedilatildeo inevitaacutevel dado que estaacute treinado a

contemplar a ideia do bem e desse modo tecirc-lo como modelo (Rep 540a-b)

A semelhanccedila entre filoacutesofo e cidade dita no final do Livro VII (Rep 541b) se

cumpre na medida em que as accedilotildees tanto intelectuais quanto poliacuteticas tenham como

paracircmetro o mesmo elemento o bem e a ideia do bem e sejam realizadas segundo a

operaccedilatildeo da alma que reconhece esta relaccedilatildeo a inteligecircncia A visatildeo de todo que o

dialeacutetico possui garante a frequentaccedilatildeo de maneira inteligente nos planos poliacutetico eacutetico

e cientiacutefico uma vez que constitui a perspectiva na qual identifica as vias inteligiacuteveis

comuns em todos os campos Como dispotildee da capacidade de reconhecer o elo comum

entre as ciecircncias natildeo seria de todo impossiacutevel reconhecer da mesma forma as relaccedilotildees

de afinidade entre o que observa ainda que seja no plano sensiacutevel no qual se daacute a vida

poliacutetica Nesse sentido natildeo se pode abrir matildeo do movimento racional da inteligecircncia

fundamentalmente ἀλάβαζηο e θαηάβαζηο o qual proporciona o reconhecimento das

ligaccedilotildees inteligiacuteveis entre objetos e campos diferentes e permite ao filoacutesofo governante

o trabalho intelectual de inteligir e realizar o exerciacutecio poliacutetico de governar a cidade

Pode-se supor que sem esta peculiaridade da ζύλνςηο natildeo haveria uma maneira

inteligente com a qual o filoacutesofo pudesse mobilizar as partes da cidade para governaacute-las

A visatildeo do todo caracteriacutestica do dialeacutetico consiste assim na apreensatildeo da essecircncia e

da ideia que se realiza com a intelecccedilatildeo ao modo da λόεζηϛ por via do reconhecimento

das relaccedilotildees e aspectos inteligiacuteveis entre os elementos que se tem em exame71

Cabe ainda um debate sobre a ζύλνςηο Para isso vale ter em mente as

limitaccedilotildees expostas no iniacutecio da investigaccedilatildeo sobre a possibilidade de conhecer o bem

Conveacutem lembrar que o estudo acerca do bem se realiza a partir do exame daquilo que a

ele se assemelha e possui propriedades iguais ao bem a ideia do bem analogamente dito

ldquofilho do bemrdquo Natildeo se teve a pretensatildeo com isso de compreender o bem ou mesmo a

ideia do bem em toda a sua magnitude mas somente na medida em que eacute possiacutevel

apreendecirc-los Um estudo acerca da racionalidade isto eacute seus objetos gecircneros

operaccedilotildees procedimentos e alcances como mostraram os argumentos analisados nos

Livros VI e VII apresenta um perfil racional da alma condizente com a natureza e

habilidades do dialeacutetico que eacute educado para ser plenamente consciente dos limites e

alcances cognitivos (Rep 532b1-2) A visatildeo que a alma adquire com a dialeacutetica

71 Em outros termos Chen define assim a ζύλνςηο ldquoSynopsis eacute a atividade da visatildeo de conjunto (seeing-

together) intelectual dos casos ζπγγελή de uma ideia na visatildeo da ideia ao longo da linha de relaccedilatildeo de

derivaccedilatildeordquo Chen op cit p 187

129

demonstra a sua capacidade de ver com clareza tal como sugerido em 533e nesse

sentido equivalente a apreender a realidade Natildeo parece haver no caso da ζύλνςηο algo

como uma visatildeo suacutebita na qual a alma ao fim de um processo repentinamente se depara

com o real As exigecircncias do meacutetodo dialeacutetico demonstram que o processo eacute o que

determina tal apreensatildeo como resultado e natildeo se teria a visatildeo da ideia sem o percurso

anterior no qual se orienta a visatildeo para as coisas inteligiacuteveis72

Em outras palavras a visatildeo ao ser orientada para ver os inteligiacuteveis adquire aos

poucos a habilidade de ver com clareza ou seja de apreender o que eacute do gecircnero

inteligiacutevel constituindo desse modo uma clarividecircncia primeiro sobre as relaccedilotildees

inteligentes como se daacute nas matemaacuteticas e depois sobre o ser as ideias e tudo que seja

do gecircnero inteligiacutevel e possa evidentemente ser apreendido pelo intelecto A

consequecircncia importante da apreensatildeo da visatildeo do todo como se mostra a ζύλνςηο diz

respeito agrave possibilidade de conhecer o justo e as virtudes ou seja aquilo que natildeo eacute dado

precisamente como uma forma mas que no entanto soacute pode ser inferido no caso da

justiccedila e adquirido no caso das virtudes com a visatildeo sinoacuteptica dada por meio do

trabalho da inteligecircncia Natildeo se trata de uma ἐμαίθλεο onde a alma subitamente capta a

ideia como um salto cognitivo Compreender assim a visatildeo do todo seria infiel ao

trabalho de preparaccedilatildeo do pedagogo que pretende uma progressatildeo cognitiva O

resultado do trabalho dialeacutetico como bem mostrou a alegoria da caverna depende de

um treino de conversatildeo em que consiste a educaccedilatildeo da alma na direccedilatildeo da ideia um

processo paulatino de ascensatildeo a um grau cognitivo superior que condiciona a alma a

ter tal clareza ou seja a discernir e operar com as ideias mesmo ao lidar com o domiacutenio

visiacutevel como visto O dialeacutetico natildeo abandona tal perspectiva inteligente e ao continuar

operando com ideias demonstra possuir uma visatildeo integral que natildeo se daria ao que

72 Trabattoni tem o seguinte entendimento sobre a metaacutefora da visatildeo a qual descreve uma apreensatildeo

dialeacutetica e natildeo uma intuiccedilatildeo o que tambeacutem se defende nessa argumentaccedilatildeo ldquoAo indicar a instantacircnea

precisatildeo do conhecimento natildeo mediado pelo loacutegos estruturado e descritivo da linguagem a metaacutefora

taacutetil neste caso seria anaacuteloga agravequela oacutetica Como demonstra por outro lado no confronto com 511b4

ao exprimir um conhecimento de caraacuteter discursivo a expressatildeo taacutetil natildeo eacute menos idocircnea daquelas

oacuteticas a faculdade que colhe os objetos relativos ao quarto segmento da linha natildeo eacute portanto a visatildeo

ou a intuiccedilatildeo intelectual mas o loacutegos compreendido na sua plena capacidade do dialeacutegesthai ou seja

de raciocinar dialeticamente Confirma-se assim que a extensatildeo de modelos tiacutepicos do conhecimento

sensiacutevel e intelectual possuem valores metafoacutericos e que consequentemente o uso destas metaacuteforas natildeo

diz nada de decisivo acerca da natureza do conhecimento Cabe pontuar que a dyacutenamis toũ dialeacutegesthai

representa a capacidade universalizante do logos e eacute um instrumento ativo e fomentador do movimento e

da relaccedilatildeo entre o particular e o universal entre a multiplicidade e a unidade De fato esta eacute a funccedilatildeo

da dialeacuteticardquo Trabattoni op cit p 161 Deve-se entender ldquovisatildeordquo ou ldquotocarrdquo como metaacutefora da

apreensatildeo das ideias realizada pela dialeacutetica Natildeo parece haver como apontou Trabattoni a intenccedilatildeo de

mostrar a possibilidade de aquisiccedilatildeo sem o trabalho da dialeacutetica e de todo o processo de conversatildeo ao

inteligiacutevel promovido pela educaccedilatildeo O conhecimento da ideia exige como se tem visto a preparaccedilatildeo da

alma para tal

130

parece sem poder operar no niacutevel tal qual supotildee o estado de λόεζηϛ A inteligecircncia

nesses termos constitui a visatildeo do todo e ldquoter inteligecircnciardquo significa natildeo sair deste

estado natildeo perder esta perspectiva

Pelo que foi analisado a alma pode descer a um domiacutenio inferior sem descer de

niacutevel cognitivo Parece natildeo haver relaccedilatildeo necessaacuteria entre ir agraves sombras e deixar de ser

dialeacutetico Todavia deve-se admitir que precisar o momento desta visatildeo consiste em uma

tarefa bastante difiacutecil e cabiacutevel somente na medida em que se distingue os dois graus de

cogniccedilatildeo δηάλνηα e λνῦο A δηάλνηα natildeo constitui uma visatildeo do todo porque com seu

modo de operar a alma natildeo apreende o caraacuteter ontoloacutegico dos objetos o que eacute a unidade

ou o triacircngulo atendo-se ao aspecto formal e operacional desses - a unidade como

referecircncia numeacuterica o triacircngulo uma forma geomeacutetrica de trecircs lados O que parece

afirmar a visatildeo do todo como uma condiccedilatildeo do dialeacutetico eacute o movimento ascendente ndash

descendente cuja descida se realiza utilizando exclusivamente ideias o que natildeo

configura desse modo uma descida de niacutevel cognitivo A visatildeo ao modo de uma

ζύλνςηο descreve assim um estado elevado da alma cuja capacidade intelectual

apreende a ideia inteligiacutevel e o que se pode inferir a partir dela

A possibilidade de inferecircncia e de conhecimento por parte do filoacutesofo do que eacute

justo e das virtudes se tornam conjugadas com a boa praacutetica poliacutetica a partir das relaccedilotildees

inteligentes as quais tecircm como paracircmetro o inteligiacutevel e que se pode realizar nos termos

da descida do filoacutesofo O condicionamento a um estado de λόεζηϛ e ζύλνςηο resultante

deste exerciacutecio faz supor assim que se trata do estado contemplativo propiciado pela

filosofia no qual se conhece coisas tal como o belo o bom e o justo desta vez dito no

contexto do processo cientiacutefico e do exerciacutecio poliacutetico Longe de consistir em uma

apariccedilatildeo o que se diz da visatildeo do inteligiacutevel sugere assim a construccedilatildeo de uma

perspectiva proacutepria para atingir e lidar com o que eacute real que se realiza antes de tudo a

partir da capacidade de estabelecer determinadas relaccedilotildees utilizando as capacidades

racionais como a cogniccedilatildeo73

Deve-se admitir que ao descrever o fim do processo nos termos de uma visatildeo o

texto abre caminho para algumas interpretaccedilotildees acerca do que consiste de fato a

73 A visatildeo da alma como parece ser a ζύλνςηο apresenta-se desse modo bastante diferente do que se

tem em O Banquete talvez o exemplo mais direto de que venha a ser uma visatildeo do Belo inteligiacutevel nos

termos de uma ἐμαίθλεο ( ) de um salto impetuoso que leva o homem para o estado de contemplaccedilatildeo O

impulso eroacutetico orientado pelo exerciacutecio filosoacutefico permite a visatildeo do Belo e a vivecircncia inteligiacutevel tal

como se tem n‟A Repuacuteblica (211a-b) A diferenccedila entre as narrativas eacute que o Banquete traz uma

descriccedilatildeo deste salto da abrupta aquisiccedilatildeo do Belo como uma visatildeo que irrompe diante da alma enquanto

n‟A Repuacuteblica a ecircnfase da visatildeo Inteligiacutevel ou perspectiva inteligente ao que parece se volta para o

desenrolar da apreensatildeo intelectual que encontra termo no exerciacutecio pedagoacutegico e poliacutetico

131

aquisiccedilatildeo do conhecimento operada pela inteligecircncia Jaacute foi posta a dificuldade em

precisar a passagem na qual se tem a visatildeo da ideia Do mesmo modo jaacute se comentou

sobre a pertinecircncia de considerar o movimento completo da inteligecircncia composto pela

apreensatildeo e pelo estabelecimento de relaccedilotildees tendo a ideia como paradigma O

comentaacuterio de Gosling natildeo estaacute tatildeo distante de algumas conclusotildees das uacuteltimas anaacutelises

sobre a ζύλνςηο realizadas aqui que contra essa posiccedilatildeo diz

ldquoA ecircnfase eacute entretanto sobre unidades isolaacuteveis em contraste

com os particulares multiformes que manifestam um hospedeiro de

propriedades em uma mistura confusa A exigecircncia de que estas

unidades devem ser definiacuteveis conduz no entanto ao sentido de que

natildeo satildeo isolaacuteveis mas constituiacuteram eles mesmos um conjunto inter-

relacionado Isto produziu dificuldades para a visatildeo perceptiva do

conhecimento e um progresso gradual para ver o conhecimento como

proposicionalrdquo74

Ainda que adote uma saiacuteda tiacutepica de uma interpretaccedilatildeo que defende um saber

proposicional Gosling admite a progressatildeo de um conhecimento negando

evidentemente uma apreensatildeo intuitiva Ao que tudo indica o movimento que leva agrave

visatildeo do todo natildeo pode ser tomado no sentido de um aparecimento imprevisto

incalculado de algo que se pretendia buscar cujo alcance era completamente incerto Ao

contraacuterio o sentido que parece se alinhar com o que se tem visto sobre a inteligecircncia

satildeo justamente as inferecircncias que se pode fazer sobre o Bem e os conhecimentos que se

pode ter a partir da ideia Assim o objetivo maior do filoacutesofo natildeo tem em vista um

conhecimento proposicional como chegou a falar o comentador mas tambeacutem

pressupotildee um trabalho deste tipo visto que a apreensatildeo das ideias torna possiacutevel a

definiccedilatildeo e o trabalho dialeacutetico passa pela anaacutelise de premissas O que estaacute em questatildeo

diz respeito ao meu ver acerca do alvo maior o bem e no caso do Feacutedon da

imortalidade portanto diz respeito agravequilo que uma atividade intelectual como a

dialeacutetica e uma perspectiva como a synoacutepsis podem oferecer sobre desses

O proacuteprio Gosling mais adiante traccedila uma definiccedilatildeo do que venha ser uma visatildeo

segundo as imagens do conhecimento que o texto apresenta na qual potildee em questatildeo a

74 Gosling The Argument of the Philosophers p 121

132

concepccedilatildeo de que a visatildeo do dialeacutetico consiste em algo como uma intuiccedilatildeo ou uma

percepccedilatildeo intelectual ele diz

ldquoPrimeiro por elas (imagens do conhecimento) se ajustam a

apreensatildeo final ou progressiva do conjunto de inter-relaccedilotildees De fato

em ambos Symposium e Repuacuteblica eacute o que a linguagem tende a

sugerir Em ambos o estaacutegio final eacute tomado como um resultado cada

vez mais amplo de consideraccedilotildees sinoacutepticas no Symposium (210d) bdquoo

vasto oceano de beleza‟ e na Repuacuteblica o bdquosistema solar das Formas‟

A visatildeo eacute a explicaccedilatildeo de porque todas as coisas belas satildeo chamadas

belas na Repuacuteblica a explicaccedilatildeo do que torna boas todas as coisas

boasrdquo75

O comentador compreende a visatildeo como uma explicaccedilatildeo (explanation)

apontando a relaccedilatildeo de causalidade entre ideia e existentes que com ela se relacionam -

o bem e coisas boas Ao que parece a visatildeo para o autor tem um caraacuteter de identificar

e demonstrar nos termos que uma explicaccedilatildeo pretende tal relaccedilatildeo enquadrando-se

muito mais em processo do que em uma apariccedilatildeo na mente

Natildeo se pretende defender aqui que o conhecimento nesse contexto equivale a

um fenocircmeno que se daacute no intelecto uma percepccedilatildeo intelectual como aponta Gosling

A cogniccedilatildeo envolve operaccedilotildees como a comparaccedilatildeo a deduccedilatildeo a soma por exemplo

que natildeo permitem uma interpretaccedilatildeo da visatildeo como uma passiva recepccedilatildeo da imagem

da ideia Na tentativa de precisar a passagem para o grau da inteligecircncia superando

assim o niacutevel do raciociacutenio matemaacutetico Chen considera a visatildeo como um ato cognitivo

em que se apreende o que pertence ao gecircnero inteligiacutevel

ldquoAo ser educado na dialeacutetica a alma toma instacircncias syggene

por um uacutenico ato da cogniccedilatildeo (by a single act of cognition) que

termina em uma visatildeo do seu genos comum Agora posto em uma

linguagem de relaccedilatildeo o resultado eacute quando volta para conhecer o

referente da segunda relaccedilatildeo ela se move ao longo dessa linha de

relaccedilatildeo para um relatum a visatildeo do que eacute obtido simultaneamente

com a chegada da alma diante dele ndash ou posto simbolicamente (hsup1 +

hsup2 + hn) RH Entatildeo a terceira fronteira eacute cruzada e foi cruzada por

meio da synopsis76

Segundo o comentaacuterio de Chen a visatildeo sinoacuteptica consiste na visatildeo da ideia no

instante em que esta se apresenta mas eacute o que se tem na descese O comentaacuterio eacute

75 idem pg 123

76 Chen op cit p 165

133

pertinente no sentido de que potildee a diferenciaccedilatildeo entre a visatildeo do todo pela dialeacutetica e a

visatildeo parcial que proporciona as matemaacuteticas Entretanto considerar apenas a tomada

da ideia como um ldquouacutenico ato cognitivordquo parece irrelevar a permanecircncia da alma nesse

estado de λόεζηϛ no qual finalmente ela demonstra ldquoter inteligecircnciardquo condiccedilatildeo

importante para as questotildees pedagoacutegicas e poliacuteticas como visto aqui

O que fazer com o movimento da alma ao longo da linha de relaccedilotildees que ela

pode efetuar Se para isso haacute a visatildeo sinoacuteptica como ele proacuteprio compreende estar

presente como entender a ζύλνςηο como um ato Esta posiccedilatildeo parece ser atenuada pelo

proacuteprio Chen mais adiante77

A atividade intelectual que o meacutetodo dialeacutetico exige

mostra as relaccedilotildees operadas pela inteligecircncia e os inteligiacuteveis aiacute utilizados como os

seres matemaacuteticos como os intermediaacuterios para a visatildeo sinoacuteptica Em treinamento o

filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo aprendeu a reconhecer e a utilizar os elementos e as

relaccedilotildees inteligiacuteveis que as disciplinas oferecem uma vez que domina a arte dialeacutetica

ele faz este mesmo reconhecimento e estabelece relaccedilotildees de acordo com as exigecircncias

do meacutetodo A visatildeo tal como sugere a ζύλνςηο supotildee natildeo somente a tomada da ideia

mas o trabalho que se pode fazer posteriormente tendo-a como referecircncia Nesse

sentido ζύλνςηο constitui uma perspectiva especiacutefica capaz de identificar a ideia do

bem e compreender as ideias que subsidiam os valores morais pilares para o bom

governo que soacute o filoacutesofo pode conhecer

Conclusotildees sobre a λόεζηϛ

O pensamento pode ser em resumo definido como a atividade que a alma

realiza por meio de suas disposiccedilotildees intelectuais em busca do seu objeto de desejo o

bem Nos livros VI e VII de A Repuacuteblica o pensar constitui a experiecircncia gnosioloacutegica

de tornar a alma apta a fazer esta busca e se elevar a uma condiccedilatildeo de excelecircncia a qual

se torna possiacutevel com o desenvolvimento de sua capacidade inteligente no seu maacuteximo

grau dita inteligecircncia (θξόλεζηϛ e λόεζηϛ) A inteligecircncia ponto maacuteximo de cogniccedilatildeo

da alma eacute constituiacuteda de uma perspectiva distinta por meio da qual se pode obter o

77 Note-se que a explicaccedilatildeo sobre a apreensatildeo das ideias como um golpe apresenta-se de fato como algo

que parece se dar em partes ao longo de um processo ldquoA exigecircncia de ver em conjunto todas as

instancias do Bem a fim de atingir a visatildeo desta ideia em todos os seus aspectos eacute claro somente um

ideal O que atualmente eacute exigido natildeo eacute tatildeo radical Para obter a visatildeo da ideia do bem tomar as

instacircncias em grupos natildeo individualmente seria o bastante () Chen op cit p 172 nota 8

134

autecircntico conhecimento (ἐπηζηήκε) Nesse niacutevel tem-se o ponto alto do desdobramento

das capacidades intelectivas da alma sendo o conhecimento portanto natildeo mais uma

atividade de cogniccedilatildeo (γλνζηϛ) apenas mas uma perspectiva distinta que consiste em

atingir seres do domiacutenio inteligiacutevel identificar relaccedilotildees inteligiacuteveis e apreender a ideia

do bem o alvo mais importante no contexto do texto Tal perspectiva confere ao

filoacutesofo dono por natureza desta aptidatildeo a habilidade de governo uma vez que o

conhecimeno que a inteligecircncia propicia pode atingir as ideias sob as quais se deve

organizar a cidade justa Por via da atividade inteligente torna-se possiacutevel conhecer a

justiccedila e assim realizar o bom governo uma vez que com a perspectiva privilegiada do

todo e da ideia do bem se pode inferir acerca das noccedilotildees que fundamentam os valores

Ao que tudo indica somente por meio de relaccedilotildees estabelecidas pela inteligecircncia se

adquire o discernimento necessaacuterio para inquerir e executar com base na ideia do bem

o que a cidade tem como demanda

Desse modo a avaliaccedilatildeo das questotildees que se apresentam no cenaacuterio eacutetico-

poliacutetico tal como a investigaccedilatildeo acerca delas daacute-se de maneira apropriada e justa a

partir de um governo que encontra seus fundamentos no exerciacutecio intelectual da

filosofia e em uma epistemologia tal como esta elabora Na figura do filoacutesofo

governante como se viu accedilatildeo poliacutetica e exerciacutecio intelectual satildeo aliados na organizaccedilatildeo

da cidade ideal denotando o papel do pensamento sobretudo da inteligecircncia como a

disposiccedilatildeo propiacutecia para o bom governo e para as accedilotildees justas O pensar em seu modo

excelente consiste em ultima instacircncia na atividade intelectual que busca igualmente

conhecer o que eacute justo e virtuoso ao ter em vista o Bem

Haja vista a importacircncia do pensar no que se refere agrave alma do filoacutesofo pode-se

afirmar o papel mobilizador da atividade intelectual no contexto poliacutetico como o

exerciacutecio com o qual se realiza o cumprimento da natureza da alma filosoacutefica Visto

desse acircngulo θξόλεζηϛ e λόεζηϛ demonstram a distinccedilatildeo da alma justa do filoacutesofo ao

mostraacute-la como a alma que pocircs em exerciacutecio suas naturais habilidades dispondo de suas

capacidades cognitivas para tal Ao adquirir conhecimento a alma filosoacutefica tem os

elementos ideais necessaacuterios para lanccedilar um olhar sobre as operaccedilotildees que ela mesma

realiza e para as questotildees da cidade conquistando assim sua excelecircncia no contexto

eacutetico e poliacutetico ao tornar-se com isso justa e apta para governar A cidade justa

demonstra desse modo sua base intelectual na qual o pensar dado na figura do filoacutesofo

governante eacute o agente mobilizador fundamental para pocircr a cidade de acordo com o que

eacute justo e com o que eacute bom

135

Tal como se mostra a importacircncia do estabelecimento de fundamentos racionais

para a vida poliacutetica em uma perspectiva inversa se pode admitir que o conhecimento

constitui uma questatildeo moral A busca pela excelecircncia do pensamento e pelo verdadeiro

conhecimento se mostra o meio de haver justiccedila tanto para a alma do filoacutesofo que teraacute

cumprido as determinaccedilotildees de sua natureza intelectualista sendo por consequecircncia

justo quanto para a cidade que teraacute por via de um governante orientado pela razatildeo os

meios para que as partes coexistam em harmonia e haja enfim a justiccedila Caso natildeo

houvesse empenho em conhecer a ideia do bem por parte do filoacutesofo hipoacutetese que os

livros VI e VII natildeo colocam mas sobre cujas consequecircncias cabe imaginar em uacuteltima

instacircncia a justiccedila e as virtudes natildeo seriam possiacuteveis nem o filoacutesofo nem a cidade

seriam justos A investigaccedilatildeo acerca do exerciacutecio do pensamento tal como mostrou os

dois livros analisados revela sua utilidade sobretudo ao pocircr em evidecircncia a

possibilidade e os meios de atingir a justiccedila e as virtudes desse modo a ligaccedilatildeo entre o

domiacutenio da realidade do bem e a praacutetica poliacutetica

Dada a finalidade praacutetica da razatildeo a excelecircncia do pensamento se constroacutei e se

confirma no processo de conhecimento Mesmo que a aquisiccedilatildeo das ideias natildeo garanta a

apreensatildeo de uma dimensatildeo maior o bem o meacutetodo dialeacutetico bem como as proacuteprias

ideias satildeo vaacutelidos para a finalidade que lhe eacute atribuiacuteda Dito de outro modo os limites

que o pensamento encontra natildeo invalidam o meacutetodo racional da filosofia sendo correto

consideraacute-lo o mais justo e digno para a busca do bem comum na cidade Na perspectiva

do filoacutesofo d‟A Repuacuteblica a saber do governante que deve voltar sua atenccedilatildeo para a

praacutetica poliacutetica e por isso ter em questatildeo efetivar os conhecimentos o que eacute oferecido

pela ideia acerca do bem parece suficiente para harmonizar a poacutelis Esta suficiecircncia natildeo

eacute vista da mesma maneira no Feacutedon como se analisaraacute uma vez que o filoacutesofo na

iminecircncia da morte tem como objetivo a imortalidade e portanto um domiacutenio sugerido

pelas ideias que se mostra inapreensiacutevel em sua totalidade pelo pensamento Neste

enredo embora eficientes em oferecer o domiacutenio inteligiacutevel a impossibilidade de

conhecer efetivamente esta dimensatildeo maior constitui um problema tornando-se muito

mais visiacutevel o limite do pensar

De qualquer modo a potecircncia do pensamento e seus limites tal como satildeo dados

corroboram a figura de excelecircncia do filoacutesofo A narrativa de experiecircncia intelectual

mostra o desenvolvimento da alma filosoacutefica e portanto do pensamento no processo de

elevaccedilatildeo agrave sua maioridade O pensamento ao atuar como meio de adquirir os

fundamentos dos valores e das regras para a melhor organizaccedilatildeo constitui para o

136

filoacutesofo e para a cidade enquanto atividade permanente um modo de ser justo e bom

Ao mesmo tempo mostra a cidade harmonizando-se e portanto tornando-se justa A

caracteriacutestica de ser agente e paciente comum nos dois diaacutelogos como se veraacute a seguir

no Feacutedon resume a autonomia do pensamento quando atua em seu estado excelente

Antes de iniciar a anaacutelise acerca da inteligecircncia (θξόλεζηϛ) no diaacutelogo Feacutedon eacute

necessaacuterio fazer algumas aproximaccedilotildees com o que se conclui sobre a λόεζηϛ a partir dos

livros VI e VII d‟A Repuacuteblica Em primeiro lugar deve-se considerar a condiccedilatildeo

limitada do filoacutesofo frenta a grandeza dos objetos uacuteltimos que tem em vista o bem e a

morte como jaacute dito As potecircncias e os limites da racionalidade satildeo dados desse modo

dentro do alcance possiacutevel de tais objetos pelo pensamento tendo-se uma visatildeo da

racionalidade operando dentro destas limitaccedilotildees Desse perspectiva a cogniccedilatildeo constitui

a atividade da alma que a potildee tanto quanto possiacutevel em uma condiccedilatildeo de elevaccedilatildeo

desse estado de minoridade que consiste a humanidade representada pelos habitantes

da caverna no livro VII e pela alma presa ao corpo no Feacutedon O tema do conhecimento

assume seu papel na questatildeo do pensamento tal como se viu ao consistir na superaccedilatildeo

operada pela racionalidade de uma condiccedilatildeo de inferioridade intelectual e moral e na

apreensatildeo dos objetos as ideias cuja apreensatildeo reverte em benefiacutecios para alma O

percurso do filoacutesofo agrave beira da morte traz desse modo uma visatildeo desse processo de

conhecimento ao mesmo tempo em que descreve a emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao

corpo como um efeito beneacutefico da atividade filosoacutefica A narrativa do Feacutedon se

aproxima do percurso do aprendiz do livro VII no que se refere agrave necessidade de

mostrar as etapas de superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao ordinaacuterio sensiacutevel e desprovido

de conteuacutedo cognitivo para uma condiccedilatildeo de maioridade da alma e portanto de

autonomia e excelecircncia do pensamento A excelecircncia eacute construiacuteda nos dois contextos

como resultado de um processo progressivo que no resgistro da relaccedilatildeo vida-morte se

daacute durante o tempo de vida

O empenho em investigar e estabelecer definiccedilotildees acerca do pensamento em seu

niacutevel de excelecircncia se apresenta nos dois diaacutelogos como uma exigecircncia Como visto eacute

preciso distinguir e treinar o futuro governante de modo a deixaacute-lo na melhor condiccedilatildeo

137

intelectual e apto a exercer o comando da cidade para isso deve-se ter claro no que

consiste esta distinccedilatildeo O filoacutesofo na iminecircncia da morte precisa dar provas razoaacuteveis e

plausiacuteveis da imortalidade da alma aos seus companheiros e para isso eacute imprescindiacutevel

provar a eficiecircncia da razatildeo no seu grau de maioridade grau no qual se realiza o

filosofar e a sua proacutepria capacidade para tal empresa Desse modo apesar dos

diferentes contextos a investigaccedilatildeo sobre o pensamento se constitui no exame acerca

dos termos que descrevem a atividade inteligente os quais compotildeem o aparato dado

pela proacutepria razatildeo a saber o meacutetodo o loacutegos e as teorias Esses devem receber durante

a sua formulaccedilatildeo e uso o olhar de inspeccedilatildeo do filoacutesofo e ter seu caraacuteter e procedimento

inteligiacuteveis elucidados

No Feacutedon encontrar-se-aacute uma visatildeo mais enfaacutetica do pensamento nos termos de

uma interaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis Dado que natildeo haacute um propoacutesito praacutetico que exige

uma elaboraccedilatildeo em termos de accedilatildeo poliacutetica tal como tem em vista o governante filoacutesofo

da cidade ideal esta relaccedilatildeo se restringiraacute ao comportamento da alma em relaccedilatildeo agraves

influecircncias do corpo e em relaccedilatildeo aos objetos do intelecto A oposiccedilatildeo presente aqui diz

respeito ao corpo e agraves suas influecircncias sendo a relaccedilatildeo intelectual da alma com seres

superiores dada no pensar a saiacuteda para se elevar dessa condiccedilatildeo adversa de estar

encarnada em corpo humano A superaccedilatildeo desta situaccedilatildeo em vida constitui a

inteligecircncia do filoacutesofo e compotildee um quadro de percurso e desenvolvimento intelectual

e no qual se daacute a elevaccedilatildeo ao grau mais refinado e potente do pensamento niacutevel

descrito pela λόεζηϛ nos livros VI e VII

Nesse sentido o que pode ser considerado o efeito praacutetico dos conhecimentos

adquiridos pela filosofia diz respeito agrave proacutepria postura intelectualista do filoacutesofo a qual

confere a ele as virtudes morais e as condiccedilotildees necessaacuterias para o bom destino poacutes-vida

Considerada como um cuidado da alma cabe compreender o exerciacutecio filosoacutefico como

sem duacutevidas um benefiacutecio bastante uacutetil Apesar de ser estimulado pela convicccedilatildeo de

uma boa vida apoacutes a morte as atenccedilotildees dirigidas a alma pela filosofia promovem em

vida reflexotildees vaacutelidas e uma conduta pautada nos melhores valores O lado praacutetico da

filosofia e do exerciacutecio intelectual no Feacutedon revela-se assim na conduta exemplar do

filoacutesofo que em vias de morrer constitui um modelo de alma purificada e por isso

pronta para estar totalmente livre

Tal eacute o resgistro em que se constroacutei a concepccedilatildeo de pensamento excelente no

Feacutedon As primeiras acepccedilotildees de maioridade e distinccedilatildeo do pensamento satildeo dados nos

termos de um pensamento puro assemelhado por isso agraves coisas divinas e portanto livre

138

para atuar de modo autecircntico Em um segundo momento essa mesma superioridade eacute

dada a partir das formulaccedilotildees nos termos de seu procedimento de modo a oferecer uma

versatildeo mais teacutecnica da atividade racional Ambos modelos de cidade ideal e de

existecircncia datildeo mostras de um niacutevel de cogniccedilatildeo que se traduz nessa excelecircncia

exemplar a qual se deve perseguir tanto na vida poliacutetica quanto no que concerne ao uma

postura existencial

139

Parte II Feacutedon

I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel

11 O filoacutesofo agrave beira da morte

O Feacutedon oferece uma perspectiva existencial do filoacutesofo ao narrar a conversa de

Soacutecrates no seu uacuteltimo dia de vida O diaacutelogo apresenta o filoacutesofo que resignado agrave sua

condenaccedilatildeo aceita de bom grado a morte Tem-se nesse enredo a personificaccedilatildeo da

postura intelectual a qual uma vez sempre pautada no exerciacutecio filosoacutefico como

maneira para adquirir as excelecircncias morais e intelectuais pode especular sobre a

imortalidade e crer com base na razatildeo que ao final teraacute garantido um bom destino apoacutes

a morte (Fed 107c1-5) O que aos olhos dos amigos que se despendiam do mestre

parecia inicialmente uma excentricidade e uma insensatez (Fed 62e) se torna coerente

com a explicaccedilatildeo dada sobre a imortalidade A esperanccedila (ἐιπηο) de ter uma boa morte e

a crenccedila na indestrutibilidade da alma convicccedilotildees que justificam esta boa aceitaccedilatildeo

apoiamndashse na verdade nos resultados da investigaccedilatildeo filosoacutefica a qual revela o

fundamento de tais crenccedilas e do proacuteprio loacutegos filosoacutefico

Diferentemente do filoacutesofo de A Repuacuteblica o qual apresenta um modelo de

perfeiccedilatildeo e ao mesmo tempo sugere o iniacutecio e a execuccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo do

caraacuteter filosoacutefico o Soacutecrates do Feacutedon representa por que natildeo o cume deste processo e

a personificaccedilatildeo das qualidades deste modelo Como exemplo de uma vida digna ou

autecircntica a narrativa oferece uma imagem do acabamento do percurso filosoacutefico nesta

figura do Soacutecrates sereno cordato e convicto do que iraacute encontrar apoacutes a morte

percurso que o guardiatildeo aprendiz d‟A Repuacuteblica cabe divagar ainda estaria por

realizar Vale dizer que este percurso filosoacutefico o qual natildeo descreve uma vida poliacutetica

como mostra o filoacutesofo governante apresenta em certa medida o caraacuteter filosoacutefico no

que se refere ao uso da razatildeo e agraves aquisiccedilotildees morais e epistecircmicas que se pode obter

pela filosofia O Soacutecrates do Feacutedon natildeo eacute o filoacutesofo rei mas como filoacutesofo no seu

140

uacuteltimo dia de vida periacuteodo no qual se limita a narrativa disserta sobre a excelecircncia do

pensamento ao investigar sobre a alma e a sua imortalidade

Ao ter a imortalidade da alma como objeto de investigaccedilatildeo o diaacutelogo permite a

anaacutelise da natureza da alma e por consequecircncia do pensamento (θξόλεζηο) Deste

modo o afastamento entre alma e corpo constitui o tema que articula uma explicaccedilatildeo

para a imortalidade oferecendo assim o percurso do filoacutesofo nos termos de uma

preparaccedilatildeo para a morte na qual a alma se purifica pela filosofia A justificativa da boa

aceitaccedilatildeo da morte resulta desta postura intelectualista de desprezo pela satisfaccedilatildeo do

corpo e pelas coisas que se referem aos desejos levianos e agraves vilanias da vida ordinaacuteria

os quais satildeo identificados ao que se refere ao domiacutenio da sensibilidade Uma vez

exercitado na filosofia durante toda a vida e portanto distante das coisas relativas ao

corpo o filoacutesofo assume a condiccedilatildeo semelhante aos objetos que contempla no exerciacutecio

filosoacutefico a saber as ideias e ao que iraacute encontrar apoacutes a morte do corpo Nesse

sentido os resultados do treino na filosofia satildeo muito mais psicoloacutegicos do que praacuteticos

em comparaccedilatildeo ao que se veraacute nos livros V e VII d‟A Repuacuteblica nos quais se tem em

vista uma preparaccedilatildeo para a vida poliacutetica

A preparaccedilatildeo para a morte que a filosofia proporciona se traduz em

discernimento acerca da natureza da alma e por consequecircncia no autecircntico uso da

inteligecircncia (θξόλεζηο) condiccedilatildeo que constitui o verdadeiro cuidado da alma e que

permite realizar suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre o poacutes-vida A inteligecircncia neste contexto

de emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo e agrave vida humana assume posiccedilatildeo central

uma vez que as caracteriacutesticas que o texto atribui agrave alma satildeo da ordem de sua faculdade

cognitiva e de seu parentesco com o gecircnero inteligiacutevel imutaacutevel una indivisiacutevel

incorpoacuterea imortal dotada da faculdade da razatildeo tem a capacidade de conhecer e de

aprender O filoacutesofo eacute identificado portanto agrave alma una que se apresenta apenas em

seu caraacuteter racional e com caracteriacutesticas afins com o gecircnero invisiacutevel78

Esta pode ser

uma dificuldade na comparaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos aqui analisados A visatildeo da alma

que se encontra no Feacutedon natildeo eacute a da alma tripartida do livro IV d‟A Repuacuteblica

Entretanto ambos os diaacutelogos se preocupam em delimitar o caraacuteter racional como

distinto e soberano No livro IV a parte racional da alma deve se sobrepor agraves demais ( )

78 A visatildeo de alma una natildeo eacute unacircnime Haacute comentadores que entendem ser a alma que o Feacutedon

apresenta por um lado dotada de razatildeo e de qualidades semelhantes ao gecircnero invisiacutevel e por outro com

caracteriacutesticas referentes agraves emoccedilotildees e agraves afecccedilotildees do sensiacutevel Dado que essas uacuteltimas Platatildeo descarta ao

privilegiar a alma desencarnada livre do corpo natildeo considero pertinente o debate sobre a possibilidade

de uma biparticcedilatildeo da alma no Feacutedon

141

mostrando a necessidade de ter minimamente claro seu perfil e campo de atuaccedilatildeo De

outro modo mas com o mesmo objetivo o Feacutedon apresenta a alma racional que

embora natildeo se apresente em partes deve por natureza estar no comando de modo a natildeo

se deixar influenciar pelas sensaccedilotildees Nas duas situaccedilotildees a racionalidade se apresenta

diferenciada das caracteriacutesticas da ordem da sensibilidade que a alma pode ter seja

como parte constitutiva seja como afecccedilatildeo diante de sua condiccedilatildeo de estar em um

corpo

As caracteriacutesticas que o Feacutedon apresenta em relaccedilatildeo a alma a oferecem quase

exclusivamente em suas faculdades intelectuais Invisiacutevel incorpoacuterea afim com o

gecircnero inteligiacutevel e dotada de capacidade inteligente (θξόλεζηο) os atributos conferidos

a ela satildeo dados para descrever o seu caraacuteter inteligente sendo deixados de lado os traccedilos

que se referem agraves emoccedilotildees Quando dados esses recebem junto com as percepccedilotildees

advindas da sensibilidade conotaccedilatildeo negativa A autenticidade que o diaacutelogo pretende

imprimir agrave alma tem em vista sua independecircncia em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees sendo o

estado de elevaccedilatildeo intelectual a maior expressatildeo de sua pureza e aquisiccedilatildeo de virtudes e

o apego aos apelos do corpo ao contraacuterio sua condiccedilatildeo de decaimento moral e

intelectual Do mesmo modo que a congenereidade da alma com os objetos incorpoacutereos

confere a ela caracteriacutesticas comuns a esses - quando natildeo as mesmas - o apego da alma

ao corpo pode trazer prejuiacutezos agrave sua natureza Quando ela se fixa nas coisas inteligiacuteveis

comporta-se como tal se ao contraacuterio a alma se apega ao corpo e aos objetos sensiacuteveis

torna se eacutebria pois nessa condiccedilatildeo eacute incapaz ao menos em condiccedilotildees adequadas usar e

se exercitar na capacidade que pode lhe conferir um grau de excelecircncia O conflito

neste contexto adveacutem do antagonismo entre alma e corpo cujas distinccedilotildees de natureza-

o corpo dotado das qualidades do gecircnero visiacutevel eacute composto e portanto passiacutevel de

perecer (Fed 78c) - proporcionam ao filoacutesofo a tensatildeo proacutepria da condiccedilatildeo de

humanidade na qual a alma tem de conviver associada ao corpo e da qual ele filoacutesofo se

livraraacute com a morte estado no qual a alma sobreviveraacute totalmente separada das afliccedilotildees

lanccediladas pelas sensaccedilotildees Nesse sentido o corpo e o que eacute do domiacutenio da αἴζζεζηο

perturbam a alma e constituem um empecilho nessa busca da condiccedilatildeo mais proacutexima de

sua natureza inteligiacutevel

O que supotildee no iniacutecio do diaacutelogo uma perspectiva da interioridade dos

personagens na ordem das emoccedilotildees eacute substituiacutedo pela visatildeo racionalista na qual a

noccedilatildeo de identidade esta fundamentada na alma inteligente Em virtude do seu

parentesco com o domiacutenio inteligiacutevel a alma tem condiccedilotildees suficientes de por si

142

mesma conhecer algo verdadeiramente sem recorrer ao que eacute dado pelos sentidos Os

objetivos do filoacutesofo seus compromissos eacuteticos e epistemoloacutegicos ligam-se dessa

forma agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento exerciacutecio que garante a emancipaccedilatildeo da alma e as

recompensas desejadas ao final do processo de desvinculaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao corpo

Por enquanto para os propoacutesitos deste estudo basta coletar dados que colaborem

para compor um quadro que esboccedila um caraacuteter a ser definido Importa ressaltar os

traccedilos que mais tarde receberatildeo maior detalhamento e conceituaccedilatildeo e que vistos como

aqui se propotildee indicam os elementos e a complexidade que estaacute em causa ao se

pretender traccedilar um perfil da razatildeo Assim deve-se ter em vista que para uma anaacutelise

acerca do pensamento em sua condiccedilatildeo mais alta a figura do filoacutesofo a qual incarna o

uso correto da razatildeo e oferece uma imagem da excelecircncia moral e epistecircmica que

supotildeem-se eacute anaacuteloga agrave noccedilatildeo de inteligecircncia introduz as questotildees que perpassaratildeo nos

capiacutetulos seguintes agrave anaacutelise Ao figurar a posse das virtudes e dos conhecimentos reais

vantagens da vida dedicada agrave filosofia e portanto os resultados da elevaccedilatildeo do intelecto

quando exercitado em sua plena potecircncia o filoacutesofo permite entrever o significado que

o os textos pretendem dar agrave racionalidade neste niacutevel e agrave proacutepria filosofia Natildeo parece

suficiente elencar as qualidades do filoacutesofo sem remontar o percurso que levou a elas

Somente a partir das articulaccedilotildees realizadas pela razatildeo em seu exerciacutecio como acontece

na relaccedilatildeo entre alma e corpo e os efeitos dessa atividade se torna possiacutevel mensurar e

avaliar a atuaccedilatildeo do pensamento tal como o significado e o valor que se atribui a ele

12 O pensar e o estado de morte

Ao explicar (ηὸλ ιόγνλ ἀπνδνῦλαη Fed 63e9)79

acerca do destemor do filoacutesofo

em relaccedilatildeo agrave morte Soacutecrates inaugura a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade da alma

pesquisa que natildeo se mostra exequiacutevel sem uma minuciosa anaacutelise acerca do pensamento

(θξόλεζηο) Considerada a condiccedilatildeo excelente da capacidade racional da alma e

79 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizaremos a traduccedilatildeo de Maria Tereza Schiappa de Azevedo Feacutedon

Platatildeo Ed Imprensa Oficial UNB 2000

143

portanto a via para averiguar adequadamente a sobrevivecircncia apoacutes a morte do corpo o

pensar seraacute examinado a partir da definiccedilatildeo acerca da filosofia como um treino para a

morte mais precisamente para morrer e estar morto (ἢ ἀπνζλῄζθεηλ ηε θαὶ ηεζλάλαη

Fed 64a6) definiccedilatildeo que introduz a perspectiva racionalista do tema Dada nos termos

do exerciacutecio filosoacutefico a morte ganha uma versatildeo filosoacutefica com bases agumentativas

resultantes de uma especiacutefica formulaccedilatildeo de conhecimento de atividade racional e de

objetos verdadeiros Posto assim ηεζλάλαη indica um estado distinto diferente da vida

no seu sentido bioloacutegico no qual a alma sobrevive e para o qual o filoacutesofo eacute treinado

por meio do exerciacutecio filosoacutefico (ἀλὴξ ηῷὄληη ἐλ θηινζνθίᾳ δηαηξίςαο ηὸλ βίνλ

Fed63e9) Nesse contexto a atividade racional constitui a caracteriacutestica da alma capaz

de averiguar acerca deste estado

Platatildeo pretende imprimir agrave morte um sentido estritamente filosoacutefico para dar

iniacutecio a um exame dentro da mesma perspectiva acerca da imortalidade Sendo assim

faz sentido questionar nestes termos ldquo- Acreditamos que a morte eacute alguma coisa

(ἡγνύκεζά ηὸλ ζάλαηνλ Fed 64c2)rdquo Note-se que a formulaccedilatildeo da questatildeo potildee em

evidecircncia o acircngulo em que se pretende investigaacute-la junto com as demais questotildees que

perpassam a argumentaccedilatildeo ηη εἶλαη - ldquoser algordquo traduzindo literalmente prenuncia uma

existecircncia um ser que mais tarde ganharaacute formulaccedilatildeo ontoloacutegica e seraacute uma das

maneiras de se questionar em vista da definiccedilatildeo de algo Posta assim a questatildeo induz o

interlocutor a dar uma resposta positiva entretanto sem o compromisso de dizer o que

ela seria A definiccedilatildeo de morte vem a seguir a separaccedilatildeo alma em relaccedilatildeo ao corpo

- Que outra coisa pois senatildeo a separaccedilatildeo da alma e do corpo

(Ἆξα κὴ ἄιιν ηη ἢ ηὴλ ηο ςπρο ἀπὸ ηνῦ ζώκαηνο ἀπαιιαγήλ) E

nesse caso bdquoestar morto‟ significa isto mesmo que o corpo uma vez

separado da alma subsiste em si e por si mesmo (αὐηὸ θαζ αὑηὸ ηὸ

ζῶκα γεγνλέλαη) agrave parte dela tal como a alma uma vez separada do

corpo subsiste em si e por si mesma (αὐηὴλ θαζαὑηὴλ εἶλαη) agrave parte

dele Ou seraacute a morte algo diverso do que dizemosrdquo80

(Fed 64c3-9)

80 Vale notar uma sutileza no texto original Ao se referir agrave separaccedilatildeo e consequente isolamento do

corpo Platatildeo utiliza o verbo γίγλνκαη enquanto que ao falar do isolamento da alma o verbo escolhido eacute o

verbo εἰκί Os dois verbos que nessa passagem ainda natildeo possuem sentido filosoacutefico ao longo da

investigaccedilatildeo marcaratildeo a importante diferenciaccedilatildeo entre a instabilidade e corrupccedilatildeo do γεγνλέλαη da

γέλεζηϛ em contraposiccedilatildeo agrave imutabilidade e fixidez do ser inteligiacutevel e do que tem familiaridade com ele

como ocorre com a alma Tais distinccedilotildees de gecircnero constituiratildeo ao longo do texto as diferenciaccedilotildees

entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel aqui esboccediladas

144

Assim definida a morte consiste no estado no qual a alma estaacute separada do

corpo Ao mesmo tempo se deve notar o processo dessa separaccedilatildeo no qual o corpo se

torna isolado da alma e do mesmo modo a alma passa a existir por si mesma separada

dele Apartados corpo e alma mostram a partir daiacute naturezas distintas cujo conflito eacute

compreendido vale adiantar pela racionalidade Eacute posto em questatildeo desse modo a

natureza da alma e de sua Inteligecircncia na figura do filoacutesofo que aceita de bom grado a

sua condenaccedilatildeo Para o homem que filosofa eacute natural desprezar (ἀηηκάδεηλ) os prazeres

corporais e tudo o que se refere a ele para se ocupar dos cuidados que dizem respeito agrave

alma (Fed 64e) O desapego pelo que constitui um cuidado ou adorno do corpo e o

consequente voltar-se para a alma (πξὸο δὲ ηὴλ ςπρὴλ ηεηξάθζαη Fed 64e6) consiste

no exerciacutecio de morte no qual o verdadeiro filoacutesofo (ἀιεζῶο θηιόζνθνο Fed64e2) se

empenha

O filosofar origina assim este afastamento da alma em relaccedilatildeo ao corpo que se

daacute pelo desprezo tanto quanto possiacutevel dos apelos e dos prazeres corporais (θαζὅζνλ

δύλαηαη ἀθεζηάλαη αὐηνῦ Fed64e5) Tal postura de afastamento do corpo descreve

deve-se observar um traccedilo do perfil do filoacutesofo que diferentemente da maioria vecirc a

morte como a oportunidade para emancipar a alma e tornaacute-la assim livre das afliccedilotildees

geradas por ele A visatildeo positiva da morte eacute construiacuteda com a intenccedilatildeo de fazer um

discurso em defesa do filoacutesofo condenado no qual se apresente ao mesmo tempo uma

explicaccedilatildeo filosoacutefica e uma justificativa racional e por isso plausiacutevel para a

imortalidade

Diante de tal propoacutesito o texto vai dispor dos elementos e do foco sob os quais

uma investigaccedilatildeo deste tipo se torna possiacutevel O desligamento progressivo da alma em

relaccedilatildeo ao corpo que acontece nesse exerciacutecio de preparaccedilatildeo para a morte torna-se

desse modo a circunstacircncia apropriada em que se deve examinar o pensamento por

apresentar a alma isolada nela mesma (αὐηὴ θαζαὑηὴλ) livre de influecircncias e

perturbaccedilotildees e assim ter suas caracteriacutesticas racionais ressaltadas

ldquo- E o que dizer quanto a adquirir a sabedoria (Τί δὲ δὴ πεξὶ

αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ) eacute ou natildeo o corpo obstaacuteculo

(ἐκπόδηνλ) quando aceitamos associaacute-lo nessa procura Mais

concretamente haacute uma dose de verdade naquilo que os homens

apreendem por exemplo pela vista e pelo ouvido ou (como os poetas

por aiacute repetem agrave saciedade) nada do que vemos ou ouvimos eacute

seguro E refiro-me apenas aos sentidos da vista e do ouvido porque

145

se estes natildeo satildeo seguros e exatos (θαίηνη εἰ αὗηαη ηῶλ πεξὶ ηὸ ζῶκα

αἰζζήζεσλ κὴ ἀθξηβεῖο εἰζηλ κεδὲ ζαθεῖο) os outros muito menos o

satildeo dado serem suponho ainda mais faliacuteveis (θαπιόηεξαί) Ou natildeo

achas

- Mas decerto

- Ora - prosseguiu- em que condiccedilotildees a alma atinge a verdade

(Πόηε νὖλ ἦ δ ὅο ἡ ςπρὴ ηο ἀιεζείαο ἅπηεηαη) Pois quando tenta

qualquer tipo de indagaccedilatildeo com o auxiacutelio do corpo eacute certo e sabido

que este a induz em erro (ἐμαπαηᾶηαη ὑπ αὐηνῦ)rdquo (Fed 65a9-b)

Conveacutem notar a almejada condiccedilatildeo em que eacute dado o pensar a alma atua

plenamente sem impecilhos e desse modo atinge a verdade81

O texto atribui um papel

negativo ao corpo por constituir um impedimento para a aquisiccedilatildeo disto que parece ser

um dos alvos da inquiriccedilatildeo a θξόλεζηο De modo incipiente essa uacuteltima passagem

sugere de antematildeo a noccedilatildeo de alta inteligecircncia que seraacute edificada ao longo do diaacutelogo

O pensar nos termos da θξόλεζηο estaacute vinculado agrave verdade e ao ser livre das

influecircncias corpoacutereas o que confere a ele uma superioridade cujo sentido comeccedila a ser

construiacutedo nesta etapa inicial da investigaccedilatildeo Diferentes deste estado estatildeo as sensaccedilotildees

que por natildeo se mostrarem exatas e claras para uma investigaccedilatildeo (Fed 65a10)

demonstram a insuficiecircncia do corpo e a consequente legitimidade da alma para a

aquisiccedilatildeo desta condiccedilatildeo correspondente ao estar morto que o filoacutesofo almeja Dado que

a realidade e a verdade que interessam ao filoacutesofo apresentam-se apenas na atividade

do raciociacutenio (ινγίδνκαη) 82

o pensar ganha foco e deve ser paralelamente objeto de

estudo na medida em que se mostra relevante para a anaacutelise dos temas que compotildeem a

argumentaccedilatildeo sobre a boa morte do filoacutesofo

O desapego em relaccedilatildeo ao corpo apresenta com este argumento motivos

existenciais e epistemoloacutegicos os quais encontram no exerciacutecio do pensamento a via

para uma explicaccedilatildeo razoaacutevel sobre a morte e sobre a vida ao modo da filosofia e na

θξόλεζηο um dos seus objetivos Desse modo o texto natildeo demora em oferecer cabe

81 O sentido do termo nesta passagem estaacute e geral associado agrave noccedilatildeo de sabedoria conhecimento e

inteligecircncia Robin traduz ldquoposseder proprement l‟inteligencerdquo- Platon Pheacutedon in Editions Belle

Lettres Paris 1957 Dixsaut ldquoet quand il s‟agit de se mettre agrave penserrdquo Platon Pheacutedon GF Flammarion

1991 Opccedilatildeo semelhante agrave que temos na traduccedilatildeo portuguesa faz Gual ldquo[] de La aquisicioacuten misma de

La sabiduriardquo Fedoacuten Editorial Gredos Madrid 1997 Trata-se da primeira ocorrecircncia do termo

Interessa examinar e discutir ao longo da anaacutelise os sentidos que ele adquire e como esses se relacionam

com aquilo que descreve uma teoria da racionalidade no diaacutelogo

82 Fed 65c2 ldquoPor conseguinte admitindo que a natureza das coisas possa em certos aspectos se

apercebida natildeo seraacute justamente pelo raciociacutenio (Ἆξ νὖλ νὐθ ἐλ ηῷ ινγίδεζζαη εἴπεξ πνπ ἄιινζη

θαηάδεινλ αὐηῆ γίγλεηαί ηη ηῶλ ὄλησλ)rdquo Tal eacute o caraacuteter em que o diaacutelogo sugere a aquisiccedilatildeo do

conhecimento a saber como uma manifestaccedilatildeo da realidade dos seres na atividade racional Esta

descriccedilatildeo seraacute novamente formulada em 79d e demonstrada no final do diaacutelogo

146

notar a visatildeo de uma alma cuja principal caracteriacutestica para natildeo dizer quase uacutenica eacute a

racionalidade Com o processo de afastamento do corpo natildeo estatildeo em questatildeo outras

afecccedilotildees que natildeo sejam da ordem da atividade racional ou que natildeo digam respeito a sua

natureza inteligente que a esta altura estaacute para ser estabelecida Assim a narrativa da

separaccedilatildeo entre alma e corpo acentua o caraacuteter racional da alma e potildee em certa medida

os objetivos o sentido e a operacionalidade da atividade inteligente a partir desse

exerciacutecio de separaccedilatildeo O perfil do pensamento vai sendo revelado ao passo que se

realiza a criacutetica e a recusa das sensaccedilotildees e de concepccedilotildees vulgares sobre a morte e sobre

temas como as virtudes e o conhecimento

13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro

Realizadas as primeiras consideraccedilotildees sobre a morte e o sentido em que se deve

conceber o pensar vale analisar passo a passo como aparece o tema do pensamento

Nesse contexto de progressivo desligamento do corpo que constitui o filosofar a alma

estaacute em situaccedilatildeo cada vez mais apropriada para o raciociacutenio Ao mesmo tempo ao

livrar-se de qualquer influecircncia do corporal estaacute em condiccedilotildees de almejar o seu objeto

de desejo o ser (ὀξέγεηαη ηνῦ ὄληνο Fed 65c9) Diante disso logo se reconhece a

necessidade de averiguar o caraacuteter desta racionalidade e dos elementos que a ela se

referem Vale observar que ainda sem ter exposta a sua inteligibilidade nem definido o

seu estatuto ontoloacutegico os temas que devem receber tratamento filosoacutefico satildeo dispostos

para auxiliar na composiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel

fundamental para elucidar a atuaccedilatildeo pensar

147

ldquo- Passamos a outro ponto afirmamos que existe qualquer coisa

como seja o ldquoJustordquo ou natildeo (Τί δὲ δὴ ηὰ ηνηάδε ὦ Σηκκία θακέλ ηη

εἶλαη δίθαηνλ αὐηὸ ἢ νὐδέλ)

- Por Zeus claro que sim

- E o mesmo em relaccedilatildeo a ldquoBelordquo e ldquoBemrdquo (Καὶ αὖ θαιόλ γέ ηη

θαὶ ἀγαζόλ)

- Contudo alguma vez jaacute os viste com os teus proacuteprios olhos (ηη

ηῶλ ηνηνύησλ ηνῖο ὀθζαικνῖο εἶδεο )

83

- Natildeo de modo algum

- Seraacute que os apercebeste por qualquer outra sensaccedilatildeo fiacutesica

(Ἀιι ἄιιῃ ηηλὶ αἰζζήζεη ηῶλ δηὰ ηνῦ ζώκαηνο ἐθήςσ αὐηῶλ) Falo

em geral incluindo por exemplo a Grandeza a Sauacutede a Forccedila em

resumo a realidade e todas as demais coisas aquilo que cada uma

delas preciosamente84

eacute (θαὶ ηῶλ ἄιισλ ἑλὶ ιόγῳ ἁπάλησλ ηο νὐζίαο

ὃ ηπγράλεη ἕθαζηνλ ὄλ) E ou pelo corpo se chega agrave contemplaccedilatildeo da

absoluta verdade delas (ηὸ ἀιεζέζηαηνλ ζεσξεῖηαη) ou entatildeo o

processo eacute outro e aquele de noacutes que mais profundamente se dispuser

a meditar (δηαλνεζλαη) na realidade mesma das coisas que observa eacute

quem mais perto esta da de atingir o conhecimento (γλῶλαη) de cada

uma delasrdquo (Fed 65d3-e4)

O excerto oferece uma primeira descriccedilatildeo acerca do que se pode conceber como

um trabalho intelectual oposto agraves percepccedilotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Dada

nos termos da cogniccedilatildeo (γηγλώζθσ) tem-se o trabalho intelectivo do δηαλνέσ no qual a

alma conhece a essecircncia (νὐζία) daquilo que examina Apreender a essecircncia a realidade

dos objetos em exame quer dizer o mesmo que contemplar a verdade deles Conhecer

consiste assim neste tipo de apreensatildeo que tem em vista o ηη εἶλαη presente nesta

noccedilatildeo de δίθαηνλ αὐηὸ θαιόλ αὐηὸ e ἀγαζόλ αὐηὸ O bem o belo e a justiccedila tal como

quer o filoacutesofo natildeo podem ser conhecidos pelas sensaccedilotildees e devem ser desse modo

apreendidos exclusivamente por esta atividade do pensamento revelando-se portanto

serem da ordem do intelecto Cabe notar que o ηὸ αὐηὸ que acompanha as noccedilotildees

sugeridas e mesmo a νὐζία natildeo satildeo ditas ainda no registro da ontologia Apesar de

evocar a noccedilatildeo abstrata desses conceitos parece precipitado dizer que o texto faz nesse

instante referecircncia agraves Formas O que estaacute em jogo eacute primeiramente delimitar o

verdadeiro objeto da alma e o modo como o filoacutesofo deve proceder para atingi-lo A

nova perspectiva que estaacute sendo proposta a partir daqui a da ζεσξία contemplaccedilatildeo das

83 Observe-se a partir daqui o uso do verbo ὁξάσ e o termo ὄςηο enfatizando a visatildeo sensiacutevel em

contraposiccedilatildeo agrave imagem que se obteacutem pelo trabalho intelectivo da alma Este verbo passa a partir de

agora a denotar a inferioridade da percepccedilatildeo sensiacutevel ao mesmo tempo em que o verbo εἶδνλ assume o

sentido de visatildeo inteligiacutevel isto eacute a visatildeo capaz de apreender os seres inteligiacuteveis

84 Cabe uma notar que o termo correto seria ldquoprecisamenterdquo e natildeo ldquopreciosamenterdquo como traz a

traduccedilatildeo

148

coisas85

desfaz o equiacutevoco de tomar o corpo como instrumento para o conhecimento e

atribui de vez este papel agrave alma

A partir da oposiccedilatildeo corpo - alma sensaccedilatildeo ndash intelecto a dicotomia sensiacutevel ndash

inteligiacutevel que comeccedila a ser delineada ganha definiccedilotildees mais especiacuteficas e se mostra

decisiva para uma pesquisa filosoacutefica Eacute importante estabelecer as diferenciaccedilotildees entre

alma e corpo na qual se verifica que o corpo eacute distinto da alma natildeo se confunde com

ela e eacute o abrigo das sensaccedilotildees por isso tambeacutem das contrariedades que elas podem

apresentar umas com as outras86

Por conta disso eacute incapaz de conhecer a verdade

acerca do que investiga tal como propotildee a filosofia uma vez que as sensaccedilotildees natildeo

oferecem qualquer dado de modo claro e preciso O corpo natildeo constitui assim um

instrumento seguro para uma anaacutelise mas ao contraacuterio confunde e perturba alma como

visto ateacute aqui Por outro lado a alma se mostra capaz de conhecer e eacute desejante do que eacute

real e verdadeiro caracteriacutesticas que obrigam o filoacutesofo a averiguar mais

detalhadamente a αὐηὴ θαζαὑηὴ no desenlace desta separaccedilatildeo Dito de outro modo a

alma por ela mesma apresenta a conduta do filoacutesofo e sua posiccedilatildeo perante vida e morte

ao narrar a maneira como ele lida com as perturbaccedilotildees dos sentidos e de que maneira o

pensar age nesse contexto

ldquo- Ora isso soacute poderaacute realizaacute-lo em plena pureza o homem que

na medida de suas forccedilas for ao encontro delas exclusivamente pela

via do pensamento abstraindo dele o recurso agrave vista ou qualquer um

dos sentidos e sem arrastar nenhum deles atraacutes da razatildeo (Ἆξ νὖλ

ἐθεῖλνο ἂλ ηνῦην πνηήζεηελ θαζαξώηαηα ὅζηηο ὅηη κάιηζηα αὐηῆ ηῆ

δηαλνίᾳ ἴνη ἐθ ἕθαζηνλ κήηε ηηλ ὄςηλ παξαηηζέκελνο ἐλ ηῷ

δηαλνεῖζζαη κήηε [ηηλὰ] ἄιιελ αἴζζεζηλ ἐθέιθσλ κεδεκίαλ κεηὰ ηνῦ

ινγηζκνῦ) que utilizando apenas o pensamento em si mesmo sem

mistura se lanccedila na caccedila de cada uma das realidades em si mesmas e

sem misturas (αὐηῆ θαζ αὑηὴλ εἰιηθξηλεῖ ηῆ δηαλνίᾳ ρξώκελνο αὐηὸ

θαζ αὑηὸ εἰιηθξηλὲο ἕθαζηνλ ἐπηρεηξνῖ ζεξεύεηλ ηῶλ ὄλησλ) liberto

85 Fed 66e1 θαὶ αὐηῆ ηῆ ςπρῆ ζεαηένλ αὐηὰ ηὰ πξάγκαηα

86 Vale ter em vista aqui o que o diaacutelogo sugere logo nas primeiras cenas de Soacutecrates na prisatildeo e o seu

comentaacuterio ao se livrar dos grilhotildees ldquo- Que coisa estranha amigos essa sensaccedilatildeo a que os homens

chamam de prazer Eacute espantoso como naturalmente se associa ao que passa por ser o seu contraacuterio a

dor Ambos se recusam a estar presentes ao mesmo tempo no mesmo homem e todavia se algueacutem

persegue e alcanccedila um deles eacute quase certo e sabido que acaba por alcanccedilar o outro como dois seres

que estivessem ligados por uma soacute cabeccedila () Ora estou acreditando que eacute tambeacutem o que acontece

comigo agrave sensaccedilatildeo de dor que a corrente me provocava na perna eacute agora o prazer que manifestamente

lhe vem no encalccedilordquo (60b3-c) O excerto sugere ser a condiccedilatildeo de humanidade isto eacute da alma ainda

associada ao corpo um estado no qual a alma ainda experimenta as diferentes sensaccedilotildees O corpo nesse

contexto constitui o lugar para a recepccedilatildeo dessas sensaccedilotildees e portanto o lugar onde se apresentam

oposiccedilotildees as quais soacute podem advir do sensiacutevel como prazer e dor A contrariedade tema que seraacute

discutido no diaacutelogo vale adiantar natildeo eacute aceitaacutevel segundo a concepccedilatildeo de alma racional una e invisiacutevel

que estaacute sendo formulada

149

ateacute onde lhe for possiacutevel dos olhos dos ouvidos numa palavra de

todo o corpo - ciente de quanto esta perturba a alma e a impede de

adquirir a verdade e sabedoria (ἀιήζεηάλ ηε θαὶ θξόλεζηλ) quando

ambos se associam Ou natildeo te parece que se algueacutem existe com a

possibilidade de atingir o real (ηνῦ ὄληνο) eacute este mesmordquo (Fed

65e5-66a8)

O afastamento da alma em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees eacute dado nos termos da

purificaccedilatildeo Nesse contexto o pensamento eacute claramente o agente que promove tal

distanciamento e assim o responsaacutevel pelo processo de purificaccedilatildeo Aquele que busca

adquirir o ser deve ter no pensamento o meio de emancipar-se das sensaccedilotildees de modo a

natildeo se deixa arrastar influenciar por elas e desse modo natildeo permitir que estas

imponham obstaacuteculo agrave atividade racional O texto oferece a busca do conhecimento

anaacutelogo ao de uma ldquocaccedila agraves realidadesrdquo que sugere de um lado a dificuldade do

pensamento agir nesse contexto de separaccedilatildeo e por outro o benefiacutecio de ter a alma e o

pensar tornando-se com isso puros (θαζαξόο) e sem mistura (εἰιηθξηλήο) Δηάλνηα e

ινγηζκόο mostram essa atividade racional que nesta circunstacircncia oferece o

pensamento do mesmo modo como uma faculdade em processo de θάζαξζηο ou seja

em contiacutenuo distanciamento do corpoacutereo tanto quanto possiacutevel87

Note-se que o trecho

apresenta nesta relaccedilatildeo o pensamento como agente e paciente na medida em que este

promove a purificaccedilatildeo e ao mesmo tempo se beneficia dela ao se tornar puro e livre

para atuar na aquisiccedilatildeo dos alvos maiores converter-se em alta inteligecircncia e apreender

a verdade88

No processo de purificaccedilatildeo ainda natildeo se tem todavia a descriccedilatildeo de seu

modo excelente como quer o filoacutesofo Entretanto natildeo se deve descartar que nessa fase

em que o sentido da θξόλεζηο como condiccedilatildeo excelente da razatildeo comeccedila a ser

formulado essa noccedilatildeo de pureza que o texto sugere serve aos propoacutesitos de exaltar e

oferecer uma noccedilatildeo de excelecircncia ao modo filosoacutefico Diferentemente de uma noccedilatildeo

baseada em distinccedilotildees de ordem social pretende-se agora uma superioridade intelectual

que se busca a partir de uma purificaccedilatildeo cuja concepccedilatildeo foge agrave noccedilatildeo que se tem nos

87 Chen op cit p 17

88 Vale verificar a afirmaccedilatildeo de BREacuteHIER ldquoMas no Feacutedon ele trata da purificaccedilatildeo do pensamento natildeo

se poderaacute obtecirc-lo se natildeo for pelo proacuteprio pensamento que eacute portanto agraves vezes o ser a se purificar agraves

vezes o meio de purificaccedilatildeo temos sobre isso a declaraccedilatildeo expressa do Feacutedon (69c) pensamento eacute um

bdquomeio de purificaccedilatildeo‟ (katharmos) Para ele a katharsis consiste na verdade na conversatildeo de um

ldquopensamento impurordquo na direccedilatildeo de ldquoum Pensamento puro e infalivelmente perfeitordquo que age sobre o ser

atraveacutes do alcance e dos efeitos disto que aqui se considera o pensamento em seu estado excelente e para

ele constitui a Forma Pensamento Breacutehier E ldquoAretai Katharseisrdquo in Etudes de Philosophie Antiquerdquo

Presses Universitaires de France Paris 1955 p241

150

ritos tradicionais sendo ambos dados no registro da inteligecircncia89

Assim parece

coerente que faccedila parte da alta intelecccedilatildeo que constitui a θξόλεζηο o desapego das

paixotildees desejos e sofrimentos do corpo90

tal como o desprezo por honrarias e outras

vilanias sendo o conhecimento a busca intelectual propiacutecia para isso e a verdade

definida como niacutetido e sem mistura o guia (Fed 66b7)

Cabe observar que o pensamento eacute oferecido como a uacutenica atividade da alma

atraveacutes da qual apresenta o seu caraacuteter enquanto distinta e afastada do corpo A

descriccedilatildeo da purificaccedilatildeo que o pensamento promove tal como se apresenta revela que

ele proacuteprio aparentemente consiste no uacutenico elemento que resiste a esse afastamento

sendo portanto apropriado para supor o conhecimento do que eacute distinto do sensiacutevel e

que concerne agrave alma Este movimento de afastamento que descreve a alma mesmo sem

a intenccedilatildeo de defini-la oferece uma noccedilatildeo a seu respeito na medida vale dizer do que

parece necessaacuterio para a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade Se tomarmos a alma por sua

capacidade e atividade de intelecccedilatildeo que eacute o que interessa ao nosso estudo eacute

conveniente examinar como este pensamento eacute capaz de mover a alma em direccedilatildeo aos

seres inteligiacuteveis ou melhor de que modo e por quais razotildees a alma se move de que

maneira isso constitui o pensar

A pista encontrada por Soacutecrates para um exame racional eacute pautado pela verdade

e tem a consciecircncia de que a alma por ela mesma no exerciacutecio do pensamento eacute a via

adequada para o conhecimento91

Assim na funccedilatildeo de agente purificador o pensamento

separa o que natildeo constitui uma qualidade que colabore para o conhecimento as

sensaccedilotildees e se potildee a contemplar o que estaacute em exame pela proacutepria alma o que em

89 Para Louis Moulinier ldquokatharsisrdquo em geral assume o significado de limpar tornar livre de mistura

purgar Os termos katharos e katharein satildeo os termos que em geral exprimem a pureza no domiacutenio da

inteligecircncia como parece ser o sentido privilegiado no Feacutedon As ocorrecircncias desse significado nesse

domiacutenio fazem referecircncia agrave limpidez do oraacuteculo ou quando katharos significa ldquoclaramenterdquo

O autor

explica ldquo[] os Gregos conceberam uma pureza das coisas e uma pureza do espiacuterito que entre essas

coisas estaacute a verdade e dentro dela a sinceridade esta noccedilatildeo eles exprimiam pelo adjetivo katharos

que ainda eacute muito material e que implica agraves vezes um juiacutezo de valor inteiramente moralrdquo Em toda a sua

obra Moulinier nota a presenccedila da noccedilatildeo de materialidade no que diz respeito ao tema da purificaccedilatildeo

tanto na perspectiva fiacutesica do mundo quanto no plano abstrato O valor material da pureza eacute transposto

para outras perspectivas como o da moralidade e o da intelectualidade Na medicina o termo katharsis se

apresenta em todo o tipo de evacuaccedilatildeo ou escorrimento seja esse escorrimento natural como a

menorreacuteia ou um escorrimento causado por alguma patologia Os dois sentidos que o termo possui na

linguagem meacutedica designam tanto a eliminaccedilatildeo de um mal quanto uma evacuaccedilatildeo que restabelece uma

ordem uma harmonia Moulinier L Le Pure et Le Impure dans La Penseacutee des Grecs- De Homere a

Aristote Librarie Klincksiec Paris 1952 167-170

90 Fed 66c2rdquoPaixotildees desejos temores futilidades e fantasias de toda ordem (ἐπηζπκηῶλ θαὶ θόβσλ θαὶ

εἰδώισλ παληνδαπῶλ θαὶ θιπαξίαο)rdquo

91 Fed 66b3 7 ldquoProvavelmente haacute uma espeacutecie de pista [que por meio da razatildeo] nos guia nas nossas

pesquisas (Κηλδπλεύεη ηνη ὥζπεξ ἀηξαπόο ηηο ἐθθέξεηλ ἡκᾶο [κεηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐλ ηῆ ζθέςεη])rdquo

151

outras palavras representa a sua autonomia Somente a partir desta liberdade que

consiste no desapego da alma e na consequente autonomia do pensamento que os

objetos almejados parecem atingiacuteveis um grau de saber do qual o filoacutesofo eacute amante92

que corresponde ao que tudo indica ao pensar em seu modo excelente

Conveacutem verificar desse modo o sentido dessa pureza dada pelo processo

racional que o filoacutesofo pretende defender para compreender melhor o tipo de objeto

desejado na filosofia O puro (θαζαξόο) eacute anaacutelogo agrave clareza e agrave precisatildeo anteriormente

referidas como qualidades ausentes nos dados fornecidos pelos sentidos e constitui um

atributo supostamente comum em relaccedilatildeo aos objetos aspirados pelo filoacutesofo a verdade

os seres e os deuses que encontraraacute no destino apoacutes a morte (Fed 66e) Nas passagens

onde Soacutecrates confessa ter esperanccedila em obter um bom destino post mortem a θάζαξζηο

aparece como a preparaccedilatildeo apropriada e necessaacuteria para este fim Tem-se claramente a

identificaccedilatildeo desta purificaccedilatildeo ao que eacute divino denotando a proposta de atribuir um

caraacuteter intelectualista agravequilo que tradicionalmente eacute visto no acircmbito da religiosidade

ldquo() assim pois uma vez resgatados da demecircncia (ἀθξνζύλεο)

do corpo eacute razoaacutevel se supor que gozaremos da companhia de outros

seres igualmente puros e conheceremos por noacutes mesmos (γλσζόκεζα

δη ἡκῶλ αὐηῶλ ) tudo o que eacute sem mistura o que equivale talvez a

dizer a verdade (ηνῦην δ ἐζηὶλ ἴζσο ηὸ ἀιεζέο) pois soacute ao impuro

natildeo deveraacute ser permitido tocar o que eacute puro‟ Aqui tens Siacutemias o

que quanto a mim natildeo deixaratildeo de sentir e comentar entre si todos

aqueles que efetivamente amam a sabedoria (πάληαο ηνὺο ὀξζῶο

θηινκαζεῖο) Ou natildeo concordasrdquo (Fed 67a6-b4)

O processo da θάζαξζηο apresenta a sua finalidade metafiacutesica Natildeo seria um erro

dizer de acordo com esta uacuteltima passagem que os termos em que se coloca a questatildeo

religiosa da vida apoacutes a morte recebe a sua versatildeo filosoacutefica na qual o domiacutenio dos

deuses tem uma natureza tal que pode ser atingida apoacutes a alma se desvincular do corpo

O propoacutesito de um argumento acerca da purificaccedilatildeo estaacute justamente em propor o gecircnero

deste domiacutenio dos deuses que o filoacutesofo pretende alcanccedilar Entretanto disto depende

uma minuciosa investigaccedilatildeo sobre a alma e assim sobre a faculdade e o processo

responsaacutevel para esta aquisiccedilatildeo Nesses termos conveacutem especificar no que consiste a

92 Fed 66e1 ldquoEntatildeo sim ser-nos-aacute dado ao que parece alcanccedilar o alvo das nossas aspiraccedilotildees a

sabedoria de que somos amantes (θαὶ ηόηε ὡο ἔνηθελ ἡκῖλ ἔζηαη νὗ ἐπηζπκνῦκέλ ηε θαί θακελ ἐξαζηαὶ

εἶλαη θξνλήζεσο)rdquo

152

purificaccedilatildeo para o filoacutesofo o qual possui uma noccedilatildeo especiacutefica de morte e uma vez que

dela se daacute todo o processo para atingir o bom destino tatildeo almejado O discurso da antiga

tradiccedilatildeo (πάιαη ἐλ ηῷ ιόγῳ ιέγεηαη Fed 67c6) chama de θάζαξζηο o que para o filoacutesofo

consiste na morte a total liberaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo (Fed 67d4-5) Ora

entatildeo qual seria diante disso a vantagem de se purificar na filosofia E poucas

palavras a postura de desapego do filoacutesofo eacute um ensaio para a condiccedilatildeo de total

desvinculaccedilatildeo das coisas que dizem respeito ao corpoacutereo ao fiacutesico na qual a alma em

breve no caso de Soacutecrates se encontraraacute (Fed 67d)

A comeccedilar o objeto do qual os filoacutesofos se dizem amantes mais

especificamente no gecircnero desse objeto constitui um dado importante nessa

purificaccedilatildeo Os homens comuns enfrentam a morte movidos pelas afeiccedilotildees que mantecircm

em vida humana e aparentemente pretendem mantecirc-las na condiccedilatildeo de mortos

mostrando-se assim apegados ao corpo e ao que eacute relativo agrave vida humana (ἀλζξώπηλνο

Fed 68a3) O filoacutesofo ao contraacuterio se move pelo desejo de se reunir a seres divinos

descorporificados identificados aos seres da ordem inteligiacutevel como se veraacute mais

adiante uma vez que reconhece pela filosofia ser a desvinculaccedilatildeo do que eacute relativo agrave

condiccedilatildeo humana como algo positivo93

Outro ponto importante acerca dessa racionalizaccedilatildeo sobre a morte diz respeito a

uma certeza uma convicccedilatildeo (ζθόδξα γὰξ αὐηῷ ηαῦηα δόμεη Fed 68b3) que se adquire

sobre eles pela filosofia como a do bom destino apoacutes a morte para aquele que filosofou

Tal convicccedilatildeo deve-se reparar daacute-se pela via racional e tem em vista junto agrave

pretendida estadia com os deuses (Fed 69c-d6) a aquisiccedilatildeo de um estado de pureza dito

θξνλήζεσο do qual satildeo amantes os filoacutesofos e no qual ele teraacute a desejada sabedoria94

Tem-se ressaltado novamente neste argumento os dois aspectos da θξόλεζηο sua

conotaccedilatildeo de sabedoria alto conhecimento e uma condiccedilatildeo de pureza da alma De

93Sobre a funccedilatildeo do misticismo que Platatildeo apresenta no Feacutedon Brehieacuter pergunta ldquoPoderiacuteamos ser

tentados a considerar o misticismo como um simples meio de intelectualismo de fato uma boa parte dos

argumentos que convida purificar a alma da impureza do corpo (65b-66c) insistem sobre as razotildees

intelectuais da purificaccedilatildeo [] mas podemos crer que as noccedilotildees religiosas introduzidas com um

semelhante acento sejam simples metaacuteforas literaacuteriasrdquo Breacutehier op cit p 237 Compatiacutevel em parte

com a nossa anaacutelise Moulinier comenta ldquoUma tal doutrina eacute no fundo a mesma que a dos Misteacuterios

que por sua vez natildeo prometendo mais que as purificaccedilotildees libertadoras prometem uma felicidade divina

no outro ladordquo Moulinier opcit p 359 Sem pretensotildees de responder a estas questotildees de cunho

religioso importa observar a construccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de depuraccedilatildeo racional em benefiacutecio da alma

que consiste na filosofia

94 Fed 68b4 ldquoPelo menos meu caro amigo assim devem pensar os filoacutesofos que o satildeo de fato pois eacute

neles que em especial se firma esta convicccedilatildeo de que em nenhum outro lugar a natildeo ser ali lhes seraacute

dado alcanccedilar a autecircntica sabedoria (κεδακνῦ ἄιινζη θαζαξῶο ἐληεύμεζζαη θξνλήζεη ἀιι ἢ ἐθεῖ) e

Fed 68a7 ldquoalgueacutem que ame deveras a sabedoria (θξνλήζεσο δὲ ἄξα ηηο ηῷ ὄληη ἐξῶλ) e sinta em si

enraizada essa convicccedilatildeo ()rdquo

153

maneira incisiva o texto apresenta tal estado e esse alto conhecimento possiacutevel somente

com a total separaccedilatildeo entre alma e corpo e portanto inatingiacutevel inteiramente durante a

vida O que pode parecer uma afirmaccedilatildeo frustrante para aquele que se empenhou em

filosofar demonstra na verdade o tipo de crenccedila que o exerciacutecio racional daacute subsiacutedios

Em outras palavras trata-se de apresentar os pilares inteligentes que sustentam a crenccedila

da imortalidade da qual Soacutecrates natildeo abre matildeo e que justificam o seu destemor sendo a

atividade do pensamento atuando livre de influecircncias diversas a base principal para uma

convicccedilatildeo

ldquo[] Pelo menos meu caro assim devem pensar os filoacutesofos que

o satildeo de fato pois eacute neles que em especial se forma a convicccedilatildeo de

que em nenhum lugar a natildeo ser ali lhes seraacute dado alcanccedilar a

autecircntica sabedoria E se isto eacute exato nada mais absurdo (ἀινγία)

portanto como dizia haacute pouco do que um homem dessa tecircmpera

recear a morterdquo (Fed 68 a-b)

Outros adjetivos se somaratildeo agraves vantagens que pode trazer o exerciacutecio da

filosofia As virtudes como coragem (ἀλδξεία Fed 68c5) e temperanccedila (ζσθξνζύλε

Fed 68c8) satildeo aquisiccedilotildees do filoacutesofo ao longo de uma vida dedicada ao pensar e aos

cuidados da alma Diferentemente da noccedilatildeo vulgar de coragem e temperanccedila a

aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude se daacute com conduta de desapego que se realiza pelo

exerciacutecio do pensamento Para a maioria ser corajoso consiste em enfrentar o que lhes

causa temor como a morte sendo neste caso o proacuteprio medo a causa da accedilatildeo De

maneira similar o ser temperante consiste para o natildeo filoacutesofo em certo comedimento

imposto justamente pelo desregramento que o acomete sendo a intemperanccedila portanto

a causa da temperanccedila (Fed 68d-69a4) As accedilotildees para o vulgo tem origem na

irracionalidade das emoccedilotildees afecccedilotildees das quais a alma do filoacutesofo estaacute treinada em natildeo

se deixar influenciar e pode assim agir guiado pela razatildeo

ldquo- Ora meu caro siacutemias talvez natildeo seja esse o processo

adequado de troca devido agrave virtude esse de trocar prazeres por

prazeres sofrimentos por sofrimentos receios por receios ndash uns

maiores por outros menores - como se de moedas tratasse Talvez

que pelo contraacuterio haja uma uacutenica moeda adequada capaz de

assegurar a validade de todas essas trocas ndash a Razatildeo - (ἀιι ᾖ ἐθεῖλν

κόλνλ ηὸ λόκηζκα ὀξζόλ ἀληὶ νὗ δεῖ πάληα ηαῦηα θαηαιιάηηεζζαη

θξόλεζηο) Sim talvez soacute com ela [e mediante ela] se possa de

verdade [comprar e vender] coragem temperanccedila justiccedila numa

palavra a autecircntica virtude que eacute a que vem acompanhada de razatildeo

(ζπιιήβδελ ἀιεζὴο ἀξεηή κεηὰ θξνλήζεσο) []rdquo (Fed 69a6-10)

154

A relaccedilatildeo do filoacutesofo com o corpo e de maneira mais abrangente sua postura

diante das questotildees humanas mostram a especificidade de uma eacutetica baseada na

inteligecircncia Aqueles que dedicam a vida agrave filosofia trocam os apelos e os prazeres

corporais pelas virtudes e assim procuram se depurar do modo mais apropriado (Fed

69a-b) que constitui o cuidado da alma Esses almejam aquilo que por analogia

poderia ser considerado a uacutenica moeda correta a θξόλεζηο a qual deve prevalecer sobre

todo e qualquer tipo de troca ou tentando apreender mais profundamente o sentido da

analogia o valor superior a qualquer moeda que se possa adquirir Diante de tal relaccedilatildeo

cabe analisar a analogia a fim de verificar a noccedilatildeo de valor e de superioridade que o

argumento sugere A argumentaccedilatildeo se utiliza de analogia cujo objeto a moeda

representa a instabilidade dos paradigmas em que o homem comum se baseia para

atribuir valor Note-se que se tem sugerido assim a distinccedilatildeo entre dois planos no qual

fica aparente a dicotomia entre um valor de uso que se refere agrave troca de um prazer pelo

outro e um valor real a θξόλεζηο e as verdadeiras virtudes Como objeto desprovido de

valor intriacutenseco a moeda em seu uso comum demonstra por contraste a superioridade

da θξόλεζηο que eacute dada como objeto em si mesmo valioso Sua importacircncia consiste

justamente na funccedilatildeo de promover as virtudes a qual o filoacutesofo compreende quando se

dispotildee a procurar aquilo que eacute de mais alto valor e descobre ser a proacutepria θξόλεζηο a

fonte dos bens Tal relaccedilatildeo difere desse modo das trocas e das escolhas que se realizam

no plano da simples permuta onde natildeo haacute nenhuma verdadeira aquisiccedilatildeo visto que aiacute

os objetos satildeo efecircmeros As relaccedilotildees para o homem comum constituem uma relaccedilatildeo de

substituiccedilatildeo uma vez que esse efetua uma permuta entre objetos cujo valor eacute o mesmo

enquanto o filoacutesofo ao contraacuterio tem em vista a troca de algo inferior referente ao

corpo por algo superior as virtudes verdadeiras95

o que consiste em uma verdadeira

relaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo

A vida filosoacutefica como um modo intelectivo de purificaccedilatildeo garante assim a

verdadeira aquisiccedilatildeo ou seja a elevaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de alta inteligecircncia e por

consequecircncia promove as verdadeiras virtudes96

Deve-se notar que as virtudes assim

95Rowe tambeacutem comenta sobre a inquietante comparaccedilatildeo dizendo que a base da comparaccedilatildeo natildeo

consiste propriamente na troca de valores mas no valor e na importacircncia dos objetos em questatildeo Na sua

visatildeo isso ajuda a pontuar a phronesis equivalente a sabedoria que natildeo consiste em mais um objeto

dentre tantos outros a ser trocado Plato Phaedo texto estabelecido e comentado por C J Rowe

Cambridge University Press 1996 (Cambridge Greek and Latin Classics) p 149-150

96 Yvon Bregraves compreende a perspectiva que Platatildeo lanccedila sobre a arete da seguinte forma ldquoCom o Feacutedon

a alma se arrisca natildeo mais a tornar-se apenas um receptaacuteculo de arete mas o substituto de arete (op

155

como a θξόλεζηο satildeo postas como objetos almejados e ao mesmo tempo qualidades

passiacuteveis de serem adquiridas com o processo racional de purificaccedilatildeo Natildeo se tem aqui

uma noccedilatildeo de ἀξεηή que embora aliada ao exerciacutecio do pensamento consiste no que se

poderia dizer uma ideia de justiccedila de coragem ou de temperanccedila Trata-se ao que

parece de sugerir uma noccedilatildeo de verdadeira virtude relacionada agrave noccedilatildeo de inteligecircncia

a qual recebe nessa argumentaccedilatildeo seus primeiros contornos Do mesmo modo

pretende-se argumentar acerca do teor racional de sua aquisiccedilatildeo de modo a qualificar e

especificar a conduta do filoacutesofo Assim as virtudes tal como a θξόλεζηο consistem

em qualidades dadas pelo exerciacutecio do pensar ao modo da filosofia e podem ser

referidas como se vecirc nos termos da purificaccedilatildeo Uma vez a alma depurada ela estaacute

dotada de virtudes verdadeiras e portanto livre de apresentar aparecircncias enganosas

(ζθηαγξαθία) de virtude

A partir dessa argumentaccedilatildeo note-se que se agrega agrave noccedilatildeo de alto pensamento

dito nos termos da θξόλεζηο a noccedilatildeo de autecircntica virtude da qual ele eacute tambeacutem

responsaacutevel (θαὶ αὐηὴ ἡ θξόλεζηο κὴ θαζαξκόο ηηο ᾖ Fed 69c2) A dupla face do

pensamento como resultado do processo e ao mesmo tempo agente que o promove

mostra que a aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude corresponde agrave aquisiccedilatildeo do estado de alta

inteligecircncia que pressupotildee a θξόλεζηο Estar na condiccedilatildeo da θξόλεζηο pressupotildee ter

adquirido a alta inteligecircncia pelo processo do proacuteprio pensamento se tornando desse

modo possuidor das virtudes Assim ao mesmo tempo em que se tem agrave mostra alguns

dos seus atributos sugere-se a valoraccedilatildeo do pensar em seu mais alto niacutevel virtuoso

puro e autecircntico por isso condiccedilatildeo almejada pelo filoacutesofo Nos papeacuteis de agente e

paciente o pensar neste niacutevel se apresenta como o cume da atividade intelectual na qual

a alma se encontra em total independecircncia do corpo apesar da convivecircncia com ele e

demonstra atingir por conta disso as coisas em seu modo puro ou em termos

filosoacuteficos verdadeiro Tal pureza lhe permite um grau de compreensatildeo acerca de um

gecircnero distinto diferente do corpoacutereo identificado agrave condiccedilatildeo de estar morto que

constitui a peculiaridade do seu alcance A purificaccedilatildeo torna salientes suas distinccedilotildees e

as distinccedilotildees do que a ele se refere deixando claro que a sua atividade se daacute em torno

deste gecircnero incorpoacutereo diferente do sensiacutevel e tem em vista o que eacute verdadeiro Do

mesmo modo note-se que sendo as virtudes ataacutevicas ao seu exerciacutecio o pensar em

cit paacuteg 193) Jaacute Monique Dixsaut na nota 104 de sua traduccedilatildeo diz ldquo[] o resultado da purificaccedilatildeo

pelo pensamento eacute a katharsis isto eacute resultado do que foi purificado as virtudes Puras de qualquer

erro aos quais concernem seus termos de aplicaccedilatildeo as virtudes se tornam moderaccedilatildeo justiccedila etc[]rdquo

156

busca de sua excelecircncia constitui o ponto em que racionalidade e moral satildeo ligadas no

diaacutelogo e revela assim o teor eacutetico da investigaccedilatildeo sobre a imortalidade e da vida

segundo a filosofia

Dadas as aquisiccedilotildees do exerciacutecio do pensamento na filosofia a defesa da

conduta do filoacutesofo mostra seu valor e seu modo de operar O pensamento tem exposto

nos termos da θάζαξζηο a sua funccedilatildeo no contexto do diaacutelogo dignificar a vida do

filoacutesofo o deixando pleno de virtudes conferir-lhe algum grau de conhecimento97

tornar a alma pura e se tornar com isso cada vez mais puro ou seja livre para pensar

A abrangecircncia desta noccedilatildeo de pensamento puro ou pensamento livre do corpoacutereo natildeo

tem seu caraacuteter inteiramente exposto mas note-se eacute afim e estaacute dentro da proposta de

investigaccedilatildeo da imortalidade como permanecircncia apoacutes a morte do corpo como sugerido

anteriormente Aleacutem disso vale notar que o diaacutelogo elenca atraveacutes dos vaacuterios

argumentos utilizados na investigaccedilatildeo as caracteriacutesticas do pensamento e por enquanto

importa ressaltar as duas importantes atribuiccedilotildees que a noccedilatildeo de θαζαξκόο oferecem

analogamente e que passam a integrar o conjunto de qualidades do trabalho racional

processo e autenticidade este uacuteltimo vinculado agrave ἀιήζεηα Da mesma maneira o

θαζαξόο apresenta clareza e precisatildeo como qualidades referentes aos seus objetos e

portanto compartilhada pelo pensamento Analogamente referida pela θάζαξζηο a

operacionalidade dada nos termos da δηάλνηα e ινγηζκόο que conduz agrave excelecircncia da

razatildeo tem proposto seu valor depurativo O que na purificaccedilatildeo eacute dado como separaccedilatildeo e

afastamento mais adiante seraacute revelado como o discernimento de objetos especiacuteficos

mas que por enquanto constitui um processo de desapego promovido pela filosofia de

valor moral Tais noccedilotildees faratildeo parte da concepccedilatildeo de ciecircncia que o diaacutelogo evocaraacute

mais adiante e compotildeem a partir de entatildeo as caracteriacutesticas da atividade racional a qual

sofreraacute ao longo do diaacutelogo as devidas formulaccedilotildees filosoacuteficas

97 Pakaluk considera que a desvinculaccedilatildeo depuradora que trata o texto se daacute em graus Aos poucos a

alma vai se aproximando do estado em que permaneceraacute quando estiver inteiramente pura liberta do

corpo Ele entende que ao ligar a noccedilatildeo de purificaccedilatildeo com o treino para a morte Platatildeo sugere ser

possiacutevel a depuraccedilatildeo em vida mesmo sendo obviamente limitada ldquoPodemos imaginar tambeacutem que

parte do objetivo de Platatildeo ao introduzir a imagem da purificaccedilatildeo no SD (argumento de defesa de

Soacutecrates) em 65e6-66a 7 e 67c5-d1 eacute sugerir que a separaccedilatildeo nesta vida difere somente em graus da

morte O processo de remover uma impureza eacute naturalmente um processo para alcanccedilar um grau

extremo de uma qualidade que jaacute eacute presente Dizer que bdquonoacutes natildeo podemos conhecer nada puramente na

companhia do corpo‟ (64e4) implica dizer que noacutes jaacute conhecemos algo em algum grau na companhia do

corpordquo Pakaluk Michel ldquoDegrees of Separation in the Phaedordquo in Phronesis - Journal For Ancient

Philosophy Brill XLVIII 2 Leiden 2003 paacuteg 101

157

14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva

Dado o processo de afastamento e a consequente separaccedilatildeo entre corpo e alma

as questotildees acerca de imortalidade satildeo formuladas com vistas para a sobrevivecircncia apoacutes

a morte A partir dos proacuteximos argumentos o foco da argumentaccedilatildeo teraacute em questatildeo a

natureza da alma que como tal permite sua subsistecircncia Surge nos termos da filosofia

especificaccedilotildees acerca do domiacutenio correspondente ao que a tradiccedilatildeo religiosa tem como

poacutes-vida no qual se apresentam algumas caracteriacutesticas daquilo que seraacute descrito como

o domiacutenio da inteligibilidade e que tem portanto a faculdade cognitiva da alma como

testemunho de sua presenccedila nesse plano

ldquo[] Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a

alma subsiste algures (νὐδακνῦ ἔηη ᾖ) e natildeo fica destruiacuteda e

aniquilada (δηαθζείξεηαί ηε θαὶ ἀπνιιύεηαη) no mesmo dia em que

morre Quem sabe se logo depois que dele se liberta e sai natildeo se

desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar

rastro de existecircncia (νὐδὲλ ἔηη νὐδακνῦ ᾖ) Claro que a verificar-se

a hipoacutetese de ela subsistir algures concentrada em si mesma e liberta

(εἴπεξ εἴε πνπ αὐηὴ θαζαὑηὴλ ζπλεζξνηζκέλε θαὶ ἀπειιαγκέλε )

desses males que mesmo haacute pouco enumeravas entatildeo sim haveria

fortes e boas razotildees para esperar que o que dizes Soacutecrates fosse

verdade Poreacutem aiacute estaacute uma coisa que requer talvez natildeo pequeno

esforccedilo persuadir e provar (νὐθ ὀιίγεο παξακπζίαο δεῖηαη θαὶ

πίζηεσο) nada mais nada menos que a alma existe para aleacutem da

morte e manteacutem de alguma forma o uso das suas faculdades e

entendimento (ὡο ἔζηη ηε ςπρὴ ἀπνζαλόληνο ηνῦ ἀλζξώπνπ θαί ηηλα

δύλακηλ ἔρεη θαὶ θξόλεζηλ)rdquo (Fed 70a2-b4)98

Deve-se primeiramente observar que a concepccedilatildeo de alma segundo a tradiccedilatildeo

entra em conflito com a noccedilatildeo de morte oferecida pelo filoacutesofo ateacute aqui Ao se levantar

pela voz de Cebes a possibilidade de destruiccedilatildeo e de aniquilamento coloca-se em

98 Vale chamar a atenccedilatildeo para as traduccedilotildees do termo phronesis Na traduccedilatildeo francesa de Monique

Dixsaut temos esse trecho ldquo[] ela conserva tambeacutem uma certa forccedila e o pensamento (penseacutee)rdquo Dixsaut

op cit p Rowe opta por algo proacuteximo da traduccedilatildeo que estamos seguindo ldquotina dinamin `algum poderacute

`alguma capacidadeacute mas seraacute de fato uma capacidade relevante se for para um entendimento

(understanding)rdquo Rowe op cit p 153 Fowler opta por ldquoany power and intelligencerdquo Fowler H N Plato

Phaedo Harvard University Press Cambridge Massachusetts Loeb Classical Library p243

158

questatildeo de maneira mais direta a natureza da alma que estaacute em jogo A existecircncia da

alma separada do corpo esbarra em um problema que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo

uma vez que na morte o perecimento do corpo eacute visiacutevel Embora o argumento acerca da

filosofia como exerciacutecio para a boa morte seja aceito falta detalhar esta natureza que

oferece condiccedilotildees para uma possiacutevel sobrevivecircncia agrave corrupccedilatildeo Dito de outro modo o

diaacutelogo propotildee uma anaacutelise de planos no qual se pode distinguir corpo e alma a fim de

revelar o gecircnero de cada um e obter a partir disso uma explicaccedilatildeo acerca da destruiccedilatildeo

de um e da permanecircncia do outro Da mesma maneira eacute notaacutevel a necessidade de

demonstrar a possibilidade de rastrear de conhecer em alguma medida tal subsistecircncia

sendo o pensamento e sua capacidade cognitiva as caracteriacutesticas sobreviventes e

portanto uacuteteis para a investigaccedilatildeo

Para isso o diaacutelogo utilizaraacute duas argumentaccedilotildees que procuram demonstrar a

existecircncia A primeira que vem a seguir mostra atraveacutes da anaacutelise do movimento e

princiacutepio de geraccedilatildeo dos seres vivos que a alma se distingue em gecircnero de tudo o que eacute

corruptiacutevel pelo tempo Na sequecircncia com a Teoria da Reminiscecircncia se pretende

oferecer uma explicaccedilatildeo sobre a vivecircncia da alma antes do nascimento em vida humana

ou seja em um periacuteodo anterior agrave sua prisatildeo em um corpo Ambos os argumentos

oferecem uma visatildeo da alma neste domiacutenio distinto e por conseguinte do pensamento

como faculdade do conhecimento e de sua atuaccedilatildeo como capacidade cognitiva Cabe

verificar as primeiras formulaccedilotildees deste outro domiacutenio distinto do sensiacutevel no qual a

alma supostamente pode sobreviver a partir do argumento da geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo e dos

contraacuterios Neles satildeo dadas informaccedilotildees acerca da natureza da alma e acerca da

concepccedilatildeo de inteligibilidade que o texto pretende construir a partir da concepccedilatildeo

filosoacutefica de morte como um estado no qual a alma subsiste

Uma vez de acordo que a alma sobrevive no Hades tal como narra os antigos

misteacuterios (παιαηὸο ιόγνο) parece aceitaacutevel conceber que as almas que ali habitam

regressam renascendo dos que estatildeo mortos Logo deve-se admitir que os vivos nascem

dos mortos o que demonstra portanto a sua existecircncia no paiacutes dos mortos Se

comprovada a validade deste raciociacutenio Soacutecrates e seus amigos teriam encontrado uma

maneira de argumentar a favor da imortalidade (Fed 70c4-d5) O princiacutepio em questatildeo

a saber princiacutepio da geraccedilatildeo o qual governa a geraccedilatildeo dos seres vivos ganha uma

anaacutelise que mostraraacute seus limites em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de vida e morte geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo Ao propor que as coisas se originam do seu oposto cabe verificar se nas

relaccedilotildees entre opostos esse princiacutepio se apresenta seja no que diz respeito a situaccedilotildees

159

opostas como morte-vida seja nas relaccedilotildees em que estatildeo envolvidos conceitos como a

justiccedila o belo e a grandeza Em outros termos a anaacutelise parte da relaccedilatildeo de

contrariedade ἐλαληίνο que daacute origem conforme o raciociacutenio ao nascimento agrave γέλεζηο

(Fed 70d5-e) Seria comum a tudo o que existe surgir de seu oposto Esta pergunta de

fundo norteia a anaacutelise da γέλεζηο e conduz a investigaccedilatildeo de modo a examinar o

proacuteprio princiacutepio e qual contexto ele abrange

Parece evidente que este princiacutepio eacute presente ao se observar a geraccedilatildeo

equivalente a uma mudanccedila de estado O mais fraco pode se tornar mais forte o mais

raacutepido se tornar mais lento coisas injustas podem se tornarem justas o que denota que

entre as coisas que satildeo passiacuteveis de transiccedilatildeo ou seja que podem mudar de estado a

mudanccedila sempre seraacute para o estado contraacuterio (Fed 71a) Da mesma forma a

argumentaccedilatildeo tem em vista o processo de mudanccedila que se daacute no intervalo entre um

estado e outro que constituem o processo de geraccedilatildeo como diminuiccedilatildeo e aumento

aquecimento resfriamento separar unir (Fed 71a12-b10) O argumento coloca assim

estado e processo como os pontos a partir dos quais se deve dar a diferenciaccedilatildeo de

gecircnero entre o que se analisa Examinada dessa perspectiva a morte tem a vida como

seu contraacuterio e morrer e nascer satildeo o processo de passagem de um estado para o outro

gerando-se reciprocamente (Fed 71c) Dado que a alma existe no mundo dos mortos e

que o estar morto se origina do estar vivo e o estar vivo por sua vez adveacutem do estado

de morte parece inegaacutevel que faz parte do processo assim como o morrer o reviver (Τὸ

ἀλαβηώζθεζζαη Fed71d5 72a2)

ldquo- E agora ndash comentou Soacutecrates ndash que caminho vamos noacutes

seguir Ou bem que nos escusamos a compensar esse processo com

seu oposto (mas natildeo seraacute isso deixar a natureza manca (ἀιιὰ ηαύηῃ

ρσιὴ ἔζηαη ἡ θύζηο) ) ou bem que a ldquomorrerrdquo teremos de antepor

um processo de geraccedilatildeo contraacuterio [] ndash E qual em concreto ndash

Reviverrdquo (71e8-13)

Trata-se de dois estados e sobretudo no caso do tema da morte de planos

diferentes em que se analisa a geraccedilatildeo Ainda que natildeo se questione ainda sobre o tipo

destes estados como se daraacute mais adiante cabe notar tal divisatildeo e a dinacircmica que

Soacutecrates sublinhou no processo de geraccedilatildeo O movimento que descreve a γέλεζηο eacute

dotado de uma circularidade que garante o nascimento e a morte dos seres vivos com

essa a alternacircncia de estados Tal noccedilatildeo eacute importante porque sugere a conservaccedilatildeo

daquilo que morre e renasce oferecendo assim subsiacutedios para a tese de permanecircncia da

160

alma Sem um movimento circular que garantisse a alternacircncia entre estados o

fenocircmeno da geraccedilatildeo cessaria uma vez que a mudanccedila que constitui a gecircnese de morte

e vida natildeo aconteceria

ldquo[] se os contraacuterios natildeo se compensassem mutuamente como

que numa sucessatildeo circular (ὡζπεξεὶ θύθιῳ πεξηηόληα) se ao inveacutes

a geraccedilatildeo se processasse linearmente e num uacutenico sentido de um

extremo para o seu oposto sem dar volta na direccedilatildeo do primeiro e

vice-versa bem vecircs todas as coisas acabariam por adquirir a mesma

postura por se sujeitarem a um mesmo estado e seria o fim da

geraccedilatildeo (νἶζζ ὅηη πάληα ηειεπηῶληα ηὸ αὐηὸ ζρκα ἂλ ζρνίε θαὶ ηὸ

αὐηὸ πάζνο ἂλ πάζνη θαὶ παύζαηην γηγλόκελα)rdquo (Fed 72a11-72b5)

Soacutecrates parece ter demonstrado dessa forma a loacutegica que subjaz agrave geraccedilatildeo e

ao mesmo tempo agrave doutrina da transmigraccedilatildeo das almas que narra a antiga doutrina

(Fed 72d6 ndash e2) Ao mesmo tempo estaacute diante de um argumento que autoriza a

investigaccedilatildeo da indestrutibilidade da alma uma vez que tal loacutegica dissipa ao menos por

ora qualquer duacutevida acerca da possibilidade de sua existecircncia e portanto de sua

resistecircncia agrave morte e destruiccedilatildeo do corpo Conveacutem notar ainda alguns elementos deste

argumento Tal como foi dada a geraccedilatildeo assume como principal caracteriacutestica a

transitoriedade entre um estado e outro Deve-se observar que embora a argumentaccedilatildeo

se decirc a partir da observaccedilatildeo da geraccedilatildeo em um sentido bastante amplo e pouco

definido do que existe - seres vivos fenocircmenos da natureza e noccedilotildees abstratas ndash tem-se

por objetivo encontrar um princiacutepio comum que promove tal existecircncia e conferir a ele

uma explicaccedilatildeo filosoacutefica como se viu O plano em que se daacute o exame vale observar

consiste no domiacutenio dos eventos da vida no tempo de sua duraccedilatildeo (βίνο) cuja loacutegica

que os organiza mostra um elemento inexoraacutevel em meio agrave mudanccedila que inicia ou finda

essa duraccedilatildeo a alma que renasce Morte e vida satildeo tomados nessa perspectiva como

circunstacircncias transitoacuterias sendo conferido a elas portanto certa relatividade em

contraste com a conservaccedilatildeo da alma que permanece

Essa parece ser uma estrateacutegia que Soacutecrates utiliza na argumentaccedilatildeo para chegar

ao ponto que tinha em mira demonstrar que algo escapa agrave mudanccedila dos eventos

necessaacuterios agrave vida humana nascer-morrer Se a questatildeo de fundo levava em conta a

possibilidade de destruiccedilatildeo da alma junto com o corpo a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

oferece uma noccedilatildeo de exterioridade a esse princiacutepio atraveacutes do ldquoreviverrdquo o qual

apresenta o processo de geraccedilatildeo como movimento ciacuteclico possiacutevel e ao mesmo tempo

161

sugere que de tal processo participa justamente algo que resiste a transitoriedade das

mudanccedilas Esse aspecto duacutebio do reviver parece importante para fazer a distinccedilatildeo entre

seres abstratos e o plano da experiecircncia que o diaacutelogo vai apresentar mais adiante

Embora tenha a sua sobrevivecircncia demonstrada pelo princiacutepio de geraccedilatildeo a alma parece

natildeo obedececirc-lo na medida em que ela mesma natildeo muda natildeo se aniquila e permanece

portanto no mundo do Hades podendo nascer novamente Sendo assim sua existecircncia

natildeo pode ser tomada tal como existecircncia na natureza e nem sua duraccedilatildeo compreendida

no tempo de vida devendo ser ela de um gecircnero distinto

Importa realizar tais observaccedilotildees para apontar a construccedilatildeo da noccedilatildeo de

domiacutenio em que vai atuar o intelecto Pode-se entrever nessa uacuteltima argumentaccedilatildeo o

plano distinto da vida humana e da corporeidade como o ambiente no qual a θξόλεζηο

de alguma forma atua dada sobrevivecircncia da alma O fato de encontrar um princiacutepio que

apresente uma loacutegica para explicar a sobrevivecircncia da alma eacute do mesmo modo um

dado que deve ser levado em consideraccedilatildeo uma vez que o pensar no exerciacutecio de sua

faculdade teraacute como vaacutelido para a investigaccedilatildeo da imortalidade o que for do acircmbito da

racionalidade Dadas as razotildees para se convencer da subsistecircncia da alma o diaacutelogo

prossegue averiguando as possibilidades de dizecirc-la nesse domiacutenio passando a

especificar de agora em diante a atuaccedilatildeo do pensamento

II A natureza inteligiacutevel

21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva

Apoacutes a conclusatildeo sobre a indestrutibilidade e portanto sobre a preservaccedilatildeo da

faculdade intelectual da alma e de sua capacidade cognitiva os rumos da investigaccedilatildeo

sobre a imortalidade passam a utilizarem elementos epistemoloacutegicos Parece

conveniente que a faculdade intelectual da alma tenha a partir de agora o seu perfil

explorado e o resultado de sua atividade analisado para que se possa averiguar em que

medida tal produto constitui de fato um conhecimento Para tal o texto recorre a Teoria

da Reminiscecircncia um discurso (ιόγνο) jaacute conhecido do ciacuterculo de amigos de Soacutecrates

atraveacutes da qual se pretende demonstrar em certa medida a subsistecircncia e a atuaccedilatildeo

162

intelectual da alma A concepccedilatildeo de rememoraccedilatildeo tal como o Feacutedon apresenta ressalta

o caraacuteter cognitivo do pensamento sendo a ἀλάκλεζηο equivalente agrave atividade do

aprendizado

Introduzir a Teoria como um argumento que oferece provas (αἱ ἀπνδείμεηο Fed

75a5) da imortalidade parece conveniente aos propoacutesitos da investigaccedilatildeo dado que a

accedilatildeo de rememorar permite ao filoacutesofo fazer deduccedilotildees sobre um domiacutenio no qual o

corpo ainda natildeo tinha nenhuma participaccedilatildeo ou seja em um ambiente supostamente

anterior ao nascimento em vida humana Considera-se que a rememoraccedilatildeo constitui

assim um testemunho da accedilatildeo puramente racional e portanto a partir da qual se pode

deduzir acerca da imortalidade

ldquoO que aliaacutes Soacutecrates ndash atalhou Cebes- natildeo vem senatildeo

reforccedilar essa conhecida teoria que trazes agrave baila (θαὶ θαη ἐθεῖλόλ γε

ηὸλ ιόγνλ) ou seja que o aprender natildeo eacute senatildeo recordar segundo

ela eacute indispensaacutevel que tenhamos adquirido em tempo anterior ao

nosso nascimento os conhecimentos que atualmente recordamos (ὅηη

ἡκῖλ ἡ κάζεζηο νὐθ ἄιιν ηη ἢ ἀλάκλεζηο ηπγράλεη νὖζα θαὶ θαηὰ

ηνῦηνλ ἀλάγθε πνπ ἡκᾶο ἐλ πξνηέξῳ ηηλὶ ρξόλῳ κεκαζεθέλαη ἃ λῦλ

ἀλακηκλῃζθόκεζα) Ora tal natildeo seria possiacutevel se a nossa alma natildeo

existisse jaacute algures antes de encarnar nesta forma humana De modo

que ateacute sob este prisma daacute ideia que a alma eacute algo de imortalrdquo (Fed

72e3-73a3)

A elucidaccedilatildeo desta noccedilatildeo de rememoraccedilatildeo como aprendizado vem logo a seguir

No exerciacutecio de rememorar a explicaccedilatildeo (Ἑλὶ κὲλ ιόγῳ Fed 75a7) dada como resposta

correta a um questionamento eacute possiacutevel porque a alma teve conhecimento e uma

atividade racional correta neste periacuteodo anterior99

Desse modo a atividade intelectual

em termos do conhecimento e de um arrazoamento correto (ἐπηζηήκε ἐλνῦζαθαὶ ὀξζὸο

ιόγνο)100

realizados em um estado anterior ao nascimento constitui a condiccedilatildeo para que

99 Fed 73a9-10 ldquo(hellip) quando interrogamos as pessoas desde que saibamos interrogaacute-las elas satildeo por

si capazes de explicar corretamente tudo o que se lhes peccedila ora se natildeo tivesses jaacute um conhecimento

inato e uma correta visatildeo das coisas de forma alguma estariam em condiccedilotildees de fazecirc-lordquo (θαίηνη εἰ κὴ

ἐηύγραλελ αὐηνῖο ἐπηζηήκε ἐλνῦζα θαὶ ὀξζὸο ιόγνο νὐθ ἂλ νἷνί η ἦζαλ ηνῦην πνηζαη)rdquo Fowler traduz

os termos por ldquosome knowledge and right reasonrdquo Fowler op cit p 253

100 Para Dominic Scott esta eacute uma clara alusatildeo de que a Teoria da Reminiscecircncia constitui a exemplo do

que se tem no Meacutenon uma teoria do inatismo Para o autor a diferenccedila da teoria de Platatildeo em relaccedilatildeo a

outras teorias do inatismo diz respeito ao dado de ser o conhecimento latente e sobretudo anterior ao

nascimento Este dado no entanto seria apenas um recurso literaacuterio afim com a prova da preacute-existecircncia

da alma como pretende o argumento sendo a Teoria na verdade sobre a descoberta de conteuacutedos inatos

Scott D Recollection and Experience - Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge

University Press nota 2 p 16 Embora seja a leitura de muitos inteacuterpretes vale dizer que esta natildeo eacute a

perspecitiva que se privilegia neste estudo A compreensatildeo de Chen sobre este ponto eacute bastante afim com

o que se entende aqui O autor chama tal experiecircncia de revivificaccedilatildeo de um conteuacutedo de uma percepccedilatildeo

163

haja rememoraccedilatildeo no estado de vida e uma prova da preexistecircncia da alma em relaccedilatildeo

ao nascimento em um corpo (Fed 73c1-3)

Cabe observar assim que o tipo de operaccedilatildeo do pensamento que a narrativa

acerca da ἀλάκλεζηο propotildee consiste na recuperaccedilatildeo de dados adquiridos em uma

experiecircncia puramente intelectual os quais satildeo considerados conhecimento e razotildees

corretas Aprender ou rememorar consiste nesta atividade de resgate de conhecimento

operaccedilatildeo que pode ser induzida vale dizer por diagramas e outras figuras matemaacuteticas

A passagem cita o exemplo para introduzir o tema da induccedilatildeo da reminiscecircncia e da

conduccedilatildeo do aprendizado Entretanto vale dizer que o aspecto cognitivo que se quer

apresentar no Feacutedon com a Teoria da Reminiscecircncia se desenvolveraacute com importantes

diferenccedilas em relaccedilatildeo ao Meacutenon diaacutelogo no qual o tema eacute explorado com vistas

sobretudo para a questatildeo do aprendizado nos termos de um raciociacutenio indutivo

Enquanto no Meacutenon101

a Teoria pretende oferecer uma explicaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo

da capacidade raciocinativa e de um meacutetodo especiacutefico o meacutetodo indutivo a partir de

figuras matemaacuteticas no Feacutedon interessa mostrar a recuperaccedilatildeo de elementos inteligiacuteveis

nos termos de uma reaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo sensiacutevel a qual eacute dada como um ato simples e

como uma operaccedilatildeo tambeacutem sem grande complexidade da faculdade inteligente da

alma102

preacutevia O que se tem em mente para ele natildeo satildeo os conteuacutedos mas ldquoa revificaccedilatildeo do conteuacutedo desta

percepccedilatildeo preacutevia e o estado de ser lembrado do objeto que eacute mais uma vez vistordquo Ele explica que tal

conteuacutedo percepccedilotildees preacutevias diferenciam-se de ideias inatas de conteuacutedo definido dizendo ldquoA suposta

faculdade inata eacute distinta de ideias inatas exatamente neste ponto natildeo oferece o conteuacutedo necessaacuterio ()

entatildeo a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute indispensaacutevel para oferecer o conteuacutedo do conhecimento os sentidos satildeo

sine qua non para o conhecimentordquo Chen op cit p 25 28 O inatismo tal como a Teoria no Feacutedon

apresenta parece se referir muito mais a uma faculdade inata de apreensatildeo de objetos de determinado tipo

do que a um conteuacutedo antes apreendido e mantido ateacute ser descoberto posteriormente As accedilotildees cognitivas

que descrevem a reminiscecircncia como um resgate de conteuacutedo tal como entendo consistem justamente

em maneiras de a alma realizar uma experiecircncia intelectual semelhante agrave que teve antes do nascimento

cujo resultado pode ser a apreensatildeo dos conceitos Natildeo haacute portanto latecircncia e descoberta de conteuacutedo

mas a descriccedilatildeo de um ato cognitivo que remonta uma experiecircncia intelectual passada

101 A rememoraccedilatildeo como aprendizado que o diaacutelogo Meacutenon apresenta traz uma diferenccedila em relaccedilatildeo ao

que se vecirc no Feacutedon ao considerar que a rememoraccedilatildeo de um conteuacutedo pode levar a outros (Men 81d3)

tal como parece mostrar o argumento no qual Soacutecrates conduz o escravo na investigaccedilatildeo de um problema

da geometria Ao tomar como modelo os meacutetodos dedutivo e indutivo dos geocircmetras (86-87b2) Soacutecrates

admite ter a reminiscecircncia um objetivo diferente que vai aleacutem da demonstraccedilatildeo de um plano inteligiacutevel

testemunhado pelo intelecto Platatildeo Meacutenon traduccedilatildeo de Maura Iglesias 2ordf ed Rio de Janeiro Satildeo Paulo

PUC do Rio Loyola 2003 (coleccedilatildeo Bibliotheca Antiqua)

102 Chen corrobora nossa anaacutelise ao dizer ldquo() a anamnesis como eacute concebida no Feacutedon se distingue

daquela vista no Meacutenon no que segue e em dois outros pontos A) rememoraccedilatildeo de ideias eacute a

rememoraccedilatildeo de ideias de forma isolada isto eacute natildeo da relaccedilatildeo de ideias entre elas mesmas enquanto que

no Meacutenon eacute a rememoraccedilatildeo de um objeto inteligiacutevel em relaccedilatildeo a outros inteligiacuteveis B) a rememoraccedilatildeo

tratada no Feacutedon eacute um instantaneous a rememoraccedilatildeo tratada no Meacutenon consiste em dois estaacutegios cada

um consistindo de um processo racionalrdquoChen op cit p 19-20

164

Eacute importante dar atenccedilatildeo a este uacuteltimo dado porque a partir dele tem iniacutecio uma

explanaccedilatildeo sobre o que se pode considerar a provocaccedilatildeo das sensaccedilotildees como um

estiacutemulo para o pensamento Apesar do papel negativo atribuiacutedo ao corpo e aos dados

sensiacuteveis as proacuteximas passagens mostram a colaboraccedilatildeo dos sentidos como indutores

desta atividade de reminiscecircncia a partir das quais se datildeo como se veraacute a seguir noccedilotildees

inteligiacuteveis como as noccedilotildees matemaacuteticas Vale notar que o contexto deste aprendizado

nos termos da rememoraccedilatildeo pressupotildee a superaccedilatildeo do domiacutenio sensiacutevel entretanto natildeo

exatamente por meio do exerciacutecio intelectual que exigem as operaccedilotildees matemaacuteticas

mas do ato intelectivo que corresponde a uma resposta inteligente da alma ao sensiacutevel

sendo nesse caso a noccedilatildeo matemaacutetica tambeacutem resultado de uma rememoraccedilatildeo

consistindo portanto em uma lembranccedila103

Uma vez aceita a definiccedilatildeo da reminiscecircncia cabe verificar como se constitui

uma rememoraccedilatildeo e como a Teoria potildee a questatildeo da cogniccedilatildeo Como retorno a um

conhecimento a reminiscecircncia designa determinada situaccedilatildeo (ηίλα ηξόπνλ Fed 73c5)

que envolve a participaccedilatildeo dos sentidos e ao mesmo tempo a superaccedilatildeo do domiacutenio

sensiacutevel A partir da percepccedilatildeo seja atraveacutes da visatildeo ou da audiccedilatildeo a alma toma

conhecimento do objeto que experiencia e de outro distinto desse que ela vecirc ou ouve

constituindo assim um conhecimento diferente da percepccedilatildeo sensiacutevel Esse objeto

distinto que a alma capta apreende (ἐλλόεζηο) consiste de fato no objeto lembrado ou

seja recuperado pelo intelecto dito ldquoconhecimentordquo e tal assimilaccedilatildeo no ato de

rememorar104

Natildeo se trata de uma mera percepccedilatildeo sensiacutevel mas de conceber algo que

estaacute para aleacutem dela105

103 Acrill faz um esclarecimento importante ldquoO argumento no Meacutenon diz respeito ao nosso

conhecimento de verdades necessaacuterias () O argumento do Feacutedon difere nisto trata da nossa aquisiccedilatildeo

dos conceitos mais do que de verdades necessaacuteriasrdquo Acrill J ldquoAnamnesis in the Phaedo ndash Remarks on the

73c-75crdquo in Essays on Plato and Aristotle 1997 New York Oxford University Press p 13 De acordo com

o que se tem analisado por verdades necessaacuterias os resultados de uma demonstraccedilatildeo matemaacutetica e por

conceitos as ideias

104 Fed73c6-10 ldquo() suponhamos que um indiviacuteduo percepciona um dado objeto pela vista pelos

ouvidos ou por qualquer outro meio sensorial e natildeo apenas fica a conhecer esse objeto como capta

para aleacutem dele a ideia de um outro que natildeo pertence agrave mesma esfera de conhecimentos natildeo seraacute

razoaacutevel neste caso afirmar que houve uma reminiscecircncia de algo que a nossa mente jaacute tinha captado

(ἐάλ ηίο ηη ἕηεξνλ ἢ ἰδὼλ ἢ ἀθνύζαο ἤ ηηλα ἄιιελ αἴζζεζηλ ιαβὼλ κὴ κόλνλ ἐθεῖλν γλῷ ἀιιὰ θαὶ ἕηεξνλ

ἐλλνήζῃ νὗ κὴ ἡ αὐηὴ ἐπηζηήκε ἀιι ἄιιε ἆξα νὐρὶ ηνῦην δηθαίσο ιέγνκελ ὅηη ἀλεκλήζζε νὗ ηὴλ

ἔλλνηαλ ἔιαβελ)rdquo

105 Acrill aponta para uma dificuldade acerca dos conteuacutedos dados na reminiscecircncia ao colocar uma

questatildeo importante sobre as razotildees do argumento oferecer nesses termos a possibilidade de apreensatildeo de

um segundo conteuacutedo na reminiscecircncia O autor se questiona sobre a omissatildeo da condiccedilatildeo de ser este

ldquooutrordquo anteriormente conhecido o que seria uma condiccedilatildeo condizente com a definiccedilatildeo de reminiscecircncia

mas que no entanto colocaria em risco o objetivo do argumento de constituir uma demonstraccedilatildeo da preacute-

existecircncia da alma Este conhecimento secundaacuterio derivado de uma primeira lembranccedila poderia ser

compreendido como uma invenccedilatildeo uma composiccedilatildeo de uma ideia o que segundo Acrill seria censuraacutevel

165

Ao ver a lira ou o manto do amado o amante se recorda dele do mesmo modo

algueacutem ao avistar Siacutemias ou ver a figura de um cavalo poderia se lembrar de Cebes ou

lembrar de Siacutemias a partir do retrato do proacuteprio Siacutemias (73d-e) Os objetos que possuem

alguma relaccedilatildeo seja de semelhanccedila ou dessemelhanccedila satildeo associados na rememoraccedilatildeo

quando um deles eacute percebido A ligaccedilatildeo entre eles no caso entre uma lira e um homem

descreve o processo de conceber uma ideia (εἶδνο) dada como a tomada de um

conteuacutedo pelo intelecto e oferecendo uma mostra do pensamento atuando de modo a se

distinguir e se elevar em relaccedilatildeo a uma percepccedilatildeo106

Deve-se notar que o que se tem nesse resgate eacute entretanto a forma do amado

nos termos de uma imagem oriunda do sensiacutevel Embora se trate de um conteuacutedo

cognitivo parece notaacutevel a ausecircncia de caraacuteter ontoloacutegico no sentido forte em que εἶδνο

apareceraacute ao longo do diaacutelogo e na Teoria das Ideias Ao que parece o objeto dado pela

lembranccedila tem seu aspecto inteligiacutevel sugerido no que se refere a um conteuacutedo da

mente mas natildeo consiste necessariamente em uma ideia Seria precipitado afirmar que

os conhecimentos tal como satildeo dados neste exemplo referem-se sempre a uma forma

inteligiacutevel O produto mental deste ato de rememorar dito lembranccedila pelo que o texto

sugere ateacute aqui consiste na imagem de uma experiecircncia vivida anteriormente Natildeo se

deve compreender que a lembranccedila de Siacutemias consiste na forma de Siacutemias Parece mais

plausiacutevel supor que ao ter como fonte o Siacutemias conhecido com o qual se teve uma

experiecircncia preacutevia a lembranccedila consista na imagem que remonta tal experiecircncia- o

Siacutemias visto

Nesse sentido a fonte da lembranccedila eacute muito mais empiacuterica e natildeo se trata

portanto da aquisiccedilatildeo de uma ideia Todavia tal aquisiccedilatildeo pode acontecer a partir das

associaccedilotildees possiacuteveis que se pode fazer na reminiscecircncia Ver Siacutemias e conceber que ele

eacute um homem por exemplo lembrar-se de um objeto relacionado a ele ou natildeo descreve

em certa medida a aquisiccedilatildeo de um conteuacutedo intelectual dado que eacute produto de uma

operaccedilatildeo do intelecto como se daraacute mais adiante Contudo natildeo parece estar em questatildeo

neste produto o qual constitui um conceito ou uma ideia caracteriacutesticas e extensotildees que

o qualificariam como tais A caracteriacutestica acerca da lembranccedila que parece ser

em uma investigaccedilatildeo ldquosobre a origem geral das ideiasrdquo e caacute entre noacutes a partir do que se observa natildeo

parece ser o caso Acrill op cit p 23

106 Fed 73d5-9 ldquoOra sabes o que acontece se por exemplo um amante avista uma lira um manto ou

qualquer objeto de que o seu amado habitualmente se serve ao mesmo tempo em que apreende a lira o

seu espiacuterito capta por igual a imagem do amado a quem a lira pertence e aiacute tens pois uma

reminiscecircncia(Οὐθνῦλ νἶζζα ὅηη νἱ ἐξαζηαί ὅηαλ ἴδσζηλ ιύξαλ ἢ ἱκάηηνλ ἢ ἄιιν ηη νἷο ηὰ παηδηθὰ αὐηῶλ

εἴσζε ρξζζαη πάζρνπζη ηνῦην ἔγλσζάλ ηε ηὴλ ιύξαλ θαὶ ἐλ ηῆ δηαλνίᾳ ἔιαβνλ ηὸ εἶδνο ηνῦ παηδὸο νὗ

ἦλ ἡ ιύξα ηνῦην δέ ἐζηηλ ἀλάκλεζηο)rdquo

166

importante ressaltar nesse argumento se refere justamente agrave natureza distinta do

conteuacutedo da faculdade cognitiva107

Conveacutem primeiramente observar que a superaccedilatildeo do intelecto que ocorre na

ἀλάκλεζηο se mostra importante para a prova da imortalidade e para os fins

epistemoloacutegicos que o diaacutelogo aos poucos faz uso a fim de comprovar a validade do

argumento e a eficiecircncia do pensamento Note-se que noccedilotildees como conhecimento

aprendizagem e reta razatildeo satildeo introduzidos ao passo que o diaacutelogo se encaminha para

elucidar a natureza da alma e assim realizar uma profiacutecua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

corpo e agrave percepccedilatildeo do sensiacutevel O argumento da ἀλάκλεζηο lanccedila luz dessa maneira

ao outro domiacutenio que ainda estaacute por ser explanado o qual supostamente abriga a alma

em estado de pureza e os conhecimentos O recurso dado pela Teoria da Reminiscecircncia

permite dessa forma associar o conhecimento e a atividade intelectual a este domiacutenio

distinto deslocando-os do campo que se refere ao corpo ao sensiacutevel para este outro o

qual mais tarde seraacute descrito e identificado ao inteligiacutevel Sendo assim vale examinar

por enquanto as caracteriacutesticas e a operaccedilatildeo desta atividade do pensamento nos termos

de uma rememoraccedilatildeo ou aprendizado atentando para os elementos epistemoloacutegicos que

comeccedilam a ser dispostos na investigaccedilatildeo

O argumento segue de modo a averiguar com mais detalhes as associaccedilotildees e os

objetos que se tem na reminiscecircncia

ldquo - Ora de todos estes exemplos natildeo decorre justamente que

nuns casos a reminiscecircncia se produz a partir de objetos

semelhantes e noutros a partir de objetos dessemelhantes

- Sem duacutevida

- E quando ela se produz a partir de objetos semelhantes natildeo

seraacute inevitaacutevel uma segunda reaccedilatildeo (πξνζπάζρεηλ) como esta ndash a de

nos interrogarmos sobre o grau de semelhanccedila que o objeto atual

apresenta com aquele que recordamos (ἐλλνεῖλ εἴηε ηη ἐιιείπεη ηνῦην

θαηὰ ηὴλ ὁκνηόηεηα εἴηε κὴ ἐθείλνπ)

- Eacute inevitaacutevel ndash confirmou

- Vecirc laacute entatildeo se estaacute certo ndash prosseguiu ndash Afirmamos creio a

existecircncia de algo ldquoigualrdquo (εἰ ηαῦηα νὕησο ἔρεη θακέλ πνύ ηη εἶλαη

ἴζνλ) natildeo quero dizer um tronco de madeira igual a outro tronco ou

uma pedra igual a outra pedra nem nada desse gecircnero mas uma

realidade distinta de todas estas que estaacute para aleacutem delas ndash o igual

107 Para Acrill o conceito eacute equivalente agrave Forma ldquoX-ness is an eternal unchanging Form an

independently existing entityrdquo Acrill op cit p 29 Brisson faz uma criacutetica a este entendimento dizendo

ldquo() the Forms are not equivalent to concepts as J L Acrill wold have it (hellip)rdquo por compreender que no

Feacutedon a reminiscecircncia estaacute explicitamente associada ao inteligiacutevel Brisson ldquoReminiscence in Platordquo in

Platonism and Forms of Intelligence Berlin Akademie Verlag (Dillon J Zouko M E ed) 2008 p 184

nota 13

167

em si mesmo Afirmaremos que isso existe ou natildeo (ἀιιὰ παξὰ ηαῦηα

πάληα ἕηεξόλ ηη αὐηὸ ηὸ ἴζνλ θῶκέλ ηη εἶλαη ἢ κεδέλ)rdquo (Fed 74a)

Esse trecho apresenta de maneira mais assertiva a sugestatildeo da Teoria acerca de

outro domiacutenio e a ligaccedilatildeo que se tem com ele por meio da atividade intelectiva A accedilatildeo

de rememoraccedilatildeo pode se dar a partir de objetos semelhantes paus e pedras iguais ou

dessemelhantes a lembranccedila de um homem por meio da visatildeo de um cavalo Natildeo

parece haver uma regra para as associaccedilotildees realizadas na reminiscecircncia no entanto eacute

evidente que em qualquer ligaccedilatildeo entre o que se associa estaacute presente um conteuacutedo da

ordem do intelecto algo distinto do gecircnero corpoacutereo como a noccedilatildeo de igualdade ou a

imagem do amado Este ldquoalgo outrordquo (ἕηεξόλ ηη) diferente do que se percebe atraveacutes

dos sentidos mostra-se afim com a noccedilatildeo de igualdade que subjaz agraves relaccedilotildees entre as

percepccedilotildees dos paus e pedras que se tem na experiecircncia e que deve ser chamado de ldquoo

proacuteprio igualrdquo (αὐηὸ ηὸ ἴζνλ)

A esta noccedilatildeo que se mostra agora de tipo distinto parece ser conferida um grau

realidade (ηη εἶλαη) ainda natildeo definida evidentemente mas certamente diferente do

corpoacutereo e coerente com este periacuteodo anterior que traz o argumento sendo assim

cognosciacutevel e uacutetil para a investigaccedilatildeo108

(Fed 74b1-3) A partir da igualdade suscitada

pela experiecircncia de dois objetos iguais ou desiguais a alma eacute remetida a esta realidade

Nela o proacuteprio igual eacute concebido e ao ser recuperado pela rememoraccedilatildeo eacute designado

conhecimento (ἐπηζηήκε) (Fed 74b4)

Ora em que termos a imagem de uma experiecircncia anterior dada em uma

reminiscecircncia pode oferecer os seres inteligiacuteveis a ponto de serem tais imagens as

lembranccedilas consideradas conhecimentos Do que pode diferir uma noccedilatildeo ou conceito

dado na reminiscecircncia da ideia Para obter uma resposta cabe verificar novamente

acerca do significado de ἐπηζηήκε Segundo o que sugere o exemplo o que se recupera

na reminiscecircncia satildeo as imagens de inteligiacuteveis anteriormente conhecidos e natildeo os

proacuteprios seres inteligiacuteveis Tal como a partir da lira se tem na rememoraccedilatildeo da imagem

do amado e natildeo ldquoo proacuteprio amadordquo ou seja tem-se X1 e natildeo do proacuteprio X parece

legiacutetimo haver na reminiscecircncia a apreensatildeo de conteuacutedos da ordem do pensamento sem

constituiacuterem necessariamente a apreensatildeo de uma ideia ou conceito Nesse sentido os

conhecimentos consistem nos objetos do pensar outrora experienciados sejam imagens

108 O que aqui se designa como domiacutenio ou realidade sugerida na reminiscecircncia Brisson chama de

ldquototalidade do inteligiacutevelrdquo a qual teria dado agrave alma o conhecimento antes de nascer Brisson 2008 op cit

p 187

168

ou conceitos e o rememorar descreve a recuperaccedilatildeo desta experiecircncia anterior e natildeo um

novo contato entre a alma e os seres tal qual se realizou antes do nascimento nem a

descoberta de ideias abrigadas em algum canto esquecido da memoacuteria como visto 109

Todavia este trecho aponta para a apreensatildeo de uma noccedilatildeo inteligiacutevel que se daacute

indiretamente a partir da reminiscecircncia A concepccedilatildeo do proacuteprio igual constitui uma

mostra da operaccedilatildeo intelectiva decorrente da reminiscecircncia na qual se ultrapassa a

imagem de uma experiecircncia sensiacutevel como acontecia com a imagem de Siacutemias para

um dado inteligiacutevel ou seja apreensiacutevel somente em uma experiecircncia puramente

intelectual Seria portanto o proacuteprio igual uma visatildeo da ideia anteriormente conhecida

Eacute provaacutevel e conforme o que indica o texto a tal produto se daacute o nome de

conhecimento Vale reparar que a atividade e o ato intelectivo que descrevem a

ἀλάκλεζηο mostram o pensar de uma perspectiva especiacutefica Ela descreve a passagem de

um fenocircmeno mental a outro ou seja da percepccedilatildeo do sensiacutevel para uma apreensatildeo

intelectual que acontece nos termos de um ato cognitivo ou de um πξνζπάζρσ (Fed

74a6) respectivamente como uma reaccedilatildeo imediata e como uma operaccedilatildeo racional

simples em resposta aos dados advindos das sensaccedilotildees A resposta nos termos de um

πξνζπάζρσ dito ἐλλνέσ consiste na atividade intelectual por meio da qual se pode

reconhecer o grau de relaccedilatildeo que os objetos percebidos possuem com o proacuteprio igual

conhecimento utilizado como paracircmetro para julgar o que se tem na experiecircncia110

Tal atividade conforme o que sugere o argumento constitui-se da comparaccedilatildeo

entre objetos percebidos e lembrados ou seja entre dados sensoriais e dados

intelectualmente oferecidos pela reminiscecircncia descrevendo uma operaccedilatildeo na qual o

intelecto estabelece um termo inteligiacutevel para fazer relaccedilotildees com o que se observa no

domiacutenio do sensiacutevel Apesar disso parece difiacutecil precisar o grau de ligaccedilatildeo que paus e

pedras percebidos como iguais podem ter com uma noccedilatildeo de igualdade Admite-se que

eacute possiacutevel a percepccedilatildeo de certa igualdade entre os objetos na experiecircncia da visatildeo no

entanto uma vez dada no contexto sensiacutevel natildeo deve ser a mesma nem deve estar

totalmente relacionada agrave outra realidade (Fed 74c)

Cabe notar que nesse estaacutegio da investigaccedilatildeo falta precisar esses conhecimentos

e a realidade a qual se referem para que se possa dizer algo acerca do grau de relaccedilatildeo

109 Segundo Chen o que se tem a partir do argumento da lira eacute o conteuacutedo da percepccedilatildeo preacutevia do

amado ou a imagem de sua forma fiacutesica a qual eacute novamente revivida intelectualmente pelo amante

Chen op cit p 25

110 Segundo Chen o πξνζπάζρσ se refere a ldquoUm pensamento adicional presente pela proacutepria mente o

pensamento da presenccedila ou ausecircncia de alguma deficiecircncia na igualdade do retrato de X para o proacuteprio

Xrdquo Chen op cit p 21

169

de um objeto percebido com isto que se apresenta como αὐηὸ ηὸ ἴζνλ Do mesmo modo

ainda estaacute para ser verificado o verdadeiro alcance da cogniccedilatildeo ou seja da capacidade

intelectiva de conhecer o que se refere a este outro domiacutenio ndash ldquoLogo ndash concluiu- a

igualdade dos tais objetos que referiacuteamos natildeo equivale precisamente ao Igual em si

mesmordquo (Fed 74c4) Ateacute este ponto a noccedilatildeo de ἀλάκλεζηο revelou uma variaccedilatildeo de

aspectos que permitem delinear o perfil da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo

mas sem oferecer muitos esclarecimentos acerca do objeto adquirido na reminiscecircncia

Ao se apresentar nos termos da aprendizagem mostrou sua atuaccedilatildeo como ato cognitivo

que se realiza como a retomada de conteuacutedos de tipo inteligiacutevel Nos termos de uma

operaccedilatildeo a capacidade de elevaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis para a aquisiccedilatildeo de uma

noccedilatildeo inteligiacutevel afim e apreensiacutevel no pensamento (ἐλλνέσ) ndash ldquo[] Sempre que ao

veres um dado objeto a visatildeo desse mesmo objeto te transporte agrave ideia de outro (ἕσο ἂλ

ἄιιν ἰδὼλ ἀπὸ ηαύηεο ηο ὄςεσο ἄιιν ἐλλνήζῃο) seja ele igual ou diverso eacute

necessariamente um caso de reminiscecircnciardquo (Fed 74c13-d1)

A superaccedilatildeo de um domiacutenio em vista de outro parece ser a caracteriacutestica da

ἀλάκλεζηο que mais importa na Teoria para os fins da investigaccedilatildeo pois sugere a

possibilidade de explorar este ἕηεξόλ ηη Por esta razatildeo pode-se supor que outros

aspectos da reminiscecircncia presentes em outros diaacutelogos natildeo satildeo trazidos para o Feacutedon

por serem muitas das questotildees que poderiam parecer pertinentes ao tema na verdade

inconvenientes neste contexto Interessa apresentar a Teoria naquilo que ela auxilia para

a proposiccedilatildeo de um ambiente que diz respeito ao inteligiacutevel anaacutelogo e afim ao estado de

morte no qual se supotildee a alma permaneceraacute Desse modo a diferenciaccedilatildeo dos objetos

que se referem a este outro domiacutenio tal como indica a relaccedilatildeo entre a noccedilatildeo de proacuteprio

igual e a igualdade percebida nos objetos sensiacuteveis decorrente da rememoraccedilatildeo

conduziraacute a investigaccedilatildeo de modo a iluminar as distinccedilotildees de gecircnero cujo exame eacute

necessaacuterio para indicar a natureza e a possibilidade de indestrutibilidade da alma

Sugeridas as diferenccedilas entre coisas semelhantes ou iguais e o proacuteprio igual o

diaacutelogo se encaminha de modo a questionar a distinccedilatildeo de gecircneros que se apresenta

nesta atividade de rememorar- (Τί δέ αὐηὰ ηὰ ἴζα ἔζηηλ ὅηε ἄληζά ζνη ἐθάλε ἢ ἡ ἰζόηεο

ἀληζόηεο Fed 74c1) A partir do que se examinou acerca da noccedilatildeo de igualdade cabe

investigar primeiramente a suposta deficiecircncia (ἐλδεήο) do fenocircmeno em relaccedilatildeo agrave

noccedilatildeo abstrata Em outras palavras deve-se analisar no que difere a igualdade

observada em pedras e paus iguais em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de Igual que se verificou nesta

relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo entre dados experienciados O que o texto nota como diferenccedila eacute

170

dito constituir em primeiro lugar um grau de carecircncia por parte da igualdade observada

nos objetos sensiacuteveis do proacuteprio igual (Fed 75d5-7) Assim vale analisar as relaccedilotildees

expressas neste argumento para verificar como opera a superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao

sensiacutevel na rememoraccedilatildeo

Note-se que as relaccedilotildees satildeo dadas em dois planos 1) entre dados sensiacuteveis 2)

entre dados sensiacuteveis e noccedilatildeo inteligiacutevel Em 1) a relaccedilatildeo de igualdade se apresenta nos

seguintes termos X1 eacute igual X2 Xn isto eacute as pedras observadas comparadas entre elas

mesmas apresentam semelhanccedilas o que equivale dizer que satildeo iguais Cabe reparar que

a ideia de igual subjaz a esta relaccedilatildeo embora o foco tenha em vista a igualdade que se

pode observar a partir dos dados sensiacuteveis Nesse sentido tal relaccedilatildeo eacute equivalente a 2

na qual a comparaccedilatildeo se daacute entre os dados advindos do sensiacutevel com o conceito X1

X2 Xn eacute igual X ou seja as pedras observadas possuem relaccedilatildeo com a ideia de igual

dada a igualdade entre elas A intenccedilatildeo eacute sugerir o conteuacutedo inteligiacutevel o proacuteprio igual

como termo regulador para a comparaccedilatildeo mesmo que ainda natildeo se apresente uma

explicaccedilatildeo ontoloacutegica que justifique a sua funccedilatildeo como se daraacute na Teoria das

Formas111

Do mesmo modo a comparaccedilatildeo entre os termos tendo em vista a natildeo

semelhanccedila entre eles ou seja a diferenccedila apresenta outro aspecto da operaccedilatildeo feita na

reminiscecircncia Sobre a diferenccedila entre os objetos vistos o argumento mostra que X1 natildeo

eacute o mesmo que X2 Xn ou seja as pedras embora sejam pedras apresentam distinccedilotildees

umas das outras o que eacute compreendido como natildeo igualdade ou desiguais Apesar da

constataccedilatildeo da natildeo igualdade a relaccedilatildeo ainda tem a noccedilatildeo de igual como paracircmetro

denotando assim a distinccedilatildeo entre a ideia de Igual e a igualdade reconhecida entre os

termos analisados em 1 A igualdade de coisas iguais natildeo eacute idecircntica agrave ideia de igual

Parece vaacutelido oferecer nesse momento da investigaccedilatildeo um argumento que

aponte as distinccedilotildees entre aquilo que se observa e certa especificidade do conteuacutedo

trazido pela reminiscecircncia Todavia tal especificidade natildeo eacute dada com maiores detalhes

tendo-se apenas uma sugestatildeo acerca de sua natureza inteligiacutevel e de algumas noccedilotildees

que caracterizam a ideia tal como a noccedilatildeo de identidade aludida pelo proacuteprio Igual Em

consequecircncia destas distinccedilotildees os objetos sensiacuteveis vistos como iguais assumem uma

posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo ao proacuteprio Igual que comeccedila a ter sua superioridade e

estatuto definido ηη ηῶλ ὄλησλ As coisas iguais (ηὰ ἴζα) se distinguem do Igual (αὐηὸ

ηὸ ἴζνλ) porque natildeo possuem literalmente algo dos seres Dada a explicaccedilatildeo do que

111 Acrill explica este dado por um outro vieacutes ldquoO exemplo eacute um caso de igualdade e a relaccedilatildeo de

igualdade com o seu original eacute de fato assimeacutetricardquo Acrill op cit p 26

171

significa ἐλδεήο lanccedila-se luz de agora em diante para trecircs pontos importantes os quais

passam a ser analisados e formulados filosoficamente 1ordm) a identificaccedilatildeo de ηὸ αὐηὸ ao

ser 2ordm) a indicaccedilatildeo do ser como criteacuterio para julgar algo que se relaciona com ele em

algum grau 3ordm) a contraposiccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o trabalho intelectual que

julga a percepccedilatildeo112

Conveacutem compreender que os desdobramentos que levam agrave apreensatildeo de uma

realidade diversa a partir das experiecircncias sensiacuteveis que se daacute na reminiscecircncia (Fed

74e6) constitui de fato operaccedilotildees simples A Igualdade eacute reconhecida no processo de

rememoraccedilatildeo vindo agrave tona com a experiecircncia de objetos iguais o que parece suficiente

para apreender a distinccedilatildeo entre o proacuteprio igual e as coisas iguais Dar-se conta desta

distinccedilatildeo significa ateacute o momento perceber que as coisas iguais possuem algo em

comum com o proacuteprio Igual e ao mesmo tempo sua deficiecircncia em comparaccedilatildeo a

ele113

A comparaccedilatildeo que se realiza a partir da tomada de conhecimento da Igualdade

consiste portanto em apreender o que haacute de comum e de diferente entre conceito e

percepccedilatildeo a qual expressa ao mesmo tempo a inferioridade do sensiacutevel aqui dito

ἐλδεήο e sugere um viacutenculo a partir do qual eacute possiacutevel estabelecer relaccedilatildeo

Nesse sentido as operaccedilotildees cognitivas que se tecircm na rememoraccedilatildeo consistem

basicamente em reconhecer e identificar elementos concebidos por associaccedilatildeo114

ou por

comparaccedilatildeo a algum outro tal como 1) entre objeto percebido e objeto lembrado e 2)

entre objeto percebido e noccedilatildeo concebida Em 1 A operaccedilatildeo do intelecto se constitui da

imediata reaccedilatildeo da alma a um dado advindo do sensiacutevel ou entre dois objetos

rememorados X rArr S vejo o retrato e lembro-me de Siacutemias ou vejo Cebes e lembro-

me de Siacutemias Trata-se de uma associaccedilatildeo na qual natildeo haacute nenhum juiacutezo envolvido e

portanto natildeo recorre a nenhum termo inteligiacutevel para fazer a mediaccedilatildeo entre os termos

112 Fed 74d9-e4 ldquo-Pois bem estamos de acordo quando uma pessoa olha para um dado objeto e

reflete de si para si mesma bdquoEste objeto que tenho diante dos olhos aspira a identificar-se com

determinada realidade mas estaacute longe de poder identificar-se a ela e lhe eacute pelo contraacuterio bastante

inferior‟- ao fazer tais reflexotildees eacute porque suponho conhecia jaacute essa tal realidade agrave qual segundo ela

se assemelha o objeto em causa embora bastante imperfeitamente (Οὐθνῦλ ὁκνινγνῦκελ ὅηαλ ηίο ηη

ἰδὼλ ἐλλνήζῃ ὅηη βνύιεηαη κὲλ ηνῦην ὃ λῦλ ἐγὼ ὁξῶ εἶλαη νἷνλ ἄιιν ηη ηῶλ ὄλησλ ἐλδεῖ δὲ θαὶ νὐ δύλαηαη

ηνηνῦηνλ εἶλαη [ἴζνλ] νἷνλ ἐθεῖλν ἀιι ἔζηηλ θαπιόηεξνλ ἀλαγθαῖόλ πνπ ηὸλ ηνῦην ἐλλννῦληα ηπρεῖλ

πξνεηδόηα ἐθεῖλν ᾧ θεζηλ αὐηὸ πξνζενηθέλαη κέλ ἐλδεεζηέξσο δὲ ἔρεηλ )rdquo

113 Fed75a1 ldquoigualdades desse tipo tendem todas elas a identificar-se com o Igual em si embora lhe

fiquem bastante aqueacutem ( ὅηη ὀξέγεηαη κὲλ πάληα ηαῦηα εἶλαη νἷνλ ηὸ ἴζνλ ἔρεη δὲ ἐλδεεζηέξσο)

114 Acrill entende a associaccedilatildeo uma operaccedilatildeo essencial agrave reminiscecircncia ldquoInvocar a noccedilatildeo de lembranccedila

implica a disponiblidade de uma explicaccedilatildeo nos termos de leis associativas conectando pensamento e

conteuacutedordquo Acrill op cit p 18

172

associados Pode-se dizer que essa operaccedilatildeo descreve um ato cognitivo simples115

Uma

operaccedilatildeo que pode decorrer deste ato de reminiscecircncia consiste justamente no

ajuizamento deste conteuacutedo do intelecto com a percepccedilatildeo que suscitou a rememoraccedilatildeo

ou com o proacuteprio objeto anteriormente conhecido no qual se tem 2 X eacute S ou X natildeo eacute

S ou seja o retrato eacute (igual) Siacutemias Cebes natildeo eacute Siacutemias Neste caso a referecircncia para o

julgamento da imagem conteuacutedo mental ou da percepccedilatildeo eacute o proacuteprio Siacutemias

previamente conhecido116

Este tipo de operaccedilatildeo que ocorre no registro da

reminiscecircncia comparado ao exerciacutecio intelectual da dialeacutetica constitui uma operaccedilatildeo

simples o πξνζπάζρσ e pede assim como no exemplo das pedras e paus iguais uma

referecircncia exterior agrave sensibilidade previamente conhecida117

Natildeo se tem no contexto da reminiscecircncia detalhes sobre outras operaccedilotildees do

pensar acerca de elementos inteligiacuteveis como apareceraacute com a explanaccedilatildeo acerca do

meacutetodo hipoteacutetico ao final do diaacutelogo O que interessa nessas passagens eacute verificar as

distinccedilotildees das percepccedilotildees sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos conteuacutedos rememorados mostrando

que as afecccedilotildees advindas do sensiacutevel se mostram uacuteteis para rememorar mas que natildeo

consistem elas proacuteprias em uma rememoraccedilatildeo Tais questotildees vale observar conduzem

a investigaccedilatildeo do que era conflituoso no corpo ou seja das sensaccedilotildees entre elas

mesmas tal como se viu no iniacutecio da anaacutelise para o conflito entre o que parece

constituir dois tipos de afecccedilotildees diferentes uma pela percepccedilatildeo do sensiacutevel e a outra

pela atividade do pensamento (πξνζπάζρσ ἐλλνέσ) O argumento acerca da Igualdade

deixa patente o conflito entre dados sensoriais e conteuacutedo inteligiacutevel sugerindo para ele

um criteacuterio ontoloacutegico e intelectual como possiacutevel soluccedilatildeo a qual eacute indicada pela

ἀλάκλεζηο Ao conferir um estatuto distinto para o conteuacutedo do intelecto a Teoria da

Reminiscecircncia propotildee a saiacuteda para as contradiccedilotildees que se pode verificar na observaccedilatildeo

do sensiacutevel e por consequecircncia no contexto da alma presa ao corpo uma vez que os

conhecimentos dados no ato de rememorar e nas operaccedilotildees que advecircm dele se mostram

os elementos corretos e portanto adequados para resolver tais questotildees

115 A aparente ausecircncia de ligaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e a realidade rememorada se deve ao caraacuteter

instantacircneo da reminiscecircncia onde natildeo eacute necessaacuterio um encadeamento causal para obter um objeto por

via da rememoraccedilatildeo Sobre este ponto Acrill explica ldquoReconhecer X como uma lira eacute logicamente

independente de pensar Alcebiacuteades () Por outro lado reconhecer X como a lira de Alcebiacuteades natildeo eacute

logicamente independente pois pensar isto eacute uma lira de Alcebiacuteades jaacute eacute pensar Alcebiacuteades natildeo haacute

relaccedilatildeo temporal causal aquirdquo e mais a frente completa ldquoNovamente ao pensar que isto eacute o retrato de

Siacutemias jaacute estou pensando em Siacutemias mas natildeo vice-versardquo Acrill opcit p 1921

116 Nos termos de Chen a base ontoloacutegica desse argumento eacute o proacuteprio Siacutemias que existe a partir do

qual eacute possiacutevel haver correspondecircncia entre o retrato e a lembranccedila Chen op cit p 23

117 Para Acrill a operaccedilatildeo posterior que ocorre na reminiscecircncia tem o princiacutepio de contiguidade como

princiacutecio associativo Chen op cit p 25

173

22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο

A partir do que se viu cabe reparar a dupla funccedilatildeo da reminiscecircncia na

investigaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que a reminiscecircncia mostra o indiacutecio da existecircncia

da alma na condiccedilatildeo de independecircncia do corpo apresenta-se como uma alternativa aos

impedimentos da sensibilidade para o conhecimento do inteligiacutevel Uma das razotildees para

tal aleacutem da familiaridade que a alma possui com o inteligiacutevel como se veraacute consiste

que a ἀλάκλεζηο tem como estiacutemulo para as accedilotildees cognitivas as proacuteprias sensaccedilotildees Natildeo

se deve no entanto tomar como uma incongruecircncia o dado de ser a experiecircncia sensiacutevel

uma condiccedilatildeo para que se decirc a rememoraccedilatildeo O diaacutelogo pretende afirmar a

anterioridade dos conhecimentos e a reminiscecircncia como a recuperaccedilatildeo deles no

contexto de humanidade no qual a alma natildeo estaacute totalmente isolada e imune agraves

perturbaccedilotildees do corpo e desse modo tem na rememoraccedilatildeo uma resposta inteligente aos

assaltos das sensaccedilotildees

ldquo- E nisto ainda estamos de acordo a noccedilatildeo que temos do Igual

de forma alguma poderia ter-se formado em noacutes a natildeo ser por

intermeacutedio da vista do tato ou de qualquer dos outros sentidos (κὴ

ἄιινζελ αὐηὸ ἐλλελνεθέλαη κεδὲ δπλαηὸλ εἶλαη ἐλλνζαη ἀιι ἢ ἐθ

ηνῦ ἰδεῖλ ἢ ἅςαζζαη ἢ ἔθ ηηλνο ἄιιεο ηῶλ αἰζζήζεσ ηαὐηὸλ δὲ πάληα

ηαῦηα ιέγσ)rdquo (Fed 75a5)

Mesmo diante das constataccedilotildees acerca da inferioridade dos dados sensiacuteveis tal

como as igualdades percebidas cabe agraves sensaccedilotildees a funccedilatildeo de provocar este envio da

alma aos conhecimentos o proacuteprio igual e assim buscar a compreensatildeo deles - o que

nos termos da reminiscecircncia eacute dita como um natildeo esquecimento118

Do mesmo modo a

noccedilatildeo de aprendizado que a Teoria da Reminiscecircncia apresenta consiste tambeacutem em natildeo

ceder ao esquecimento (ἐπηιαλζάλνκαη) ou seja exercitar-se neste tipo de operaccedilatildeo

118 75d7-10 ldquojaacute que o saber natildeo consiste senatildeo nisto em segurar determinado conhecimento que se

alcanccedilou e impedir que se perca (ηὸ γὰξ εἰδέλαη ηνῦη ἔζηηλ ιαβόληα ηνπ ἐπηζηήκελ ἔρεηλ θαὶ κὴ

ἀπνισιεθέλαη ἢ νὐ ηνῦην ιήζελ ιέγνκελ) ou natildeo dizemos noacutes Siacutemias que esquecer eacute deixar escapar

o que conhecemosrdquo

174

intelectiva por meio da qual se pode preservar os conhecimentos antes apreendidos

(Fed 75d7-76a)

Assim a operaccedilatildeo que descreve a cogniccedilatildeo na reminiscecircncia eacute importante notar

atribui funccedilatildeo positiva agraves sensaccedilotildees Diferentemente do que se viu no argumento da

purificaccedilatildeo as sensaccedilotildees satildeo neste contexto um impulso para o desencadeamento da

reminiscecircncia servindo de estiacutemulo para uma accedilatildeo intelectiva Nesse sentido toda a

explicaccedilatildeo do desenrolar da operaccedilatildeo racional que ocorre na reminiscecircncia descreve

muito mais um ato inteligente da capacidade cognitiva a qual se daacute imediatamente

como reaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees do que um processo cognitivo como traz A Repuacuteblica no

Livro VII no qual haacute a gradual superaccedilatildeo do intelecto do plano da sensibilidade para o

plano inteligiacutevel das ideias Tem-se em vista apresentar com a reminiscecircncia uma prova

de apreensatildeo inteligente tambeacutem nos termos de um ato de resgate de conteuacutedos jaacute

conhecidos como se vecirc ao inveacutes de uma narrativa do processo propedecircutico de

preparaccedilatildeo para a aquisiccedilatildeo de uma alta inteligecircncia como acontece no Livro VII ou

uma demonstraccedilatildeo de habilidades intelectuais O texto especifica com isso a uacutenica

maneira no Feacutedon em que se pode considerar uma colaboraccedilatildeo do corpo e do sensiacutevel

para o conhecimento como perturbaccedilatildeo para a qual a alma daacute uma resposta inteligente

Ao sugerir um ato cognitivo como mais uma maneira de a alma reagir agraves sensaccedilotildees o

texto natildeo oferece na verdade grandes novidades em relaccedilatildeo ao resultado do trabalho

cognitivo em comparaccedilatildeo ao exerciacutecio filosoacutefico Embora apresente mais uma faceta da

atividade do intelecto tal sugestatildeo serve apenas para deixar mais uma vez evidente que

o testemunho acerca da possibilidade de uma vida apoacutes a morte se refere agrave faculdade

intelectual da alma e exige superaccedilatildeo do domiacutecio sensiacutevel119

A rememoraccedilatildeo nos termos de uma via cognitiva como mostra o diaacutelogo

apresenta a possibilidade de aquisiccedilatildeo intelectual na condiccedilatildeo adversa para a alma de

estar presa ao corpo aquisiccedilatildeo que se daacute de maneira simples e imediata sem recorrer a

operaccedilotildees intelectuais mais complexas Isto parece ser suficiente para sugerir um limite

para o uso das sensaccedilotildees no que se refere agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento e de um niacutevel

superior do intelecto Do mesmo modo conferir superioridade aos objetos distintos do

119 Chen sintetiza esta compreensatildeo dizendo ldquoDe acordo com a Teoria do Feacutedon a funccedilatildeo geral dos

sentidos eacute dupla Eacute primeiramente informar o que eacute percebido e em seguida estimular a mente a lembrar

do conhecimento uma vez adquirido e depois perdido- uma accedilatildeo sempre acompanhada da outrardquo Chen

op cit p 22 nota 11

175

corpoacutereo tal como o belo o maior o menor o proacuteprio bem reconhecidas como

realidades previamente conhecidas120

Tem-se a partir daqui a proposta de um plano cujos seres satildeo do gecircnero ηὸ αὐηὸ

ὃ ἔζηη os quais consistem em conhecimentos (ηὰο ἐπηζηήκαο Fed 75d4) e satildeo

acessiacuteveis pelo pensamento Tal gecircnero apresenta afinidade com a alma apartada do

corpo e portanto com o pensamento livre de impedimentos A relaccedilatildeo entre alma e ηὰο

ἐπηζηήκαο eacute dada na reminiscecircncia provavelmente para sugerir o inteligiacutevel e esta

afinidade permitindo ao pensamento especular e provar como se pretende a existecircncia

da alma e sua imortalidade Dito de outro modo a rememoraccedilatildeo constitui a primeira

formulaccedilatildeo de atividade inteligente na qual se pode apreender conhecimentos os quais

oferecem uma indicaccedilatildeo acerca da capacidade inteligente da alma em condiccedilatildeo de

pureza pura sem o corpo concomitamente agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia anterior que

ela possui

Faz-se necessaacuterio contudo explicar (δνῦλαη ιόγνλ Fed 76b3) as consequecircncias

da Teoria de modo a demonstraacute-la como uma prova acerca da existecircncia da alma neste

periacuteodo Assim verificar a identificaccedilatildeo da alma com o plano dos seres e apontar as

especificaccedilotildees acerca desta realidade exige concomitantemente um detalhamento do

gecircnero sensiacutevel e de sua deficiecircncia O corpo tomado agora como pertencendo ao

domiacutenio do sensiacutevel estaacute contraposto agrave alma cujo caraacuteter inteligiacutevel seraacute desenvolvido

e com isso se daraacute um maior detalhamento sobre a θξόλεζηο Importa observar que no

argumento da reminiscecircncia o pensamento enquanto faculdade sede do conhecimento e

atividade cognitiva como se viu tem seu caraacuteter firmado concomitante agrave verificaccedilatildeo da

existecircncia da alma Tal como o bem o belo e outros seres do mesmo tipo (Fed 75d5-

76e) ele difere do sensiacutevel e como faculdade da alma preexiste ao corpo121

Embora constitua uma demonstraccedilatildeo da preexistecircncia da alma a relaccedilatildeo entre

alma e conhecimento tal como traz a Teoria natildeo supotildee a cogniccedilatildeo como accedilatildeo

necessaacuteria para a anterioridade dos conhecimentos As ideias natildeo dependem de serem

conhecidas para terem seu caraacuteter e existecircncia firmados embora sejam sugeridas ao

serem apreendidas novamente na rememoraccedilatildeo A relaccedilatildeo esquecimento-rememoraccedilatildeo

que se daacute no aprendizado sugere justamente esta permanecircncia das ideias que estaacute para

120 Fed 75d1 ldquocomo digo selamos genericamente com o roacutetulo de realidade em si (ὅπεξ ιέγσ πεξὶ

ἁπάλησλ νἷο ἐπηζθξαγηδόκεζα ηὸ ldquoαὐηὸ ὃ ἔζηη)rdquo

121 Fed 76c11-13 ldquo- Donde segue Siacutemias que antes de encarnar numa forma humana as nossas

almas existiam jaacute independentemente de um corpo e dotadas de inteligecircncia ( Ἦζαλ ἄξα ὦ Σηκκία αἱ

ςπραὶ θαὶ πξόηεξνλ πξὶλ εἶλαη ἐλ ἀλζξώπνπ εἴδεη ρσξὶο ζσκάησλ θαὶ θξόλεζηλ εἶρνλ)rdquo

176

aleacutem da recuperaccedilatildeo que ocorre no ato e na operaccedilatildeo de rememorar Por outro lado a

alma como supotildee a hipoacutetese da imortalidade precisa ter comprovada a natureza

inteligiacutevel imutaacutevel e eterna das ideias para que se possa comprovar a sua subsistecircncia

agrave morte do corpo ndash tarefa que se daraacute ao longo do diaacutelogo Por enquanto o diaacutelogo

oferece as indicaccedilotildees do que se refere agrave inteligibilidade - seus objetos natureza

operaccedilotildees da capacidade cognitiva domiacutenio ndash na busca de legitimar o trabalho

racional122

O que antes foi narrado nos termos de um pensamento puro livre das

influecircncias do corpo recebe nos argumentos seguintes definiccedilotildees segundo uma

explicaccedilatildeo da filosofia que vecirc na reminiscecircncia o primeiro ato da cogniccedilatildeo e as

condiccedilotildees de sua possibilidade

23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia

Vale comentar os resultados que se obteacutem a partir do dado de serem as

sensaccedilotildees o estiacutemulo para a rememoraccedilatildeo e verificar em que termos a reminiscecircncia

descreve uma atividade cognitiva um ato e uma operaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis

pelo intelecto Natildeo somente para sugerir a anterioridade e a independecircncia da alma em

relaccedilatildeo ao corpo a Teoria da Reminiscecircncia indica um fato importante no Feacutedon ao

atribuir agrave rememoraccedilatildeo o papel de via possiacutevel no qual se obteacutem um grau de aquisiccedilatildeo

dos inteligiacuteveis em vida humana (βίνο) Uma vez que o conhecimento autecircntico eacute

possiacutevel apenas apoacutes a morte a ἀλάκλεζηο oferece elementos uacuteteis como referecircncia na

cogniccedilatildeo Ao que parece a alteridade que se propotildee com ηὰο ἐπηζηήκαο e ἕηεξόλ ηη

serve para propor a base cognitiva exequiacutevel no contexto da vida aquela sobre a qual o

pensamento deve se empenhar para buscar as referecircncias indicadas na rememoraccedilatildeo e

levar a cabo a investigaccedilatildeo filosoacutefica123

Ao considerar tal contexto natildeo parece haver a intenccedilatildeo de afirmar que a

apreensatildeo de ideias eacute algo exclusivo do ato de rememorar O argumento natildeo parece ter

122 Chen op cit p 23 nota 12

123 Nas palavras de Charles Kahn esta ligaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis que mostra a reminiscecircncia

consiste no ponto filosoacutefico essencial do argumento ldquo() A funccedilatildeo preciacutepua aqui da teoria da

reminiscecircncia (como o argumento a partir da afinidade em sequecircncia) consiste em estabelecer a

condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu elo cognitivo com o ser transcendente das Formasrdquo

Kahn C rdquoPlatatildeo e a Reminiscecircnciardquo in Platatildeo (Benson H e col) Artmed 2011 Porto Alegre p 124

177

como proposta portanto apresentar uma relaccedilatildeo de necessidade entre a reminiscecircncia e

um objeto de estatuto ontoloacutegico elevado nem ser a rememoraccedilatildeo necessariamente

acompanhada de um trabalho intelectual posterior As duas situaccedilotildees satildeo descritas na

Teoria e mostram este ato de cogniccedilatildeo em duas perspectivas que acompanham a

dualidade da condiccedilatildeo do homem ser composto de corpo e alma (Fed 79b) ou dito de

outro modo ter a alma associada ao corpo Disto decorre que se tem na reminiscecircncia a

descriccedilatildeo tanto de um ato do pensamento comum ou seja possiacutevel a qualquer homem

quanto uma primeira explicaccedilatildeo acerca da origem das operaccedilotildees inteligentes da alma

Ao se questionar acerca da escolha do caraacuteter da reminiscecircncia por Platatildeo124

Dominic Scott mostra as duas interpretaccedilotildees que surgiram dessa dupla funccedilatildeo da

rememoraccedilatildeo Uma primeira explicaccedilatildeo seria para aplicar certos conceitos agrave experiecircncia

e uma segunda responderia que a finalidade eacute somente elucidar o conhecimento do

filoacutesofo de entidades transcendentes as quais servem para a comparaccedilatildeo com

particulares Na primeira resposta haacute uma colaboraccedilatildeo entre empiacuterico e inato para

explicar o pensamento ordinaacuterio enquanto de acordo com a uacuteltima interpretaccedilatildeo a

reminiscecircncia se refere precisamente as formas125

A resposta que se propotildee para esta

duplicidade a qual parece suficiente para apontar a complexidade do pensamento nos

termos da rememoraccedilatildeo tema deste estudo consiste justamente no duplo aspecto que o

ato cognitivo de rememorar apresenta Ter acesso a um conteuacutedo do intelecto que se

refira agrave experiecircncia empiacuterica uma imagem ou representaccedilatildeo como quer Brisson eacute

possiacutevel tanto quanto ter acesso a um conteuacutedo que se refira agraves ideias Mesmo que a

comparaccedilatildeo faccedila referecircncia agrave forma do igual natildeo parece haver nesse contexto um

objeto definido rigidamente em termos ontoloacutegicos Ao contraacuterio a lembranccedila de

Siacutemias e o conceito de Igual enquanto conteuacutedos mentais satildeo ambos referidos como

conhecimentos Desse modo faz sentido o que Scott afirma em seguida ldquo()

reminiscecircncia eacute usada para cobrir diferentes extensotildees do desenvolvimento intelectual

conforme a interpretaccedilatildeo que se seguerdquo126

No caso do Feacutedon constitui um primeiro

exemplo da via inteligente que o filoacutesofo natildeo deve perder de vista Ao se pretender

124 Scott ao considerar a Teoria da Reminiscecircncia uma forma de inatismo adverte ldquo() devemos nos

perguntar por que Platatildeo decidiu adotar esta em particularrdquo Scott D Recollection and Experience -

Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge University Press p 17 O entendimento

da Teoria como uma forma de inatismo de Scott eacute oposta agrave compreensatildeo de Luc Brisson Enquanto Sc

considera possiacutevel a presenccedila de formas na alma as quais se tornam conhecidas na reminiscecircncia Brisson

diz se tratar de imagens que representam as ideias anteriormente conhecidas natildeo havendo portanto

ideias inatas Brisson op cit p 180 185

125 Scott idem p 17 19

126 Scott ibidem 20

178

elucidar e compreender as operaccedilotildees e estatuto da atividade do pensamento a

reminiscecircncia nos termos do aprendizado parece natildeo ignorar nenhuma das perspectivas

embora sua ecircnfase esteja na cogniccedilatildeo daquilo que seraacute definido como ideia

Desse modo no contexto de oposiccedilatildeo do intelecto agrave sensibilidade e de gradativo

afastamento entre corpo e alma tal como descreve a postura filosoacutefica a aquisiccedilatildeo que

se tem na reminiscecircncia varia sendo diferente para filoacutesofo e natildeo-filoacutesofo A igualdade

que o natildeo filoacutesofo apreende eacute apenas a igualdade perceptiacutevel pelos dados do sensiacutevel em

uma comparaccedilatildeo entre sensiacuteveis Ainda que a ideia do igual ampare esta comparaccedilatildeo

somente o filoacutesofo concebe que haacute por traz das relaccedilotildees entre sensiacuteveis um modelo ideal

que se difere e escapa agraves relaccedilotildees no sensiacutevel Em outras palavras o natildeo filoacutesofo natildeo

apreende a distinccedilatildeo deste igual que ele pode conceber na reminiscecircncia daquelas

igualdades vistas nas pedras e paus natildeo se dando conta portanto da ideia

A aquisiccedilatildeo de uma ideia na rememoraccedilatildeo parece prescindir cabe supor da

iniciaccedilatildeo na filosofia como acontece no ciacuterculo de Soacutecrates ou na induccedilatildeo do pedagogo

filoacutesofo a exemplo do que se vecirc n‟A Repuacuteblica Ao se perguntar pode-se compreender

que a aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia eacute possiacutevel tambeacutem para o natildeo filoacutesofo A

resposta plausiacutevel consiste natildeo segundo o que diz a Teoria no Feacutedon A percepccedilatildeo da

disparidade entre as pedras iguais e o proacuteprio igual e da mesma forma a origem desta

diferenccedila se referem agrave habilidade daquele que se exercita na filosofia As palavras de

Scott parecem concluir de maneira adequada esta questatildeo ldquoEacute inegaacutevel entatildeo que

somente poucas pessoas tenham comparado formas e particularesrdquo127

Todavia natildeo se

pode desconsiderar que a rememoraccedilatildeo eacute um ato exequiacutevel por todo homem ainda que

natildeo se decirc a segunda operaccedilatildeo do intelecto ao rememorar de modo a apreender o

inteligiacutevel A distinccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum eacute justamente conceber

no que a generalidade suscitada pelo trabalho de comparaccedilatildeo a partir da percepccedilatildeo em

realidade consiste conhecimento o qual seraacute elucidado e compreendido por meio do

exerciacutecio hipoteacutetico e natildeo na simplicidade das operaccedilotildees que descrevem a

reminiscecircncia

Sobre o que se apreende na reminiscecircncia Chen eacute mais categoacuterico ao afirmar o

sentido fraco de cogniccedilatildeo que apresenta a Teoria ldquoAnamnesis natildeo eacute o proacuteprio meacutetodo

para atingir a visatildeo das ideias o que ela proporciona eacute a revivificaccedilatildeo da cogniccedilatildeo

original natildeo a proacutepria cogniccedilatildeo originalrdquo128

Na direccedilatildeo oposta destas explicaccedilotildees

127 Scott op cit p 60

128 Chen op cit p 27

179

Acrill considera que a generalidade apreensiacutevel pelo filoacutesofo na rememoraccedilatildeo diz

respeito ao final agraves formas uma vez que ele a entende como tal Ele considera que o

apreensiacutevel para a maioria das pessoas o que se tem desde a infacircncia diz respeito ao

uso da palavra e agrave sua generalidade enquanto para o filoacutesofo eacute apreensiacutevel o significado

desta generalidade como forma imutaacutevel129

A compreensatildeo de Acrill se justifica na

medida em que se sabe que o diaacutelogo trabalha para apresentar as formas e um meacutetodo

para a apreensatildeo delas Nesse sentido ainda que se recupere parcialmente ou

indiretamente o conhecimento o conteuacutedo se revela consistir na forma inteligiacutevel pelo

filoacutesofo

Todavia ao levar em conta o momento da investigaccedilatildeo em que o argumento eacute

oferecido ou seja apoacutes uma primeira defesa do afastamento da alma em relaccedilatildeo ao

corpo onde se tem apenas a alusatildeo do que se apresentaraacute mais tarde como essecircncia a

posiccedilatildeo que considera a lembranccedila tal como uma cogniccedilatildeo insuficiente ou incompleta

parece mais adequada Tais posiccedilotildees parecem privilegiar enfoques diferentes mas

talvez natildeo incompatiacuteveis Do ponto de vista da cogniccedilatildeo trata-se de um tipo de

apreensatildeo que oferece um conhecimento inautecircntico no sentido de um conteuacutedo que faz

referecircncia a outro supostamente verdadeiro experienciado em uma anterioridade Ao

mesmo tempo vale observar que o argumento natildeo faz qualquer sugestatildeo sobre o que

poderia constituir uma referecircncia agraves formas que natildeo as oferecesse apenas em alguma

medida ndash tema que ganharaacute explicaccedilatildeo com a teoria da participaccedilatildeo130

129 ldquo(hellip) a) As pessoas comuns conhecem o uso da palavra ordinaacuteria X e desse modo adquirem

conhecimento de X - idade (X-ness) ela sabe que haacute tal coisa como X-idade e sabe o que ela eacute (no

sentido fraco) b) platonistas concebem que X-idade eacute uma forma eterna imutaacutevel uma entidade

independentemente existenterdquo Acrill op cit p 28-29 Kahn compartilha da mesma interpretaccedilatildeo ao julgar

que o argumento traz uma referecircncia impliacutecita agraves Formas o que explica a generalidade dadas nos

exemplos de paus e pedras Kahn op cit p 125

130 Outra maneira de se perguntar se o conhecimento adquirido na resminiscecircncia se refere agraves ideias

acessiacuteveis aos filoacutesofos ou a outro tipo de conteuacutedo acessiacutevel tambeacutem aos natildeo filoacutesofos consiste em

questionar a imagem ou a visatildeo que se tem na reminiscecircncia de uma ideia eacute a proacutepria ideia Pode-se

dizer que as igualdades percebidas se referem exclusivamente ao proacuteprio igual e natildeo a outro conceito Um

referencial ou uma visatildeo de X natildeo eacute o proacuteprio X entretanto tal conteuacutedo natildeo faria referecircncia a outra

coisa que natildeo X Se tal raciociacutenio procede o que se deve considerar Em uma posiccedilatildeo pessimista em

relaccedilatildeo agrave capacidade de adquirir o conhecimento em sua inteireza e autenticidade Gosling explica o

conteuacutedo da reminiscecircncia como uma ldquoquasi-perceptionrdquo anaacuteloga agrave visatildeo direta que supostamente a alma

teve antes do nascimento Assim ele compreende que o argumento da reminiscecircncia como aprendizado

exige muito mais do que possuir conhecimento a priori estando em jogo a familiaridade com estes

objetos a partir dos quais eacute possiacutevel fazer comparaccedilotildees entre os dados observados Para o autor

justamente tal familiaridade a qual envolve esta semivisatildeo constitui o conhecimento do igual na verdade

uma semicogniccedilatildeo ldquoA conclusatildeo parece ser a de que conhecemos (acquainted) certos objetos os quais

podemos comparar com o que agora observamos bdquoConhecer‟ aqui parece envolver uma quase percepccedilatildeo

(quasi-perception) e isso eacute certamente o que constitui o bdquoconhecimento do igual‟rdquo Gosling op cit p126

180

Perguntar-se sobre em que medida a imagem ou a visatildeo que se tem na

reminiscecircncia de uma ideia oferece a proacutepria ideia faz sentido ao lanccedilar o olhar para a

questatildeo de fundo acerca da aquisiccedilatildeo da ideia e portanto do alcance intelectual Tal

tema no entanto eacute melhor elaborado n‟ A Republica VI na relaccedilatildeo modelo-coacutepia que a

analogia da linha oferece Aqui esta relaccedilatildeo natildeo estaacute em questatildeo se natildeo for para supor

outro domiacutenio131

A consequecircncia que natildeo se deve perder de vista consiste desse modo

em natildeo atribuir agrave reminiscecircncia ou natildeo somente a ela a capacidade de aquisiccedilatildeo das

ideias Natildeo haacute necessariamente aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia da mesma forma

que o exerciacutecio dialeacutetico natildeo descreve obrigatoriamente uma rememoraccedilatildeo Satildeo

atividades cognitivas distintas e no caso da rememoraccedilatildeo natildeo leva somente agraves ideias

inteligiacuteveis Os objetos introduzidos pela ἀλάκλεζηο devem ser resultado do tratamento

intelectual do meacutetodo hipoteacutetico o qual mostraraacute definitivamente a legitimidade da

faculdade intelectual da alma tarefa que a Teoria da Reminiscecircncia tal como se

apresenta natildeo o pode realizar Nesse sentido a Teoria eacute utilizada no Feacutedon para

oferecer uma saiacuteda intelectual nesta circunstacircncia de processo de afastamento da alma

em relaccedilatildeo ao corpo para colaborar nas devidas distinccedilotildees que se pretende realizar sobre

sua capacidade inteligente O que o diaacutelogo mostra com a reminiscecircncia eacute entre os

conteuacutedos que jaacute se analisou mais uma forma de atividade do intelecto que nesta altura

da investigaccedilatildeo constitui uma alternativa para persistir na busca do que eacute verdadeiro e

puro em um contexto adverso agrave natureza inteligente da alma

131 Trabattoni reconhece a relaccedilatildeo que estamos a nos referir entre a gnosiologia n‟A Repuacuteblica e a

reminiscecircncia no Feacutedon ao dizer ldquoNas paacuteginas d‟A Repuacuteblica natildeo aparece a doutrina da reminiscecircncia

que Platatildeo tratou pela primeira vez no Feacutedon e retomou posteriormente no Fedro Todavia natildeo eacute difiacutecil

estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a gnosiologia d‟A Repuacuteblica com a teoria da reminiscecircncia dos dois

diaacuteloacutegos que citamos O conhecimento anterior do mundo ideal corresponde ao perfeito saber das ideias

que os filoacutesofos possuem somente no modelo ideal natildeo na realidade concreta Acredito que se deva

deixar aberto agrave interpretaccedilatildeo de cada um que a ausecircncia do saber perfeito na experiecircncia mundana

dependa do fato que este conhecimento eacute em Platatildeo somente ideal uma vaacutelvula de escape para aqueles

que aplicam o conhecimento humano no uacutenico mundo existente mesmo se se o considera um lugar real o

ideal pertencente a outro mundo a um mundo que o homem conheceu antes de nascer e (re) alcanccedilaraacute

apoacutes a morterdquo Trabattoni op cit p 184 Faz sentido no que diz respeito ao trabalho itelectual a

suposiccedilatildeo de um outro domiacutenio um plano real distinto do mundo ordinaacuterio a partir do qual se obtenha as

referecircncias necessaacuterias Tanto a cidade ideal do filoacutesofo governante quando os objetos ideiais

rememorados servem de paracircmetros e indicam esta realidade a qual o filoacutesofo deseja conhecer O

conhecimento e a rememoraccedilatildeo descrevem assim a atividade que eleva a alma para este outro domiacutenio e

no Feacutedon isto parece ser dito mais objetivamente

181

24 Distinccedilotildees entre alma e corpo

A partir dos temas tratados na Teoria da Reminiscecircncia a questatildeo da

imortalidade dada ateacute entatildeo com elementos do registro da religiatildeo eacute transposta para o

registro da metafiacutesica A existecircncia da alma anterior ao nascimento que o ato racional da

reminiscecircncia testemunha mostra que um maior entendimento sobre os seres deste plano

satildeo os indicativos da possibilidade de sua imortalidade Distintos da sensibilidade as

realidades descobertas como seres anteriores devem apresentar as caracteriacutesticas que

permitem a sobrevivecircncia da alma e do mesmo modo a compreensatildeo acerca da atuaccedilatildeo

do pensamento nesta tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

ldquo- Portanto Siacutemias eis a questatildeo se de fato existem coisas

como essas que temos constantemente nos laacutebios um Belo um Bem e

toda a espeacutecie de realidade que lhes eacute afim (ἡ ηνηαύηε νὐζία) se eacute

esta que tomamos como ponto de referecircncia de tudo (ὑπάξρνπζαλ) o

que os sentidos nos transmitem e a ela reportamos (ἀλαθέξνκελ) os

dados recebidos em virtude de lhe descobrirmos uma existecircncia

anterior que nos pertencia - forccedilosamente entatildeo na medida em que

tais realidades existem assim tambeacutem a nossa alma existe antes de

nascermos caso contraacuterio este nosso argumento cairaacute pela base

[]rdquo (Fed 76d6-e4)

Deve-se observar que tais realidades servem de paracircmetro para estabelecer

relaccedilotildees com os dados advindos do sensiacutevel (θαὶ ηαῦηα ἐθείλῃ ἀπεηθάδνκελ Fed 76e2)

Cabe dessa forma averiguar a questatildeo se baseando estritamente no trabalho racional

dada a capacidade de estabelecer relaccedilotildees com estes seres e fazer atraveacutes deles maiores

inferecircncias sobre o tema Esta constitui uma mudanccedila metodoloacutegica no diaacutelogo digna

de nota Haja vista as diferenciaccedilotildees das realidades e a afinidade da alma com elas

parece razoaacutevel recorrer cada vez mais aos resultados do trabalho racional empregado

na investigaccedilatildeo e ao que se pode conhecer por meio dele sobre tal realidade (θαηαθεύγεη

ὁ ιόγνο Fed 76e9) Desse modo o estado de morte em que supostamente a alma

sobrevive deve ser investigado segundo o que mostra o caraacuteter dos dois tipos de planos

que agora se apresentam amparados pelo ιόγνο no trabalho filosoacutefico Utilizando as

palavras do texto ldquo() ficou por demonstrar (ἀπνδεδεῖρζαη) que ela subsiste tambeacutem

apoacutes a morterdquo (Fed 77b1) o que abordaraacute a alma e a sua imortalidade da perspectiva

182

do seu possiacutevel perecimento em uma comparaccedilatildeo com o aniquilamento dos objetos

fiacutesicos do plano sensiacutevel

Ao considerar a morte como uma destruiccedilatildeo tal como se daacute com os corpos

deve-se questionar se ela eacute suscetiacutevel a um fim desses ou se ao contraacuterio natildeo padece de

qualquer tipo de ruiacutena e se manteacutem viva (Fed 77b3) Estaacute em questatildeo agora a natureza

da alma no que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo O medo da morte que Soacutecrates critica

nos seus interlocutores (Fed 77d4-e) estaacute baseado na concepccedilatildeo tradicional que a

compreende semelhante ao corpoacutereo podendo assim ter fim se dissipando esvoaccedilando

ou sendo destruiacuteda de alguma outra forma Todavia deve-se ter em conta que as uacutenicas

atribuiccedilotildees feitas agrave alma ateacute esta altura da investigaccedilatildeo se refere a sua faculdade

intelectual e a sua capacidade de cogniccedilatildeo (Fed 70b3 76c12) tal como o seu poder de

se purificar de se desvincular do corpoacutereo por meio da filosofia A formulaccedilatildeo sobre a

alma que o discurso filosoacutefico propotildee eacute oposta a concepccedilatildeo tradicional como se tem

observado e apresenta primeiramente como razatildeo para sua indestrutibilidade sua

natureza incorpoacuterea

Tal incorporeidade entenda-se o que se distingue do corpo eacute averiguada como o

contraacuterio de um composto O que eacute de natureza composta estaacute suscetiacutevel agrave

decomposiccedilatildeo dos elementos que o integra sendo dessa forma passiacutevel de ser

destruiacutedo Ao contraacuterio o que eacute de natureza simples natildeo eacute composto (ἀζύλζεηνλ) estaacute

livre de sofrer decomposiccedilatildeo (Fed 78c1-4)

Outra caracteriacutestica que os seres de natureza incorpoacuterea apresenta diz respeito a

mudanccedilas Coisas simples satildeo sempre do mesmo modo comportam-se sempre da

mesma maneira (ὡζαύησο ἔρεη Fed 78c6) enquanto as compostas mudam (Fed 78c6-

8) O ser de realidade diversa do corpoacutereo (ἡ νὐζία) possui tais caracteriacutesticas e da

mesma forma natildeo admite nenhum tipo de mudanccedila (κή πνηε κεηαβνιὴλ θαὶ ἡληηλνῦλ

ἐλδέρεηαη Fed 78d4) Assim os conhecimentos apreensiacuteveis na reminiscecircncia que

indicam a preexistecircncia da alma ao corpo satildeo da mesma natureza incorpoacuterea e

apresentam essas caracteriacutesticas tal como o Igual o Belo e tudo o que eacute dito ldquoser por si

mesmordquo (Fed 78d1-7) Com esta descriccedilatildeo esses seres passam a receber um estatuto

ontoloacutegico que os define como essecircncia (νὐζία) As essecircncias portanto natildeo sofrem

qualquer tipo de mudanccedila ou variaccedilatildeo em nenhum momento satildeo simples (κνλνεηδὲο) e

conserva a sua identidade

Tais definiccedilotildees acerca dos conhecimentos descrevem em boa medida a natureza

de um domiacutenio distinto do sensiacutevel com o qual o ιόγνο filosoacutefico concorrente com o

183

tradicional trabalha A explicaccedilatildeo nos termos da filosofia passa a estabelecer nesta

argumentaccedilatildeo os criteacuterios e os paracircmetros para uma explicaccedilatildeo racional e assim

oferece as caracteriacutesticas dos seres pertencentes a este domiacutenio que satildeo eacute importante

notar os objetos do pensamento O trabalho intelectual envolvido na separaccedilatildeo da alma

em relaccedilatildeo ao corpo ganha explicaccedilotildees acerca de seu desenvolvimento indicando a

forma dialogada da dialeacutetica como o exerciacutecio proacuteprio neste tipo de operaccedilatildeo intelectual

de explanaccedilatildeo acerca das essecircncias (Fed 78d1) Eleger a forma de operar em relaccedilatildeo a

tais objetos defini-los e expor as suas caracteriacutesticas parece importante a esta altura do

diaacutelogo para assegurar na medida do possiacutevel a retidatildeo da investigaccedilatildeo e assim ter

maior esperanccedila sobre a imortalidade da alma e sobre o bom destino do filoacutesofo apoacutes a

morte Do mesmo modo conforme sugere o medo dos amigos de Soacutecrates a

investigaccedilatildeo deve considerar a natureza dos objetos em questatildeo e sendo assim natildeo se

pode realizar uma inquiriccedilatildeo acerca da alma a concebendo como algo corpoacutereo uma

vez que jaacute se deu indicaccedilotildees de se tratarem de seres de naturezas diferentes Parece claro

que para efeito de distinccedilotildees entre alma e corpo a partir de agora se deve ter em conta o

estatuto ontoloacutegico conferido a cada plano e que o domiacutenio das essecircncias eacute acessiacutevel

somente pela atividade do pensamento

25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο

A caracterizaccedilatildeo dos conhecimentos segue de modo a lanccedilar luz no que diz

respeito agrave apreensatildeo e assim na contraposiccedilatildeo sensibilidade-intelecto a partir da qual

seraacute exposta a causa da falibilidade dos sentidos contrariamente agrave eficiecircncia da razatildeo

No domiacutenio da sensibilidade estatildeo as coisas que possuem o atributo de uma essecircncia

como a beleza e a igualdade mas embora seja homocircnima dela os objetos sensiacuteveis

dotados de tais qualidades natildeo consistem nas proacuteprias essecircncias e por isso satildeo passiacuteveis

de corrupccedilatildeo (Fed 78e1) Os objetos sensiacuteveis como um belo cavalo ou pedras iguais

184

satildeo apreendidos pela αἴζζεζηο diferentemente do proacuteprio Belo e da noccedilatildeo de Igualdade

que soacute eacute concebida pela atividade racional mais precisamente pelo raciociacutenio132

Neste argumento a criacutetica ao corpo tem em vista apontar a deficiecircncia das

sensaccedilotildees na aquisiccedilatildeo do conhecimento e justificar por outro lado a excelecircncia do

pensamento nessa funccedilatildeo ao mostrar sua ligaccedilatildeo com o domiacutenio das essecircncias o qual

pode ser compreendido apoacutes as uacuteltimas explicaccedilotildees como domiacutenio inteligiacutevel Importa

comparar pensamento e sensibilidade no que se refere agraves qualidades que cada um pode

acessar A alma e os objetos satildeo examinados assim a partir de dois tipos de existecircncias

(Fed 79a6)133

uma visiacutevel e outra invisiacutevel Os objetos que possuem as caracteriacutesticas

das essecircncias satildeo os invisiacuteveis enquanto os visiacuteveis podem ser corrompidos uma vez

que satildeo da ordem do sensiacutevel A partir desse criteacuterio a alma se mostra mais aparentada

ao que eacute invisiacutevel enquanto o corpo afim com o visiacutevel (Fed 79b4) Essa uacuteltima

argumentaccedilatildeo vale reparar aborda as caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel nos

termos da invisibilidade e da visibilidade Ao mesmo tempo em que oferece uma

definiccedilatildeo uacutetil para o tema da morte ao admitir ser a alma a parte invisiacutevel do homem

(Fed 79b1) e portanto a que deve ser objeto de averiguaccedilatildeo o argumento pontua a

criacutetica aos sentidos mostrando a incapacidade destes de apreender o que eacute da ordem das

essecircncias

O texto com a finalidade de ilustrar a indestrutibilidade da alma mostra na

verdade que temas que se referem agraves essecircncias e ao conhecimento delas como ocorre

com a questatildeo da natureza da alma natildeo deve ser associado agrave sensibilidade mas ao

intelecto Tem-se a total incapacidade da αἴζζεζηο para o conhecimento e ao mesmo

tempo uma explicaccedilatildeo causal acerca da potencialidade cognitiva da θξόλεζηο

ldquo- Caacute estamos entatildeo no que diziacuteamos haacute pouco sempre que a

alma faz uso do corpo (πξνζρξηαη) para se lanccedilar em qualquer

indagaccedilatildeo utilizando a vista o ouvido ou qualquer outro meio

sensorial (e utilizar os sentidos que significa senatildeo utilizar o corpo)

eis que este a arrasta para as realidades em contiacutenuo devir (ἕιθεηαη

ὑπὸ ηνῦ ζώκαηνο) e quanto a ela por aiacute erra mergulhando como

eacutebria na perturbaccedilatildeo e na vertigem (πιαλᾶηαη θαὶ ηαξάηηεηαη θαὶ

132 Fed 79a2 ldquoPois bem essas satildeo justamente as que tu podes ver tocar e apreender pelos restantes

sentidos as outras pelo contraacuterio que mantecircm a sua identidade proacutepria jamais teria meios de captaacute-las

a natildeo ser pelas faculdades da inteligecircncia pois que se trata das realidades invisiacuteveis que a nossa vista

natildeo capta (ηῶλ δὲ θαηὰ ηαὐηὰ ἐρόλησλ νὐθ ἔζηηλ ὅηῳ πνη ἂλ ἄιιῳ ἐπηιάβνην ἢ ηῷ ηο δηαλνίαο

ινγηζκῷ ἀιι ἔζηηλ ἀηδ ηὰ ηνηαῦηα θαὶ νὐρ ὁξαηά)rdquo

133 Privilegiamos a traduccedilatildeo de FOWLER ldquotwo kinds of existencesrdquo para o trecho ldquo δύν εἴδε ηῶλ ὄλησλ

ηὸ κὲλ ὁξαηόλ ηὸ δὲ ἀηδέοrdquo diferentemente da traduccedilatildeo de Azevedo que prefere traduzir eide ton onton

por ldquoduas realidadesrdquo op cit p 275

185

εἰιηγγηᾷ) pois tal eacute a natureza das coisas a que se apega (ἅηε

ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)

- Decerto

- Ao inveacutes quando indaga por si e em si refugiando-se aleacutem no

que eacute puro e sempre existe imortal e idecircntico a si mesmo fica em

razatildeo do seu parentesco para sempre ligada a ele (Ὅηαλ δέ γε αὐηὴ

θαζ αὑηὴλ ζθνπῆ ἐθεῖζε νἴρεηαη εἰο ηὸ θαζαξόλ ηε θαὶ ἀεὶ ὂλ θαὶ

ἀζάλαηνλ θαὶ ὡζαύησο ἔρνλ θαὶ ὡο ζπγγελὴο νὖζα αὐηνῦ ἀεὶ κεη

ἐθείλνπ ηε γίγλεηαη) precisamente quando passa a existir por si e em

si e tal lhe eacute permitido e eacute entatildeo que cessam os seus erros e fixando-

se nessa realidade de aleacutem salvaguarda a sua identidade porque tal

eacute tambeacutem a natureza das coisas a que se apega (ὅηαλπεξ αὐηὴ θαζ

αὑηὴλ γέλεηαη θαὶ ἐμῆ αὐηῆ θαὶ πέπαπηαί ηε ηνῦ πιάλνπ θαὶ πεξὶ

ἐθεῖλα ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὡζαύησο ἔρεη ἅηε ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)

Ora a esse estado de alma natildeo damos noacutes o nome de ldquorazatildeordquo (θαὶ

ηνῦην αὐηο ηὸ πάζεκα θξόλεζηο θέθιεηαη) (Fed 79c-2-d7)

Ao fazer uso dos sentidos para realizar um exame a alma vai na direccedilatildeo

contraacuteria dos inteligiacuteveis e de sua natureza Ao se deixar influenciar pelos dados

sensiacuteveis ela eacute arrastada por eles desviando-se dos objetos que lhe satildeo afins Em

contato com seres de natureza oposta ou seja advindos do corpoacutereo ela permanece em

um estado de perturbaccedilatildeo (ηαξάζζσ) Note-se que o comportamento da alma eacute orientado

pelo domiacutenio ao qual cede a influecircncia Ao se fixar em objetos inteligiacuteveis a alma age

de maneira semelhante a eles mantendo-se reta e conservando a sua natureza imutaacutevel

Se ao contraacuterio ela se deixa influenciar pelo corpo e tendo em vista o que corresponde

ao domiacutenio do sensiacutevel torna-se incapaz de fazer uso da inteligecircncia assumindo assim

um comportamento condizente com ele eacutebrio e errante134

Esse estado de agitaccedilatildeo

constitui a descaracterizaccedilatildeo mais evidente que ela pode sofrer A alma demasiado

influenciada pelo corpo assume suas caracteriacutesticas corpoacutereas no sentido de dispensar a

racionalidade tendo como dano maior se tornar bestial como o corpo A consequecircncia

nefasta do apego da alma ao corpo traz prejuiacutezos agrave sua natureza que significa em uacuteltima

circunstacircncia um uso indevido ou desuso de suas capacidades intelectuais A resposta

da alma nessa condiccedilatildeo conveacutem notar demonstra ser diferente se comparada ao que

acontece em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees corpoacutereas No contato com os objetos sensiacuteveis a

alma entatildeo agitada reage a eles com o trabalho da intelecccedilatildeo

134 Note-se aqui a negatividade atribuiacuteda aos sentidos semelhante ao que constitui uma limitaccedilatildeo para o

meacutetodo geomeacutetrico isto eacute o uso de imagens e a atenccedilatildeo voltada para os objetos do mundo fiacutesico Da

mesma forma observa-se o impecilho que uso do sensiacutevel constitui para a alma na busca pelo

conhecimento presente nos termos do obstaacuteculo para a alma ainda presa ao corpo no contexto do Feacutedon

e das dificuldades que se antepotildeem ao aprendiz conforme o livro VII anaacutelogas agraves dificuldades que

encontra o homem ao sair da caverna O que a uacuteltima parte da linha oferece como pensamento que

trabalha somente com ideias e atraveacutes de ideias aqui se daacute o nome de pensamento puro

186

Cabe analisar de que modo o texto descreve a identificaccedilatildeo da alma como algo

que mais se assemelha ao que eacute inteligiacutevel uniforme indestrutiacutevel divino e imutaacutevel135

em contraponto a uma hiperinfluecircncia do corpoacutereo Vale observar que embora este

ὁκνηόηαηνλ indique a afinidade da alma com o gecircnero invisiacutevel e inteligiacutevel natildeo se

pode compreender haver aqui uma riacutegida definiccedilatildeo de alma Natildeo haacute no horizonte do

texto ainda que se tenha em questatildeo a imortalidade o propoacutesito de traccedilar uma riacutegida

definiccedilatildeo da alma mas salientar as caracteriacutesticas que concernem agrave sua

indestrutibilidade nesse caso note-se seu parentesco com o gecircnero incorpoacutereo que se

manifesta com a atividade inteligente

O diaacutelogo chama atenccedilatildeo para as caracteriacutesticas que satildeo justamente opostas e

portanto comparaacuteveis com as caracteriacutesticas dos seres do gecircnero corpoacutereo de modo a

apresentar assim uma narrativa que descreve a alma basicamente em trecircs estados sob

influecircncia do corpo em processo de desvinculaccedilatildeo do corpo ou seja desapegando-se

dessa influecircncia e totalmente apartada dele o que constitui o estado de morte e

supostamente um estado de alta intelecccedilatildeo tal como se daacute nessa descriccedilatildeo da θξόλεζηο

Faz sentido apresentar desse modo as trecircs circunstacircncias que consiste vale lembrar no

percurso do filoacutesofo Mostrar a alma ao mesmo tempo afim e mais assemelhada ao

divino e imortal natildeo a coloca em um estatuto de igualdade em relaccedilatildeo agraves essecircncias ou agrave

divindade parecendo cabiacutevel portanto oferecer uma imagem dela como algo quase

corpoacutereo por assim dizer que pode demonstrar a hiperinfluecircncia do corpoacutereo e o

consequente desuso da razatildeo no que se refere agrave sua potencialidade cognitiva Em outros

termos para ilustrar o processo de aquisiccedilatildeo da excelecircncia intelectual do filoacutesofo eacute

preciso ter uma visatildeo da alma suscetiacutevel a depuraccedilatildeo racional da filosofia e desse

modo que ofereccedila tanto os resultados dele a exemplo da alma do filoacutesofo quanto a

possibilidade dessa purificaccedilatildeo natildeo ocorrer

A narrativa de uma conduta pautada pelo corpoacutereo no qual as faculdades

inteligiacuteveis da alma natildeo exercem qualquer comando contrariando sua natureza (79e8-

80a5) sugere uma posiccedilatildeo intermediaacuteria da alma entre apelos do sensiacutevel uma vez

encarnada em um corpo humano e sua inclinaccedilatildeo inteligiacutevel dada afinidade com tal

gecircnero A tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel posta em termos de domiacutenios distintos eacute agora

refletida conforme o texto em uma conduta da alma que pode oscilar e que tem no

135 Fed 80b1-3 ldquo() se eacute ao que eacute divino imortal e inteligiacutevel ao que possui uma soacute forma e eacute

indissoluacutevel e se manteacutem constante e igual a si mesmo que a alma mais se identifica ()rdquo ( ηῷ κὲλ ζείῳ

θαὶ ἀζαλάηῳ θαὶ λνεηῷ θαὶ κνλνεηδεῖ θαὶ ἀδηαιύηῳ θαὶ ἀεὶ ὡζαύησο θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνληη ἑαπηῷ

ὁκνηόηαηνλ εἶλαη ςπρή)

187

intelecto a faculdade para orientaacute-la na direccedilatildeo daquilo que ela deveria naturalmente

aspirar A ausecircncia da atuaccedilatildeo da razatildeo ou como diz o texto a ausecircncia do comando da

alma tem origem no apego ao corpoacutereo resultante da convivecircncia (ἅηε ηῷ ζώκαηη ἀεὶ

ζπλνῦζα Fed 81b2) com o corpo o que pode ser visto em certa medida como uma

alteraccedilatildeo em sua natureza Tal alteraccedilatildeo eacute dada analogamente como uma mancha

(κηαίλσ) uma impureza (ἀθάζαξηνο ηνῦ ζώκαηνο Fed 81b1) consequecircncia de uma

conduta na qual a alma desprovida da atividade do pensamento estaacute enleada pelo que se

refere ao corpo mais precisamente prazeres e paixotildees (Fed 81b2-4) A alma nesse

contexto acostuma-se (ἐζίδσ) com as caracteriacutesticas corpoacutereas (ηὸ ζσκαηνεηδέο)

reconhecendo somente estes como verdadeiros recusando o que eacute inteligiacutevel (λνεηὸλ δὲ

θαὶ θηινζνθίᾳ αἱξεηόλ Fed 81b5)

Dominada pelo corpo vecirc-se a corrupccedilatildeo de sua potecircncia cognitiva e a ecircnfase

que o texto cabe notar confere ao pensamento ao identificar a conservaccedilatildeo da natureza

da alma agrave intelecccedilatildeo Em outros termos como responsaacutevel por evitar tal domiacutenio o

pensar exercido pela filosofia pode garantir o bom destino apoacutes a morte e a felicidade

(Fed 81a) por habituar a alma agrave convivecircncia com o que eacute inteligiacutevel e a tornaacute-la

temperante e justa Do mesmo modo ao contraacuterio em uma vida na qual se privilegia os

viacutecios como as glutonias beberronices injusticcedila e tirania (Fed 82a) habituou-se a

alma a tais coisas e tem portanto uma forte relaccedilatildeo e uma assimilaccedilatildeo de sua forma e

de seu modo de ser (Fed 81c4-6) Apegada ao corpo a alma assimila apenas o que eacute

corpoacutereo assumindo algumas caracteriacutesticas dele O que de maneira anaacuteloga eacute dito se

tornar pesada e ser arrastada ao sensiacutevel pelo temor da morte (Fed 81c9) sugere na

verdade a corrupccedilatildeo da natureza da alma devida a ausecircncia da praacutetica do trabalho

intelectual em vista dos inteligiacuteveis (Fed 81c9)

Parece importante mostrar os efeitos negativos desta dominaccedilatildeo do corpo para

enfatizar o modo de vida como o percurso no qual se daacute a depuraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo desta

natureza Como perda do seu caraacuteter se tem anuladas algumas caracteriacutesticas tal como o

uso da racionalidade como jaacute dito e a perda de sua invisibilidade Apoacutes a morte do

corpo as almas ainda muito influenciadas pelo corpoacutereo seratildeo fantasmas que vagaratildeo

em torno dos tuacutemulos podendo assim serem vistas uma vez que compartilham

caracteriacutesticas dele (Fed 81d2) Diferentemente aqueles que conservam as virtudes por

terem o haacutebito de praticaacute-las de algum modo ainda que sem o exerciacutecio da filosofia

188

podem ter um bom destino no poacutes vida136

Note-se que o costume nos termos da praacutetica

e da convivecircncia demonstra o aspecto eacutetico da racionalidade neste intercurso entre

sensiacutevel e inteligiacutevel realizaacutevel pelo pensamento Eacute preciso exercitar a alma a frequentar

o ambiente inteligiacutevel para que possa se preservar e ter um destino compatiacutevel com sua

natureza Dito de outro modo a conduta correta que garante a vida digna e o bom

destino apoacutes a morte depende da preponderacircncia da razatildeo que assegura seu caraacuteter de

ser inteligente e de compartilhar caracteriacutesticas comuns com o domiacutenio invisiacutevel

Conveacutem observar que o diaacutelogo apresenta a conduta como fator determinante na

conservaccedilatildeo da natureza da alma sendo por conta disso o modo de se exercitar

racionalmente um dos pontos importantes a serem abordados a seguir (Fed 81e2)137

A interaccedilatildeo da alma com os inteligiacuteveis realizada que se tem no exerciacutecio

filosoacutefico proporciona um estado duradouro de inteligibilidade cujos efeitos satildeo

prolongados e tecircm reflexos na conduta que o filoacutesofo assume durante a vida e nas

razotildees que fundamentam seu destemor em relaccedilatildeo agrave morte Natildeo constituindo apenas

uma operaccedilatildeo raciocinativa ou de caacutelculo a inteligecircncia consiste na aquisiccedilatildeo das

qualidades dignas de se assemelharem com as essecircncias e com os seres divinos (Εἰο δέ

γε ζεῶλ γέλνο Fed 82b10)

Sugere-se desse modo a elevaccedilatildeo da alma ao grau dos seres superiores

comparaacuteveis agravequeles seres puros e autecircnticos os quais Soacutecrates acredita serem possiacuteveis

de encontrar no melhor destino apoacutes a morte Dado anteriormente como uma capacidade

inteligente da alma de se purificar da negativa influecircncia do corpo o pensar tambeacutem eacute

visto como estado de influecircncia dos inteligiacuteveis (ηὸ πάζεκα) na condiccedilatildeo da alma pura

ou atuando por si mesma (αὐηὴ θαζ αὑηὴλ) isolada do corpo

Cabe ressaltar o papel paradoxal atribuiacutedo ao pensamento no Feacutedon Diante dos

dois movimentos da alma afastamento e aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis a θξόλεζηο

apresenta seu caraacuteter ativo e passivo ao sintetizar o conjunto dos resultados da

identificaccedilatildeo da alma com o domiacutenio suprassensiacutevel ou seja como accedilatildeo de interaccedilatildeo e

136 Fed 82a10-b3 ldquoE dentre estes os mais felizes os mais bem instalados seratildeo ainda os que praticam

essas formas populares e sociaacuteveis de virtude que chamam de temperanccedila e justiccedila ainda que assentes

na forccedila do haacutebito e natildeo na reflexatildeo filosoacutefica (Οὐθνῦλ εὐδαηκνλέζηαηνη ἔθε θαὶ ηνύησλ εἰζὶ θαὶ εἰο

βέιηηζηνλ ηόπνλ ἰόληεο νἱ ηὴλ δεκνηηθὴλ θαὶ πνιηηηθὴλ ἀξεηὴλ ἐπηηεηεδεπθόηεο ἣλ δὴ θαινῦζη

ζσθξνζύλελ ηε θαὶ δηθαηνζύλελ ἐμ ἔζνπο ηε θαὶ κειέηεο γεγνλπῖαλ ἄλεπ θηινζνθίαο ηε θαὶ λνῦ)rdquo

137 Note-se que a natureza inteligente da alma filosoacutefica n‟A Repuacuteblica eacute dada como um dos fatores

decisivos para a escolha e treinamento do futuro governante uma vez que significa aptidatildeo para uma

tarefa (Rep 455b) e demonstra a potencialidade para apreender e se apegar ao belo (476b) enquanto aqui

eacute um fator imprescindiacutevel para a conservaccedilatildeo e restauraccedilatildeo da alma que a filosofia pretende Apesar dos

diferentes contextos estaacute em questatildeo o seu desenvolvimento e a sua preservaccedilatildeo como condiccedilatildeo para

atingir os fins pretendidos o bom governo e a boa morte

189

como os efeitos do reconhecimento deste domiacutenio138

Apesar da estranheza que possa

causar tal afirmaccedilatildeo esse duplo papel eacute o que explica a natureza autocircnoma da alma A

possibilidade de isolamento do que lhe eacute naturalmente adverso como as sensaccedilotildees soacute eacute

possiacutevel por causa dessa faculdade que a eleva a um plano superior e a manteacutem nesse

niacutevel de elevaccedilatildeo onde ele apreende os seres verdadeiros Sua autonomia resulta da

capacidade de interagir com os inteligiacuteveis e de se manter sob influecircncia deles agindo

assim sem o auxiacutelio de outra capacidade e sem se deixar desorientar por algo de outra

ordem Ao mesmo tempo em que se tem uma faculdade tal somente um pensamento

elevado pode assegurar a continuidade da realizaccedilatildeo de sua atividade

Eacute nesses termos que se deve compreender que a alma pura tem o pensamento

igualmente puro influenciado e orientado pelos inteligiacuteveis seres igualmente puros ou

seja de mesma natureza incorpoacuterea e inteligiacutevel O texto acrescenta uma explicaccedilatildeo

acerca do processo de aquisiccedilatildeo do estado excelente do pensamento ao oferecer a sua

constituiccedilatildeo enquanto atividade nessa relaccedilatildeo A descriccedilatildeo do comportamento da alma

nas duas circunstacircncias narradas apresenta o gecircnero da intelecccedilatildeo e dos seus

desdobramentos embora ainda sem se ater agraves especificidades acerca de sua operaccedilatildeo

como vai se dar ao se tratar da dialeacutetica

Vale observar como esse argumento contribui na construccedilatildeo da noccedilatildeo de

excelecircncia do pensamento a partir das questotildees ontoloacutegicas e eacuteticas que se apresentam

O que antes foi dado como pensamento puro termo de empreacutestimo da tradiccedilatildeo recebe

do ιόγνο filosoacutefico suas especificaccedilotildees origem gecircnero objetos e modus operandi

adequado para os fins da cogniccedilatildeo este uacuteltimo tratado com maior detalhe no fim do

diaacutelogo Tais especificaccedilotildees contribuem ateacute aqui para justificar o destemor do filoacutesofo

e sugerir a superioridade de um plano acessiacutevel pelo pensamento que em muito se

identifica com o invisiacutevel e eterno A preservaccedilatildeo de sua natureza ou cuidado da alma

sugere ser a atividade (πξ ηηεηλ Fed 82d5) e o haacutebito (ἔζνο) a condiccedilatildeo para a

felicidade o que no caso do filoacutesofo consiste na vida pautada pelo pensamento

O processo de purificaccedilatildeo ou aquisiccedilatildeo do estado de interaccedilatildeo com as ideias

inteligiacuteveis se daacute como se vecirc em uma eacutetica que encontra seu fundamento na natureza

racional e na atividade de conhecimento desses inteligiacuteveis ao mesmo tempo em que ela

138 Na compreensatildeo de Dixsaut esse ldquoestadordquo ou ldquoafecccedilatildeordquo da psykhe nomeada ldquosaberrdquo tal como

prefere a autora mostra o equiacutevoco em compreender que Platatildeo pergunta o que eacute ser uma ciecircncia uma

ciecircncia constituiacuteda Haacute na verdade o interesse em saber sobre essa relaccedilatildeo entre a alma e os objetos que

a afetam Dixsaut op cit p 145 Este eacute provavelmente o sentido de episteacuteme que encontramos no Feacutedon

a qual deve ser vista como em 79d uma relaccedilatildeo entre a alma e os seres inteligiacuteveis

190

mesma se constitui deste trabalho O filoacutesofo amante do saber do aprendizado potildee-se

com esta praacutetica em condiccedilotildees de atingir o plano superior de seres de gecircnero

identificados ao divino139

ao deixar a filosofia como traz o texto cuidar da alma para

tornaacute-la liberta ou seja natildeo mais submetida ao corpo (Fed 82e) O isolamento da alma

dado nesta postura intelectualista entenda-se que despreza o que natildeo se refere agrave alma e

se dedica agravequilo que se pode tratar apenas pelo intelecto sugere o cuidado de si como

submissatildeo da alma ao pensamento que se daacute sob a forma de convencimento (πείζσ)

(Fed 83a6-b3)

Este ponto ganharaacute foco com a explanaccedilatildeo da dialeacutetica ao final do diaacutelogo e se

mostraraacute importante por expor o meacutetodo do conhecimento e a forma de operar desta

racionalidade defendida ateacute este instante A exposiccedilatildeo que o diaacutelogo aos poucos

ofereceu sobre a θξόλεζηο teve o propoacutesito como se viu de apresentar a partir das

diferenciaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sentidos o gecircnero ao qual pertence e o seu valor para que

fosse possiacutevel fundamentar a noccedilatildeo de imortalidade que o filoacutesofo tem em vista Ao que

parece era importante levantar as questotildees que tocam a natureza da alma para traccedilar seu

perfil corretamente no qual a faculdade inteligente e a inteligecircncia satildeo os elementos sob

os quais cabe maior detalhamento Feitas tais distinccedilotildees o diaacutelogo acentuaraacute o caraacuteter

racionalista desta vida filosoacutefica propondo ao longo do seu desenvolvimento

especificaccedilotildees acerca dos objetos inteligiacuteveis do meacutetodo de aquisiccedilatildeo de tais objetos e

por consequecircncia da operacionalidade deste pensamento em seu modo excelente Todas

as qualificaccedilotildees atribuiacutedas ao inteligiacutevel tal como as provas da imortalidade da alma

passam a ser explicitadas segundo o ιόγνο filosoacutefico o qual ganha uma elaboraccedilatildeo

teacutecnica do meacutetodo filosoacutefico de anaacutelise e construccedilatildeo do discurso abandonando assim

os termos da tradiccedilatildeo

III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico

139 Fed 82b10-c1 ldquoQuanto agrave espeacutecie dos deuses natildeo seraacute permitido o acesso agravequele que natildeo praticou

a filosofia e natildeo se vai daqui totalmente purificado mas somente ao que ama o saber (Εἰο δέ γε ζεῶλ

γέλνο κὴ θηινζνθήζαληη θαὶ παληειῶο θαζαξῷ ἀπηόληη νὐ ζέκηο ἀθηθλεῖζζαη ἀιι ἢ ηῷ θηινκαζεῖ)rdquo

191

A proposta acerca da imortalidade da alma e consequentemente de sua

inteligibilidade eacute analisada segundo a forma cientiacutefica de filosofar A filosofia como

exerciacutecio intelectual aparece a partir de agora natildeo somente nos termos de uma

preparaccedilatildeo para a morte que prevecirc um retorno da alma agrave sua condiccedilatildeo mais autecircntica

ou de uma forma religiosa de obediecircncia ao deus Apolo (Fed 60e-61b) Ela passa a ser

exibida sob a forma da atividade capaz de elaborar instrumentos teoacutericos para a

aquisiccedilatildeo do conhecimento dos seres inteligiacuteveis ao dizer a relaccedilatildeo que a alma mantecircm

com eles (Fed 79d) e para demonstrar a imortalidade O aparato teoacuterico e

metodoloacutegico que Platatildeo elabora mais adiante ao tratar do ιόγνο do meacutetodo e ao

compor a Teoria das Formas colabora para os propoacutesitos do filoacutesofo Deve-se ter em

conta que a intenccedilatildeo de elaborar este aparato indicada no iniacutecio do diaacutelogo na ocasiatildeo

em que Soacutecrates declarava ter composto durante a vida a filosofia por ser justamente

esta a mais alta muacutesica (Fed 60e-61b10) cumpre-se ao especificar no que de fato

consiste e como se daacute essa forma de composiccedilatildeo filosoacutefica e portanto esta ordenaccedilatildeo

intelectual que julga ser superior agrave forma de composiccedilatildeo tradicional

Tem-se com isso a sugestatildeo de uma praacutetica intelectual que nesse contexto

consiste na maneira de compor argumentos140

Dito de outro modo investigar acerca do

meacutetodo filosoacutefico e de seus fundamentos consiste concomitantemente em analisar como

se deve exercer essa atividade intelectual para que ela se torne praticaacutevel no contexto

em que a alma ainda estaacute presa ao corpo ou seja limitada pela condiccedilatildeo de

humanidade

Deve-se notar que tal abordagem acerca da praacutetica filosoacutefica vai ao encontro de

uma questatildeo que surge a partir do que a passagem 79d descreve dado que o estado de

alta inteligecircncia descreve a ligaccedilatildeo do pensamento puro portanto livre do corpo eacute

possiacutevel o conhecimento destes seres na condiccedilatildeo de humanidade na qual a alma ainda

estaacute presa ao corpo A Teoria da Reminiscecircncia mostrou que sim No entanto vale

140 O sonho que visitou Soacutecrates vaacuterias vezes ao longo da vida pedia ao filoacutesofo que fizesse e praticasse

a arte das musas a musikeacute O filoacutesofo obedeceria mais uma vez a ordem do deus como fez durante toda a

vida mas atraveacutes da filosofia a mais alta muacutesica Ao identificar de algum modo a filosofia agrave musike o

diaacutelogo propotildee uma nova definiccedilatildeo para ambos No sonho a muacutesica natildeo aparece somente sob a forma de

mensagem divina tal como define a tradiccedilatildeo mas como exerciacutecio de ldquocompor e praticar a muacutesicardquo (60e-

61b10) A mensagem ganha uma interpretaccedilatildeo racionalista ao ser equiparada agrave filosofia sendo a muacutesica

ao que tudo indica uma espeacutecie de ordenaccedilatildeo segundo a racionalidade que subsidia o exerciacutecio da

filosofia Apesar disso a filosofia se distingue da muacutesica ao criar loacutegoi enquanto que a poesia cria

mythoi e nisso reside a superioridade da atividade filosoacutefica Vale observar que a sugestatildeo do exerciacutecio

filosoacutefico como ordenaccedilatildeo e portanto como trabalho intelectual que Soacutecrates faz no iniacutecio do diaacutelogo

agora se torna especiacutefica por meio da elaboraccedilatildeo da Teoria das Formas e do meacutetodo os quais conferem

caraacuteter cientiacutefico agrave filosofia

192

observar que o tema da imortalidade visto agrave luz dos infortuacutenios e limites da condiccedilatildeo da

alma presa ao corpo encontra na elaboraccedilatildeo do ιόγνο o caminho Assim uma pesquisa

sobre o discurso filosoacutefico no que concerne ao conhecimento e a possibilidade de dizer

as coisas em sua forma inteligiacutevel e portanto autecircntica parece parte do exerciacutecio e um

dos propoacutesitos da investigaccedilatildeo

Este terceiro movimento do Feacutedon propotildee uma reflexatildeo sobre a plausibilidade

das teses defendidas ateacute aqui como construtos do intelecto de modo a atestar mais uma

vez sua legitimidade como o uacutenico meio adequado para tal tarefa Uma vez realizadas

as devidas distinccedilotildees entre alma e corpo sensaccedilotildees e intelecto o empenho de agora em

diante consiste em demonstrar a capacidade do intelecto e a legitimaccedilatildeo de seus

instrumentos Assim os argumentos seguintes oferecem em certa medida um parecer

criacutetico e analiacutetico sobre os feitos que se referem agrave racionalidade e ao gecircnero

suprassensiacutevel sugeridos pela noccedilatildeo de θξόλεζηο tal qual o diaacutelogo propotildee141

O exerciacutecio racional da filosofia dado ateacute entatildeo nos termos de uma postura

intelectualista passa a ser exposto no registro de uma concepccedilatildeo de ciecircncia a partir da

qual a capacidade cognitiva seraacute o ponto de intersecccedilatildeo entre os temas do diaacutelogo A

postura do filoacutesofo de se desligar do que concerne ao corpo como as paixotildees (αὐηὴλ

παξαδηδόλαη ηαῖο ἡδνλαῖο Fed 84a4) eacute dada como o resultado do caacutelculo (ινγηζκόο) da

orientaccedilatildeo da razatildeo O refuacutegio nas essecircncias que se daacute por meio do ιόγνο anteriormente

sugerido para o prosseguimento da investigaccedilatildeo (Fed 79d1) eacute visto sob duas

perspectivas tomado como conduta durante a vida tem por finalidade a libertaccedilatildeo dos

males que afetam a alma na condiccedilatildeo de humanidade como postura gnosioloacutegica tem

como consequecircncia a aquisiccedilatildeo dos seres do que eacute verdadeiro e divino e o retorno agrave

natureza inteligiacutevel (Fed 86a7-b3)

O paralelismo entre conduta moral e aquisiccedilatildeo do conhecimento lanccedila luz a

questotildees acerca da veracidade do argumento e portanto acerca da operacionalidade e

do alcance da inteligecircncia Parece pertinente que a forma do discurso como trabalho da

inteligecircncia deva ter a sua capacidade de persuasatildeo posta de modo indubitaacutevel para que

a tese defendida e explanada a da imortalidade seja comprovada e aceita e o medo do

141 Conceber esta uacuteltima parte do diaacutelogo a qual traz a Teoria das ideias e o meacutetodo hipoteacutetico como

uma explicaccedilatildeo da primeira parte eacute uma leitura aceita para alguns comentadores Chen entender a

explicaccedilatildeo acerca do logos e a sua demonstraccedilatildeo na prova final da imortalidade uma exemplificaccedilatildeo do

treino para a morte dita no iniacutecio do texto Ele explica que apesar de parecer uma afirmaccedilatildeo ldquofantaacutesticardquo

jaacute que tal relaccedilatildeo natildeo eacute dada textualmente pode-se fazer esta associaccedilatildeo porque o exerciacutecio para a morte

que consiste na filosofia se realiza no meacutetodo das hipoacuteteses utilizada para provar a imortalidade da alma

Chen op cit p 30 nota 13

193

fim seja finalmente dissipado Em outras palavras como aspecto formal de uma

racionalidade que fundamenta um modo de vida e explica a morte o ιόγνο filosoacutefico

deve igualmente passar por um exame para que as teses que satildeo por ele explicadas

tenham validade

31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο

Vale a pena expor brevemente os dois argumentos que expotildeem a fragilidade de

uma concepccedilatildeo fisicalista da alma no que se refere a uma prova da imortalidade Eacute

pertinente levantar as caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo a partir das duacutevidas dos

interlocutores de Soacutecrates como contraponto ao que se pretende defender sobre o

discurso filosoacutefico como a forma do trabalho inteligiacutevel A argumentaccedilatildeo que

apresentou a proposiccedilatildeo da alma como ser indestrutiacutevel parece natildeo ter sido inteiramente

aceita (Fed 84c) apoacutes serem dadas as principais abordagens sobre ela Siacutemias questiona

acerca da possibilidade do conhecimento da imortalidade dadas as condiccedilotildees que a vida

humana oferece e a partir disso a validade da argumentaccedilatildeo filosoacutefica O argumento

anterior parece natildeo ter sido capaz de convencer o interlocutor de Soacutecrates que natildeo

pretende abandonar a investigaccedilatildeo apesar de reconhecer as dificuldades Para Siacutemias o

exerciacutecio de investigar se mostra carente de uma base minimamente soacutelida sob a qual

seja possiacutevel construir o discurso e assim constituir algum conhecimento na medida do

que for possiacutevel sobre a imortalidade O risco nesse sentido estaacute justamente em se

lanccedilar em uma experiecircncia que ateacute o momento se mostra destituiacuteda de um fundamento

ldquo() - Vou pois expor-te as minhas duacutevidas e outro tanto faraacute

o nosso Cebes explicando em que aspecto rejeito a tua argumentaccedilatildeo

(θαὶ ἐγώ ηέ ζνη ἐξῶ ὃ ἀπνξῶ θαὶ αὖ ὅδε ᾗ νὐθ ἀπνδέρεηαη ηὰ

εἰξεκέλα) Por mim Soacutecrates acho como talvez tambeacutem tu que um

conhecimento exato nesse tipo de mateacuterias eacute ou impossiacutevel ou

extremamente difiacutecil de adquirir em vida mas por outro lado natildeo

criticar em todos os seus aspectos as afirmaccedilotildees que nesse domiacutenio se

produzem ou renunciar a fazecirc-lo antes de ter esgotado todas as

possibilidades de exame (ἐιέγρεηλ) eacute bem sinal de fraqueza de

espiacuterito (πάλπ καιζαθνῦ εἶλαη ἀλδξόο) Ora nesse campo as

perspectivas que temos satildeo estas aprendermos a verdade de outrem

194

ou descobri-la noacutes ou ainda caso qualquer destas hipoacuteteses seja

inviaacutevel escolhermos dentre as doutrinas humanas a que nos

parecer melhor (βέιηηζηνλ ηῶλ ἀλζξσπίλσλ ιόγσλ) e menos faliacutevel

(εἰ κή ηηο δύλαηην ἀζθαιέζηεξνλ θαὶ ἀθηλδπλόηεξνλ) e como em

jangada arriscar nela a travessia da vida ndash a menos claro que se

consiga com maior seguranccedila e ausecircncia de risco embarcar em

transporte mais soacutelido do que este quero dizer uma doutrina

revelada (ιόγνπ ζείνπ ηηλόο) ()rdquo (Fed 85c1- d3)

Um ιόγνο sobre a imortalidade natildeo eacute possiacutevel sem que haja o trabalho do

pensamento filosoacutefico Mesmo diante da aparente falta de fundamento da pesquisa ao

modo da filosofia e da incerteza quanto aos resultados o discurso que se baseia na

natureza inteligente da alma e por isso na legitimidade das faculdades intelectuais

mostram-se a alternativa mais indicada para a investigaccedilatildeo As razotildees de prosseguir na

investigaccedilatildeo apesar da sua possiacutevel falibilidade potildee a dimensatildeo da limitaccedilatildeo do

pensamento ao explicar o sentido da persistecircncia em tal empresa Parece incontestaacutevel o

trabalho racional que a alma realiza mesmo em condiccedilatildeo hostil ou seja presa ao corpo

Parece vaacutelido que agrave filosofia cabe aprender descobrir (καζεῖλ εὑξεῖλ Fed 85c7) e

buscar o melhor discurso sobre a imortalidade mesmo que se admita a impossibilidade

de conhecer algo sobre o plano suprassensiacutevel em vida humana

Nesse sentido tem-se em vista a κάζεζηο e o que foi sugerido sobre o

conhecimento dos seres verdadeiros tal como mostrou a reminiscecircncia ao se aceitar

como via possiacutevel a busca a partir da proacutepria alma Do mesmo modo o impasse que se

mostra agora natildeo tira do horizonte da investigaccedilatildeo a proposta do conhecimento a partir

desta natureza inteligente e incorpoacuterea haacute pouco defendida da qual a alma se filia

Parece pertinente assim admitir ser o que resulta deste ιόγνο uma descoberta (εὑξεῖλ) e

ser correta a recusa de discursos jaacute estabelecidos sobre a alma e sobre sua natureza

Fraacutegil como a travessia em uma jangada o conhecimento em condiccedilotildees de humanidade

natildeo pode assertivamente dizer o destino da alma apoacutes a morte do corpo entretanto

parece mais razoaacutevel ter o ιόγνο como meio e o pensamento como condutor da pesquisa

Cabe notar que dada a precariedade de qualquer discurso humano sobre o que se

refere ao post-mortem o filoacutesofo se vecirc descomprometido com o acerto mas

comprometido em fazecirc-lo e fazecirc-lo bem lanccedilando sobre ele um minucioso e profundo

exame O receio relaccedilatildeo agrave morte que impedia os interlocutores de Soacutecrates de

persistirem na investigaccedilatildeo sobre a imortalidade (Fed 84d) se mostra assim descabido

sendo a via da racionalidade pela filosofia a que se mostra mais plausiacutevel A

195

superioridade que se pretende atribuir agrave especificidade do discurso filosoacutefico em

comparaccedilatildeo aos outros se restringe ao fato de constituir tambeacutem um autoexame o qual

sugere ao filoacutesofo a noccedilatildeo de sua verdadeira capacidade de cogniccedilatildeo A inquiriccedilatildeo

acerca da natureza da alma e assim do pensamento conduz incontornavelmente a

questionamentos relativos ao seu alcance e modo de operar chamando atenccedilatildeo para o

meacutetodo atraveacutes do qual eacute possiacutevel o conhecimento

Esse instante que serve como interluacutedio inaugura a nova perspectiva sob a qual a

imortalidade da alma seraacute tratada Ateacute agora o diaacutelogo destacou a alma na condiccedilatildeo da

humanidade e em relaccedilatildeo a um plano considerado superior ou seja em relaccedilatildeo ao plano

inteligiacutevel e ao plano da divindade As consideraccedilotildees acerca do pensamento foram

realizadas desse modo a partir desta relaccedilatildeo a qual apontou seu papel como faculdade

da alma seu gecircnero e qualidades mas que no entanto natildeo apresentaram maiores

especificaccedilotildees que demonstrassem a sua legitimidade Ao questionar sobre a validade

do discurso o texto potildee mais uma vez a questatildeo que se liga crucialmente agrave legitimidade

do trabalho racional a natureza imortal da alma que passa a ser examinada com

elementos da filosofia ou seja por meio do meacutetodo filosoacutefico

As duacutevidas acerca do pensamento recebem tratamento na revisatildeo da tese da

indestrutibilidade da alma nos dois proacuteximos argumentos142

O diaacutelogo contrapotildee agrave

pertinecircncia da pesquisa filosoacutefica o medo da morte amparado pela noccedilatildeo de alma que

os interlocutores de Soacutecrates possuem143

O discurso acerca da imortalidade defendido

142 Michael Ferejohn faz um comentaacuterio acerca da postura de Soacutecrates que pode justificar os argumentos

nos quais se potildee agrave prova as concepccedilotildees de seus interlocutores ldquoOs primeiros diaacutelogos bem como o

Meacutenon foram escritos do que podemos chamar perspectiva ldquosocraacuteticardquo isto eacute do ponto de vista de um

inquiridor criacutetico que reconhece que ele proacuteprio natildeo possui conhecimento genuiacuteno e entatildeo se potildee a

descobrir se algueacutem em seu torno estaacute em melhor posiccedilatildeo do que ele a este respeito () Por contraste o

que chamo de ldquoperspectiva socraacuteticardquo e com ela o requerimento de explicaccedilatildeo do conhecimento eacute muito

evidente no Feacutedon ()ldquo Ferejohn M ldquoO Conhecimento e as Formas em Platatildeordquo in Platatildeo (Benson H e

col Org) Porto Alegre Artmed 2011 p 152 A necessidade de testar as proposiccedilotildees conforme sugeriraacute o

meacutetodo hipoteacutetico mais adiante aparece demonstrada nessa exposiccedilatildeo do erro dos discursos dos

interlocutores Assim uma defesa da tese filosoacutefica da imortalidade exigiraacute tambeacutem que seja posta agrave

prova demonstrando concomitantemente assim a atividade da razatildeo e a validade de seu trabalho

143 Siacutemias e Cebes pertenciam agrave escola pitagoacuterica e eram ouvintes de Filolau de Crotona Esse uacuteltimo se

estabeleceu em Tebas em meados do seacuteculo V quando tinha por volta de cinquumlenta anos e teve contato

com os disciacutepulos de Pitaacutegoras Guardini R La Mort de Socrate Editions du Seuil p 142 A visatildeo da

alma como uma harmonia pelos pitagoacutericos eacute criticada no Feacutedon (85c-86e) Platatildeo constata nessa

identificaccedilatildeo a concepccedilatildeo de alma como um elemento corpoacutereo o qual natildeo escaparaacute agrave aniquilaccedilatildeo com a

morte Evidentemente natildeo se deve pensar que o diaacutelogo consiste em uma criacutetica agrave teoria da alma segundo

o pitagorismo ou segundo os misteacuterios mas eacute notaacutevel que ele natildeo ignora tal doutrina considerando-a um

bom ponto de partida para a concepccedilatildeo filosoacutefica de alma que pretende formular Temas como a

imortalidade e transmigraccedilatildeo presentes no diaacutelogo satildeo comuns aos pitagoacutericos e ganham

gradativamente no desenrolar da narrativa os contornos filosoacuteficos tais como Platatildeo os concebe Deste

modo o argumento presente mostra os pontos da visatildeo pitagoacuterica que se mostram incompatiacuteveis com a

alma inteligiacutevel e imortal do Feacutedon Os personagens que dialogam com Soacutecrates na investigaccedilatildeo acerca

196

pelo filoacutesofo ateacute entatildeo esbarra em uma concepccedilatildeo de alma ao modelo do corpoacutereo no

qual a destruiccedilatildeo e o fim satildeo as visotildees que se tem da morte e o medo um sentimento

inevitaacutevel Para expor o ponto de insuficiecircncia (νὐρ ἱθαλῶο Fed 85e2) do discurso

filosoacutefico tal como entendem os interlocutores o diaacutelogo retoma o exemplo da lira

(Fed 73d seg) dando a ele um tratamento diferente dada a nova dificuldade que se

coloca A explicaccedilatildeo de Siacutemias sobre a harmonia mostra a parcial concordacircncia acerca

das distinccedilotildees entre duas naturezas sensiacutevel e inteligiacutevel tal como o filoacutesofo propocircs

Para ele parece compreensiacutevel que a lira enquanto objeto fiacutesico composto de outros

artefatos como as cordas e a madeira seja identificado ao que eacute por natureza destrutiacutevel

terreno composto e mortal A harmonia144

por sua vez eacute incorpoacuterea invisiacutevel e

portanto imortal O interlocutor supotildee diante disso que se o instrumento for destruiacutedo

tiver as cordas dilaceradas e a madeira quebrada de modo algum a lira existiria jaacute que

os elementos fiacutesicos que a compotildeem satildeo destruiacutedos Entretanto segundo o raciociacutenio

proposto pelo filoacutesofo a harmonia permanece dada a natureza atribuiacuteda a ela ou seja

existe ainda assim natildeo perecendo com o fim do instrumento (Fed 85e-86b4)

Surge no entanto o que parece uma dificuldade para o interlocutor O discurso

tradicional descreve a alma nos termos de uma composiccedilatildeo e de uma harmonia de

elementos do corpo misturados com proporccedilatildeo (Fed 86b9-c2) Sendo ela mesma um

tipo de harmonia a tensatildeo e coesatildeo dos elementos fiacutesicos como a temperatura tem

influecircncia havendo assim uma dependecircncia do corpo para se manter harmocircnica e satilde

A exemplo da lira a alma precisa do equiliacutebrio dos elementos do corpo para ser tal

como uma harmonia podendo ser corrompida pela doenccedila e outros males o que

demonstra segundo esse argumento sua possiacutevel destrutibilidade (Fed 86c2-7) A

morte seria portanto a decomposiccedilatildeo desta harmonia e o fim da alma (Fed 86d2)

Do mesmo modo Cebes parece incapaz de conceber algo que natildeo seja ao

modelo do corpoacutereo demonstrando com isso suas dificuldades em seguir e reconstituir

uma argumentaccedilatildeo nos termos da filosofia Ele se diz satisfeito com o discurso do

filoacutesofo (πάλπ ἱθαλῶο ἀπνδεδεῖρζαη Fed 87a3) no que se refere agrave vida da alma antes de

estar na condiccedilatildeo de humanidade (Fed 87a1-4) Todavia considera insuficiente a

demonstraccedilatildeo no que toca a permanecircncia (ζώδσ) da alma apoacutes a morte do corpo Ao

comparar a durabilidade da alma do tecelatildeo ao manto que o veste Cebes demonstra o

da imortalidade representam o contraponto agrave concepccedilatildeo que Platatildeo tem sobre a alma a qual ele se esforccedila

mais uma vez em demonstrar que eacute distinta do corpo

144 A harmonia aqui deve ser pensada como o que hoje chamamos de afinaccedilatildeo conf nota 51 de M T

Schiappa de Azevedo

197

equiacutevoco de um raciociacutenio que busca ter provas da imortalidade a partir da parte mais

fraacutegil o corpo e os objetos corpoacutereos Uma afirmaccedilatildeo baseada no argumento do filoacutesofo

natildeo hesitaria em dizer a sobrevivecircncia da alma que resiste ao perecimento do corpo e do

manto que o cobria No entanto Cebes tem a intenccedilatildeo de demonstrar a durabilidade do

homem tendo como prova o manto que o vestia (Fed 87b4-c6) e a durabilidade da alma

tendo como prova a durabilidade do corpo Se a parte mais vulneraacutevel se encontra

preservada o homem e entatildeo a alma de gecircnero supostamente mais resistente

sobreviveu (Fed 87c6-d3)

O que se demonstra na verdade com esta uacuteltima argumentaccedilatildeo eacute a

incompreensatildeo dos interlocutores natildeo somente sobre o discurso filosoacutefico mas sobre a

tese que se propotildee Parece evidente ao mesmo tempo que Siacutemias natildeo distingue entre a

harmonia nos termos de uma noccedilatildeo apreensiacutevel pelo intelecto e uma relaccedilatildeo bem

equacionada entre elementos como ocorre na muacutesica natildeo conseguindo acompanhar o

exerciacutecio de intelecccedilatildeo que a investigaccedilatildeo exige Do mesmo modo o raciociacutenio

equivocado de Cebes em pretender demonstrar o perecimento da alma demonstra a sua

incompreensatildeo no que se refere agrave distinccedilatildeo de gecircneros A falta de entendimento acerca

da natureza inteligiacutevel da alma conforme as duas objeccedilotildees resultou na descrenccedila sobre

a imortalidade e sobre o alcance do exerciacutecio filosoacutefico Ao tomar a alma como o

resultado da composiccedilatildeo de elementos fiacutesicos que se relacionam entre si Siacutemias

transfere para o corpo a funccedilatildeo de oferecer indiacutecios da natureza e da sobrevivecircncia dela

A consequecircncia deste argumento despoja o pensamento de seu papel de testemunhar a

suposta permanecircncia da alma ficando o trabalho do ιόγνο nesse contexto sem qualquer

fundamento De modo semelhante a visatildeo da alma tal como descreveu Cebes

vulneraacutevel em relaccedilatildeo aos corpos a destitui de toda potecircncia inteligente e portanto da

capacidade de oferecer um discurso apoiado em uma natureza incorpoacuterea para supor o

poacutes-morte

ldquoE o momento exato em que essa morte essa separaccedilatildeo do

corpo acarreta consigo o aniquilamento da alma (argumentaria) eacute o

que ningueacutem sabe ao certo pois natildeo estaacute ao alcance de nenhum de

noacutes pressenti-lo (ἀδύλαηνλ γὰξ εἶλαη ὁηῳνῦλ αἰζζέζζαη ἡκῶλ) Por

isso mesmo quando um homem encara confiadamente a morte essa

confianccedila natildeo tem em princiacutepio razatildeo de ser (ἀλνήησο ζαξξεῖλ) a

menos que consiga demonstrar que a alma eacute de todos os modos

imortal e impereciacutevel (ὃο ἂλ κὴ ἔρῃ ἀπνδεῖμαη ὅηη ἔζηη ςπρὴ

παληάπαζηλ ἀζάλαηόλ ηε θαὶ ἀλώιεζξνλ)rdquo (Fed 88b2-6)

198

As dificuldades de compreensatildeo acerca do discurso do filoacutesofo que mostraram

as questotildees dos ouvintes satildeo uacuteteis porque expotildee o que eacute preciso para melhor

compreender os fundamentos e a construccedilatildeo do logos filosoacutefico Para isso conveacutem

questionar acerca dos motivos de Platatildeo para retomar esses exemplos dessa maneira

sendo a primeira sugestatildeo sua intenccedilatildeo de pocircr em evidecircncia os problemas acerca da

natureza da alma para em seguida reformulaacute-la segundo o meacutetodo que pretende

desenvolver Assim exibe duas argumentaccedilotildees que expotildeem a perspectiva de uma

concepccedilatildeo fisicalista de modo a deixarem evidentes as fragilidades desta concepccedilatildeo

para depois objetaacute-la Com isso ressalta a principal distinccedilatildeo entre esta teoria e a que

pretende propor tanto em termos conceituais quanto metodoloacutegicos Ao que parece tatildeo

importante quanto demonstrar a natureza incorpoacuterea da alma eacute conseguir demonstrar e

testar um discurso com bases seguras capaz de investigar e fazer suposiccedilotildees razoaacuteveis a

respeito de sua imortalidade

32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο

Cabe analisar a defesa do ιόγνο filosoacutefico que o diaacutelogo apresenta antes de dar o

discurso que demonstra a natureza incorpoacuterea da alma e a partir disso a capacidade do

intelecto segundo o meacutetodo e preceitos estritamente filosoacuteficos Diante da descrenccedila que

se instalou apoacutes as duas objeccedilotildees (ἀπηζηία Fed 84d2) as quais desacreditavam na

capacidade do discurso (Fed 88c) pareceu necessaacuterio ao filoacutesofo definir o lugar do

ιόγνο na investigaccedilatildeo de modo a distingui-lo como recurso da inteligecircncia A primeira

caracteriacutestica conferida a ele cabe notar diz respeito agrave identificaccedilatildeo com a humanidade

Recusar o discurso mais precisamente a sua praacutetica seria o mesmo que recusar e nutrir

aversatildeo ao homem Ao equivaler a misantropia agrave misologia o texto sugere ser o ιόγνο o

trabalho caracteriacutestico e portanto possiacutevel da alma no estado de humanidade ndash ldquo()

De fato natildeo haacute coisa pior para um homem do que ganhar aversatildeo pelos argumentos

ora pelo que toca agrave sua origem a misologia natildeo difere da misantropia ()rdquo (Fed

89d2) Tal afirmaccedilatildeo cabe observar resume o que se propocircs acerca da atividade

racional durante o diaacutelogo e de modo mais contundente o que se tinha em questatildeo nas

duas uacuteltimas objeccedilotildees a humanidade estaacute identificada agrave capacidade racional da qual o

199

ιόγνο constitui um recurso formal As questotildees acerca da imortalidade tem no fundo

esta identificaccedilatildeo posta agora em relevo problematizando nesse instante o uso das

capacidades intelectuais individualmente ou seja lanccedilando luz agrave inteligecircncia natildeo

somente em termos de gecircnero mas tambeacutem como instrumento atraveacutes do qual se

demonstra um grau da experiecircncia inteligente

Tal abordagem da inteligecircncia eacute corroborada pela explicaccedilatildeo que se segue sobre

a origem da aversatildeo aos argumentos e ao homem O oacutedio aos homens segundo o texto

surge do desapontamento da confianccedila excessiva depositada em algueacutem A decepccedilatildeo

causa a desconfianccedila que se estende a todos e o julgamento precipitado de que todos

satildeo peacuterfidos (Fed 89d3-e3) Este caso constitui um exemplo de inabilidade nas relaccedilotildees

humanas que serve para ilustrar a diferenciaccedilatildeo moral e em uacuteltima instacircncia de alcance

intelectual entre os homens A inabilidade estaacute em natildeo considerar que a maioria dos

homens esteja em um grau intermediaacuterio entre o completamente bom e o

completamente ruim os quais satildeo casos raros natildeo sendo difiacutecil tal situaccedilatildeo de

desapontamento acontecer A maioria ou seja a situaccedilatildeo mais comum entre os

indiviacuteduos e tambeacutem entre as qualidades eacute a mediana (Fed 90a8-11) O niacutevel mais

alto o qual sugestivamente o filoacutesofo ocupa eacute acessiacutevel apenas para poucos (Fed

90b1)

ldquo() Pois se soubesse lidar com eles suponho consideraria por

certo como eacute o caso que os homens radicalmente bons ou maus satildeo

em nuacutemero reduzidiacutessimo e que a grande maioria estaacute num grau

intermediaacuterio (ὥζπεξ ἔρεη νὕησο ἂλ ἡγήζαην ηνὺο κὲλ ρξεζηνὺο θαὶ

πνλεξνὺο ζθόδξα ὀιίγνπο εἶλαη ἑθαηέξνπο ηνὺο δὲ κεηαμὺ

πιείζηνπο)rdquo (Fed 90a1-3)

A criacutetica se dirige vale notar a quem profere um julgamento A semelhanccedila

entre os homens e os discursos estaacute em poder ser arbitraacuterio ou seja tanto o homem

quanto os argumentos podem estar baseado ou natildeo na razatildeo No que se refere ao

discurso esse eacute tratado nesse caso como mera produccedilatildeo em um jogo de proacute e contra no

qual se atribui valor de verdade ou de falsidade tal como parece acontecer na eriacutestica e

retoacuterica Tal postura diante da razatildeo descreve o alcance cognitivo mediano da maioria e

representa por que natildeo dizer o trabalho racional em um niacutevel mediacuteocre A descrenccedila

no ιόγνο surge desse uso inaacutebil que o coloca como uma forma de convencimento e uma

200

disputa de teses (Fed 91a3) desprovida de um fundamento que o valide e que ofereccedila

seus resultados como algo confiaacutevel145

Com um discurso ora confiaacutevel ora natildeo o natildeo

filoacutesofo demonstra desconhecer a natureza e o uso adequado do ιόγνο natildeo sendo capaz

de identificar no que de fato o discurso deve estar baseado e como proceder

corretamente em relaccedilatildeo a ele

Nesse sentido seria um equiacutevoco atribuir o desconhecimento acerca da

imortalidade da alma agrave forma discursiva da razatildeo que como tal oferece a possibilidade

de conhecer a verdade dos seres da qual o retor permanece privado146

A maneira

sofiacutestica de uso do ιόγνο eacute incapaz de apreender o que pode haver de firme e verdadeiro

em um discurso sendo os homens que o utilizam equivocadamente responsaacuteveis pelo

insucesso em uma argumentaccedilatildeo (Fed 90c8-d7) Dito de outro modo o problema natildeo

satildeo os argumentos mas o uso inadequado e a capacidade discursiva dos homens que

em sua maioria eacute mediana (Fed 90d9-e3)

O uso do discurso pelo filoacutesofo na iminecircncia da morte estaacute norteado pela

verdade e amparado na convicccedilatildeo (Fed 91a9) Esta pode parecer uma afirmaccedilatildeo

destoante da criacutetica feita haacute pouco ao uso sofiacutestico do discurso jaacute que nesse caso natildeo

havia para eles uma base soacutelida e segura Todavia conveacutem observar que tal convicccedilatildeo

se fia na confianccedila que ele atribui ao correto uso do ιόγνο Trata-se ao que parece de

uma crenccedila oriunda da persuasatildeo do proacuteprio ιόγνο filosoacutefico a qual tem a ἀιεζήο como

fator de convencimento (Fed 91b8-c3) O teor de incerteza quanto aos resultados do

ιόγνο tanto no discurso retoacuterico quanto no filosoacutefico deve-se notar natildeo confere ao

discurso como pretende a filosofia um caraacuteter de doutrina ou revelaccedilatildeo de um misteacuterio

como se tem na tradiccedilatildeo O filoacutesofo estaacute descomprometido em anunciar uma verdade de

modo categoacuterico pois sua aspiraccedilatildeo deve se voltar para o plano especulativo no qual se

verifica as possibilidades de dizer sobre a morte por meio de certo tipo de anaacutelise em

torno da natureza da alma Nesse sentido a pesquisa filosoacutefica se mostra muito mais

145 Fed 90b6-c3 ldquoNa verdade eacute noutro aspecto que falo de semelhanccedila quando por exemplo uma

pessoa sem qualquer experiecircncia de argumentos toma por verdadeiro o primeiro que lhe aparece para

pouco depois o reputar de falso (quantas vezes com razatildeo mas quantas vezes sem ela) e assim

sucessivamente com outro e com outro (ᾗ ἐπεηδάλ ηηο πηζηεύζῃ ιόγῳ ηηλὶ ἀιεζεῖ εἶλαη ἄλεπ ηο πεξὶ ηνὺο

ιόγνπο ηέρλεο θἄπεηηα ὀιίγνλ ὕζηεξνλ αὐηῷ δόμῃ ςεπδὴο εἶλαη ἐλίνηε κὲλ ὤλ ἐλίνηε δ νὐθ ὤλ θαὶ

αὖζηο ἕηεξνο θαὶ ἕηεξνο) E tal eacute em especial o caso dos que passam a vida a argumentar proacute e contra

bem sabes como por fim se convencem de terem atingido o cume da sabedoria de serem os uacutenicos a

concluir que nada de satildeo e de seguro haacute nas coisas como nos argumentosrdquo

146 Fed 90d ldquo() seria caso para lamentar que havendo um argumento verdadeiro soacutelido e acessiacutevel

ao entendimento o simples fato de parecer associado a tais que embora permaneccedilam os mesmos tanto

passam por verdadeiros como natildeo servisse de pretexto a qualquer um para natildeo ter de acusar a si e agrave sua

ignoracircncia () privando-se assim de conhecer a verdade dos seres (ηῶλ δὲ ὄλησλ ηο ἀιεζείαο ηε θαὶ

ἐπηζηήκεο ζηεξεζείε)rdquo

201

valiosa ao colocar como se daacute a partir de agora as regras para o uso do ιόγνο e apontar

os caminhos mais seguros para uma investigaccedilatildeo

As recomendaccedilotildees acerca do uso filosoacutefico da razatildeo natildeo tardam A resposta agraves

objeccedilotildees lanccediladas agrave argumentaccedilatildeo filosoacutefica mostra as diferenccedilas entre os discursos e o

erro da tese que concebe a alma como harmonia Uma vez aceita a Teoria da

Reminiscecircncia pelos interlocutores (Fed 91e) deve-se avaliar as teses que apostam na

destruiccedilatildeo da alma por concebecirc-la de alguma maneira como algo corpoacutereo Ao iniciar

a refutaccedilatildeo o filoacutesofo potildee em questatildeo a compatibilidade entre as duas teses Parece

haver um conflito em admitir uma existecircncia anterior agrave vivecircncia em um corpo e supor

uma alma ao modo corpoacutereo que necessita dele para ser como tal harmocircnica ou tem

um fim por ser ela mesma desgastada

ldquo() se persistires nessa convicccedilatildeo (δόμαη) de que a harmonia eacute

algo de compoacutesito (ζπγθεηκέλε) e a nossa alma uma harmonia

resultante de elementos do corpo em tensatildeo de certo natildeo aceitaraacutes

nem dito por ti mesmo (νὐ γάξ πνπ ἀπνδέμῃ γε ζαπηνῦ ιέγνληνο) que

sendo a harmonia algo de compoacutesito possa algum dia ter existido

antes desses mesmos elementos que a deveratildeo constituir ou seraacute que

aceitasrdquo (Fed 92a6-b2)

Dado que a harmonia depende da lira e da tensatildeo das cordas para ser enquanto

tal ela natildeo poderia existir antes do instrumento que a produz mostrando ser a

concepccedilatildeo da alma como uma composiccedilatildeo harmocircnica desse modo insustentaacutevel (Fed

92b4-c3) O filoacutesofo conduz a objeccedilatildeo de modo a equiparar cabe notar uma capacidade

inteligente da alma agrave noccedilatildeo de harmonia ldquo() por qual das ideias te decides (αἱξῆ ηῶλ

ιόγσλ) a de que a aprendizagem (ηὴλ κάζεζηλ) eacute uma reminiscecircncia ou a de que eacute

uma harmoniardquo (Fed 92c8-10) Essa comparaccedilatildeo ajusta o raciociacutenio da refutaccedilatildeo em

andamento agrave concepccedilatildeo de alma que o filoacutesofo defende e mostra o aspecto em relevo

para as assertivas acerca do trabalho argumentativo Parece ser mais uacutetil ao argumento

abordar a alma por meio de seu caraacuteter inteligente para contrapor a uma noccedilatildeo que

deve-se observar varia ao apresentar um aspecto formal e um aspecto conceitual Eacute

possiacutevel compreender a harmonia como fez Siacutemias nos termos de uma composiccedilatildeo

oriunda do instrumento musical ao mesmo tempo em que se pode abordaacute-la nos termos

de uma concepccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo como quer o filoacutesofo Importa opor algo uno e

imutaacutevel a algo que aceita ser tomado com a ambiguidade para mostrar que a alma eacute

concebida erroneamente quando vista com ambiguidade ora composta e sensiacutevel ora

202

preacute-existente e inteligiacutevel e que um discurso deste tipo eacute invaacutelido Ao propor essa

dicotomia com a sugestatildeo da alma harmonia o diaacutelogo tem em mira expor a inabilidade

de estabelecer relaccedilotildees entre elementos do mesmo gecircnero tal como se deu nos outros

tipos de argumentaccedilatildeo Em outras palavras falta aos demais discursos compreenderem

a diferenccedila entre os domiacutenios e aceitar como procedimento estabelecer relaccedilatildeo entre

elementos inteligiacuteveis

Tal deficiecircncia eacute logo compreendida por Siacutemias que admite no que se baseiam

os argumentos natildeo-filosoacuteficos na verossimilhanccedila (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ εὐπξεπείαο)

A origem do engano do discurso sofiacutestico satildeo as aparecircncias que constituem de fato um

fundamento incerto por permitirem apenas uma argumentaccedilatildeo plausiacutevel A partir de

uma base desta natureza tem-se uma opiniatildeo que natildeo enuncia algum conhecimento

sobre a alma e sobre a morte

ldquo- De longe pela primeira Soacutecrates Quanto agrave uacuteltima nada

tenho na realidade a abonaacute-la baseei-me tatildeo soacute numa

verossimilhanccedila numa plausibilidade formal (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ

εὐπξεπείαο) que eacute com certeza a origem dessa convicccedilatildeo na maior

parte dos homens Mas eu proacuteprio sei por experiecircncia quatildeo falazes

satildeo essas demonstraccedilotildees fabricadas a partir de meras

verossimilhanccedilas (ἐγὼ δὲ ηνῖο δηὰ ηῶλ εἰθόησλ ηὰο ἀπνδείμεηο

πνηνπκέλνηο ιόγνηο ζύλνηδα νὖζηλ ἀιαδόζηλ) e a que erros

(ἐμαπαηῶζη) nos induzem seja na geometria seja em qualquer outro

domiacutenio quando mal nos precatamos contra elas ()rdquo (Fed 92c11-

d5)

Por outro lado o ιόγνο filosoacutefico tem na relaccedilatildeo inteligiacutevel entre alma e a

essecircncia a base para as especulaccedilotildees147

Apoacutes a reacuteplica do filoacutesofo Siacutemias estaacute

persuadido (ὡο ἐκαπηὸλ πείζσ 92e1) desta relaccedilatildeo testemunhada pelas operaccedilotildees

inteligentes descritas ateacute agora a reminiscecircncia e a aprendizagem (ὁ δὲ πεξὶ ηο

ἀλακλήζεσο θαὶ καζήζεσο ιόγνο δη ὑπνζέζεσο ἀμίαο ἀπνδέμαζζαη εἴξεηαη Fed 92d6-

7) O discurso filosoacutefico construiacutedo desde o iniacutecio da investigaccedilatildeo apresenta nesse

instante uma demonstraccedilatildeo de seus procedimentos e de seu efeito ao levar o

interlocutor ao reconhecimento das falhas de sua proacutepria tese e a aceitaccedilatildeo da tese

adversaacuteria ndash ldquoOra esse pressuposto tenho para mim que eacute natildeo apenas suficiente como

correto aceitaacute-lo (ἀμηνῖο ἐπηδεηρζλαη ἡκῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἱθαλῶο ηε θαὶ ὀξζῶο

ἀπνδέδεγκαη)rdquo (Fed 92e1) Ao ser posto agrave prova um criteacuterio para a validade do 147 Fed 92d8-9 ldquouma vez que equaciona a existecircncia da alma anteriormente ao nosso nascimento com

a desse tipo de realidade em sirdquo (ὥζπεξ αὐηο ἐζηηλ ἡ νὐζία ἔρνπζα ηὴλ ἐπσλπκίαλ ηὴλ ηνῦ ldquoὃ ἔζηηλrdquo)

203

discurso (ἀλώιεζξόλ ηε θαὶ ἀζάλαηνλ νὖζαλ 95b9-c1) a argumentaccedilatildeo deve resistir ao

exame e ter assim a clareza e a suficiecircncia da tese que defende comprovadas o que

natildeo se verificou com a refutaccedilatildeo das duas objeccedilotildees Resta ao interlocutor prosseguir se

submetendo ao meacutetodo e aos princiacutepios desta forma do uso da razatildeo e ouvir a

desconstruccedilatildeo de sua tese anteriormente defendida148

Natildeo conveacutem analisar em minuacutecias a desconstruccedilatildeo da tese da alma harmonia

todavia devem-se levantar alguns raciociacutenios que oferecem informaccedilotildees sobre a funccedilatildeo

conferida ao intelecto Algumas caracteriacutesticas da alma se chocam com a noccedilatildeo de

harmonia presentes no discurso de Siacutemias 1ordm) sendo a harmonia uma composiccedilatildeo duas

caracteriacutesticas caras a alma por compartilhaacute-las com os seres inteligiacuteveis satildeo postas em

risco a unidade e a imutabilidade Como tal a harmonia pode ser quantificada em

proporccedilatildeo sendo correto dizer ldquomais ou menos harmocircnicardquo entretanto o mesmo natildeo se

pode dizer em relaccedilatildeo a alma a qual natildeo se pode considerar ldquomais plena e

completamente bdquoalma‟ ou menos plena e completamente bdquoalma do que outrardquo (Fed

93a1-b1-6)

Natildeo eacute correto concebecirc-la nos termos de possuir um atributo em maior ou menor

grau de harmonia do mesmo modo natildeo se pode ser e natildeo ser harmocircnica ou

textualmente natildeo pode participar da harmonia nem da desarmonia ter uma identidade

X e participar do seu oposto (Fed 93e) Diante da uacuteltima anaacutelise deve-se admitir 2ordm) a

primazia da inteligecircncia a qual por natureza comanda as accedilotildees do homem (Fed 94b4-

5) Supor a dependecircncia da harmonia em relaccedilatildeo agrave lira eacute o mesmo que considerar a alma

dependente do corpo para ser enquanto tal o que entraria em conflito com a tese

anteriormente aceita de que ela se opotildee aos desejos e apetites do corpo (Fed 94b6-c) A

importacircncia de afirmar tal primazia estaacute justamente em atribuir validade e confianccedila ao

discurso produto da inteligecircncia e preservar a funccedilatildeo de governo (ἄξρσ) do

pensamento em um alto niacutevel θξόληκνλ (Fed 94b5)

Interessa agrave investigaccedilatildeo a partir de agora abordar a alma nos termos de uma

noccedilatildeo com a qual se possa levar adiante a investigaccedilatildeo utilizando para isso elementos

148 Cabe aqui trazer o cometaacuterio de Ferejohn para ressaltar o que se pretende com a refutaccedilatildeo das teses

dos interlocutores ldquoO objetivo central de Soacutecrates nessa obra consiste em estabelecer a imortalidade da

alma Para fazer isso contudo natildeo seria suficiente para ele determinar (ao modo da Repuacuteblica) que as

almas vatildeo se mostrar imortais em sua teoria proposta Antes ele quer mostrar que elas realmente satildeo

imortais Consequentemente ele deve argumentar com base em premissas verdadeiras que estatildeo ao seu

alcance e ao de seus interlocutores em sua condiccedilatildeo de insciecircncia ou do que chamei perspectiva

socraacutetica (perspectiva criacutetica do inquiridor que reconhece sua ignoracircncia e por isso cobra explicaccedilatildeo de

seu intelector supostamente conhecedor) () Soacutecrates no Feacutedon tenta dar razotildees filosoacuteficas para

pensar que a teoria eacute verdadeirardquo Ferejohn opcit p 152

204

inteligiacuteveis como manda a filosofia e deixando de lado uma visatildeo que a considere

individualmente abordagem que o dialogo tambeacutem apresentou Dito de outro modo a

argumentaccedilatildeo aponta a perspectiva a partir da qual conveacutem tratar a alma e o tema da

imortalidade da universalidade das ideias em oposiccedilatildeo ao particular da multiplicidade

das percepccedilotildees do sensiacutevel Dados os ditames para a pesquisa ao modo da filosofia

cabe analisar como se desenvolve tal uso e em que medida a argumentaccedilatildeo sobre a

imortalidade se torna uma demonstraccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia uma vez comprovada a

validade do discurso

33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico

Para contra-argumentar acerca da ideia de que a alma tem o iniacutecio da sua

destruiccedilatildeo ao entrar no corpo (Fed 95d1-4) encontrando seu fim apoacutes muitas

encarnaccedilotildees o diaacutelogo lanccedila luz para o tema que deve ganhar atenccedilatildeo a causa da

geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (γελέζεσο θαὶ θζνξᾶο ηὴλ αἰηίαλ Fed 95e9) Duraccedilatildeo e

imortalidade no discurso de Cebes natildeo satildeo correspondentes Para ele ainda natildeo

convencido pelo filoacutesofo o que se tem com a reminiscecircncia e com a morte do corpo eacute a

demonstraccedilatildeo de um tempo de duraccedilatildeo da alma Ao mesmo tempo em que considera a

existecircncia da alma anterior ao nascimento uma prova de sua duraccedilatildeo entende que ela

sofre com os nascimentos ateacute perecer completamente com a morte (Fed 95c4-e1) natildeo

havendo assim prova de sua imortalidade mas de um periacuteodo limitado de

permanecircncia Cebes que pedia a demonstraccedilatildeo da imortalidade e da conservaccedilatildeo da

alma para que pudesse ter confianccedila no discurso filosoacutefico e aceitar que este natildeo seria

vatildeo e sem sentido (ἀλόεηόλ ηε θαὶ ἠιίζηνλ) (Fed 95b8-c4) tem questionado agora o que

estaacute na base deste tempo de duraccedilatildeo ou seja o que pode de fato revelar o suposto iniacutecio

e fim da existecircncia de modo a tornar evidente a imortalidade

A αἰηία tema herdado dos tempos em que o jovem Soacutecrates frequentava os

estudos da ciecircncia da natureza (θύζεσο ἱζηνξίαλ Fed 96a8) ganha definiccedilatildeo filosoacutefica

junto com a evoluccedilatildeo dos questionamentos sobre a inteligecircncia (λνῦο) Antes examinada

a partir do que se podia observar nos seres vivos e dos fenocircmenos naturais a causa que

205

em um primeiro momento tentava responder o porquecirc da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo o

porquecirc de existirem 149

era associada agraves percepccedilotildees desses eventos Era pertinente desse

modo levantar uma questatildeo qual a causa do pensamento das percepccedilotildees do sensiacutevel e

dos conhecimentos

ldquoE eacute graccedilas ao sangue que pensamos (θξνλνῦκελ) ou ao ar ou

ao fogo Ou nada disso conta e eacute sim o ceacuterebro que nos permite as

sensaccedilotildees (ὁ δ ἐγθέθαιόο ἐζηηλ ὁ ηὰο αἰζζήζεηο παξέρσλ) do ouvido

da vista e do olfato sensaccedilotildees estas que estaratildeo na base da memoacuteria

e da opiniatildeo (ἐθ ηνύησλ δὲ γίγλνηην κλήκε θαὶ δόμα) dando origem

uma vez consolidadas a conhecimentos correspondentes (θαηὰ ηαῦηα

γίγλεζζαη ἐπηζηήκελ)rdquo (Fed 96b2-8)

Vale notar que a pergunta tema desse estudo esteve presente desde o iniacutecio como

tema de fundo e sintetiza as indagaccedilotildees do diaacutelogo ao ligar as trecircs perspectivas que se

referem agrave questatildeo do pensamento seu objeto seu fundamento e seu modo de operar A

conveniecircncia da anaacutelise da causa estaacute desse modo em reunir tais abordagens e indicar o

que subjaz ao pensar Ao se perguntar pela causa questiona-se acerca deste fundamento

que permite a atividade do pensamento ser enquanto tal A explanaccedilatildeo sobre a causa

pretende especificar o foco e o domiacutenio de um discurso delimitando assim o seu

objeto e os meios pelos quais se deve abordar os temas propostos em uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica

O tipo de investigaccedilatildeo (ηαύηελ ηὴλ ζθέςηλ Fed 96c2) que desapontou o jovem

Soacutecrates as ciecircncias naturais levava em consideraccedilatildeo as causas corpoacutereas a carne o

sangue os ossos a comida a bebida (Fed 96c7-9) sendo a explicaccedilatildeo portanto um

montante destes elementos Entretanto tal como buscava o filoacutesofo a investigaccedilatildeo

nestes termos natildeo dava conta de explicar as causas nas relaccedilotildees como nas relaccedilotildees

matemaacuteticas cujos elementos satildeo inteligiacuteveis A razatildeo que levava a unidade a constituir

o dois seja por fraccedilatildeo ou por adiccedilatildeo ou que a faz existir natildeo era do domiacutenio deste tipo

de investigaccedilatildeo (Fed 97a-b) Soacutecrates desejava um tipo de causa como escopo de todas

as coisas existentes obedecendo assim ao criteacuterio de universalidade que o discurso

filosoacutefico exige

149 Fed 96a8-10 ldquoQue interessante natildeo seraacute (pensava eu) conhecer as causas de cada coisa a razatildeo

por que cada uma surge por que cada uma desaparece ou existe (ὑπεξήθαλνο γάξ κνη ἐδόθεη εἶλαη

εἰδέλαη ηὰο αἰηίαο ἑθάζηνπ δηὰ ηί γίγλεηαη ἕθαζηνλ θαὶ δηὰ ηί ἀπόιιπηαηθαὶ δηὰ ηί ἔζηη)rdquo

206

De todo modo as leituras de Anaxaacutegoras mostraram a direccedilatildeo para a causa tal

como queria o filoacutesofo A partir da narrativa do encontro com a tese acerca da

inteligecircncia ordenadora ndash ldquoAiacute se afirmava que era o Espiacuterito o ordenador e causa de

todas as coisasrdquo (ἄξα λνῦο ἐζηηλ ὁ δηαθνζκῶλ ηε θαὶ πάλησλ αἴηηνο) (Fed 97c1-2)

tem-se indicada de maneira objetiva a construccedilatildeo das bases do discurso filosoacutefico as

quais apresentam o trabalho do pensamento em seu niacutevel mais alto e reorganizam nos

termos do discurso filosoacutefico todos os elementos anteriormente dados como

pertencentes ao domiacutenio inteligiacutevel A descriccedilatildeo da comparaccedilatildeo entre os dois meacutetodos

mostra a intenccedilatildeo de delimitar a forma e o meacutetodo investigativo ao modo da filosofia

Narrado segundo discernimento de Soacutecrates (θαηὰ λνῦλ ἐκαπηῷ Fed 97d7) o λνῦο

ordenador de todas as coisas de Anaxaacutegoras constituiacutea uma causa eficiente na qual

todos os elementos estavam ordenados da melhor maneira O melhor e o mais excelente

(ηὸ ἄξηζηνλ θαὶ ηὸ βέιηηζηνλ Fed 97d3) deveriam ser portanto os objetos de anaacutelise

de modo a se investigar a causa e a necessidade de serem enquanto tais e porque razatildeo

tal natureza eacute a melhor150

Estes dois pontos a serem investigados constituem a maneira da investigaccedilatildeo

filosoacutefica inquirir acerca da causa Causa necessidade e no que consiste a melhor

ordenaccedilatildeo satildeo os pontos que devem indicar uma tipo de causa (αἰηίαο εἶδνο Fed 98a2)

que conduziraacute a investigaccedilatildeo para o verdadeiro fundamento de todas as coisas Esse tipo

de causa descreve as causas particulares e a causa comum a tudo por meio da qual eacute

possiacutevel explanar acerca do melhor para cada uma e acerca do bem que as

fundamenta151

A ordenaccedilatildeo segundo a inteligecircncia (ὑπὸ λνῦ αὐηὰ θεθνζκζζαη Fed

98a7) eacute orientada em uacuteltima instacircncia vale adiantar pelo bem (ηὸ ἀγαζὸλ Fed 99c5)

que teraacute nas proacuteximas passagens sua posiccedilatildeo e funccedilatildeo elucidadas

O texto trabalha para oferecer uma relaccedilatildeo causal que tem em vista o seu

fundamento Essa distinccedilatildeo deve ser bem compreendida haacute a causa dos particulares

serem enquanto tais e um fundamento comum a todas elas o qual torna possiacutevel todas

150 Fed 97c4-6 97e3 ldquo() Porque se assim eacute (pensei) se eacute o Espiacuterito que ordena todas as coisas entotilde

por certo que as ordena e dispotildee da forma que for mais conveniente para cada uma delas () Assim

julgava eu por exemplo que me diria primeiramente se a Terra era redonda ou plana em seguida expor-

me-ia a causa e a necessidade de ela assim ser invocando razotildees de conveniecircncia e demonstrando que tal

ou tal natureza lhe era de fato a mais ajustada (εἰ ηνῦζ νὕησο ἔρεη ηόλ γε λνῦλ θνζκνῦληα πάληα

θνζκεῖλ θαὶ ἕθαζηνλ ηηζέλαη ηαύηῃ ὅπῃ ἂλ βέιηηζηα ἔρῃ () ἐπεθδηεγήζεζζαη ηὴλ αἰηίαλ θαὶ ηὴλ

ἀλάγθελ ιέγνληα ηὸ ἄκεηλνλ θαὶ ὅηη αὐηὴλ ἄκεηλνλ ἦλ ηνηαύηελ εἶλαη)rdquo

151 Fed 98b1-3 ldquoE pois uma vez que atribuiacutea tal causa a cada um dos seres e a todos em geral supus

que iria explicar-me onde reside o melhor para cada um deles e aquilo que eacute comumente bom para todos

- (ἑθάζηῳ νὖλ αὐηῶλ ἀπνδηδόληα ηὴλ αἰηίαλ θαὶ θνηλῆ πᾶζη ηὸ ἑθάζηῳ βέιηηζηνλ ᾤκελ θαὶ ηὸ θνηλὸλ

πᾶζηλ ἐπεθδηεγήζεζζαη ἀγαζόλ)rdquo

207

as relaccedilotildees causais a causa de todas as causas Importa realizar tal diferenciaccedilatildeo para

indicar o plano em que se deve pensar esta causa primordial e o tipo de relaccedilatildeo causal

da qual se pretende tratar A escolha de Soacutecrates estaacute fundamentada na escolha do

melhor ordenado pelo λνῦο O fato de o filoacutesofo aceitar a sua condenaccedilatildeo e se manter

encarcerado tem como causa portanto o melhor estabelecido segundo a inteligecircncia e

natildeo o aprisionamento do seu corpo (Fed 99a4-b6) A causa como quer o filoacutesofo diz

respeito em primeiro lugar a um tipo de relaccedilatildeo na qual se deve encontrar a razatildeo de

cada coisa ser tal como eacute a realidade da coisa em segundo lugar deve-se ter em vista o

que a relaccedilatildeo causal indica como fundamento A relaccedilatildeo e o reconhecimento do

fundamento vale notar tecircm a inteligecircncia como agente a qual como todas as outra

coisas tambeacutem tem como causa o bem ndash posiccedilatildeo em geral compreendida erroneamente

e para a qual o filoacutesofo atribuiraacute posiccedilatildeo loacutegica e sentido metafiacutesico (Fed 99b) 152

A narrativa do desapontamento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave tese de Anaxaacutegoras traz

as distinccedilotildees da noccedilatildeo de inteligecircncia (λνῦο) e do meacutetodo investigativo da filosofia

Como se viu a noccedilatildeo de αἰηία que pretende o meacutetodo de Soacutecrates tem em vista o

fundamento que orienta a inteligecircncia e pode assim remeter agrave verdade sobre a alma e

sobre a imortalidade Dada importacircncia da causa primordial as questotildees sobre a causa

dos conhecimentos das percepccedilotildees e do pensamento feitas anteriormente encontram

nessa base comum a sua resposta O bem como causa comum ganha atenccedilatildeo nos

proacuteximos passos da investigaccedilatildeo sendo exposto o teor de sua posiccedilatildeo e a sua

causalidade em relaccedilatildeo ao trabalho do intelecto Do mesmo modo a universalidade do

bem dada a sua condiccedilatildeo colabora para construir a noccedilatildeo de uma razatildeo ordenadora

proacutepria da natureza inteligiacutevel presente no bem nas realidades e em tudo o que eacute

derivado dele a qual a inteligecircncia humana deve perseguir atraveacutes da cadeia de relaccedilotildees

causais Eacute dado desse modo o caminho para o trabalho racional o qual deve ascender agrave

causa maior o bem e aos assuntos que compartilham da mesma realidade como a

imortalidade

152 Este parece ser o ponto em que Soacutecrates pretende diferenciar sua concepccedilatildeo de nous da de

Anaxaacutegoras Como explica Ferejohn o despontamento de Soacutecrates se deve agrave constataccedilatildeo de que ldquo()

havia apenas uma defesa vazia do nous (ao conter frequentes ocorrecircncias do termo) mas sem fazer uso

teoacuterico de fato deste conceito em nenhuma forma que Soacutecrates reconhecia a saber como repositoacuterio de

crenccedilas desejos etc () ao proceder assim negligenciasse as causas reais (tas hocircs alecircthos aitias 98e2-

5) de sua situaccedilatildeordquo Ferejohn opcit p 153

208

IV Atividade do puro pensamento

O texto oferece adiante mais detalhes da relaccedilatildeo que pretende estabelecer entre o

que filosoficamente pode ser dito ldquoo bemrdquo e ldquoo melhorrdquo Ao mesmo tempo em que natildeo

se perdeu de vista a necessidade de manter o ιόγνο filosoacutefico sob inspeccedilatildeo o diaacutelogo

expotildee de maneira franca os elementos com o quais o filoacutesofo deve trabalhar Nesse

sentido o bem e a capacidade da inteligecircncia recebem consideraccedilotildees acerca de sua

natureza inteligiacutevel as quais revelam outros importantes elementos que se referem ao

trabalho do pensamento a saber o meacutetodo dialeacutetico e a Teoria das Ideias Natildeo seria

exagero considerar serem os proacuteximos passos da investigaccedilatildeo uma mostra do

pensamento puro no qual a alma do filoacutesofo descreve o que supotildee ser a livre atuaccedilatildeo do

pensamento e ao mesmo tempo considera ser o mais alto grau de intelecccedilatildeo possiacutevel

A segunda navegaccedilatildeo153

tal como descreve o texto propotildee a passagem para um

tipo de investigaccedilatildeo e de ιόγνο a partir do qual se pode fazer algumas assertivas sobre a

natureza da alma e do pensamento Nesse contexto satildeo dados os elementos e as

operaccedilotildees do intelecto que constituem o trabalho da inteligecircncia no seu niacutevel mais alto

ou seja agraves cercanias de apreender o quanto possiacutevel do bem do belo e por

consequecircncia da imortalidade A partir das explicaccedilotildees seguintes a θξόλεζηο tem a

origem e a constituiccedilatildeo de sua excelecircncia revelada em termos operacionais na relaccedilatildeo

entre pensamento e ideias que se realiza no meacutetodo dialeacutetico Se no iniacutecio da

investigaccedilatildeo seu valor foi estabelecido nos termos da pureza e da mais alta moeda (Fed

69a) acessiacuteveis por meio do modo de vida orientado pela filosofia a argumentaccedilatildeo que

confere meacutetodo agrave atividade filosoacutefica oferece a explicaccedilatildeo desta depuraccedilatildeo e origem da

atribuiccedilatildeo de valoraccedilatildeo ao apontar sua a verdadeira base Dito de outro modo o que

vem a seguir mostra de que maneira e por quais meios se datildeo o contato entre alma e a

realidade inteligiacutevel estado descrito anteriormente (Fed 79d) como fonte do proacuteprio

proacuteprio pensar em seu modo mais autecircntico

153 Fed 99d1 ldquotive de tentar uma segunda via para lanccedilar na sua busca( ηὸλ δεύηεξνλ πινῦλ ἐπὶ ηὴλ

ηο αἰηίαο δήηεζηλ)

209

41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa

Conveacutem examinar o bem tal como apresenta o Feacutedon Em primeiro lugar deve-

se observar a sua posiccedilatildeo de verdadeira causa Tal como mostrou o argumento sobre a

αἰηία o bem na condiccedilatildeo de causa de tudo subjaz a todas accedilotildees do filoacutesofo e relaccedilotildees

que se pode estabelecer A noccedilatildeo de causa que estaacute em questatildeo em um primeiro

momento deve-se observar eacute a teleoloacutegica dado que oferece uma explicaccedilatildeo das accedilotildees

objetivos e intenccedilotildees do filoacutesofo No entanto ao propor uma explicaccedilatildeo sobre a

aquisiccedilatildeo destes objetivos e do modo de proceder por meio do meacutetodo o que

denominou de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo a noccedilatildeo de causa se refere agrave possibilidade de

acessar as causas reais154

Em outros termos a causa como entenderaacute o filoacutesofo

repousaraacute sobre aquilo que pode em certa medida oferecer a verdadeira causa sendo

dada assim a pertinecircncia de averiguar acerca da primazia da racionalidade que por

meio de suas operaccedilotildees realizadas de forma adequada e correta pode escolher aquilo

que em certa medida corresponde ao bem ou seja escolher o melhor (Fed 99a9b1)

Vale analisar esta correspondecircncia e verificar as incursotildees do pensamento em

torno desta causa primordial O melhor (βέιηηζηνο) eacute dado como o poder de dispor da

melhor maneira as coisas ou dito de outro modo a causa de estarem dispostas tais

como estatildeo ndash ldquoMas esse porder graccedilas ao qual tais coisas se encontram dispostas da

forma mais conveniente (νἷόλ ηε βέιηηζηα αὐηὰ ηεζλαη δύλακηλ νὕησ λῦλ θεῖζζαη)rdquo

(Fed 99c1) A relaccedilatildeo desta disposiccedilatildeo cabe compreender eacute a melhor porque constitui

a ligaccedilatildeo que o bem faz entre todas as coisas - ldquo() sem pensarem que eacute o bem o

verdadeiro elo que liga entre si todas as coisas e as suporta (θαὶ ὡο ἀιεζῶο ηὸ ἀγαζὸλ

θαὶ δένλ ζπλδεῖλ θαὶ ζπλέρεηλ νὐδὲλ νἴνληαη (Fed 99c5)rdquo155

Interessa ao filoacutesofo

154 Os dois sentidos em que Soacutecrates parece compreender a αἰηία para os quais se pretende chamar

atenccedilatildeo aqui satildeo os mesmos que Ferejohn apontam ldquoSoacutecrates estaacute exprimindo uma preferecircncia clara e

categoacuterica pelas explicaccedilotildees ldquoteleoloacutegicasrdquo (a ldquocausa finalrdquo aristoteacutelica) em termos objetivos intenccedilotildees

e similares contra as que fazem referecircncia somente agraves causas ldquoeficientesrdquo (a ldquocausa motorardquo de

Aristoacuteteles Neste ponto todavia o relato de Soacutecrates daacute uma guinada surpreendente Em 99c6-d1 ele

declara abruptamente que se deu conta em um certo momento que suas explicaccedilotildees teleoloacutegicas

preferidas estavem indisponiacuteveis e que portanto se tornou necessaacuterio para ele dar iniacutecio ao que chama

de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo uma busca por um modo de explicaccedilatildeo ldquosucedacircneordquo que pelo menos esteja ao

seu alcancerdquo Ferejohn op cit p 153 Essa busca estaraacute baseada nas ideias e seraacute considerada por conta

disso uma causa segura a qual o filoacutesofo tanto no Feacutedon quanto no livro VI d‟A Repuacuteblica pretender

conhecer

155 Esta mesma caracteriacutestica do bem eacute dada n‟A Repuacuteblica nos termos da benignidade do bem traccedilo

presente nas coisas que derivam dele apreensiacutevel pelo intelecto Note-se que eacute fundamental para o

trabalho do intelecto essa presenccedila a qual serve de condutor causal que pode levar ao conhecimento

causa primordial

210

desse modo apreender (99c6) essa atuaccedilatildeo do bem como causa a partir desta ordenaccedilatildeo

que dispotildee os astros da melhor maneira o que natildeo se verificou no discurso que

pretendia uma ciecircncia da natureza O desapontamento de Soacutecrates se explica em parte

pela concepccedilatildeo equivocada aos olhos do filoacutesofo evidentemente por natildeo compreender

esta relaccedilatildeo entre o bem o melhor e a inteligecircncia Natildeo parece possiacutevel uma

compreensatildeo correta acerca do λνῦο sem considerar a correspondecircncia entre o melhor e

o bem Em outros termos natildeo haacute uma verdadeira compreensatildeo da natureza e da funccedilatildeo

da inteligecircncia sem ter tal compreensatildeo acerca desta concepccedilatildeo de melhor e do papel do

bem O λνῦο tal como quer Soacutecrates natildeo eacute a causa da ordenaccedilatildeo mas eacute o agente

cognitivo para apreender tal ordenaccedilatildeo e averiguar na medida do possiacutevel o bem como

a verdadeira causa

Vale verificar tal corespondecircncia entre βέιηηζηνο e ἀγαζόο

ldquo() Depois disso uma vez desiludido da observaccedilatildeo dos seres

achei por bem acautelar-me natildeo viesse a acontecer-me a mim o

mesmo que agravequeles que contemplam e observam o Sol em momentos

de eclipse eacute sabido que alguns chegam a perder de vista se natildeo for

atraveacutes da aacutegua ou de qualquer outro meio que mirem a sua imagem

(ζθνπῶληαη ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ) E com pensamentos mais ou menos

deste teor receei ficar irremediavelmente cego de espiacuterito caso

persistisse em fixar os olhos nas coisas em tentar tocar-lhes

diretamente com os meus cinco sentidos (ηῶλ αἰζζήζεσλ) Pensei

entatildeo que o melhor que tinha a fazer era refugiar-me do lado das

ideias e atraveacutes delas inquirir da verdade dos seres (ἔδνμε δή κνη

ρξλαη εἰο ηνὺο ιόγνπο θαηαθπγόληα ἐλ ἐθείλνηο ζθνπεῖλ ηῶλ ὄλησλ

ηὴλ ἀιήζεηαλ) Aliaacutes talvez num aspecto o paralelo natildeo seja exato

pois natildeo eacute quanto a mim ponto resolvido que o estudo dos seres por

meio das suas manifestaccedilotildees externas se revele menos do que as

ideias um estudo agrave base de imagens (ἴζσο κὲλ νὖλ ᾧ εἰθάδσ ηξόπνλ

ηηλὰ νὐθ ἔνηθελ νὐ γὰξ πάλπ ζπγρσξῶ ηὸλ ἐλ [ηνῖο] ιόγνηο

ζθνπνύκελνλ ηὰ ὄληα ἐλ εἰθόζη κᾶιινλ ζθνπεῖλ ἢ ηὸλ ἐλ [ηνῖο]

ἔξγνηο) Seja como for o certo eacute que me lancei por essa via E assim

partindo em cada caso do pressuposto que julgo ser mais seguro tudo

o que se me afigura em concordacircncia com ele tomo por verdadeiro

quer no tocante agraves causas que a qualquer outro aspecto e caso

contraacuterio natildeo o aceito como tal (ἃ κὲλ ἄλ κνη δνθῆ ηνύηῳ ζπκθσλεῖλ

ηίζεκη ὡο ἀιεζ ὄληα θαὶ πεξὶ αἰηίαο θαὶ πεξὶ ηῶλ ἄιισλ ἁπάλησλ

[ὄλησλ] ἃ δ ἂλ κή ὡο νὐθ ἀιεζ) Poreacutem quero explicar-me mais

claramente pois acho que agora natildeo estaacute entendendo- merdquo (Fed

99d4-100a8)

Esta passagem na qual se argumenta sobre a impossibilidade de contemplar

diretamente o bem revela-se de grande importacircncia por propor o alcance do

pensamento A comeccedilar pela metaacutefora da visatildeo em relaccedilatildeo agrave luminosidade do Sol vecirc-se

211

sugeridas as limitaccedilotildees de apreender o bem sendo necessaacuterio usar por conta disso um

recurso teoreacutetico para as tratativas acerca dele Dito de outro modo estatildeo em questatildeo os

instrumentos por meio dos quais o pensamento pode atingir a ideia do bem os quais se

mostram insuficientes para abarcaacute-lo Seja por via das imagens seja pelas ideias esse

uacuteltimo o meio escolhido pelo filoacutesofo a superioridade do bem exige o esforccedilo de

elaborar meios de acessaacute-lo em alguma medida o que demonstra ser a averiguaccedilatildeo

constante do discurso como se tem feito uma praacutetica concordante com a condiccedilatildeo do

pensar em relaccedilatildeo agrave maioridade de tal objeto Nesse sentido os ιόγνηο que se pode dar

consistem em verdade em dizer dos objetos o que realmente satildeo o que no que se refere

ao bem requer o uso da alta inteligecircncia do filoacutesofo Todavia natildeo se trata de definir no

que consiste o bem ou outros objetos mas antes fazer uma afirmaccedilatildeo acerca deles a

partir da qual se daacute iniacutecio o exerciacutecio dialeacutetico O ldquorefugiar-se no ιόγνοrdquo que o filoacutesofo

propotildee deve ser entendido muito mais como reservar-se ao exerciacutecio do meacutetodo

hipoteacutetico do que oferecer um discurso que apresente uma riacutegida definiccedilatildeo156

Os recursos mobilizados para prosseguir a investigaccedilatildeo constituem deve-se

notar a atividade intelectual no seu limite dentro do qual o filoacutesofo conscientemente se

exercita Natildeo se pretende alcanccedilar o bem em sua totalidade da mesma forma que natildeo eacute

possiacutevel como se sabe ter certeza acerca da imortalidade Entretanto este trabalho do

pensamento sabidamente limitado pretende argumentar a favor do que considera ser

razoaacutevel acreditar e carece para tanto de elaborar o meacutetodo correto e de discernir

acerca dos elementos que conduzem agraves noccedilotildees que daratildeo indicaccedilotildees mais confiaacuteveis

sobre a imortalidade

42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese

O meacutetodo eacute enunciado sem rodeios Cotejar cada argumentaccedilatildeo (ἑθάζηνηε

ιόγνλ) com a hipoacutetese que parece ser a mais segura (ἐξξσκελέζηαηνλ) de modo a

156 Chen apresenta uma explicaccedilatildeo condizente com esta argumentaccedilatildeo ldquoιόγνηο usado aqui satildeo

afirmaccedilotildees ou proposiccedilotildees cujo objetivo visa nos informar sobre o que seus referentes realmente satildeo

Eles somente os refletem A este respeito eacute tambeacutem um estudo-imagem como vendo nos objetos

sensiacuteveis na busca pelo verdadeiro conhecimento do que eles realmente satildeo ()rdquo Mas em nota ele

termina por explica ldquoEstes ιόγνηο satildeo usados como premissas para dar uma soluccedilatildeo hipoteacutetica de algum

problemardquo Chen opcit p 30

212

verificar entre elas uma concordacircncia (ζπκθσλέσ) Caso haja a concordacircncia o ιόγνο

deve ser considerado verdadeiro se ao contraacuterio forem discordantes eacute falso Conveacutem

observar os elementos que estatildeo postos no meacutetodo 1ordm) a hipoacutetese como ponto de partida

para a verificaccedilatildeo das teses e validaccedilatildeo do ιόγνο 2ordm) a verdade assume um caraacuteter

formal para validaccedilatildeo do argumento sendo definida nesse instante pode-se apreender

como o ajuste entre o ιόγνο defendido e hipoacutetese proposta O caraacuteter do meacutetodo

filosoacutefico se torna devidamente definido todavia com a especificaccedilatildeo dos elementos

com os quais trabalha Para compreender o teor dessa operaccedilatildeo aparentemente

complexa eacute necessaacuterio tomar a hipoacutetese e fazer o discurso na perspectiva da

inteligibilidade Neste caso eacute necessaacuterio abordar as causas e a causa de tudo no seu

aspecto inteligiacutevel O bem o belo e a grandeza seratildeo analisados em sua natureza157

para

que uma vez aceita a existecircncia destes seja possiacutevel a partir deles argumentar acerca da

imortalidade ou dito de outro modo apresentar a causa de a alma ser imortal

Em uacuteltimas circunstacircncias o meacutetodo pretende verificar as razotildees para apostar

na imortalidade tomando os objetos de anaacutelise a partir do seu aspecto inteligiacutevel ditos

por si mesmos (αὐηὸ θαζ αὑηὸ) como hipoacutetese A investigaccedilatildeo encontra no ιόγνο um

recurso para descrever e apreender as relaccedilotildees inteligiacuteveis ou seja as quais indicam a

relaccedilatildeo entre ideia e particular158

Nesse sentido as premissas lanccediladas no discurso e

avaliadas no exerciacutecio de investigaccedilatildeo segundo o meacutetodo filosoacutefico devem buscar

apresentar a ideia em causa a qual uma vez encontrada nos termos de uma hipoacutetese

uacuteltima serve como paracircmetro a partir do qual se verifica qual dentre as relaccedilotildees

estabelecidas no ιόγνο se mostra afim com ela

Conveacutem prosseguir desse modo na investigaccedilatildeo da causa primeira e a sua

relaccedilatildeo com as demais causas Diz o texto o que existe aleacutem do proacuteprio belo ou seja

coisas consideradas belas satildeo como satildeo por participarem do belo Eacute nesta relaccedilatildeo de

157 Fed 100b5-8 ldquo() tomando por pressuposto a realidade de um Belo que existe em si e por si

mesmo de um Bem de um Grande e assim por diante Se neste ponto me daacutes razatildeo e aceitas a existecircncia

de coisas como estas espero bem a partir delas explicar-te qual seja essa causa e descobrir o que faz

com que a alma seja essa causa e descobrir o que faz com que a alma seja imortal ndash (ὑπνζέκελνο εἶλαί ηη

θαιὸλ αὐηὸ θαζ αὑηὸ θαὶ ἀγαζὸλ θαὶ κέγα θαὶ ηἆιια πάληα () ἐιπίδσ ζνη ἐθ ηνύησλ ηὴλ αἰηίαλ

ἐπηδείμεηλ θαὶ ἀλεπξήζεηλ ὡο ἀζάλαηνλ [ἡ] ςπρή)rdquo

158 Conveacutem emprestar as palavras de Matthews para explicar o sentido que a hipoacutetese assume no

argumento rdquo() elas satildeo proposiccedilotildees envolvendo uma referecircncia agraves formas em questatildeo satildeo consistentes

com a hipoacutetese de que estas formas existem e a negaccedilatildeo delas [formas] seriam inconsistentes com estas

hipoacutetesesrdquo Matthews G Plato ndash Epistemology and Related Logical Problems Faber and Faber London

1972p 33

213

participaccedilatildeo que se daacute a causalidade do belo159

Segundo a teoria da participaccedilatildeo

(κεηέμηο) as coisas se tornam belas pela presenccedila (παξνπζία Fed 100d5) ou pela

comunhatildeo (θνηλσλία Fed 100d6) com o proacuteprio Belo causa das coisas que satildeo belas

(Fed 100d) Do mesmo modo o que possui a qualidade de grande tem como causa a

sua relaccedilatildeo com a grandeza (ηὸ κέγεζνο) e o que eacute pequeno adquire a caracteriacutestica

porque se relaciona com a pequenez (Fed 101a-b3)

Participar do bem ou do belo confere agravequele que participa caracteriacutesticas

distintivas da ideia da qual participa X1 participa de X adquirindo caracteriacutesticas

exclusivas agrave X que as distinguem e a definem como tal A beleza do cavalo ocorre

porque participa da ideia do belo Sem a participaccedilatildeo no belo a beleza do cavalo natildeo

ocorreria A dependecircncia ontoloacutegica dos particulares em relaccedilatildeo agraves ideias se apresenta

nos termos da participaccedilatildeo como a causa do que existe no domiacuteno sensiacutevel Sendo

assim a causa da beleza eacute a ideia do belo No caso de relaccedilotildees da matemaacutetica natildeo se

trata de recorrer a uma causalidade na qual se tem como base a extensatildeo a quantidade

ou a somatoacuteria Em verdade tais relaccedilotildees consistem na participaccedilatildeo do termo na

unidade (κνλάδνο) ou na dualidade (δπάδνο) do um e do dois dadas aqui como a

essecircncia de cada termo uma realidade especiacutefica- (κεηαζρὸλ ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ

Fed101c3) O que parece estar em questatildeo com o exemplo dos nuacutemeros eacute a relaccedilatildeo

inteligente entre termos inteligiacuteveis que subjaz agraves operaccedilotildees matemaacuteticas Por tornarem

existentes a soma e a subtraccedilatildeo relaccedilotildees da onde advecircm o dez e o oito por exemplo

deve ser considerada a verdadeira causa160

O tipo de causa que o filoacutesofo pretende mostrar consiste na causa inteligiacutevel

cujo gecircnero eacute afim com a natureza da alma161

Desse modo os elementos reais que

constituem a causa e como tais fundamentam uma relaccedilatildeo causal tecircm o viacutenculo entre

universais e particulares desvelado na participaccedilatildeo recurso por meio do qual se explica

159 Fed 100c4 ldquose alguma coisa existe aleacutem do Belo em si a uacutenica e exclusiva razatildeo de assim ser eacute o

fato de participar desse mesmo Belo E assim falo de todos os casos semelhantes (εἴ ηί ἐζηηλ ἄιιν θαιὸλ

πιὴλ αὐηὸ ηὸ θαιόλ νὐδὲ δη ἓλ ἄιιν θαιὸλ εἶλαη ἢ δηόηη κεηέρεη ἐθείλνπ ηνῦ θαινῦ θαὶ πάληα δὴ νὕησο

ιέγσ ηῆ ηνηᾷδε αἰηίᾳ ζπγρσξεῖο)rdquo Fed 100d7-8 ldquoNatildeo eacute aliaacutes nisso que faccedilo propriamente questatildeo

mas sim em que eacute graccedilas ao Belo que todas as coisas belas satildeo belas (ἀιι ὅηη ηῷ θαιῷ πάληα ηὰ θαιὰ

[γίγλεηαη] θαιά ηνῦην γάξ κνη δνθεῖ ἀζθαιέζηαηνλ εἶλαη)rdquo

160 Vlastos Natildeo parece ser do interesse de Platatildeo especificar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Reconhecer uma

ligaccedilatildeo entre os dois domiacutenios e mostrar a superioridade ontoloacutegica das formas provavelmente eacute o

bastante para propor o meacutetodo hipoteacutetico Vlastos G ldquoReasons and Causes in the Phaedordquoin op cit p

142

161 Fed 100b3 ldquo() vou entatildeo tentar explicar-te a espeacutecie de causa a que me tenho aplicado (ἔξρνκαη

[γὰξ] δὴ ἐπηρεηξῶλ ζνη ἐπηδείμαζζαη ηο αἰηίαο ηὸ εἶδνο ὃ πεπξαγκάηεπκαη)rdquo

214

a ligaccedilatildeo do sensiacutevel com o inteligiacutevel e no contexto do diaacutelogo serve aos propoacutesitos de

conduzir a investigaccedilatildeo de modo a reconhecer os objetos do intelecto as ideias162

43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento

Dada solidez das hipoacuteteses ponto de partida para a ascensatildeo do pensamento na

apreensatildeo das verdadeiras causas o meacutetodo toma sua forma

ldquo() E para o caso do teu interlocutor se apoiar na hipoacutetese em

si mesma pois bem despachaacute-lo ias sem resposta ateacute verificares se

as consequecircncias dela decorrentes estatildeo entre si em concordacircncia ou

discordacircncia (ζπκθσλεῖ ἢ δηαθσλεῖ) Por outro lado quando fosse

necessaacuterio justificar essa mesma hipoacutetese (ἐπεηδὴ δὲ ἐθείλεο αὐηο

δένη ζε δηδόλαη ιόγνλ) faacute-lo-ias recorrendo a uma hipoacutetese mais

acima que de entre as de igual niacutevel se te afigurasse mais adequada

ateacute chegares a alguma coisa de satisfatoacuterio (ὡζαύησο ἂλ δηδνίεο

ἄιιελ αὖ ὑπόζεζηλ ὑπνζέκελνο ἥηηο ηῶλ ἄλσζελ βειηίζηε θαίλνηην

ἕσο ἐπί ηη ἱθαλὸλ ἔιζνηο) ()rdquo (Fed 101d1- e1)

O meacutetodo hipoteacutetico ou dialeacutetico constitui-se da superaccedilatildeo das premissas ateacute

que se chegue a uma premissa superior que resista a esta eliminaccedilatildeo e se mostre a mais

segura e portanto verdadeira O procedimento de superaccedilatildeo se daacute atraveacutes da anaacutelise e

demonstraccedilatildeo constante dos resultados das hipoacuteteses dadas revelando-as como

suficientes ou natildeo Neste processo de ascensatildeo de uma hipoacutetese a outra superior

consiste no meacutetodo filosoacutefico (Fed 102a1) o qual pretende discernir diferentemente de

como procedem os ἀληηινγηθνὶ princiacutepio e consequecircncias para que se chegue a uma

apreensatildeo dos seres163

A noccedilatildeo de causalidade se torna mais esclarecida com a

explicaccedilatildeo desse meacutetodo dado que o movimento ascendente se daraacute na direccedilatildeo da causa

162 Vlastos comenta o papel da participaccedilatildeo dizendo ldquo() Participaccedilatildeo aqui designa o uacutenico caminho da

relaccedilatildeo ontoloacutegica de dependecircncia entre coisas temporais e as Formas eternas as quais satildeo princiacutepios

fundamentais para a filosofiardquo Vlastos ldquoReasons and Causesrdquo op cit p 141

163 Fed 101e1-3 ldquoEntretanto abster-se-ias de misturar como eacute haacutebito dos controversistas a anaacutelise

dos princiacutepios loacutegicos e a das suas implicaccedilotildees - isto no caso de pretenderes chegar efetivamente a algo

de positivo sobre os seres (ἅκα δὲ νὐθ ἂλ θύξνην ὥζπεξ νἱ ἀληηινγηθνὶ πεξί ηε ηο ἀξρο δηαιεγόκελνο

θαὶ ηῶλ ἐμ ἐθείλεο ὡξκεκέλσλ εἴπεξ βνύινηό ηη ηῶλ ὄλησλ εὑξεῖλ)rdquo

215

a qual se mostraraacute segura por se mostrar indubitaacutevel Dito de outro modo o exerciacutecio de

buscar as causas encontra na dialeacutetica um meacutetodo mais preciso pois ao ter em vista a

apreensatildeo do ser seja nas coisas determinadas seja nas ideias pode chegar a apreensatildeo

daquela que constitui a causa primordial Tal tarefa se torna factiacutevel pela dialeacutetica

porque os objetos com os quais se daacute o exerciacutecio de superaccedilatildeo das hipoacuteteses satildeo da

ordem do inteligiacutevel

Neste sentido cabe precisar o entendimento acerca dos inteligiacuteveis agora dados

como forma (εἶδνο) ou ideia (ἰδέα) As formas satildeo por si mesmas e satildeo a causa do que

delas participam O que tem participaccedilatildeo nas formas recebe dela nome e a caracteriacutestica

que a identifica (Fed 102b1-3) A forma tem sua identidade distinta e preservada natildeo

sendo compatiacutevel portanto com o que lhe eacute oposto tal como o frio natildeo pode participar

do quente nem a grandeza da pequenez (Fed 102e6-103a1) Dada a perspectiva da

inteligibilidade em que se tomam os termos agora em questatildeo o oposto tido como uma

forma (αὐηὸ ηὸ ἐλαληίνλ Fed 103b4) aparece como causa da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo dada

anteriormente

Assim na condiccedilatildeo de εἶδνο da mesma maneira natildeo pode aceitar algo oposto a

ele mesmo (Fed 103b1-c1) O texto potildee em operaccedilatildeo o princiacutepio de identidade e de natildeo

contradiccedilatildeo que acompanha a ideia de forma

ldquoVerifica-se pois em certo nuacutemero de casos como esses que natildeo

soacute a Forma em si mesma conserva para todo o sempre o nome a que

tem direito mas o mesmo acontece com qualquer outra realidade que

embora natildeo se identifique com ela possui sempre enquanto existir o

caraacuteter dessa Forma()rdquo (ὥζηε κὴ κόλνλ αὐηὸ ηὸ εἶδνο ἀμηνῦζζαη

ηνῦ αὑηνῦ ὀλόκαηνο εἰο ηὸλ ἀεὶ ρξόλνλ ἀιιὰ θαὶ ἄιιν ηη ὃ ἔζηη κὲλ

νὐθ ἐθεῖλν ἔρεη δὲ ηὴλ ἐθείλνπ κνξθὴλ ἀεί ὅηαλπεξ ᾖ Fed 103e2-5)

A forma tal como oferece o texto refere-se a uma unidade idecircntica a si mesma

que tecircm expostas nesse argumento as qualidades que a determinam164

Nessa passagem

164 Vale fazer uso das palavras de White para precisar o aspecto essencialista que a ideia apresenta e para

o qual se chama atenccedilatildeo aqui ldquoPor bdquo‟essencialismo ou bdquodoutrina das essecircncias‟ neste artigo quero dizer a

perspectiva sobre algum dado particular X tem qua particular alguma propriedade ou propriedades F

tal que X natildeo pode ser natildeo foi ou natildeo continua a ser sem ter F nem poderia continuar a ser X se

adquiriu o Oposto-F Por bdquoqua particular‟ quer dizer que X tem F natildeo sobre esta ou aquela descriccedilatildeo

216

vecirc-se que sua identidade estaacute de acordo com o gecircnero inteligiacutevel ou seja possui como

os seres inteligiacuteveis invisibilidade imutabilidade e imperecibilidade mas acrescenta-se

a isso um ἴδηνο que o determina como tal conferindo agrave forma caraacuteter especiacutefico

O trecircs o cinco natildeo satildeo idecircnticos agrave forma do iacutempar165

no entanto satildeo nuacutemeros

iacutempares por participarem de sua identidade (Fed 104a5-4)166

Embora natildeo haja

oposiccedilatildeo entre os nuacutemeros por participarem da forma iacutempar o trecircs e o cinco satildeo

nuacutemeros opostos aos nuacutemeros pares dado que a forma par eacute oposta agrave forma iacutempar da

qual esses nuacutemeros participam (Fed 104b6-10) Pode-se apreender a relaccedilatildeo entre as

ideias tal qual o argumento sugere atraveacutes dos elementos partiacutecipes das formas a partir

dos quais se verificaraacute se satildeo de caraacuteter opostos ou natildeo ao relacionarem uns aos outros

Esses a exemplo dos nuacutemeros iacutempares e dos nuacutemeros pares satildeo opostos por

participaccedilatildeo porque tomam a forma (κνξθή Fed 104d10) e em certa medida a

identidade da ideia na qual tecircm participaccedilatildeo O nuacutemero trecircs participa da ideia do trecircs e

do iacutempar assume portanto a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que acompanham tais ideias ndash ldquoNatildeo

haacute duacutevidas certamente que tudo aquilo que a Forma do trecircs ocupa natildeo apenas teraacute de

ser trecircs como iacutempar (νἶζζα γὰξ δήπνπ ὅηη ἃ ἂλ ἡ ηῶλ ηξηῶλ ἰδέα θαηάζρῃ ἀλάγθε

αὐηνῖο νὐ κόλνλ ηξηζὶλ εἶλαη ἀιιὰ θαὶ πεξηηηνῖο)rdquo (Fed 104d5) A ideia e seu partiacutecipe

trazem (ἐπηθέξσ) suas caracteriacutesticas e com elas a oposiccedilatildeo a outras ideias

Cabe aqui alguns esclarecimentos sobre a diferenccedila entre forma (κνξθή) e ideia

e a consequente distinccedilatildeo entre ideia e seus participantes O diaacutelogo parece sugerir

desde o iniacutecio da argumentaccedilatildeo acerca da Teoria a noccedilatildeo de εἶδνο e ἰδέα como

equivalentes a uma essecircncia especiacutefica (ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ 101c3)

correspondente a cada coisa que existe O que existe ou seja algo em particular como

o nuacutemero cinco encontra o seu correspondente inteligiacutevel na ideia de cinco e de iacutempar

mas independente de todas as descriccedilotildeesrdquo White F C ldquoThe Phaedo and The Republic V on The

Essencesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 98 1978 p 142 nota 3

165 Fed 104b1 ldquoconquanto nenhum deles se identifique individualmente com o Iacutempar nem por isso

deixam de ser por natureza iacutemparesrdquo (ὅπεξ ηὸ πεξηηηὸλ ἀεὶ ἕθαζηνο αὐηῶλ ἐζηη πεξηηηόο)

166 Ver Em nota Azevedo chama tenccedilatildeo para a questatildeo dizendo ldquoPelos exemplos do fogo da neve e do

trecircs (que deveraacute entender-se como nuacutemero e natildeo como conjunto de objetos da realidade sensiacutevel) Platatildeo

sugere aqui que as coisas em si natildeo satildeo opostas mas sim os caracteres (morphai) que nelas operam

Este pormenor relaciona-se provavelmente com uma tendecircncia visiacutevel nos diaacutelogos para privilegiar

como Formas as qualidades (opostos) e raramente substacircnciasrdquo Este comentaacuterio ajuda a pontuar um

dado e uma dificuldade que os diaacutelogos apresentam ao abordar as formas e seus aspectos Ao que sugere

o exemplo da igualdade no Feacutedon e ldquodos dedosrdquo no livro VII tanto a quididade a substacircncia como cita a

tradutora quanto as qualidades que a forma abarca e as que lhe satildeo opostas satildeo apreensiacuteveis pela forma

Os nuacutemeros e as relaccedilotildees de semelhanccedila-dessemelhanccedila ou grandeza-pequenez deixam mais aparente

esse duplo uso do termo N‟A Repuacuteblica Platatildeo parece ter deixado claro esta caracteriacutestica ao dizer ldquoMas

de outro lado disse essa propriedade caracteriza muito bem a visatildeo que temos da unidade pois vemos a

mesma coisa como una e como multiplicidade infinitardquo Azevedo M T S in Platatildeo op cit p 139 nota

87

217

sendo explicada a sua existecircncia e as suas caracteriacutesticas pela participaccedilatildeo nestas ideias

Natildeo se deve pensar portanto que a ideia tal como apresenta a Teoria proponha

necessariamente um conjunto de qualidades ndash aleacutem da imparidade nos nuacutemeros iacutempares

e do belo nas coisas consideradas dotadas de beleza- pois isso aparece de modo mais

contundente nos partiacutecipes das formas O que parece estar proposto eacute justamente a

recusa de certas relaccedilotildees que poriam em risco a identidade da forma ndash a neve quente

por exemplo - como a de contrariedade

Ainda que o texto sinalize para a compreensatildeo da ideia como um conjunto a

intenccedilatildeo de oferececirc-la como um ἴδηνο parece prevalecer na discussatildeo natildeo sendo

pertinente destacar as consequecircncias de outras relaccedilotildees aleacutem da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo O

que pode parecer um dado de conteuacutedo (ἐπηθέξσ) expressa a persistecircncia da forma

(εἶδνο) em preservar a sua identidade sendo a ideia de oposiccedilatildeo nesse sentido bastante

pertinente para salientar tal preservaccedilatildeo como caracteriacutestica cara ao que eacute inteligiacutevel

ldquo() dizemos que soacute uma forma oposta recusa aceitar a que lhe

eacute oposta mas que tambeacutem outra coisa que contenha em si um

determinado oposto qualquer que seja o objeto em que se manifeste ndash

tambeacutem ela jamais aceitaraacute em tais circunstacircncias o caraacuteter

contraacuterio daquele que conteacutem ()rdquo (Fed 105a2-6)

O diaacutelogo assume vale notar uma postura bastante praacutetica em relaccedilatildeo ao seu

objetivo Ao argumento importa definir o que se tem preservado na ideia e como se daacute

tal preservaccedilatildeo nas relaccedilotildees que se pode fazer com o discurso para propor uma prova

final acerca da imortalidade da alma Os princiacutepios postos aqui se mostram uacuteteis para a

investigaccedilatildeo ao oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da relaccedilatildeo entre as coisas que tomam

parte na inteligibilidade A tentativa de precisar no que consiste uma relaccedilatildeo de κεηέμηο

antes referida como presenccedila ou comunhatildeo mostra o caminho cognitivo para a

verificaccedilatildeo de uma tese acerca do post mortem no qual se faz necessaacuterio ter claro o

procedimento e a natureza dos objetos a serem conhecidos Tem-se na dialeacutetica deve-

se- reconhecer um procedimento de autoinspeccedilatildeo da razatildeo que valida a sua atividade e

os seus resultados conferindo veracidade agraves teses defendidas dentro dos ditames do

meacutetodo Como meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica a dialeacutetica representa uma maneira

estritamente racional ou seja que natildeo recorre a qualquer recurso da sensibilidade para

conduzir uma investigaccedilatildeo o que constitui uma maneira conveniente dado que se tem

em questatildeo a possiacutevel atividade da alma totalmente apartada do corpo Ele consiste na

forma de operar pelo pensamento de modo a ultrapassar a particularidade do plano

218

sensiacutevel em vista da inteligibilidade do domiacutenio das essecircncias seus verdadeiros objetos

tendo nestes termos ao final o conhecimento acerca do que investiga

Assim natildeo se deve supor que o diaacutelogo ao abordar o meacutetodo hipoteacutetico tenha

abandonado os objetivos que se referem agrave apreensatildeo das ideias e agrave aquisiccedilatildeo do

conhecimento dadas anteriormente Nesse registro do trabalho intelectual sob forma

dialeacutetica o que se tem em foco diz respeito a um procedimento racional consistente para

se obter uma defesa igualmente consistente e digna de confianccedila sobre a imortalidade e

sobre aquele que se mostrou o uacutenico meio para esta investigaccedilatildeo o pensamento A

mudanccedila de abordagem do tema da θξόλεζηο ao longo do diaacutelogo cabe notar mostra a

aceitaccedilatildeo de seu valor dado no iniacutecio da investigaccedilatildeo e o aprofundamento das questotildees

que envolvem o pensar mais precisamente meacutetodo e objeto especiacutefico os quais satildeo

tratados de forma conclusiva nesses uacuteltimos argumentos

Ao elucidar o trabalho do pensamento segundo o meacutetodo tem-se uma

explicaccedilatildeo acerca do filosofar como exerciacutecio racional diante das limitaccedilotildees da

condiccedilatildeo de humanidade jaacute referidos anteriormente na defesa do pensar como via para

se chegar mais proacuteximo do conhecimento em detrimento dos sentidos (Fed 65e1) As

vantagens das tratativas deste meacutetodo estatildeo em reconstituir de forma operacional a

relaccedilatildeo com os objetos inteligiacuteveis que se tem na filosofia demonstrando assim o

alcance do pensamento e oferecendo a possibilidade de fazer suposiccedilotildees sobre a

imortalidade O filoacutesofo encontra neste tipo de exerciacutecio os pilares que justificam a

postura de cuidado da alma (ἐπηκέιεηα Fed 107c2) que se realiza com a postura e

exerciacutecio filosoacutefico modo legiacutetimo de adquirir alguma excelecircncia e inteligecircncia

(βειηίζηελ ηε θαὶ θξνληκσηάηελ γελέζζαη Fed 107d1)

Nesta direccedilatildeo na qual se encontrou um meacutetodo de validaccedilatildeo de um argumento

filosoacutefico a prova da imortalidade da alma consiste na prova da validade do pensar e de

tudo o que anteriormente foi dito acerca do gecircnero da funccedilatildeo e do valor atribuiacutedo ao

alto pensamento Diante das conclusotildees acerca pode-se ter alguma confianccedila sobre o

destino apoacutes a morte e as especulaccedilotildees sobre os temas que excedem o tempo da vida

humana como a morte a partir do meacutetodo com o qual se deve inquirir sobre a

imortalidade A prova se daacute a partir das prerrogativas da dialeacutetica e para tanto parte-se

do aspecto inteligiacutevel da questatildeo ou seja da forma vida e da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que os seres vivos e a alma tem com ela O corpo em comunhatildeo com a alma se torna

vivo (Fed 105c9-11) separado dela eacute apenas um cadaacutever A alma torna o corpo vivo e

219

eacute portanto portadora da vida que nos termos da investigaccedilatildeo consiste na parte que

participa da forma vida

De acordo com esse raciociacutenio de forma a vida natildeo pode aceitar o seu contraacuterio

a morte sendo a forma vida (ηὸ ηο δσο εἶδνο Fed 106d6) e o que tem parte nela a

alma imortais (Fed 105d-e) No mesmo raciociacutenio o que tem parte na vida e portanto

o atributo de imortalidade natildeo pode aceitar a destruiccedilatildeo o que equivale agrave morte ndash ldquo() e

a Forma em si todos concordam que nunca perecemrdquo (Fed 106d5-7) O corpo por natildeo

partilhar da forma vida como a alma estaacute sujeito agrave destruiccedilatildeo (Fed 106e5) Tem-se

explicado ao modo da dialeacutetica a morte do corpo e a imortalidade da alma

Conclusotildees sobre a θξόλεζηο

Em poucas palavras o pensamento descreve a capacidade e a atividade

cognitiva o estado autecircntico do intelecto e o estado de interaccedilatildeo da alma com

inteligiacuteveis na qual permite a ela estar o mais proacuteximo possiacutevel de seu estado natural

Tais aspectos indicam que a excelecircncia do pensamento no diaacutelogo Feacutedon eacute antes

anaacuteloga ao modo autecircntico que a intelecccedilatildeo assume no decorrer da emancipaccedilatildeo da

alma pela filosofia O pensar sobre o qual se pretende argumentar no diaacutelogo para

realizar a investigaccedilatildeo acerca da imortalidade diz respeito ao exerciacutecio pleno da

faculdade inteligente ou dito de outro modo o seu exerciacutecio autocircnomo referido em um

primeiro momento nos termos de ldquopensamento purordquo A liberdade que a θξόλεζηο deve

adquirir em uma condiccedilatildeo de total ausecircncia dos sentidos tal como descreve o estado de

morte mostra a natureza distinta e ascendente da inteligecircncia que tem na elevaccedilatildeo

intelectual e no desapego do sensiacutevel as condiccedilotildees que favorecem seu exerciacutecio A

automonia da razatildeo consiste na condiccedilatildeo mais condizente com a natureza do pensar na

qual a alma atinge o grau maacuteximo de cogniccedilatildeo uma postura adequada agrave sua natureza a

postura intelectual e um meacutetodo para adquirir resultados vaacutelidos em um

empreendimento racional Todo o empreendimento filosoacutefico tem em vista esta

autonomia pois eacute ela a liberdade possiacutevel agrave alma ainda presa em corpo humano

220

O pensamento estabelece relaccedilatildeo com as ideias inteligiacuteveis seu verdadeiro

objeto podendo atraveacutes delas conhecer a verdade e elaborar uma explicaccedilatildeo (loacutegos)

razoaacutevel sobre a imortalidade da alma Do mesmo modo pode inferir acerca da vida

apoacutes a morte do corpo com bases mais seguras dadas pela razatildeo A relaccedilatildeo entre o alma

e inteligiacutevel que o intelecto estabelece nas tratativas com as ideias em um primeiro

momento dada nos termos de uma afecccedilatildeo (Fed 79d) mas posteriormente dita como

um exerciacutecio do loacutegos filosoacutefico indica o conhecimento como o modo de apreensatildeo do

caraacuteter inteligiacutevel o qual eacute afim com a natureza da alma A interaccedilatildeo com inteligiacuteveis

constitui um estado duradouro de inteligibilidade no qual a alma apreende o ser e as

qualidades semelhantes ao que eacute divino tendo por via da alta intelecccedilatildeo desse modo a

restauraccedilatildeo do seu estado natural Dito de outra maneira o alto pensamento que

constitui a θξόλεζηο preserva a natureza inteligente da alma e por consequecircncia seu

verdadeiro modo de atuar

Sendo assim nos termos de uma afecccedilatildeo pode ser entendido como uma resposta

aos objetos com os quais interage de modo a assimilaacute-los Como exerciacutecio inteligente o

qual se daacute por meio do meacutetodo constitui a apreensatildeo dos aspectos inteligiacuteveis acerca do

que se tem em exame de modo a discerni-los e utilizaacute-los tal como se deu na prova da

imortalidade para a qual a Teoria das Ideias e o meacutetodo foram os pilares Nos dois

casos tem-se o pensamento no niacutevel mais alto atuando com os objetos inteligiacuteveis e

trazendo de algum modo benefiacutecios quer como vantagens para a alma as virtudes e o

seu cuidado por exemplo quer como a aquisiccedilatildeo de elementos teoacutericos e

metodoloacutegicos que conduzem a uma hipoacutetese indubitaacutevel Seja como for com o

conhecimento das ideias a alma tem elementos para atraveacutes da filosofia se emancipar do

corpo e fazer suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre um domiacutenio maior o da morte

O caraacuteter de testemunho que o argumento da reminiscecircncia confere ao pensar

indica a afinidade dele com o inteligiacutevel e sobretudo a possibilidade de superaccedilatildeo de

um plano a outro ou seja do sensiacutevel para o inteligiacutevel A descriccedilatildeo desta superaccedilatildeo

afirma a presenccedila de uma faculdade cognitiva independente do corpo e adianta assim a

hipoacutetese da sobrevivecircncia da alma com atividade inteligente em um plano distinto do da

vida humana A anterioridade indicada por meio da reminiscecircncia propotildee de certo

modo o alcance da faculdade da razatildeo o qual se torna limitado ao nascer em corpo

humano mas ao mesmo tempo mostra ao filoacutesofo a possibilidade de explorar outro

objeto aleacutem do experienciado pelas sensaccedilotildees (ἕηεξόλ ηη) um outro domiacutenio O papel de

inquiridor do pensar sugerido nas pistas dadas pela reminiscecircncia encontra na

221

explicaccedilatildeo acerca do loacutegos filosoacutefico os meios para realizar tal superaccedilatildeo O percurso

do intelecto eacute dado neste contexto na verificaccedilatildeo das hipoacuteteses e desse modo na

constante inspeccedilatildeo do objeto e da proacutepria atuaccedilatildeo da razatildeo A alta intelecccedilatildeo estaacute em

fazer este percurso e chegar agrave hipoacutetese inabalaacutevel a ideia do que se investiga Assim a

apreensatildeo na dialeacutetica no Feacutedon se daacute pela superaccedilatildeo de hipoacuteteses mas longe de

constituir uma intuiccedilatildeo o objeto uacuteltimo deve se revelar enquanto tal resistindo ao teste

do filoacutesofo com a sua dialeacutetica O pensamento adquire o seu objeto de conhecimento

apoacutes essa atividade de inquiriccedilatildeo mostrando desse modo seu caraacuteter especulativo

A excelecircncia do pensamento filosoacutefico estaacute diante disso em fazer este percurso

de superaccedilatildeo intelectual ateacute a apreensatildeo da ideia Condizente com o seu aspecto

emancipador e provedor das virtudes o pensamento tal como apresenta o Feacutedon supotildee

antes de tudo a relevacircncia da atividade filosoacutefica embora natildeo se decirc de fato a conquista

de seu objetivo maior Essa eacute a resposta pertinente ao se questionar em que medida a

inteligecircncia da θξόλεζηο eacute exequiacutevel em vida dado que sua plena realizaccedilatildeo ocorre

apoacutes a morte do corpo Trata-se de mostrar no decurso de uma vida filoacutesoacutefica os

esforccedilos e a realizaccedilatildeo plena das possibilidades de conhecimento ainda que estes natildeo

sejam capazes de oferecer mais que uma convicccedilatildeo e alimentar a esperanccedila do filoacutesofo

de obter um bom destino A θξόλεζηο em vida humana se efetiva com o exerciacutecio

filosoacutefico e todo o conhecimento possiacutevel nesta condiccedilatildeo precaacuteria mostrando seu valor

nos benefiacutecios que propricia agrave alma Uma conduta deste tipo encontra sentido na ligaccedilatildeo

que a inteligecircncia estabelece com um domiacutenio das coisas verdadeiras semelhantes ao

divino proporcionando a alma um grau de saber ou seja o conhecimento dos

verdadeiros valores pelos quais ela deve se orientar e seguir O limite do conhecimento

dado pelo que oferece as ideias mostra o fundamento das coisas verdadeiras o que

parece suficiente para indicar o domiacutenio em que deve atuar o pensamento e as

orientaccedilotildees mais importantes para a vida Desse modo a alta inteligecircncia descreve o

amor do filoacutesofo pela sabedoria o qual adquire o conhecimento maacuteximo dentro dos

limites de sua condiccedilatildeo

222

Conclusatildeo geral

Em uacuteltima instacircncia a inteligecircncia consiste na superaccedilatildeo de planos do senso

comum para o filosoacutefico da ignoracircncia para o conhecimento do sensiacutevel para o

inteligiacutevel a partir da qual se apreende os objetos ideais com o objetivo de realizar

inferecircncias razoaacuteveis e portanto plausiacuteveis sobre os temas considerados de maior valor

como o Bem e a imortalidade A excelecircncia de um trabalho como esse estaacute por sua vez

na busca e na apreensatildeo possiacutevel de objetos de tal magnitude atividade que potildee a alma

em sua melhor condiccedilatildeo O movimento de superaccedilatildeo que mostra a ascese da alma a um

plano superior no qual alcanccedila uma condiccedilatildeo de maturidade e perfeiccedilatildeo daacute-se pela

capacidade de apreender as formas e obter assim o verdadeiro conhecimento

Apreender as realidades se traduz em adquirir os conhecimentos e constitui o meio e o

estaacutegio mais elevado da capacidade racional a partir dos quais se pode fazer as

inferecircncias possiacuteveis e plausiacuteveis sobre temas que extrapolam os limites da razatildeo

Tem-se na condiccedilatildeo de ascensatildeo inteligente o desenvolvimento da habilidade de

ascender e de fazer as relaccedilotildees necessaacuterias para apreender a causa ou princiacutepio que

governa tudo e que permite supor o que estaacute aleacutem da capacidade dele proacuteprio

(pensamento) Eacute provaacutevel que nessas duas accedilotildees ascender e relacionar resida a

principal diferenccedila da inteligecircncia O movimento de superaccedilatildeo ao ter em vista algo que

exceda agrave sua capacidade potildee em xeque a sua proacutepria atuaccedilatildeo e alcance o que mostra ser

as realidades o meio para a intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo seu objeto maacuteximo e final A

excelecircncia do pensamento estaacute sendo assim em adquirir este niacutevel de apreensatildeo no

qual se tem o conhecimento maacuteximo e se torna possiacutevel inferir

A superaccedilatildeo que constitui a inteligecircncia natildeo deve ser vista somente na ascensatildeo

em relaccedilatildeo ao plano superior dos inteligiacuteveis Uma completa superaccedilatildeo deve levar em

conta a postura do filoacutesofo em se orientar pelos conhecimentos adquiridos Tanto a

atuaccedilatildeo poliacutetica do filoacutesofo governante quanto a conduta cordata do filoacutesofo na

iminecircncia da morte resultam de ter os inteligiacuteveis como referecircncia o que significa a

permanecircncia no estado de interaccedilatildeo com os seres verdadeiros pela filosofia Ao mesmo

tempo tal estado se constitui da capacidade da razatildeo de estabelecer relaccedilotildees revelando

a face praacutetica dos conhecimentos As ligaccedilotildees que se pode fazer ao modo da visatildeo

223

sinoacuteptica ou ao modo da averiguaccedilatildeo dialeacutetica nos termos de uma superaccedilatildeo de

hipoacuteteses revelam ser factiacuteves os ideais poliacuteticos e existecircncias

A elevaccedilatildeo a um grau de superioridade consiste nesse sentido na frequentaccedilatildeo

ou ascensatildeo e permanecircncia de seres superiores e coloca ao mesmo tempo o filoacutesofo

em situaccedilatildeo de excelecircncia ao exigir dele o desenvolvimento e plena realizaccedilatildeo de sua

capacidade intelectual O pensamento mostra assim sua abrangecircncia nos papeacuteis de

atividade de uma faculdade no seu desenvolvimento e estado e tem na inteligecircncia seu

modo mais elevado e a face mais perfeita de sua atuaccedilatildeo

224

Bibliografia

Ediccedilotildees de apoio

- Platatildeo A Repuacuteblica trad Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

- Platon La Reacutepublique trad Eacutemile Chambry Ed Belles Lettres 1996

- Plato Republic Harvard University Press trad Chris Emlyn-Jones and William

Preddy Loeb Classical Library Vol VI e VI 2013

- Plato The Republic trad And Introduction REAllen Yale University 2006

- Platatildeo Feacutedon trad Maria Teresa Schiappa de Azevedo Imprensa Oficial UNB

2000

- Platon Pheacutedon Paris Flamarion 1991

- Platon Pheacutedon Paris Editions Belle Lettres 1957

- Platatildeo Fedoacuten Editorial Madrid Gredos 1997

- Platatildeo Fedatildeo trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem Ed UFPA 3a ediccedilatildeo 2002

- Plato Phaedo Tradution of C J Rowe Cambridge University Press 1996

(Cambridge Greek and Latin Classics)

- Plato Phaedo trad David Gallop Claredon Press Oxford 2002 2ordf ed

- Plato Phaedo tradution Fowler H N Cambridge Massachusetts Harvard

University Press Loeb Classical Library Vol 1

- Hackford R Plato‟s Phaedo Cambridge 1955

- Platatildeo Fedro Paris Ediccedilotildees 70 Lisboa

- Platon Phegravedre Paris Ed Belles Lettres 1947

- Platon Phegravedre Paris Flammarion 2000

225

Platatildeo Apologia de Soacutecrates Lisboa Ediccedilotildees 70

- Platatildeo Criacuteton Lisboa Ediccedilotildees 70

- Plato Phaedrus tradution Fowler H N Cambridge Massachusetts Harvard

University Press Loeb Classical Library vol 1

- Platatildeo O Banquete Ediccedilotildees 70 Lisboa 2010

- Platatildeo Teeteto trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem Ed UFPA 3a ediccedilatildeo 2001

- Platon Teegraveteacutete in Coleccedilatildeo Belles Lettres tomo VIII

- Platatildeo Sofista trad Jorge Poleikat e Joatildeo Cruz Costa Abril Cultural 1972 (col

Os Pensadores)

- Platatildeo Meacutenon trad Maura Iglesias Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Ed Puc Rio 2003

2a ediccedilatildeo

- Platatildeo A Carta VII Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade dos Santos e Juvino Maia JrSatildeo

Paulo Ediccedilotildees Loyola Ed Puc Rio 2008

- Platatildeo Philebo Trad Fernando Muniz Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Puc Rio 2012

- Platon Ouvres Complegravetes direction Luc Brisson Flammarion 2011

Bibliografia Criacutetica

- Acrill J Anamnesis in the Phaedo ndash Remarks on the 73c-75c ldquo in Essays on

Plato and Aristotle New York Oxford University Press 1997

- Adam J The Republic Of Plato Cambridge University Press vol 2 2009

226

- Allen R E ldquoKnowledge and Forms in Platos Theatetus rdquo in Studies in Plato‟s

Metaphysics London Routledge 2a edition 2013

- Allen R E (ed) Studies in Plato‟s Metaphysics London Routledge 2a erd ed

2013

- Annas J ldquoOn The Intermediatesrdquo in Archiv fuumlr Geschichte der Philosophie 57

1975

- Annas J Introdution agrave la Reacutepublique de Platon Paris Presses Universitaires de

France 1994

- Apolloni D ldquoPlato‟s Affinity Argument for the Immortality of the Soulrdquo in

Journal of the History of Philosophy 34 p 5-32

- Aubenque P ldquoDe L‟ Egaliteacutes des Segments Intermeacutediaires dans La Ligne de La

Reacutepubliquerdquo in Sophie Maietores ndash Chercheurs de Sagesse Paris Institut

d‟Etudes Augustiniennes 1992

- Azevedo M T S Platatildeo Helenismo e Diferenccedila ndash Raiacutezes culturais e Anaacutelises

dos Diaacutelogos Satildeo Paulo Annablume 2012

- Benson H (org) Platatildeo Porto Alegre Artmed 2001

- Bernabeacute A Platatildeo e o Orfismo ndash Diaacutelogos entre Religiatildeo e Filosofia Satildeo Paulo

Annablume 2011

- Bostock D ldquo The Soul And Imortality In Plato‟s Phaedordquo in Gail Fine (ed)

Plato 2- Etics Politcs Religion and the Soul Oxford University Press

- Breacutehier E ldquoAretai Katharseisrdquo in Etudes de Philosophie Antiquerdquo Paris

Presses Universitaires de France 1955

- Brisson L ldquoReminiscence in Platordquo in Platonism and Forms of Intelligence

Dillon J Zouko M E (orgs) Berlin Akademie Verlag 2008

- Brisson L Meyerstein F W Puissance et Limites de la Raison ndash Le Problegraveme

des Valeurs Paris Les Belles Lettres 2014

- Bluck R S ldquoHypotesis in the Phaedo and platonic Dialeticrdquo in Phronesis 1957

- Casertano G ldquoO Bem e a Linhardquo in Xavier D Cornelli G (orgs) A Repuacuteblica

de Platatildeo ndash Outros Olhares Satildeo Paulo Loyola 2011

- Chen C H Acquiring Knowledge of the Ideas- A Study of Plato‟s Methods in

the Phaedo The Symposium and the Central Books of the Republic Franz

Steiner Verlag Stuttgart 1992

227

- Cherniss H ldquoSome Wartime Publications Concerning Platordquo in Harold

Cherniss Select Papers Brill 1977

- _________ ldquoPlato as Mathematician in Haroldrdquo in Cherniss Select Papers Brill

1977

- __________ ldquoThe Philosophical Economy of Theory of Ideasrdquo in Harold

Cherniss Select Papers 1977

- Cooper N ldquoThe Importance of Dianoia in Platos Theory of Formsrdquo in The

Classical Quartely no1 Cambridge University Press On Behalf Association vol

16 1966

- Cordero N L (org) Ontologie et Dialogue- Meacutelanges en Hommage agrave Pierre

Aubenque Paris Vrin 2000

- Cornford F ldquo Mathematics and Dialectic in The Republicrdquo in Mind New Series

no 160 Oxford Press on behalf of the Mind Association vol 41 1932

- ____________ La Teoria Platonica Del Conocimiento El Teeteto y El Sofista

Buenos Aires Paidos 1968

- Denyer N Sun and Line in Plato‟s Republic Cambridge 2007

- Dillon J e Zovko M E Platonism And Forms of Inteligence Akademi Verlag

2008

- Dixsaut M Eacutetudes Sur La Republique de Platon II Paris Vrin 2006 vol 2

- __________Meacutetamorphoses dela Dialectique dans les Dialogues de Platon

Paris Vrin 2001

- __________Platon et la Question de lAcircme Eacutetudes Platoniciennes II Paris

Vrin 2013 1

- ___________Platon et la Question de la Penseacutee - Eacutetudes Platoniciennes I

Paris Vrin 2000

- Dorion LA Socrate Paris PUF 2004

- ________ L‟Autre Socrate ndashEtudes Sur Les Eacutecrits Socratiques de Xeacutenophon

Les Belles Lettres 2013 (col L‟Acircne D‟or)

- Donini P Ferrari F O Exerciacutecio da Razatildeo no Mundo Claacutessico- Perfil da

Filosofia Antiga Satildeo Paulo Annablume 2012

- Ferejohn M ldquoO Conhecimento e as Formas em Platatildeordquo in Platatildeo Benson H

(org) Porto Alegre Artmed 2011

228

- Fine G ldquoKnowledge and Belief in The Republic 5-7rdquo in Plato Oxford

University Press 2000

- Goldschmidt V Le Paradigme das la Dialectique Platonicienne Paris Vrin

2a ed 2003

- ____________ Os diaacutelogos de Platatildeo- Estrutura e Meacutetodo Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2002

- Gosling JCB The Argument of the Philosophers London and New York

Routledge 3a erd 2001

- ___________ ldquoDoacutexa and Duacutenamis in Platos Republicrdquo in Phronesis n 2 Brill

vol 13 1968

- ___________Plato Routledge and Kegan Paul 1973

- Guardini R La Mort de Socrate Paris Editions du Seuil 1954

- Gunthrie W KC Platos Views on The Nature of the Soul in Plato II

Metaphysics and Epistemology Gregory Vlastos ( org) 1971

- Gueacuteroult Martial ldquoLa Meditation de L`Acircme Sur L`Acircme dans Pheacutedonrdquo in

Revue De Metaphysique Et Morale 1926

- Hall R W ldquoPsykhe as Differentiated Unity in the Philosophy of Platordquo in

Phronesis 1963

- Iglesias Maura Platatildeo- ldquoA Descoberta da Almardquo in Boletim do CPA Ano IV

no 56 1998

- Jaeger W Paideia- A Formaccedilatildeo do Homem Grego Satildeo Paulo Martins Fontes

1995

- Kahn C rdquoPlatatildeo e a Reminiscecircnciardquo in Platatildeo Benson H (org) Porto Alegre

Artmed 2011

- Kraut R (org) Platatildeo Satildeo Paulo Ideias e Letras 2013

- Klosko G ldquoThe Tule of Reason in Platos Psychologyrdquo in History Philosophy

Quartely no 5 1988

- Kucharski P Laffiniteacute entre les idees et lacircme dapregraves le Phedon Achives de

Philosophie 26 1963

229

- Loriaux S J L‟Ecirctre et La Forme Selon Platon- Essai Sur Dialectique

Platonicienne Descleacutee De Brouwer 1955

- Mathews G Platos Epistemology and Related Logical Problems Faber and

Faber 1a ed 1972

- Migliori M Il disordine ordinato La filosofia dialettica di Platone

Morcelliana Bresci 2013

- Migliori M Fermani A Platatildeo e Aristoacuteteles ndash Dialeacutetica e Loacutegica Satildeo Paulo

Ediccedilotildees Loyola 2012

- Moravcsisk J M E Patterns in Platos Thought D Reidel Publishing Company

1973

- ____________ Reason and Eros in the Ascent Passage of Symposium Essays in

Ancient Greek Philosophy Anton and Kustas ( orgs) Albany State University

of New York Press 1972

- ____________Plato and Platonism Blackwell 1992

- Morrison J S ldquoTwo Unresolved Difficulties in the Line and Caverdquo in Phronesis

no 03 Brill vol 22 1977

- Moulinier L Le Pure et Le Impure dans La Penseacutee des Grecs- De Homere a

Aristote Paris Librarie Klincksiec

- Murgier C Eacutethiques en Dialogue ndash Aristote Lecteur de Platon Paris Vrin 2013

- Opsomer J In Search of The Truth Academic Tendences in Middle Platonism

Brussel Palais der Acadamien 1998

- Ostenfeld E N Forms Matter and Mind Three Strands in Platos Metaphysics

Springer 1982

- Pakaluk Michel ldquoDegrees of Separation in the Phaedordquo in Phronesis - Journal

For Ancient Philosophy Leiden Brill XLVIII 2 2003

- Pappas N A Repuacuteblica de Platatildeo ediccedilotildees 70 Lisboa 1995

- Passmore J Philosophical Reasing 1961

- Penner T ldquoKnowledge vs True Belief in the Socratic Psychology of Actionrdquo in

Apeiron 1996

230

- _________ ldquoThought and Desire in Platordquo In Plato - A Collection of Critical

Essays Ethics Politics and Philosophy of Art and Religion Gregory

Vlastos (org) Garden City New York Doubleday Anchor Books 1971

- __________ ldquoAs Formas e as Ciecircncias em Soacutecrates e em Platatildeordquo in Platatildeo

Benson H (Org) Porto Alegre Artmed 2011

- Renault O Histoire des doctrines de l‟antiquiteacute classiqueraquo XLV 45 Paris Vrin

2014

- _________Platon ndash La Meacutediation Des Eacutemotions Paris Vrin 2014

- Robinson T M A Psicologia de Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007

- ___________As Origens da Alma ndash Os Gregos e o Conceito de alma de Homero

a Aristoacuteteles Satildeo Paulo Annablume 2010

- Ross W D Theory of Ideas Claredon Press- Michigan University 1953

- Rossetti L Understanding The Phaedrus ndash Proceedings Of The Symposium

Platonicum Germany Academia Verlag Sankt Augustin 1992

- Sallis J Being and Logos ndash Reading the Platonic Dialogues Bloomington and

Indianapolis Indiana University Press 1996 3erd ed

- Santas G X Socrates Philosophy in Plato‟s Early Dialogues Routledge 1979

(col The Arguments of the Philosophers)

- Santos J T Feacutedon- Platatildeo Alda Editores 1998

- Silverman A The Dialectic of Essence ndash Study of Plato‟s Metaphysics New

Jersey Princeton University Press 2002

- Schaumlefer C Leacutexico Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2012

- Schuhl P M Platatildeo e a Arte de Seu Tempo Satildeo Paulo Discurso Editorial

Barcarolla 2010

- Scolnicov S Platatildeo e o Problema Educacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006

- Scott D Recollection and Experience - Plato‟s Theory of Learning and its

Successors Cambridge University Press 1995

231

- Smith N D (ed) Plato Critical Assessments ndash Plato‟s Middle Period

Metaphysics and Epistemology Vol 2 London and New York Routledge 1998

- ___________Plato Critical Assessments ndash Plato‟s Middle Period Psychology

and Value Theory Vol 3 London and New York Routledge 1998

- Stricker E ldquoLa Distinction Entre L‟Entendement (Diaacutenoia) e L‟Intellect (Nous)

Dans La Republique De Platonrdquo in Estudios De La Historia De La Filosofia ndash

Homenaje ao Profesor Rodolfo Mondolfo Vol I Argentina Universidad Nacional

de Tucuman 1957

Stocks J L ldquoThe Divided Line of Rep VIrdquo in The Classical Quartely vol 5 no

2 1911

Trabattoni F ldquoIl Sapere del Filosofordquo in Vergetti M (Ed) La Repubblica

Naacutepoles Bibliopolis vol 5 2003

- Taylor C C W From Beginning to Plato London and New York Routledge

vol 1 2001

- Vlastos G Platonic Studies New Jersey Princeton University Press 2a ed

1981

- White F C ldquoThe Phaedo and The Republic V on The Essencesrdquo in The Journal

of Hellenic Studies Vol 98 1978

- Wolff F Nossa Humanidade ndash De Aristoacuteteles agraves Neurociecircncias Satildeo Paulo Ed

Unesp 2012

- ___________ Soacutecrates o Sorriso da Razatildeo Satildeo Paulo Editora Brasiliense 2a ed

1983

232

  • Phronesis e Noesis em PlatatildeoA Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico
    • RESUMO
    • ABSTRACT
    • Sumaacuterio
    • Parte I A Repuacuteblica
      • V A perspectiva da inteligecircncia
      • Introduccedilatildeo
      • I A Excelecircncia do Filoacutesofo
        • 11 O filoacutesofo governante
        • 12 A melhor parte da alma
        • 13 O Conhecimento dos valores
        • 14 O objeto de desejo do filoacutesofo
        • 15 A postura intelectual
          • II A Cogniccedilatildeo
            • 21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem
            • 22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento
            • 23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios
            • 24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel
              • III Atividade Inteligente
                • 31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα
                • 32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ
                • 33 A funccedilatildeo da dialeacutetica
                • 34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo
                  • IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento
                    • 41 Operaccedilotildees e regras do pensamento
                    • 42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma
                    • 43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο
                    • 44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ
                    • 45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel
                        • Parte II Feacutedon
                          • I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel
                            • 11 O filoacutesofo agrave beira da morte
                            • 12 O pensar e o estado de morte
                            • 13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro
                            • 14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva
                              • II A natureza inteligiacutevel
                                • 21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva
                                • 22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο
                                • 23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia
                                • 24 Distinccedilotildees entre alma e corpo
                                • 25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο
                                  • III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico
                                    • 31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο
                                    • 32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο
                                    • 33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico
                                      • IV Atividade do puro pensamento
                                        • 41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa
                                        • 42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese
                                        • 43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento
                                            • Conclusatildeo geral
                                            • Bibliografia
Page 2: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,

Prof Dr Roberto Bolzani Filho

SHEILA PAULINO E SILVA

Phronesis e Noesis em Platatildeo

A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico

Versatildeo Corrigida

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia do

Departamento de Filosofia da Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

da Universidade de Satildeo Paulo para a

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em

Filosofia sob orientaccedilatildeo do Prof Dr

Roberto Bolzani Filho

2016

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte

Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Silva Sheila Paulino e Silva

Phronesis e Noesis em Platatildeo A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico Sheila Paulino e Silva Silva orientador Roberto Bolzani Filho Bolzani - Satildeo Paulo 2015

245 f

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Filosofia

1 PLATONISMO 2 FILOSOFIA GREGA 3 RACIOCIacuteNIO

(PENSAMENTO) 4 DIAgraveLOGOS 5 586 I Bolzani Roberto Bolzani Filho orient II Tiacutetulo

1

Para os meus pais

Dona Claudineacuteia e Sr Valter os quais

sem saberem ensinaram-me a

importacircncia de questionar sempre

2

Agradecimentos

Meus francos agradecimentos ao meu orientador Prof Dr Roberto Bolzani Filho

pela oportunidade

Aos Professores Francis Wolff da Eacutecole Normale Superieacuteure- Paris pela preciosa

orientaccedilatildeo e Dimitri El Murr da Universiteacute de Paris I pela generosa acolhida

Pela gentil e orientadora arguiccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo meus

agradecimentos agrave Professora Eliane Christina de Souza (UFSCAR) e Marco Antocircnio

Zingano (USP)

Aos professores Prof Dr Daniel Rossi Nunes Lopes e Prof Adriano Machado

Ribeiro pelo diaacutelogo em aulas e corredores

Aos colegas e professores dos estudos claacutessicos com os quais muito pude

aprender nos grupos de estudos Maria Eduarda Oliveira Prof Dr Andreacute Malta

Vicente de Arruda Sampaio e especialmente ao colega e professor de liacutengua grega

Maacutercio Mauaacute Chaves Ferreira por emprestar inteligecircncia e entusiasmo

Ao pessoal da secretaria Maria Helena Mariecirc Luciana Geni e Susan

Meu muito obrigado aos amigos Deborah Akemi Leila Andreacute Mayra Marina

Rineu Quinaglia e Prof Dr Thomaz Kawauche Agrave minha matildee irmatildeos e agrave Nina

A realizaccedilatildeo desta pesquisa natildeo seria possiacutevel sem as bolsas de estudos que me

foram concedidas a bolsa de doutorado do Conselho Nacional de Pesquisa ndash CNPQ a

qual garantiu que eu pudesse me dedicar exclusivamente a esta pesquisa e a ldquobolsa-

sanduiacutecherdquo concedida pela Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash CAPES imprescindiacutevel para a realizaccedilatildeo dos estudos em Paris

3

RESUMO

SILVA S P Phronesis e Noesis em Platatildeo - A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico

2015 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015

Pretende-se averiguar neste trabalho a concepccedilatildeo de pensamento ou

inteligecircncia que os diaacutelogos A Repuacuteblica VI e VII e Feacutedon apresentam Trata-se de

pontuar a partir da anaacutelise das questotildees que envolvem o trabalho cognitivo da alma

mais precisamente os temas sobre o conhecimento a reminiscecircncia o meacutetodo dialeacutetico

e a apreensatildeo das ideias a concepccedilatildeo de excelecircncia da racionalidade que o pensamento

filosoacutefico sugere Dada a hipoacutetese de que os diaacutelogos oferecem uma visatildeo de aquisiccedilatildeo

de superioridade da alma visatildeo coincidente em muitos aspectos tem-se a sugestatildeo do

pensar nos termos de atividade e de estado igualmente superiores ou excelentes no

qual se tem a plena realizaccedilatildeo das capacidades racionais O cerne da pesquisa consiste

em verificar na descriccedilatildeo da atividade filosoacutefica o que caracteriza a inteligecircncia e obter

uma compreensatildeo acerca desse trabalho do pensamento em sua maacutexima capacidade o

qual se desenvolve na busca do conhecimento que possa dizer acerca das questotildees mais

importantes como o Bem e a imortalidade

Palavras-chave inteligecircncia excelecircncia superaccedilatildeo filoacutesofo

4

ABSTRACT

SILVA S P θξόλεζηϛ and Nόεζηϛ in Plato ndash The Excelence of Philosophic Thought

2015 Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015

It is intended to investigate in this paper the concept of thought or intelligence

that is presented in the dialogues Republic VI and VII and Phaedo It concerns to point

out from the analysis of the issues surrounding the cognitive work of the soul more

precisely the themes about knowledge the reminiscence the dialectical method and the

apprehension of ideas the concept of the excellence of rationality that the philosophical

thought suggests Given the hypothesis that the dialogues offer a view on acquisition of

superiority of the soul coinciding view in many aspects there is the suggestion of

thinking in terms of activity and state equally superior or excellent in which one has the

full accomplishment of the rational capacities The research core consists in verifying

the description of philosophical activity which characterizes the intelligence and

acquiring an understanding of this work of the thought in its full capacity which

develops in the pursuit of the knowledge that can tell about the most important issues

such as Good and immortality

Key-Words intelligence excellence resilience philosopher

5

Lista de abreviaturas

A Repuacuteblica = Rep

Feacutedon = Fed

Meacutenon = Men

Teeteto = Teet

Fedro = Fedr

Livro ou livros = Liv

6

Sumaacuterio

Parte I A Repuacuteblica

Introduccedilatildeo 8

I A Excelecircncia do Filoacutesofo 15

11 O filoacutesofo governante 16

12 A melhor parte da alma 19

13 O Conhecimento dos valores 23

14 O objeto de desejo do filoacutesofo 30

15 A postura intelectual 33

II A Cogniccedilatildeo 37

21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem 37

22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento 41

23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios 51

24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel 56

III Atividade Inteligente 63

31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα 65

32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ 76

33 A funccedilatildeo da dialeacutetica 83

34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo 89

IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento 93

41 Operaccedilotildees e regras do pensamento 93

42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma 101

43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο 105

44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ 110

45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel 117

V A perspectiva da inteligecircncia 125

Conclusotildees sobre a λόεζηϛ 133

Parte II Feacutedon

7

I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel 139

11 O filoacutesofo agrave beira da morte 139

12 O pensar e o estado de morte 142

13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro 146

14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva 157

II A natureza inteligiacutevel 161

21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva 161

22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο 173

23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia 176

24 Distinccedilotildees entre alma e corpo 181

25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο 183

III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico 190

31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο 193

32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο 198

33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico 204

IV Atividade do puro pensamento 208

41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa 209

42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese 211

43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento 214

Conclusotildees sobre a θξόλεζηο 219

Conclusatildeo geral 222

Bibliografia 224

8

Introduccedilatildeo

O que eacute o pensamento Antes de se embrenhar na questatildeo que motivou esta

pesquisa eacute necessaacuterio se dispor a seguir os caminhos ora tortuosos que os textos

colocam para o seu leitor Deve-se dizer que essa natildeo eacute uma questatildeo formulada nesses

termos com este enquadramento aparentemente direto mas erige e tem suas resoluccedilotildees

na medida do que pede o tratamento do assunto tema de cada diaacutelogo Talvez agrave exceccedilatildeo

do Teeteto diaacutelogo o qual apresenta a necessidade de discernir acerca do trabalho

intelectual em oposiccedilatildeo agraves sensaccedilotildees para defender a razatildeo como faculdade cognitiva1 e

do Sofista onde Platatildeo se obriga a responder acerca da possibilidade do falso e desse

modo mostrar a saiacuteda para um loacutegos verdadeiro2 as indagaccedilotildees sobre a atividade do

pensamento eacute dada na maioria das vezes como um questionamento sobre o proacuteprio

exerciacutecio intelectual No desenrolar do exerciacutecio dialoacutegico incontornavelmente os

dialogantes se deparam e precisam em alguma medida pontuar algo acerca do

exerciacutecio racional para dar prosseguimento agrave investigaccedilatildeo

Embora postas nesses termos natildeo se deve concluir que sua importacircncia eacute

deixada em segundo plano Ao contraacuterio trata-se de uma questatildeo pela qual todas as

outras em anaacutelise ganharatildeo legitimidade e revelaratildeo seu fundamento filosoacutefico Sem a

certeza de o diaacutelogo ou no sentido mais teacutecnico o meacutetodo dialeacutetico constituir de fato

uma atividade cognitiva de onde se pode apreender algum conhecimento ou sem a

seguranccedila de seus resultados como conclusotildees vaacutelidas a inquiriccedilatildeo do filoacutesofo natildeo

alcanccedilaria seus objetivos e a investigaccedilatildeo filosoacutefica seria inoacutecua

Os aspectos da atividade do pensar tal como as vaacuterias concepccedilotildees que se pode

ter acerca dele satildeo dadas concomitantemente agraves indagaccedilotildees e respostas que compotildeem o

diaacutelogo filosoacutefico Parece natildeo fazer sentido mostrar o pensar senatildeo em sua atuaccedilatildeo De

fato natildeo parece apropriado tomar o pensamento como uma entidade ou instacircncia

1 Teeteto 189e ldquoMas por pensar entendes a mesma coisa que eurdquo Teeteto trad Carlos Alberto Nunes

Ed UFPA 2001 3a ediccedilatildeo

2 Sofista 263d9-e1 ldquo- E entatildeo natildeo eacute evidente desde jaacute que o pensamento a opiniatildeo a imaginaccedilatildeo satildeo

gecircneros suscetiacuteveis em nossas almas tanto de falsidade como de verdade () Compreenderaacutes mais

facilmente a razatildeo se me deixares explicar em que eles consistem e em que diferem um dos outrosrdquo

Sofista Trad Jorge Poleikat e Joatildeo Cruz Costa Ed Abril Cultural 1972

9

independente ainda que muitas vezes seja inferido e analisado de modo destacado tal

como sugerem as divisotildees e classificaccedilotildees da linha no Livro VI d‟A Repuacuteblica3 e a

formulaccedilatildeo de pensamento puro no Feacutedon4 Tais ocorrecircncias se datildeo a meu ver segundo

o foco narrativo e o contexto em que se daacute ecircnfase agrave atividade mais nobre da alma

Parece plausiacutevel supor que Platatildeo talvez adote como estrateacutegia natildeo perguntar acerca da

racionalidade nesses termos por preferir chamar toda a atenccedilatildeo evidentemente para o

tema eleito Ou ainda eacute possiacutevel conjecturar que a opccedilatildeo de dedicar um diaacutelogo para

responder exclusivamente a esta questatildeo obrigaria o filoacutesofo a acomodar ou a encaixar

subordinadamente os demais temas agraves definiccedilotildees ali atribuiacutedas como uma peccedila nuclear

que faz funcionar as outras que integram um sistema perfeito - concepccedilatildeo de conjunto

que diga-se de passagem parece estar longe de ser aquela que se pode encontrar nos

diaacutelogos O tema do pensamento mais precisamente da racionalidade em seu modo

mais alto mostra assim suas caracteriacutesticas de acordo com o que pede a questatildeo pois

sua realizaccedilatildeo enquanto capacidade se daacute com o desenrolar da investigaccedilatildeo

A polissemia que se atribui aos termos λόεζηϛ e θξόλεζηο demonstram tal

complexidade Ambos assumem ao longo das explanaccedilotildees vaacuterios sentidos ganhando

assim diversas traduccedilotildees tais como saber razatildeo bom senso de acordo com a tocircnica e

com o argumento em que se analisam as questotildees propostas De maneira parecida a

traduccedilatildeo por conhecimento parece seguir a coerecircncia do contexto expondo junto com as

questotildees acerca do pensar em seu grau de excelecircncia a tese sobre o verdadeiro

conhecimento Tais nuanccedilas de sentido quando consideradas propotildeem uma

interpretaccedilatildeo sobre a passagem e sobre o proacuteprio pensamento que muitas vezes vai aleacutem

da reafirmaccedilatildeo da concepccedilatildeo de conhecimento e de inteligecircncia Natildeo se trata

evidentemente de tentar fixar um sentido para cada termo que designa uma atividade

intelectual tampouco considerar as distinccedilotildees que os textos oferecem sobre o pensar um

exerciacutecio a fim de precisar uma nomenclatura Vale a pena verificar o sentido que

Platatildeo parece atribuir ao termo e ao mesmo tempo o que se pode apreender da questatildeo

com essa atribuiccedilatildeo5 Desse modo natildeo se deve admirar as vaacuterias perspectivas em que

ele eacute dado e a evoluccedilatildeo de seu refinamento no interior dos diaacutelogos e na aproximaccedilatildeo

3 As citaccedilotildees do texto seratildeo realizadas a partir da ediccedilatildeo brasileira Platatildeo A Repuacuteblica tradduccedilatildeo Anna

Lia Amaral de Almeida Prado Martins Fontes Satildeo Paulo 2006

4 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizar-se aacute Platatildeo Feacutedon traduccedilatildeo Maria Teresa Schiappa de Azevedo

Imprensa Oficial UNB 2000 5 Platatildeo esclarece ao fim do Livro VII a verdadeira intenccedilatildeo ao realizar as distinccedilotildees e as designaccedilotildees

acerca dos meacutetodos e da atividade racional neles envolvido Longe de ser uma discussatildeo sobre o nome

com o qual se deve referi-los diz pretender examinar as questotildees que suscitam (Rep 533d3)

10

possiacutevel entre as obras Parece ser mais eficiente mostrar as caracteriacutesticas da razatildeo em

seu exerciacutecio por ser a sua atividade o meio mais fiel de dizer a capacidade da alma

buscar a sua excelecircncia

Conveacutem adiantar que embora se pressuponha uma identidade entre o

pensamento nos dois diaacutelogos natildeo se pretende ler um diaacutelogo agrave luz de outro Mais

proveitoso do que tentar responder questotildees e dificuldades da formulaccedilatildeo que um

diaacutelogo apresenta sobre o tema a partir de outro eacute verificar em detalhes o problema em

cada texto e a partir de entatildeo refletir acerca de uma concepccedilatildeo de razatildeo e de atividade

racional no seu modo mais elevado Apesar das diferenccedilas que se pode encontrar em

uma comparaccedilatildeo entre os textos acerca do meacutetodo dialeacutetico das teorias e das visotildees

acerca da alma as quais seratildeo devidamente notadas quando parecer necessaacuterio cabe

assinalar que o emprego desses para o tratamento das questotildees que preocupam o

filoacutesofo parecem ter o mesmo objetivo e oferecem assim uma visatildeo do pensamento

Os aspectos acerca do tema da racionalidade nos diaacutelogos levam inevitavelmente

a diferentes abordagens Em geral os autores que optaram por enfrentar o problema

diretamente valeram-se de uma abordagem loacutegica na qual veem o trabalho intelectual

da filosofia em uacuteltima instacircncia com um propoacutesito de obter definiccedilotildees O caminho para

investigar acerca do pensamento surge nesse segmento da anaacutelise da conceituaccedilatildeo e do

aparato metodoloacutegico especiacutefico sendo o pensar filosoacutefico considerado detidamente

nesta atividade compreendida nos termos de um saber proposicional Outra perspectiva

em que se coloca a questatildeo do pensamento vai na direccedilatildeo oposta na qual se pretende

explicar o conhecimento filosoacutefico como um saber intuitivo uma apreensatildeo ou visatildeo

o qual se obteacutem ao fim de um processo de cogniccedilatildeo Nessa abordagem natildeo raro se

considera a metodologia limitada a qual embora importante parece natildeo ter peso

decisivo na aquisiccedilatildeo dos objetos especiacuteficos da filosofia O pensamento mais

precisamente a inteligecircncia constitui nesse enfoque o movimento que culmina nessa

intuiccedilatildeo

Natildeo se pretende neste trabalho travar uma discussatildeo acerca das visotildees que as

duas correntes pretendem defender Da mesma forma natildeo se tem o objetivo de se situar

em uma delas O que proponho para discussatildeo diz respeito ao modo de interpretar

passagens que permitam sugerir uma compreensatildeo sobre a racionalidade a partir do

estudo destes dois diaacutelogos Suponho que o pensar em seu modo excelente consista

sobretudo na superaccedilatildeo do intelecto em direccedilatildeo aos objetos e domiacutenios superiores

sendo assim a capacidade de alta cogniccedilatildeo e o movimento ascendente que tem em vista

11

as questotildees e as aquisiccedilotildees mais importantes o bem a imortalidade e a felicidade O

pensar compreende desse modo todo o movimento no qual o intelecto atua para sair do

plano das percepccedilotildees e lidar com os objetos que lhe satildeo proacuteprios

Desse modo natildeo se abordaraacute os diaacutelogos a partir de uma perspectiva

cronoloacutegica Pretende-se levantar e analisar as mesmas questotildees independentemente do

que suporia o intervalo entre a feitura e a anterioridade de um ou de outro Deu-se

atenccedilatildeo aos temas que permitem uma anaacutelise detida do assunto sendo considerado

importante para isso destacar os passos na construccedilatildeo do perfil da racionalidade Assim

o contexto em que se coloca e se desenvolve a questatildeo o meacutetodo os objetos a

distinccedilatildeo de planos e a cogniccedilatildeo satildeo temas que pontuam tal construccedilatildeo

O tema nos diaacutelogos

De maneira preacutevia parece pertinente apontar alguns temas e questotildees que

mostram a conveniecircncia de ter os dois diaacutelogos como fonte para o estudo que se propotildee

Cabe alguns comentaacuterios primeiramente acerca da necessidade comum agraves duas obras

de empreender uma investigaccedilatildeo sobre a cogniccedilatildeo e verificar desse modo seu alcance

seus limites procedimentos proacuteprios e validade do pensamento para levar a cabo o

exame da questatildeo tema do diaacutelogo Agrave sua maneira tanto os livros centrais d‟A

Repuacuteblica sobretudo o sexto e seacutetimo livro quanto o Feacutedon mostram que a resposta

acerca do que investigam natildeo dispensa paracircmetros teoacutericos e de meacutetodo adequado que

garantam um exame de acordo com a proposta da filosofia de conhecer

verdadeiramente Sendo assim ambos apresentam as caracteriacutesticas do trabalho racional

segundo a filosofia de modo a oferecer o procedimento e o significado conferido por

ela ao pensamento

Nesse sentido tem-se a importacircncia do estudo acerca de uma noccedilatildeo de um bem

metafiacutesico e compreensiacutevel pelo intelecto para averiguar os fundamentos da cidade

justa tal como mostra o livro VI A conveniecircncia de investigar a ideia do bem surge da

necessidade ter definiccedilotildees e certa clareza acerca do conhecimento ao modo filosoacutefico

uacutenico capaz de apreender tais alicerces Desse modo a cogniccedilatildeo sobretudo torna-se

objeto de investigaccedilatildeo por ser ela a atividade pela qual deve se dar tais apreensotildees e

12

pela qual o filoacutesofo governante deve ter as suas orientaccedilotildees para o comando da cidade

Ao ter a filosofia entre os temas da poliacutetica e uma vez traccedilado o perfil do futuro

governante de acordo com o Livro V faz parte da investigaccedilatildeo distinguir os elementos

que compotildeem o caraacuteter intelectual do filoacutesofo governante e que contribuem por meio

dele para a constituiccedilatildeo da cidade perfeita6 De modo sucinto dado o caraacuteter do

governo e da cidade a saber justo bom virtuoso e saacutebio conveacutem averiguar o que os

torna enquanto tais a saber o uso da racionalidade agrave maneira filosoacutefica Os Livros VI e

VII consistem desse modo nas seccedilotildees onde o filoacutesofo que investiga acerca da justiccedila

tem de se debruccedilar sobre as questotildees especiacuteficas ao tema do pensamento para mostrar a

relevacircncia e magnitude do estudo mais importante

As consideraccedilotildees sobre a alma e sobre o exerciacutecio filosoacutefico no Feacutedon tambeacutem

apontam para a necessidade de discernir acerca dos elementos que compotildeem o trabalho

racional Dada identificaccedilatildeo da alma quase exclusivamente agrave faculdade racional a

cogniccedilatildeo seraacute a atividade que restaura a sua natureza e desse modo que permite

encontrar os meios atraveacutes dos quais eacute possiacutevel dar a ela o tratamento adequado que

garantiraacute as qualidades necessaacuterias a saber virtude e inteligecircncia no mais alto grau

possiacutevel (Fed107c8-d2) Desse modo a filosofia como preparaccedilatildeo para a morte sugere

o percurso desse cuidado que consiste em linhas gerais em uma depuraccedilatildeo racional Eacute

necessaacuterio a partir desse contexto distinguir testar e validar o uso da razatildeo nesse

empreendimento filosoacutefico que tem como fim o bom destino e como objetivo imediato

no episoacutedio em que se passa o diaacutelogo o sucesso de uma investigaccedilatildeo sobre a

imortalidade Tanto a depuraccedilatildeo racional do Feacutedon quanto a elevaccedilatildeo cognitiva do

aprendiz d‟A Repuacuteblica VII datildeo mostras da atuaccedilatildeo do pensamento em busca de atingir

seu niacutevel mais superior

A especificaccedilatildeo da filosofia sobre o pensamento surge nos dois diaacutelogos da

necessidade de investigar e propor no que consiste a sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave esfera

que contempla os oacutergatildeos e os dados da sensibilidade Este seraacute provavelmente o grande

alvo a ser atacado isto eacute o qual deveraacute ser analisado para uma vez expostas as suas

fragilidades elucidar atraveacutes das suas contrastantes diferenccedilas com o inteligiacutevel o

trabalho organizado e preciso da racionalidade Quer no contexto da separaccedilatildeo da alma

6 Rep504e ldquoNatildeo seria ridiacuteculo que nos esforcemos e que tudo faccedilamos para que coisas insignificantes

fiquem tanto quanto possiacutevel mais exatas e niacutetidas mas natildeo consideremos que as mais importantes

mereccedilam tambeacutem maior exatidatildeo ndash Seraacute muito ridiacuteculo [Boa a tua ideacuteia] Mas qual eacute o estudo mais

importante Que objeto atribuis a elerdquo Platatildeo A Repuacuteblica traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado

Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

13

em relaccedilatildeo ao corpo quer no contexto da escolha do futuro governante o qual deve ser

educado para superar a ignoracircncia elevando-se da crenccedila nas imagens a anaacutelise da

atividade intelectual deveraacute contar com as objeccedilotildees lanccediladas ao domiacutenio do sensiacutevel

para propor a positividade do empreendimento racional em relaccedilatildeo aos objetos

metafiacutesicos proacuteprios do intelecto As indagaccedilotildees em torno do pensamento e de sua

legitimidade apontam para elementos afins como as ideias e o meacutetodo dialeacutetico os

quais obtecircm suas determinaccedilotildees junto com os desdobramentos do atividade racional em

oposiccedilatildeo ao que eacute proacuteprio agraves sensaccedilotildees Tal assunto apesar dos diferentes enfoques que

recebe nos diaacutelogos e mesmo apesar das distinccedilotildees que os textos apresentam sobre as

mesmas teorias demonstra o esforccedilo do filoacutesofo em apontar o exerciacutecio filosoacutefico como

a saiacuteda para as questotildees que afligem o homem como a morte e a convivecircncia na cidade

e ao mesmo tempo indicar o exerciacutecio do pensamento como o meio mais adequado para

buscar as possiacuteveis resoluccedilotildees Em outros termos ao eleger a distinccedilatildeo sensiacutevel-

inteligiacutevel como o mote para privilegiar a faculdade cognitiva da alma para o trato

destas questotildees os textos atribuem ao pensar a funccedilatildeo de condicionar a alma ao seu

melhor estado

Outro dado que tornam proacuteximos os diaacutelogos diz respeito agrave figura do filoacutesofo

Ao ocupar o foco das atenccedilotildees seja como aprendiz e governante da cidade ideal seja

como o filoacutesofo nos seus instantes finais o filoacutesofo eacute a personagem que representa o

pensamento filosoacutefico e a sua excelecircncia Como modelo de conduta e de capacidade

cognitiva o filoacutesofo exibe o que deve ser entedido por excelecircncia moral e intelectual

Nesse sentido o que se tem a partir da figura do filoacutesofo que os livros VI e VII d‟ A

Repuacuteblica eacute uma narrativa acerca do processo de aquisiccedilatildeo de uma condiccedilatildeo de

cogniccedilatildeo privilegiada definida como inteligecircncia (λόεζηϛ) a qual pode por isso

especular acerca do bem No Feacutedon tal figura sugere a imagem do processo acabado e

seus resultados e portanto o pensar plenamente desenvolvido (θξόλεζηο) capaz de

conjecturar sobre a imortalidade

Ambas as figuras mostram um modelo de excelecircncia moral e cognitiva que se

realiza concomitantemente agrave aquisiccedilatildeo de uma superioridade intelectual que se

especifica como tal sobretudo pela sua capacidade de apreender seres superiores Tais

seres servem de modelos e paradigmas para a conduta reta e justa e para o proacuteprio uso

da razatildeo que a partir deles pode conjecturar com plausibilidade uma dimensatildeo sempre

superior um domiacutenio que ultrapassa a sua proacutepria capacidade de apreensatildeo do qual

fazem parte o bem e a imortalidade inapreensiacuteveis em sua totalidade

14

A presenccedila de um horizonte amplo e que embora inapreensiacutevel totalmente pelo

pensamento devido agrave sua grandeza tambeacutem eacute um ponto incomum e importante para a

questatildeo a ser investigada nesse estudo A magnanimidade do bem e a

incomensurabilidade do domiacutenio da imortalidade ou estado de morte constitui um

contraponto para o que se refere agrave distinccedilatildeo do pensar ao modo filosoacutefico pois coloca

em questatildeo seu alcance e limite Ao constituir o bem o estudo mais importante

entretanto impossiacutevel de ser conhecido plenamente a investigaccedilatildeo acerca dele deve ser

questionada Do mesmo modo ao ser a morte e a imortalidade o tema sobre o qual vale

a pena arriscar uma explicaccedilatildeo mas que no entanto sobre ele natildeo se pode ter certezas

apenas convicccedilotildees conveacutem perguntar acerca da pertinecircncia desse empreendimento As

questotildees que decorrem desse problema e que conduzem ao tema da pesquisa buscam

saber o que pode a racionalidade conhecer sobre esta dimensatildeo a qual compreende o

bem e a imortalidade Tal propoacutesito obriga a averiguaccedilatildeo dos problemas e das possiacuteveis

respostas que surgem a partir da formulaccedilatildeo do pensamento em seu niacutevel mais alto de

cogniccedilatildeo em sua condiccedilatildeo de excelecircncia considerado o mais indicado para tecer

explicaccedilotildees sobre eles

15

I A Excelecircncia do Filoacutesofo

Diante desta perspectiva na qual um discurso sobre o pensar eacute possiacutevel a partir

de seu exerciacutecio Platatildeo se ocupa em pocircr em relevo nos diaacutelogos A Repuacuteblica e Feacutedon o

pensamento filosoacutefico ou seja o pensamento em seu niacutevel mais alto e portanto

exemplar de modo a constituir um modelo de excelecircncia do pensar anaacutelogo agrave figura do

filoacutesofo O que se apresenta a partir desta figura consiste no modelo de uso da

capacidade maacutexima do intelecto de modo a conquistar seu estado mais distinto e com

isso todos os benefiacutecios que se pode adquirir atraveacutes dele as virtudes a competecircncia

poliacutetica o conhecimento autecircntico a purificaccedilatildeo e o bom destino apoacutes a morte Como

modelo ideal de vida motivada pela busca da sabedoria e pautada no governo da razatildeo

o filoacutesofo e o desenvolvimento de seu intelecto descrito no processo de formaccedilatildeo do

seu caraacuteter no livro VII apresenta um exemplo e uma concepccedilatildeo de magnanimidade

realizaacutevel por meio da busca deste conhecimento superior Distinto de outras

experiecircncias psiacutequicas incluindo as emoccedilotildees e outras atividades mentais as quais

deveratildeo ganhar no Livro VI tratamento para contrastar com o intelecto a razatildeo deve

responder agraves possibilidades de relaccedilatildeo entre uma benignidade identificaacutevel ao divino

com a esfera da vida humana no seu aspecto praacutetico Dito de outro modo a inteligecircncia

tal como se quer formular ganha seu papel a partir da proposta de estabelecer os meios

adequados para que uma vida digna como tem o filoacutesofo do Feacutedon e um governo justo

como pretende o filoacutesofo governante d‟A Repuacuteblica tornem-se realizaacuteveis Desse modo

as accedilotildees do intelecto seus procedimentos e respostas satildeo dadas em busca de

estabelecer esta relaccedilatildeo

Diante de tais objetivos o pensar deve reconhecer a si mesmo ou seja refletir

sobre a sua atividade e sobre as coisas com as quais tem de lidar Essa autorreflexatildeo

sugerida pelo criticismo do filoacutesofo sempre atento aos rumos e procedimentos do

diaacutelogo mostra o exerciacutecio dialeacutetico do ιόγνο filosoacutefico como instrumento da

racionalidade e portanto afim com os propoacutesitos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos

O caraacuteter desta figura se constitui ao mesmo tempo em que esta maneira distinta de uso

da razatildeo apresenta suas especificidades

Assim partindo-se do jaacute enunciado pressuposto de haver uma simeacutetrica

correspondecircncia entre filoacutesofo alma e razatildeo nos diaacutelogos pretende-se tratar em uma

16

primeira parte a questatildeo n‟ A Repuacuteblica e em uma segunda do diaacutelogo Feacutedon Deve-se

ressaltar e analisar os elementos que compotildeem a distinccedilatildeo do filoacutesofo destacando as

questotildees que ganharatildeo tratamento e conceituaccedilatildeo filosoacutefica e que por isso deveratildeo

auxiliar a formar o perfil do pensamento mais alto Desse modo caracteriacutesticas como

qualidades perspectivas objetos seratildeo postos na primeira seccedilatildeo do primeiro capiacutetulo

correspondente a cada parte de modo a contextualizar a questatildeo

11 O filoacutesofo governante

Ao se depararem com a necessidade de perseguir a verdadeira natureza da justiccedila

(Rep 472a-c) e de definir o lugar do filoacutesofo na poacutelis (Rep 474b-c) Soacutecrates e Glaacuteucon

observam a mudanccedila de direccedilatildeo que a investigaccedilatildeo deve tomar no que diz respeito agrave

administraccedilatildeo da cidade (ηῶλ εἰξεκέλσλ πόιηο νἰθήζεηελ Rep 473a8) pondo em foco

assim a questatildeo preliminar mas natildeo menos importante ao tema do pensamento o que

estaacute na base das boas accedilotildees poliacuteticas Com esta questatildeo o diaacutelogo se lanccedila na direccedilatildeo

da causa e do modo justo de agir que ao ser investigada em profundidade conduziraacute

agravequela que parece constituir a verdadeira causa das accedilotildees humanas boas e justas Longe

de se tratar de um mero exerciacutecio abstracionista a investigaccedilatildeo do conceito de justiccedila

aparece indissociaacutevel da anaacutelise da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo poliacutetica exigindo nesta

perspectiva identificar e averiguar os elementos responsaacuteveis por uma praacutetica do

governante conforme o ideal de governo verdadeiramente justo a natureza filosoacutefica e a

formaccedilatildeo adequada Este governante justo e bom que deve comandar a kaliacutepolis uma

vez guardiatildeo das leis e das instituiccedilotildees (Rep 484b-c) representa cabe adiantar por via

do caraacuteter filosoacutefico exposto nos livros centrais o comando e a soberania da razatildeo

Modelo de um ἔζνο superior o filoacutesofo abriga todas as virtudes e conhecimentos

igualmente superiores servindo portanto de paradigma para uma reflexatildeo acerca dos

valores e seus fundamentos

A natureza distinta do filoacutesofo exibido no Livro V oferece um tipo de

personalidade intelectualista sobre a qual se teraacute nos proacuteximos livros explicaccedilotildees sobre

este traccedilo que o caracteriza o intelectualismo Aqui apresentado como aquele que ama

verdade (Rep 474d θηινζε κνλεο 476b) cujo pensamento (δηάλνηα) eacute capaz de ver

17

(eideicircn) a natureza do belo e se apegar a ele ( ἀζπάδνκαη Rep 476b8) capaz de buscar

o proacuteprio belo e de contemplaacute-lo em sua essecircncia (kath‟auto) (Rep 476d) discernindo a

essecircncia das coisas que dela participam (Rep 476d) mostra a distinccedilatildeo do filoacutesofo em

termos morais e poliacuteticos e cognitivos

Por ter o verdadeiro conhecimento o filoacutesofo deve ser o chefe da cidade pois pode

assim salvaguardar as leis e as suas instituiccedilotildees e se necessaacuterio estabelecer as leis do

belo do justo e do bom e mantendo sob guarda as que jaacute existem (Rep 484b-c) O

conhecimento das ideias que fundamentam os valores importantes para uma vida

harmocircnica na cidade deve garantir a manutenccedilatildeo da ordem e da convivecircncia A

sabedoria que o governante deve ter encontra seu fim na conservaccedilatildeo da poacutelis sendo

importante a conduccedilatildeo orientada da maneira correta ou seja orientada na justiccedila e no

verdadeiro bem Assim aquele que naturalmente pode governar ou seja que tem

inclinaccedilatildeo para buscar este saber indispensaacutevel para bem conduzir a cidade deve

apresentar desde a infacircncia caracteriacutesticas que indicam predisposiccedilatildeo para o

conhecimento Tem-se como condiccedilatildeo que a alma do verdadeiro filoacutesofo daquele que

possui alma filosoacutefica e que portanto deve ser treinado de modo a desenvolvecirc-la seja

dotada das seguintes qualidades ama a ciecircncia por inteiro (Rep 485b) natildeo sofre as

vicissitudes da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (Rep 485b) recusa por natureza toda a mentira

e tem afeiccedilatildeo pela verdade e por tudo o que eacute afim com o bem (Rep485c) tem gosto

pelo aprendizado deve se exercitar na busca da verdade (Rep 485d) e ter boa memoacuteria

(Rep 486d1)

O conjunto destas qualidades referentes agrave verdade e ao conhecimento denota a sua

inclinaccedilatildeo para adquirir a virtude da sabedoria Para o filoacutesofo o prazer eacute o prazer da

proacutepria alma fluindo na direccedilatildeo do conhecimento desprezando desse modo os prazeres

e os impulsos do corpo (Rep 485d10-e1) Por via de tal comportamento apresenta

desse modo a virtude da temperanccedila (Rep 485e) Dono de uma natureza incomum

aquele que tem aptidatildeo para a filosofia demonstra possuir grandeza magnanimidade por

ambicionar alcanccedilar o divino e o humano em sua inteireza (Rep 486a) e natildeo teme

desse modo a morte (Rep 486b1) Do mesmo modo dada a sua inteligecircncia considera

mais importante as coisas divinas em oposiccedilatildeo agraves humanas

As virtudes que o acompanham sabedoria justiccedila temperanccedila e coragem advindas

da educaccedilatildeo filosoacutefica atestam o seu lugar de comando na vida puacuteblica e aponta ser o

exerciacutecio filosoacutefico o meio de aquisiccedilatildeo de todas as virtudes Este perfil torna-se

completo com a explicaccedilatildeo em termos epistemoloacutegicos dos traccedilos de sua atividade no

18

livro VI e seu processo de formaccedilatildeo no livro VII Por enquanto tais caracteriacutesticas

expotildeem o caraacuteter cientiacutefico que Platatildeo pretende associar agrave elaboraccedilatildeo de um novo

modelo (παξάδεηγκα) poliacutetico A argumentaccedilatildeo acerca da importacircncia da formaccedilatildeo

intelectual do filoacutesofo desloca para o plano filosoacutefico as questotildees sobre a poacutelis

introduzindo assim um registro de inteligecircncia distinto daquele em que aparentemente

tais questotildees costumam ser consideradas Importa a partir de entatildeo verificar e propor

os elementos estruturantes desta racionalidade que confere todas as virtudes a este que

se mostra um exemplo de maioridade moral e intelectual capaz de realizar do melhor

modo possiacutevel a comunhatildeo entre εἶδνο e πξάμηο ou seja entre o saber intelectual dado pelo

conhecimento das ideias e praacutetica atraveacutes da participaccedilatildeo na vida poliacutetica

Para isso a proposta de uma nova noccedilatildeo de conhecimento (ἐπηζηήκε) e de

inteligecircncia (λόεζηϛ) ganham atenccedilatildeo ao assumir a funccedilatildeo de meio para a aquisiccedilatildeo

daquele que permite intuir sobre o bem a saber a ideia do bem a qual deve constituir

um paradigma para uma boa πξάμηο poliacutetica Parece conveniente dar atenccedilatildeo agrave figura do

guardiatildeo no livro V tal como a do aprendiz no livro VII por ser atraveacutes delas que se

revelam a finalidade e o processo de aquisiccedilatildeo deste tipo de conhecimento Somente no

caso do filoacutesofo natureza e poder poliacutetico coincidem e o processo de treinamento

intelectual do filoacutesofo aprendiz mostra a coerecircncia entre a capacidade cognitiva e

verdadeiro conhecimento habilidade natural e conhecimento especiacutefico caracteriacutesticas

que ao serem desenvolvidas pela filosofia resultam nas qualidades personalizadas na

figura do filoacutesofo

Junto com os desdobramentos epistemoloacutegicos que a discussatildeo ganha ao conduzir a

questatildeo da justiccedila na direccedilatildeo do que seria o governo justo e qual a sua verdadeira causa

surge o tema do pensamento Para que a inteligecircncia que tipifica o filoacutesofo como figura

excelente e portanto mais indicada para o governo tenha fundamento eacute necessaacuterio fazer

consideraccedilotildees acerca daquele que parece constituir o oacutergatildeo proacuteprio a capacidade

proacutepria para o conhecimento e que portanto torna possiacutevel a sua realizaccedilatildeo Na

perspectiva que analogamente toma a cidade como a alma tem-se o pensar se referindo

agrave melhor parte da alma agrave sua parte racional (o logistikon) e ao governante da cidade

Uma explanaccedilatildeo acerca da atuaccedilatildeo do pensamento e a conquista do estado mais alto se

torna o tema central das questotildees poliacuteticas e epistemoloacutegicas que a figura da excelecircncia

do filoacutesofo suscita As bases cientiacuteficas pedidas para nortear as reflexotildees acerca de um

modelo de cidade ideal ilumina o tema da inteligecircncia no conjunto de questotildees

19

relevantes por ser esta a atividade e estado (patheacutemata) crucial para a possibilidade de

uma vida feliz na poacutelis

12 A melhor parte da alma

Para que se chegue agrave cidade perfeita (πόιηο ηειέσο ἀγαζή Rep 427e7) eacute preciso

o arranjo harmocircnico entre as partes que a constituem A organizaccedilatildeo entre os cidadatildeos e

entre as outras cidades depende desse modo de um governante cujo conhecimento

(ἐπηζηήκε) compreenda a cidade como um todo (ὑπὲξ αὑηο ὅιεο) e seja por isso

capaz de estabelecer a melhor relaccedilatildeo entre as partes (Rep 428c11-d3) Adveacutem dos

conhecimentos desse distinto governante a sabedoria que conduziraacute a cidade tornando-a

saacutebia por natureza (Rep 428e8-429a3) Esta forte afirmaccedilatildeo prenuncia a investigaccedilatildeo

dos Livros VI e VII acerca daquela que se mostraraacute a atividade que pode

verdadeiramente realizar tal governo o pensamento em sua excelecircncia realizaacutevel ao

modo da filosofia O domiacutenio da melhor parte da alma dita no Livro IV expressa por

analogia a proposiccedilatildeo de um governo cientificista baseado no conhecimento exercido

pelo filoacutesofo cujo treinamento intelectual lhe permite desenvolver as quatro virtudes na

cidade sabedoria coragem temperanccedila e justiccedila A especificidade do treino dado ao

filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo propotildee deixaacute-lo apto a ocupar a posiccedilatildeo de

governante ao desenvolver sua natural disposiccedilatildeo para o comando Tal

desenvolvimento entretanto natildeo se daria sem um metoacutedico e especiacutefico exerciacutecio que

constitui a experiecircncia intelectual da filosofia Dito de outro modo a experiecircncia do

pensamento nos termos da educaccedilatildeo filosoacutefica confere ao filoacutesofo uma condiccedilatildeo tal que

permite realizar o melhor governo

A conveniecircncia da analogia entre a cidade e a alma mais precisamente sua parte

racional apresentada no livro IV e aparentemente concluiacuteda no Livro VII mostra-se

nesse sentido na possibilidade de investigar com maior profundidade a parte da alma

que deve governar e sobretudo o processo de aquisiccedilatildeo e o significado da excelecircncia

deste que deve ser o elemento dominante ndash ldquo-Ah E um homem justo em nada diferiraacute

de uma cidade justa em relaccedilatildeo ao proacuteprio gecircnero da justiccedila mas seraacute semelhante

(ὅκνηνο)rdquo (Rep 435b1-2) Empregada como um procedimento para a investigaccedilatildeo a

comparaccedilatildeo entre cidade e alma individual permite desse modo a anaacutelise de uma

20

atividade que como modelo deve ser transposta para pensar a cidade como um

organismo harmocircnico e assim justo7 A comparaccedilatildeo serve igualmente aos propoacutesitos

de investigar o pensamento nos termos que concernem agrave aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε a qual

em uacuteltima instacircncia traduz-se no processo de conversatildeo da alma ao bem e agrave ideia do

bem realizada pelo pensar ateacute o seu grau excelente

A elevaccedilatildeo da melhor caracteriacutestica da alma tal como apresentaraacute o Livro VII

(νῦ βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ Rep 532c3-6) realiza-se pelo correto e adequado exerciacutecio por

meio do qual se mostraratildeo as potencialidades e o caraacuteter especiacutefico da racionalidade nos

seus diferentes graus O que no Livro IV eacute sugerido como a cidade justa ou seja o

cumprimento do que determina a natureza de cada classe de acordo com as condiccedilotildees e

disposiccedilotildees de cada uma (πάζε ηε θαὶ ἕμεηο Rep 435b7435b4-5) os livros VI e VII

mostraratildeo como resultado de um processo de desenvolvimento desta natureza dentre as

quais a natureza filosoacutefica se mostra exemplar O desenvolvimento da natureza da alma

filosoacutefica consiste no treino e na busca intelectual do objeto de desejo da alma o bem

que pertence a determinado gecircnero e para isso requer uma atividade caracteriacutestica A

investigaccedilatildeo sobre a justiccedila versa nesses livros especialmente sobre o que deve

cumprir a alma de natureza filosoacutefica a partir da qual se faz uma diferenciaccedilatildeo nos

termos de condiccedilotildees e disposiccedilotildees intelectuais Assim o governo que naturalmente o

filoacutesofo deve exercer encontra nas inquiriccedilotildees sobre a inteligecircncia e seus objetos

especiacuteficos o fundamento racional que justifica tal domiacutenio8 Da mesma forma o objeto

7 Em 368e-369a a analogia aparece justificada como procedimento de maneira mais evidente ldquo() A

justiccedila eacute proacutepria de um indiviacuteduo Eacute tambeacutem proacutepria da cidade toda ndash Sem duacutevida disse ele ndash E a

cidade eacute maior que o indiviacuteduo ndash Maior disse ndash Ora num espaccedilo maior talvez haja mais justiccedila e seja

mais faacutecil entendecirc-la Se quiserdes portanto primeiro examinemos como ela eacute nas cidades depois a

examinemos no indiviacuteduo procurando na forma do menor a semelhanccedila com a da maiorrdquo

8 Anaacutelogo aos conflitos na cidade o conflito que a triparticcedilatildeo ou biparticcedilatildeo apresenta propotildee ao mesmo

tempo os princiacutepios que fundamentam as accedilotildees Desse modo uma accedilatildeo justa tem como base a relaccedilatildeo

equilibrada entre as partes equiliacutebrio alcanccedilaacutevel somente pelo domiacutenio da parte racional Robinson

explica melhor que se pretende argumentar ldquo() Mesmo na alma bipartite do iniacutecio da Repuacuteblica o

conflito era visto como interno as duas bdquonaturezas‟ eram bdquoopostas‟ e precisavam ser bdquoafinadas‟ (375c7-

8 410e) Isso natildeo eacute menos verdade quando o bdquoelemento filosoacutefico‟ eacute considerado realmente o bdquoelemento

raciocinativo‟ e quando o bdquoelemento irasciacutevel‟ longe de ser algo desiderativo eacute visto como bastante

distinto daquilo que eacute genuinamente desiderativo A justiccedila no indiviacuteduo e no Estado acaba sendo o

bdquofazer o proacuteprio trabalho‟ por parte de cada um dos elementos constituintes em um ou outro e a

injusticcedila o oposto (443c-e) Do mesmo modo define-se bdquosobriedade‟ ou bdquoequiliacutebrio‟ em termos que se

encaixam bem com a analogia de uma cidade ou Estado compartimentalizado um homem eacute bdquosoacutebrio‟

bdquodevido agrave amizade e agrave concoacuterdia dessas mesmas partes quando explicitamente o princiacutepio que governa

e seus dois suacuteditos unem-se na crenccedila de que a razatildeo deve governar e natildeo se rebelam contra elerdquo

Robinson T M A Psicologia de Platatildeo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2007 pg 85 Como se daacute o domiacutenio da

razatildeo sobre o desejo e sobre o iacutempeto eacute algo que natildeo parece ser explicado no Livro IV e tampouco nos

Livros VI e VII A razatildeo convenceria as outras partes da alma a cada uma cumprir devidamente sua

funccedilatildeo ou seria uma dominaccedilatildeo feita com reacutedeas curtas como parece ser a atitude da parte racional em

relaccedilatildeo agrave irasciacutevel no Fedro 256b1-3ldquo() senhores de si e disciplinados subjugam o que faz nascer a

21

que deve servir de modelo para as questotildees morais e o procedimento racional descrito

na atividade do dialeacutetico constituem os paracircmetros racionais para a atividade do bom

governo

Por ora natildeo se realizaraacute uma anaacutelise mais profunda sobre as questotildees que

envolvem a triparticcedilatildeo da alma no Livro IV Interessa abordar tal questatildeo na medida em

que se questiona acerca daquilo que eacute indicado como a parte racional da alma que deve

dominar as demais Parece inquestionaacutevel que a parte capaz de realizar as operaccedilotildees

racionais tal como descreveraacute os Livros VI e VII eacute a parte raciocinante por outro lado

vale ressaltar que os aspectos trabalhados nos livros citados mostram justamente como o

domiacutenio da razatildeo se mostra possiacutevel As influecircncias da parte irasciacutevel da alma natildeo

parecem estar em questatildeo Ao contraacuterio como a experiecircncia da conduccedilatildeo da alma feita

pelo pedagogo mostraraacute ao ser bem treinada a alma desenvolve as habilidades que

permitiratildeo no caso do dialeacutetico ter o conhecimento sobre as questotildees que se

relacionam ao bem e ter o discernimento necessaacuterio sobre sua proacutepria arte requisitos

necessaacuterios para o governo Se o dialeacutetico representa a parte racional da alma e em

contrapartida as outras classes de cidadatildeos estatildeo analogamente inferidos pelas demais

em seu uso correto o pensar domina ateacute mesmo a parte irasciacutevel a qual pode ter como

aliada

Todavia uma anaacutelise dos argumentos acerca da relaccedilatildeo entre alma e objeto no

Livro VI e do tratamento das disciplinas matemaacuteticas sobre as sensaccedilotildees ao final do

Livro VII mostram o que verdadeiramente constitui um estiacutemulo para o pensar Ainda

que a alma possua uma parte impetuosa que pode colaborar com sua racionalidade (Rep

440e-441a) no que diz respeito agraves operaccedilotildees e alcance racionais a interaccedilatildeo com os

seres inteligiacuteveis e a provocaccedilatildeo do sensiacutevel sobre a alma se revelam estiacutemulos proacuteprios

para a atividade do pensar Ao que parece o iacutempeto constituinte da alma tal como traz

a triparticcedilatildeo no Livro IV representa muito mais ao que tange o poder e a forccedila de um

dado governo na cidade do que ao tipo de estiacutemulo que trazem as anaacutelises acerca do

pensamento Diferentemente deste iacutempeto irasciacutevel o qual pode associar-se tanto agrave

razatildeo quanto aos desejos (Rep 440b) tais estiacutemulos se datildeo por meio do exerciacutecio

intelectual e assim estatildeo necessariamente em colaboraccedilatildeo com a razatildeo

maldade na alma e deixam em liberdade as forccedilas pelas quais se gera a virtuderdquo Os livros VI e VII

mostram a parte racional em sua operacionalidade sem entrar diretamente ao que parece em questotildees

acerca das demais motivaccedilotildees Pode-se supor somente a possibilidade e como se daacute esse apaziguamento a

exemplo dos resultados que se tem com a educaccedilatildeo do pedagogo no Livro VII Por enquanto vale

acompanhar a descriccedilatildeo das partes para verificar como e em que medida eacute possiacutevel o domiacutenio da razatildeo

22

Um dos pontos que a proposta do filoacutesofo governante com a sua arte dialeacutetica

parece querer mostrar se refere ao que seria um governo inteiramente baseado no

conhecimento e assim sem o risco de sucumbir a uma classe que demonstre

desobediecircncia Do mesmo modo argumentar a favor da racionalidade como ordenadora

das relaccedilotildees entre partes distintas demonstra o interesse em defender o pensamento sua

atividade e resultados Trata-se de propor a organizaccedilatildeo segundo os ditames e

procedimentos inteligentes em oposiccedilatildeo ao que se pode obter a partir do desejo e do

impulso Nesse sentido o pensamento como quer mostrar os Livros VI e VII e como se

propotildee este estudo refere-se exclusivamente ao pensar nos termos da parte racional da

alma a qual em resumo revela-se nas operaccedilotildees que envolvem a percepccedilatildeo nos termos

da opiniatildeo e da aquisiccedilatildeo do conhecimento A justiccedila e o bom governo tecircm como base

diante do que se analisa a formulaccedilatildeo de uma epistemologia baseada na excelecircncia do

exerciacutecio do pensamento tema que ganha ecircnfase nos livros centrais d‟A Repuacuteblica

sobretudo nos Livros VI e VII e a partir do qual se torna possiacutevel dar tratamento

racional agraves questotildees acerca do bem comum e da conduta moral centro das preocupaccedilotildees

e do filoacutesofo

Apoacutes essa explanaccedilatildeo introdutoacuteria sobre o filoacutesofo e sua alma filosoacutefica cabe

comentar alguns dados antes de prosseguir Deve-se natildeo perder de vista o horizonte da

investigaccedilatildeo filosoacutefica que se apresentou na anaacutelise a saber o conhecimento o bem e a

morte Estes satildeo os alvos finais da inquiriccedilatildeo filosoacutefica e devem receber atenccedilatildeo dado

que somente a razatildeo em sua potecircncia maacutexima pode arriscar como se veraacute qualquer

conjectura sustentaacutevel acerca deles Dito de outra perspectiva uma especulaccedilatildeo de

objetos tatildeo grandes e portanto exigentes do ponto de vista cognitivo podem oferecer

informaccedilotildees sobre a inteligecircncia e sobre a concepccedilatildeo de conhecimento que estaacute em

jogo Os dois temas acabam assim por colaborar para mostrar o empreendimento da

cogniccedilatildeo na exploraccedilatildeo de um plano que se distingue da vida prosaica e da mesma

forma para apresentar as minuacutecias de um aparato teoacuterico e metodoloacutegico proacuteprio da

filosofia para superar as dificuldades da investigaccedilatildeo a saber as teorias das ideias e da

23

reminiscecircncia e a dialeacutetica Seraacute por isso que Platatildeo pretendeu nos dois diaacutelogos colocar

alvos tatildeo magnacircnimos O primeiro dado que se verifica eacute que estes temas bem e morte

fazem parte das preocupaccedilotildees daquilo que provavelmente o filoacutesofo considera serem

estas as questotildees de maior importacircncia e que portanto devem ser investigados mesmo

que seja impossiacutevel compreendecirc-los totalmente sendo o bem desse modo considerado

o estudo mais importante e morte-vida a questatildeo sobre qual vale a pena se ocupar

O outro ponto para o qual se deve chamar atenccedilatildeo o qual interessa muito aos

propoacutesitos deste estudo diz respeito ao dado de que ambos apresentam uma perspectiva

a qual ganha conceituaccedilatildeo e participa portanto deste aparato teoacuterico de que se vale a

filosofia a suposiccedilatildeo de um outro plano uma dimensatildeo diferente que de algum modo

orienta a atividade filosoacutefica por abrigar as coisas de mais alto valor anaacutelogo portanto

ao domiacutenio inteligiacutevel A investigaccedilatildeo do filoacutesofo pretende em uacuteltima instacircncia

apreender esses altos valores de modo a compreendecirc-lo o quanto lhe for possiacutevel A

magnanimidade moral que distingue o filoacutesofo dos demais cidadatildeos refere-se agrave tentativa

de apreender no que consiste a maioridade de valores como bondade e justiccedila as quais

ele julga comparaacuteveis agraves coisas divinas Conveacutem assim averiguar a atividade do

pensamento filosoacutefico no que se refere a apreensatildeo dos maiores valores

13 O Conhecimento dos valores

Para tentar compreender como se constituem as qualidades do filoacutesofo e assim

a importacircncia e o significado da superioridade do pensamento ao modo da filosofia

cabe averiguar a concepccedilatildeo do bem que esta a ser construiacuteda Natildeo se pode entender a

excelecircncia do filoacutesofo sem se perguntar o que significa ser bom Assim vale comeccedilar

pelo conhecimento mais importante para o filoacutesofo governante o conhecimento do bem

Tema presente na voz do senso comum o bem seraacute averiguado em um primeiro

momento naquilo que se mostra como qualidade de outras noccedilotildees igualmente

importantes para a cidade O questionamento acerca da justiccedila e de outras virtudes

indicam a inquiriccedilatildeo da noccedilatildeo de ἀγαζόο como a mais urgente por ser a caracteriacutestica

presente em tudo o que eacute concebido como algo considerado positivo Em outros termos

as qualidades que apresentam a justiccedila e as coisas consideradas belas mostram a noccedilatildeo

do bem entre os atributos que aparentemente as constituem e as qualificam

24

positivamente Desse modo o objeto mais especulado e como natildeo poderia deixar de

ser o mais incompreendido segundo a concepccedilatildeo do filoacutesofo recebe a partir de entatildeo

um tratamento agrave luz do que se revelaraacute ser o verdadeiro conhecimento

ldquo- () Mas qual eacute o estudo mais importante Que objeto

atribuis a ele Acreditas que algueacutem te deixaria ir embora sem que te

fizesse essas perguntas (νἴεη ηηλ ἄλ ζε ἔθε ἀθεῖλαη κὴ ἐξσηήζαληα ηί

ἐζηηλ)

- De forma alguma disse eu Vamos Pergunta Em todo caso

natildeo poucas vezes ouviste isso e neste momento ou natildeo pensas nisso

ou tens em mente criar-me dificuldades com tuas objeccedilotildees Acredito

que mais seja isso que pretendes Eacute que jaacute me ouviste dizer muitas

vezes que o estudo mais importante eacute a ideia do bem e que eacute atraveacutes

dela que as accedilotildees justas e outras accedilotildees se tornam uacuteteis e proveitosas

(ἐπεὶ ὅηη γε ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα κέγηζηνλ κάζεκα πνιιάθηο ἀθήθναο ᾗ

δὴ θαὶ δίθαηα θαὶ ηἆιια πξνζρξεζάκελα ρξήζηκα θαὶ ὠθέιηκα

γίγλεηαη) E agora jaacute sabes que eacute isso que vou dizer e aleacutem disso que

natildeo temos conhecimento suficiente dessa ideia Se poreacutem natildeo a

conhecemos ainda que conheccedilamos as outras isso de nada nos

serviraacute como quando possuiacutemos algo sem ter o bem (ὥζπεξ νὐδ εἰ

θεθηῄκεζά ηη ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ) Ou crecircs que haveraacute vantagem na

posse de qualquer coisa que seja se ela natildeo for uma coisa boa Ou

em compreender tudo o mais mas natildeo o bem e nada de belo e bom

(ἢ νἴεη ηη πιένλ εἶλαη πᾶζαλ θηζηλ ἐθηζζαη κὴ κέληνη ἀγαζήλ ἢ

πάληα ηἆιια θξνλεῖλ ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ κεδὲλ

θξνλεῖλ)9

- Por Zeus eu natildeo disserdquo (Rep 504e6-505b4)

Deve-se acompanhar a progressatildeo daquilo que se apreende como qualidade para

a noccedilatildeo de ideia A beleza e a justiccedila qualidades das coisas justas e belas satildeo

consideradas boas e dessa forma parecem expressar uma positividade nos termos de

um valor O que eacute tido como belo justo uacutetil e proveitoso eacute inegavelmente bom e por

isso satildeo atributos que demonstram um valor positivo apreciaacutevel ldquoO bomrdquo confere aos

demais atributos tal positividade que potildee a ideia do bem (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα) como a

caracteriacutestica fundamental de todo o conjunto de coisas que apresentam tais qualidades

Ela torna bom tais atributos e se mostra por isso a origem de tudo o que parece ser

considerado positivo

9 A ediccedilatildeo inglesa utiliza ldquothinkrdquo e ldquoin high regardrdquo para natildeo perder as variaccedilotildees de sentido do termo φρονεῖν que muito enriquecem o trecho - Plato Republic Loeb Harvard University Press 2013 (Classical Library) traduccedilatildeo Chris Emlyn-Jones and William Preddy Vale notar que a utilizaccedilatildeo da palavra neste instante sugere um conhecimento intelectual ao modo filosoacutefico e portanto uma atividade inteligente como se desenvolveraacute mais adiante Observe-se que se atribui a esta atividade um valor uma certa superioridade

25

Cabe notar as perspectivas que levaram agrave funccedilatildeo de origem da ideia do bem para

que se possa assim compreender melhor o sentido em que se pode apreendecirc-la

Embora apareccedila em um plano menos evidente nessa ultima passagem note-se que a

conjugaccedilatildeo bem-positividade sugere tal como se observa ser uma caracteriacutestica da

ideia do bem conferir uma noccedilatildeo de valor Do mesmo modo ao mesmo tempo em que a

noccedilatildeo de ldquobomrdquo aparece quase como um componente das coisas com qualidades

apreciadas ndash afinal ningueacutem diria que as coisas uacuteteis natildeo satildeo boas - o bem se mostra

tambeacutem uma referecircncia a partir da qual se lanccedila um julgamento acerca de algo Este

parece ser o criteacuterio impliacutecito na concepccedilatildeo da maioria que elege algo como apreciaacutevel

Assim tido como um paracircmetro o bem eacute apreendido ele mesmo nos termos de um

valor o que provavelmente justifica a sua apariccedilatildeo apoacutes a tentativa de falar sobre as

virtudes10

Observe-se que esta abordagem valorativa do bem evolui para outros planos As

perspectivas que introduzem a investigaccedilatildeo sobre a ideia do bem satildeo dadas

indistintamente tal como uma abordagem comum Soacutecrates e Glaacuteucon parecem ter

neste momento a consciecircncia desta confusatildeo e da insuficiecircncia de conhecimento acerca

da noccedilatildeo que agora se mostra como a mais importante Dito de outro modo visto como

um valor como um atributo de um conjunto de coisas e por uacuteltimo como a origem das

mesmas o bem exige um estudo que permita dizecirc-lo distintamente de modo que torne

possiacutevel a partir daiacute verificar as virtudes e outras noccedilotildees Desse modo o bem visto

inicialmente como a qualidade comum em um conjunto de coisas apreciaacuteveis tem

destacado a sua posiccedilatildeo de condiccedilatildeo essencial sem a qual tais coisas natildeo existiriam natildeo

seriam como tais isto eacute natildeo apresentariam tal positividade e sobre as quais natildeo seria

possiacutevel saber nada A passagem mostra desse modo a transposiccedilatildeo da perspectiva

comum para a filosoacutefica onde se apresenta a evoluccedilatildeo da anaacutelise das coisas

consideradas justas e belas (δίθαηα κὲλ θαὶ θαιὰ Rep 505d5) e portanto boas ao modo

da apreensatildeo da generalidade de objetos particulares para uma ideia como a ideia do

10 Penner natildeo ignora que mesmo com a investigaccedilatildeo ontoloacutegica a ideia do bem apresente as qualidades no sentido do que eacute beneacutefico e uacutetil ldquoQuanto ao que eacute a Forma do Bem isso seraacute obviamente tatildeo difiacutecil de vir a conhecer (R 506b-507a Phd 97b-100c) quanto eacute difiacutecil em Soacutecrates saber o que satildeo a virtude ou o bem Contudo uma interpretaccedilatildeo do caminho mais longo torna de fato claro que a Forma do Bem eacute a Forma do Vantajoso ou Beneacutefico natildeo eacute como eacute nas interpretaccedilotildees mais influentes desde cerca de 1920 () a forma de um bem impessoal ou quase moralrdquo Penner T ldquoAs Formas e as Ciecircncias em Soacutecrates e em Platatildeordquo in Benson H (Org) Platatildeo Porto Alegre Artmed 2011 p 171 Longe de argumentar a favor da existecircncia de uma ldquoforma do Vantajosordquo como sugere o comentador importa trazer esse dado porque atraveacutes dele se volta atenccedilatildeo para a presenccedila da benignidade da ideia do bem na esfera da vida comum importante para as questotildees poliacuteticas como se veraacute mais adiante

26

bem e da beleza (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ) Esse novo objeto de

investigaccedilatildeo a ideia exige uma abordagem e uma anaacutelise especiacutefica a partir da qual a

ideia do bem seraacute visto na sua condiccedilatildeo de origem e atributo essencial Analisar a

justiccedila e as virtudes natildeo satildeo suficientes sem o conhecimento disto que parece ser o

fundamento delas11

A constataccedilatildeo do verdadeiro objeto a ser investigado note-se exige da mesma

forma uma investigaccedilatildeo acerca de sua apreensatildeo Desse modo o outro ponto importante

a ser avaliado para que se possa investigar o bem como fundamento passa a ser a

aquisiccedilatildeo do bem e a noccedilatildeo de conhecimento Note-se que adquirir o conhecimento

supotildee como quer a filosofia uma noccedilatildeo de saber que aparece nesta atividade Por se

tratar de um novo tipo de investigaccedilatildeo na qual o objeto eacute visto de um acircngulo distinto

exige-se uma capacidade e um modo de investigar igualmente distintos que por

apreender um objeto tal como a ideia do bem consiste em um modo de aquisiccedilatildeo com

suposta superioridade com um valor mais elevado em comparaccedilatildeo ao modo de

investigaccedilatildeo feito ateacute entatildeo Empreende-se uma κέγηζηνλ κάζεκα e portanto uma

aquisiccedilatildeo (θηζηο) que constituiraacute ao que tudo indica o conhecimento nos termos de

uma apreensatildeo em um grau maior

Tal suposiccedilatildeo parece ser confirmada no trecho seguinte Deve-se observar as

distinccedilotildees que passam a ser traccediladas natildeo somente em relaccedilatildeo ao objeto analisado mas

tambeacutem no que se refere a sua abordagem e apreensatildeo Vale ter em vista essa

superaccedilatildeo da particularidade para a universalidade da ideia que sugere a ideia do bem

e ao mesmo tempo a noccedilatildeo de conhecer que o trecho propotildee para acompanhar passo a

passo a relaccedilatildeo entre os propoacutesitos poliacuteticos apresentados anteriormente e a

epistemologia do livro VI Nesse sentido satildeo postas as questotildees que concernem ao

pensamento nos termos de uma apreensatildeo que se daraacute ao modo da filosofia como uma

11 Como natildeo seraacute um tema que o Livros VI e VII levaratildeo adiante conveacutem adiantar as consequecircncias da

inversatildeo intelectualista que Platatildeo propotildee no que se refere ao que se considera ldquobomrdquo Em oposiccedilatildeo ao

prazer as qualidades do Bem que seraacute tratado com mais detalhes nos livros seguintes satildeo dadas como

aquelas caracteriacutesticas que provocam o intelecto e oferecem a ele subsiacutedios para a atividade intelectual

tal como as noccedilotildees geomeacutetricas que satildeo inteligiacuteveis Schuhl indica esse limite nos seguintes termos ldquoSoacute

se poderia pois corretamente julgar pelo prazer o que natildeo apresenta nem utilidade nem verdade nem

semelhanccedila nem sem duacutevida nada prejudicial mas tem como uacutenica razatildeo de ser o encanto () Platatildeo

sublinha que natildeo se pode mais se referir ao prazer quando intervecircm a semelhanccedila e a igualdade sob

qualquer forma que seja pois o que faz o igual ser igual e simeacutetrico o simeacutetrico natildeo eacute a opiniatildeo do

primeiro que se encontra nem o encanto que ele possa encontrar nisso eacute antes de tudo a verdade o

resto praticamente natildeo contardquo Schuhl P M Platatildeo e a Arte de Seu Tempo Discurso Editorial

Barcarolla Satildeo Paulo 2010 p 80-81

27

aquisiccedilatildeo da ideia ou ao modo do senso comum como uma apreensatildeo da aparecircncia

daquilo que se supotildee ser o bem

ldquo- Eis algo que sabes Para a maioria das pessoas o bem eacute o

prazer mas para os mais requintados eacute a inteligecircncia (ηνῖο δὲ

θνκςνηέξνηο θξόλεζηο)

- Sem duacutevida disse

- E sabes meu amigo que os que pensam assim natildeo conseguem

dizer o que eacute a inteligecircncia mas acabam por ser forccedilados a

mencionar a inteligecircncia do bem (νἱ ηνῦην ἡγνύκελνη νὐθ ἔρνπζη

δεῖμαη ἥηηο θξόλεζηο ἀιι ἀλαγθάδνληαη ηειεπηῶληεο ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ

θάλαη)

- E isso eacute muito ridiacuteculo disse

- E como deixaria de ser disse eu se apesar de censurar-nos por

natildeo conhecermos o bem de novo falam como se conhececircssemos Eacute

que dizem que eacute a inteligecircncia do bem como se de nossa parte

estiveacutessemos entendendo o que estatildeo dizendo uma vez que

pronunciam a palavra bem (ἐπεηδὰλ ηὸ ηνῦ ἀγαζνῦ θζέγμσληαη

ὄλνκα)rdquo(Rep 505b8-c4)

Um dos primeiros indiacutecios da mudanccedila de abordagem do bem consiste na

diferenciaccedilatildeo agora anunciada entre o nome e o proacuteprio objeto Haacute uma diferenccedila entre

o bem tal como eacute geralmente dito concebido no senso vulgar e o sentido que se tem em

vista a partir de agora O nome bem proferido comumente ganharaacute um sentido

especiacutefico caracteriacutestico que soacute pode ser desvelado nesta pesquisa que procura

apreendecirc-lo segundo o que eacute (ηί ἐζηηλ) Aqueles que se engajam nesse tipo de

investigaccedilatildeo compreendem as distinccedilotildees do bem O primeiro passo para a averiguaccedilatildeo

da ideia do bem consiste em desassociaacute-la daquilo que ela qualifica Da mesma forma

compreende-se que ele consiste em algo ainda natildeo conhecido mas que estaacute aleacutem

daquilo que se designa como ldquobemrdquo Note-se que tal distinccedilatildeo eacute intriacutenseca agraves questotildees

que envolvem o pensamento O processo de conhecimento que se propotildee nesse instante

natildeo pode ser realizado sem que se tenha uma concepccedilatildeo clara ou ao menos que se

propotildee elucidar sobre os processos que envolvem tal aquisiccedilatildeo Com a passagem de um

registro a outro do comum para o filosoacutefico justifica-se cada vez mais a anaacutelise acerca

da atividade intelectual que efetiva o conhecimento de acordo com o que se propotildee a

partir de agora

Nesse contexto em que se atribui agrave ideia do bem a posiccedilatildeo de origem e a

considera por isso como a mais importante entre todas as noccedilotildees o pensar eacute dito nos

termos do θξνλεῖλ e o conhecimento nos temos de uma apreensatildeo realizada pelo

28

pensamento acerca da ideia do bem Compreender no que consiste esta mais alta

apreensatildeo constitui a proposta epistemoloacutegica do filoacutesofo que seraacute investigada em todo

o livro VI e se tornaraacute no Livro VII o centro das investigaccedilotildees por fundamentar a

pedagogia que se ocuparaacute de mostrar como tornar esta alta intelecccedilatildeo realizaacutevel Parece

inevitaacutevel uma verificaccedilatildeo acerca do pensar em suas variadas maneiras de ocorrer e

principalmente no seu niacutevel mais elevado ao se pretender falar sobre o conhecimento de

qualquer virtude e sobre aquilo que se mostra um objeto de desejo comum a todos

filoacutesofos ou natildeo o bem

Apesar da polissemia12

do termo θξνλεῖλ o que o texto mostra eacute a necessidade

de uma atividade dada ao modo intelectual cujo estatuto cognitivo se distingue de

outras atividades intelectivas Entretanto vale salientar a diferenciaccedilatildeo que

concomitantemente se faz entre o filoacutesofo e o natildeo filoacutesofo Aqueles que compreendem

as distinccedilotildees do bem satildeo considerados por isso mais refinados (θνκςνηέξνηο) em

oposiccedilatildeo agravequeles que possuem uma acepccedilatildeo vulgar sobre ele e buscam somente o

prazer considerando equivocadamente o que eacute prazeroso como bom Observe-se que a

diferenciaccedilatildeo feita sob um criteacuterio epistemoloacutegico tambeacutem apresenta um parecer moral

Aleacutem de exprimir a capacidade superior de cogniccedilatildeo sugerida pelo θξνλεῖλ essa

maneira de se referir aos que conhecem verdadeiramente o bem propotildee uma

qualificaccedilatildeo que ultrapassa o senso vulgar O refinamento dito nesse contexto

certamente parte desta nova abordagem que supotildee o conhecimento do bem tambeacutem

como criteacuterio para a distinccedilatildeo do filoacutesofo e de suas qualidades Conhecer o bem nesse

sentido tornou-se criteacuterio para o julgamento da postura de quem se propotildee a se

pronunciar sobre o bem ou sobre qualquer outra noccedilatildeo

O texto ainda natildeo oferece maiores esclarecimentos sobre o bem como uma

referecircncia nos termos da moralidade Antes eacute necessaacuterio investigaacute-lo de modo a abordar

aquilo que ele eacute essencialmente e elucidar o meacutetodo adequado para conhececirc-lo Apoacutes o

que se analisou das passagens vale ter em vista a progressatildeo de uma perspectiva a outra

e os elementos que vatildeo aos poucos sendo iluminados pela necessidade de investigar a

12 Neste trecho θξόλεζηο recebe vaacuterias traduccedilotildees ldquointelligencerdquo ediccedilatildeo francesa ED Les Belles Lettres

1996 ldquoknowledgerdquo segundo a ediccedilatildeo inglesa Loeb Classical Library Harvard University Press 2013 A

ediccedilatildeo brasileira como a francesa opta por utilizar um termo ldquointeligecircnciardquo que tambeacutem traduz a palavra

λνήζηϛ o que eacute evidentemente autorizado dado que na analogia da linha dividida o texto apresenta uma

explicaccedilatildeo dessa apreensatildeo cognitiva no niacutevel mais alto Desse modo entende-se λνήζηϛ e θξόλεζηο

como designando tal apreensatildeo A mesma conotaccedilatildeo do termo a saber de apreensatildeo e de elevaccedilatildeo

intelectual apresenta-se no Feacutedon

29

ideia do bem como a posiccedilatildeo que o bem passa a ocupar a noccedilatildeo de conhecimento e as

exigecircncias da ordem cognitivas

ldquo- E os que definem o prazer como um bem Seraacute que estatildeo menos

errados que os outros Esses tambeacutem natildeo seratildeo forccedilados a

reconhecer que haacute prazeres maus (Τί δὲ νἱ ηὴλ ἡδνλὴλ ἀγαζὸλ

ὁξηδόκελνη κῶλ κή ηη ἐιάηηνλνο πιάλεο ἔκπιεῳ ηῶλ ἑηέξσλ ἢ νὐ θαὶ

νὗηνη ἀλαγθάδνληαη ὁκνινγεῖλ ἡδνλὰο εἶλαη θαθάο)

- Natildeo teratildeo outra saiacuteda

- E o que acontece eacute que creio eu eles reconhecem que as mesmas

coisas satildeo boas e maacutes Natildeo eacute

- Entatildeo estaacute evidente que sobre essa questatildeo as divergecircncias

(ἀκθηζβεηήζεηο) satildeo grandes e numerosas

- Como deixariam de serrdquo (Rep 505c6-d1)

A conduccedilatildeo da questatildeo do bem para o plano que se contrapotildee agrave percepccedilatildeo do

sensiacutevel na qual se encontram o prazer e as aparecircncias O pensar a ideia do bem e as

coisas que satildeo que ganham foco na pesquisa compotildeem o polo oposto ainda indefinido

Tal dicotomia marca natildeo soacute o que se mostraraacute uma distinccedilatildeo de gecircnero e domiacutenio de

objetos e de atividades intelectivas como uma distinccedilatildeo de conduta aqui dita na

dicotomia entre a maioria que escolhe as aparecircncias (πνιινὶ ἂλ ἕινηλην ηὰ δνθνῦληα) e

os que investigam os que buscam as coisas que satildeo a realidade (ηὰ ὄληα δεηνῦζηλ) Na

mesma direccedilatildeo cabe reparar a maioria opta pelas aparecircncias enquanto os que buscam a

realidade e portanto dispotildeem do pensamento para conhecer satildeo forccedilados

(ἀλαγθάδνληαη) a reconhecer a ideia do bem Os que se apegam agraves aparecircncias o fazem

ao que parece a partir de uma escolha natildeo havendo imposiccedilatildeo de nenhum tipo para tal

enquanto os que investigam estatildeo submetidos ao que mostra a investigaccedilatildeo

Pode-se dizer que por via dessa distinccedilatildeo e contraposiccedilatildeo entre planos surgem a

noccedilatildeo de conhecimento e a perspectiva filosoacutefica tatildeo preciosa ao tipo de governo que

se almeja Ao mesmo tempo deve-se analisar que tal divisatildeo mostra a tensatildeo entre esses

polos que em algum momento teratildeo definidos o seu caraacuteter e o seu lugar segundo a

noccedilatildeo de organizaccedilatildeo que se tem em vista para a cidade Ao lanccedilar luz sobre a conduta e

ao avaliaacute-la segundo pressupostos epistemoloacutegicos que envolvem o conhecimento do

bem o texto deixa no horizonte a ligaccedilatildeo entre a esfera moral neste instante dada como

postura ante o conhecimento e a esfera cientiacutefica que deve ser a base para as questotildees

morais e poliacuteticas relaccedilatildeo que somente o filoacutesofo pode dar conta As questotildees que

envolvem o conhecimento a saber objeto e meacutetodo ofereceratildeo o teor das diferenccedilas

aqui anunciadas mas para isso uma detalhada explanaccedilatildeo acerca do pensamento ganha

30

destaque jaacute que seu caraacuteter e operacionalidade revelaratildeo os elementos fundamentais

para a realizaccedilatildeo do governo do filoacutesofo

14 O objeto de desejo do filoacutesofo

A formulaccedilatildeo filosoacutefica do bem introduz sob um novo prisma as questotildees acerca

da alma e as suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel O que se viu sugerido como um valor

cientiacutefico acessiacutevel portanto pelo pensamento e que consiste ao mesmo tempo em uma

referecircncia para um julgamento da conduta passa a ser esclarecido assim como as

peculiaridades desta atividade de conhecer tiacutepica dos que buscam apreendecirc-lo Ao

reconhecer as distinccedilotildees dos que se lanccedilam a tal apreensatildeo e portanto ao pensamento

no niacutevel mais elevado Soacutecrates e Glaacuteucon se empenham em detalhar este objeto e este

tipo de investigaccedilatildeo que inevitavelmente traratildeo consequecircncias para o entendimento

sobre a alma e sobre aquela que parece ser a sua atividade excelente Do mesmo modo

esclareceratildeo acerca da possiacutevel apreensatildeo que o natildeo filoacutesofo dado na figura do

guardiatildeo pode ter deste objeto tatildeo valioso para a vigilacircncia da cidade

ldquo- E aquilo que toda alma busca e eacute objeto de todas as suas

accedilotildees (Ὃ δὴ δηώθεη κὲλ ἅπαζα ςπρὴ θαὶ ηνύηνπ ἕλεθα πάληα

πξάηηεη) Embora suspeite que seja algo de valor ela natildeo tem como

apreender suficientemente o que ele eacute nem sentir-se confiante e

segura como a respeito de outras coisas (ἀπνκαληεπνκέλε ηη εἶλαη

ἀπνξνῦζα δὲ θαὶ νὐθ ἔρνπζα ιαβεῖλ ἱθαλῶο ηί πνη ἐζηὶλ νὐδὲ πίζηεη

ρξήζαζζαη κνλίκῳ νἵᾳ θαὶ πεξὶ ηἆιια) e por isso natildeo consegue o

que lhe seria uma ajuda A respeito de algo tatildeo grande como isso

afirmaremos que devem ficar na escuridatildeo tambeacutem os que satildeo os

melhores da cidade em cujas matildeos vamos entregar tudo

- De forma alguma disse

- Em todo caso falei creio que quando se ignora em que o

belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha um

guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes

disso conheceraacute o justo e o belo de maneira suficiente

- E teu prognoacutestico eacute acertado disse

31

- Entatildeo nossa constituiccedilatildeo estaraacute perfeitamente em ordem se

um tal guardiatildeo aquele que sabe disso mantiver vigilacircncia sobre ela

(ἐὰλ ὁηνηνῦηνο αὐηὴλ ἐπηζθνπῆ θύιαμ ὁ ηνύησλ ἐπηζηήκσλ)rdquo (Rep

505e-506b2)

Ao se questionarem sobre o verdadeiro objeto de busca da alma e o que pode ser

a causa de suas atividades aparece o bem No fundo desse questionamento estatildeo as

relaccedilotildees da alma com esta que se mostra ser a ideia com qualidades e com estatuto

ontoloacutegico privilegiado como se analisaraacute reconhecida portanto como a ideia para o

fundamento epistemoloacutegico e moral que o filoacutesofo governante tem em vista A busca de

tal fundamento deve-se atentar inicia com uma advertecircncia que prenuncia a natureza

distinta deste objeto comparaacutevel ao divino (ἀπνκαληεύνκαη) cuja apreensatildeo por

conseguinte natildeo deve ser precipitadamente tomada como suficiente ou como uma

convicccedilatildeo inabalaacutevel A compreensatildeo acerca de tal ideia e portanto acerca do alcance e

das tratativas que a alma possui com o bem note-se que isso se estende agraves almas dos

cidadatildeos (ἅπαζα ςπρὴ) deve se realizar de maneira distinta pois ilumina um ponto

crucial para a conduccedilatildeo e para a organizaccedilatildeo da cidade a causa e o modo de agir da

alma Embora o texto natildeo apresente ainda o meacutetodo especiacutefico para a anaacutelise de um

objeto como a ideia do bem como se daraacute nas proacuteximas passagens importa averiguar

na noccedilatildeo de bem o caraacuteter e as consequecircncias desse fundamento

Natildeo se deve ao que parece entregar a cidade nas matildeos de quem desconhece o

bem e a justiccedila pois disso depende a harmonia da cidade ndash ldquo-Em todo caso falei creio

que quando se ignora o belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha

um guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes disso conheceraacute o

justo e o belo de maneira suficienterdquo (Rep 506a4-7) O objeto almejado por todas as

almas eacute o bem e ao que tudo indica tanto o filoacutesofo quanto o guardiatildeo podem de

algum modo acessaacute-lo Entretanto ele natildeo eacute apreensiacutevel por todas elas como mostraraacute

o livro VII e eacute preciso saber em que medida e em que condiccedilotildees tal acesso eacute possiacutevel e

o que os diferencia aleacutem das determinaccedilotildees dadas pela natureza da alma de cada um A

primeira diferenccedila que surge neste registro parece consistir em uma certa postura que

pode ser cientiacutefica ou permanecer no niacutevel das acepccedilotildees vulgares ou seja natildeo

cientiacuteficas

O filoacutesofo se dispotildee a buscar o bem e portanto demonstra ter conhecimento e

inteligecircncia diferentemente da maioria que natildeo se daacute conta da possibilidade de realizar

tal busca e prefere se fiar nas aparecircncias A figura do guardiatildeo diferente da maioria

32

sugere que eacute possiacutevel para o natildeo filoacutesofo apreender o bem e nesse caso

especificamente tal possibilidade parece se realizar de alguma forma o que eacute

necessaacuterio acontecer para o bem da cidade Cabe chamar atenccedilatildeo para o dado de que a

postura de natildeo se dar conta da importacircncia de tal busca e portanto das relaccedilotildees que o

bem manteacutem com o que eacute belo e justo retrata a ignoracircncia (ἄγλνηα) e a sua funccedilatildeo

peculiar no desenvolvimento da tese moral Ao que parece trata-se justamente de uma

condiccedilatildeo na qual a alma natildeo estaacute submetida agraves condiccedilotildees da busca e por isso natildeo chega

agrave ideia do bem mas que por outro lado apresenta a possibilidade de reconhecer de

algum modo as relaccedilotildees com ele

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar inteiramente o perfil do filoacutesofo do guardiatildeo e da maioria

sem antes verificar a especificidade da relaccedilatildeo que estes mantecircm com o bem

Entretanto eacute bom natildeo perder de vista essas trecircs categorias que apresentam em algum

grau uma relaccedilatildeo com ele seja na apreensatildeo no niacutevel mais alto seja em uma eventual

apreensatildeo de suas relaccedilotildees ou na completa falta de percepccedilatildeo de qualquer ligaccedilatildeo das

coisas com a ideia do bem O objeto legiacutetimo da alma cujos termos da uacuteltima passagem

permitem tomaacute-la como um gecircnero natildeo como um ἅπαζα ςπρὴ eacute o bem e o desafio do

governo do filoacutesofo consiste justamente em empreender o modo de governo explorando

as potencialidades de cada perfil de cidadatildeo

A necessidade de analisar a cogniccedilatildeo o que particularmente objetiva este estudo

surge nos textos a preocupaccedilatildeo em estabelecer um paradigma para os valores morais

Especialmente no livro VI como se viu importa construir uma noccedilatildeo de bem estaacutevel e

universal a qual escape agrave vulnerabilidade do senso comum e que sirva portanto de

modelo para as accedilotildees Nesse sentido se torna elucidado o papel da cogniccedilatildeo como

atividade de conhecer os valores em seu fundamento Assim o exerciacutecio racional

descrito a partir daqui deve ser tomado como o pensamento que conhece os valores

autecircnticos uma vez que apreende o que os fundamenta13

A associaccedilatildeo entre

13 Tal compreensatildeo acerca dos valores e padrotildees eacute na verdade bastante proacutexima da interpretaccedilatildeo de

Brisson e Meyerstein sobre a relaccedilatildeo da Teoria das Formas com as questotildees eacuteticas ldquoOra esta eacutetica

normativa que implica o estabelecimento de valores eacuteticos absolutos Platatildeo a funda a partir do Feacutedon

sobre a existecircncia de realidades natildeo-sensiacuteveis que escapam ao devir que representam a realidade

verdadeira e que ele chamaraacute ldquoFormasrdquo (eidos ou idea) A coragem eacute uma Forma imutaacutevel que para um

ou outro homem representa um padratildeo de medida dessa virtudePor consequecircncia o grau de perfeiccedilatildeo

ao qual o homem atinge este domiacutenio se mede pela distacircncia em relaccedilatildeo agrave este padratildeo idealrdquo Brisson

33

conhecimento e eacutetica ligaccedilatildeo a qual somente o filoacutesofo pode assimilar apoia-se de um

lado na existecircncia destes modelos que natildeo resultam de convenccedilotildees ou seja que natildeo se

estabelecem pelo haacutebito ou por interesses particulares e por outro pelo tipo de atitude

intelectual que se deve empreender A concepccedilatildeo de racionalidade estaacute submetida agraves

necessidades eacuteticas e poliacuteticas e deve ter em vista a cogniccedilatildeo deste tipo de objeto a

saber a ideia do bem e agraves demais noccedilotildees que possuem relaccedilatildeo com ela como a justiccedila

A postura filosoacutefica tem deste modo um comprometimento moral sendo o

conhecimento apreendido no exerciacutecio da filosofia o meio de executaacute-lo e desempenhar

o papel de governante Dado assim vale adiantar o proacuteprio pensamento nesta condiccedilatildeo

constitui algo de grande valor sendo o proacuteprio empreendimento racional uma

demonstraccedilatildeo de virtude Esta conclusatildeo eacute dada mais objetivamente no Feacutedon onde a

θξόλεζηο a qual tambeacutem recebe a conotaccedilatildeo de sabedoria eacute analogamente dita ser a

moeda mais valorosa (Fed 69a7-c3) A anaacutelise da atribuiccedilatildeo de sentido agrave razatildeo no

Feacutedon seraacute realizada posteriormente pois apesar de mostrar semelhanccedilas com o que se

tem visto neste toacutepico merece ser examinada com exclusividade na seccedilatildeo dedicada ao

diaacutelogo Por enquanto deve-se acompanhar as minuacutecias que mostram o caraacuteter

intelectualista fundamental na constituiccedilatildeo moral do filoacutesofo para compreender no que

consiste o intelectualismo filosoacutefico

15 A postura intelectual

As indagaccedilotildees sobre o bem recebem agora delimitaccedilotildees que mostram o registro

em que deve se dar a investigaccedilatildeo ldquo() afirmarias que o bem eacute ciecircncia ou prazer ou

algo outro (πόηεξνλ ἐπηζηήκελ ηὸ ἀγαζὸλ θῂο εἶλαη ἢ ἡδνλήλ ἢ ἄιιν ηη παξὰ ηαῦηα)rdquo

(Rep 506b2-4) O foco de anaacutelise se dirige de maneira digna de nota ao campo que

deve oferecer o bem anaacutelogo ao modo de conhececirc-lo O modo de perguntar por ele natildeo

seria como feito anteriormente ldquoo que eacute o bemrdquo A suspeita que se pode ter acerca

desta comparaccedilatildeo diz respeito agrave relaccedilatildeo que pode haver entre ele e a alma Dado que o

L Meyerstein F W Puissance et Limites de la Raison ndash Le Problegraveme des Valeurs Paris Les Belles

Lettres 2014 p 33

34

bem eacute o objeto que a alma busca e o conhecimento o modo de adquiri-lo faz sentido

assim perguntar se o bem eacute a ἐπηζηήκε ou a ἡδνλή se as considerarmos maneiras de

conceber a bondade do bem ou ao modo do conhecimento filosoacutefico ou ao modo

vulgar respectivamente O que eacute sugerido neste novo acircngulo de anaacutelise eacute novamente a

apreensatildeo mas agora verificando se o bem corresponde ao conhecimento

De acordo com as delimitaccedilotildees para investigaacute-lo natildeo eacute justo dizer o bem sem

conhececirc-lo nem parece uma boa estrateacutegia considerar as opiniotildees dos outros sobre ele

como um conhecimento sem ter ao menos uma opiniatildeo proacutepria Do mesmo modo

fingir saber o que ele eacute natildeo corresponde a uma postura cientiacutefica e justa (Rep 506b)

Tais exemplos traccedilam um perfil que seraacute associado ao natildeo filoacutesofo O que tem sido

considerado pela maioria eacute identificado como as ηὰ δόγκαηα (Rep 506b9) uma visatildeo

comum ou mesmo um percepccedilatildeo individual sobre o assunto mas motivada por uma

aparecircncia de sabedoria

ldquo- O quecirc disse eu Na tua opiniatildeo eacute justo que algueacutem fale do que

natildeo sabe como se soubesse

- Como se soubesse De forma alguma Mas como algueacutem que

quer dizer o que pensa (Τί δέ ἦλ δ ἐγώ δνθεῖ ζνη δίθαηνλ εἶλαη πεξὶ

ὧλ ηηο κὴ νἶδελ ιέγεηλ ὡο εἰδόηα Οὐδακῶο γ ἔθε ὡο εἰδόηα ὡο

κέληνη νἰόκελνλ ηαῦζ ἃ νἴεηαη ἐζέιεηλ ιέγεηλ)rdquo ( Rep 506c2-5)

Eacute importante notar que haacute nessa passagem a distinccedilatildeo de postura intelectual que

seraacute definitiva para a formulaccedilatildeo da noccedilatildeo de conhecimento e para a compreensatildeo do

pensamento Antes de iniciar a investigaccedilatildeo acerca da definiccedilatildeo da ideia do bem parece

importante verificar o que a ela se relaciona tal como a maneira mais adequada de

conhececirc-la Assim uma criacutetica acerca de sua abordagem deve ser dada nos termos dessa

postura uma vez que a alma tem o bem como objetivo Uma opiniatildeo sem conhecimento

eacute considerada uma postura vergonhosa e aquelas consideradas melhores para natildeo dizer

menos comprometedoras do ponto de vista moral carecem de esclarecimento e podem

ser comparadas a uma cegueira (Rep 506c) O que vem a seguir explica esse peso

moral do conhecimento que se pretende dar

ldquo() Ou para ti haacute alguma diferenccedila entre cegos que percorrem

seu caminho no sentido correto e os que tecircm uma opiniatildeo verdadeira

embora natildeo tenham inteligecircncia (ἢ δνθνῦζί ηί ζνη ηπθιῶλ δηαθέξεηλ

ὁδὸλ ὀξζῶο πνξεπνκέλσλ νἱ ἄλεπ λνῦ ἀιεζέο ηη δνμάδνληεο Rep

506c7-9)rdquo

35

Os que opinam sem conhecimento satildeo considerados cegos e no pior dos casos

insolentes Mesmo quando vatildeo pelo caminho correto e entatildeo incorram em um acerto

afirmando algo verdadeiro aqueles que opinam natildeo possuem inteligecircncia (λνῦο)

Chama atenccedilatildeo o dado a mais que parece ser colocado nessa passagem Entre os

que opinam se distinguem aqueles que podem ir pelo caminho correto e opinar algo

verdadeiro Esses satildeo melhores que aqueles que simplesmente proferem opiniotildees

somente por querer dizer (ἐζέιεηλ ιέγεηλ) De todo modo opiniotildees satildeo desprovidas de

inteligecircncia no entanto haacute a possibilidade do acerto Como um cego que tateia para

encontrar o caminho correto e o encontra natildeo se sabe por qual razatildeo o δνμάδνληεο natildeo

parece orientado por um discernimento acerca do que opina Tal comportamento sugere

ser a opiniatildeo verdadeira um juiacutezo correto acertado mas natildeo resulta do trabalho da

inteligecircncia O primeiro questionamento que adveacutem dessa afirmaccedilatildeo consiste em pensar

o que torna possiacutevel e como se daacute o acerto sem conhecimento No entanto antes de

tentar responder a tais perguntas vale reparar que tal acerto se daacute sem haver base

princiacutepio do qual se tenha partido e que servisse de paracircmetro para chegar a algo

verdadeiro Diferentemente do que conhece e tem inteligecircncia os que opinam com

acerto natildeo deixam de ter uma postura errante justamente por natildeo conhecerem a verdade

e seu fundamento inteligiacutevel - que consiste na ideia do bem como se veraacute adiante14

Esse talvez seja um dado a ser investigado no avanccedilar da pesquisa em

comparaccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo uma vez que provavelmente indica a possibilidade do natildeo

filoacutesofo ser governado pelo filoacutesofo e com isso se relacionar com a ideia do bem ainda

que indiretamente Todavia no momento natildeo parece haver elementos suficientes para

compreender no que pode consistir a opiniatildeo verdadeira sem uma investigaccedilatildeo acerca

da relaccedilatildeo entre a alma e o bem Por enquanto o estudo mais importante prossegue

investigando o bem a partir daquilo que se relaciona a ele tendo em vista justamente as

ligaccedilotildees que se podem apreender e que de algum modo o denunciam15

A noccedilatildeo de

acerto e as ligaccedilotildees entre o bem e o que dele deriva dito ldquofilho do bemrdquo sugerem a

complexidade das relaccedilotildees que envolvem essa ideia e portanto da noccedilatildeo do

14 Vale trazer o comentaacuterio de Julia Annas sobre a diferenccedila entre opiniatildeo verdadeira e conhecimento de

acordo com o Livro X dado que o argumento em anaacutelise apresenta a distinccedilatildeo entre um e outro embora

natildeo resolva ldquoO conhecimento envolve do mesmo modo a possibilidade de formular claramente o que eacute

o objeto conhecido e as razotildees pelas quais ele eacute como eacute ora isto implica que se saiba o que permite dar

conta de seu aspecto bom ou mal A opiniatildeo verdadeira natildeo necessita de nada dissordquo Julia ANNAS

Introdution agrave la Reacutepublique de Platon Presses Universitaires de France Paris 1a Ed 1994 pag 243-244

15 Rep 506e3-4 ldquoo que me parece ser o filho do bem e o que eacute muito semelhante a ele (ὃο δὲ ἔθγνλόο ηε

ηνῦ ἀγαζνῦ θαίλεηαη θαὶ ὁκνηόηαηνο ἐθείλῳ)rdquo

36

pensamento como sede e atividade de aquisiccedilatildeo do conhecimento tema que estaacute em

questatildeo Diante da possibilidade do acerto e da verdade na opiniatildeo eacute provaacutevel que a

oposiccedilatildeo opiniatildeo-conhecimento esboce um ponto de contato No entanto seja qual for

esta ligaccedilatildeo mostraraacute a superioridade da inteligecircncia

Vale observar que a oposiccedilatildeo entre conhecimento e opiniatildeo marcam duas

questotildees muito importantes para o prosseguimento da anaacutelise Em primeiro lugar

reforccedila a postura do filoacutesofo como uma questatildeo moral tornando possiacutevel a relaccedilatildeo

conhecimento e praacutetica isto eacute filosofia e governo Dito de maneira mais direta o

intelectualismo do filoacutesofo natildeo pode ser visto como um distanciamento da vida poliacutetica

ao contraacuterio tem seu papel assegurado nela agrave medida que a filosofia se revela

imprescindiacutevel para o bom governo Por extensatildeo a ἐπηζηήκε tem funccedilatildeo poliacutetica

definida e dessa maneira demonstra ter o trabalho racional um aspecto pragmaacutetico no

sentido fraco

Tal eacute o segundo ponto a ser observado no intelectualismo do filoacutesofo O uso da

razatildeo diante das questotildees poliacuteticas tem em vista tambeacutem o lado praacutetico do pensar o

qual se realiza no governo O pensamento que ateacute este ponto se mostra como a

inteligecircncia que conhece as ideais que fundamentam os valores morais como a ideia do

bem deve ter assim seus procedimentos objetos e alcance cognitivo explicados para

mais tarde no livro VII narrar a aplicaccedilatildeo deste conhecimento Desta forma as relaccedilotildees

e classificaccedilotildees que aparecem no livro VI constituem um rico argumento para analisar o

que talvez possa ser considerado o pensar em seu niacutevel mais alto em contraste com

outras atividades mentais Evidentemente que natildeo se exploraraacute as outras atividades aleacutem

deste propoacutesito ou seja fazer um contraponto com a inteligecircncia A busca do filoacutesofo

governante por padrotildees eacuteticos passa agora a ser analisada sob o prisma epistemoloacutegico

O dialeacutetico do livro VI mostra o caraacuteter teacutecnico da filosofia vista de agora em diante

como um exerciacutecio de aquisiccedilatildeo onde aparece com maior ecircnfase o filoacutesofo cientista ou

37

da perspectiva que mais interessa o pensamento nos termos da cogniccedilatildeo a qual a partir

de entatildeo se define como a atividade de buscar as ideias

II A Cogniccedilatildeo

21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem

A pesquisa sobre o que eacute o bem eacute posta de lado sem mais nenhuma explicaccedilatildeo

aleacutem da previsatildeo de se tratar de um objeto cujas exigecircncias demandam um esforccedilo que

vai aleacutem do acircnimo (ηὴλ παξνῦζαλ ὁξκὴλ Rep 506e2)16

de Soacutecrates Dada magnitude

do bem a questatildeo passaraacute a ser investigada a partir do ldquofilho do bemrdquo recurso definido

como o que parece ser mais semelhante a ele (Rep 506d8-e5) O cuidado versaraacute sobre

realizar uma inquiriccedilatildeo de modo a oferecer uma explicaccedilatildeo um caacutelculo verossiacutemil

como o proacuteprio texto diz disto que se revelaraacute herdeiro das caracteriacutesticas do bem ndash ldquo

Recebei portanto os juros e o proacuteprio filho do bem (Rep 507a 4-5) segundo a

16 A ediccedilatildeo inglesa apresenta uma traduccedilatildeo interpretativa mas sem duacutevida bastante coerente para ηὴλ

παξνῦζαλ ὁξκὴλ ldquopresent state of thinkingrdquo Emlyn-Jones C Preddy W op cit p 85 O texto sugere a

incapacidade de apreensatildeo do pensamento diante magnanimidade da ideia do bem mas ao mesmo tempo

a pesquisa intelectual dado por uma acircnimo e por isso um vinculada a uma instacircncia desiderativa Uma

das caracteriacutesticas que distingue o filoacutesofo dos demais se refere a esta postura de busca do conhecimento

que nessa passagem aparece nos termos da ὁξκὴ Vale atentar para a noccedilatildeo de acircnimo intelectual que a

investigaccedilatildeo supotildee o qual agora eacute dita por Soacutecrates como um impulso um esforccedilo Esse seraacute um tema

tratado no livro VII durante a explicaccedilatildeo da proposta propedecircutica na qual se verificaraacute qual a disciplina

apresenta o impulso uacutetil e necessaacuterio para o trabalho intelectual

38

capacidade de apreendecirc-lo ndash ldquoTeremos o maior cuidado que pudermos disserdquo

(Εὐιαβεζόκεζα ἔθε θαηὰ δύλακηλ) (Rep 507a6) As questotildees jaacute levantadas e

definidas em discussotildees anteriores sobre as coisas boas e belas (Πνιιὰ θαιά θαὶ πνιιὰ

ἀγαζὰ) seratildeo revistas a partir desta proposta que comeccedila por distinguir a generalidade

das muacuteltiplas coisas belas e boas da essencialidade da ideia que pressupotildee o novo foco

de investigaccedilatildeo Assim o que era pensado como uma pluralidade de coisas que

apresentavam a benignidade e a beleza como caracteriacutesticas agora abre ocasiatildeo ao que eacute

essencialmente bom e belo que natildeo pode ser outra coisa que a ideia do bem e a ideia do

belo

ldquo- E o proacuteprio belo e o proacuteprio bem e da mesma forma todas

as coisas que naquele momento tiacutenhamos como muacuteltiplas (Καὶ αὐηὸ

δὴ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ θαὶ νὕησ πεξὶ πάλησλ) noacutes agora num

movimento contraacuterio consideramos cada uma em relaccedilatildeo a uma ideia

uacutenica agrave qual damos o nome de essecircncia ndash (ἃ ηόηε ὡο πνιιὰ ἐηίζεκελ

πάιηλ αὖ θαη ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο ldquoὃ ἔζηηλrdquo

ἕθαζηνλ πξνζαγνξεύνκελ)

- Eacute assim

- E das coisas muacuteltiplas afirmamos que satildeo vistas mas natildeo

pensadas enquanto as ideias satildeo pensadas mas natildeo vistas (Καὶ ηὰ

κὲλ δὴ ὁξᾶζζαί θακελ λνεῖζζαη δ νὔ ηὰο δ αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ

ὁξᾶζζαη δ νὔ)rdquo (Rep 507b5-c10)

Este constitui um importante movimento da investigaccedilatildeo ao descrever uma

postura e um foco inteiramente intelectual A perspectiva a partir da qual se pretende

apreender o bem apresenta um elemento que mostra o que haacute de essencial nele a ἰδέα

Deve-se observar a construccedilatildeo deste foco trata-se agora do proacuteprio belo e do proacuteprio

bem (αὐηὸ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ) O que era dito ldquoo bemrdquo e ldquoideia do bemrdquo recebe

agora especificaccedilotildees nos termos de sua identidade A questatildeo parece superar as

caracteriacutesticas e benesses do bem e da beleza para enfatizar aquilo em que mostram ser

autecircnticos ldquoele mesmordquo (ηὸ αὐηό) literalmente o bem ele mesmo o belo ele mesmo

exprimindo dessa forma a sua identidade Tal deve ser o modo a se considerar o bem o

belo e qualquer objeto que estiver sob investigaccedilatildeo O acircngulo que exprime o ηὸ αὐηό eacute

dado conforme uma ideia uacutenica (θαη ἰδέαλ κίαλ) na qual estaacute posto o que eacute essencial

oferecendo por isso o que ele eacute (ὃ ἔζηηλ) A ideia uacutenica consiste portanto no objeto

que exprime o que eacute essencial ao bem ao belo ou ao que se investiga e eacute partir dela

que se daraacute o conhecimento Os termos utilizados para questionar o bem anteriormente

39

recebem nessa passagem uma formulaccedilatildeo especiacutefica Eacute necessaacuterio ter em vista tais

especificaccedilotildees ao se referir a ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα ou para fazer qualquer investigaccedilatildeo da

ordem do conhecimento O termo ὃ ἔζηηλ antes proferido sem maiores especificaccedilotildees

(Rep 506a-b) tem determinado o seu conteuacutedo cognitivo Perguntar-se sobre o bem

consiste em saber o que ele eacute e desse modo eacute perguntar-se sobre a sua essecircncia

manifesta pela ideia Tal relaccedilatildeo entre o bem a ideia e o chamado ldquoo que eacuterdquo mostra

assim aquilo que Soacutecrates considera possiacutevel de apreender17

As especificaccedilotildees sobre a ideia e o ser ganharatildeo explicaccedilotildees O proacuteximo passo

como jaacute previsto diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja agrave apreensatildeo da

ideia Assim o pensamento nos termos do λνῦο aparece como a atividade intelectual

adequada para apreendecirc-las em contraposiccedilatildeo a uma percepccedilatildeo sensiacutevel A dicotomia

enunciada em passagens anteriores como filoacutesofo e natildeo filoacutesofo opiniatildeo e

conhecimento tem uma versatildeo epistecircmica que deve integrar as distinccedilotildees necessaacuterias

para apurar a formulaccedilatildeo dessa perspectiva cientiacutefica o que eacute visiacutevel e o que eacute pensado

Em termos literais as ideias satildeo pensadas enquanto as coisas muacuteltiplas satildeo vistas (ηὰο δ

αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ ὁξᾶζζαη δ νὔ) O pensamento consiste assim na faculdade para

a apreensatildeo das ideias contraposto agraves sensaccedilotildees que apreende somente o que eacute sensiacutevel

(Rep 507c3-4)

Para traccedilar um perfil mais preciso do pensamento e da postura intelectual que o

conhecimento do bem exige vale analisar primeiro o caraacuteter das sensaccedilotildees e das coisas

sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo ao que se refere ao inteligiacutevel Note-se que o que estaacute em

jogo nesse momento eacute muito mais uma definiccedilatildeo de apreensatildeo e que para isso vale

elucidar o que se refere a cada tipo quer da sensibilidade quer do pensamento No caso

das coisas sensiacuteveis antes abordadas nos termos da aparecircncia (ηὰ δνθνῦληα Rep

505d9) o texto mostra os oacutergatildeos da sensibilidade como o que traz a capacidade de

sentir Esses satildeo todavia insuficientes para oferecer qualquer elemento da ordem do

inteligiacutevel Interessa notar o elemento que estaacute para aleacutem da insuficiecircncia dos sentidos e

desse modo delimitar as diferenccedilas entre sensaccedilatildeo e pensamento que se tornam cada

vez mais precisas Importa averiguar aquilo que possibilita a apreensatildeo meio sem o

17 Adam entende que o que eacute tomado como πνιιὰ cada coisa a que se referem diz respeito a uma uacutenica

ideia mas adverte acerca das dificuldades de uma traduccedilatildeo que ofereccedila um sentido claro e simples acerca

de πνιιὰ e ἰδέαλ κίαλ O que lhe parece claro eacute que estes formam uma antiacutetese a qual denota a

contraposiccedilatildeo entre a proacutepria ideia e os πνιιὰ Adam entende que ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ consiste na forma

generalizada de o proacuteprio belo o proacuteprio bem e que o ldquobalanccedilo mais preciso entre ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ e

ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ eacute ldquouma ideia de cada umrdquo chamada ldquoo que eacuterdquo Adam J The Republic of Plato vol II

Cambridge University Press 2009 Pg 81-82

40

qual nenhuma capacidade (δύλακηο Rep 507c8) sensiacutevel e intelectual como se veraacute

poderia exercer a sua funccedilatildeo Entre o ato de ver e o objeto visto se supotildee um terceiro

elemento que torna possiacutevel esse fenocircmeno da visatildeo a luz Sem ela as cores e outras

caracteriacutesticas sensiacuteveis nos objetos seriam invisiacuteveis Natildeo seria possiacutevel utilizar o

oacutergatildeo da visatildeo uma vez que faltaria algo externo a ele que o permitisse ver (Rep

507d11-508a3) A luz eacute descrita como o viacutenculo (ζύδεπμηο Rep 508a1) entre a

sensaccedilatildeo da visatildeo e a capacidade de ser visto Ela consiste portanto naquilo que faz a

ligaccedilatildeo entre percepiente e objeto perceptiacutevel de modo a tornar possiacutevel o

desenvolvimento da capacidade da percepccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de uma

imagem e de tornar o objeto sensorial passiacutevel de ser apreendido mecanismo que

caracteriza o do fenocircmeno da visatildeo

De modo anaacutelogo e paralelo tem-se em foco delinear a capacidade de apreensatildeo

do pensamento e o que o permite atuar Eleito o oacutergatildeo de aquisiccedilatildeo das ideias parece

necessaacuterio investigar a sua relaccedilatildeo com o objeto tiacutepico de uma busca intelectual de

modo a verificar as suas potencialidades Para melhor dizer a respeito do bem faz-se

necessaacuterio especificar natildeo somente as ideias mas ter uma compreensatildeo acerca da

faculdade capaz de estabelecer relaccedilotildees com elas Nesse sentido a pesquisa do bem tal

como eacute feita nas uacuteltimas passagens lanccedila luz agraves questotildees do intelectualismo no que se

refere a sua atuaccedilatildeo como um fenocircmeno da capacidade intelectiva e seu alcance

Representado na figura do filoacutesofo ao longo dos Livros V e VI a intelectualidade

comeccedila a exibir determinaccedilotildees natildeo somente no campo da moralidade mas tambeacutem do

seu exerciacutecio cientiacutefico especiacutefico O que era analisado sob o crivo de um valor moral

como se notou nas abordagens iniciais do bem passa a ser investigado segundo a

formulaccedilatildeo da ciecircncia Da mesma maneira todos os elementos que acompanham a

questatildeo do conhecimento como a ideia e o pensamento satildeo alvo de explicaccedilotildees

Assim as proacuteximas passagens mostraratildeo as operaccedilotildees intelectivas no desenrolar da

explicaccedilatildeo sobre o bem onde seraacute possiacutevel acompanhar as formulaccedilotildees acerca de uma

tiacutepica aquisiccedilatildeo inteligente

41

22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento

A relaccedilatildeo entre faculdade de apreensatildeo e objeto apreensiacutevel depende de algo

exterior que promove a ligaccedilatildeo entre eles A luz aparece assim como um importante

elemento (ἄηηκνλ Rep 508a3) que promove uma relaccedilatildeo entre capacidades ndash de ver e

de ser visto segundo o texto Ela constitui o viacutenculo de descendecircncia entre a causa e

suas derivaccedilotildees entre o sol e o que eacute iluminado por ele possibilitando o conhecimento

acerca dos mesmos O que vem a seguir mostraraacute contudo que mais importante que

este viacutenculo entre δύλακηο como a luz eacute o que a origina a exemplo do sol (Rep

508a8) A analogia propotildee desse modo uma explicaccedilatildeo para a noccedilatildeo de viacutenculo nos

termos de uma relaccedilatildeo natural (θύσ Rep 508a9) ou seja uma relaccedilatildeo que se justifica

dada a sua origem na qual o ser originaacuterio da onde derivam os outros seres assume

maior importacircncia

ldquo- Seraacute assim a relaccedilatildeo natural da visatildeo com esse deus ( Ἆξ νὖλ

ὧδε πέθπθελ ὄςηο πξὸο ηνῦηνλ ηὸλ ζεόλ)

- Como

- A visatildeo natildeo eacute o sol nem a proacutepria visatildeo em si nem o lugar onde

dizemos que ela se daacute isto eacute os olhos

- Natildeo eacute

- Mas eacute creio eu entre os oacutergatildeos dos sentidos o olho eacute mais

semelhante ao sol (Ἀιι ἡιηνεηδέζηαηόλ γε νἶκαη ηῶλ πεξὶ ηὰο

αἰζζήζεηο ὀξγάλσλ)

- De longe o mais semelhante

- Entatildeo tambeacutem o poder que o olho tem ele natildeo o possui com algo

que como um fluxo procede do sol (Οὐθνῦλ θαὶ ηὴλ δύλακηλ ἣλ ἔρεη

ἐθ ηνύηνπ ηακηεπνκέλελ ὥζπεξ ἐπίξξπηνλ θέθηεηαη)

- Eacute bem assim

- Seraacute entatildeo que tambeacutem o sol natildeo eacute a visatildeo mas sendo a causa

dela eacute visto por meio da proacutepria visatildeo (Ἆξ νὖλ νὐ θαὶ ὁ ἥιηνο ὄςηο

κὲλ νὐθ ἔζηηλ αἴηηνο δ ὢλ αὐηο ὁξᾶηαη ὑπ αὐηο ηαύηεο)rdquo (Rep

508a9-b10)

O sol natildeo eacute o fenocircmeno da visatildeo tampouco os olhos oacutergatildeo da visatildeo

(ἡιηνεηδέζηαηόλ Rep 508a9-11) embora os olhos constituam o oacutergatildeo mais semelhante

e portanto mais afim com o sol A capacidade de visatildeo que tecircm os olhos adveacutem do sol

ou seja eacute posta em atividade por ele que no seu papel de fonte originaacuteria transmite tal

habilidade como um fluiacutedo funccedilatildeo desempenhada pela luz A explicaccedilatildeo dada por esta

analogia descreve a relaccedilatildeo de causa e explicita o que se deve entender por uma relaccedilatildeo

42

a ligaccedilatildeo que promove um fenocircmeno a partir do desenvolvimento das capacidades do

objeto apreensiacutevel e do oacutergatildeo que o apreende Trata-se da atribuiccedilatildeo de capacidades e o

que permite o desenvolvimento delas que se explica a partir de uma figura originaacuteria e

superior como o sol Ao que tudo indica a importacircncia de pocircr em foco os elementos

que participam dessa relaccedilatildeo de modo a elencaacute-los e distingui-los estaacute em pocircr em

questatildeo a natureza do que causa o desdobramento da percepccedilatildeo a partir do mecanismo

que constitui o fenocircmeno da visatildeo Natildeo seria correto para a investigaccedilatildeo reconhecer a

causa errada de uma apreensatildeo tampouco superestimar a superioridade do que assume

tal funccedilatildeo

De modo anaacutelogo a natureza inteligiacutevel da ideia do bem natildeo deve ser

confundida nem ter a sua superioridade mitigada reconhecendo-se assim a

superioridade disto que se mostraraacute mais adiante ser o gecircnero inteligiacutevel Da mesma

forma admite-se a superioridade da alta intelecccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees que se tem

na opiniatildeo uma vez que somente nesse niacutevel se pode conhecer algo sobre a verdadeira

causa O estudo do bem como αἴηηνο se revela como um ganho ao mostrar a cadeia de

relaccedilatildeo que eacute possiacutevel inferir a partir da relaccedilatildeo que se mostra entre causa e o que eacute

causado Como sugere a analogia o sol ao emanar seus fluiacutedos permite o conhecimento

do que eacute iluminado e a inferecircncia acerca dele proacuteprio Natildeo eacute conveniente para o

momento discutir a relaccedilatildeo de causalidade que sugestivamente eacute dada na analogia antes

das uacuteltimas informaccedilotildees que o texto iraacute apresentar sobre o bem e a ideia do bem

Interessa observar na analogia a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pensamento e objeto que o

desdobramento da δύλακηο promove a partir da descriccedilatildeo desse ser causador e superior

Tal desdobramento que por ora aparece nos termos do fenocircmeno da percepccedilatildeo sensiacutevel

e da aquisiccedilatildeo inteligiacutevel indicaraacute a origem do comportamento do filoacutesofo do guardiatildeo

e dos outros cidadatildeos quando observado como estados (παζήκαηα) da alma

oferecendo assim uma explicaccedilatildeo mais objetiva sobre as operaccedilotildees do pensamento

Outro dado ao qual se deve dar atenccedilatildeo diz respeito agrave natureza do oacutergatildeo de

apreensatildeo semelhante ao ser originaacuterio Essa consiste em uma importante informaccedilatildeo

para compor a caracterizaccedilatildeo do pensamento como faculdade do conhecimento e

portanto afim com a ideia e com o bem A exemplo dos olhos o oacutergatildeo dos sentidos

mais semelhante com o sol e que sugere portanto uma afinidade natural com ele

descreve a relaccedilatildeo que o pensamento como oacutergatildeo do conhecimento e da inteligecircncia

deve estabelecer com as ideias inteligiacuteveis as quais oferecem de algum modo o bem

A natureza do pensamento eacute semelhante agrave natureza do bem e das ideias e portanto deve

43

ser o meio para reconhecer a relaccedilatildeo que haacute entre o ἀγαζόο e as outras coisas que dele

derivam Deve-se observar que posto nos termos de uma relaccedilatildeo natural de filiaccedilatildeo o

pensamento deve apresentar as caracteriacutesticas afins com o bem Entretanto o texto

ainda natildeo oferece tais elementos antes de propor uma anaacutelise das complexidades do

pensar como uma atividade na alma Por enquanto a distinccedilatildeo entre apreensatildeo

capacidades e fonte de origem parece importante para que se possa mais adiante

empreender uma anaacutelise das operaccedilotildees intelectuais ateacute aqui sugeridas Do mesmo modo

tais diferenciaccedilotildees parecem fundamentais para caracterizar e qualificar o pensar e o

conhecimento de modo a compreender uma certa hierarquia que se constroacutei a partir da

noccedilatildeo de valor a saber a magnanimidade do bem e a importacircncia da ideia do bem

analogamente descrita na superioridade do sol como paracircmetro como referecircncia Como

um paracircmetro tal superioridade permite qualificar algo como niacutetido ou verdadeiro

quando posto em relaccedilatildeo ao bem18

O jogo de oposiccedilotildees que se tem observado ao longo desta pesquisa mostra na

oposiccedilatildeo visiacutevel-inteligiacutevel dita diretamente na analogia do sol as relaccedilotildees que se pode

estabelecer entre os diferentes domiacutenios Vale examinar este tracircmite na figura da luz e

na descriccedilatildeo da relaccedilatildeo de descendecircncia entre o sol e seus filhos onde satildeo sugeridas as

noccedilotildees de causalidade e semelhanccedila como elementos importantes para a atividade

intelectual

ldquo- Pois bem disse eu Deves pensar que eu afirmo que o sol eacute o

filho do bem aquele que o bem engendrou como anaacutelogo a si mesmo

(ηὸλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἔθγνλνλ ὃλ ηἀγαζὸλ ἐγέλλεζελ ἀλάινγνλ ἑαπηῷ)

cuja relaccedilatildeo no mundo inteligiacutevel com a inteligecircncia e as coisas

inteligiacuteveis eacute a mesma que o sol tem no mundo visiacutevel com a vista e

as coisas visiacuteveis (ὅηηπεξ αὐηὸ ἐλ ηῷ λνεηῷ ηόπῳ πξόο ηε λνῦλ θαὶ ηὰ

λννύκελα ηνῦην ηνῦηνλ ἐλ ηῷ ὁξαηῷ πξόο ηε ὄςηλ θαὶ ηὰ ὁξώκελα)rdquo

(Rep 508b12-c2)

18 As palavras de Giovanni Casertano trazem este raciociacutenio de maneira melhor resumida ldquoParece-me

claro que aqui a ideia do bem eacute o que transforma conhecimentos nun sistema fortemente organizado a

que podemos chamar ciecircncia ἐπηζηήκε e ao mesmo tempo valida a niacutevel superior os mesmos

conhecimentos eacute o que daacute um valor maior aos mesmos conhecimentos Neste sentido deve-se entender

que ela eacute a causa tambeacutem da verdade e esta ideia do valor maior conferido da ideia do bem aos

conhecimentos seraacute reafirmado logo depois realccedilando ainda que o sentido do que se quer dizer eacute iacutensito

na imagem que se estaacute usandordquo Casertano G ldquoO Bem e a Linhardquo in Xavier D Cornelli G (orgs) A

Repuacuteblica de Platatildeo ndash Outros Olhares Satildeo Paulo Loyola 2011 p 291 A perspectiva cientiacutefica tal como

aqui se pretende delinear coloca o bem como mostra claramente o comentaacuterio em uma posiccedilatildeo de

superioridade em uma hierarquia que deve ser entendida nos termos de uma divisatildeo na qual os elementos

se organizam em relaccedilatildeo a ele Sendo assim a valoraccedilatildeo que se atribui aos termos diz respeito ao grau de

cognoscibilidade que oferecem nessa relaccedilatildeo

44

O texto se encaminha de modo a pontuar conclusotildees sobre as questotildees postas

aqui O sol eacute a causa (αἴηηνο) da visatildeo uma vez que oferece a luminosidade para que se

realize o fenocircmeno da percepccedilatildeo De modo anaacutelogo conclui-se que o sol eacute a ideia do

bem o filho do bem e que por ser seu descendente eacute semelhante a ele O conhecimento

por sua vez eacute representado nos termos da acuidade da visatildeo do ver nitidamente o que

se observa (Rep 508c4-d2) exibindo assim uma condiccedilatildeo desta formulaccedilatildeo de

conhecimento que vem sendo construiacuteda a condiccedilatildeo de clareza que seraacute explorada mais

adiante Agora dito explicitamente o texto confirma a equiparaccedilatildeo do sol ao filho do

bem Toda a narrativa acerca do fenocircmeno da visatildeo serve para introduzir e estabelecer

os temas considerados importantes no que se refere agrave inteligecircncia Comparado ao sol no

mundo sensiacutevel o bem eacute a causa e o pensamento e as coisas pensadas apresentam com

ele a mesma relaccedilatildeo que a haacute entre o sol a vista e as coisas visiacuteveis A figura da

descendecircncia que aos poucos eacute dita em termos cada vez mais precisos apresenta aquela

que seraacute uma importante noccedilatildeo para a apreensatildeo inteligiacutevel a semelhanccedila que pode

haver em uma analogia Dada como uma caracteriacutestica herdeira do bem ela mostra a

potencialidade de oferececirc-lo ainda que natildeo de modo fidedigno como se veraacute Ela

consiste desse modo em um dos meios pelo qual o pensamento pode se lanccedilar em

busca de uma apreensatildeo pois eacute possiacutevel inferir que o exprime da maneira mais

proacutexima Note-se que ao afirmar que o sol eacute semelhante ao bem o texto valida as

relaccedilotildees feitas na analogia e as consequecircncias que se pode tirar delas Ao mesmo tempo

pontua os graus de descendecircncia e portanto em que grau os objetos em questatildeo se

relacionam com ele

Tais comparaccedilotildees tecircm seus propoacutesitos melhor compreendidos e averiguados

quando analisados em relaccedilatildeo agrave alma A pesquisa do filoacutesofo mostra a sua importacircncia agrave

medida que compreende o quanto que lhe for possiacutevel o valor do bem como fonte

originaacuteria O que antes era sugerido como objeto altamente valoroso (ἀπνκαληεπνκέλε

Rep 505e1) e que por isso qualificava aqueles que empreendiam a sua busca

(θνκςνηέξνηο Rep 505b6) tem explicita a sua importacircncia e distinccedilatildeo nas conclusotildees

da analogia

ldquo- () Pensa assim tambeacutem a respeito da alma Quando ela se

apoacuteia no que a verdade e o ser iluminam ela o concebe e parece ter

inteligecircncia (Οὕησ ηνίλπλ θαὶ ηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη19

ὅηαλ κὲλ νὗ

19 Para compreender melhor a passagem e a proacutepria analogia vale trazer a versatildeo do texto grego

estabelecido por Proclus que Eacutemile Chambry apresenta em seu aparato criacutetico ldquoηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη ηὸ

45

θαηαιάκπεη ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ εἰο ηνῦην ἀπεξείζεηαη ἐλόεζέλ ηε

θαὶ ἔγλσ αὐηὸ θαὶ λνῦλ ἔρεηλ θαίλεηαη) Quando poreacutem se apoacuteia em

algo em que se mistura com a escuridatildeo aquilo que vem a ser e

perece ela emite opiniotildees e a visatildeo turva porque vai mudando suas

opiniotildees numa e noutra direccedilatildeo e entatildeo se assemelha a algueacutem que

natildeo tem inteligecircncia (δνμάδεη ηε θαὶ ἀκβιπώηηεη ἄλσ θαὶ θάησ ηὰο

δόμαο κεηαβάιινλ θαὶ ἔνηθελ αὖ λνῦλ νὐθ ἔρνληη)rdquo (Rep 508d4-9)

Ao reconhecer superioridade do bem a pesquisa pontua os objetos herdeiros

dele ao mesmo tempo em que confere agrave inteligecircncia a superioridade de sua capacidade

cognitiva Dito de outro modo o λνῦο mostra sua aptidatildeo inteligiacutevel ao se revelar o

meio adequado para investigar tais objetos adquirindo deles aquilo que eacute apreensiacutevel

intelectualmente como a ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Nessa atividade reside o alto valor da

intelecccedilatildeo em comparaccedilatildeo ao tipo de apreensatildeo que se tem na opiniatildeo a percepccedilatildeo A

nitidez necessaacuteria para o conhecimento mostra a verdade e o ser caracteriacutesticas do bem

as quais a alma se fixa (ἀπεξείδσ Rep 508d5) ou se apoia como prefere a traduccedilatildeo

para ter aquela que parece ser a sua melhor condiccedilatildeo o seu melhor estado a λόεζηο Ter

inteligecircncia supotildee este processo de aquisiccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de tais atributos

ao mesmo tempo iluminados (θαηαιάκπεη) dados pelo bem

Conveacutem notar assim o sentido em que o texto oferece a verdade que

acompanha o ser nessa passagem como um atributo do bem apreensiacutevel pela alta

intelecccedilatildeo Diferentemente de como foi referido anteriormente (Rep 506c) a verdade

natildeo aparece nos termos de um acerto que pode eventualmente se dar mas como uma

caracteriacutestica do bem que oferece condiccedilotildees para reconhecer o que eacute inteligiacutevel

comparaacutevel agrave luz do sol A passagem mostra os elementos a partir dos quais se daacute a

aquisiccedilatildeo do bem e o proveito que a alma tem desse conhecimento sendo a verdade e o

ser o que deve ser conhecido Cabe considerar assim que este ldquofixar-serdquo da alma diz

respeito agrave apreensatildeo entretanto vale questionar o sentido em que se pode compreendecirc-

lo como uma aquisiccedilatildeo No registro do conhecimento como se tem visto refere-se a um

ὄκκα ηο ςπρο ᾧ δε λόεη ndash Chambry La Republic ed Belles Lettres p 138 As ediccedilotildees biliacutengues no

geral natildeo optam pela versatildeo de Proclus mas cabe comentar as opccedilotildees dado que a passagem sugere o

pensamento anaacutelogo aos olhos e a aquisiccedilatildeo da ideia comparaacutevel ao fenocircmeno da visatildeo Considerar a

inteligecircncia como ldquoos olhos da almardquo parece uma analogia plenamente possiacutevel nessa oraccedilatildeo uma vez

que tal expressatildeo aparece em 533d2 Deve-se entender a inteligecircncia como ldquoolhos da almardquo no sentido de

autecircntico oacutergatildeo do conhecimento e acompanhar o seu desempenho no contexto do estabelecimento de

papeacuteis na relaccedilatildeo cognoscente-cognosciacutevel Seguindo a simetria que a analogia apresenta ao longo da

argumentaccedilatildeo a λνήζηϛ corresponde agrave visatildeo (ὄςηο ὁξάσ) os olhos (ὀθζαικόο ὄκκα) oacutergatildeos da visatildeo ao

λνῦο faculdade da cogniccedilatildeo as vistas o exerciacutecio da visatildeo se refere ao exerciacutecio do intelecto e ao

conhecimento Da mesma forma o sol eacute anaacutelogo agrave ideia do Bem a luz eacute anaacuteloga agrave verdade e as cores

assim como o que se apreende como fenocircmeno visual corresponde agraves ideias

46

tomar posse adquirir caracteriacutesticas inteligiacuteveis do bem verdade e ser Em um outro

sentido bastante possiacutevel mas que natildeo parece conveniente nesse contexto diz respeito

ao fitar ter em mira bastante afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo da ideia inteligiacutevel

aparentemente ainda natildeo sugerida aqui De qualquer modo ter inteligecircncia (λνῦλ ἔρεηλ)

compreende um contato com o inteligiacutevel conduzido pela verdade que promoveraacute um

efeito dito conhecimento O modo e as razotildees para a alma se manter presa a esses

aspectos se daraacute em parte ao longo da explanaccedilatildeo sobre o meacutetodo Por enquanto tem-

se enunciado a importacircncia desta aquisiccedilatildeo e a descriccedilatildeo da postura daquele que pode

adquirir o conhecimento por se lanccedilar a esse exerciacutecio o qual se pode denominar

intelecccedilatildeo no maior grau

Deve-se chamar atenccedilatildeo para o desenlace da sugestatildeo de inteligecircncia como alta

capacidade de aquisiccedilatildeo que o texto apresentou anteriormente (Rep 505b4) nos termos

do θξνλεῖλ e do λνῦο Os desdobramentos desta noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo que vem sendo

construiacuteda qualifica a divisatildeo dos dois tipos de apreensatildeo Segundo o que sugere a

ultima analogia a aquisiccedilatildeo inteligente eacute considerada a mais alta dado o valor dos

abjetos que adquirem enquanto as percepccedilotildees do sensiacutevel ao modo da opiniatildeo eacute posto

em um niacutevel inferior A partir da argumentaccedilatildeo acerca dos aspectos do bem que devem

ser conhecidos e portanto o alvo cognosciacutevel da alma justifica-se a valorizaccedilatildeo pela

busca do bem e o desprezo pela aparecircncia agora nos termos epistemoloacutegicos como quer

a formulaccedilatildeo de conhecimento para a filosofia Tecircm-se os elementos que estatildeo em vista

no verdadeiro conhecimento e com isso uma descriccedilatildeo da conduta da alma nessa

atividade de alta intelecccedilatildeo A retidatildeo da alma do que foi pensado e conhecido

demonstra a relaccedilatildeo natural entre o bem e o resultado dessa relaccedilatildeo ter a verdade e o

ser permanecer de algum modo vinculados a eles o que descreve a θξόλεζηο e a

λόεζηϛ20

Este parece ser um tema crucial de acordo com as intenccedilotildees poliacuteticas do filoacutesofo

Pode-se depreender que o conhecimento como posse da verdade e do ser dado nesta

vinculaccedilatildeo da alma eacute o que garante o bom governo e a organizaccedilatildeo da cidade A

importacircncia de investigar acerca do pensar e evidentemente os seus modos de

apreensatildeo estaacute justamente em tornar expliacutecito o exerciacutecio intelectual que acontece na

20 Descrita assim a noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo eacute bastante parecida com a que se encontra no Feacutedon 79d uma

relaccedilatildeo do pensamento com os seres do domiacutenio inteligiacutevel na qual se tem concomitantemente agrave

aquisiccedilatildeo da ideia a atividade desta apreensatildeo sendo ela proacutepria o resultado da interaccedilatildeo entre a alma e a

ideia Esta talvez constitua a visatildeo mais patente do pensamento nos termos de uma faculdade no qual o

intelecto eacute agente do conhecimento e paciente ao receber do inteligiacutevel estiacutemulo para continuar em

atividade

47

mais alta intelecccedilatildeo e que vai garantir ao filoacutesofo governar com justiccedila Do mesmo

modo iraacute permitir ao filosoacutefo conhecer o alcance e o comportamento intelectual do natildeo

filoacutesofo conhecimento bastante uacutetil para organizar harmonicamente as categorias que

compotildeem a cidade Tal vinculaccedilatildeo entretanto parece ganhar maiores detalhamentos na

analogia da linha Ateacute aqui o que se tem constitui uma caracterizaccedilatildeo ainda pouco

teacutecnica do pensar mas suficiente para oferececirc-lo no sentido restrito aos interesses da

filosofia Deve-se ter em vista que os passos dados pontuam as questotildees que unem o

objetivo poliacutetico e epistecircmico ao lanccedilar para a alma os temas analisados No entanto o

teor desta ligaccedilatildeo entre conhecimento e organizaccedilatildeo poliacutetica seraacute elucidado somente

apoacutes uma anaacutelise da atividade da alma que aparece como se examinaraacute nos termos da

percepccedilatildeo sensiacutevel e da cogniccedilatildeo A aquisiccedilatildeo do conhecimento teraacute a sua explicaccedilatildeo

como fenocircmeno psiacutequico permitindo propor ao mesmo tempo a atividade inteligente de

modo autecircntico e as consequecircncias eacuteticas desta aquisiccedilatildeo temas indiretamente

enunciados nessa vinculaccedilatildeo da alma que pressupotildee a θξόλεζηο e a λόεζηϛ A

formulaccedilatildeo da ideia do bem tem junto com a explicaccedilatildeo do conjunto de atividades

mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo sua posiccedilatildeo definida da onde teraacute explicitado seu papel

de paracircmetro modelo e causa

Antes de um exame minucioso sobre as operaccedilotildees intelectivas cabe ainda

analisar com detalhes o que o texto conclui sobre o bem apoacutes a exposiccedilatildeo da sua relaccedilatildeo

com as ideias e com o pensamento tal como se viu Deve-se observar a transposiccedilatildeo

dos elementos da analogia para a teoria do conhecimento e da ideia do bem que se

propotildee Nesta transposiccedilatildeo estatildeo os dados epistemoloacutegicos que passam a ser utilizados

na investigaccedilatildeo os quais constituem a perspectiva cientiacutefica que Soacutecrates pretende dar

aos objetos em questatildeo

ldquo- Pois bem Eis o que deves afirmar Eacute a ideia do bem que

confere verdade ao que estaacute sendo conhecido e capacidade ao que

conhece (ηὸ ηὴλ ἀιήζεηαλ παξέρνλ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο θαὶ ηῷ

γηγλώζθνληη ηὴλ δύλακηλ ἀπνδηδὸλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέαλ θάζη εἶλαη)

Deves pensaacute-la como causa da ciecircncia e da verdade na medida em

que esta eacute conhecida (αἰηίαλ δ ἐπηζηήκεο νὖζαλ θαὶ ἀιεζείαο ὡο

γηγλσζθνκέλεο κὲλ δηαλννῦ) mas embora a ciecircncia e a verdade

sejam belas pensaraacutes com acerto se pensares que a ideia do bem natildeo

se confunde com elas e as supera em beleza (ἄιιν θαὶ θάιιηνλ ἔηη

ηνύησλ ἡγνύκελνο αὐηὸ ὀξζῶο ἡγήζῃ ἐπηζηήκελ δὲ θαὶ ἀιήζεηαλ)

Como aqui eacute correto considerar que a luz e a visatildeo satildeo semelhantes

ao sol (ἡιηνεηδ) mas natildeo eacute correto tecirc-las como o sol assim tambeacutem

eacute correto considerar que laacute sejam semelhantes ao bem (ἀγαζνεηδ)

mas natildeo eacute correto considerar que uma ou outra seja um bem Ao

48

contraacuterio deve-se atribuir um valor ainda maior agrave natureza do bem

(ἀιι ἔηη κεηδόλσο ηηκεηένλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ)

- A beleza de que falas eacute extraordinaacuteria disse se ela potildee agrave nossa disposiccedilatildeo a ciecircncia e

a verdade mas as supera em beleza (εἰ ἐπηζηήκελ κὲλ θαὶ ἀιήζεηαλ παξέρεη αὐηὸ δ ὑπὲξ ηαῦηα

θάιιεη ἐζηίλ) E tu natildeo deves estar falando que o belo eacute o prazerrdquo (Rep 508e-509 a)

A ideia do bem eacute a causa do conhecimento e da verdade mas natildeo eacute nem a

proacuteprio conhecimento nem a verdade Como causador natildeo pode ser confundida com os

seus derivados dado que esses apresentam algumas de suas caracteriacutesticas como a

verdade e a ciecircncia que satildeo belos Apesar de compartilharem caracteriacutesticas o causador

excede (ὑπέξ) em grau as qualidades atribuiacutedas por ele ao seu derivado Tais qualidades

satildeo suficientes para conferir a benignidade do bem ao que dele deriva entretanto

permitem apenas inferir a partir deles uma dimensatildeo do bem sugestivamente inatingiacutevel

O pensamento como a capacidade de atingi-lo pode no seu exerciacutecio inferir acerca

dele mesmo que natildeo possa apreendecirc-lo totalmente Tal limitaccedilatildeo do pensamento natildeo

representa apesar disso um impedimento para o conhecimento de sua natureza

inteligiacutevel Saber o que eacute o bem nesse sentido constitui um empreendimento para aleacutem

das possibilidades de uma intelecccedilatildeo elevada O que eacute cognosciacutevel acerca dele natildeo deve

ser confundido com ele proacuteprio e este parece consistir em um dos primeiros

discernimentos para a sua apreensatildeo

Para melhor definir e compreender no que consiste uma atuaccedilatildeo inteligente

deve-se analisar as uacuteltimas conclusotildees da analogia sobre o bem segundo a analogia do

sol Como se viu tem-se por objetivo avaliar a sua condiccedilatildeo (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ Rep

509a5) de modo a verificar o seu papel de fundamento da justiccedila e das virtudes

conforme enunciado no iniacutecio da investigaccedilatildeo As uacuteltimas palavras da analogia do sol

coloca finalmente a questatildeo na perspectiva ontoloacutegica que eacute introduzida a partir de

outra analogia uma imagem do bem (ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ Rep 509a9)

ldquo- Creio que diraacutes que o sol natildeo soacute proporciona aos objetos

visiacuteveis a capacidade de serem vistos mas tambeacutem a gecircnese o

crescimento e a nutriccedilatildeo embora ele proacuteprio natildeo seja a gecircnese (ηὴλ

ηνῦ ὁξᾶζζαη δύλακηλ παξέρεηλ θήζεηο ἀιιὰ θαὶ ηὴλ γέλεζηλ θαὶ

αὔμελ θαὶ ηξνθήλ νὐ γέλεζηλ αὐηὸλ ὄληα)

- Como poderia

- Pois bem Deves dizer tambeacutem que natildeo soacute eacute sob a accedilatildeo do bem

que a faculdade de serem conhecidos estaacute presente nos objetos (ηνῖο

γηγλσζθνκέλνηο ηνίλπλ κὴ κόλνλ ηὸ γηγλώζθεζζαη θάλαη ὑπὸ ηνῦ

ἀγαζνῦ παξεῖλαη) mas tambeacutem que eacute sob a accedilatildeo dele que eles ainda

49

vecircm a ter a existecircncia e o ser (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ ὑπ

ἐθείλνπ)21

muito embora o bem natildeo seja essecircncia mas esteja muito

aleacutem da essecircncia em majestade e poder (πξεζβείᾳ θαὶ δπλάκεη )rdquo

(Rep 509b)

O sol proporciona a geraccedilatildeo o crescimento e a nutriccedilatildeo mas ele proacuteprio natildeo eacute a

geraccedilatildeo Condiccedilatildeo anaacuteloga ao bem que proporciona ao objeto a possibilidade de ser

conhecido ser e essecircncia a qual como se veraacute seraacute apreendida nos termos da

realidade Ele proacuteprio natildeo eacute uma essecircncia ele age sobre o que a ele se relaciona O bem

nessa condiccedilatildeo distingue-se de tais objetos do ser e da essecircncia denotando assim a

superioridade de sua posiccedilatildeo e de sua potecircncia Note-se que a ultima passagem

apresenta definiccedilotildees importantes A primeira se refere agraves caracteriacutesticas do bem que os

objetos recebem o ser e a realidade (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ) e a cognoscibilidade

Disso decorre principalmente a definiccedilatildeo em termos ontoloacutegicos do conhecimento a

aquisiccedilatildeo dessas caracteriacutesticas dadas aos objetos na relaccedilatildeo com o bem ou seja a

apreensatildeo da realidade e do ser que neles se apresentam O bem consiste portanto na

causa do ser e da realidade que traz a essecircncia apreensiacuteveis pelo intelecto mas natildeo

pode ser conhecido em sua integridade apenas inferido por aquela que consiste na ideia

mais proacutexima mais semelhante a ele a ideia do bem (Rep 508e-509a4)22

A abordagem ontoloacutegica do bem oferece a perspectiva cientiacutefica como quer a

filosofia Ao apresentar os verdadeiros objetos cognosciacuteveis nesses termos tem-se a

especificidade dos objetos da intelecccedilatildeo da cogniccedilatildeo (γλῶζηο) e da ἐπηζηήκε que

exigiraacute uma explicaccedilatildeo acerca deste gecircnero filiado agrave ideia do bem e desse tipo de

apreensatildeo Vale por enquanto pontuar o que a analogia pretendeu esclarecer o bem eacute

21 Na ediccedilatildeo inglesa temos ldquobeing and realityrdquo opccedilatildeo que parece conveniente ao contexto uma vez que

a questatildeo ontoloacutegica natildeo parece abordar nesta e nas proacuteximas argumentaccedilotildees a questatildeo da existecircncia mas

da realidade dos objetos promovida por esta participaccedilatildeo na ideia do bem Emly-Jones Preddy op cit p

95

22 Para elucidar o que aqui se explica vale citar o que diz Gosling sobre no que consiste a definiccedilatildeo a

partir da noccedilatildeo de conhecimento n‟A Repuacuteblica ldquoPara Platatildeo tambeacutem se concebe o conhecimento como

satisfazer a pergunta bdquoo que eacute X‟ Expresso nos termos de bdquoX eacute F e G‟ isso natildeo parece ser um defeito na

linguagem mas reflete o fato necessaacuterio de que vaacuterias formas satildeo inextrincavelmente inter-relacionadas

Gosling JCB The Argument of the Philosophers Routledge London and New York 3a ed 2001 pg 120

Este seria o caso dos bdquofilhos do bem‟ como se veraacute em seguida no qual todos apresentam o Bem como

causa e por isso se relacionam a ele necessariamente em termos loacutegicos B bsup1 bsup2 bn Desse modo o Bem

pode ser visto a partir da perspectiva inversa ou seja a partir do que dele se origina como acontece com

a verdade com a realidade e com o justo por exemplo Nesse sentido parece compreensiacutevel e pertinente

a questatildeo e a resposta de Gosling as quais antecipam a questatildeo ontoloacutegica e a noccedilatildeo de conhecimento

que seraacute trabalhada no Livro VI e especialmente no Livro VII ao se averiguar as operaccedilotildees especiacuteficas da

matemaacutetica e da dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar a proposta e as distinccedilotildees entre bem e ideia

introduzidas neste argumento cujas diferenciaccedilotildees se apresentaratildeo ao longo da formulaccedilatildeo de

conhecimento (γλῶζηο e ἐπηζηήκε)

50

superior e inapreensiacutevel A ideia do bem o ser a essecircncia a verdade e o conhecimento

satildeo originados pelo Bem Dentre esses a ideia do bem eacute a ideia semelhante a ele sendo

possiacutevel supor portanto uma distinccedilatildeo entre a ideia do bem e as outras ideias Todo

objeto cognosciacutevel tem ser essecircncia e verdade caracteriacutesticas que o torna cognosciacutevel

O pensamento (θξόλεζηο e λόεζηϛ) como oacutergatildeo do conhecimento mostra-se afim desse

tipo de objeto e por consequecircncia afim com a ideia do bem (ἀγαζνεηδ Rep 509a3)

Assim o pensamento como faculdade da cogniccedilatildeo e capacidade cognitiva eacute da mesma

maneira afetado pela accedilatildeo do bem cujo efeito seraacute o desdobramento da capacidade de

intelecccedilatildeo

Eacute importante atentar para as consequecircncias da teoria do bem e da ideia do bem

para que se possa precisar com mais detalhes o pensamento especialmente no que diz

respeito agrave cogniccedilatildeo Parece imprescindiacutevel para compreender as perspectivas em que o

texto o evoca a saber como faculdade e atividade do conhecimento as diferenciaccedilotildees

que esta hierarquia entre bem ideia do bem e outros objetos que possam ser alvo de

uma atividade de cogniccedilatildeo supotildeem Diante do que se tem examinado as caracteriacutesticas

do objeto satildeo condiccedilotildees para a cogniccedilatildeo tanto quanto a faculdade de conhecer Ambos

faculdade do conhecimento e o objeto tecircm de possuir o caraacuteter inteligiacutevel dado pelo

bem como mostrou a analogia do sol ao enfatizar a capacidade do objeto de ser

percebido e a capacidade do percepiente de perceber Desse acircngulo o estudo sobre o

bem serviu para pontuar a condiccedilatildeo de cada elemento de modo a estabelecer e a elucidar

a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo entre eles Nesta ligaccedilatildeo parece clara a ideia do bem como

fundamento a partir do qual se tem um elemento ativo o intelecto e um passivo o

objeto inteligiacutevel Assim tatildeo importante quanto delimitar e elucidar no que consiste

uma atividade inteligente eacute discernir e definir qual eacute o objeto proacuteprio da inteligibilidade

No desenrolar da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento e sobre o conhecimento da justiccedila

e das virtudes por consequecircncia faz-se necessaacuterio averiguar na mesma medida a postura

intelectual o procedimento intelectual e as condiccedilotildees de cogniccedilatildeo que objeto em

questatildeo oferece

51

As explicaccedilotildees acerca da ideia do bem fazem parte da enunciaccedilatildeo e da divisatildeo

que o discurso tiacutepico da filosofia realiza (θακέλ ηε θαὶ δηνξίδνκελ ηῷ ιόγῳ Rep

507b3) De outro acircngulo pode-se verificar assim no que consiste o caraacuteter racionalista

de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica e as suas bases teoacutericas Dados os esclarecimentos sobre

seu objeto especiacutefico ao mesmo tempo se observa a formulaccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo

entre pensamento e sensaccedilotildees a qual recebe uma diferenciaccedilatildeo no registro ontoloacutegico

Com a uacuteltima explicaccedilatildeo sobre a essecircncia antes definida como ldquoideia uacutenicardquo temndashse a

explicaccedilatildeo da origem dos objetos especiacuteficos do pensamento e do que os constituem

enquanto objetos da cogniccedilatildeo (507b) No entanto natildeo parece haver uma completa

compreensatildeo das dificuldades que envolvem o estudo do bem sem antes verificar a

atuaccedilatildeo do intelecto nessa empresa de compreender o que dele se pode conhecer A

busca racionalista do bem parece demandar ainda um maior entendimento sobre sua

inteligibilidade que consequentemente estaacute envolvida na cogniccedilatildeo Ao mesmo tempo

o procedimento adequado para um conhecimento dessa natureza seraacute um ponto

decisivo uma vez que deve se mostrar afim como se analisaraacute com o gecircnero

intelectualista do bem Nesse sentido parece importante antes averiguar o que a

analogia da linha apresenta acerca do gecircnero e dos procedimentos inteligiacuteveis a fim de

obter uma maior compreensatildeo sobre as ideias sobre a suposta hierarquia que haacute entre

elas e sobre as distinccedilotildees e procedimentos da atividade do pensamento nessa aquisiccedilatildeo

23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios

O que se pode considerar ser o ldquopensamentordquo a partir da analogia da linha no livro

VI d‟A Repuacuteblica diz respeito ao conjunto de operaccedilotildees que constituem a percepccedilatildeo

sensiacutevel e a apreensatildeo das ideias a uacuteltima dita conhecimento (ηὸ γλσζηόλ Rep

510a11) Nela se pode depreender um detalhamento da atividade perceptiva e cognitiva

em suas diferentes etapas concomitantemente agrave especificaccedilatildeo dos seus respectivos

52

fenocircmenos de apreensatildeo Desse modo o conhecimento ou de modo mais fiel ao texto

o que eacute da ordem do conhecimento e por isso o que eacute de fato cognosciacutevel ganha

explicaccedilatildeo mais detalhada nas divisotildees que a analogia propotildee O tipo de apreensatildeo mais

importante para os propoacutesitos do filoacutesofo portanto a atividade noeacutetica eacute dada de

acordo com os seus diferentes modos de atuar ou seja segundo o que cada teacutecnica

emprega nos seus diferentes meacutetodos matemaacutetico e dialeacutetico (Rep 510b-c) Para

realccedilar o contraste desta seccedilatildeo que diz respeito agrave inteligecircncia a divisatildeo que pretende

analogamente propor a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel nos termos de gecircnero e lugar

supondo assim um plano sensiacutevel e um plano inteligiacutevel oferece a perspectiva de cada

domiacutenio que daacute base para a explicaccedilatildeo acerca da aquisiccedilatildeo de conhecimento

ldquo() - Pois bem disse eu Pensa que como diziacuteamos eles satildeo dois

e reinam um sobre o gecircnero e mundo inteligiacuteveis e o outro em

compensaccedilatildeo sobre o mundo visiacutevel (βαζηιεύεηλ ηὸ κὲλ λνεηνῦ

γέλνπο ηε θαὶ ηόπνπ ηὸ δ αὖ ὁξαηνῦ) Natildeo falo que reina sobre o ceacuteu

para que natildeo penses que estou fazendo sutil jogo de palavras Mas tu

estaacutes entendendo bem esses dois gecircneros o visiacutevel e o inteligiacutevel

- Eu aceitaria disse e muito bemrdquo (Rep 509c3-d6)

Vale observar as distinccedilotildees tal como a analogia propotildee γέλνs e ηόπνs A

distinccedilatildeo entre gecircnero e lugar marca o plano em que seraacute discutida a questatildeo do

verdadeiro conhecimento e consequentemente do seu modo correto de apreensatildeo A

proposta ao que tudo indica eacute determinar o domiacutenio em que se situa o saber filosoacutefico

o que dito de outro modo consiste em determinar a sua posiccedilatildeo e a sua especificidade

em relaccedilatildeo aos outros conhecimentos Ao mesmo tempo marcar as distinccedilotildees do que se

refere ao conhecimento filosoacutefico ao inteligiacutevel portanto em comparaccedilatildeo ao que

concerne agrave opiniatildeo A noccedilatildeo de lugar ou mundo como prefere a maioria das traduccedilotildees

oferece a posiccedilatildeo para as coisas dos diferentes gecircneros e permite conforme sugere o

texto estabelecer as diferenccedilas e as semelhanccedilas entre eles A dupla forma que a linha

mostra (δηηηὰ εἴδε ὁξαηόλ λνεηόλ Rep 509d4) parece ser uma estrateacutegia para poder

mais tarde argumentar novamente a favor da ideia do bem como paradigma Em outros

termos ao pontuar uma posiccedilatildeo para traccedilar esta distinccedilatildeo o texto categoriza os objetos

e ao mesmo tempo posiciona-os em relaccedilatildeo a uma referecircncia Tal divisatildeo permite

abordar desse modo algumas das noccedilotildees como semelhanccedila e modelo (ηὸ ὁκνησζὲλ

53

πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε Rep 510a11) imitaccedilatildeo (κηκήζηο Rep 510b4) e a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (κεηέρεηλ Rep 511e5)

Do mesmo modo a distinccedilatildeo de gecircnero colabora para a introduccedilatildeo de tais

noccedilotildees agora no que concerne agrave questatildeo do estatuto ontoloacutegico dos objetos de cada

domiacutenio anteriormente sugerido como uma hierarquia Classificar os objetos em

determinados gecircneros torna possiacutevel qualificaacute-los em relaccedilatildeo a um modelo em um

primeiro momento sugerido pela verdade que parece constituir um dos atributos das

ideias inteligiacuteveis As coisas verdadeiras ou as coisas que apresentam a verdade dada

pela ideia do bem mostram as qualificaccedilotildees do inteligiacutevel e satildeo por isso importantes

para compreender o grau de cognoscibilidade que se pode ter em cada domiacutenio quando

postas em contraste agrave carecircncia do sensiacutevel Segundo o contexto comparativo da analogia

da linha dividida ldquoquanto mais os objetos participarem da verdade tanto mais clareza

teratildeordquo (Rep 511e3-4) o que sugere que uma maior cogniccedilatildeo acerca dos objetos

investigados depende de sua participaccedilatildeo no inteligiacutevel e que a clareza pode ser um

criteacuterio para distinguir um objeto inteligiacutevel de um objeto sensiacutevel Esta eacute uma relaccedilatildeo

uacutetil para verificar a questatildeo da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo pois mostra em

que medida os atributos inteligiacuteveis consistem em princiacutepios condutores da

racionalidade

A divisatildeo propotildee desta forma as relaccedilotildees e os criteacuterios que Platatildeo julga

importantes para mostrar a natureza do conhecimento e do conhecer ao modo filosoacutefico

Ela situa e qualifica os objetos postos em questatildeo mostrando a relaccedilatildeo entre os

domiacutenios e o trabalho do pensamento nesta ligaccedilatildeo Note-se que a atividade intelectual

capaz de apreender as ideias e a ideia do bem satildeo as que Platatildeo parece ter em vista para

diferenciar o pensamento caracteriacutestico daquele que filosofa Desse modo a analogia da

linha para a defesa do governo do filoacutesofo se mostra estrateacutegica ao apresentar as

operaccedilotildees envolvidas na apreensatildeo dos objetos inteligiacuteveis e portanto no conhecimento

ao modo filosoacutefico de modo a elucidar o processo intelectual e o meacutetodo especiacutefico que

culmina nesta apreensatildeo Igualmente importantes embora natildeo enfatizado na analogia

satildeo as compreensotildees acerca da percepccedilatildeo e do juiacutezo dado que consiste no modo de

pensar da maioria que deve ser governada pelo filoacutesofo

Antes de analisarmos os domiacutenios e o trabalho de cogniccedilatildeo envolvido em cada

um deve-se ainda observar a proposta de distinccedilatildeo entre eles por via da noccedilatildeo de

desigualdade e pela noccedilatildeo de proporccedilatildeo entre as seccedilotildees Soacutecrates pede que Glaacuteucon

imagine uma linha com partes desiguais (ἄληζα) e segundo a mesma proporccedilatildeo (ἀλὰ ηὸλ

54

αὐηὸλ ιόγνλ) a qual deve descrever ao que parece a relaccedilatildeo entre os domiacutenios a

relaccedilatildeo entre as classes de objetos e por consequecircncia uma diferenciaccedilatildeo de grau

cognitivo (Rep 509d8-510a) O texto natildeo parece chamar atenccedilatildeo para tais noccedilotildees na

representaccedilatildeo sensiacutevel do desenho de uma linha propriamente mas ao contraacuterio propotildee

a partir dessas duas concepccedilotildees os termos para uma comparaccedilatildeo entre objetos de tipos

distintos23

Igualdade a noccedilatildeo que estaacute sendo sugerida pela analogia24

e proporccedilatildeo

parecem constituir a base da estrutura das classificaccedilotildees que Soacutecrates propotildee

analogamente dita uma linha dividida por oferecer os criteacuterios para a disposiccedilatildeo entre

os objetos e a verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre eles Ao mesmo tempo em que se tem desse

modo um criteacuterio para situar os elementos se sensiacuteveis ou se inteligiacuteveis tem-se em

que medida se relacionam sendo assim niacutetidos e obscuros um em relaccedilatildeo ao outro25

23 Rep 509d10 ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια Natildeo se pretende realizar uma longa discussatildeo sobre

o diagrama da linha divida As questotildees acerca do desenho da linha e as interpretaccedilotildees que podem surgir

a partir dele satildeo para esta anaacutelise relevantes nos termos que se propotildee aqui ou seja o sentido das

distinccedilotildees que ela sugere Por consistir em uma representaccedilatildeo sensiacutevel a escolha da parte do desenho que

receberia um tamanho maior a partir desta desigualdade parece deste modo mostrar que algo como um

diagrama deve ser apenas um ponto de partida para buscar o sentido do que estaacute sendo representado a

noccedilatildeo de desigualdade como vemos agora Denyer pontua de modo bastante objetivo este antigo debate

ao comentar ldquoPor que temos de fazer uma escolha tatildeo arbitraacuteria Quando desenhamos um diagrama em

obediecircncia agraves discussotildees de Soacutecrates estamos produzindo uma representaccedilatildeo Tal representaccedilatildeo conteacutem

inevitavelmente caracteriacutesticas irrelevantes caracteriacutesticas que em nada correspondem agrave realidade

representada caracteriacutesticas que natildeo podem ser explicadas pela referecircncia pelo propoacutesito da

representaccedilatildeo A proacutepria resposta para tais caracteriacutesticas eacute claramente ignoraacute-las abstrair a partir da

desordem e pensar aleacutem da representaccedilatildeo em vista da realidade que ela representardquo Denyer N Sun and

Line in Plato‟s Republic 2007 Cambridge p 293 Cabe natildeo perder de vista as distinccedilotildees feitas na

analogia do sol que continuam presentes na linha A principal delas eacute a distinccedilatildeo entre juiacutezo e

conhecimento e entre objeto e pensamento Ao que parece a novidade da linha nos termos de uma

analogia estaacute em mostrar as relaccedilotildees entre a ideia do bem e ideias e do mesmo modo entre ideias e o

pensamento em dois planos de anaacutelise ontoloacutegico e cognitivo deixando evidentes as distinccedilotildees entre as

operaccedilotildees do pensamento O proacuteprio texto apresenta ao fim do Livro VII um parecer sobre o uso da

analogia A passagem 534a6-8 mostra que esta natildeo consiste em uma discussatildeo que deve estar em

primeiro plano sendo mais importante as relaccedilotildees que se estabelecem entre os elementos citadosrdquo ()

Quanto agrave correspondecircncia de que dependem essas coisas e quanto agrave divisatildeo de cada uma das duas

categorias a do opinaacutevel e a do inteligiacutevel deixemos isso de lado Glaacuteucon para que natildeo caiamos em

discussotildees mais complexas que as anterioresrdquo

24 Deve-se notar a discussatildeo acerca do estabelecimento do termo se ἄληζα estabelecido por Plutarco ou

α λ‟ η ζα estabelecido por Stallbaum As traduccedilotildees no geral seguem a opccedilatildeo de Plutarco sendo quase

consenso que o uso tanto de um quanto do outro propotildeem a noccedilatildeo de igualdade como nota Chambry op

cit p 140 Como Chambry Adam op cit p 63 nota 27 concorda que a interpretaccedilatildeo comum ao aceitar

ἄληζα eacute que a desigualdade se refere agrave diferenccedila de clareza e de verdade dos gecircneros sensiacutevel e

inteligiacutevel e entre opinaacutevel e cognosciacutevel De qualquer modo interessa averiguar o sentido desta particcedilatildeo

que apresenta partes iguais ou desiguais segundo os gecircneros que estatildeo sendo formulados

25 Pierre Aubenque compreende a funccedilatildeo do ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ na linha muito proacutexima ao que se

pretende defender nesta anaacutelise Para ele o propoacutesito da analogia da linha divida eacute pensar uma igualdade

de relaccedilotildees entre termos desiguais O interesse da operaccedilatildeo eacute desse modo construir uma proporccedilatildeo uma

analogia cuja estrutura eacute dada no seu modo de construccedilatildeo Uma analogia que trouxesse termos iguais (do

tipo 1=1) perderia a funccedilatildeo pois o objetivo maior eacute estabelecer uma mediaccedilatildeo entre termos extremos

Aubenque P ldquoDe L‟ Egaliteacutes des Segments Intermeacutediaires dans La Ligne de La Reacutepubliquerdquo in Sophie

Maietores ndash Chercheurs de Sagesse Institut d‟Etudes Augustiniennes Paris 1992 p 39 40

55

Desse modo na primeira parte a seccedilatildeo mais inferior da linha se refere agraves

sombras e aos reflexos de objetos originais que por serem da ordem do sensiacutevel natildeo satildeo

senatildeo imagens Estas recebem um estatuto mais baixo por constituiacuterem a imagem de um

objeto tambeacutem sensiacutevel representado na segunda subseccedilatildeo da linha Nesta primeira

seccedilatildeo apresenta-se a relaccedilatildeo objeto ndash reflexo ou ainda modelo e suas derivaccedilotildees

Assim exposto o domiacutenio das coisas visiacuteveis ou da sensibilidade compreende as

imagens como reflexo dos objetos originais e os objetos do mundo fiacutesico ndash ldquoos seres

vivos que nos rodeiam todas as plantas e todos os gecircneros de artefatosrdquo (ηά ηε πεξὶ

ἡκᾶο δῷο θαὶ πᾶλ ηὸ θπηεπηὸλ θαὶ ηὸ ζθεπαζηὸλ ὅινλ γέλνο Rep 510a14) os quais satildeo

considerados os modelos A linha classifica e qualifica as seccedilotildees e as subseccedilotildees e a

ligaccedilatildeo que entre eles eacute estabelecida de acordo com a noccedilatildeo de semelhanccedila (ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) que observe-se evoca a noccedilatildeo de igualdade Do mesmo

modo a verdade serve para a divisatildeo e distinccedilatildeo das partes assim como a noccedilatildeo de

cogniccedilatildeo Objetos originais e imagens assim como os seres matemaacuteticos e a ideia

suprema satildeo relacionados segundo tais noccedilotildees e teratildeo o seu caraacuteter exposto de acordo

com elas Entretanto todas estas noccedilotildees tem base em uma mesma ideia a ideia do bem

que deveraacute norteaacute-las e que seraacute o paracircmetro para qualificar cada um dos objetos

Deve-se no entanto averiguar o que o texto sugere ao descrever as etapas que

antecedem o ponto alto da linha que culmina na aquisiccedilatildeo das formas Elas informam

os outros niacuteveis de cogniccedilatildeo que se distinguem do conhecimento filosoacutefico os quais por

sua vez representam o grau de cogniccedilatildeo dos outros integrantes da cidade Do mesmo

modo que parece importante mostrar a divisatildeo e as peculiaridades de cada classe da

poacutelis para sugerir o funcionamento conjunto e harmocircnico da cidade interessa mostrar

analogamente este conjunto de capacidades da alma por meio das quais se supotildee

apresentar as atividades intelectuais mais importantes no que se refere ao conhecimento

Ao formular o lugar e o gecircnero da opiniatildeo e do conhecimento o texto propotildee uma

concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo fundada neste trabalho da alma dito racional e portanto na

cogniccedilatildeo das coisas verdadeiras Ao mesmo tempo propotildee o domiacutenio do pensamento

revelando ser semelhanccedila e verdade as qualidades que devem orientar o estudo da ideia

do bem

56

24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel

Para analisar a questatildeo do pensamento segundo a analogia da Linha Dividida

antes eacute preciso averiguar como as suas seccedilotildees descrevem de algum modo diferentes

maneiras do pensamento atuar isto eacute em que medida se pode ver a percepccedilatildeo e a

atividade intelectual nas distintas potencialidades e meacutetodos Ao especificar os

domiacutenios a fim de elucidar as caracteriacutesticas do verdadeiro conhecimento entra em

cena o modo de apreensatildeo e incontornavelmente os aspectos do pensamento

ldquondash Pois bem Toma uma linha dividida em duas seccedilotildees desiguais

(ἄληζα) e de novo corta cada seccedilatildeo segundo a mesma proporccedilatildeo

(ηέκλε ἑθάηεξνλ ηὸ ηκκα ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ) a do gecircnero visiacutevel e

a do inteligiacutevel De acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de

nitidez (ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ) que tenham entre si no mundo visiacutevel

teraacutes uma das seccedilotildees as imagens (εἰθόλεο) Chamo as imagens em

primeiro lugar as sombras depois as apariccedilotildees refletidas nas aacuteguas

e nas superfiacutecies opacas lisas e brilhantes e tudo o mais que seja

assim Entendes (θαηαλνεῖο)

- Mas sim estou entendendo (θαηαλνῶ)

- Pois bem Supotildee como outra seccedilatildeo a que se assemelha a essa os

seres vivos que nos rodeiam todas as plantas e todo o gecircnero de

artefatos

- Suponho disse

- Seraacute que aceitarias afirmar disse eu que o gecircnero visiacutevel estaacute

dividido em verdade e natildeo verdade e que como o opinaacutevel estaacute para o

cognosciacutevel assim tambeacutem a imagem estaacute para o modelo (δηῃξζζαη

ἀιεζείᾳ ηε θαὶ κή ὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) (Rep 509d8-510a)

Vale analisar a partir dos criteacuterios estabelecidos a distinccedilatildeo entre os objetos Na

primeira seccedilatildeo reflexos (θαληάζκαηα) e sombras (ηὰο ζθηάο) satildeo na sua condiccedilatildeo de

imagens (ηὰο εἰθόλαο) semelhantes ao modelo ou seja satildeo derivados de um objeto

naquilo que diz respeito agrave sua aparecircncia (ἔνηθελ Rep 510b3) Esses ganham a forma do

objeto ao refleti-lo tornando-os aparentes dando a ele portanto uma forma visiacutevel em

superfiacutecies igualmente visiacuteveis - aparecem na aacutegua e nas superfiacutecies lisas e brilhantes

como diz o texto (Rep 509e-510a2) Ao darem a este objeto uma aparecircncia as imagens

se constituem enquanto tal e tecircm no objeto fiacutesico aparentado o seu modelo A imagem

obteacutem do seu modelo a aparecircncia e estabelece com ele desse modo a relaccedilatildeo de

semelhanccedila - natildeo semelhanccedila As aparecircncias que trazem as imagens eacute conforme o

texto a imitaccedilatildeo do modelo do qual derivam (Rep 510b3)

57

A explicaccedilatildeo sobre o inteligiacutevel apresenta por comparaccedilatildeo este como mais um

dado importante sobre o sensiacutevel a aparecircncia como imitaccedilatildeo (κ κεζηο)26

do objeto

original Sua importacircncia se daacute na medida em que reafirma o caraacuteter derivado do reflexo

e acrescenta a ele a explicaccedilatildeo sobre o que se pode fazer com uma imagem como

mostra o exemplo do procedimento matemaacutetico Dito de outro modo ao compreender a

aparecircncia como a imitaccedilatildeo de um modelo ressalta-se a sua carecircncia de conteuacutedo

cognitivo uma vez que natildeo exprime de modo suficiente o original ao qual se

assemelha27

Em contraste com o inteligiacutevel tal caracteriacutestica o exclui do processo do

conhecimento No domiacutenio sensiacutevel proacuteprio da opiniatildeo a alma apreende como imagem

isto que eacute imitaccedilatildeo dos objetos originais constituindo assim a εηθαζία a conjectura

atividade que parece ser tiacutepica no plano da δόμα Natildeo parece haver neste domiacutenio outro

tipo de atuaccedilatildeo como nos sugere o verbo ἀλαγθάδσ e por consequecircncia outro modo

de fazer especulaccedilatildeo no plano do sensiacutevel Ao ter dividido em gecircnero e lugar as

atividades que a alma realiza aparecem submetidas agraves condiccedilotildees do domiacutenio em que se

descreve sendo a conjectura portanto a atividade possiacutevel no domiacutenio sensiacutevel Ao se

fiar nas imagens para construir hipoacuteteses atribui-se agrave elas uma confianccedila da qual natildeo

satildeo dignas visto serem apenas uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo destituiacuteda de qualquer

conteuacutedo o que seraacute discutido no final do argumento da linha (Rep 511d7-e) Desse

26 Toda a recusa da poesia na educaccedilatildeo do guardiatildeo se explica por meio de um conceito caro a Platatildeo n‟A

Repuacuteblica o conceito de miacutemesis imitaccedilatildeo No Livro III ele se refere agrave relaccedilatildeo entre alguma coisa ou

uma pessoa com a sua representaccedilatildeo na poesia e na pintura Dado que a cidade platocircnica se funda na

suposiccedilatildeo de que cada cidadatildeo executa apenas uma tarefa uacutenica para a qual eacute naturalmente haacutebil

escrever e desempenhar o papel de uma personagem torna-se perversotildees do seu papel social pois atribui agrave

pessoa mais que uma uacutenica natureza (Rep 397d-398a) O mimetismo conduz os jovens aos maus haacutebitos

agrave linguagem grosseira respostas inapropriadas e agraves crises (Rep 395c-d) Quando muito os jovens

deveratildeo dramatizar a vida e os feitos de modelos de virtudes (Rep 396b-e) mas Platatildeo termina a criacutetica

no Liv X 595a-602c Haacute por traacutes dessa criacutetica uma tese que teraacute suas bases ontoloacutegicas explicadas no

livro VI e X que em linhas gerais consiste na tese de que se imita aquilo que se contempla No liv X a

imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo que se faz na poesia eacute uma imitaccedilatildeo da aparecircncia A poesia imita as accedilotildees

humanas (393b-c 395c-396d 605ac) mas na cidade ideal haacute de se imitar os melhores homens (396c-

397b 604e 607a)

27 Natildeo se pretende fazer uma longa anaacutelise sobre a imitaccedilatildeo de modo a recuperar dos outros livros o que

eacute dito sobre este conceito Interessa verificar a partir do seu caraacuteter sensiacutevel como tal caracteriacutestica eacute

oposta ao inteligiacutevel e o uso que a alma pode fazer dela na ascese Cabe entretanto conferir como Schuhl

compreende a noccedilatildeo de imitaccedilatildeo que Platatildeo considera em relaccedilatildeo agrave arte que diga-se de passagem parece

bastante afim nesse contexto Ele entende haver dois sentidos para a imitaccedilatildeo 1ordm a imitaccedilatildeo como coacutepia

(εηθαζηηθήλ) que na arte eacute dada como uma reproduccedilatildeo a qual se conforma agraves proporccedilotildees do modelo 2ordm

uma imitaccedilatildeo que constitui a arte da aparecircncia (θαληαζηηθήλ) Em ambas os recursos disponibilizados

como as proporccedilotildees que envolvem noccedilotildees matemaacuteticas satildeo utilizados para se adequarem ao sentido da

visatildeo e produzirem uma imagem que proporcione prazer esteacutetico Note-se que Platatildeo ataca uma

concepccedilatildeo de arte e de imitaccedilatildeo que atribui agraves sensaccedilotildees os criteacuterios para o juiacutezo a qual abandona a

verdade e o arrazoamento privilegiando assim as aparecircncias - ldquoA parte da Oacutetica chamada de cenografia

investiga como conveacutem desenhar as imagens dos edifiacutecios Como as coisas natildeo parecem tais quais elas

satildeo examina-se natildeo como representar as proporccedilotildees reais mas como as tornar tais quais elas

pareceratildeordquo Schuhl op cit p 30 58

58

modo o procedimento ao modo da opiniatildeo natildeo conduz ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico

dado que estagna nas imagens

Este eacute um ponto importante para o que concerne agrave cogniccedilatildeo Junto com a noccedilatildeo

de aparecircncia que surge da relaccedilatildeo modelo e suas derivaccedilotildees estatildeo as qualidades que vatildeo

classificar os elementos das seccedilotildees no que se refere agrave cogniccedilatildeo como as imagens e os

objetos fiacutesicos das primeiras partes Atributos como clareza verdade e cognoscibilidade

satildeo introduzidos a partir desta uacuteltima distinccedilatildeo de modo a qualificar os objetos A

intenccedilatildeo em usar a analogia da linha com vistas para o que seria o mais alto

conhecimento eacute sugerida na sequecircncia onde aparece de modo mais evidente nas partes

inteligiacuteveis a descriccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da alma Pode-se compreender da

analogia as atividades intelectuais que dizem respeito agrave cogniccedilatildeo ou seja agraves operaccedilotildees

que estabelecem a relaccedilatildeo com as ideias e podem assim apreendecirc-las Nas partes

inferiores da linha tem-se ao mesmo tempo as operaccedilotildees que antecipam a ascensatildeo ao

niacutevel inteligiacutevel e que por natildeo oferecerem o conhecimento em nenhum grau mas por

constituiacuterem de alguma forma uma operaccedilatildeo da mente podem ser consideradas preacute-

cognitivas A linha dividida nesse sentido mostra aquilo que se pode apreender do

sensiacutevel com a percepccedilatildeo e do inteligiacutevel com a cogniccedilatildeo em seus diferentes graus e

maneiras de proceder

Para isso deve-se comeccedilar por analisar ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ as

diferenccedilas e a relaccedilatildeo da linha nessa perspectiva entre o domiacutenio do opinaacutevel e do

cognosciacutevel Na seccedilatildeo que se refere ao sensiacutevel satildeo dados os elementos a partir dos

quais se fundam o juiacutezo a opiniatildeo Eacute importante fazer tais especificaccedilotildees acerca da

imagem para que se possa delimitar o plano no qual o juiacutezo estaacute envolvido e para em

seguida marcar definitivas distinccedilotildees do conhecimento e do seu meacutetodo especiacutefico em

relaccedilatildeo agrave opiniatildeo Cabe observar que a divisatildeo pressupotildee uma relaccedilatildeo entre as partes e

portanto entre os elementos que as compotildeem na qual os planos inferiores se mostram

reflexos do plano superior de acordo com o que propotildee a relaccedilatildeo modelo-imagem28

Tal observaccedilatildeo parece importante por oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da funccedilatildeo

da imagem na linha Ao se questionar acerca da inferioridade da aparecircncia da relaccedilatildeo

original-reflexo que o modelo-imagem propotildee a resposta mais imediata provavelmente

28 Note-se que a preposiccedilatildeo ldquoπξὸοrdquo parece indicar que haacute entre as partes a mesma relaccedilatildeo de

espelhamento que haacute entre modelo e a imagem Do mesmo modo os adveacuterbios ὡο e νὕησ sugerem que se

trata de uma comparaccedilatildeo na qual uma seccedilatildeo um domiacutenio tem seu aspecto analisado em relaccedilatildeo a outro -

laquoζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιειαrdquo (Rep 509d10) laquoὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζεrdquo (Rep 510a10-11)

59

seria a que sua inferioridade se deve ao fato de ser ela a coacutepia de um original Esse pode

ser um argumento vaacutelido se se tem em vista a superioridade ontoloacutegica do objeto

referido Dito de outro modo o objeto do qual se originam as imagens eacute autecircntico

como os animais e os artefatos do mundo fiacutesico na segunda parte da linha enquanto as

sombras e os reflexos derivados dele isto eacute as imagens natildeo satildeo pelas seguintes razotildees

1ordm natildeo satildeo o proacuteprio objeto 2ordm natildeo dizem o objeto original fidedignamente 3ordm como

satildeo imagens variam ao se referir ao objeto original como se veraacute na alegoria da

caverna 4ordm como satildeo derivadas do objeto dependem dele para existir29

Tais

caracteriacutesticas acabam por definir a aparecircncia e expor suas deficiecircncias sendo a

imagem desse modo um elemento que representa toda a debilidade dos objetos da

esfera sensiacutevel para os fins gnosioloacutegicos que Platatildeo pretende formular

Tal compreensatildeo eacute possiacutevel vale reparar somente se se tem em vista a clareza

como abalizadora da relaccedilatildeo entre o domiacutenio da opiniatildeo e o domiacutenio do conhecimento

(Rep 510a9) Deve-se perguntar a razatildeo de Platatildeo propor uma distinccedilatildeo entre domiacutenios

e objetos e estas relaccedilotildees de superioridade - inferioridade que a linha sugere a partir

desta relaccedilatildeo modelo-coacutepia Tais diferenciaccedilotildees sugerem que a analogia da linha

dividida pretende antes traccedilar e definir planos graus e objetos especiacuteficos em vista da

ἀιήζεηα A divisatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel acompanhada das subdivisotildees recebe

especificaccedilotildees no que diz respeito agraves variaccedilotildees dos objetos e potencialidades de

cogniccedilatildeo agora avaliados segundo o criteacuterio de clareza que exprime a realidade do

objeto em questatildeo A escolha da clareza como criteacuterio provavelmente se deve a

autenticidade que ela confere ao objeto dado que se trata de uma qualidade acessiacutevel

pela cogniccedilatildeo mas tambeacutem por constituir as noccedilotildees importantes para a construccedilatildeo de

valores importantes para a cidade do filoacutesofo Dado que a verdade constitui junto com o

ser e a essecircncia a benignidade do bem uma vez que satildeo atribuiacutedos por ele (Rep 508e-

509a6) este constitui um criteacuterio bastante razoaacutevel para mensurar a proacutepria cogniccedilatildeo e o

que eacute tido como um valor Natildeo parece viaacutevel pensar uma cidade justa e boa sem antes

especificar a noccedilatildeo de justiccedila e de bem e ao mesmo tempo sem discerni-las em seu

modo proacuteprio real Dito de outro modo o que eacute bom apresenta ser essecircncia e verdade

qualidades reconheciacuteveis apenas pelo intelecto

29 Stocks enumera do mesmo modo as diferenccedilas da imagem em relaccedilatildeo ao seu objeto Para ele esta eacute

uma indicaccedilatildeo clara da condiccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos objetos inteligiacuteveis sendo a

analogia da linha um bom exemplo da relaccedilatildeo unilateral de dependecircncia e a equaccedilatildeo da linha uma

explicaccedilatildeo desta relaccedilatildeo entre os dois domiacutenios ndash Stocks J L ldquoThe Divided Line of Rep VIrdquo in The

Classical Quartely vol 5 no 2 1911 p 75

60

Vale considerar as nuanccedilas de sentido de verdade Note-se que o contexto que

coloca verdade - natildeo verdade apresenta as condiccedilotildees em que ela aparece no domiacutenio

visiacutevel Cabe reparar que a abordagem da verdade no registro da sensibilidade tal como

aparece agora eacute posta relativamente ou seja como termo de avaliaccedilatildeo na relaccedilatildeo

modelo-reflexo diferentemente do contexto do estudo da ideia do bem no qual era

apresentada como atributo inteligiacutevel Todavia ela serve para mensurar algo que seraacute

dito verdadeiro ou natildeo a partir da correspondecircncia com um modelo Como se viu em

506c mesmo que constitua um criteacuterio de avaliaccedilatildeo ela eacute dada nos termos da

eventualidade sendo o mesmo nessas circunstacircncias que ldquocorresponde - natildeo

corresponderdquo Natildeo parece haver no domiacutenio sensiacutevel outra maneira de conceber a

verdade dado que natildeo se tem em vista seu fundamento inteligiacutevel A relaccedilatildeo que estaacute

em jogo diz respeito a uma identificaccedilatildeo do objeto com o modelo natildeo se tratando

portanto da realidade do objeto ou do modelo

Desse modo a verdade natildeo acompanha neste plano uma concepccedilatildeo da cogniccedilatildeo

mas o nome que se daacute agrave percepccedilatildeo entre dois elementos que se mostram equivalentes

no caso imagem - modelo sombra - objeto original em uma relaccedilatildeo de

correspondecircncia Parece importante definir o plano em que se enuncia a verdade para

justamente estabelecer a plausibilidade de uma relaccedilatildeo No campo do sensiacutevel natildeo haacute a

garantia de um termo que fundamente as relaccedilotildees como a de semelhanccedila por exemplo

da mesma forma que se encontra no inteligiacutevel estando a verdade desse modo apenas

no plano do ὄλνκα (Rep 505c4) 30

Desse modo uma das noccedilotildees que a linha propotildee diz respeito a esta realidade do

objeto a qual serve de referecircncia e deve ser considerada o verdadeiro objeto a ser

conhecido Um dos esforccedilos de Platatildeo nesta analogia parece consistir em apresentar

uma noccedilatildeo de realidade e a sua relaccedilatildeo com a verdade Realidade e verdade se mostram

em um plano diferente do comum diferente das opiniotildees vulgares Faz parte da tarefa

do filoacutesofo discernir a verdade das vaacuterias aparecircncias de verdade e verificar a natureza

dos objetos e o modo adequado de lidar com eles Esse discernimento comeccedila com a

compreensatildeo da deficiecircncia do domiacutenio da sensibilidade e do juiacutezo em relaccedilatildeo a um

plano mais autecircntico e por isso superior o plano da realidade no domiacutenio inteligiacutevel

Por enquanto nas duas primeiras partes da linha o texto oferece os dados e os tipos de

relaccedilotildees com as quais o leitor deve analisar as proacuteximas etapas

30 Parece vaacutelida tal interpretaccedilatildeo dado que em 505c esta perspectiva eacute posta como adversaacuteria da visatildeo

filosoacutefica que vai buscar a inteligecircncia do bem (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ θάλαη Rep 505b9)

61

Cabe notar que o questionamento acerca do objeto que deve servir de modelo eacute

sugerido tambeacutem pela relaccedilatildeo clareza - natildeo clareza falta de clareza Ao dividir os

objetos segundo o criteacuterio de clareza que apresentam acerca da realidade este parece ser

um dado que potildee diretamente em questatildeo a capacidade de apreensatildeo de alguma verdade

a partir de determinados objetos ao mesmo tempo em que se suspeita da possibilidade

desses oferecerem a realidade acerca de algo31

O domiacutenio sensiacutevel natildeo oferece verdade

acerca dos objetos os quais satildeo derivados de objetos fiacutesicos e portanto sensiacuteveis

sendo considerados assim deficientes A linha nesse sentido mostra com suas seccedilotildees

diferentes graus de apreensatildeo o que estaacute de algum modo relacionado com capacidade

de um objeto mostrar o seu modelo ou dito metaforicamente com a clareza dos

objetos32

A perspectiva que a analogia da linha propotildee a saber a condiccedilatildeo ontoloacutegica

dos objetos e o que eacute possiacutevel apreender deles e atraveacutes deles em termos gnosioloacutegicos

exige verificar a cogniccedilatildeo em seus niacuteveis de apreensatildeo Ao utilizar a noccedilatildeo de clareza

como criteacuterio tem-se sugerido uma realidade dada como modelo a qual natildeo aparece

com carga ontoloacutegica nas primeiras duas seccedilotildees da linha Tal proposiccedilatildeo surge

analogamente da relaccedilatildeo onde os objetos fiacutesicos originais satildeo os objetos reais e nesse

contexto portanto verdadeiros As imagens por outro lado como derivaccedilotildees como

reflexos apenas natildeo satildeo verdadeiras no sentido prosaico do termo Pretende-se mostrar

agora que a sombra de um boneco natildeo eacute o proacuteprio boneco ou seja que o reflexo natildeo eacute

igual ao modelo O que estaacute em questatildeo eacute a diferenccedila entre a coisa e a aparecircncia desta

coisa aparecircncia que ao imitar33

algo ao referi-lo natildeo deve ser confundida com ele

Deve-se ainda observar que o primeiro problema posto pela analogia se refere

justamente ao tipo de diferenciaccedilatildeo entre os objetos Dito de outro modo em que campo

operam as distinccedilotildees as quais se realizam por meio das noccedilotildees de igualdade

semelhanccedila e clareza Na perspectiva ontoloacutegica ou no esboccedilo de uma perspectiva

ontoloacutegica como parece ser o caso natildeo estaacute em questatildeo se um objeto tem mais ser que

outro em termos existecircncia A sombra natildeo existe menos que os bonecos que ela

31 O trecho ldquoDe acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de nitidez (σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφείᾳ) que

tenham entre si no mundo visiacutevel teraacutes uma das seccedilotildees as imagens -(θαί ζνη ἔζηαη ζαθελείᾳ θαὶ

ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια ἐλ κὲλ ηῷ ὁξσκέλῳ ηὸ κὲλ ἕηεξνλ ηκκα εἰθόλεο)rdquo (Rep 509d 10-509e1) parece

deixar evidente a comparaccedilatildeo que se faz na linha dividida os objetos uns em relaccedilatildeo aos outros conforme

se mostram claros ou obscuros ou seja segundo o que podem mostrar acerca do objeto de referecircncia A

clareza eacute vista aqui como a capacidade de manifestar algo a que se refere 32 Cf Stocks op cit p 80

33 Mais adiante em 510b4 o texto notaraacute a aparecircncia como uma imitaccedilatildeo do objeto original

62

reflete34

entretanto por natildeo ser ela mesma o objeto que ela reflete a sombra o oferece

apenas em algum grau Eacute neste sentido que a graduaccedilatildeo de clareza parece atuar posto

que a atenccedilatildeo da linha se volta especialmente como visto para os propoacutesitos acerca da

cogniccedilatildeo A clareza e a verdade satildeo dadas no niacutevel que manifestam o seu modelo e cada

domiacutenio apresenta um niacutevel caracteriacutestico de apreensatildeo35

Pode parecer impreciso falar de uma ldquograduaccedilatildeordquo ao analisar as duas primeiras

seccedilotildees da linha uma vez que as noccedilotildees que servem de criteacuterio satildeo dadas nos termos de

verdade ndash natildeo-verdade claro-obscuro ou seja X ou natildeo-X Tal graduaccedilatildeo vale

adiantar fica mais evidente a seguir com a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e

as especificaccedilotildees acerca do princiacutepio natildeo hipoteacutetico (Rep 510b6) No domiacutenio da

opiniatildeo as caracteriacutesticas atribuiacutedas agraves aparecircncias que as imagens supotildeem se

apresentam como um preacircmbulo para as duas seccedilotildees seguintes que concernem ao

inteligiacutevel e trazem assim as debilidades do sensiacutevel em comparaccedilatildeo com a realidade

da qual ele carece Eacute preciso contrastar as formas inteligiacuteveis os verdadeiros seres com

as suas ocorrecircncias ou seja com as aparecircncias as quais constituem o domiacutenio sensiacutevel

dito natildeo verdadeiro Este ldquonatildeo verdadeirordquo que consiste no natildeo-real no sentido de natildeo

ser idecircntico ao modelo mostra primeiro as mudanccedilas e a multiplicidade caracteriacutesticas

do sensiacutevel para depois expor a estabilidade e a autenticidade do real Enquanto

existentes as imagens possuem alguma realidade no entanto natildeo no mesmo grau que o

seu modelo No mundo sensiacutevel animais e plantas satildeo reais todavia muito mais que a

sombra que as refletem A diferenciaccedilatildeo eacute dada na comparaccedilatildeo de uma seccedilatildeo com a

outra e desse modo natildeo-verdade e sem clareza compreendem a inferioridade das

imagens36

34 Chen explica que a relaccedilatildeo entre os componentes dos niacuteveis mais baixos eacute dada nos termos de

realidade o que equivale a diferentes graus de verdade (aleacutetheia) em relaccedilatildeo ao ser Natildeo haacute ainda nos

niacuteveis mais baixos a verdade no sentido epistemoloacutegico As subdivisotildees da linha mostram a assimetria

das proporccedilotildees de participaccedilatildeo dos objetos os quais satildeo ditos mais ou menos verdadeiros equivalente a

dizer ter mais ou menos clareza Chen op cit p 105-106

35 Vlastos compreende que se pode reconhecer uma variedade de predicados intermediaacuterios entre real e

natildeo-real e portanto uma divisatildeo entre ser e natildeo-ser verdadeiro e falso natildeo eacute a interpretaccedilatildeo adequada do

ldquomais realrdquo ldquomenos-realrdquo Deve-se considerar que no sentido de ldquomais realrdquo cognato a mais verdadeiro e

metaforicamente dito mais claro estatildeo compreendidas as seguintes noccedilotildees 1ordm) melhor revelaccedilatildeo do que

eacute a coisa 2ordm) o sentido de modelo eacute ldquox-mesmordquo isto eacute a Forma Vlastos G ldquoDegrees of Realityrdquo in

Platonic Studies Princeton University Press 1981 p 62

36 Vlastos entende que as caracteriacutesticas do sensiacutevel satildeo como F (Forma) e natildeo-F F no sentido que

possui o ser em um grau que garante ao menos a sua existecircncia e natildeo-F no sentido que ldquosua natureza F foi

adulterada por caracteriacutesticas contraacuterias o que entatildeo poderia nos dar apenas uma ideia confusa e incerta

do que eacute F Algo que poderia ser sujeito de constantes flutuaccedilotildees como encontramos ocorrecircncias de F que

acabaram por serem diferentes em um ou mais aspectos a partir dos quais baseamos nossa concepccedilatildeo

preacutevia de Frdquo Vlastos idem p 63

63

Vale natildeo perder de vista a intenccedilatildeo maior do argumento o conhecimento da

ideia do Bem O objetivo eacute desfazer o mal-entendido de atribuir alguma legitimidade ao

que aparenta ser certo e verdadeiro anaacutelogo agraves sombras e aos reflexos pelo modo

vulgar de apreendecirc-los e de dar algum assentimento acerca deles Nesse sentido a

delimitaccedilatildeo do objeto especiacutefico do conhecimento mostra tal como se vecirc na descriccedilatildeo

do plano sensiacutevel que diante de objetos que satildeo apenas reflexos aparecircncias de

realidades a atividade da alma natildeo consiste mais do que em um juiacutezo ou em uma

convicccedilatildeo Dito de outro modo natildeo eacute a experiecircncia empiacuterica que daraacute a verdade acerca

de algo nem se enunciaraacute alguma verdade conjecturando o que se experiencia de modo

a emitir um juiacutezo como resultado pois no plano do sensiacutevel os objetos natildeo podem

revelar a realidade em toda a sua superioridade

III Atividade Inteligente

Estabelecidos os termos proacuteprios da atividade filosoacutefica tais como seus objetos

domiacutenio de atuaccedilatildeo e objetivos o que vem a seguir versaraacute sobre o conhecimento de

modo a elucidar a operacionalidade que constitui uma aquisiccedilatildeo da ideia Ter-se-aacute

dessa maneira uma explanaccedilatildeo do procedimento inteligente segundo um meacutetodo A

apreensatildeo do inteligiacutevel anteriormente referida como ldquoter inteligecircnciardquo ldquofixar-serdquo no

inteligiacutevel mostra-se agora na sua realizaccedilatildeo permitindo compreender pela via do

meacutetodo o alcance cognitivo e a distinccedilatildeo intelectual e moral do filoacutesofo Nessa

perspectiva vale adiantar tem-se novamente o pensamento nos termos da interaccedilatildeo

entre faculdade e objeto tal como no exemplo do sol mas desta vez com o acreacutescimo

das minuacutecias da realizaccedilatildeo desta ligaccedilatildeo A inteligecircncia aparece nesse contexto como

um efeito desta relaccedilatildeo e como realizaccedilatildeo da natureza inteligente do filoacutesofo que se daacute

na investigaccedilatildeo sobre o bem

Uma vez tratadas as caracteriacutesticas deacutebeis dos objetos no plano sensiacutevel a

exemplo da imagem e as consequecircncias cognitivas de seu uso o foco da explanaccedilatildeo se

64

volta sobretudo para a positividade da realidade a partir da qual se pode realizar a

verdadeira cogniccedilatildeo Os objetos e seus estatutos satildeo explicados a partir de agora em

comparaccedilatildeo com as ideias e em relaccedilatildeo agraves formas adequadas de intelecccedilatildeo para o

conhecimento

ldquo- De outro lado examina tambeacutem como deve ser divida a seccedilatildeo

correspondente ao inteligiacutevel

- Como

- A alma na primeira seccedilatildeo era forccedilada a pesquisar a partir de

hipoacuteteses usando objetos laacute imitados como imagens caminhando na

direccedilatildeo natildeo do princiacutepio mas do fim na outra poreacutem vai da

hipoacutetese ao princiacutepio que natildeo admite hipoacuteteses sem servir-se de

imagens como no outro caso e encaminha sua pesquisa soacute por meio

das proacuteprias ideias ndash(ηὸ δ αὖ ἕηεξνλ - ηὸ ἐπ‟ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ ndash ἐμ

ὑπνζέζεσο ἰνῦζα θαὶ ἄλεπ ηῶλ πεξὶ ἐθεῖλν εἰθόλσλ αὐηνῖο εἴδεζη δη‟

αὐηῶλ ηὴλ κέζνδνλ πνηνπκέλε)rdquo (Rep510b)

No plano inteligiacutevel que concerne ao cognosciacutevel a alma natildeo parte das imagens

para formular as hipoacuteteses mas das proacuteprias hipoacuteteses para chegar ao que constitui o

conhecimento o princiacutepio e o princiacutepio maior (ἀλππόζεηνο) A subida a este princiacutepio

que dispensa as imagens e utiliza um novo elemento as hipoacuteteses seraacute o novo

empreendimento do filoacutesofo no domiacutenio inteligiacutevel segundo o argumento da linha Os

objetos inteligiacuteveis natildeo podem ser atingidos senatildeo de acordo com o meacutetodo especiacutefico

para o conhecimento das ideias e do princiacutepio uacuteltimo que se mostra na atividade do

pensamento em relaccedilatildeo agraves hipoacuteteses O bem e a ideia do bem ganham agora

determinaccedilotildees metodoloacutegicas uma vez definidos seu estatuto e sua posiccedilatildeo no interior

da organizaccedilatildeo do quadro epistemoloacutegico em que se desenrola a atividade cognitiva A

noccedilatildeo de princiacutepio de tudo e por isso natildeo-hipoteacutetico satildeo as designaccedilotildees dadas a eles e

seratildeo conceituadas nos termos do meacutetodo dialeacutetico A inapreensiacutevel grandeza do bem

sugerida pela essecircncia de sua ideia pode ser inferida pelo procedimento dialeacutetico por

meio do qual o pensamento pode apreender o grau de cognoscibilidade possiacutevel acerca

dele Cabe analisar as tratativas do pensamento nesta operaccedilatildeo com as ideias e

sobretudo com a ideia do bem de modo a verificar a relaccedilatildeo objeto - pensamento que aiacute

se mostra

65

31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα

Apoacutes a seccedilatildeo das imagens e dos objetos originais estatildeo na primeira seccedilatildeo do

domiacutenio inteligiacutevel os objetos matemaacuteticos Estes apresentam as propriedades

inteligiacuteveis e demandam por isso um trabalho intelectual que consiste no raciociacutenio

(δηάλνηα)

ldquo- Ora explico outra vez Com a introduccedilatildeo que vou fazer

entenderaacutes com mais facilidade Creio que tu sabes que aqueles que

se ocupam da geometria com caacutelculos e assuntos como esses potildeem

como hipoacuteteses o par e o iacutempar as figuras trecircs espeacutecies de acircngulos e

outras coisas afins de acordo com o objeto de sua pesquisa e de um

lado como se as conhecessem tomam-nas como hipoacuteteses e acham

que natildeo tecircm de prestar contas nem a eles mesmos nem aos outros

(νὐδέλα ιόγνλ νὔηε αὑηνῖο νὔηε ἄιινηο ἔηη ἀμηνῦζη πεξὶ αὐηῶλ

δηδόλαη) sobre isso que segundo eles eacute coisa evidente para qualquer

um e de outro lado comeccedilando a partir dessas hipoacuteteses jaacute ao expor

o restante de maneira consequente acabam por chegar agrave

demonstraccedilatildeo (ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο) daquilo que os levou a

essa pesquisa

- Isso eu sei muito bem disse ele

-Entatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis

que discutem sobre elas ainda que natildeo estejam pensando nelas mas

naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedila Discutem a propoacutesito do

proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a propoacutesito da

diagonal que desenham e o mesmo fazem a respeito de outras

figuras Das figuras que modeladas e desenhadas por eles produzem

sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem imagens

buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam ser vistos

senatildeo com o pensamentordquo (Rep 510c-511a1)

Haacute duas classes de objetos inteligiacuteveis que demandam dois tipos de operaccedilotildees

intelectivas diferentes para que possam ser conhecidos37

Embora as duas seccedilotildees se

baseiem nas hipoacuteteses a abordagem dos seres inteligiacuteveis e o modo de operar pelas

hipoacuteteses faz Platatildeo distinguir na linha a atividade segundo a matemaacutetica e a dialeacutetica

Entre os geocircmetras e os matemaacuteticos (νἱ πεξὶ ηὰο γεσκεηξίαο ηε θαὶ ινγηζκνὺο Rep

510c2) os objetos inteligiacuteveis satildeo os trecircs tipos de acircngulo (γσληῶλ ηξηηηὰ εἴδε Rep

37 Para Cornford ldquoa distinccedilatildeo de objetos eacute uma questatildeo de expediente ao ensinarrdquo- Cornford

Mathematics and Dialectic in The Republic VI ndash VII (I) in Mind New Series vol 4 no 161 Oxford

University Press 1932 p 38 Embora seja inegaacutevel o uso propedecircutico que Cornford aponta interessa

ressaltar as especificidades das ideias matemaacuteticas em relaccedilatildeo agraves ideias morais como a ideia do bem

Dado que a intenccedilatildeo do filoacutesofo no Livro VI consiste em verificar o que fundamenta a justiccedila e a bondade

da cidade ideal conveacutem natildeo perder de vista uma distinccedilatildeo de tipos de ideias o que seraacute melhor defendido

apoacutes a anaacutelise dos argumentos d‟A Repuacuteblica

66

510c5) a noccedilatildeo de par e de iacutempar e as figuras geomeacutetricas (ηὰ ζρήκαηα) que

representam os seres matemaacuteticos como o quadrado e o triacircngulo Os matemaacuteticos

tomam por hipoacuteteses tais objetos sem fazer maiores questionamentos e sem oferecer

maiores explicaccedilotildees sobre eles (Rep 510c6) Do mesmo modo consideram o proacuteprio

meacutetodo matemaacutetico tambeacutem adequado e suficiente para dar o que entendem ser o

conhecimento uma conclusatildeo acerca do que investigavam a qual se tem

consensualmente ndash ldquo() de maneira consequente acabam por chegar agrave demonstraccedilatildeo

daquilo que os levou a essa pesquisardquo (ἤδε δηεμηόληεο ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ

ηνῦην νὗ ἂλ ἐπὶ ζθέςηλ ὁξκήζσζη Rep 510d)38

Com esta criacutetica o foco da analogia da linha ilumina a questatildeo do meacutetodo de

cogniccedilatildeo e ao mesmo tempo as caracteriacutesticas de uma apreensatildeo do inteligiacutevel Natildeo

parece estar mais em questatildeo somente a relaccedilatildeo objeto original e seu reflexo como

exposto nas primeiras seccedilotildees da linha agora parece importante ter em vista tal relaccedilatildeo

no que concerne este tipo de objeto inteligiacutevel e seu modo de apreensatildeo Geometria

matemaacutetica e toda a disciplina desta natureza parecem natildeo corresponder inteiramente ao

processo de cogniccedilatildeo por utilizarem cada uma um meacutetodo sugestivamente inadequado

(Rep 510c5) Nesta parte da linha o meacutetodo aborda a natureza do objeto e ao mesmo

tempo diz de algum modo a atividade intelectual que ele demanda ao mostrar os

pormenores do procedimento como se daraacute na sequecircncia

Vale analisar em detalhes a descriccedilatildeo do procedimento matemaacutetico para

compreender melhor o domiacutenio inteligiacutevel e o que diz a primeira seccedilatildeo sobre a

cogniccedilatildeo A explicaccedilatildeo acerca da construccedilatildeo das hipoacuteteses vem em seguida A

geometria e a matemaacutetica utilizam em seu argumento elementos do visiacutevel das formas

visiacuteveis que eles proacuteprios moldam desenham (πιάηηνπζίλ ηε θαὶ γξάθνπζηλ Rep

510e) Apesar disso a figura geomeacutetrica natildeo parece consistir entretanto a melhor

maneira de exprimir o resultado do que a alta intelecccedilatildeo pode conceber39

Dito de outro

38 Algumas traduccedilotildees como a ediccedilatildeo em portuguecircs que se utiliza para as citaccedilotildees do texto traduzem o

trecho ldquoηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ ηνῦηνrdquo por ldquodemonstraccedilatildeordquo Deve-se notar que algumas traduccedilotildees

preferem ser fieis aos termos do texto grego optando por ldquoagreementrdquo como a traduccedilatildeo de Emlyn-Jones e

Preddy op cit p 101 Ao menos por enquanto parece importante expor a criacutetica ao caraacuteter infundado ou

de base questionaacutevel como se veraacute adiante de uma conclusatildeo ao modo do procedimento matemaacutetico

uma vez que se daacute nos termos de um acordo Cabe adiantar que este seraacute um ponto a ser abordado e

reformulado na dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar o desenvolvimento desta criacutetica ao que se tem

como fundamento na matemaacutetica

39 Rep 510d5 ldquoEntatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis que discute sobre elas

ainda que estejam pensando nelas mas naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedilardquo (ὅηη ηνῖο ὁξσκέλνηο

εἴδεζη πξνζρξῶληαη θαὶ ηνὺο ιόγνπο πεξὶ αὐηῶλ πνηνῦληαη νὐ πεξὶ ηνύησλ δηαλννύκελνη ἀιι ἐθείλσλ

πέξη νἷο ηαῦηα ἔνηθε)

67

modo natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo que se pode dar a um raciociacutenio noeacutetico pois

embora natildeo seja precisamente um reflexo a figura geomeacutetrica consiste na aparecircncia dos

objetos que os geocircmetras procuram O equiacutevoco da geometria parece estar no dado de

que tais formas visiacuteveis satildeo para eles o proacuteprio quadrado e a proacutepria diagonal sobre as

quais se constroacutei um ιόγνο40

O que se tem em vista eacute a noccedilatildeo de quadrado e de

diagonal que natildeo consistem em representaccedilotildees sensiacuteveis ao modo de um espectro como

acontecia com as sombras e com os reflexos nas superfiacutecies e na aacutegua (ηὰο ζθηάο

θαληάζκαηα Rep 510a1) Haacute uma distinccedilatildeo neste instante da forma visiacutevel (ηνῖο

ὁξσκέλνηο εἴδεζη) a figura geomeacutetrica por via da qual o geocircmetra busca o inteligiacutevel

Este tipo de imagem a figura da geometria refere-se a conceitos da geometria e de

algum modo oferece este conteuacutedo que eacute apreensiacutevel somente pela δηάλνηα

ldquo() Das figuras que modeladas e desenhadas por eles

produzem sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem

imagens buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam

ser vistos senatildeo com o pensamentordquo (ηνύηνηο κὲλ ὡο εἰθόζηλ αὖ

ρξώκελνη δεηνῦληεο δὲ αὐηὰ ἐθεῖλα ἰδεῖλ ἃ νὐθ ἂλ ἄιισο ἴδνη ηηο ἢ ηῆ

δηαλνίᾳ (Rep 510e ndash 511a)

Antes de analisar o pensar nesse contexto a δηάλνηα propriamente vale verificar

esse dado que parece ser importante para distinguir a primeira seccedilatildeo inteligiacutevel e para

conferir o grau de conhecimento da realidade dos objetos da investigaccedilatildeo matemaacutetica O

conteuacutedo inteligiacutevel da figura geomeacutetrica estaacute na ordem dos conceitos o que define o

quadrado ldquoo proacutepriordquo impliacutecito em ldquoo proacuteprio quadradordquo e nas outras noccedilotildees

matemaacuteticas como a noccedilatildeo de par e de iacutempar e os tipos de triacircngulos Todavia a criacutetica

ao uso das imagens natildeo apresenta ao menos por enquanto maiores especificaccedilotildees

acerca da realidade dos seres matemaacuteticos O ldquoproacutepriordquo do quadrado natildeo deixa claro se

o que se entende por conceito matemaacutetico constitui uma ideia do quadrado como

poderia conceber a dialeacutetica ou se se trata de um quadrado dado pelo raciociacutenio

matemaacutetico e portanto uma demonstraccedilatildeo que conta com a representaccedilatildeo graacutefica

distinccedilotildees que seratildeo examinadas mais adiante Por parecer uacutetil a uma definiccedilatildeo de

atividade intelectual o texto chama atenccedilatildeo para o dado de que na praacutetica dos

40 Rep 510d8 ldquoDiscutem a propoacutesito do proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a

propoacutesito da diagonal que desenham ()rdquo (ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ ἕλεθα ηνὺο ιόγνπο πνηνύκελνη θαὶ

δηακέηξνπ αὐηο ἀιι νὐ ηαύηεο ἣλ γξάθνπζηλ)

68

geocircmetras se confere a tais imagens a funccedilatildeo de refletir conceitos41

Dito de outro

modo eles buscam as noccedilotildees matemaacuteticas a partir de uma representaccedilatildeo sensiacutevel por

compreenderem equivocadamente ser a figura capaz de referir as noccedilotildees inteligiacuteveis e

ao domiacutenio sensiacutevel simultaneamente

Ao considerar o que jaacute foi exposto sobre a aparecircncia e a sua debilidade em

relaccedilatildeo a uma referecircncia plena de realidade natildeo parece haver a completa aprovaccedilatildeo

deste meacutetodo no que se refere ao mais alto conhecimento Mesmo que se apreenda tais

noccedilotildees atraveacutes da figura geomeacutetrica as mesmas natildeo podem ser compreendidas em toda

a sua realidade por um recurso sensiacutevel como a imagem Em outros termos as noccedilotildees

inteligiacuteveis natildeo satildeo ditas em sua integridade em sua realidade pelas figuras sendo a

argumentaccedilatildeo e a explicaccedilatildeo matemaacutetica obscura carente de clareza ao se atribuir agrave

representaccedilatildeo graacutefica e agrave demonstraccedilatildeo o conhecimento do objeto em questatildeo como se

argumentou no iniacutecio da criacutetica

Dada a carecircncia de clareza da figura embora em menor grau comparada agraves

sombras o ιόγνο matemaacutetico fica comprometido o que explica a conclusatildeo nos termos

de um acordo Esse meacutetodo natildeo alcanccedila o que parece constituir o fundamento do

quadrado e dos conceitos matemaacuteticos o que mostra que a evidecircncia que busca o ιόγνο

geomeacutetrico tem iniacutecio e fim nas figuras sensiacuteveis ainda que seu procedimento e as

proacuteprias figuras envolvam noccedilotildees inteligiacuteveis42

A criacutetica ao meacutetodo matemaacutetico vale

antecipar estaraacute completa apoacutes o exame das disciplinas que colaboram na educaccedilatildeo do

governante e do guardiatildeo da cidade no livro VII Neste instante tem-se avaliados

observe-se os aspectos que ressaltam as limitaccedilotildees da aritmeacutetica e da geometria em

relaccedilatildeo agravequele que se mostraraacute o modo de pensar mais eficiente para o mais alto

conhecimento Assim importa mostrar as fragilidades do meacutetodo dos matemaacuteticos para

mais tarde expor o seu alcance intelectual e a sua utilidade propedecircutica

41 Embora haja a sugestatildeo de uma realidade ao dizer o ldquoquadrado mesmordquo tal indicaccedilatildeo natildeo parece

totalmente clara ao menos ainda A nota de James Adam sobre a ambiguidade de ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ

vale ser citada pois ajuda a pocircr a questatildeo acerca da realidade dos seres matemaacuteticos Ele nota que o

αὐηνῦ se refere antes de tudo ao quadrado ele mesmo (ldquoitselfrdquo) e natildeo diz respeito portanto ao desenho

do quadrado Pode se referir tanto a ideia de quadrado quanto ao quadrado matemaacutetico o qual segundo

ele Platatildeo diz ser distinto da ideia Em seguida Adam vecirc a possibilidade de a ambiguidade ser desfeita a

partir 511a ao se falar do δηαλννύκελνη os quais entende serem os seres matemaacuteticos Adam op cit pg 68

42 Aubenque faz um comentaacuterio que vai nessa direccedilatildeo ldquoQue este objeto intermediaacuterio seja o objeto dos

matemaacuteticos eacute o que se extrai da passagem 510d seg onde o matemaacutetico eacute apresentado como

raciociacutenio sobre as figuras que ele traccedila no sensiacutevel () mas das quais ele se serve como imagens (hoacutes

eikoacutesin) bdquodestas realidades mais altas‟ com as quais tais figuras se assemelham (eacuteoike)rdquo Aubanque op

cit p 42-43

69

A explicaccedilatildeo do procedimento dos geocircmetras expotildee desse modo as

caracteriacutesticas do domiacutenio inteligiacutevel O detalhamento das especificidades acerca deste

plano prossegue com a exposiccedilatildeo da atividade inteligente da alma

ldquo- Pois bem Eis o gecircnero que eu dizia ser o inteligiacutevel Ao

buscaacute-lo a alma eacute obrigada a servir-se de hipoacuteteses e natildeo se

encaminha para o princiacutepio uma vez que natildeo pode elevar-se aleacutem de

hipoacuteteses mas servindo-se das proacuteprias imagens imitadas pelos

objetos da seccedilatildeo inferior que em comparaccedilatildeo com as outras satildeo

tidas e apreciadas como mais niacutetidas

- Entendo disse ele que falas do que se faz na geometria e nas

artes que lhe satildeo afins (ἀδειθαῖο ηέρλαηο)rdquo (Rep 511a3- b2)

Com um tom conclusivo a criacutetica aos matemaacuteticos termina mostrando a que se

deve o erro e as consequecircncias do meacutetodo Como sugerido anteriormente nas condiccedilotildees

que esta seccedilatildeo da linha apresenta a alma eacute impelida a buscar o inteligiacutevel no entanto

natildeo pelo princiacutepio mas pelas hipoacuteteses (Rep 511a3) Ela eacute incapaz de sair das hipoacuteteses

na direccedilatildeo de um niacutevel superior justamente porque permanece presa agraves representaccedilotildees

sem buscar compreender mais profundamente as noccedilotildees apreendidas (Rep 511d5-7)

Ao comparar as imagens como aparecircncias do niacutevel mais baixo e como graacuteficos

do meacutetodo geomeacutetrico a alma as julga e as preza como dotadas de clareza O geocircmetra

considera assim as imagens como fidedignas agraves hipoacuteteses e de certo modo aos objetos

fiacutesicos tomando o resultado que se tem atraveacutes delas como o proacuteprio conhecimento

Desse modo compreende como clareza a adequaccedilatildeo entre a representaccedilatildeo e o objeto

representado Tal uso da imagem ressalta o caraacuteter inoacutecuo da aparecircncia e sugere ser o

meacutetodo matemaacutetico tatildeo insuficiente nos termos da alta cogniccedilatildeo quanto o que se tem

na opiniatildeo uma vez que ao final perde de vista os conceitos Por se fixar a imagens e

assim natildeo desenvolver o grau necessaacuterio de intelecccedilatildeo para apreender o fundamento dos

conceitos aritmeacuteticos natildeo pode ir aleacutem de hipoacuteteses que o levaratildeo apenas a outras

hipoacuteteses Desse modo uma vez que a intenccedilatildeo eacute demonstrar a premissa e chegar a uma

conclusatildeo no sentido de ὁκνινγνπκέλσο a matemaacutetica natildeo alcanccedila os princiacutepios O

movimento intelectivo que o matemaacutetico faz consiste desse modo das premissas para a

conclusatildeo sendo as hipoacuteteses o meio para tal43

43 Nickolas Pappas oferece uma explicaccedilatildeo sobre o que Platatildeo compreende por hipoacutetese ldquoTatildeo

improvadas asserccedilotildees sobre entidades matemaacuteticas podem ser aquilo a que Platatildeo daacute o nome de

hipoacutetesesrdquo Para o autor Platatildeo procura um fundamento para toda a matemaacutetica e de algum modo

simultaneamente para a Metafiacutesica ndash papel desempenhado pela Ideia do Bem Haacute o desejo de encontrar

aquilo que nos termos da contemporaneidade se chamaria certeza loacutegica certeza que o axioma

70

Cabe averiguar qual deve ser a compreensatildeo sobre as hipoacuteteses no argumento

dos matemaacuteticos e dos dialeacuteticos no Livro VII Pelo que se tem ateacute agora elas se

referem agraves premissas a partir das quais se constroacutei o raciociacutenio matemaacutetico e uma

conclusatildeo a qual deve estar de acordo com o pressuposto primeiro Desse modo as

hipoacuteteses constituem os pressupostos que satildeo sempre reafirmados ao final do processo

e nesse sentido todo o ιόγνο pode ser compreendido como a explicaccedilatildeo da premissa

ou melhor dizendo como uma demonstraccedilatildeo44

O meacutetodo matemaacutetico se resume agrave

demonstraccedilatildeo de premissas e natildeo ascendem de modo a entender por isso agrave natureza da

ideia envolvida na operaccedilatildeo Com as premissas por sua vez os loacutegicos e os geocircmetras

pretendem dizer o que satildeo os objetos do mundo sensiacutevel e a demonstraccedilatildeo delas

pressupotildee o conhecimento destes objetos Eles compreendem que a evidecircncia (θαλεξόλ)

acerca do objeto investigado eacute dada com esta demonstraccedilatildeo matemaacutetica de algo

existente do mundo fiacutesico atraveacutes das figuras abstendo-se de investigar ou oferecer uma

explicaccedilatildeo acerca do que fundamenta a hipoacutetese ou seja de buscar o ἀλππόζεηνο ou os

proacuteprios princiacutepios que utilizam a ἀξρή

Vale ainda atentar para a singularidade da seccedilatildeo que concerne agrave matemaacutetica O

primeiro ponto a ser notado diz respeito agrave possibilidade de natildeo adquirir conhecimento

nos termos da filosofia mesmo ao lidar com objetos inteligiacuteveis Os matemaacuteticos assim

como os dialeacuteticos como se analisaraacute em detalhe lidam com seres inteligiacuteveis

entretanto devido ao meacutetodo natildeo apropriado para a apreensatildeo deste objeto de grau mais

alto este contato natildeo constitui exatamente um conhecimento nos termos da ἐπηζηήκε

como quer o filoacutesofo O geocircmetra e o matemaacutetico natildeo chegam ao princiacutepio e o ponto

para o qual a analogia parece lanccedilar luz eacute justamente a importacircncia do meacutetodo e

consequentemente da operaccedilatildeo intelectiva que ele demanda Ao problematizar as

condiccedilotildees para o conhecimento questionando os objetos e o procedimento Platatildeo

sugere as diferenccedilas de abordagem epistemoloacutegica Dito de outro modo o caraacuteter

intermediaacuterio que parece ter a matemaacutetica uma vez que estabelece as tratativas entre o

sensiacutevel e o inteligiacutevel oferece as condiccedilotildees para mostrar as possibilidades de

operacionalidade do pensamento em uma primeira etapa do processo de cogniccedilatildeo

matemaacutetico natildeo oferece mas acreditam os geocircmetras estar evidente nas suas demonstraccedilotildees A dialeacutetica

tem a tarefa de definir em termos mais amplos simples e mais abstratos os objetos da matemaacutetica que

carecem de definiccedilatildeo A ascese dialeacutetica da Linha Dividida pode ser vista como uma ldquoclarificaccedilatildeo

definitoacuteriardquo ao inveacutes de uma ldquocerteza axiomaacuteticardquo Pappas op cit p 176-177 Na verdade o que o

dialeacutetico compreende como ideia o matemaacutetico toma como axiomas e noccedilotildees e os utiliza como hipoacutetese

44 Para Cornford o matemaacutetico restringe hipoacutetese agrave afirmaccedilatildeo de uma existecircncia e natildeo de uma definiccedilatildeo

A definiccedilatildeo na matemaacutetica eacute um ιόγνο no sentido de uma explicaccedilatildeo e natildeo de uma causa Cornford op

cit p 39

71

Se nas primeiras seccedilotildees da linha a deficiecircncia das aparecircncias mostrava a

debilidade do sensiacutevel e consequentemente a impossibilidade da cogniccedilatildeo nesta parte

da linha o conhecimento depende mais da atividade que se estabelece em relaccedilatildeo aos

objetos ou seja do meacutetodo45

A geometria que pretende mensurar algo fiacutesico e no

entanto utiliza elementos inteligiacuteveis mostra a possibilidade de uma relaccedilatildeo do sensiacutevel

com o inteligiacutevel que a imagem sozinha natildeo oferecia Mesmo que o meacutetodo da

geometria natildeo ascenda agraves causas e agrave ideia ultima e termine por mirar o domiacutenio

sensiacutevel as tratativas com os conceitos inteligiacuteveis demonstram a capacidade da alma

de inteligir em diferentes niacuteveis e de acordo com a analogia ao menos de dois modos

como um raciociacutenio (δηάλνηα) e como uma intelecccedilatildeo em seu maacuteximo grau (λόεζηο)

Desse modo a distinccedilatildeo entre o princiacutepio e o objeto matemaacutetico merece alguns

esclarecimentos O princiacutepio que Platatildeo sugere nessas passagens se refere a ἀξρή e ao ηὸ

ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ causa dos princiacutepios e dos conceitos matemaacuteticos Eacute a ele que os

objetos da matemaacutetica devem sua realidade O objeto com o qual lida a matemaacutetica eacute o

ηὸ αὐηό ldquoo mesmordquo que exprime o conceito como visto Nesse sentido conhecer as

noccedilotildees matemaacuteticas naquilo que elas tecircm de inteligiacutevel e real constitui um

conhecimento no sentido de cognosciacutevel embora natildeo seja o mesmo conhecimento do

dialeacutetico (ἐπηζηήκε) que justamente apreende o primeiro princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico Os

objetos da matemaacutetica por serem inteligiacuteveis datildeo condiccedilotildees para a alma ter um grau de

frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel mesmo que os matemaacuteticos natildeo se deem conta dos

45 A ambiguidade desta parte da linha fez autores repensarem a verdadeira divisatildeo da linha Stocks por

exemplo entende que pode haver trecircs pares na divisatildeo conforme clareza ou verdade A e B (imagens e

originais) C e D (objetos matemaacuteticos ndash ideias) e AB e CD Entre B e C (originais e objetos matemaacuteticos)

haacute uma dissimetria natildeo havendo uma continuidade no sentido de uma passagem progressiva do grau

maior para o menor Os objetos do sensiacutevel B tem sua representaccedilatildeo em A D a seccedilatildeo mais alta tem a sua

verdade revelada em C na matemaacutetica Deve-se considerar B uma forma esclarecida de A e D uma forma

esclarecida de C ndash Stocks op cit p 76 77 De qualquer modo Stocks percebe haver entre os

seguimentos dos objetos fiacutesicos e o da matemaacutetica uma brusca distinccedilatildeo que ao final agruparia os

elementos da linha nos grupos domiacutenio sensiacutevel- domiacutenio inteligiacutevel e objetos originais fiacutesicos e

metafiacutesicos Chen entende que esta distinccedilatildeo de objetos entre imagem-original eacute assimeacutetrica enquanto a

relaccedilatildeo entre originais fiacutesicos-objetos matemaacuteticos e objetos matemaacuteticos-ideias eacute simeacutetrica uma vez que

a relaccedilatildeo dada pelo caacutelculo eacute intermediada pela noccedilatildeo de igualdade Natildeo se trata portanto de uma mesma

relaccedilatildeo e o texto entende Chen lida com a relaccedilatildeo assimeacutetrica - Chen op cit p 104 Em outras palavras

eacute possiacutevel ver uma riacutegida separaccedilatildeo entre os segmentos intermediaacuterios como Stocks considera ou uma

relativa continuidade como entende Chen As duas posiccedilotildees mostram a meu ver a complexidade da

parte que se refere agrave matemaacutetica na linha como bastante oportuna para propor uma noccedilatildeo de atividade do

pensamento que perpasse de algum modo os domiacutenios e possa chegar a mais superior das ideias a ideia

do bem No caso de Chen o comentaacuterio elege a noccedilatildeo de igualdade (equality) como a noccedilatildeo reguladora

que o caacutelculo utiliza para fazer as relaccedilotildees entre os domiacutenios Esta parece ser uma observaccedilatildeo pertinente e

importante do aspecto da cogniccedilatildeo pois evidencia os tipos de noccedilotildees inteligiacuteveis capaz de fazer esta

relaccedilatildeo entre os domiacutenios e as seccedilotildees Natildeo parece ser qualquer elemento inteligiacutevel que poderia

proporcionar este tracircnsito mas elementos especiacuteficos presentes tanto no domiacutenio sensiacutevel quanto no

inteligiacutevel isto eacute noccedilotildees a partir das quais eacute possiacutevel uma verificaccedilatildeo tanto empiacuterica quanto intelectual

como parecem ser as noccedilotildees matemaacuteticas

72

princiacutepios Sendo o princiacutepio e o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico a causa do conceito (ηὸ αὐηό)

deve-se atentar o matemaacutetico tem a via para a apreensatildeo deles que erroneamente

ignoram Tal noccedilatildeo de causalidade que seraacute detalhada adiante mostra a relaccedilatildeo entre as

duas partes em que se divide o domiacutenio inteligiacutevel e propotildee ao mesmo tempo a

passagem de um niacutevel a outro

Desta vez ao se referir aos objetos matemaacuteticos o texto parece tratar de maneira

mais objetiva a realidade deles e deixar para a questatildeo da cogniccedilatildeo as diferenciaccedilotildees

que propotildeem as divisotildees da linha Pode-se suspeitar que tais noccedilotildees tenham

peculiaridades que fazem Platatildeo utilizaacute-las para ilustrar o processo cognitivo na etapa de

transiccedilatildeo do sensiacutevel para o inteligiacutevel dado que com as noccedilotildees geomeacutetricas eacute possiacutevel

se referir de maneira inteligente ao sensiacutevel ou seja eacute possiacutevel dar um tratamento aos

objetos do mundo sensiacutevel a partir de noccedilotildees inteligiacuteveis Ao fazer uso de elementos

inteligiacuteveis para oferecer uma explicaccedilatildeo que tem por objetivo final dizer sobre o

domiacutenio sensiacutevel tal como se viu na demonstraccedilatildeo o meacutetodo matemaacutetico apresenta a

relaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel e ao mesmo tempo a participaccedilatildeo desta disciplina

em ambos os domiacutenios Desta perspectiva as noccedilotildees matemaacuteticas enviam diretamente

ao ser sem demandar outro tipo de objeto que natildeo sejam as noccedilotildees suscitadas pelas

figuras geomeacutetricas e pelas hipoacuteteses ao modo de axiomas46

A partir disso pode-se experimentar traccedilar um perfil da δηάλνηα visto que eacute a

operaccedilatildeo envolvida nessa tratativa entre seres de inteligibilidade tal como os conceitos

da matemaacutetica e da geometria com vistas para o sensiacutevel Ela apresenta as seguintes

caracteriacutesticas 1) opera partindo da premissa para a conclusatildeo por meio de hipoacuteteses 2)

faz a intermediaccedilatildeo entre conceitos inteligiacuteveis e imagens sensiacuteveis (graacuteficos da

geometria) 3) natildeo chega ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico embora os elementos com os

quais opera sejam inteligiacuteveis e por isso permitiriam fazecirc-lo Pode-se compreender o

movimento do pensamento do raciociacutenio com um grau ascendente e horizontal Em

termos cognitivos ou seja no que se refere ao alvo do conhecimento a atividade do

pensamento ao modo de um raciociacutenio se restringe a ir das hipoacuteteses agrave afirmaccedilatildeo acerca

de algo existente o qual natildeo define nos termos do raciociacutenio matemaacutetico Tal atuaccedilatildeo

parece ser suficiente para caracterizar um movimento que vai do sensiacutevel para um grau

46 Cornford faz uma observaccedilatildeo sobre o que ele chama de bdquoclasses de ideias‟ a qual parece ir ao encontro

desta hipoacutetese ldquoMatemaacuteticos podem usar bdquoimagens visiacuteveis‟ () Ele sabe que natildeo estaacute pensando a

partir destas coleccedilotildees [de representaccedilotildees de coisas] e de figuras mas de ideias Na classe das ideias

morais natildeo haacute imagens visiacuteveis suas semelhanccedilas no mundo satildeo propriedades invisiacuteveis da alma ()

Assim a matemaacutetica serve como o caminho mais faacutecil do mundo sensiacutevel para o mundo inteligiacutevel e deve

preceder ao estudo das ideias moraisrdquo Cornford op cit p 38

73

do inteligiacutevel mas que natildeo vai muito aleacutem da inteligibilidade dos nuacutemeros dos

conceitos matemaacuteticos e das hipoacuteteses

De outro modo em termos de operacionalidade no que diz respeito ao modo e

aos elementos dispostos no raciociacutenio matemaacutetico o procedimento demonstrativo

mostra que o movimento do pensamento consiste em um movimento horizontal uma

vez que permanece em torno da relaccedilatildeo princiacutepio-conclusatildeo tomando-os nos termos da

relaccedilatildeo entre hipoacuteteses A operaccedilatildeo desse modo fica restrita ao princiacutepio do qual

partiu constituindo um movimento de transiccedilatildeo entre as noccedilotildees envolvidas ao modo de

uma variaccedilatildeo entre os elementos que serve para demonstraacute-lo passando de um para

outro sem se lanccedilar questionamentos acerca deles proacuteprios Natildeo haacute nenhum movimento

que considere os elementos tomando-os da perspectiva de sua realidade Mesmo que ldquoo

proacuteprio quadradordquo possibilite inferir um grau ontoloacutegico superior parece ser satisfatoacuterio

para os propoacutesitos dos matemaacuteticos o grau de apreensatildeo do inteligiacutevel que os permita

fazer suas deduccedilotildees e voltar a imagem Parece natildeo haver necessidade de conhecer o

fundamento das noccedilotildees envolvidas no meacutetodo de demonstraccedilatildeo dado que a operaccedilatildeo

consiste justamente em intermediar os conceitos que estatildeo entre a premissa e a

conclusatildeo47

Tal descriccedilatildeo eacute o que torna possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da δηάλνηα ateacute aqui Vecirc-

se que se trata da operaccedilatildeo do pensamento que embora engajado na demonstraccedilatildeo de

noccedilotildees inteligiacuteveis natildeo chega ao princiacutepio maacuteximo e ocupa assim a posiccedilatildeo

intermediaacuteria entre a δόμα e a λόεζηϛ Conforme a primeira seccedilatildeo do domiacutenio

inteligiacutevel seu campo de atuaccedilatildeo versa sobre os inteligiacuteveis entretanto somente sobre

aqueles que mantecircm alguma relaccedilatildeo com o sensiacutevel isto eacute que podem de algum modo

dizecirc-los Dessa maneira a δηάλνηα constitui o primeiro grau do pensamento intelectivo

nos termos da cogniccedilatildeo e ganha lugar no domiacutenio do cognosciacutevel pois se refere ao uso

47 Diante da criacutetica ao procedimento dos matemaacuteticos conveacutem conferir o que Brisson e Meyerstein

explicam sobre o procedimento dos geocircmetras e a apropriaccedilatildeo em certa medida deste tipo de prova por

parte do filoacutesofo ldquoPara o filoacutesofo que na Greacutecia antiga toma como modelo os passos dos geocircmetras

provar implica 1) Por provisoriamente axiomas tambeacutem chamado ldquohipoacutetesesrdquo 2) verifica-se que esses

axiomas natildeo se contradizem 3) verifica-se que deduccedilatildeo obedece agraves regras da loacutegica 4) determina-se se

as consequecircncias decorrentes correspondem na realidade sensiacutevel agravequelas que devem ser 5) se as

respostas agraves questotildees 2 3 e 4 satildeo positivas retornam sobre seus passos para verificar se as hipoacuteteses satildeo

verdadeiramente primordiais ou se em vez disso necessitam de axiomas complementaresrdquo Brisson L

Meyerstein FW op cit p 47-48 Note-se que apesar das diferenciaccedilotildees que Platatildeo se esforccedila em

realizar a matemaacutetica foi uma disciplina de grande inspiraccedilatildeo para o modelo investigativo que pretendia

elaborar para a filosofia Em comum com a matemaacutetica o meacutetodo dialeacutetico teraacute um procedimento que

utiliza hipoacuteteses ou seja parte de ideias e tem a necessidade de investigaacute-las Essa parece ser a grande

contribuiccedilatildeo das matemaacuteticas para a proposiccedilatildeo de um meacutetodo filosoacutefico cabendo a partir de entatildeo

discernir acerca de como proceder segundo os interesses da filosofia

74

e ao consequente entendimento dos elementos inteligiacuteveis ao procurar organizaacute-los de

modo a elaborar uma explicaccedilatildeo48

Uma compreensatildeo mais profunda e detalhada sobre a δηάλνηα pode ser dada com

uma anaacutelise acerca das disciplinas matemaacuteticas no Livro VII Por meio da descriccedilatildeo da

ascese do aprendiz em direccedilatildeo ao conhecimento filosoacutefico eacute possiacutevel mensurar melhor o

grau de inteligecircncia e de cogniccedilatildeo do raciociacutenio O texto trata o raciociacutenio sob o

argumento de que toda disciplina matemaacutetica que conduz agrave ideia do bem pois obriga a

alma a se voltar para o inteligiacutevel e para a contemplaccedilatildeo do ser eacute uacutetil aos propoacutesitos do

pedagogo filoacutesofo49

Assim pretende especificar como ocorre a colaboraccedilatildeo da

geometria da astronomia e da harmonia na educaccedilatildeo do futuro governante e expotildee com

isso o objeto inteligiacutevel de cada uma Do mesmo modo a despeito do que argumenta a

maioria dos geocircmetras e dos astrocircnomos (Rep 526a) a geometria e a astronomia

desempenham o mesmo papel como disciplinas que promovem tal orientaccedilatildeo na medida

em que exigem o trabalho do raciociacutenio atraveacutes das relaccedilotildees que cada uma opera por via

das figuras geomeacutetricas e da observaccedilatildeo do movimento dos corpos celestes

De fato aleacutem de ser um conhecimento uacutetil para a guerra a geometria conhece os

objetos que apresentam a qualidade inteligiacutevel do que eacute perene ou literalmente do que

sempre eacute (ηνῦ ἀεὶ ὄληνο) e natildeo as figuras ou desenhos do que se observa empiricamente

ndash ldquondash Eacute faacutecil ficar de acordo quanto a isso A geometria eacute o conhecimento daquilo que

sempre eacute (Rep 527b7)rdquo Assim conceitos trabalhados pela geometria como

profundidade e pela astronomia como distacircncia movimento e velocidade expressam

relaccedilotildees apreensiacuteveis pelo raciociacutenio matemaacutetico como igualdade e duplicidade e por

isso constituem um aprendizado que treina a alma a trabalhar com o que eacute invisiacutevel e

com o ser (Rep 529b-c) Observe-se que o que vale satildeo as relaccedilotildees matemaacuteticas que

acompanham os conceitos da astronomia e da geometria os quais assim como a noccedilatildeo

de unidade treinam a faculdade inteligente da alma (ηὸ θύζεη θξόληκνλ ἐλ ηῆ ςπρῆ

Rep 530c1) para conhecer qualidades inteligiacuteveis essenciais agrave ideia do bem como

imutabilidade e verdade (Rep 530a3-b4) Do mesmo modo por utilizarem-se dos

nuacutemeros e do caacutelculo o geocircmetra o astrocircnomo e o muacutesico satildeo forccedilados agrave mesma

48 Cornford ldquoSeu entendimento intelectual de uma coerecircncia embora isolada peccedila do raciociacutenio

dedutivo eacute a diaacutenoiardquo Cornford op cit p 51

49 Rep 526e2-4 ldquoTende para laacute afirmamos noacutes tudo quanto obriga a alma a voltar-se para aquele

lugar onde estaacute o mais feliz dos seres () (ἀλαγθάδεη ςπρὴλ εἰο ἐθεῖλνλ ηὸλ ηόπνλ κεηαζηξέθεζζαη ἐλ ᾧ

ἐζηη ηὸ εὐδαηκνλέζηαηνλ ηνῦ ὄληνο) Rep 526e6 ldquoEntatildeo se obriga a contemplar a essecircncia ela nos

conveacutem se obriga a contemplar o devir natildeo nos conveacutemrdquo (Οὐθνῦλ εἰ κὲλ νὐζίαλ ἀλαγθάδεη ζεάζαζζαη

πξνζήθεη εἰ δὲ γέλεζηλ νὐ πξνζήθεη)

75

abstraccedilatildeo que o filoacutesofo e por consequecircncia adquirem o mesmo grau de conhecimento

por lidarem com a inteligibilidade do nuacutemero50

Conveacutem notar que a criacutetica quanto ao meacutetodo empregado e quanto aos objetivos

que tecircm em vista cada disciplina permanece O Livro VII oferece uma versatildeo

pormenorizada acerca da cogniccedilatildeo ao expor com detalhes a operaccedilatildeo intelectual e seu

grau de conhecimento envolvido nas matemaacuteticas Entretanto o argumento natildeo perdeu

de vista os limites destas disciplinas para uma elevaccedilatildeo mais alta ao apontar o equiacutevoco

por parte dos matemaacuteticos no que se refere ao verdadeiro objeto em questatildeo a ideia do

bem e a real contribuiccedilatildeo delas para tal O que o argumento diz da visatildeo dos geocircmetras

acerca da geometria vai ao encontro do que se observou no final do argumento da linha

(Rep 511a) onde se verifica a abstraccedilatildeo inteligiacutevel a partir da experiecircncia empiacuterica que

se realiza ao modo da adequaccedilatildeo do que se vecirc agraves figuras geomeacutetricas - ldquo() ao fazer

suas declaraccedilotildees falam em quadrar em construir uma figura acrescentar usando

sempre termos como esses Ora toda dedicaccedilatildeo a esse aprendizado tem em vista o

conhecimentordquo (Rep527a6-b1) Este parece constituir o objetivo uacuteltimo da geometria

a transposiccedilatildeo do sensiacutevel em direccedilatildeo agraves formas do inteligiacutevel na qual a racionalizaccedilatildeo

se daacute nos termos desse procedimento De todo modo a cogniccedilatildeo acontece todavia sem

ter em vista um conhecimento maior (ἐπηζηήκε)

O mesmo se observa entre os astrocircnomos os quais acreditam ser a astronomia

um conhecimento que equipara os fenocircmenos naturais com os astros sem considerarem

o que haacute de imutaacutevel e verdadeiro neles o que haacute de inteligiacutevel portanto (Rep 530a)

Tambeacutem entre os muacutesicos que julgam ser a harmonia o estudo que mensura e equipara

os sons dados da sensibilidade sem se darem conta da relevacircncia de examinar os

nuacutemeros que satildeo harmocircnicos e as razotildees que haacute para serem como tais (Rep 531a-d) ou

50 Cabe aqui trazer um esclarecimento de Trabattoni que vai ao encontro do que se analisa sobre a

δηάλνηα ldquoConveacutem no entanto esclarecer que natildeo satildeo as expressotildees oacuteticas em si que excluem esta

possibilidade e que para resolver a questatildeo eacute necessaacuterio investigar aleacutem dessa perspectiva Parece-me

que uma anaacutelise mesmo que resumida da metaacutefora da linha nos forneccedila argumentos suficientes para

estabelecermos que Platatildeo conceba que o conhecimento intelectual antes de qualquer coisa eacute um tipo de

pensamento discursivo O esquema dos manuais de filosofia segundo os quais apresentam a diaacutenoia

como o tipo de pensamento discursivo e proposicional que ocupa o terceiro segmento da linha e a noacuteēsis

como o quarto segmento e que seria portanto um pensamento intuitivo e natildeo proposicional natildeo se

verifica de maneira alguma no textordquo Trabattoni F ldquoIl Sapere del Filosofordquo in Vergetti M (Ed) La

Repubblica Naacutepoles Bibliopolis 2003 vol 5 p 158 O comentaacuterio expotildee a complexidade que envolve os

trabalhos do intelecto e a dificuldade ao se pretender dar uma classificaccedilatildeo riacutegida aos tipos de operaccedilatildeo

cognitivas O que Platatildeo parece ter em vista com a divisatildeo eacute primeiramente distinguir o que cada

conhecimento tem em vista para entatildeo mostrar a partir do meacutetodo de cada uma seus alcances e

limitaccedilotildees Raciociacutenio matemaacutetico e inteligecircncia mostram a intelecccedilatildeo ainda que em graus e de maneira

diferentes e que classificaacute-los como conhecimento proposicional o qual busca sobretudo definiccedilotildees ou

intuitivo pode dizer muito pouco sobre o intelecto e sua atividade

76

seja natildeo se questionam no que consiste a harmonia De modo geral diferentemente dos

dialeacuteticos os matemaacuteticos natildeo ascendem ao proacuteprio problema (ἀιι νὐθ εἰο πξνβιήκαηα

ἀλίαζηλ Rep 531c2) na perspectiva do filoacutesofo Mesmo que trabalhem com objetos

inteligiacuteveis e que tenham portanto um grau de intelecccedilatildeo e de cogniccedilatildeo os

matemaacuteticos natildeo demonstram ter o que para o filoacutesofo constituiria um conhecimento

pleno da sua disciplina o fundamento que as torna comuns e afins o natildeo hipoteacutetico

inteligiacutevel a ideia do bem

32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ

A descriccedilatildeo do meacutetodo de cogniccedilatildeo na uacuteltima parte da linha dividida apresenta a

apreensatildeo de ideias a cogniccedilatildeo no seu grau superior A operaccedilatildeo empreendida no

processo e as especificidades dos objetos da cogniccedilatildeo satildeo dadas agrave luz da formulaccedilatildeo

filosoacutefica Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e do conhecimento

proacuteprio deste tipo de apreensatildeo dita inteligente mostra-se segundo o caraacuteter da filosofia

e portanto da atividade cognitiva do filoacutesofo a partir de um meacutetodo especiacutefico

denominado ciecircncia dialeacutetica

ldquo- Pois bem Fica sabendo agora que eu digo que a seccedilatildeo das

coisas inteligiacuteveis eacute aquela em que eacute a proacutepria razatildeo que as apreende

com a forccedila da dialeacutetica (αὐηὸο ὁ ιόγνο ἅπηεηαη ηῆ ηνῦ δηαιέγεζζαη

δπλάκεη) considerando as hipoacuteteses natildeo como princiacutepios mas

realmente como hipoacuteteses como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο

ηε θαὶ ὁξκάο) para chegar ao princiacutepio de tudo aquele que natildeo

admite hipoacuteteses (κέρξη ηνῦ ἀλππνζέηνπ ἐπὶ ηὴλ ηνῦ παληὸο ἀξρὴλ

ἰώλ) Num movimento inverso por sua vez presa a tudo o que

depende desse princiacutepio vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem

servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias ideias

por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (εἴδε)

- Entendo disse mas natildeo como gostaria porque me parece que

estaacutes falando de uma tarefa muito pesada Queres determinar que o

conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da dialeacutetica

(ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο) eacute mais claro (ζαθέζηεξνλ εἶλαη) que

o que se tem por meio das ciecircncias cujos princiacutepios satildeo as hipoacuteteses e

que os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o

pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηῶλ ηερλῶλ αἷο αἱ

ὑπνζέζεηο ἀξραὶ θαὶ δηαλνίᾳ κὲλ ἀλαγθάδνληαη ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ

77

αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη) de outro lado por examinaacute-los sem voltar

ao princiacutepio (δηὰ δὲ ηὸ κὴ ἐπ ἀξρὴλ ἀλειζόληεο) mas a partir de

hipoacuteteses eles natildeo te parecem ter inteligecircncia a respeito deles ainda

que sejam inteligiacuteveis por meio de um princiacutepio Parece-me que

chamas pensamento (δηάλνηαλ) a disposiccedilatildeo (ἕμηλ) dos que estudam

geometria e ciecircncias afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo

inteligecircncia (λνῦλ) jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a

opiniatildeo e a inteligecircncia (ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ

νὖζαλ)rdquo (Rep 511b3-d5)

A primeira distinccedilatildeo do domiacutenio inteligiacutevel eacute dada pela peculiaridade do modo

de apreensatildeo de ideias O ιόγνο apreende toca (ἅπηεηαη) segundo os termos metafoacutericos

do texto o que eacute do gecircnero inteligiacutevel nesta uacuteltima seccedilatildeo da linha Tal relaccedilatildeo a qual

descreve uma apreensatildeo tem seu procedimento explicado logo em seguida tomar as

hipoacuteteses natildeo como princiacutepio mas por aquilo que elas mesmas satildeo utilizando-as

assim como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο) indo ateacute o natildeo-

hipoteacutetico o princiacutepio de tudo De posse do que se apreendeu desse princiacutepio uacuteltimo

retornar na direccedilatildeo de uma conclusatildeo usando as ideias e natildeo as sensaccedilotildees chegando

assim a outras ideias (ηειεπηᾷ εἰο εἴδε) Tal procedimento eacute dado pela potecircncia

dialeacutetica da razatildeo51

que exprime as potencialidades da alma no que se refere agrave

capacidade de cogniccedilatildeo

Vaacuterias satildeo as questotildees que se deve analisar a partir desse trecho Deve-se

comeccedilar por verificar o sentido de hipoacutetese que a ciecircncia dialeacutetica tem em vista e o uso

que faz delas Por conhececirc-las verdadeiramente por saber no que elas consistem o

dialeacutetico procede de acordo com o gecircnero inteligiacutevel Ele utiliza as hipoacuteteses como

hipoacuteteses ou seja sem atribuir a elas maior valor cognitivo e sem tomaacute-las como

axiomas como acontecia no meacutetodo de demonstraccedilatildeo Do mesmo modo natildeo satildeo tidas

pelo filoacutesofo como princiacutepio uacuteltimo a partir do qual se deve iniciar uma inquiriccedilatildeo

tampouco constituem a conclusatildeo do processo cognitivo constituindo apenas graus a

serem superados para que se chegue a um princiacutepio irrefutaacutevel Note-se que a definiccedilatildeo

de hipoacutetese eacute dada por analogia e no que se refere a sua funccedilatildeo dentro do meacutetodo Tal

perspectiva importa observar natildeo a concebe necessariamente nos termos de um

51 O termo ldquorazatildeordquo para a traduccedilatildeo de ιόγνο parece de acordo com os propoacutesitos da descriccedilatildeo da

atividade dialeacutetica O trecho potildee em evidecircncia a distinccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico que diferentemente do

meacutetodo de demonstraccedilatildeo utiliza exclusivamente elementos racionais em toda a sua capacidade de

apreensatildeo Deve-se ter em vista que a palavra ldquorazatildeordquo parece sintetizar assim o alcance cognitivo do

meacutetodo e da potencialidade intelectual da alma do filoacutesofo

78

conceito podendo ser elas proposiccedilotildees ou axiomas A posiccedilatildeo de intermediaacuterias no

movimento de ascese chama atenccedilatildeo para sua utilidade no que se refere ao

procedimento dando a sugestatildeo desse modo de que pode consistir em uma proposiccedilatildeo

qualquer proacuteximo do que tambeacutem se encontra no Feacutedon (Fed 100d)52

justificando por

isso uma averiguaccedilatildeo do seu fundamento Evidentemente a criacutetica ao procedimento

matemaacutetico parece tomar como hipoacuteteses os axiomas e conceitos matemaacuteticos do

mesmo modo o dialeacutetico do livro VI parece considerar apenas as ideias Todavia este

tipo de abordagem coloca em foco o seu uso apontando-as antes de tudo como os

meios que conduzem o pensamento a um grau maior de cogniccedilatildeo Mesmo que se trate

de conceitos enquanto hipoacuteteses natildeo satildeo vistas em seu valor cognitivo jaacute que sua

natureza inteligiacutevel natildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo Conveacutem compreender assim que

diferentemente dos matemaacuteticos para o dialeacutetico importa averiguaacute-las em sua natureza

rumo agrave ideia mais importante sendo esta a caracteriacutestica do pensamento posta em

destaque nesse procedimento

Como se vecirc natildeo se deve atribuir a elas um estatuto de princiacutepio devendo ter

por isso seu conteuacutedo cognitivo questionado ateacute que se chegue ao seu fundamento No

fundamento delas e de tudo (Rep 511b7) no ponto mais alto estaacute a ideia do bem

Parece ser nesse sentido que as hipoacuteteses se mostram os meios para chegar ao princiacutepio

de tudo pois se apresentam como elementos transitoacuterios de modo que se faz necessaacuterio

investigar uma a uma sucessivamente

A passagem entre hipoacuteteses que se eleva para outras ideias eacute dada nos termos de

um movimento ascendente tal como sugerem ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο no qual se

apreende o natildeo-hipoteacutetico Haacute uma notaacutevel progressatildeo nesse movimento dada a

superaccedilatildeo de um elemento provisoacuterio para um elemento basilar o que natildeo se via no

meacutetodo de demonstraccedilatildeo Logo adiante descreve a finalizaccedilatildeo do processo como uma

volta (πάιηλ) do dialeacutetico pelas ideias uma vez que jaacute conheceu o fundamento de tudo

Nesse retorno o dialeacutetico termina por averiguar o que estaacute em questatildeo utilizando desta

vez as proacuteprias ideias valendo-se portanto de elementos inteligiacuteveis o que faz a

conclusatildeo a finalizaccedilatildeo do processo natildeo ser outra que tambeacutem uma ideia O dialeacutetico

tem em mira diferente do geocircmetra natildeo a existecircncia de objetos sensiacuteveis mas as

52 A hipoacutetese no Feacutedon natildeo deve ser compreendida tal como acontece no Liv VI apenas como uma

ideia a ser superada O contexto dialoacutegico em que surge o tema insinua hipoacutetese no sentido mais amplo o

qual compreende natildeo apenas elementos inteligiacuteveis como as ideias mas qualquer afirmaccedilatildeo que se usa

como premissa em uma investigaccedilatildeo De qualquer modo ambos diaacutelogos como se veraacute propotildee a

hipoacutetese como elemento usado no meacutetodo dialeacutetico que colabora para a ascensatildeo a um conhecimento ao

ser analisado e superado

79

proacuteprias ideias que satildeo os objetos inteligiacuteveis proacuteprios deste domiacutenio e que

fundamentam as noccedilotildees matemaacuteticas e os objetos dos niacuteveis antecedentes os objetos

fiacutesicos e as imagens53

Em termos cognitivos se vecirc um movimento linear ascende e a

permanecircncia em um niacutevel superior o qual consiste na saiacuteda das hipoacuteteses para a ideia e

da ideia para outras ideias Visto de outra maneira a compreensatildeo acerca da natureza da

hipoacutetese tal como sugere a dialeacutetica permite a apreensatildeo da ideia que a fundamenta e

potildee o pensamento assim a trabalhar apenas com ideias o que constitui uma elevaccedilatildeo

da atividade inteligente

Deve-se observar no que consiste o tracircmite entre ideias que constitui o meacutetodo

dialeacutetico e a noccedilatildeo de inteligibilidade aiacute envolvida Com a distinccedilatildeo das ideias em

comparaccedilatildeo agraves hipoacuteteses agora o meacutetodo apresenta o procedimento de maneira

condizente com a natureza inteligiacutevel delas A consequecircncia do detalhamento desta

ciecircncia apropriada para a aquisiccedilatildeo do conhecimento e para a frequentaccedilatildeo no domiacutenio

inteligiacutevel eacute a sugestatildeo dos diferentes graus de cogniccedilatildeo e da capacidade intelectiva

inteligente no seu maacuteximo poder de apreensatildeo Sendo as ideias o objeto especiacutefico do

inteligiacutevel a ascese mostra o trabalho do pensamento dado na sua autenticidade uma

vez que natildeo demanda qualquer auxiacutelio de recursos sensiacuteveis como as imagens o que

culmina na cogniccedilatildeo do fundamento inteligiacutevel e portanto no conhecimento maacuteximo

o da realidade A elucidaccedilatildeo acerca do inteligiacutevel eacute um dos propoacutesitos da ciecircncia

dialeacutetica e assim determinar que eacute mais claro mais evidente o que refere ao ser e agrave

contemplaccedilatildeo do inteligiacutevel em comparaccedilatildeo agrave evidecircncia da matemaacutetica e da geometria

denominadas teacutecnicas eacute uma tarefa (ἔξγνλ) do dialeacutetico (Rep 511c4-6)

Desse modo diferenciaccedilotildees importantes satildeo realizadas em torno das atividades

(ἔξγνλ) das disciplinas e das suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel As teacutecnicas tomam as

hipoacuteteses como princiacutepio operam somente com hipoacuteteses e impotildeem a atividade

cognitiva ao modo de um raciociacutenio Desse modo matemaacuteticos e geocircmetras natildeo tecircm

(ἴζρσ) inteligecircncia mesmo que os seres com os quais lidam sejam inteligiacuteveis e

portanto tenham relaccedilatildeo com o princiacutepio o ser inteligiacutevel (Rep 511d1) A relaccedilatildeo que

a matemaacutetica manteacutem com o inteligiacutevel eacute portanto desprovida do grau maacuteximo de

inteligibilidade diferente da dialeacutetica dita ser propriamente uma ciecircncia (ἐπηζηήκε)

53 Rep511b7-c2 ldquo() Num movimento inverso por sua vez presa a tudo que depende desse princiacutepio

vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias

ideias por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (ἁςάκελνο αὐηο πάιηλ αὖ

ἐρόκελνο ηῶλ ἐθείλεο ἐρνκέλσλ νὕησο ἐπὶ ηειεπηὴλ θαηαβαίλῃ αἰζζεηῷ παληάπαζηλ νὐδελὶ

πξνζρξώκελνο ἀιι εἴδεζηλ αὐηνῖο δη αὐηῶλ εἰο αὐηά θαὶ ηειεπηᾷ εἰο εἴδε)rdquo

80

Para compreender a noccedilatildeo de ἐπηζηήκε que acompanha o meacutetodo dialeacutetico isto que

parece ser o niacutevel maacuteximo de cogniccedilatildeo possiacutevel no inteligiacutevel deve-se verificar a noccedilatildeo

de inteligecircncia que se pode ter a partir do que mostram as comparaccedilotildees entre dialeacutetica e

matemaacutetica Desse modo cabe voltar agrave definiccedilatildeo de imagem como a imitaccedilatildeo (κηκήζηο)

do inteligiacutevel que parece se completar apoacutes a introduccedilatildeo da ideia (Rep 510b4)

Haja vista que a imitaccedilatildeo consiste na semelhanccedila de um original na imagem

derivada de um objeto vale verificar tal definiccedilatildeo agrave luz dos objetos inteligiacuteveis que por

serem tais apresentam-se em sua realidade inteligiacutevel diferentemente dos objetos das

outras seccedilotildees da linha Dito ser a imagem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel tem-se duas

consequecircncias para a relaccedilatildeo que se estabelece entre os objetos das seccedilotildees A primeira

diz respeito ao tipo de relaccedilatildeo que vista nestes termos sugere 1) que todos os objetos

satildeo relacionados entre si o de menor grau de clareza constituindo a imitaccedilatildeo do objeto

da seccedilatildeo subsequente de maior grau e 2) os objetos de todas as seccedilotildees estatildeo

relacionados agrave ideia objeto inteligiacutevel do niacutevel mais alto Em termos mais explicativos

as imagens satildeo imitaccedilotildees dos objetos fiacutesicos os objetos fiacutesicos por sua vez satildeo

imitaccedilotildees das ideias inteligiacuteveis as quais aparecem na matemaacutetica como conceitos Da

mesma maneira as imagens por imitarem os objetos sensiacuteveis e esses por sua vez ao

constituiacuterem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel revelam que os objetos de todos os niacuteveis satildeo

derivados do inteligiacutevel e recebem por conta disso a realidade Tal encadeamento ao

mesmo tempo em que coloca o inteligiacutevel como causa dos objetos sensiacuteveis confere ao

sensiacutevel a condiccedilatildeo de reflexo do inteligiacutevel

Essa anaacutelise tem consequecircncias importantes A primeira consiste na explicaccedilatildeo

em certa medida da diferenciaccedilatildeo de grau de conhecimento da realidade e o grau de

manifestaccedilatildeo desta realidade entre os objetos de cada seccedilatildeo e entre os domiacutenios A

segunda na evidente intenccedilatildeo da linha em mostrar a importacircncia do meacutetodo e por

consequecircncia a especificidade de cada operaccedilatildeo cognitiva O conhecimento a partir dos

objetos do sensiacutevel se exclui agrave medida que eles consistem na imagem de outros que

podem ser tambeacutem reflexos onde se tem entatildeo as duas situaccedilotildees a coacutepia do inteligiacutevel

e a coacutepia da coacutepia Assim a realidade tal como manifesta o domiacutenio sensiacutevel natildeo pode

ser via para o conhecimento porque todo ele eacute uma coacutepia uma imagem do domiacutenio

inteligiacutevel sendo pertinente considerar a realidade nessa seccedilatildeo somente do aspecto da

existecircncia Pelo que se vecirc os conceitos geomeacutetricos tratam de inteligiacuteveis com

determinadas caracteriacutesticas que permitem dar tratamento inteligente ao sensiacutevel mas

sobre as quais os geocircmetras natildeo investigam devidamente ou seja natildeo as apreende em

81

seu fundamento A realidade dos seres matemaacuteticos permanece preservada na penuacuteltima

seccedilatildeo da linha e o que coloca os conceitos da geometria em penuacuteltima posiccedilatildeo parece

ser na verdade o meacutetodo de apreensatildeo que aiacute se apresenta

Tal compreensatildeo eacute importante para o propoacutesito de uma pesquisa que versa sobre

o pensamento Ao ter as duas primeiras seccedilotildees como preacircmbulo para a elucidaccedilatildeo de

um domiacutenio inteligiacutevel e de um meacutetodo para a apreensatildeo dessa inteligibilidade as duas

uacuteltimas seccedilotildees se mostram o alvo da verdadeira questatildeo da linha dividida mostrar qual

eacute o verdadeiro objeto a ser conhecido as ideias e a forma de apreendecirc-lo Uma vez que

constituem os objetos no inteligiacutevel as ideias matemaacuteticas satildeo iguais agraves ideias da

dialeacutetica no que diz respeito agrave realidade mas aparecem de maneira desigual no que se

refere ao meacutetodo Isso explica provavelmente porque a partir da terceira parte da linha

se faz referecircncia ao meacutetodo natildeo havendo concomitantemente uma comparaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos com as ideias da uacuteltima seccedilatildeo como acontecia entre imagem e

objeto original nas duas primeiras partes No inteligiacutevel o foco se volta para a operaccedilatildeo

da alma dito raciociacutenio e inteligecircncia respectivamente expressos pelo meacutetodo

demonstrativo e dialeacutetico Nesse sentido os termos potecircncia dialeacutetica e ter inteligecircncia

se justificam dado que estatildeo em relevo os modos de atuaccedilatildeo da alma e as condiccedilotildees

para o conhecimento nas operaccedilotildees que exprimem os meacutetodos Assim ao apreender as

ideias o meacutetodo dialeacutetico apreende a realidade enquanto os matemaacuteticos mesmo

lidando com elas natildeo as compreendem em sua realidade

Outra distinccedilatildeo do tipo de abordagem e uso das ideias que o dialeacutetico realiza em

comparaccedilatildeo ao geocircmetra estaacute na descida ou melhor na finalizaccedilatildeo do processo Por

apreender as ideias o dialeacutetico se mostra capaz de utilizaacute-las como referecircncia em uma

inquiriccedilatildeo ou seja capaz de abordar o objeto em questatildeo tendo em vista o seu

fundamento inteligiacutevel a ideia que lhe confere realidade Ao compreender este

fundamento o dialeacutetico mostra que compreende a realidade da ideia ou seja mostra

que reconhece o que eacute verdadeiro acerca do objeto em questatildeo Todo este movimento

que remonta a cogniccedilatildeo eacute dito ter inteligecircncia e eacute nesse sentido que a conhecimento que

acompanha a dialeacutetica deve ser compreendida como o conhecimento do verdadeiro

fundamento da ideia que embasa os objetos Em outras palavras conhecer a ideia eacute ao

mesmo tempo apreender a realidade e a verdade do termo em questatildeo

A partir da compreensatildeo do meacutetodo dialeacutetico se pode iniciar uma caracterizaccedilatildeo

da λόεζηϛ o processo cognitivo de apreensatildeo da ideia proacuteprio do meacutetodo dialeacutetico

Tem-se assim as seguintes caracteriacutesticas 1) realiza dois movimentos a) ascese

82

superaccedilatildeo das hipoacuteteses b) descida averiguaccedilatildeo das hipoacuteteses a partir do princiacutepio e

conclusatildeo 2) apreende a realidade inteligiacutevel que se diz ldquoo ser inteligiacutevelrdquo e ldquoideiardquo

(ηὸ ὄληνο εἴδε) 3) utiliza a ideia como princiacutepio 4) eacute promovida pela potecircncia

dialeacutetica da razatildeo (ιόγνο) Diferentemente do raciociacutenio a inteligecircncia opera a partir e

exclusivamente com elementos inteligiacuteveis sendo tal procedimento referido nos termos

da contemplaccedilatildeo54

Ter inteligecircncia e contemplar se referem a esta apreensatildeo no mais

alto grau conferindo agrave δηάλνηα assim a posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a δόμα e o λνῦο55

Tem-se desse modo a posiccedilatildeo dos meacutetodos situados segundo a divisatildeo da linha

dividida Cada meacutetodo mostra uma capacidade de apreensatildeo que oferece o

conhecimento de determinada perspectiva ou como jaacute referido antes em algum grau

Parece claro que a cogniccedilatildeo estaacute subordinada em certa medida ao objeto que o meacutetodo

tem em vista e que esse uacuteltimo seraacute o responsaacutevel por apreendecirc-lo Em outras palavras

do meacutetodo depende a cogniccedilatildeo pois a partir dele seraacute dada ou natildeo a perspectiva e a

operaccedilatildeo inteligente Deve-se notar antes de maiores conclusotildees sobre a λόεζηϛ e

mesmo sobre a δηάλνηα que a passagem 511c3-d6 termina por classificar tais operaccedilotildees

dadas pelo meacutetodo como disposiccedilotildees ἕμηο Tal maneira de se referir ao fazer da

geometria e indiretamente da inteligecircncia supotildee uma condiccedilatildeo permanente um estado

que oferece condiccedilotildees de proceder segundo mostrou cada meacutetodo Vale assim verificar

a partir do livro VII o significado desta elevaccedilatildeo do pensamento e acompanhar os

passos dessa ascese intelectual Do mesmo modo verificar as consequecircncias cognitivas

e morais que formam o caraacuteter do filoacutesofo

54 Rep 511c5-7 ldquoQueres determinar que o conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da

dialeacutetica eacute mais claro () e os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o

pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ

ζεσξνύκελνλ ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη)rdquo

55 Rep 511d4 ldquoParece-me que chamas pensamento a disposiccedilatildeo dos que estudam geometria e ciecircncias

afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo inteligecircncia jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a

opiniatildeo e a inteligecircncia (δηάλνηαλ δὲ θαιεῖλ κνη δνθεῖο ηὴλ ηῶλ γεσκεηξηθῶλ ηε θαὶ ηὴλ ηῶλ ηνηνύησλ

ἕμηλ ἀιι νὐ λνῦλ ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ νὖζαλ)rdquo Note-se a ediccedilatildeo brasileira traduz

δηάλνηα por ldquociecircnciardquo termo que para os propoacutesitos de nossa anaacutelise natildeo parece o mais adequado A

ediccedilatildeo inglesa prefere ldquoentendimentordquo (understanding) traduccedilatildeo que tambeacutem natildeo eacute afim embora

evidentemente correta com o aspecto ativo-passivo do pensamento tal como se tem analisado na linha

Uma sugestatildeo de traduccedilatildeo de acordo com o que pretende por em relevo nesse trabalho seria ldquoA mim

pareces chamar raciociacutenio a disposiccedilatildeo dos geocircmetras e de estudos desse tipo mas natildeo inteligecircncia sendo

o raciociacutenio algo intermediaacuterio entre a opiniatildeo e a inteligecircnciardquo Trabattoni comenta sobre os a

dificuldade de atribuir um sentido e uma traduccedilatildeo riacutegida aos quatro estados citados na linha e em resumo

acerca da diaacutenoia afirma que o texto natildeo autoriza uma traduccedilatildeo por ldquoconhecimento discursivordquo Conf

Trabattoni F op cit p 158

83

33 A funccedilatildeo da dialeacutetica

Referidos como ldquopoucosrdquo (ηηλεο ὀιίγνη Rep 531e2) denotando assim o

aspecto incomum de tal capacidade intelectiva (Rep 531e2) o que o texto mostra sobre

os filoacutesofos agora ditos dialeacuteticos no livro VII e sobre a dialeacutetica termina por explicar a

relaccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel e as significativas diferenccedilas acerca dos meacutetodos das

disciplinas Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico inicia no livro VII

anunciando duas das caracteriacutesticas do seu procedimento reconhecer traccedilos inteligiacuteveis

comuns entre os objetos que se analisa (Rep 531d1-2) e dar e receber ιόγνϛ (Rep

531e4-5)

ldquo- Entatildeo Glaucon falei essa jaacute eacute a proacutepria melodia que a

dialeacutetica executa Essa melodia embora soacute a razatildeo possa apreendecirc-

la seria imitada pela faculdade da visatildeo (νὗηνο ἤδε αὐηόο ἐζηηλ ὁ

λόκνο ὃλ ηὸ δηαιέγεζζαη πεξαίλεη ὃλ θαὶ ὄληα λνεηὸλ κηκνῖη ἂλ ἡ ηο

ὄςεσο δύλακηο) que diziacuteamos tenta lanccedilar seu olhar para os

animais para os astros e por fim ao proacuteprio sol (πξὸο αὐηὸλ ηὸλ

ἥιηνλ) Assim tambeacutem quando apenas com a dialeacutetica sem contar

com todos os sentidos algueacutem tentar lanccedilar-se por meio da razatildeo

em busca da essecircncia de cada coisa (νὕησ θαὶ ὅηαλ ηηο ηῷ

δηαιέγεζζαη ἐπηρεηξῆ ἄλεπ παζῶλ ηῶλ αἰζζήζεσλ δηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐπ

αὐηὸ ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ ) e natildeo desiste antes que apreenda soacute pela

inteligecircncia o que eacute o proacuteprio bem (ἂλ θαὶ κὴ ἀπνζηῆ πξὶλ ἂλ αὐηὸ ὃ

ἔζηηλ ἀγαζὸλ αὐηῆ λνήζεη ιάβῃ) ele chega ao limite do inteligiacutevel

como naquele momento aquele outro chegava ao limite do visiacutevel (ἐπ

αὐηῷ γίγλεηαη ηῷ ηνῦ λνεηνῦ ηέιεη ὥζπεξ ἐθεῖλνο ηόηε ἐπὶ ηῷ ηνῦ

ὁξαηνῦ)rdquo (Rep 532a1-b1)

Vaacuterios satildeo os aspectos que se pode analisar acerca do perfil dos dialeacuteticos e por

consequecircncia da proacutepria λόεζηϛ a partir desse argumento Deve-se dar atenccedilatildeo

primeiramente ao modo como eacute posta a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel segundo a

explicaccedilatildeo acerca da capacidade de apreensatildeo do inteligiacutevel pela dialeacutetica (ηὸ

δηαιέγεζζαη δηαιεθηηθή) e da sua independecircncia em relaccedilatildeo ao sensiacutevel Sem recorrer

aos dados da sensibilidade o dialeacutetico apreende o ser do objeto examinado atraveacutes da

razatildeo utilizando-se apenas da faculdade inteligiacutevel a λόεζηϛ Os oacutergatildeos da

sensibilidade e o visiacutevel tecircm notavelmente sua atuaccedilatildeo definida como imitaccedilatildeo da

inteligecircncia e do inteligiacutevel sendo ao que tudo indica uma coacutepia do modus operandi

do domiacutenio real - tal como foi dito ser o caso das imagens no livro VI atraveacutes das quais

84

se verificou que os objetos do niacutevel mais baixo constituiacuteam uma imitaccedilatildeo dos objetos do

niacutevel superior (Rep 510b4) Desta vez o plano inteligiacutevel eacute dado explicitamente como

referecircncia para o visiacutevel cuja relaccedilatildeo o dialeacutetico eacute capaz de reconhecer A perspectiva

do dialeacutetico ao lanccedilar o olhar para o sensiacutevel eacute diferente dos demais por conseguir

distinguir e situar devidamente os dois planos ao ter em vista do conhecimento da ideia

do bem Ele estaacute livre de cometer o equiacutevoco dos demais por buscar sempre o

inteligiacutevel mesmo quando se volta para o que eacute da ordem do visiacutevel A elevaccedilatildeo do

sensiacutevel exige pelo que se observa o reconhecimento do inteligiacutevel no que eacute visiacutevel

sendo indispensaacutevel para isso o exerciacutecio intelectual que as matemaacuteticas oferecem

cujos objetivos versam mais uma vez sobre ldquo() elevar a melhor parte da alma (νῦ

βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ) ateacute a contemplaccedilatildeo do que haacute de excelente nos seres (ηνῦ ἀξίζηνπ ἐλ

ηνῖο νὖζη) ()rdquo (Rep 532c3-6)

Assim a passagem do plano visiacutevel na direccedilatildeo do ponto mais alto do inteligiacutevel

tal como explora na alegoria da caverna recebe com esta nova exposiccedilatildeo do exerciacutecio

dialeacutetico uma elucidativa explicaccedilatildeo nos termos ontoloacutegicos suscitados no argumento

acerca das matemaacuteticas Uma vez que se tem como procedimento ldquo() olhar para as

imagens divinas na aacutegua e para as sombras dos seres (πξὸο δὲ ηὰ ἐλ ὕδαζη θαληάζκαηα

ζεῖα θαὶ ζθηὰο ηῶλ ὄλησλ) mas natildeo para as sombras das figuras (εἰδώισλ ζθηὰο)

projetadas por essa outra luz ()rdquo (Rep 532c1-2) cabe analisar a presenccedila do

inteligiacutevel no visiacutevel tal como o texto apresenta

Todavia antes de verificar este dado vale examinar acerca da dialeacutetica O texto

descreve a potecircncia dialeacutetica (ὁ ηξόπνο ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη δπλάκεσο Rep532d8) no

que se refere ao seu gecircnero e percurso Na condiccedilatildeo de etapa final do processo de

ascensatildeo conduz para o fim e para o repouso56

Do mesmo modo constitui o estaacutegio do

pensamento no qual se apreende natildeo mais as imagens reflexo do inteligiacutevel mas a

verdade ou seja uma caracteriacutestica inteligiacutevel na ordem visiacutevel (Rep 533a2-3) A

apreensatildeo do ser (πέξη ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ Rep 533b1) consiste na caracteriacutestica exclusiva

da dialeacutetica tendo as outras disciplinas como se viu outros objetivos e portanto outro

grau de apreensatildeo

ldquo- Isso pelo menos disse eu ningueacutem nos contestaraacute se dissermos

que nenhum outro meacutetodo tenta sistematicamente apreender em cada

56 Rep 532e3 ldquoEsses caminhos ao que parece jaacute estariam conduzindo para o lugar onde algueacutem laacute

chegado acharia o repouso da viagem e o teacutermino da caminhada (ὁδνῦ ἀλάπαπια ἂλ εἴε θαὶ ηέινο ηο

πνξείαο)rdquo

85

coisa o que ela eacute Ao contraacuterio todas as outras artes se referem a

opiniotildees e desejos dos homens ou estatildeo todas elas voltadas para

processos de geraccedilatildeo ou composiccedilatildeo ou para cuidados com produtos

naturais ou artificiais (ἄιιαη πᾶζαη ηέρλαη ἢ πξὸο δόμαο ἀλζξώπσλ

θαὶ ἐπηζπκίαο εἰζὶλ ἢ πξὸο γελέζεηο ηε θαὶ ζπλζέζεηο ἢ πξὸο

ζεξαπείαλ ηῶλ θπνκέλσλ ηε θαὶ ζπληηζεκέλσλ ἅπαζαη ηεηξάθαηαη)

Quanto agraves restantes as que segundo afirmamos apreendem algo do

ser (ἃο ηνῦ ὄληνο ηη ἔθακελ ἐπηιακβάλεζζαη) isto eacute a geometria e as

que dela derivam vemos que elas sonham com o ser mas despertas

natildeo lhes eacute possiacutevel vecirc-lo enquanto usando hipoacuteteses deixam-no

intocado porque satildeo incapazes de prestar contas sobre elas (ὡο

ὀλεηξώηηνπζη κὲλ πεξὶ ηὸ ὄλ ὕπαξ δὲ ἀδύλαηνλ αὐηαῖο ἰδεῖλ ἕσο ἂλ

ὑπνζέζεζη ρξώκελαη ηαύηαο ἀθηλήηνπο ἐῶζη κὴ δπλάκελαη ιόγνλ

δηδόλαη αὐηῶλ) Quando se tem como princiacutepio (ἀξρὴ) aquilo que se

desconhece e o fim e o meio estatildeo entretecidos com o que se

desconhece que expediente haveria para que tal acordo um dia viesse

a tornar-se ciecircncia

- Nenhum disse elerdquo (Rep 533b-c5)

Apreender apenas algo do ser (ηνῦ ὄληνο ηη) e a incapacidade de dar a razatildeo

(ιόγνλ δηδόλαη) do que se apreende demonstram a impotencialidade cognitiva das outras

disciplinas aqui referidas como ηέρλαη Tal incapacidade eacute atribuiacuteda ao uso equivocado

das hipoacuteteses como se viu tendo-se por consequecircncia apenas uma apreensatildeo parcial

do ser Este ldquoalgo do serrdquo ao que tudo indica refere-se aos nuacutemeros conceitos e

relaccedilotildees que as matemaacuteticas apreendem mas que por essas natildeo terem em vista o

princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico tomam apenas algumas caracteriacutesticas dos objetos

examinados Sendo impossiacutevel para elas reconhecer integralmente o que eacute cada coisa

natildeo alcanccedilam o ser Ao natildeo atingirem o ser natildeo satildeo capazes de dar a razatildeo delas isto eacute

de reconhecer e expor de maneira igualmente racional as relaccedilotildees inteligiacuteveis que dizem

respeito a dado objeto uma vez que o meacutetodo estaacute comprometido ao natildeo reconhecer o

princiacutepio (Rep 533c2-5)

Tal como sugerem as uacuteltimas linhas do excerto nas quais se verifica a falta de

clareza acerca das etapas do meacutetodo da geometria o encadeamento racional que o

meacutetodo deve realizar na cogniccedilatildeo natildeo pode ser remontado por aquele que natildeo conheceu

o princiacutepio Dar explicaccedilatildeo se efetua adequadamente quando o encadeamento

(ζπκπιέθσ) das etapas do processo de cogniccedilatildeo acerca de algo leva ao conhecimento da

essecircncia e assim ambos ser e meacutetodos podem ser expostos em uma explanaccedilatildeo pois

se tem uma perspectiva da totalidade (ζπλνπηηθόο) do que se examina (Rep 537c6-7)

Em outros termos dada a apreensatildeo do ser eacute possiacutevel reconstituir a ordem das relaccedilotildees

que se estabelece ao longo deste processo cognitivo que conduziu agrave essecircncia pois se

86

tem nele o princiacutepio a partir do qual se constitui o conhecimento (ἐπηζηήκε) de algo

Diante disso implicados o fim e o intermezzo do processo com o princiacutepio a apreensatildeo

do princiacutepio determina a orientaccedilatildeo nessas etapas e os resultados O conhecimento do

ser se mostra portanto indispensaacutevel para ter um conhecimento no niacutevel da ἐπηζηήκε e

ao mesmo tempo ser capaz de dar a explicaccedilatildeo a demonstraccedilatildeo desse conhecimento

Somente o dialeacutetico portanto pode demonstrar tal conhecimento e realizar em

um sentido inverso o qual tem em vista a ideia uma apreensatildeo atraveacutes da razatildeo (δηὰ

ηνῦ ιόγνπ) diferentemente dos matemaacuteticos cujo meacutetodo natildeo demonstra o ser mas as

hipoacuteteses das quais partiram

O uso das hipoacuteteses ao modo matemaacutetico natildeo visa superar a forma axiomaacutetica

com que utiliza os elementos e os preceitos ndash a exemplo do que se averiguou no

argumento acerca dos nuacutemeros - diferentemente da ascensatildeo dialeacutetica que ultrapassa

este niacutevel ao colocaacute-los em questatildeo buscando seu fundamento O fundamento a

essecircncia do que se investiga eacute ao mesmo tempo dado na explicaccedilatildeo agrave medida que se

tem a reconstituiccedilatildeo de sua apreensatildeo na dialeacutetica visto que aiacute natildeo se confunde ser com

hipoacutetese O dialeacutetico sabe identificar hipoacutetese e essecircncia dando a cada uma a posiccedilatildeo

que lhe cabe dentro do meacutetodo57

e portanto a ordem para tal reconstituiccedilatildeo racional

como parece constituir o ιόγνο segundo este argumento

ldquo- Entatildeo disse eu soacute o meacutetodo dialeacutetico eliminando as

hipoacuteteses caminha por aiacute na direccedilatildeo do proacuteprio princiacutepio a fim de

dar firmeza aos resultados e realmente pouco a pouco vai

arrastando e levando para o alto o olho da alma que estaacute enterrado

57 Para tornar mais claro o que se propotildee acerca do discernimento do dialeacutetico vale trazer a

diferenciaccedilatildeo que Chen apresenta sobre hipoacuteteses matemaacuteticas e o natildeo-hipoteacutetico no interior do

argumento sobre a visatildeo do todo Ao considerar as hipoacuteteses matemaacuteticas como um ponto de partida para

a transposiccedilatildeo da penuacuteltima etapa e para a ascensatildeo agrave visatildeo do bem o autor apresenta o que entende ser

as razotildees para que isso se ocorra ldquoNo primeiro caso por conta de sua caracteriacutestica essencial de ser

hipoteacutetico no segundo dada a sua propriedade comum de ser semelhante ao bem Como premissas elas

estatildeo relacionadas agrave ideia do bem como hipoacuteteses para um anhypotheton Ser anhypotheton eacute somente um

dos aspectos da ideia como o princiacutepio do todo a visatildeo dela nesse aspecto natildeo mostra sua completa

natureza Mas como eles tambeacutem tecircm a propriedade de ser semelhante ao bem (good-like) assim como os

casos do bem que o acompanham (fellow-instances) fazem veem juntas estas hipoacuteteses neste aspecto e os

casos do bem que o acompanham e desse modo terminaria na visatildeo desta ideia em todos os seus

aspectosrdquo Chen op cit p 172 A visatildeo do todo se deve segundo o autor agrave semelhanccedila do que eacute derivado

do bem e agraves hipoacuteteses que conduzem agrave hipoacutetese maior Postas como premissas em contraste com o natildeo-

hipoteacutetico ver as hipoacuteteses em conjunto como faz o dialeacutetico faz identificar a relaccedilatildeo delas com o bem

conduzindo a alma a visatildeo dele Esse discernimento do dialeacutetico tal como explica Chen mostra a

capacidade de superaccedilatildeo das hipoacuteteses ao vecirc-las no seu fundamento inteligiacutevel o que conforme tem sido

analisado eacute dado exclusivamente pela apreensatildeo do traccedilo inteligiacutevel que exprime a relaccedilatildeo do objeto em

questatildeo com o bem Embora o comentaacuterio ofereccedila a ideia de que a visatildeo do todo se daacute a partir de uma

visatildeo de conjunto os exames feitos ateacute aqui apontam muito mais para um equacionamento no qual se

apreende o inteligiacutevel do que para um apanhado de hipoacuteteses o que ficaraacute mais claro na anaacutelise acerca da

ζύλνςηο

87

em um pacircntano baacuterbaro tendo como colaboradoras e auxiliares

nessa conversatildeo as artes de que falamos Muitas vezes por haacutebito as

chamamos de ciecircncia mas carecem de outro nome que seja mais

niacutetido que o de opiniatildeo e mais impreciso que o de ciecircncia jaacute a

definimos como pensamento (δηάλνηαλ δὲ αὐηὴλ ἔλ γε ηῷ πξόζζελ πνπ

ὡξηζάκεζα) numa passagem anterior de nossa discussatildeo Natildeo se

trata poreacutem parece-me de uma disputa sobre um nome mas do

exame de questotildees tatildeo importantes quanto as que temos diante de noacutes

- Natildeo se trata disse [Basta-nos um nome que faccedila ver claramente

nosso pensamento (Ἀιι ὃ ἂλ κόλνλ δεινῖ πσο ηὴλ ἕμηλ ζαθελείᾳ

ιέγεηλ ἐλ ςπρῆ ltἀξθέζεη)]rdquo (Rep534c7-e6)

Conveacutem notar desse modo que o uso do ιόγνο aparece nesse argumento como

um procedimento formal do conhecimento o qual descreve formalmente os

movimentos da aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε pelo meacutetodo dialeacutetico58

O ιόγνο cabe reparar eacute

dado na medida em que acompanha a aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja constitui-se

como forma que expressa a coerecircncia do pensar na operaccedilatildeo dialeacutetica sendo

dependente portanto da apreensatildeo do fundamento natildeo-hipoteacutetico para ser enquanto tal

Sem a atividade entre ideias natildeo se chega agrave ideia do bem e por consequecircncia natildeo se

tem um ιόγνο que por natildeo ser coerente com ela seja capaz de dizecirc-la Desse modo um

exame acerca da racionalidade em seus vaacuterios niacuteveis procedimentos uacuteteis para o

conhecimento e alcance cognitivo satildeo indispensaacuteveis uma vez que se reconhece aiacute que

a forma loacutegica estaacute condicionada ao seu objeto maior e natildeo o contraacuterio Tem-se com as

explanaccedilotildees acerca da dialeacutetica uma definiccedilatildeo de ιόγνο filosoacutefico distinto dos demais

por meio do qual satildeo expostas as operaccedilotildees no alto niacutevel de cogniccedilatildeo e portanto o

conhecimento segundo a filosofia59

58 Chen compreende igualmente o papel do ιόγνο ao dizer Correspondente agrave λνήζηϛ nesses dois

sentidos [ἐπηζηήκε e γλῶζηο] estatildeo dois aspectos da dialeacutetica dinacircmico e estaacutetico Tanto o exerciacutecio da

δύλακηο noeacutetica resulta no estado noeacutetico (γλῶζηο) quanto o exerciacutecio da δύλακηο ηνῦ δηαιέγεζζαη resulta

na ἐπηζηήκε ηνῦ δηαιέγεζζαη Dialeacutetica no seu aspecto estaacutetico eacute o sistema de tal conhecimento Dialeacutetica

no seu aspecto dinacircmico tem duas formas raciociacutenio e ζύλνςηο da qual resulta no conhecimento

dialeacutetico Chen op cit 1992 p 164 nota 10

59 As palavras de Chen elucidam a concepccedilatildeo de razatildeo segundo a filosofia que se pretende explicar ldquoSer

conhecimento natildeo deve apenas cumprir a exigecircncia de uma consistecircncia loacutegica deve tambeacutem indicar seu

referente como referente em sua realidaderdquo O que o autor chama de consistecircncia loacutegica vale dizer diz

respeito agrave conformidade da estrutura do argumento com seu referente o que foi notado aqui como

coerecircncia entre ser e explicaccedilatildeo Ele admite a partir de 533e que a conclusatildeo de um raciociacutenio

logicamente consistente pode carecer de seu referente o que natildeo constituiria uma ἐπηζηήκε de fato Sem

entrar em detalhes como uma estrutura se mostraria logicamente consistente nessas condiccedilotildees o que natildeo

eacute posto em questatildeo pelo texto importa ressaltar a importacircncia da definiccedilatildeo de ιόγνο que se daacute no final do

Livro VII para mostrar a noccedilatildeo de conhecimento que se defende a visatildeo do ser e da ideia possiacutevel

somente pela atividade Inteligente Natildeo se trata portanto de um aparato loacutegico de manuseio do discurso

semelhante agrave retoacuterica ou eriacutestica mas de uma sofisticaccedilatildeo no uso do ιόγνο que sirva para os propoacutesitos

epistecircmicos do filoacutesofo governante Chen op cit 1992 p 168 nota 3

88

Essa perspectiva confirma a distinccedilatildeo e a classificaccedilatildeo tal como mostrou a linha

dividida O que segue mostra os estados da alma os graus de cogniccedilatildeo e de suas

respectivas distinccedilotildees como vaacutelidas para uma compreensatildeo do que possa ser um estado

de clareza na alma60

A superaccedilatildeo filosoacutefica que se daacute na dialeacutetica narra natildeo se pode

perder de vista um refinamento da alma operada pelos modos inteligentes do

pensamento tal como mostrou a linha dividida e se analisaraacute com mais detalhes na

narrativa da caverna A investigaccedilatildeo dos argumentos vista nos Livros VI e VII tem em

perspectiva assim a elevaccedilatildeo inteligente que resulta no conhecimento e nas virtudes a

qual agora eacute dita pode-se compreender uma clareza nas accedilotildees da alma Tal clareza

envolve portanto operaccedilotildees gnosioloacutegicas as quais funcionam como exerciacutecio por

meio das artes matemaacuteticas para uma efetiva elevaccedilatildeo da alma Coerente com o que eacute

dito em 511c a ἕμηο dada nos termos de uma disposiccedilatildeo um estado permanente da alma

quer do geocircmetra quer do dialeacutetico tem evidenciado o grau de apreensatildeo com o qual a

alma opera segundo o meacutetodo que utiliza e do mesmo modo a clareza que tecircm acerca

dos objetos que examina Nesse sentido observe-se ao mesmo tempo o limite cognitivo

das artes matemaacuteticas justificando sua posiccedilatildeo intermediaacuteria dentre as atividades que

ascende ao conhecimento

Os esclarecimentos que se obteacutem com a explanaccedilatildeo sobre a dialeacutetica e sobre seu

meacutetodo (Rep 533e7-534a8) corroboram as acepccedilotildees sobre as atividades da alma

descritas na analogia da linha Compreendido que o dialeacutetico eacute o uacutenico capaz de

apreender a essecircncia e prestar contas sobre ela o que demonstra seu estado de λνῦο

(Rep 534b) fica evidente sua capacidade para falar sobre o bem e se torna

inegavelmente aceita a sua distinccedilatildeo intelectual e poliacutetica cuja conduta cientificista

pautada no conhecimento da ideia do bem deve servir de paracircmetro no ensino Note-se

que a postura do dialeacutetico frente a busca do bem eacute pautada no que o meacutetodo indica

deixando clara a relaccedilatildeo entre exerciacutecio intelectual o meacutetodo e a apreensatildeo dos

direcionamentos para a praacutetica poliacutetica que se realiza na experiecircncia do pensamento

ldquo-Entatildeo acontece o mesmo a respeito do bem se algueacutem natildeo for

capaz de definir pela razatildeo a ideia do bem distinguindo-a de todas as

outras e como num combate passando atraveacutes de todas as objeccedilotildees

natildeo estiver disposto a natildeo refutaacute-las segundo a opiniatildeo mas segundo

a essecircncia (κὴ θαηὰ δόμαλ ἀιιὰ θαη νὐζίαλ πξνζπκνύκελνο

60 Rep 534e2 ldquoἕμηλ ζαθελείᾳ ιέγεηλ ἐλ ςπρῆrdquo a traduccedilatildeo da ediccedilatildeo inglesa privilegia esse mesmo

sentido que se atribui agrave frase ldquo()[ provided only that it states what corresponds to the state of clarity in

the soul]rdquo ndashEmlyn-Jones e Preddy op cit p 177

89

ἐιέγρεηλ) natildeo atravessar todas essas dificuldades com uma razatildeo

inabalaacutevel (ἐλ πᾶζη ηνύηνηο ἀπηῶηη ηῷ ιόγῳ δηαπνξεύεηαη) se for essa

a postura dele natildeo afirmaraacutes que ele natildeo conhece nem o proacuteprio bem

nem algum outro bem Mas se apreende uma imagem do bem eacute pela

opiniatildeo que a apreende natildeo pela ciecircncia (ἀιι εἴ πῃ εἰδώινπ ηηλὸο

ἐθάπηεηαη δόμῃ νὐθ ἐπηζηήκῃ ἐθάπηεζζαη) e a vida de agora passa-

a sonhando e cochilando sem despertar antes de chegar ao Hades e

laacute dormir completamenterdquo (Rep 534b8-d1)

De posse da inteligecircncia o dialeacutetico tem condiccedilotildees de cumprir os dois

movimentos que o filoacutesofo governante deve realizar ascender e com isso apreender a

ideia do bem e descer ao niacutevel comum ao plano da opiniatildeo e da ignoracircncia

analogamente o das sombras para dizecirc-lo Assim parece se dar o desfecho acerca da

relaccedilatildeo da alma com as sensaccedilotildees no argumento que descreve a dialeacutetica O pensar

conforme mostra o meacutetodo dialeacutetico e a explicaccedilatildeo daacute-se mediante a habilidade de

reconhecer as relaccedilotildees inteligiacuteveis e operar atraveacutes de ideias quer no visiacutevel quer no

inteligiacutevel dado seu conhecimento do ser e da ideia do bem Tem-se definido com isso

o modo de operar e o niacutevel cognitivo da λόεζηϛ apoacutes as mesmas deifniccedilotildees sobre a

δηάλνηα como se viu no exame acerca das matemaacuteticas Da mesma maneira o texto

atribui o estatuto do λνῦο estado da alma em que se daacute o trabalho dialeacutetico o grau mais

elevado da cogniccedilatildeo que se pode ter sobre o bem

34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo

Para bem compreender o que se diz sobre a λόεζηϛ que aparece sugerida no

exerciacutecio de contemplaccedilatildeo da ideia do bem eacute necessaacuterio analisar o sentido de realidade

dos seres inteligiacuteveis e o fundamento natildeo-hipoteacutetico Vale remontar como esta questatildeo

foi introduzida no argumento da linha e como se deu a construccedilatildeo do sentido de

realidade inteligiacutevel tatildeo importante para especificar a operaccedilatildeo de apreensatildeo das ideias

que consiste no conhecimento e no contemplar ao modo dialeacutetico As primeiras

90

distinccedilotildees entre os domiacutenios feitas nos termos de niacutetido e natildeo niacutetido (ζαθελεία θαὶ

ἀζαθεία Rep 509d5) verdadeiro e natildeo verdadeiro (ἀιεζεία ηε θαὶ κή Rep 510a9)

que acompanham a divisatildeo visiacutevel-inteligiacutevel ganham explicaccedilotildees em termos

ontoloacutegicos com a noccedilatildeo de inteligibilidade do inteligiacutevel no seu expoente maior o

princiacutepio natildeo-hipoteacutetico Cabe notar que na exposiccedilatildeo do inteligiacutevel na seccedilatildeo que se

refere agrave geometria as noccedilotildees de princiacutepio e princiacutepio de tudo que exprime o

ἀλππνζέηνο parece ter sua funccedilatildeo latente antes de serem introduzidos o ser do

inteligiacutevel os objetos de contemplaccedilatildeo ndash(ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ ζεσξνύκελνλ) Ateacute

que sejam oferecidas algumas explicaccedilotildees sobre a realidade das ideias a noccedilatildeo de

princiacutepio natildeo tem o seu sentido completo pois natildeo recebe um parecer ontoloacutegico

condizente com a noccedilatildeo de fundamento que a criacutetica ao meacutetodo de demonstraccedilatildeo

sugere A noccedilatildeo de ἀξρή desvinculada da ideia natildeo eacute vista desse modo em sua

inteligibilidade ou seja em sua relaccedilatildeo com o inteligiacutevel dando margem a um tipo de

uso como se tem na geometria Dito de outro modo o princiacutepio de que fala a linha

consiste justamente nesta relaccedilatildeo que os conceitos possuem com o inteligiacutevel que

permite deste modo a cogniccedilatildeo Uma vez natildeo esclarecido o objeto fundador o

princiacutepio basilar dos conceitos que seraacute a ideia natildeo se pode conhecer o objeto em

questatildeo no seu aspecto inteligente Assim dito a cogniccedilatildeo consiste em ver do aspecto

inteligiacutevel oferecido pela ideia (εἴδε) tal como sugere a descida do dialeacutetico

Essa interpretaccedilatildeo parece afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo que o texto

apresenta ao definir a apreensatildeo de ideias como aquisiccedilatildeo inteligente (Rep 511c-d) O

contemplar a partir do meacutetodo dialeacutetico posiccedilatildeo maacutexima no alcance cognitivo consiste

em averiguar desta perspectiva especiacutefica das ideias que analisa o objeto em seu

aspecto inteligiacutevel ou seja em sua realidade A realidade exprime o ser inteligiacutevel dado

pela ideia que eacute visto claramente ou seja visto em sua realidade na contemplaccedilatildeo e

observado parcialmente no procedimento matemaacutetico Nesse sentido a criacutetica ao

meacutetodo demonstrativo mostra que eacute a perspectiva inteligiacutevel que se deve ter em vista

isto eacute a realidade atingiacutevel somente pela potecircncia do meacutetodo dialeacutetico e natildeo a

aparecircncia da realidade a exemplo do que se tem no sensiacutevel A verdade se refere a esta

realidade que exprime o ser inteligiacutevel e a clareza agrave capacidade de observaacute-la Note-se

que o apelo da perspectiva que exige o conhecimento define-se na medida em que

mostra a progressatildeo de uma seccedilatildeo a outra de um objeto a outro de uma perspectiva a

outra tal como se daacute na progressatildeo da hipoacutetese para a ideia da ideia para outras ideias

Ao chegar no niacutevel de clarividecircncia da realidade das ideias proacuteprio da contemplaccedilatildeo

91

chega-se ao princiacutepio dito tambeacutem o princiacutepio dos seres inteligiacuteveis - λνεηῶλ ὄλησλ

κεηὰ ἀξρο61

Examinar a partir do princiacutepio dessa articulaccedilatildeo com o inteligiacutevel

constitui a via para o conhecimento daquele que parece ser eleito o mais superior entre

todos o que a contemplaccedilatildeo mostra como o principio de tudo aquele que natildeo eacute posto

sob inspeccedilatildeo como uma hipoacutetese (ἀλππνζέηνο) visto que constitui o fundamento de

todas elas

O caraacuteter inteligente da λόεζηϛ se completa com tais elucidaccedilotildees sobre a

contemplaccedilatildeo Esta visatildeo do princiacutepio de tudo dado pelas ideias o qual natildeo se deve

perder de vista consiste tambeacutem em uma ideia a qual determina a perspectiva da

inteligecircncia que o conhecimento deve possuir Por outro lado a ascensatildeo a esse

princiacutepio de tudo e a investigaccedilatildeo a partir dele que se daacute no retorno do dialeacutetico mostra

o caraacuteter praacutetico da inteligecircncia e de todo o processo de cogniccedilatildeo no sentido de ser

conveniente a aplicaccedilatildeo dos termos em questatildeo Ascese e descida pelas ideias mostram

o movimento da inteligecircncia que tem como objetivo ver a realidade o ser em toda a sua

extensatildeo apreensiacutevel como fundamento de tudo e portanto como princiacutepio do

conhecimento

Natildeo se pode todavia deixar de fazer maiores questionamentos sobre o ser como

causa e o bem como causa de tudo tal como mostrou o encadeamento feito entre os

objetos das seccedilotildees da linha e a analogia do sol Na perspectiva do princiacutepio esta noccedilatildeo

de causa ganha o sentido de 1) origem de acordo com o que sugeriu a relaccedilatildeo original-

reflexo 2) referecircncia sugerida na perspectiva inferior das imagens 3) objeto real

conforme o que se viu na relaccedilatildeo original-reflexo e na exposiccedilatildeo sobre o inteligiacutevel As

trecircs acepccedilotildees que o ser e o bem assumem como princiacutepio mostra sob vaacuterios acircngulos o

ser que a ideia exprime Como origem ele confere existecircncia aos objetos que dele

derivam- outros objetos natildeo existiriam se natildeo o refletissem Desse modo assume a

condiccedilatildeo de referecircncia pois sendo a causa da existecircncia deve ser o objeto a ser

conhecido Ao ser o objeto do qual deriva todos os outros revela-se como o elemento

uacuteltimo e mais importante em uma cadeia de derivaccedilotildees sendo portanto o uacutenico objeto

real

Algumas conclusotildees parecem ser possiacuteveis sobre a cogniccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a

realidade do ser Em primeiro lugar com a linha didividida Platatildeo parece estar

61 Deve-se compreender λνεηῶλ ὄλησλ κεηὰ ἀξρο como a relaccedilatildeo que o dialeacutetico observa do princiacutepio

com o ser Tal sutileza nem sempre privilegiada pelas traduccedilotildees mostra o reconhecimento do princiacutepio

como a articulaccedilatildeo desta relaccedilatildeo e portanto ponto de partida para a cogniccedilatildeo Somente vinculado ao ser

se pode adquirir conhecimento o que mostra a importacircncia do ἐπ‟ ἀξρὴλ ζθνπεῖλ

92

interessado em afirmar o valor de realidade ou seja de inteligibilidade clareza e

verdade do ser os quais se mostram com as ideias no processo de cogniccedilatildeo Mostrar

esta perspectiva real ocircntica como o grau mais elevado (ἀλσηέξσ) pressupotildee um valor

neste contexto dito epistemoloacutegico e cognitivo Do mesmo modo tais atributos

conferidos agrave ideia objeto do pensamento confere valor ao que resulta dele o discurso

filosoacutefico A postura intelectualista do filoacutesofo e o seu governo adquirem valor desta

forma ao empreender o conhecimento desta realidade Nesse sentido a comparaccedilatildeo

com os geocircmetras constitui um exemplo bastante uacutetil A condiccedilatildeo de intermediaacuterio do

raciociacutenio natildeo possui o mesmo valor epistemoloacutegico e cognitivo no mesmo grau que a

inteligecircncia dialeacutetica uma vez que lhe escapa essa cadeia que mostra o ser como objeto

real Entretanto dado que as ideias matemaacuteticas possuem a mesma realidade que outras

seria razoaacutevel perguntar o que as coloca como intermediaacuterias O meacutetodo matemaacutetico e

os seus objetivos finais como visto Todavia possivelmente as qualidades que

apresentam as ideias da geometria devem justificar de algum modo a escolha de Platatildeo

em utilizar a matemaacutetica para contrapor aos dialeacuteticos

Haja vista a posiccedilatildeo e a importacircncia conferidas agrave ideia do bem para os

propoacutesitos poliacuteticos do filoacutesofo governante natildeo parece descabido questionar acerca das

matemaacuteticas se estas seriam igualmente adequadas para embasar os valores eacuteticos que o

filoacutesofo tem em mira uma vez que os inteligiacuteveis nas matemaacuteticas satildeo noccedilotildees que

permitem de acordo com a sua especificidade tratar o sensiacutevel Dito de outro modo o

conceito de iacutempar o par ou o quadrado dariam conta de originar outras ideias como a

ideia de justiccedila Ateacute aqui note-se que as ideias inteligiacuteveis do uacuteltimo niacutevel natildeo recebem

maiores especificaccedilotildees aleacutem das averiguadas seu grau maacuteximo de realidade apreensiacutevel

pela inteligecircncia Parece possiacutevel no entanto arriscar que existe uma diferenciaccedilatildeo

entre as ideias no que se refere agrave singularidade de cada uma como mostrou o exemplo

da geometria e que para os propoacutesitos poliacuteticos d‟A Repuacuteblica interessa uma divisatildeo e

um discernimento acerca das ideias que se pode alcanccedilar a partir de cada meacutetodo

dialeacutetico por ser possiacutevel reconhecer desse modo sua ligaccedilatildeo com o bem

93

IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento

Diante das especificaccedilotildees da atividade cognitiva conveacutem averiguar os resultados

desse empreendimento no que se refere agraves accedilotildees Desse modo os esclarecimentos sobre

as afecccedilotildees da alma no final do livro VI e os propoacutesitos e praacuteticas do pedagogo no livro

VII constituem um bom desfecho acerca do tema da excelecircncia do pensamento ao

apresentarem o percurso de sua aquisiccedilatildeo e o significado da superioridade da

inteligecircncia Parece necessaacuterio explicar como se concretizam os saberes adquiridos pelo

filoacutesofo e desse modo uma analogia que mostra a atividade racional do ponto de vista

do comportamento psiacutequico e da praacutetica da educaccedilatildeo parecem bastante uacuteteis Ver-se haacute

as tratativas da alma e os ganhos que ela tem com o exerciacutecio da filosofia como uma

resposta agrave frequentaccedilatildeo intelectual na realidade e na verdade dos inteligiacuteveis de modo a

deixar clara a caracteriacutestica ascendente do pensamento na condiccedilatildeo de inteligecircncia Do

mesmo modo no livro VII d‟ A Repuacuteblica se analisaraacute o pensar da perspectiva que

apresenta a cogniccedilatildeo e a ascensatildeo agrave condiccedilatildeo de excelecircncia nos termos de uma

experiecircncia Narrada na educaccedilatildeo do filoacutesofo tal enredo oferece uma visatildeo linear do

desenvolvimento da potecircncia intelectual e consequentemente da consumaccedilatildeo da

natureza filosoacutefica Eacute possiacutevel verificar os efeitos da relaccedilatildeo entre a alma e o inteligiacutevel

no empreendimento pedagoacutegico de modo a ter a λόεζηϛ como resultado da experiecircncia

de cogniccedilatildeo Assim a narrativa acerca da formaccedilatildeo do caraacuteter do filoacutesofo passa a

oferecer outros aspectos da aquisiccedilatildeo da inteligecircncia antes averiguada segundo o seu

meacutetodo e objeto especiacutefico

41 Operaccedilotildees e regras do pensamento

O discernimento que se teve ateacute o momento sobre o domiacutenio do pensamento e

seus meacutetodos distintos de cogniccedilatildeo seraacute visto agrave luz de quatro παζήκαηα quatro estados

da alma que como tais expressam as operaccedilotildees ou atividades intelectivas Tal

abordagem versa sobre o comportamento da alma segundo os graus de cogniccedilatildeo nos

quais os estados podem ser tomados em certa medida como indicadores da accedilatildeo do

intelecto

94

ldquo- Entendeste de modo mais que suficiente disse eu Agora agraves

quatro seccedilotildees se aplica os quatro estados da alma (θαί κνη ἐπὶ ηνῖο

ηέηηαξζη ηκήκαζη ηέηηαξα ηαῦηα παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ γηγλόκελα

ιαβέ) inteligecircncia agrave seccedilatildeo mais elevada pensamento agrave segunda

atribui agrave terceira nome de crenccedila e agrave ultima o de verossimilhanccedila

(λόεζηλ κὲλ ἐπὶ ηῷ ἀλσηάησ δηάλνηαλ δὲ ἐπὶ ηῷ δεπηέξῳ ηῷ ηξίηῳ δὲ

πίζηηλ ἀπόδνο θαὶ ηῷ ηειεπηαίῳ εἰθαζίαλ) e coloca-as numa ordem

em que teu criteacuterio (θαὶ ηάμνλ αὐηὰ ἀλὰ ιόγνλ) seja que quanto mais

os objetos participarem da verdade (ἀιεζείαο κεηέρεη) tanto mais

clareza (ζαθελείαο) teratildeo (Rep 511d9-e)

Depois de esclarecimentos acerca da capacidade cognitiva da alma ou seja apoacutes

verificar a sua potecircncia de apreensatildeo inteligente exequiacutevel pela dialeacutetica (Rep 511b3)

as divisotildees como παζήκαηα ganham apreciaccedilotildees segundo o alcance e a organizaccedilatildeo da

razatildeo (ἀλὰ ιόγνλ) Assim a classificaccedilatildeo das atividades na alma deve ser vista segundo

o que a razatildeo reconheceraacute como verdadeiro e claro ou seja segundo a relaccedilatildeo com o

ser agora dito participaccedilatildeo na verdade e na clareza Posta dessa maneira tal

organizaccedilatildeo enfatiza a aquisiccedilatildeo do ponto de vista da alma e natildeo somente do meacutetodo

no que se refere agraves qualidades do ser Nesse sentido as atividades da alma que satildeo da

ordem do intelecto e do juiacutezo devem ser observadas como as operaccedilotildees realizadas com

vistas agrave verdade e agrave clareza de acordo com determinado domiacutenio e niacutevel Analisadas

desta perspectiva torna-se possiacutevel compreender de que maneira as aquisiccedilotildees

intelectuais se concretizam de modo a constituiacuterem o norte para as accedilotildees poliacuteticas e uma

conduta como a do filoacutesofo

Para melhor compreender em que aspecto tal reclassificaccedilatildeo se mostra

importante vale se questionar acerca do sentido de παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ A rigor o

termo compreende o sentido de uma afecccedilatildeo estado ou condiccedilatildeo As trecircs concepccedilotildees

podem ser encontradas no texto no entanto ao que tudo indica interessa em pontuar o

sentido de afecccedilatildeo nos termos do resultado de determinadas atividades sobre as quais

pretende investigar a saber o que resulta de uma atividade cognitiva e preacute-cognitiva

intelecccedilatildeo e percepccedilatildeo sensiacutevel como parece apresentar respectivamente o domiacutenio do

inteligiacutevel e da opiniatildeo Vale reparar que ao nomear as operaccedilotildees segundo a divisatildeo da

linha o texto mostra a postura e o alcance intelectual da alma possiacutevel em cada domiacutenio

e desta perspectiva o παζήκαηα como um estado uma condiccedilatildeo da alma ao lidar com a

realidade ou a imagem dela A novidade desta classificaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos argumentos

anteriores estaacute em sugerir a esses estados diferenciaccedilotildees para investigar a partir destas

95

distinccedilotildees o trabalho intelectivo ou a atividade mental como desdobramentos da

interaccedilatildeo entre a alma e a realidade Parece razoaacutevel compreender que em tais estados

esteja envolvido um trabalho psiacutequico que corresponda de alguma forma aos diferentes

graus de conhecimento das realidades e que pode ser considerado assim o resultado e

desse modo a manifestaccedilatildeo do trabalho intelectivo em diferentes niacuteveis de intelecccedilatildeo

ou de modo mais geral o pensamento em seus variados modos de operar - afinal o que

justificaria tal distinccedilatildeo entre as atividades se natildeo argumentar acerca da distinccedilatildeo da

atividade da alma e as respostas psiacutequicas diante dos distintos niacuteveis de manifestaccedilotildees

da realidade do ser Cabe analisar as seccedilotildees nesta perspectiva

O domiacutenio da δόμα mostra dois tipos de παζήκαηα O primeiro considerado

mais inferior entre todos consiste na εἰθαζία no que resulta da apreensatildeo ao modo de

uma imagem que se daacute nos termos de uma conjectura das percepccedilotildees sensiacuteveis Esta

concatenaccedilatildeo a partir das aparecircncias que se tem na opiniatildeo natildeo consiste em uma

operaccedilatildeo cognitiva dado que parte de elementos incapazes de manifestar a realidade do

ser A partir do que se analisou tem-se aiacute a percepccedilatildeo no niacutevel mais elementar da

sensibilidade no qual se assimila somente os elementos sensiacuteveis do objeto sem ter

por isso nenhuma apreensatildeo do aspecto inteligiacutevel dele Provavelmente constitui uma

afecccedilatildeo na qual a alma ainda natildeo discerniu com categorias do conhecimento isto eacute

relativas ao ser como a verdade em seu teor inteligiacutevel sendo a atividade no primeiro

niacutevel da opiniatildeo onde os objetos percebidos satildeo vazios de conteuacutedo cognitivos62

Outro estado que compotildee o plano da opiniatildeo segundo na classificaccedilatildeo da linha

refere-se agrave πίζηηο a crenccedila no sentido da convicccedilatildeo acerca dos objetos do plano fiacutesico

os artefatos os animais e outros seres da natureza que manifestam um grau maior de

realidade por constituir um modelo para os reflexos e por isso ocupam um grau acima

na escala de superioridade em comparaccedilatildeo agrave imagem Nesse contexto a alma estaacute

convicta do que observa empiricamente e portanto sem ter diante do que observa uma

postura gnosioloacutegica pois ao contraacuterio cede (ἀπνδίδσκη) a esta convicccedilatildeo permanece

alheia agraves relaccedilotildees que o objeto possui com o inteligiacutevel e desse modo natildeo tem qualquer

apreensatildeo da realidade nem suspeitam da ausecircncia dela

62 Stocks define assim a eikasiacutea ldquoEikasiacutea estado da mente produzido pela contemplaccedilatildeo de um eikoacuten e

como temos visto uma parcial percepccedilatildeo das caracteriacutesticas sensoriais dos originais dos eikoacutenes ele vecirc

o Dzocircon no eikonrdquo O autor define a imagem como uma percepccedilatildeo imperfeita dos originais no qual se

apreende parcialmente a caracteriacutestica sensiacutevel destes Mesmo o objeto sensiacutevel tendo relaccedilatildeo com o ser

na esfera da opiniatildeo natildeo se tem nenhuma apreensatildeo desta ligaccedilatildeo Deste modo a doacutexa no sentido de um

juiacutezo elaborado a partir da experiecircncia empiacuterica como as aparecircncias corresponde a um estaacutegio primaacuterio

da atividade intelectiva no qual ainda natildeo se constitui uma cogniccedilatildeo no sentido epistemoloacutegico de Platatildeo

Stocks op cit p 83

96

Deve-se ter em vista aleacutem disso que tais objetos satildeo igualmente vazios de

conteuacutedo cognitivo visto que o domiacutenio sensiacutevel consiste ontologicamente em um

reflexo na aparecircncia do domiacutenio inteligiacutevel e natildeo tem condiccedilotildees por conta disso de

oferecer base para o conhecimento A alma no registro do visiacutevel (ὁξαηόλ) apresenta

esses tipos de atividade as quais natildeo ultrapassam o niacutevel da percepccedilatildeo do sensiacutevel Em

termos operacionais pode-se dizer que a conjectura e a convicccedilatildeo juntas compotildeem a

percepccedilatildeo em termos cognitivos compotildeem o juiacutezo Ao ter como atividade a percepccedilatildeo

natildeo sendo a alma capaz de reconhecer o viacutenculo com o inteligiacutevel naquilo que observa

na opiniatildeo se abre a possibilidade para o obscuro e para a natildeo-verdade63

A

incapacidade da percepccedilatildeo de apreender uma relaccedilatildeo com o inteligiacutevel faz com que a

alma natildeo reconheccedila a verdade mostrando ser o juiacutezo faliacutevel nas suas afirmaccedilotildees Ao

mesmo tempo por se fiar nas aparecircncias ela natildeo eacute capaz de exprimir mais que outras

aparecircncias ao chegar a uma conclusatildeo visto que carece de conhecer a realidade A

passagem 511e sugere a verdade como uma caracteriacutestica do objeto tomado

intelectualmente Observe-se que no inteligiacutevel sua funccedilatildeo se daacute na relaccedilatildeo entre

cognoscente e ela mesma e natildeo entre dois elementos Se no visiacutevel a dita ldquoverdaderdquo

constituiacutea uma noccedilatildeo de equivalecircncia entre elementos postos em relaccedilatildeo no inteligiacutevel

ela aparece como caracteriacutestica do objeto que na cogniccedilatildeo mostra seu alto grau de

conhecimento e portanto seu alcance da realidade Desse modo sua mensura se daacute nos

termos de uma referecircncia constituinte do objeto a ser conhecido e natildeo como uma noccedilatildeo

vaga de equivalecircncia que empresta a palavra verdade

ao considerar que a linha estabelece uma comparaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel

comparando assim o que se considera ldquoverdaderdquo no visiacutevel domiacutenio das aparecircncias

com a verdade como qualidade do inteligiacutevel faz sentido questionar se os objetos

participam ou natildeo da verdade Nesse sentido a manifestaccedilatildeo da verdade pode ser

relacionada agrave sua apreensatildeo da realidade podendo ser a cogniccedilatildeo nestas circunstacircncias

mensurada Assim o objeto que participa da verdade manifestando-a em toda a sua

inteligibilidade eacute o objeto claro oposto agraves aparecircncias objetos do domiacutenio sensiacutevel que

natildeo satildeo capazes de oferecer o inteligiacutevel em nenhum grau e desse modo natildeo podem

conduzir a nenhuma atividade cognitiva Os objetos que constituem cada gecircnero podem

ser ditos desse modo mais ou menos niacutetidos como ocorrem em 509d10-509e1 sendo

63 Gosling define assim a capacidade da doacutexa ldquoDoacutexa eacute a habilidade de julgar e o que se julga (eph‟ hoi

he duacutenamis) eacute o que as vezes eacute verdade e agraves vezes natildeordquo Ele compreende isso como uma verdade parcial

que a doacutexa eacute capaz de alcanccedilar fruto da oscilaccedilatildeo entre os objetos referidos Gosling JC B ldquoDoacutexa and

Duacutenamis in Plato‟s Republicrdquo in Phronesis no 2 vol 13 1968 p 129 130

97

as imagens obscuras e as ideias niacutetidas O juiacutezo natildeo teria portanto como apreender a

verdade ficando relegado a uma condiccedilatildeo de incogniccedilatildeo bem ao contraacuterio do raciociacutenio

e da inteligecircncia

Diante da debilidade cognitiva da conjectura e da convicccedilatildeo e da consequente

falibilidade do juiacutezo eacute possiacutevel dizer que estes dois primeiros niacuteveis da linha mostram o

pensamento em um estado muito elementar quando comparado agrave inteligibilidade da

cogniccedilatildeo nos termos da dialeacutetica Por outro lado deve-se admitir que Platatildeo parece estar

interessado em todas as disposiccedilotildees (ἕμηο) da alma tanto naquelas que envolvem o

conhecimento quanto naquelas que se referem a opiniatildeo Ao que tudo indica eacute preciso

considerar a δόμα por ser ela a ἕμηο de uma boa parte dos componentes da polis e nesse

sentido ao se ter em vista a organizaccedilatildeo da cidade em suas distintas classes vale dar

atenccedilatildeo a ela da mesma forma que ao λνῦο do filoacutesofo As distinccedilotildees feitas a partir da

comparaccedilatildeo do procedimento demonstrativo e dialeacutetico (Rep 511c3-d5) atribuem

nessa aplicaccedilatildeo da divisatildeo da linha agrave alma o caraacuteter de disposiccedilatildeo no sentido de

condiccedilatildeo da alma em determinado niacutevel em determinado contexto Assim no

cognosciacutevel no inteligiacutevel a alma tem as disposiccedilotildees necessaacuterias para inteligir ou seja

para ter contato com o que eacute verdadeiro o ser real No ambiente da sensibilidade no

visiacutevel natildeo apresenta as mesmas disposiccedilotildees e por isso natildeo atinge a verdade como se

observa

Diferentemente do sensiacutevel o domiacutenio do λνῦο oferece as condiccedilotildees necessaacuterias

para a alma desenvolver as operaccedilotildees inteligentes Nesse niacutevel os dois παζήκαηα na

alma apontam para uma frequentaccedilatildeo que ela manteacutem com os objetos inteligiacuteveis a

partir dos quais eacute possiacutevel a apreensatildeo da realidade A δηάλνηα o primeiro estado desse

domiacutenio pressupotildee a operaccedilatildeo que lida com termos inteligiacuteveis os conceitos

matemaacuteticos de modo a remontaacute-los O raciociacutenio opera pela variaccedilatildeo entre os

elementos de mesma realidade que servem para demonstrar um conceito em questatildeo

Nos termos de uma teacutecnica natildeo eacute proacuteprio do procedimento raciocinativo questionar

acerca do fundamento ontoloacutegico desses conceitos tomando-os assim todos nos

termos de hipoacuteteses uacuteteis em uma demonstraccedilatildeo Desse modo questionar e buscar as

relaccedilotildees dos elementos investigados com o criteacuterio e de clareza fica igualmente limitado

ao niacutevel da clareza e das verdades matemaacuteticas ou seja agravequilo que pode exprimir um

conceito ou o que se deduz a partir dele

A verdade como quer a matemaacutetica provavelmente diz respeito agrave singularidade

que caracterizam as ideias matemaacuteticas Da mesma forma que as ideias morais possuem

98

verdade e ser (ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Rep 508d) mas possuem evidentemente essecircncia

distinta sendo a verdade aiacute dada consequentemente nos limites da identidade do ser que

ela acompanha A ideia do quadrado natildeo tem o mesmo ser da ideia de justiccedila em

termos de identidade e consequentemente a verdade de uma seraacute diferente da outra

Natildeo haacute maiores definiccedilotildees sobre a verdade a natildeo ser a sua inteligibilidade e a

sua filiaccedilatildeo com a ideia do bem A verdade matemaacutetica eacute tatildeo inteligiacutevel quanto a

verdade de uma ideia moral entretanto o sentido em que se quer a verdade no meacutetodo

matemaacutetico eacute igualmente teacutecnico na medida em que remonta o conceito sem maiores

apreensotildees da sua natureza inteligiacutevel Raciocinar leva a alma a compreensotildees da

verdade e da clareza deste tipo sem proporcionar maiores conhecimentos acerca do ser

e do fundamento inteligente dos conceitos Desse modo a δηάλνηα constitui um niacutevel

limitado da cogniccedilatildeo no qual a alma apreende determinadas participaccedilotildees do ser e

portanto a verdade tal como as que se tem com o meacutetodo matemaacutetico Do aspecto

operacional a alma realiza tais apreensotildees com um meacutetodo o de demonstraccedilatildeo que por

natildeo ter como objetivo o conhecimento do fundamento ontoloacutegico eacute classificado como

uma teacutecnica natildeo como um saber Natildeo se pode negar que a δηάλνηα ganha com essas

acepccedilotildees o perfil de um pensamento teacutecnico que atua segundo as regras da arte

chamada aritmeacutetica Ainda que o texto natildeo pretenda marcar rigidamente as designaccedilotildees

utilizadas na linha agraves operaccedilotildees descritas nota-se a intenccedilatildeo de esclarecer a atuaccedilatildeo da

alma ao se lanccedilar a uma atividade dita intelectual No caso da δηάλνηα parece que as

regras que a alma obedece ao raciocinar uma vez que eacute forccedilada (ἀλαγθάδσ) pelos

objetos de determinado domiacutenio e pelo meacutetodo satildeo as ditadas pela matemaacutetica sendo o

raciocinar assim o exerciacutecio segundo tais procedimentos e tais regras A consequecircncia

de proceder assim eacute que a alma estagna e o matemaacutetico natildeo poderia ter a excelecircncia

intelectual e moral do filoacutesofo por conta disso pois natildeo conseguiria chegaria ao grau

maacuteximo de conhecimento possiacutevel ao intelecto

Diferentemente a λόεζηϛ mostra o estado de apreensatildeo da realidade inteligiacutevel

o qual constitui o grau mais elevado da atividade e da condiccedilatildeo da alma Tal apreensatildeo

consiste em adquirir conhecimento do ser e a partir dele reconhecer o viacutenculo dos

objetos pesquisados agrave luz de sua realidade fazendo para isso uso exclusivamente das

ideias Ao consistir na atividade em que a alma opera somente pelas ideias a inteligecircncia

demonstra ser o maior grau de interaccedilatildeo com o inteligiacutevel Ao atuar assim ela conhece

a verdade e a clareza dos objetos uma vez que eacute capaz pela dialeacutetica de observar a

participaccedilatildeo nessas duas caracteriacutesticas do ser O inteligir deixa a alma diante do

99

aspecto inteligiacutevel dos objetos investigados ou seja de posse da ideia desses

colocando-a no maior grau de cogniccedilatildeo no estado de contemplaccedilatildeo A alma que tem

inteligecircncia conhece a verdade e a clareza ao operar com todos os elementos dados pelo

ser A capacidade de apreensatildeo ao inteligir dada pela potecircncia de apreensatildeo do meacutetodo

dialeacutetico torna realizaacutevel a operaccedilatildeo inteligente Em outros termos a alma natildeo

adquiriria o ser se natildeo fizesse uso do meacutetodo adequado para isso o que demonstra a

importacircncia e a peculiaridade da ciecircncia dialeacutetica e sua coerecircncia com o alcance da

inteligecircncia Neste uacuteltimo niacutevel parece claro que o meacutetodo de investigaccedilatildeo determina o

conhecimento uma vez que parece possuir as regras adequadas para tal Ao seguir as

regras do meacutetodo dialeacutetico a alma obedece ao mesmo tempo os criteacuterios de clareza e de

verdade segundo o que se apreende das relaccedilotildees com o ser inteligiacutevel Desse modo em

uacuteltima instacircncia ao obedecer as regras impostas pela dialeacutetica a alma segue o que dita o

proacuteprio ser atuando assim de maneira inteligente As regras do meacutetodo se tornam

assim as regras por excelecircncia do pensar em sua atuaccedilatildeo inteligente O saber que busca

a filosofia se realiza nesse conhecimento da realidade e da verdade dos objetos os quais

apontam para o bem Ao conhecer tais qualidades a alma toma o bem como modelo

demonstrando estar a alma assim no estado de inteligecircncia

Talvez tais distinccedilotildees mostrem a diferenccedila mais determinante para qualificar o

homem comum o matemaacutetico e o dialeacutetico A anaacutelise da atividade intelectual a partir

das distinccedilotildees da linha apontam principalmente a disposiccedilatildeo e a capacidade de cada um

no que se refere ao comportamento Estendendo esta anaacutelise pode-se inferir que se tem

nas atividades da alma indicadas nesses estados que a linha oferece uma explicaccedilatildeo

acerca da disposiccedilatildeo e da capacidade de buscar seguir e de se submeter ao que eacute

verdadeiro ao que eacute dado segundo o ser A consequecircncia desta inferecircncia talvez possa

ser conferida nas passagens que tocam a questatildeo do criteacuterio para a organizaccedilatildeo da

cidade e a funccedilatildeo de cada classe de cidadatildeos nesta organizaccedilatildeo Os παζήκαηα

reconstituem nesse sentido o comportamento da alma do ponto de vista intelectivo

dado como uma ἕμηο uma δύλακηο e um ἔξγνλ expressos no meacutetodo naquilo que ela eacute

capaz de apreender sob a forma da cogniccedilatildeo ou do juiacutezo O foco no proceder intelectivo

revela quatro fenocircmenos mentais cuja distinccedilatildeo e compreensatildeo apresentam quatro

modos do pensamento em contextos de gecircnero diferentes isto eacute em relaccedilatildeo ao sensiacutevel

e em relaccedilatildeo ao inteligiacutevel Dados assim tais modos parecem bastante convenientes agrave

100

proposta de uma cidade com classes variadas de cidadatildeos as quais o filoacutesofo

governante deve comandar64

Evidentemente natildeo se deve compreender que essas quatro operaccedilotildees definem e

mostram o pensar em sua totalidade Deve-se admitir que o texto natildeo oferece

especificaccedilotildees acerca do tema do pensamento em seu conjunto isto eacute como o conjunto

de fenocircmenos que se datildeo a partir de uma atividade sobre os quais se pode inferir a

partir de um estado da alma Entretanto a analogia da linha aborda os quatro principais

aspectos do pensamento no que se refere ao ιόγνο que se propotildee para a cidade Tem-se

provavelmente os quatro aspectos mais importantes capazes de situar cada atividade em

relaccedilatildeo agrave verdade qualidade que ganha fundamento inteligiacutevel e colabora assim para a

teoria moral do governo do filoacutesofo Do mesmo modo as especificaccedilotildees acerca das

atividades intelectuais que traz a linha mostram os efeitos da atividade intelectual da

filosofia anteriormente anunciado como a fixaccedilatildeo da alma (ἀπεξείδσ) ao ser accedilatildeo que

descreve o λνῦλ ἔρεηλ e a θξόλεζηο (Rep 508b d) Ao especificar as operaccedilotildees da alma

tem-se explicado o procedimento os efeitos e o significado desta relaccedilatildeo intelectual

com a ideia do bem que culmina na inteligecircncia

Os distintos παζήκαηα parece se tornarem mais claros ao buscar compreender a

alma em sua caracteriacutestica ativa ao se elucidar as suas operaccedilotildees e ao mesmo tempo

ao revelar os meandros de sua natural passividade que resulta em tais afeccccedilotildees tal

como se daacute na submissatildeo da alma ao ser no caso da λόεζηϛ agraves regras do meacutetodo

matemaacutetico na δηάλνηα e a sujeiccedilatildeo agraves aparecircncias na δόμα A dicotomia atividade-

passividade que o livro VI apresenta tal como se observou nos argumentos analisados

mostra a dinacircmica das relaccedilotildees como uma das bases sobre as quais se deve interferir

atraveacutes da educaccedilatildeo para a organizaccedilatildeo da cidade Ao exibir os efeitos das interaccedilotildees

que a alma pode ter com o inteligiacutevel se mostra a necessidade de compreender a atuaccedilatildeo

64 Entre os autores que partilham da leitura de que haacute a exposiccedilatildeo acerca do trabalho intelectivo na

analogia da Linha estaacute Cornford que compreende haver ldquoquatro experiecircncias mentaisrdquo correspondentes

ao pathema en tei psykhei Note-se a cuidadosa opccedilatildeo ao traduzir paacutethema por ldquoexperiecircnciardquo buscando

muito provavelmente preservar a eiacutekasia e a piacutestis como partes de um processo que visto em todo o

conjunto comeccedila na sensibilidade e termina na apreensatildeo da ideia do bem Ainda que seu interesse seja

apresentar a diaacutenoia e a noeacutesis como as operaccedilotildees inteligentes ele admite com este comentaacuterio haver uma

relaccedilatildeo entre os diferentes niacuteveis de apreensatildeo que as partes da linha representa sendo o primeiro a

percepccedilatildeo e os dois uacuteltimos modos de operaccedilatildeo intelectivas ldquoEste eacute o primeiro lugar onde Platatildeo

contrasta dois modos de operaccedilatildeo da parte racional da almardquo Esta afirmaccedilatildeo de Cornford parece

bastante afim com a proposta do texto de esclarecer a diferenccedila entre opiniatildeo e conhecimento a partir da

dicotomia filoacutesofo-natildeo-filoacutesofo que se apresenta nos livros centrais Tais distinccedilotildees ao que parece

merecem tambeacutem serem vistas do ponto de vista da parte racional da alma tal como a linha especifica

Cornford ldquoMathematics and Dialectic in The Republicrdquoop cit p 37-38

101

dela Vecirc-se que a passividade de uma afecccedilatildeo natildeo estaacute e natildeo deve ser tomada sem a

investigaccedilatildeo da atividade que a origina

Atividade e passividade do pensamento cabe reparar eacute um tema presente que

deve ser analisado tambeacutem no Feacutedon (79d) o qual dito antecipadamente mostraraacute a

graduaccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da filosofia rumo a θξόλεζηο Tomada nos termos de

atividade de alta intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo resultado desta atividade a θξόλεζηο

descreve a interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e os beneacuteficos resultados dessa ligaccedilatildeo

para a alma A dupla funccedilatildeo que descreve os estados classificados na linha parece estar

presente desse modo em uma concepccedilatildeo de afecccedilatildeo que Platatildeo parece ter Mesmo sem

ter a intenccedilatildeo de especificar esta duplicidade observa-se na linha como se observaraacute no

Feacutedon o resultado como expressatildeo de uma atividade e assim a passividade de uma

condiccedilatildeo como efeito da atividade em do pensar em determinado niacutevel O pensamento

abarca desse modo atividade e passividade as quais devem ser vistas

concomitantemente Conveacutem assim perseguir as caracteriacutesticas deste conjunto de

atividades dita pensamento nos argumentos do Livro VII de modo a analisar os

aspectos racionais em uma progressiva interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e dessa

maneira a natureza de uma possiacutevel intervenccedilatildeo da filosofia Natildeo diferente do filoacutesofo

em processo de purificaccedilatildeo do diaacutelogo Feacutedon o aprendiz do Livro VII mostra o

processo de superaccedilatildeo do sensiacutevel como atividade e efeito deste movimento de

interaccedilatildeo do intelecto com a realidade inteligiacutevel O resultado desta superaccedilatildeo

intelectual consiste na superaccedilatildeo ao niacutevel maacuteximo nos demais domiacutenios eacutetico e

poliacutetico elevando a alma agrave melhor condiccedilatildeo que ela pode alcanccedilar ou simplesmente agrave

condiccedilatildeo de excelecircncia

42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma

A Alegoria da Caverna que abre o seacutetimo livro d‟A Repuacuteblica oferece outros

aspectos do pensamento ao sugerir uma imagem da alma nas condiccedilotildees de ignoracircncia

(ἀκαζία Rep 518a7) e de inteligecircncia (λνῦο Rep 518a1) Ao enfatizar seu

102

comportamento na situaccedilatildeo de educaccedilatildeo e de ausecircncia da educaccedilatildeo (Rep 514a1) como

trazem as primeiras linhas do livro o texto aborda o tema da racionalidade da

perspectiva da experiecircncia intelectual da alma mostrando por analogia as condiccedilotildees o

processo e os efeitos deste tipo de exerciacutecio A comparaccedilatildeo entre as naturezas se daacute

agora no que se refere agrave atitude a partir da condiccedilatildeo de ignoracircncia natural ao homem

em sua humanidade diante da possibilidade do conhecimento O movimento de ascese

que mostra a saiacuteda da ignoracircncia na direccedilatildeo do conhecimento descrito na saiacuteda do

prisioneiro liberto da caverna em direccedilatildeo agrave luz da realidade explica a accedilatildeo que promove

e justifica a excelecircncia do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum demonstrando o

caraacuteter da postura que resulta na cogniccedilatildeo ou na permanecircncia na ausecircncia de

conhecimento

Diferentemente da analogia da linha o pensar natildeo teraacute na alegoria da caverna

suas operaccedilotildees explicitadas de modo que se pode analisar cada niacutevel em suas

especificidades metodoloacutegicas A abordagem que pretende salientar as caracteriacutesticas do

filoacutesofo e do natildeo filoacutesofo em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo aponta as relaccedilotildees que se estabelece

entre estes dois tipos de trabalho mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo de modo a sugerir entre

eles uma relaccedilatildeo tal como pressupotildee a saiacuteda e o retorno do filoacutesofo agrave caverna Dito de

outro modo a descriccedilatildeo da ascese e descida do filoacutesofo sugere uma dinacircmica do

pensamento natildeo na sua operacionalidade teacutecnica isto eacute segundo o meacutetodo mas neste

tracircnsito de um plano a outro exequiacutevel pela παηδεία Nesta construccedilatildeo da imagem da

experiecircncia intelectual do conhecimento a racionalidade aparece sob o acircngulo da

condiccedilatildeo humana (ηὰ ἀλζξώπεηά Rep 517d5) sendo a inteligecircncia seu ponto alto e a

ignoracircncia a posiccedilatildeo inferior Assim tanto a figura do prisioneiro quanto a do liberto

descrevem a vivecircncia da alma em duas circunstacircncias antagocircnicas que contrapotildeem a

natural inferioridade do homem comum agrave superioridade de condiccedilatildeo do filoacutesofo dada

pela aquisiccedilatildeo do conhecimento

A mudanccedila de posiccedilatildeo que pode se dar durante a vida (δηὰ βίνπ Rep 515b1)

operada pelo exerciacutecio intelectual eacute dita atraveacutes das dificuldades no processo de

conhecer Nesta narrativa que mostra a libertaccedilatildeo do prisioneiro e a sua gradual

adaptaccedilatildeo a um novo ambiente (Rep 515e-516c6) tem-se a uma imagem da superaccedilatildeo

de um niacutevel a outro pressupondo uma progressatildeo do trabalho intelectual que vai da

percepccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo

103

Cabe acompanhar a narrativa desta experiecircncia atraveacutes da construccedilatildeo da imagem

do prisioneiro que conquista a libertaccedilatildeo Para isso deve-se comeccedilar por analisar o

ambiente e o estado que se refere agrave ignoracircncia (ἀκαζία)

ldquo() Imagina homens que estatildeo numa morada subterracircnea

semelhante a uma furna cujo acesso se faz por uma abertura que

abrange toda a extensatildeo da caverna que estaacute voltada para a luz Laacute

estatildeo eles desde a infacircncia com grilhotildees nas pernas e no pescoccedilo de

modo que fiquem imoacuteveis onde estatildeo e soacute voltem o olhar para a

frente jaacute que os grilhotildees os impedem de virar a cabeccedila De longe

chega-lhes a luz de uma fogueira que arde num local mais alto atraacutes

deles e entre a fogueira e os prisioneiros haacute um caminho em aclive

ao longo do qual se ergue um pequeno muro semelhante ao tabique

que os maacutegicos potildeem entre eles e os espectadores quando lhes

apresentam suas habilidades

- estou imaginando disse

- Pois bem Imagina homens passando ao longo desse pequeno

muro e levando toda a espeacutecie de objetos que ultrapassam a altura do

muro e tambeacutem estaacutetuas de homens e de outros animais feitas de

pedra e de madeira trabalhadas das mais diversas maneiras Alguns

dos que os carregam como eacute natural vatildeo falando e outros seguem

em silecircnciordquo (Rep 514a2-b7)

O ambiente rebaixado e de penumbra que sugere a caverna subterracircnea alude agrave

condiccedilatildeo de inferioridade do homem no que se refere ao conhecimento Tal

inferioridade parece inexoraacutevel ao considerar que este eacute o uacutenico ambiente conhecido

pelos habitantes da caverna visto que estatildeo laacute desde a infacircncia Por estarem de costas

para a abertura da gruta e portanto em posiccedilatildeo contraacuteria agrave saiacuteda tem-se a natural

oposiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo ao que pode provocar o conhecimento de outro lugar

outro plano Outro dado que talvez determine a aparente inflexibilidade desta condiccedilatildeo

eacute a imobilidade que os torna prisioneiros e em permanente estado de ἀκαζία Presos

pelos peacutes pernas e pescoccedilo os moradores da caverna estatildeo impedidos de sair e de fazer

qualquer movimento que os permita ver outro acircngulo e assim realizar qualquer

verificaccedilatildeo acerca do lugar que habitam Limitados pelos grilhotildees natildeo podem

reconhecer a fonte que oferece a baixa luminosidade para a gruta nem a origem dos

ruiacutedos que escutam e das imagens que veem projetadas na parede diante deles Imoacuteveis

e alheios a outra realidade os habitantes da caverna creem que as sombras de animais e

estaacutetuas projetadas satildeo os proacuteprios animais e os proacuteprios homens e natildeo imagens de

104

algum objeto refletido pela luz do fogo Crentes chamam tal conjuntura de real e

consideram as sombras verdadeiras sem ao menos supor um lugar diferente da gruta

permanecendo assim ignorantes (Rep 515b4-5 515c1-2)

A narrativa aponta os elementos que determinam a ignoracircncia e o principal

dentre todos cabe notar consiste na imobilidade que resulta na crenccedila Chama atenccedilatildeo

do mesmo modo que a analogia natildeo indique outro fator que fixa o homem a esta

imobilidade que natildeo seja a natureza Representado pelos grilhotildees o que coloca o

homem na posiccedilatildeo de prisioneiro parece consistir na natural sujeiccedilatildeo aos elementos que

compotildeem o cenaacuterio as sombras crenccedila e o haacutebito agrave escuridatildeo Natildeo parece estar em

questatildeo em um primeiro momento qualquer fator desiderativo para a permanecircncia

nesse estado tampouco alguma deliberaccedilatildeo em livrar-se dele Ao que tudo indica a

proposta da narrativa tem em vista descrever uma situaccedilatildeo hipoteacutetica de elevaccedilatildeo de

uma natural condiccedilatildeo de desconhecimento para a de conhecimento circunstacircncia

considerada mais elevada Para isso elege as variaacuteveis que colaboram para a construccedilatildeo

de uma imagem desobrigada a corresponder fielmente agraves questotildees na vida ordinaacuteria

mas que parecem uacuteteis aos propoacutesitos de uma comparaccedilatildeo (ἀπεηθάδσ Rep 514a1)65

Assim ainda que pareccedilam estranhas importa que tais representaccedilotildees permitam

investigar a questatildeo no registro da suposiccedilatildeo

A incapacidade de discernimento devido as caracteriacutesticas do ambiente e agrave

imobilidade das capacidades que permitiriam reconhecer os objetos verdadeiros mostra

a ignoracircncia como o estado em que a alma natildeo mobiliza suas potencialidades

cognitivas ficando alheia a um tipo de experiecircncia que soacute pode ser realizada pelo

pensamento O resultado desta postura eacute o desconhecimento de uma realidade que daacute

origem ao que ela por haacutebito (λνκίδσ) concebe como verdadeiro e real Este eacute um ponto

que ganha algumas elucidaccedilotildees na alegoria em comparaccedilatildeo ao que trazia a primeira

parte da linha Como componente do segundo grau do primeiro niacutevel na escala que

sugere a linha dividida (Rep 511d9-e) correspondente ao juiacutezo a πίζηηο aparecia como

a convicccedilatildeo nos objetos fiacutesicos tomados como verdadeiros os quais nada mais eram que

as aparecircncias dos objetos reais Por essa razatildeo naquele contexto a convicccedilatildeo natildeo

consistia em um estado em que a alma estava em via de adquirir o conhecimento mas

ao contraacuterio permanecia incapaz de efetuar qualquer relaccedilatildeo que lhe permitisse

reconhecer a realidade inteligiacutevel A crenccedila tal como descreve a linha parece estar

65 Rep 515a4-5 ldquo- Estranho eacute o quadro que descreves disse e estranhos tambeacutem os prisioneiros (-

Semelhante a noacutes disse eu (Ἄηνπνλ ἔθε ιέγεηο εἰθόλα θαὶ δεζκώηαο ἀηόπνπο Ὁκνίνπο ἡκῖλ)rdquo

105

presente na descriccedilatildeo da ignoracircncia que sofre o prisioneiro uma vez que se toma como

real o que se daacute pelo costume ou seja a partir do que regularmente se vecirc por forccedila de

sua condiccedilatildeo

Dito de outro modo o julgamento que o prisioneiro faz tem como base uma

presumiacutevel regularidade das apariccedilotildees projetadas na parede da caverna nas aparecircncias

mesmo fundamento da crenccedila Eacute possiacutevel compreender que a ἀκαζία da alegoria

corresponde agrave δόμα da linha dividida Pode-se encontrar uma correspondecircncia entre os

dois estados se considerarmos que ambos se referem ao desconhecimento da realidade

inteligiacutevel Ambas parecem compreendidas nos termos que se enuncia os riscos de

entregar a salvaguarda da cidade a um guardiatildeo que ignora (ἄγλνηα) e portanto

desconhece a ideia do bem (Rep 5064-7) Entretanto vale ressaltar que o que a alegoria

pretende enfatizar diz respeito ao desconhecimento como um estado natural ao homem

que pode por determinadas razotildees ser abandonado Se na linha se tem uma explicaccedilatildeo

do ponto de vista gnosioloacutegico e epistemoloacutegico desta ἄγλνηα cujo sentido parece

abarcar a opiniatildeo e a ignoracircncia na alegoria ela eacute dada da perspectiva existencialista e

sobretudo poliacutetica visto que marca a posiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a ideia do bem

inteligiacutevel a saber naturalmente inferior e contraacuterio a ele Conveacutem investigar nas

proacuteximas passagens o que o texto sugere acerca do processo de abandono da

inferioridade da ignoracircncia e averiguar o processo intelectivo nessa mudanccedila de

condiccedilatildeo Deve-e atentar para o caraacuteter ascendente da inteligecircncia dada na figura do

aprendiz

43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο

O processo de saiacuteda do estado de ignoracircncia dada nos termos da libertaccedilatildeo de

tal posiccedilatildeo propotildee o iniacutecio do processo do conhecimento que sugere ao mesmo tempo

os estiacutemulos necessaacuterios para o desenvolvimento do exerciacutecio intelectual de ascese e as

reaccedilotildees naturais agraves mudanccedilas de niacutevel cognitivo Diferente do que se viu na analogia do

sol a alegoria natildeo enfatiza a relaccedilatildeo entre alma e objeto e a familiaridade da alma com

106

o inteligiacutevel como suficientes para descrever o que promove a busca pelo conhecimento

ao menos em um primeiro momento A saiacuteda da caverna depende da intervenccedilatildeo de

algueacutem que por conhecer a realidade provoca e orienta esta libertaccedilatildeo Nesse sentido a

ambientaccedilatildeo do liberto agrave luz mostra as dificuldades que envolvem a ascese elevaccedilatildeo

que cabe notar natildeo constitui um processo natural

ldquo- Observa agora disse eu como seria para eles a libertaccedilatildeo dos

grilhotildees e da cura da ignoracircncia se isso lhes ocorresse de forma

natural (Σθόπεη δή ἦλ δ ἐγώ αὐηῶλ ιύζηλ ηε θαὶ ἴαζηλ ηῶλ ηε δεζκῶλ

θαὶ ηο ἀθξνζύλεο νἵα ηηο ἂλ εἴε εἰ θύζεη ηνηάδε ζπκβαίλνη αὐηνῖο)

Sempre que um deles fosse liberado dos grilhotildees e obrigado

(ἀλαγθάδνηην) a pocircr-se de peacute de repente a virar o pescoccedilo a andar e

a olhar para a luz tudo isso o faria sofrer e sob a luminosidade

intensa ficaria incapaz de olhar para aqueles objetos cujas sombras

havia pouco estava vendo O que diria ele na tua opiniatildeo se algueacutem

lhe dissesse que o que ele via antes era apenas uma nonada

(θιπαξίαο) mas que agora mais proacuteximo do ser voltado para o que

eacute mais ser estaacute enxergando (λῦλ δὲ κᾶιιόλ ηη ἐγγπηέξσ ηνῦ ὄληνο θαὶ

πξὸο κᾶιινλ ὄληα ηεηξακκέλνο ὀξζόηεξνλ βιέπνη) melhor e

apontando cada um dos objetos que estavam passando com suas

perguntas o obrigasse a dizer-lhe o que era Natildeo achas que ele se

veria em dificuldades e julgaria que os objetos que via antes eram

mais verdadeiros do que os que lhe estavam sendo mostrados

agorardquo (Rep 515c4 -d7)

O texto mostra as dificuldades de se observar a realidade na figura do prisioneiro

obrigado a pocircr-se em uma posiccedilatildeo diferente e a fazer movimentos nunca realizados

antes O embaraccedilo de lidar com uma nova realidade sugerida pela incapacidade do

receacutem liberto de ver (ἀδπλαηνῖ θαζνξᾶλ) sob luz intensa mostra a natural incapacidade

de frequentaccedilatildeo na realidade inteligiacutevel e ao mesmo tempo a necessidade de orientaccedilatildeo

e de exerciacutecio para que isso ocorra Forccedilado a sair da caverna (ἀλαγθάδσ) e sem estar

adaptado agraves novas condiccedilotildees o prisioneiro insiste em acreditar nas sombras e natildeo

confere qualquer credibilidade aos objetos que agora se apresentam uma vez que soacute tem

a ignara experiecircncia das imagens O abandono da condiccedilatildeo de ignoracircncia natildeo acontece

sem a natural reaccedilatildeo de contrariedade e sofrimento amenizados somente por um

gradativo processo de conformaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas deste novo ambiente Ainda que

fosse arrastado agrave forccedila para um plano mais alto (Rep 515e6) sua reaccedilatildeo seria a de

relutacircncia e demandaria tempo para deixar de se incomodar (ἀγαλαθηέσ Rep 516a1)

com a claridade

107

Tal eacute a descriccedilatildeo da relaccedilatildeo entre alma e objeto no processo de ascese na

narrativa da alegoria A graduaccedilatildeo entre niacuteveis dita nos termos da saiacuteda de um plano e

subida a outro mostra dessa vez a relaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel como resposta ao

contato com objetos distintos Se a analogia do sol descrevia essa reaccedilatildeo do ponto de

vista do fenocircmeno mental ou seja do que se tem na relaccedilatildeo entre faculdade cognitiva e

objeto inteligiacutevel a saber a apreensatildeo da ideia aqui a descriccedilatildeo da reaccedilatildeo do

prisioneiro agrave luminosidade leva em consideraccedilatildeo a θύζηο como um componente

determinante nessa relaccedilatildeo Nesse sentido tais dificuldades representam um aspecto

tambeacutem natural do processo de ascese uma vez que se eacute naturalmente contraacuterio e

desabituado ao inteligiacutevel A relaccedilatildeo entre alma e objeto experienciado dado na alegoria

oferece uma imagem do conhecimento como uma superaccedilatildeo na qual o pensamento se

realiza em todo o seu conjunto de operaccedilotildees ao longo da transposiccedilatildeo desses obstaacuteculos

O foco se volta para o estabelecimento dessa relaccedilatildeo com o inteligiacutevel que se efetiva

nesse percurso oferecendo dessa maneira uma narrativa da passagem da percepccedilatildeo

sensiacutevel para a cogniccedilatildeo inteligiacutevel

Vale lembrar que o propoacutesito de tal abordagem tem em vista a noccedilatildeo de παηδεία

e pretende por isso apontar a possibilidade de conduccedilatildeo ao conhecimento Desse

modo importa assinalar no contexto da alegoria as caracteriacutesticas do pensamento posto

em atividade orientado para a inteligecircncia de modo a averiguar as possiacuteveis

correspondecircncias com o que se analisou na analogia do sol e na analogia da linha

argumentos importantes para uma caracterizaccedilatildeo da racionalidade no livro VI Note-se

que o texto propotildee a superaccedilatildeo cognitiva anaacuteloga agrave gradativa ambientaccedilatildeo na verdadeira

realidade e o viacutenculo entre a alma e o inteligiacutevel sendo constituiacutedo nesta frequentaccedilatildeo

no novo ambiente ao qual aos poucos ela estaraacute familiarizada

ldquo- E se disse eu algueacutem o arrastasse dali aacute forccedila pela ladeira

aacutespera e abrupta (Εἰ δέ ἦλ δ ἐγώ ἐληεῦζελ ἕιθνη ηηο αὐηὸλ βίᾳ δηὰ

ηξαρείαο ηο ἀλαβάζεσο θαὶ ἀλάληνπο) e natildeo o largasse antes de

conseguir arrastaacute-lo para fora e expocirc-lo agrave luz do sol seraacute que ele natildeo

sofreria dores natildeo se indignaria por o arrastarem (ἆξα νὐρὶ

ὀδπλᾶζζαί ηε ἂλ θαὶ ἀγαλαθηεῖλ ἑιθόκελνλ) e quando chegasse laacute ateacute

a luz com os olhos ofuscados pelo fulgor nada seria capaz de ver do

que agora lhe dissessem ser verdadeiro

- De imediato (ἐμαίθλεο) pelo menos disse natildeo seria capaz

- Seria preciso creio que se habituasse se pretendesse ver o que

estivesse no alto (Σπλεζείαο δὴ νἶκαη δένηη ἄλ εἰ κέιινη ηὰ ἄλσ

ὄςεζζαη) Primeiro iria ver muito facilmente as sombras depois as

imagens dos homens e as dos outros objetos na aacutegua e mais tarde os

proacuteprios homens e os objetos depois agrave noite voltando o olhar para

108

a luz dos astros e da lua contemplaria o que estivesse no ceacuteu e o

proacuteprio ceacuteu com mais facilidade que durante o dia o sol se a luz do

sol

- Em uacuteltimo lugar viria creio o sol natildeo os reflexos dele na aacutegua

ou em outra superfiacutecie e ele seria capaz de ver e contemplar o

proacuteprio sol no lugar que eacute o dele tal qual ele eacute (Τειεπηαῖνλ δὴ νἶκαη

ηὸλ ἥιηνλ νὐθ ἐλ ὕδαζηλ νὐδ ἐλ ἀιινηξίᾳ ἕδξᾳ θαληάζκαηα αὐηνῦ

ἀιιαὐηὸλ θαζ αὑηὸλ ἐλ ηῆ αὑηνῦ ρώξᾳ δύλαηη ἂλ θαηηδεῖλ θαὶ

ζεάζαζζαη νἷόο ἐζηηλ)

- Necessariamente disse

- Depois disso a respeito do sol jaacute inferiria (ζπιινγίδνηην) que eacute

ele que cria as estaccedilotildees e os anos e tudo governa (ἐπηηξνπεύσλ) no

mundo visiacutevel e eacute de certo modo a causa (αἴηηνο) de tudo aquilo que

viam

- Eacute evidente que depois de passar por aquelas experiecircncias

chegariam a essas conclusotildees (Δινλ ἔθε ὅηη ἐπὶ ηαῦηα ἂλ κεη

ἐθεῖλα ἔιζνη)rdquo (Rep 515e- 516 c3)

Os passos dados na elevaccedilatildeo ao inteligiacutevel parecem francamente sugeridos nesta

progressatildeo da visatildeo que descreve o texto Apoacutes a relutacircncia e as dores de estar em um

ambiente desconhecido onde comeccedila a se acostumar com as caracteriacutesticas dele como

a luminosidade o liberto primeiro vecirc com facilidade as sombras na penumbra depois

consegue observar as imagens na aacutegua e finalmente mira diretamente os proacuteprios

objetos originais Receacutem-saiacutedo da caverna o ex-prisioneiro reconhece a multiplicidade

do mundo visiacutevel em seus variados objetos cujos reflexos promovem as sombras e as

imagens Desse modo tem-se a descriccedilatildeo do estado de percepccedilatildeo (αἴζζεζηο) no mundo

visiacutevel na qual os elementos apreendidos satildeo as imagens as sombras os animais e os

objetos do mundo fiacutesico Embora seja difiacutecil fazer uma riacutegida identificaccedilatildeo das partes da

linha com a ascese tal como trata a alegoria parece razoaacutevel entender que a percepccedilatildeo

aparece como a vivecircncia na caverna e esses primeiros momentos da saiacuteda rumo ao

conhecimento o iniacutecio do percurso da experiecircncia intelectual da ascese

No que se refere agrave elevaccedilatildeo da alma ao inteligiacutevel parece razoaacutevel supor os

primoacuterdios desta ascese neste reconhecimento da multiplicidade de elementos do

domiacutenio visiacutevel para marcar as distinccedilotildees do inteligiacutevel e a superioridade da

inteligecircncia Faz sentido mostrar desta perspectiva as evoluccedilotildees da alma que se eleva

da percepccedilatildeo da multiplicidade para a aquisiccedilatildeo do conhecimento da ideia enfatizando

com isso o exerciacutecio do pensamento que aqui eacute dado de modo progressivo e gradual

rumo agrave sua excelecircncia operacional como mostrou a linha e moral como parece propor

109

a alegoria Desse modo a passagem da conjectura para a convicccedilatildeo constitui um

progresso nos termos de um trabalho mental importante de ser dado uma vez que estaacute

em questatildeo o desenvolvimento para o exerciacutecio intelectual Mais que mostrar o prejuiacutezo

cognitivo da δόμα em relaccedilatildeo a ἐπηζηήκε a passagem de uma etapa a outra da

percepccedilatildeo eacute dada como ponto a partir do qual pode haver a mudanccedila (κεηαβνιή Rep

516c6) movimento que pode pocircr a alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel Por enquanto vale ter

em vista que conjectura e convicccedilatildeo compotildeem o conjunto de operaccedilotildees mentais tal

como o raciociacutenio e a intelecccedilatildeo e que constitui o grau de inferioridade da condiccedilatildeo da

alma que pode ser superado

Cabe reparar na sequecircncia que a segunda fase do liberto sugere a atividade

preliminar do pensamento pois parece ir um pouco aleacutem da percepccedilatildeo Nessa etapa o

liberto jaacute suporta a claridade e comeccedila a observar o que eacute reluzente na ausecircncia de luz

sendo possiacutevel para ele realizar as primeiras observaccedilotildees no claro e no escuro no dia e

na noite ateacute encarar o proacuteprio sol em toda a sua luminosidade e grandiosidade Este grau

de adaptaccedilatildeo parece ser o mais adequado para o iniacutecio da atividade intelectual uma vez

que jaacute se eacute capaz de observar em diferentes circunstacircncias e contemplar a proacutepria fonte

de luz Ao inferir (ζπιινγίδνκαη) sobre a causa (αἴηηνο) e sobre a ordenaccedilatildeo

(ἐπηηξνπεύσ) do mundo a partir da contemplaccedilatildeo do sol concluindo ser ele a origem

dos fenocircmenos a alegoria descreve um trabalho do pensar mostrando o que

provavelmente constitui seu exerciacutecio nos primeiros graus do niacutevel inteligiacutevel visto que

causa e princiacutepio satildeo questotildees presentes em uma investigaccedilatildeo racionalista como

mostrou a analogia do sol e da linha

Natildeo se deve perder de vista o objetivo moral e poliacutetico da argumentaccedilatildeo Ao

oferecer um relato das mudanccedilas e das aquisiccedilotildees cognitivas nesta experiecircncia

gnosioloacutegica a alegoria propotildee o fundamento epistemoloacutegico da poliacutetica naquilo que a

ciecircncia pode orientar e portanto intervir a partir de um modelo ideal e de um meacutetodo

adequado de educaccedilatildeo De maneira simeacutetrica o pedagogo e o governante partilham da

mesma funccedilatildeo respectivamente orientar a alma e conduzir a cidade sendo pertinente

portanto uma investigaccedilatildeo acerca do que deve ser mobilizado e dos meios adequados

para que a governabilidade de fato se realize O que eacute posto em questatildeo natildeo eacute outra

coisa que a alma e o que envolve a racionalidade Na condiccedilatildeo superior ao ter adquirido

o conhecimento da realidade portanto o liberto avalia o seu percurso e a sua condiccedilatildeo

anterior considerando depois disso os benefiacutecios de ter se lanccedilado a tal experiecircncia

(Rep 516e1)

110

Esse constitui um dos efeitos da inteligecircncia dito dessa vez nos termos da inteira

conversatildeo da alma agrave ideia do bem operada pelo pensamento no seu movimento de

superaccedilatildeo da multiplicidade sensiacutevel para a unidade inteligiacutevel A ascensatildeo ao

conhecimento estaacute completa uma vez estabelecido o viacutenculo com o domiacutenio inteligiacutevel

sendo a recompensa desse percurso a visatildeo do niacutevel mais alto (ζέαλ ηῶλ ἄλσ ηὴλ εἰο ηὸλ

λνεηὸλ ηόπνλ Rep 517b 4-5) e portanto o conhecimento da ideia do bem Conhecer a

ideia do bem vale assinalar eacute dita como as conclusotildees as quais forccedilosamente se chega

acerca de sua funccedilatildeo como causa do que eacute belo correto verdadeiro e inteligiacutevel66

Tal

conhecimento consiste na base para a accedilatildeo quer no domiacutenio da vida puacuteblica quer no

domiacutenio da vida privada Mais uma vez a apreensatildeo da ideia constitui o ponto alto da

inteligecircncia e o conhecimento dela mostra o que eacute fundamental para a boa accedilatildeo

(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) ou seja para a moral e para a poliacutetica Vecirc-se destacado aqui o

caraacuteter ascendente da inteligecircncia antes dado na superaccedilatildeo das hipoacuteteses rumo agrave ideia

do bem Este certamente constitui um dos traccedilos importantes que compotildeem a distinccedilatildeo

deste modo do pensamento e justifica a sua condiccedilatildeo de excelecircncia

44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ

A παηδεία mostra o pensamento em dois aspectos como a capacidade de

cogniccedilatildeo e como atividade do aprendizado (ηὴλ ἐλνῦζαλ ἑθάζηνπ δύλακηλ ἐλ ηῆ ςπρῆ

θαὶ ηὸ ὄξγαλνλ ᾧ θαηακαλζάλεη ἕθαζηνο Rep 518c) Dessa vez a argumentaccedilatildeo vai se

referir agrave preparaccedilatildeo necessaacuteria que antecede agrave apreensatildeo das ideias ou seja mostra a

conduccedilatildeo da alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel que constitui o aprendizado O movimento

induzido pelo pedagogo consiste em voltar (ζηξέθσ πεξηάγσ Rep 518c79) a alma

para a contemplaccedilatildeo do ser e da sua inteligibilidade tal como se viu na alegoria o que

66 Rep 517b7-c4rdquoEm todo o caso eis o que penso No mundo cognosciacutevel vem por uacuteltimo a ideia do

bem que se deixa ver com dificuldade mas se eacute vista impotildeem-se a conclusatildeo de que para todos eacute a

causa de tudo quanto eacute reto e belo e que no mundo visiacutevel eacute ela quem gera a luz e o senhor da luz e no

mundo inteligiacutevel eacute ela mesma que como senhora propicia verdade e inteligecircncia devendo tecirc-la diante

dos olhos quem quiser agir com sabedoria(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) na vida privada e puacuteblicardquo

111

exige um treinamento de modo a deixaacute-la apta para o conhecimento (Rep 518c8-d1) A

educaccedilatildeo seraacute dada como a arte de mover a alma fazendo com que ela mude de direccedilatildeo

(κεηαζηξέθσ) e contemple o bem desviando-a do que se refere ao devir

ldquo- Pois bem disse eu Pode ser que haja uma arte a arte do

desvio isto eacute de como da maneira mais raacutepida e eficiente essa

pessoa mudaria de direccedilatildeo (Τνύηνπ ηνίλπλ ἦλ δ ἐγώ αὐηνῦ ηέρλε ἂλ

εἴε ηο πεξηαγσγο ηίλα ηξόπνλ ὡο ῥᾷζηά ηε θαὶ ἀλπζηκώηαηα

κεηαζηξαθήζεηαη) Natildeo seria poreacutem para criar dentro dela a visatildeo

porque jaacute a tem mas como natildeo a manteacutem na direccedilatildeo correta e natildeo

olha para onde deve para proporcionar-lhe os meios necessaacuterios

para isso

- Eacute provaacutevel que seja assim disse

- Pois bem As outras virtudes as chamadas virtudes da alma

podem muito bem ser algo muito proacuteximo das do corpo (na realidade

natildeo existindo previamente podem ser criadas mais tarde por meio de

haacutebitos e exerciacutecios (ηῷ ὄληη γὰξ νὐθ ἐλνῦζαη πξόηεξνλ ὕζηεξνλ

ἐκπνηεῖζζαη ἔζεζη θαὶ ἀζθήζεζηλ)) a virtude do pensar poreacutem ao

que parece por ser proacutepria de algo mais divino jamais perde sua

forccedila (ἡ δὲ ηνῦ θξνλζαη παληὸο κᾶιινλ ζεηνηέξνπ ηηλὸο ηπγράλεη ὡο

ἔνηθελ νὖζα ὃ ηὴλ κὲλ δύλακηλ νὐδέπνηε ἀπόιιπζηλ) De acordo com

a direccedilatildeo que lhe eacute imposta (ὑπὸ δὲ ηο πεξηαγσγο) vem a ser uacutetil e

proveitosa ou inuacutetil e nociva ()rdquo (Rep 518d2-519a1)

Um dos importantes aspectos do pensamento que ganha ecircnfase na descriccedilatildeo da

educaccedilatildeo diz respeito agrave possibilidade de exerciacutecio e orientaccedilatildeo da capacidade cognitiva

Ao verificar no argumento como eacute dada a atividade intelectual e por quais meios eacute

possiacutevel mobilizaacute-la observa-se que nesse contexto se tem em vista o pensar ao modo

do exerciacutecio por meio do qual a alma se volta para os inteligiacuteveis a partir daquilo que

ela proacutepria dispotildee O desenrolar da capacidade e das atividades intelectuais da alma as

quais tinha como guia um meacutetodo para as suas operaccedilotildees como se viu na analogia da

linha agora tem seu desenvolvimento a partir do estiacutemulo dado pela arte de orientar do

pedagogo Do mesmo modo como caracteriacutestica indestrutiacutevel da alma o pensar no seu

modo excelente (θξόλεζηο)67

resulta da boa orientaccedilatildeo que lhe eacute dada O aprendizado

por sua vez consiste neste movimento de mudar de direccedilatildeo e manter-se tendo em mira o

inteligiacutevel tal como orienta o pedagogo para que por si mesmo adquira o

conhecimento

67 Φξόλεζηο como capacidade inteligente da alma que existe antes do nascimento e apoacutes a morte do

corpo tem a sua ocorrecircncia no Feacutedon na Teoria da Reminiscecircncia e no argumento final que constitui a

prova da imortalidade como seraacute analisado em detalhe mais tarde

112

Cabe notar que natildeo parece se tratar apenas da atividade do conhecimento ou da

capacidade de cogniccedilatildeo mas sobretudo da potencialidade de voltar-se para o bem As

qualidades que se pode adquirir com o exerciacutecio do pensar se distinguem de um tipo de

virtude que os exerciacutecios fiacutesicos e o haacutebito podem conferir ao corpo Dito deste modo

o treino para o exerciacutecio intelectual em contraste com os exerciacutecios fiacutesicos aponta mais

uma vez o pensamento como a faculdade cuja potencialidade deve ser desenvolvida e

orientada para aquisiccedilatildeo das virtudes que interessam ao filoacutesofo governante

Note-se todavia que ao mesmo tempo em que se tem uma importante afirmaccedilatildeo

acerca do pensar como uma atividade virtuosa ou que demonstra virtude da parte de

quem a realiza parece curioso o dado de que isto depende de uma orientaccedilatildeo que natildeo

seja dada pela sua relaccedilatildeo com a ideia do bem inteligiacutevel diretamente O conhecimento

que ilumina as orientaccedilotildees necessaacuterias para o bom governo natildeo seria possiacutevel sem esse

contato com a ideia do bem Entretanto a figura do pedagogo parece realizar a

mediaccedilatildeo entre os inteligiacuteveis e aquele que estaacute em processo de desenvolvimento

intelectual A intenccedilatildeo pedagoacutegica do argumento tem em vista oferecer um modelo de

educaccedilatildeo e para isso precisa sugerir os meios para mobilizar a alma e indicar o que de

fato a potildee em movimento rumo ao conhecimento Natildeo haacute motivos para supor dessa

forma que uma submissatildeo agrave ideia do bem se daria diretamente como parece ocorrer

com o dialeacutetico dispensando um processo para tal O processo nesse caso eacute orientado

pelo pedagogo e o pensar aqui eacute exibido em suas potencialidades para a aquisiccedilatildeo das

virtudes e em seu desenvolvimento como oacutergatildeo a ser treinado para a cogniccedilatildeo Natildeo se

trata portanto de impor ou transmitir um conteuacutedo considerado cientiacutefico ldquo() a

educaccedilatildeo natildeo eacute o que alguns profissionais que satildeo dizem que ela eacute Natildeo havendo

ciecircncia na alma dizem eles laacute a colocam tal qual colocassem visatildeo em olhos cegosrdquo

(Rep 518d9-c2) mas de dispor daquela que parece ser a caracteriacutestica mais importante

da alma e que deve ser atingida por aquele que tem aptidatildeo para governar

Por outro lado dito deste modo o pensar eacute sugerido como uma grande

habilidade para agir segundo a orientaccedilatildeo que lhe for imposta e de discernir sobre a

alma que estaacute para receber orientaccedilatildeo o que pode resultar na virtude ou no viacutecio Ao

modo de uma habilidade esta visatildeo eacute aparentemente incompatiacutevel com a ideia da

caracteriacutestica excelente da alma como eacute a θξόλεζηο Uma vez que o viacutecio parece

tambeacutem ser resultado dela permite a indagaccedilatildeo em que sentido tal caracteriacutestica

excelente poderia servir aos viacutecios se ela eacute excelente justamente por poder atingir a ideia

do bem

113

ldquo- Ora disse eu se uma alma cuja natureza (ηὸ ηο ηνηαύηεο

θύζεσο) eacute essa jaacute na infacircncia fosse submetida a uma cirurgia em

que lhe fosse cortado o que para ela eacute como uma chumbada algo que

tem afinidade com o devir (ηὰο ηο γελέζεσο ζπγγελεῖο ὥζπεξ

κνιπβδίδαο) e que sendo por natureza adequada (πξνζθπεῖο) aos

banquetes prazeres e glutonerias tais voltam para baixo o olhar da

alma se poreacutem jaacute liberta disso voltasse seu olhar para as coisas

verdadeiras (ὧλ εἰ ἀπαιιαγὲλ πεξηεζηξέθεην εἰο ηὰ ἀιεζ) mesmo

aquela alma a dos homens teria uma visatildeo muito niacutetida como a que

tem das coisas para as quais estaacute voltada agorardquo (Rep 519a8-b6)

Cabe problematizar a partir desta uacuteltima passagem a relaccedilatildeo entre o pensamento

como capacidade e atividade cognitiva e a natureza a qual compreende as noccedilotildees de

habilidade e aptidatildeo que o texto ora oferece A primeira questatildeo que se coloca diz

respeito agrave natureza racional da alma ou seja em que sentido o racionalismo tal como

foi analisado ateacute entatildeo estaacute de acordo com a noccedilatildeo de natureza que determina e

classifica a posiccedilatildeo dos cidadatildeos na cidade Antes de mais nada deve-se notar que a

uacuteltima passagem sugere que a educaccedilatildeo eacute capaz de corrigir a natureza Disso decorre

outra importante e inevitaacutevel questatildeo todos poderiam ser filoacutesofos a partir de uma

educaccedilatildeo adequada A tentadora resposta negativa para essa uacuteltima questatildeo viraacute mais

adiante e mostraraacute justamente como procede esta correccedilatildeo De todo modo o limite entre

o que se pode aperfeiccediloar com exerciacutecio e as potencialidades que se tem naturalmente se

encontram nesse contexto da παηδεία e do θαηακαλζάλσ o qual natildeo oferece maiores

elucidaccedilotildees acerca do assunto antes do texto sugerir um procedimento pedagoacutegico O

que eacute posto interessa observar eacute o caraacuteter racional da alma como gecircnero ou seja

distinto do corpo e como o que se refere ao indiviacuteduo o qual se divide em dois tipos os

que estatildeo voltados para a sua parte inferior e os que tecircm em vista a sua parte superior

Observe-se que ainda natildeo estaacute em questatildeo para a educaccedilatildeo somente a natureza do futuro

filoacutesofo o que se daraacute a seguir mas a partir do que como e com que finalidade a

educaccedilatildeo deve orientar a alma Tal como eacute sugerida a possibilidade de orientaccedilatildeo da

alma parece ter em vista os tipos distintos aqui resumidos nesses dois uacuteltimos

perspectiva bastante conveniente com as pretensotildees de um governo que pretende

organizar de modo harmocircnico as vaacuterias partes da cidade

Dado que o diaacutelogo se refere a naturezas diferentes vale lembrar em que sentido

o texto apresenta tal noccedilatildeo e verificar em que medida se pode compreender o

pensamento como capacidade e atividade da alma De acordo que cada cidadatildeo deve

114

exercer uma funccedilatildeo compatiacutevel com a sua natureza (Rep 453b) e de que existem

distinccedilotildees entre elas a exemplo da diferenccedila entre os homens e as mulheres (Rep

453e) Soacutecrates e Glaacuteucon se datildeo conta da importacircncia de averiguar a espeacutecie das

naturezas que se mostram distintas ou iguais Depreendida ateacute entatildeo a partir das

funccedilotildees a investigaccedilatildeo passa a abordaacute-la da perspectiva inversa a saber da natureza

em seu gecircnero e espeacutecie para a funccedilatildeo Dito de outro modo pretende-se verificar o tipo

de natureza como o fator determinante para atribuir uma funccedilatildeo (Rep 454c-d) O

primeiro ponto que se deve ter em vista se refere ao aspecto que se propotildee analisar a

natureza Parece muito mais plausiacutevel e conveniente aos assuntos da cidade observar a

natureza segundo as caracteriacutesticas que apresenta determinado indiviacuteduo Assim natildeo se

trata de considerar a natureza segundo o gecircnero feminino ou masculino mas considerar

individualmente o que se mostra natural- haacute mulheres que satildeo dotadas para a muacutesica ou

tem amor pela sabedoria mas outras natildeo (Rep 455e-456a) A natureza nesses termos eacute

dada como uma aptidatildeo que manifestaraacute ao mesmo tempo as suas afinidades (Rep

456b) e que deve ser desenvolvida pela educaccedilatildeo (Rep 456d-e) Ao constituir o

elemento individual e intriacutenseco que determina as funccedilotildees dos cidadatildeos a natureza tal

como eacute sugerida contrapotildee-se ao haacutebito fundamento ordinaacuterio para o estabelecimento

da ordem na cidade (Rep 456c) Dado que se persegue o conjunto de aptidotildees

adequadas para determinadas atividades o criteacuterio de excelecircncia para desenvolver os

indiviacuteduos e para harmonizar a cidade (Rep 456e-457a) leva em consideraccedilatildeo ao

mesmo tempo eleger os instrumentos e os meacutetodos convenientes para o

desenvolvimento da aptidatildeo ao ponto da excelecircncia sendo conveniente assim propor

uma educaccedilatildeo adequada para cada tipo de natureza

A excelecircncia nesse sentido refere-se ao desenvolvimento maacuteximo da

capacidade que se tem naturalmente No que se refere agraves virtudes a θξόλεζηο parece ser

a capacidade eleita para tal o que permite presumir que aqueles que naturalmente a

possuem podem desenvolvecirc-la a ponto de se tornar um homem virtuoso e ser ela

portanto uacutetil e proveitosa Por outro lado aqueles que a possuem mas natildeo a

desenvolvem podem adquirir viacutecios e ser tatildeo decaiacutedos quanto aqueles que naturalmente

natildeo a tecircm como parece ser o caso daqueles que satildeo considerados saacutebios mas na

verdade satildeo maus (πνλεξόο) Assim cabe perguntar a habilidade que possuem de

discernir e incutir o viacutecio natildeo eacute sinal da inteligecircncia

115

ldquo () Seraacute que a respeito dos que satildeo chamados maus mas

saacutebios ainda natildeo notaste como eacute penetrante o olhar da almazinha

deles como ela distingue nitidamente os objetos para os quais estaacute

voltada e que porque sua visatildeo natildeo eacute ruim ela eacute obrigada a servir o

viacutecio de forma que quanto mais penetrante for seu olhar tanto mais

danos ela produz ndash (ὡο δξηκὺ κὲλ βιέπεη ηὸ ςπράξηνλ θαὶ ὀμέσο δηνξᾷ

ηαῦηα ἐθ ἃ ηέηξαπηαη ὡο νὐ θαύιελ ἔρνλ ηὴλ ὄςηλ θαθίᾳ δ

ἠλαγθαζκέλνλ ὑπεξεηεῖλ ὥζηε ὅζῳ ἂλ ὀμύηεξνλ βιέπῃ ηνζνύηῳ

πιείσ θαθὰ ἐξγαδόκελνλ) (Rep 519a1-6)

Note-se que os falsos saacutebios parecem ser donos de uma potencialidade jaacute que

demonstram ter discernimento e certa perspicaacutecia entretanto mal orientados produzem

danos (θαθὰ) e prestam um serviccedilo nocivo para a cidade A capacidade que possuem a

qual lhe confere discernimento e agudez natildeo parece constituir a θξόλεζηο dado que a

consequecircncia do desenvolvimento natildeo satildeo as virtudes Ao que parece ateacute esses a

educaccedilatildeo seria capaz de corrigir se fossem orientados desde a infacircncia a desenvolver o

que naturalmente possuem de melhor Com a boa educaccedilatildeo as virtudes naturais a cada

um parecem surgir como resultado o que pressupotildee o desenvolvimento de uma

habilidade nos termos de uma aptidatildeo Bem educado cada um estaacute apto a cumprir a

funccedilatildeo que naturalmente lhe cabe desempenhando bem desse modo o seu papel na

cidade A uacuteltima passagem contrapotildee a figura do filoacutesofo e do natildeo-filoacutesofo na figura do

pedagogo e do falso saacutebio para marcar as distinccedilotildees e as consequecircncias do tipo de

conduccedilatildeo e desenvolvimento que se propotildee em contraste com uma ordinaacuteria concepccedilatildeo

de saber e de governo Do mesmo modo distingue o que pode ser considerado

maioridade excelecircncia de uma grande habilidade nem sempre desenvolvida para a

direccedilatildeo que deveria

Assim no que diz respeito ao governante da cidade haacute a exigecircncia do

conhecimento e portanto da frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel pois a verdade e as virtudes

satildeo conhecidas e adquiridas como jaacute visto nesta experiecircncia intelectual que somente o

filoacutesofo pode empreender (Rep 519b7-c1) Para os que natildeo possuem natureza filosoacutefica

natildeo satildeo possiacuteveis as mais altas aquisiccedilotildees que a filosofia oferece com o seu alto grau de

desenvolvimento intelectual Mesmo bem treinados pelo pedagogo os naturalmente

natildeo-filoacutesofos natildeo ascenderiam ao conhecimento e portanto natildeo poderiam governar O

filoacutesofo por apresentar a aptidatildeo para o conhecimento tem por natureza aptidatildeo para o

governo No entanto apesar da ascensatildeo do filoacutesofo a potencialidade de sua natureza

filosoacutefica parece natildeo estar plenamente desenvolvida se natildeo houver o movimento

descendente ou seja se natildeo houver uma atividade que varie da frequentaccedilatildeo do

116

domiacutenio inteligiacutevel para a obscuridade do domiacutenio sensiacutevel a qual analogamente se

refere agrave praacutetica da educaccedilatildeo e do governo A praacutetica de governar constitui uma

exigecircncia da funccedilatildeo que naturalmente deve desempenhar por um lado e o que parece

ser uma inescapaacutevel consequecircncia da inteligibilidade adquirida com a aquisiccedilatildeo das

ideias por outro Em outras palavras tanto a natureza filosoacutefica quanto os ditames

dados pelo conhecimento determinam que o filoacutesofo desccedila ao domiacutenio aonde deve

conduzir a cidade e os educandos na direccedilatildeo do bem

ldquo- A tarefa que cabe a noacutes fundadores que somos disse eu eacute

obrigar que as melhores naturezas cheguem ao aprendizado (ηάο ηε

βειηίζηαο θύζεηο ἀλαγθάζαη ἀθηθέζζαη πξὸο ηὸ κάζεκα) que no que

falaacutevamos haacute pouco daacutevamos como o melhor de todos isto eacute ver o

bem e fazer aquela caminhada para o alto e depois que a fizerem e jaacute

tiverem contemplado suficientemente o bem natildeo devemos permitir-

lhes o que hoje permitimos

- O quecirc

- Que permaneccedilam laacute disse eu e natildeo queiram descer outra vez

para junto daqueles prisioneiros nem partilhar com eles das labutas

e das honras sejam elas de pouco ou muito valor (εἴηε θαπιόηεξαη

εἴηε ζπνπδαηόηεξαη)rdquo (Rep 519c7-d8)

Natildeo parece haver exagero em compreender que o movimento ascendente e

descendente do percurso intelectual do filoacutesofo tal como eacute dado nessa uacuteltima passagem

resgata o movimento da λόεζηϛ como mostrou o exemplo da linha dividida Nas duas

narrativas tanto na linha quanto agora na educaccedilatildeo de posse do conhecimento apoacutes a

ascese o filoacutesofo deve voltar agraves etapas anteriores agrave condiccedilatildeo anterior no caso para

efetivamente levar a termo a sua atividade inteligente Esta parece ser a face praacutetica do

conhecimento cuja base eacute em uacuteltima circunstacircncia a relaccedilatildeo que se estabelece com o

inteligiacutevel pelo pensamento Tal como se viu na anaacutelise acerca da λόεζηϛ a benignidade

do bem conhecida em tal relaccedilatildeo impotildee-se para a alma como modelo atraveacutes do

meacutetodo dialeacutetico O exerciacutecio de pensar segundo a dialeacutetica potildee a alma em contato com

a ideia do bem que uma vez apreendida serviraacute de paracircmetro para as accedilotildees Nesse

sentido a orientaccedilatildeo e a conduccedilatildeo dada por esta arte (ηέρλε ηο πεξηαγσγο) mostra a

legitimidade do conhecimento ao modo da filosofia para a conduccedilatildeo dos cidadatildeos que

se efetiva nessa partilha das coisas valorosas adquiridas com a ascese

Ao mesmo tempo em que a alta cogniccedilatildeo fornece o conhecimento acerca da

ideia do bem como fundamento da justiccedila e das virtudes a realizaccedilatildeo do bom governo

o qual pretende harmonizar a cidade a partir do bem estar (εὖ πξάμεη Rep 519e2) em

117

todas as partes exige esse segundo movimento A lei da cidade como deve ser baseia-

se nesse princiacutepio de harmonia o qual somente o governante filoacutesofo com a

compreensatildeo do verdadeiro princiacutepio pode estabelecer pela ligaccedilatildeo (ηὸλ ζύλδεζκνλ

Rep 520a4) entre as partes assim a cumprindo efetivamente (Rep 520a) O

conhecimento obtido na contemplaccedilatildeo acerca da verdade das coisas belas boas e justas

faz com que o filoacutesofo tenha o discernimento necessaacuterio acerca das imagens sendo

possiacutevel para ele voltar ao domiacutenio das sombras sem riscos O filoacutesofo estaacute preparado

para ordenar a cidade para comandar os cidadatildeos segundo o que dita a razatildeo

45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel

O completo trabalho que o pensamento pode realizar e consequentemente as

transformaccedilotildees morais que podem ocorrer na alma devido o exerciacutecio intelectual de

ascensatildeo ao inteligiacutevel podem ser dadas somente pelo treino da educaccedilatildeo Como se vecirc a

alegoria da caverna e o argumento da παηδεία e do θαηακαλζάλσ descrevem o exerciacutecio

intelectual da filosofia como o percurso da experiecircncia do conhecimento e oferecem

para isso a figura do filoacutesofo como o modelo ideal desse desenvolvimento que a alma

experimenta a partir desta arte - ldquo- Aqui natildeo se trata de ver de que lado cai um caco de

ceracircmica mas de fazer que uma alma decirc uma volta deixando um dia carregado de

trevas para dirigir-se ateacute o verdadeiro dia isto eacute realizar uma verdadeira ascensatildeo ateacute

o ser Isso afirmamos eacute a verdadeira filosofiardquo (Rep 521c6-9) Como meio de

organizar a cidade a paideia deve mobilizar as diferentes classes de modo a se

submeterem ao governo ideal do filoacutesofo Faz sentido assim apresentar um quadro no

qual a alma estaacute sob coaccedilatildeo No caso da alma filosoacutefica interessa mostrar como se daacute

sua submissatildeo ao bem Desse modo para que o projeto de harmonizaccedilatildeo da polis se

cumpra eacute necessaacuterio averiguar os meios que na educaccedilatildeo ajudam nesse movimento As

orientaccedilotildees e aprendizados aplicados no treinamento do futuro governante devem servir

para pocircr a alma por meio da dialeacutetica obediente ao que oferece a razatildeo o ser a

verdade a ideia do bem

118

Ao especificar assim acerca das disciplinas que promovem o movimento da

alma em direccedilatildeo ao ser - ηνῦ ὄληνο νὖζαλ ἐπάλνδνλ- movimento que constitui a

ascensatildeo intelectual da filosofia tem-se o que parece consistir em uma segunda causa

para a atividade de pensar aleacutem da filiaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel O treino intelectual

para percorrer o caminho entre o devir e o ser (Rep 521d1-4) que algumas artes como a

aritmeacutetica possibilitam (Rep 522c) mostram uma via para a intelecccedilatildeo que permite a

atuaccedilatildeo do pedagogo a inquietaccedilatildeo que a contrariedade entre as percepccedilotildees do sensiacutevel

e a visatildeo do inteligiacutevel causam na alma Tal contrariedade como a que encontra o

receacutem-saiacutedo da caverna ao se deparar com os verdadeiros objetos pode consistir em um

estiacutemulo para o pensamento de modo a fazecirc-lo buscar a verdade Desse modo a

disciplina que parece tocar nessa questatildeo a contradiccedilatildeo entre as aparecircncias em

contraponto ao inteligiacutevel eacute a matemaacutetica Natildeo somente por serem o nuacutemero e o caacutelculo

presentes nas outras artes raciociacutenios e ciecircncias mas principalmente por colocarem em

questatildeo de maneira bastante uacutetil para o filoacutesofo a contradiccedilatildeo entre as percepccedilotildees e

assim a contraposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

Assim o aspecto a ser notado no argumento do Livro VII que toca sobretudo a

aritmeacutetica consiste na utilidade pedagoacutegica dessas disciplinas Natildeo somente o proveito

que se pode ter no que se refere ao treinamento militar ou seja o que se pode aproveitar

delas para fins estrateacutegicos de guerra mas sobretudo o treinamento que se pode dar ao

aprendiz atraveacutes do exerciacutecio intelectual envolvido na operaccedilatildeo com os nuacutemeros

ldquo- Pode bem ser que ele seja por natureza um dos aprendizados

que conduzem a inteligecircncia na direccedilatildeo do que buscamos (Κηλδπλεύεη

ηῶλ πξὸο ηὴλ λόεζηλ ἀγόλησλ θύζεη εἶλαη) mas ningueacutem o usa

corretamente mesmo que ele seja o que sem duacutevida eacute capaz de

arrastar-nos ateacute o ser (ρξζζαη δ νὐδεὶο αὐηῷ ὀξζῶο ἑιθηηθῷ ὄληη

παληάπαζη πξὸο νὐζίαλ) (Rep 523a1-3)

Dada a peculiaridade desse κάζεκα ao que parece eacute possiacutevel obter a destreza de

superar as sensaccedilotildees em vista de um exerciacutecio intelectual atraveacutes da aritmeacutetica na

medida em que ela potildee de forma mais objetiva a multiplicidade e a contradiccedilatildeo das

percepccedilotildees sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo agrave unidade Se no argumento da linha dividida o

meacutetodo matemaacutetico era dado para mostrar um objeto de natureza inteligiacutevel mas cujas

caracteriacutesticas implicavam em limitaccedilotildees cognitivas em comparaccedilatildeo agrave ideia do bem e ao

meacutetodo filosoacutefico agora esta mesma caracteriacutestica a saber ter certa ligaccedilatildeo com o

119

sensiacutevel potildee em certa medida a possibilidade da superaccedilatildeo que constitui o trabalho do

intelecto em relaccedilatildeo ao sensiacutevel

A passagem da contradiccedilatildeo sensiacutevel para a determinaccedilatildeo inteligiacutevel como fazem

as matemaacuteticas parece bastante uacutetil para o contexto da pedagogia e revela de fato uma

superaccedilatildeo do intelecto A noccedilatildeo de superaccedilatildeo que acontece com o caacutelculo realizado na

aritmeacutetica por exemplo a passagem da multiplicidade para a unidade tem por essa

razatildeo grande importacircncia para o aprendizado Este dado se mostra relevante na medida

em que situa a oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel apresentada no Livro VI no que se refere a

uma operaccedilatildeo da mente Na analogia da linha dividida as operaccedilotildees envolvidas nos

estados de percepccedilatildeo e de cogniccedilatildeo satildeo distintas e classificadas nos termos de estados

intelectivos da alma em relaccedilatildeo a determinados objetos O que se mostra agora eacute o

princiacutepio que faz a alma inteligir a partir das sensaccedilotildees e qual o tipo de elevaccedilatildeo que a

matemaacutetica enquanto exerciacutecio intelectual pode promover

ldquo- Vou mostrar falei se me concedes atenccedilatildeo que nas sensaccedilotildees

algumas coisas natildeo convidam a inteligecircncia agrave reflexatildeo (ηὰ κὲλ ἐλ ηαῖο

αἰζζήζεζηλ νὐ παξαθαινῦληα ηὴλ λόεζηλ) como se lhes fosse

suficiente o julgamento feito pela sensaccedilatildeo (ὑπὸ ηο αἰζζήζεσο

θξηλόκελα) mas que outras ordenam (δηαθειεύνκαη) que de toda

maneira a inteligecircncia examine como se a sensaccedilatildeo nada produzisse

de vaacutelido

- O que se vecirc de longe disse e o que eacute desenhado com luzes e

sombras Eacute evidente que eacute disso que falas

- Natildeo conseguiste apreender disse eu o que estou dizendo

- De quecirc disse estaacutes falando

- Natildeo incita agrave reflexatildeo disse eu o que natildeo resulta

simultaneamente em sensaccedilotildees opostas (Τὰ κὲλ νὐ παξαθαινῦληα ἦλ

δ ἐγώ ὅζα κὴ ἐθβαίλεη εἰο ἐλαληίαλ αἴζζεζηλ ἅκα) o que poreacutem

delas resulta eu considero que incita agrave reflexatildeo porque a sensaccedilatildeo

natildeo torna uma coisa mais evidente que seu oposto quer a percebemos

de longe ou de perto Com este exemplo compreenderaacutes melhor o que

estou dizendo ()rdquo (Rep 523b9-c4)

Diante deste novo caraacuteter conferido agrave aritmeacutetica parece vaacutelido questionar se

estaria neste argumento a resposta para uma questatildeo pertinente em relaccedilatildeo agraves divisotildees

da linha o que faz a alma realizar a passagem da segunda parte da primeira divisatildeo a

parte que conteacutem animais e objetos fiacutesicos do reino sensiacutevel para a primeira parte da

segunda divisatildeo a qual abarca os seres matemaacuteticos no domiacutenio Inteligiacutevel Ou

resumidamente qual o elemento e de que modo se daacute a passagem do sensiacutevel para o

inteligiacutevel Para tentar responder essa pergunta e para compreender a operaccedilatildeo

120

envolvida nessa superaccedilatildeo deve-se antes reparar que o argumento sugere um trabalho

mental nos termos da percepccedilatildeo que antecede a intelecccedilatildeo a operaccedilatildeo com seres

inteligiacuteveis As operaccedilotildees em torno da αἴζζεζηο satildeo dadas de dois modos ὑπὸ ηο

αἰζζήζεσο θξηλόκελα um juiacutezo sob efeito das sensaccedilotildees considerando-as suficientes e

ηὰ δὲ παληάπαζη δηαθειεπόκελα ἐθείλελ ἐπηζθέςαζζαη um exame feito a partir do

intelecto natildeo baseado nos dados sensiacuteveis No primeiro caso as sensaccedilotildees satildeo tomadas

como os uacutenicos elementos para se realizar tal atividade dita ao modo de um

discernimento (θξίλσ) consideradas portanto suficientes No segundo caso

consideradas deficientes (νὐδὲλ ὑγηὲο) as sensaccedilotildees tecircm exposta a caracteriacutestica que as

invalidam como via para o conhecimento mas que ao mesmo tempo as revelam um

estiacutemulo para a atividade de pensar no seu modo superior a λόεζηο a saber a

contrariedade que se daacute simultaneamente devido a multiplicidade dos dados sensiacuteveis

As muacuteltiplas sensaccedilotildees que assaltam a alma ao mesmo tempo especificamente

as que se apresentam contraacuterias entre si provocam o pensar na medida em que a

obrigam a realizar uma distinccedilatildeo de modo a determinaacute-lo nos termos inteligiacuteveis o que

pode ser feito tanto pela geometria quanto pela filosofia Formulado nesses termos as

percepccedilotildees do sensiacutevel como estiacutemulo se assemelham ao que se encontra no Feacutedon

onde o intelecto trabalha para promover o afastamento ente alma e corpo como resposta

da alma agraves perturbaccedilotildees advindas da sensibilidade Nesse contexto a contradiccedilatildeo eacute dada

na relaccedilatildeo alma-corpo sendo o pensamento uma resposta inteligente da alma para ela

O que se vecirc aqui no livro VII entretanto diz respeito agrave mesma contradiccedilatildeo mas agora

reunida na matemaacutetica a qual apela para elementos inteligiacuteveis a fim de dar tratamento

aos objetos do mundo sensiacutevel

Embora em contextos diferentes a contradiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel se mostra um

estiacutemulo tanto para o matemaacutetico que vecirc nisso a oportunidade de tratar o sensiacutevel

quanto para o filoacutesofo que se vecirc instigado a questionaacute-la filosoficamente O argumento

pede desse modo uma anaacutelise disto que propotildee como contrariedade para que se possa

compreender tal estiacutemulo Primeiramente longe de se sugerir a passividade de uma

mera recepccedilatildeo de dados sensoriais o texto mostra que a percepccedilatildeo constitui uma

atividade que parece ocorrer inevitavelmente acerca desses dados recebidos quer ao

modo de um discernimento quer ao de uma inspeccedilatildeo como se viu Tal contrariedade

potildee em perspectiva nesse sentido a excitaccedilatildeo advinda do sensiacutevel para um trabalho

inteligente e faz desse modo reconhecer na αἴζζεζηο um fator para que se decirc a

atividade do pensamento (δηάλνηα e λόεζηο)

121

Cabe verificar a explicaccedilatildeo que o texto oferece acerca da contradiccedilatildeo dos dados

sensiacuteveis como origem deste estiacutemulo com o ldquoexemplo dos dedosrdquo Vale a pena analisar

este argumento e compreender no que consiste essa contradiccedilatildeo seus mecanismos e as

peculiaridades disto que se mostra um estiacutemulo para o processo de cogniccedilatildeo Desse

modo o exemplo utilizado para ilustrar o que se pretende dizer acerca das sensaccedilotildees

mostra primeiro que uma sensaccedilatildeo natildeo provoca a inteligecircncia quando vista

unilateralmente ou dito de outro modo somente sob uma uacutenica caracteriacutestica

ldquo() Aqui estatildeo trecircs dedos o polegar o indicador e o meacutedio

- Eacute bem isso disse

- Pois bem Imagina que deles eu falo como se estivesse sendo

vistos de perto Vamos Observa-me a respeito deles o seguinte

- O quecirc

- Cada um deles tem igualmente a aparecircncia de um dedo e por

aiacute natildeo faz diferenccedila se eacute visto no meio ou como uacuteltimo se branco ou

negro se grosso ou fino e assim quanto a todas qualificaccedilotildees como

essas Eacute que em situaccedilotildees como essas a alma da maioria dos homens

natildeo eacute forccedilada a perguntar agrave inteligecircncia o que eacute um dedo porque a

visatildeo em nenhum momento lhe deu sinal de que um dedo eacute tambeacutem

ao mesmo tempo o oposto de um dedordquo (Rep 523b4-d6)

Uma vez observados os dedos sem levar em consideraccedilatildeo outras caracteriacutesticas

como cor e tamanho o que os diferenciam entre si natildeo apresentam nenhuma

contrariedade e por isso natildeo evocam em nada a inteligecircncia A visatildeo de um dedo

parece ser suficiente para informar que o objeto visto consiste em um dedo se se

pretende reconhecer no que consiste um dedo Diferentemente se considerados em

todas as caracteriacutesticas que se pode atribuir a um dedo como cor tamanho espessura

tem-se naquilo que eacute reconhecido como dedo caracteriacutesticas distintas e contraacuterias

pondo a alma em reflexatildeo sobre as percepccedilotildees dessas caracteriacutesticas O que eacute visto e

dito como um dedo pode ser grande e pequeno afinal o dedo meacutedio e o polegar satildeo

diferentes um do outro e ambos ditos ldquodedordquo Em outros termos reconhece-se no

mesmo sujeito o dedo atributos contraacuterios como grande e pequeno Observe-se que

diferente de compreender as sensaccedilotildees como via direta para a definiccedilatildeo de algo de

modo que sentir seja equivalente a conhecer elas satildeo dadas naquilo que proporcionam agrave

alma isto eacute nada mais que a percepccedilatildeo de dados sensoriais Opostas as sensaccedilotildees

causam algo que pode ser proveitoso se usado corretamente o ἀπνξεῖλ a dificuldade de

ter no mesmo sujeito em questatildeo percepccedilotildees antagocircnicas

122

A dificuldade o impasse no qual a alma se vecirc ao se dar conta de atributos

opostos eacute o que a faz recorrer ao intelecto Eacute nestes termos que se pode compreender a

incitaccedilatildeo (παξαθιεηηθόο ἐγεξηηθόο Rep 523e1) da alma ao pensamento a partir das

sensaccedilotildees a procura por meio da razatildeo de uma resoluccedilatildeo para tal dificuldade de

origem na percepccedilatildeo sensiacutevel

ldquo- Entatildeo disse eu em tais situaccedilotildees a alma natildeo se sentiraacute

necessariamente diante de um impasse (Οὐθνῦλ ἦλ δ ἐγώ ἀλαγθαῖνλ

ἔλ γε ηνῖο ηνηνύηνηο αὖ ηὴλ ςπρὴλ ἀπνξεῖλ) O que afinal eacute a dureza

que essa sensaccedilatildeo indica se da mesma coisa ela diz que tambeacutem eacute

mole E o que eacute a sensaccedilatildeo de leveza e de peso se o pesado eacute leve e

o leve eacute o pesado - E satildeo essas interpretaccedilotildees que desconcertam a

alma e exigem exame (Καὶ γάξ ἔθε αὗηαί γε ἄηνπνη ηῆ ςπρῆ αἱ

ἑξκελεῖαη θαὶ ἐπηζθέςεσο δεόκελαη) (Rep 524a6-b2)

Uma vez discorrido acerca de como ocorre e no que consiste o estiacutemulo das

percepccedilotildees que colaboram com o pensar vale examinar com minuacutecias a caracteriacutestica

dos nuacutemeros e do caacutelculo capaz de pocircr e de promover a superaccedilatildeo desse antagonismo

do sensiacutevel A saiacuteda do impasse posto pela sensaccedilatildeo estaacute nas operaccedilotildees intelectivas que

iratildeo investigar o que eacute a unidade em vista destas vaacuterias percepccedilotildees Assim a alma busca

o que eacute o dedo o pesado ou qualquer outra percepccedilatildeo em questatildeo como jaacute dito mas

nos termos que a matemaacutetica oferece como uma unidade de modo a examinar

(ἐπηζθνπεῖλ Rep 524b4) com o caacutelculo e com a inteligecircncia (ινγηζκόλ ηε θαὶ λόεζηλ) se

cada dado recebido diz respeito a um ou a dois objetos (Rep 524b5) Um e dois

constituem as referecircncias nas quais a alma se baseia para realizar uma interpretaccedilatildeo

(ἑξκελεία Rep524b1) do que lhe sobreveacutem Ela procede verificando primeiro se o

objeto que vecirc corresponde a um ou a dois isto eacute o que lhe aparece como dois eacute

entendido como dois nos termos de duas caracteriacutesticas distintas o pesado e o leve por

exemplo igualmente o que eacute visto tambeacutem eacute um ou seja uma uacutenica caracteriacutestica vista

individualmente o peso e a leveza Cada sensaccedilatildeo pode ser concebida como uacutenica

como peso e leveza as quais ditas deste modo supotildeem a noccedilatildeo e natildeo mais a sensaccedilatildeo

de pesado e de leve Assim podem ser concebidas duas quando entendidas como

sensaccedilotildees e uma quando entendidas nos termos de uma noccedilatildeo de natureza inteligiacutevel

Nesse uacuteltimo as caracteriacutesticas satildeo compreendidas como distintas e separadas

A alma entende nesta operaccedilatildeo que caracteriza o ινγηζκόο a unidade a

duplicidade e a relaccedilatildeo entre os objetos soma divisatildeo e ao fim o que mais interessa ao

123

filoacutesofo a indivisibilidade da unidade tal como seraacute sugerido mais adiante A divisatildeo

que a inteligecircncia opera nos termos da matemaacutetica constitui a divisatildeo (δύν

θερσξηζκέλα) daquilo que nos sentidos eacute apreendido como misturado (ἀρώξηζηά) (Rep

524c) A oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel (ηὸ κὲλ λνεηόλ ηὸ δ ὁξαηὸλ Rep 524c13) ganha

a sua versatildeo nesse argumento ao modo da distinccedilatildeo matemaacutetica isto eacute na dicotomia

confuso - distinto ou junto ndash separado (Rep 524c6-8) Constrangida a apreender as

qualidades separadamente a alma faz a distinccedilatildeo matemaacutetica entre sensiacutevel-inteligiacutevel

ao modo de uma abstraccedilatildeo na qual separa a qualidade percebida em termos inteligiacuteveis

como nuacutemero e relaccedilatildeo Uma vez separadas pelo intelecto qualidades como grandeza e

pequenez podem ser averiguadas individualmente ou conforme os propoacutesitos

filosoacuteficos nelas mesmas (Rep 524c10-11)68

Eacute nesta dicotomia que o nuacutemero se mostra capaz de estimular o exerciacutecio

intelectual do raciociacutenio (ὡο ηὰ κὲλ παξαθιεηηθὰ ηο δηαλνίαο Rep 524d2-3) visto

que potildee a unidade indivisiacutevel e o oposto que sempre a acompanha a multiplicidade (εἰ δ

ἀεί ηη αὐηῷ ἅκα ὁξᾶηαη ἐλαληίσκα Rep 524e2) Este constitui um dado importante acerca

dos nuacutemeros uma vez levantada a hipoacutetese da caracteriacutestica ligaccedilatildeo da matemaacutetica com

o sensiacutevel no Livro VI Neste trecho parece claro que tal ligaccedilatildeo se daacute nessa dicotomia

proacutepria do nuacutemero a qual possibilita tanto uma investigaccedilatildeo em vista da essecircncia

quanto uma ordenaccedilatildeo no que se refere agrave esfera do sensiacutevel Em outras palavras ao

mesmo tempo em que a simultaneidade das percepccedilotildees obriga a alma a buscar a unidade

para distinguir e definir um objeto visto tem-se no nuacutemero uma versatildeo inteligiacutevel para

compreender a pluralidade que tambeacutem caracteriza esse mesmo objeto A matemaacutetica se

mostra assim um modo de inquiriccedilatildeo que colabora com a filosofia ao constituir um

caminho para o estudo do ser Ao mesmo tempo eacute uma disciplina que oferece uma

perspectiva inteligente para o que eacute experienciado69

sendo por essa razatildeo uacutetil tambeacutem

para entender e organizar linhas de batalha como jaacute mostrou o texto (Rep 522e)

68 Trabattoni adverte que o ldquoPortanto natildeo se trata de colher a definiccedilatildeo de cada coisardquo Para o autor o

dinamismo do logos filosoacutefico natildeo tem a intenccedilatildeo de definir o objeto pois uma definiccedilatildeo justamente o

cessaria Assim considera que ldquo() na realidade este verbo [dioriacutezō] para Platatildeo significa muito mais

que definir ldquodistinguir delimitar separarrdquo A ldquodefiniccedilatildeordquo em outras palavras eacute o ato pelo qual certo

objeto eacute delimitado quando eacute individuado atraveacutes de uma especifica atribuiccedilatildeo que o diferencia em meio

agrave confusatildeo de um conjunto de outros objetosrdquo O conhecimento na filosofia natildeo deve ser entendido como

um conhecimento proposicional Trabattoni F 2013 p 169-171

69 Para deixar clara a perspectiva em que o argumento aborda os nuacutemeros os conceitos geomeacutetricos vale

trazer o comentaacuterio de Pierre-Maxime Schuhl sobre o que Platatildeo pretendia extrair dos conhecimentos

matemaacuteticos em oposiccedilatildeo ao prazer esteacutetico que se buscava nas artes especialmente escultura e

arquitetura ldquoApoacutes ter assim falado das belezas geomeacutetricas ndash a preferecircncia que lhes eacute dedicada natildeo haacute

124

Uma vez que trabalham com os nuacutemeros o caacutelculo e a aritmeacutetica estimulam

intelectualmente a alma atraveacutes do estudo da unidade a investigar a essecircncia

conduzindo-a a contemplaccedilatildeo do ser e por consequecircncia agraves qualidades proacuteprias do

inteligiacutevel como a verdade (Rep 524e5-525b1) Nisto consiste a superaccedilatildeo que a

matemaacutetica de fato proporciona a elevaccedilatildeo do sensiacutevel em busca da essecircncia inteligiacutevel

cujo exerciacutecio deste movimento torna haacutebil o guerreiro e o filoacutesofo para a funccedilatildeo que

lhes cabem ndash (εἶλαη γελέζεσο ἐμαλαδύληη Rep 525b5-6) Note-se que o argumento natildeo

sugere uma aquisiccedilatildeo da matemaacutetica anaacuteloga ou equivalente ao que se tem na filosofia

Mesmo que haja tal elevaccedilatildeo no exerciacutecio do raciociacutenio aritmeacutetico natildeo eacute a mesma que

mostraraacute a dialeacutetica visto que natildeo atinge a essecircncia mas a sugere atraveacutes da unidade e

do conhecimento da verdade

Como se viu o questionamento acerca do que eacute o um para o matemaacutetico gira

em torno do objeto que observa tendo em consideraccedilatildeo pode-se presumir a noccedilatildeo de

unidade em relaccedilatildeo agrave sua multiplicidade tendo em vista as relaccedilotildees que manteacutem com

ela soma divisatildeo multiplicaccedilatildeo O tratamento inteligente que pode oferecer ao sensiacutevel

exige ainda assim uma superaccedilatildeo das percepccedilotildees que satildeo postas em termos

aritmeacuteticos mas entretanto o objetivo maior consiste no trabalho com o caacutelculo que os

nuacutemeros possibilitam Natildeo parece haver portanto um questionamento acerca da

inteligibilidade da unidade sua natureza e relaccedilatildeo com o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico como

questionaria o filoacutesofo fazendo com que o matemaacutetico permaneccedila em um grau inferior

de elevaccedilatildeo comparado ao dialeacutetico

ldquo- Essa ciecircncia como diziacuteamos haacute pouco com muita forccedila

conduz a alma para o alto e a obriga a discutir a respeito dos

proacuteprios nuacutemeros sem jamais admitir discussatildeo caso algueacutem lhe

proponha nuacutemeros que tenham corpos visiacuteveis e palpaacuteveis Deves

saber que os peritos nesses assuntos se algueacutem usando a sua razatildeo

tenta dividir a proacutepria unidade fazem caccediloada e natildeo admitem isso

Se poreacutem tu a fazes em pedaccedilos eles a multiplicam para que jamais a

unidade se mostre como natildeo una mas como muitas partiacuteculas (ἀιι

ἐὰλ ζὺ θεξκαηίδῃο αὐηό ἐθεῖλνη πνιιαπιαζηνῦζηλ εὐιαβνύκελνη κή

πνηε θαλῆ ηὸ ἓλ κὴ ἓλ ἀιιὰ πνιιὰ κόξηα)rdquo (Rep 525d5e4)

nada de surpreendente pois elas deixam entrever as Ideias e os nuacutemeros com cujo auxiacutelio o demiurgo

deu sua forma definitiva aos elementos ()rdquo Schuhl P M op cit p 78

125

Nesse sentido o estiacutemulo que a aritmeacutetica daacute agrave λόεζηϛ eacute indireto sendo a

operaccedilatildeo intelectual da δηάλνηα ao modo do ινγηζκόο um degrau de ascensatildeo

inteligiacutevel

Dadas nesta perspectiva as matemaacuteticas explicam a origem da ascensatildeo do

domiacutenio sensiacutevel para o domiacutenio inteligiacutevel que o Livro VI indicou no exemplo da linha

dividida O acreacutescimo fundamental do ldquoargumento dos dedosrdquo para explicar a noccedilatildeo de

ascese vale notar consiste na reaccedilatildeo inteligente ao sensiacutevel que o argumento mostra

com a oposiccedilatildeo uno-muacuteltiplo operada pela aritmeacutetica a qual deixa evidente a ligaccedilatildeo

entre um plano e outro e o salto do ηόπνπ ηὸ ὁξαηνῦ para o ηὸ λνεηνῦ γέλνπο efetuada

pelo pensamento Natildeo se trata de oferecer um parecer e uma classificaccedilatildeo agrave atividade

racional de acordo com as qualificaccedilotildees sensiacutevel-inteligiacutevel como anteriormente mas

mostrar nesta experiecircncia do conhecimento tal como quer mostrar o Livro VII ao

oferecer um modelo de educaccedilatildeo porque e como as disciplinas se mostram

verdadeiramente uacuteteis para despertar e conduzir a alma para uma elevaccedilatildeo desse tipo O

argumento responde de certo modo as indagaccedilotildees acerca dos seres matemaacuteticos e da

sua cogniccedilatildeo sendo indicados o nuacutemero como o objeto proacuteprio da matemaacutetica a

unidade como o elemento inteligiacutevel primordial e o caacutelculo como a operaccedilatildeo racional

especiacutefica para este conhecimento O grau de inteligibilidade dos objetos matemaacuteticos

ganha elucidaccedilatildeo com as explicaccedilotildees sobre a unidade a qual do mesmo modo que o

meacutetodo natildeo tem sua natureza inteligiacutevel posta em questatildeo Em outros termos a

exemplo do que se viu na linha o matemaacutetico natildeo busca o um essencial agrave unidade

ficando restrito agraves operaccedilotildees que pode realizar com ele - diga-se de passagem restriccedilatildeo

bastante parecida com a que se identifica no procedimento demonstrativo Todavia tal

restriccedilatildeo serve tambeacutem para revelar o ensino da matemaacutetica como conhecimento

estrateacutegico na educaccedilatildeo do futuro governante e como atividade racional fundamental

para a elevaccedilatildeo da alma ao niacutevel mais alto de sua capacidade inteligente

V A perspectiva da inteligecircncia

A apreensatildeo do ser e da ideia segundo a λόεζηϛ constitui uma forma de visatildeo

que oferece agrave alma o objeto apreendido em sua integralidade Agrave primeira vista uma

126

afirmaccedilatildeo deste tipo pode induzir a questionar a essecircncia ou a ideia como compostos

cujas partes seriam caracteriacutesticas conhecidas no decorrer do exerciacutecio dialeacutetico Esse

natildeo consiste em um raciociacutenio naife se estiver em vista a noccedilatildeo de θαη ἰδέαλ κίαλ

ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο a ideia uacutenica que exprime a realidade a essecircncia (ldquoὃ

ἔζηηλrdquo ἕθαζηνλ) (Rep 517b) e por isso tais caracteriacutesticas Outra maneira de

compreender consiste em julgar que os atributos conhecidos pelo exerciacutecio do

pensamento no niacutevel matemaacutetico ou mesmo no niacutevel dialeacutetico como a verdade ou a

unidade formam todo o composto que a essecircncia exprime alternativa que o argumento

sobre as matemaacuteticas natildeo autoriza visto que o meacutetodo aritmeacutetico ou geomeacutetrico por

exemplo natildeo pretende conhecer a ideia e sim a unidade os conceitos e as operaccedilotildees

realizaacuteveis nesta arte Isso valeria para a dialeacutetica mas natildeo para as matemaacuteticas A

terceira opccedilatildeo a que parece mais fiel agraves dificuldades de se compreender no que consiste

uma visatildeo total do ser na dialeacutetica deixa somente a essecircncia como o que consituiu o

todo de um objeto sendo o pensamento nos termos da intelecccedilatildeo maacutexima capaz de

apreender o ser e consequentemente algumas caracteriacutesticas ataacutevicas a ele como

parece ser o caso da verdade O sentido de totalidade ou integralidade inspirado pela

declaraccedilatildeo da capacidade do dialeacutetico deve ser tomado ao que parece como o conjunto

de atributos da essecircncia apreendidos com o treino nas disciplinas matemaacuteticas o uno

imutaacutevel e invisiacutevel tal como apresenta o argumento no qual se fala das capacidades

cognitivas do aprendiz da arte dialeacutetica

ldquo- Depois desse periacuteodo disse eu a partir dos vinte anos os que

tiveram preferecircncia na escolha receberatildeo honras maiores que os

outros e as noccedilotildees que nessa etapa da educaccedilatildeo crianccedilas que eram

natildeo receberam sistematicamente deveratildeo ser reunidas para que elas

numa visatildeo de conjunto vejam a afinidade que as ciecircncias tecircm entre

si e tambeacutem a natureza do ser (νἱ πξνθξηζέληεο ηηκάο ηε κείδνπο ηῶλ

ἄιισλ νἴζνληαη ηά ηε ρύδελ καζήκαηα παηζὶλ ἐλ ηῆ παηδείᾳ γελόκελα

ηνύηνηο ζπλαθηένλ εἰο ζύλνςηλ νἰθεηόηεηόο ηε ἀιιήισλ ηῶλ

καζεκάησλ θαὶ ηο ηνῦ ὄληνο θύζεσο)

- Pelo menos falou soacute um aprendizado como esse permaneceraacute

firme naqueles em que vier a ocorrer

- Essa eacute a maior prova disse eu de que uma natureza eacute ou natildeo eacute

apta para a dialeacutetica Quem eacute capaz de visatildeo de conjunto estaacute apto

para a dialeacutetica e quem natildeo eacute capaz natildeo estaacute (Καὶ κεγίζηε γε ἦλ δ

ἐγώ πεῖξα δηαιεθηηθο θύζεσο θαὶ κή ὁ κὲλ γὰξ ζπλνπηηθὸο

δηαιεθηηθόο ὁ δὲ κὴ νὔ)ldquo (Rep 537b8-c7)

A visatildeo que o dialeacutetico possui versa sobre o inteligiacutevel isto eacute sobre a natureza

inteligiacutevel do ser e a relaccedilatildeo de familiaridade entre as disciplinas como dito antes (Rep

127

531d) A inteireza com que se pode tomar o inteligiacutevel envolve tambeacutem deve-se

observar um olhar sobre as ηέρλαη com as quais se exercita O treino do aprendiz

requer ao mesmo tempo um exame acerca dos aprendizados que recebe devendo ver

nesses natildeo somente o que eles tecircm por objeto mas tambeacutem o meacutetodo e os resultados de

cada um Assim tal como mostra o contexto da παηδεία a noccedilatildeo de totalidade de visatildeo

que demonstra ter o dialeacutetico eacute composta pela apreensatildeo da realidade e pelo olhar criacutetico

sobre o procedimento das artes sendo esta a perspectiva tiacutepica do dialeacutetico Tal visatildeo

confere a ele deve-se observar um caraacuteter cientificista dado que aposta nos

procedimentos e nos paracircmetros racionais - o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico o ser e a ideia do

bem - para obter o conhecimento de algo A ἐπηζηήκε sob esse acircngulo consiste na

visatildeo dessa integralidade para a qual o dialeacutetico eacute naturalmente inclinado e que se

constitui consequentemente tambeacutem de um exame sobre as operaccedilotildees racionais

expressas nos diferentes meacutetodos que se dispotildee para atingir os inteligiacuteveis70

Desse modo justifica-se que a destreza que se desenvolve pelo treinamento dado

pela educaccedilatildeo deve ser permanentemente exercitada por via do movimento de subida e

descida dialeacutetica A habilidade em inspecionar o objeto em questatildeo exige a inspeccedilatildeo

sobre os meacutetodos racionais uma autoinspeccedilatildeo para garantir ao final o conhecimento

Da mesma maneira na vida puacuteblica tal inspeccedilatildeo serve para assegurar um modo de vida

no qual se decirc o devido respeito e a obediecircncia ao que de fato se deve conhecer e seguir

a verdade o belo a justiccedila e o bem Sem a clara compreensatildeo do que consiste o

exerciacutecio dialeacutetico os aprendizes correm o risco de confundi-la com a arte eriacutestica ou

retoacuterica deixando reduzirem tais noccedilotildees ao niacutevel das opiniotildees (θαὶ πνιιάθηο θαὶ

πνιιαρῆ ἐιέγρσλ εἰο δόμαλ θαηαβάιῃ Rep 538d9) corrompendo assim o processo de

aprendizado e formaccedilatildeo intelectual e moral do futuro governante (Rep Rep 538d6-

539a1) e solapando a credibilidade na filosofia antes adquirida (Rep 539b9-c3) A

postura inteligente que se exprimiraacute mais tarde no governo depende dessa maneira da

dedicaccedilatildeo contiacutenua agrave filosofia por meio do exerciacutecio racional que garantiraacute o exerciacutecio

70 Gosling entende tal visatildeo como uma percepccedilatildeo intelectual da Forma provocada pelo exerciacutecio

dialeacutetico Este tipo de percepccedilatildeo como denomina oferece o conhecimento nos termos de uma

consciecircncia acerca do que se examina Gosling The Argument of the Philosophers p 120 O autoexame

que o exerciacutecio filosoacutefico propotildee tal como aqui se verifica realiza-se na observaccedilatildeo das accedilotildees segundo o

meacutetodo empregado para conhecer e consequentemente na apreensatildeo dessa Forma que constitui o

conhecimento O comentaacuterio do autor nesse sentido vai ao encontro do que aqui se analisa embora

aponte apenas para o que resulta do exerciacutecio A apreensatildeo da realidade e a autoinspeccedilatildeo que acontecem

na dialeacutetica compotildeem pelo que se vecirc esta ldquoconsciecircnciardquo de que fala Gosling dado que o conhecimento

natildeo seria possiacutevel sem que houvesse a atividade intelectual a partir do meacutetodo correto e adequado

128

do governo a favor da cidade como uma accedilatildeo inevitaacutevel dado que estaacute treinado a

contemplar a ideia do bem e desse modo tecirc-lo como modelo (Rep 540a-b)

A semelhanccedila entre filoacutesofo e cidade dita no final do Livro VII (Rep 541b) se

cumpre na medida em que as accedilotildees tanto intelectuais quanto poliacuteticas tenham como

paracircmetro o mesmo elemento o bem e a ideia do bem e sejam realizadas segundo a

operaccedilatildeo da alma que reconhece esta relaccedilatildeo a inteligecircncia A visatildeo de todo que o

dialeacutetico possui garante a frequentaccedilatildeo de maneira inteligente nos planos poliacutetico eacutetico

e cientiacutefico uma vez que constitui a perspectiva na qual identifica as vias inteligiacuteveis

comuns em todos os campos Como dispotildee da capacidade de reconhecer o elo comum

entre as ciecircncias natildeo seria de todo impossiacutevel reconhecer da mesma forma as relaccedilotildees

de afinidade entre o que observa ainda que seja no plano sensiacutevel no qual se daacute a vida

poliacutetica Nesse sentido natildeo se pode abrir matildeo do movimento racional da inteligecircncia

fundamentalmente ἀλάβαζηο e θαηάβαζηο o qual proporciona o reconhecimento das

ligaccedilotildees inteligiacuteveis entre objetos e campos diferentes e permite ao filoacutesofo governante

o trabalho intelectual de inteligir e realizar o exerciacutecio poliacutetico de governar a cidade

Pode-se supor que sem esta peculiaridade da ζύλνςηο natildeo haveria uma maneira

inteligente com a qual o filoacutesofo pudesse mobilizar as partes da cidade para governaacute-las

A visatildeo do todo caracteriacutestica do dialeacutetico consiste assim na apreensatildeo da essecircncia e

da ideia que se realiza com a intelecccedilatildeo ao modo da λόεζηϛ por via do reconhecimento

das relaccedilotildees e aspectos inteligiacuteveis entre os elementos que se tem em exame71

Cabe ainda um debate sobre a ζύλνςηο Para isso vale ter em mente as

limitaccedilotildees expostas no iniacutecio da investigaccedilatildeo sobre a possibilidade de conhecer o bem

Conveacutem lembrar que o estudo acerca do bem se realiza a partir do exame daquilo que a

ele se assemelha e possui propriedades iguais ao bem a ideia do bem analogamente dito

ldquofilho do bemrdquo Natildeo se teve a pretensatildeo com isso de compreender o bem ou mesmo a

ideia do bem em toda a sua magnitude mas somente na medida em que eacute possiacutevel

apreendecirc-los Um estudo acerca da racionalidade isto eacute seus objetos gecircneros

operaccedilotildees procedimentos e alcances como mostraram os argumentos analisados nos

Livros VI e VII apresenta um perfil racional da alma condizente com a natureza e

habilidades do dialeacutetico que eacute educado para ser plenamente consciente dos limites e

alcances cognitivos (Rep 532b1-2) A visatildeo que a alma adquire com a dialeacutetica

71 Em outros termos Chen define assim a ζύλνςηο ldquoSynopsis eacute a atividade da visatildeo de conjunto (seeing-

together) intelectual dos casos ζπγγελή de uma ideia na visatildeo da ideia ao longo da linha de relaccedilatildeo de

derivaccedilatildeordquo Chen op cit p 187

129

demonstra a sua capacidade de ver com clareza tal como sugerido em 533e nesse

sentido equivalente a apreender a realidade Natildeo parece haver no caso da ζύλνςηο algo

como uma visatildeo suacutebita na qual a alma ao fim de um processo repentinamente se depara

com o real As exigecircncias do meacutetodo dialeacutetico demonstram que o processo eacute o que

determina tal apreensatildeo como resultado e natildeo se teria a visatildeo da ideia sem o percurso

anterior no qual se orienta a visatildeo para as coisas inteligiacuteveis72

Em outras palavras a visatildeo ao ser orientada para ver os inteligiacuteveis adquire aos

poucos a habilidade de ver com clareza ou seja de apreender o que eacute do gecircnero

inteligiacutevel constituindo desse modo uma clarividecircncia primeiro sobre as relaccedilotildees

inteligentes como se daacute nas matemaacuteticas e depois sobre o ser as ideias e tudo que seja

do gecircnero inteligiacutevel e possa evidentemente ser apreendido pelo intelecto A

consequecircncia importante da apreensatildeo da visatildeo do todo como se mostra a ζύλνςηο diz

respeito agrave possibilidade de conhecer o justo e as virtudes ou seja aquilo que natildeo eacute dado

precisamente como uma forma mas que no entanto soacute pode ser inferido no caso da

justiccedila e adquirido no caso das virtudes com a visatildeo sinoacuteptica dada por meio do

trabalho da inteligecircncia Natildeo se trata de uma ἐμαίθλεο onde a alma subitamente capta a

ideia como um salto cognitivo Compreender assim a visatildeo do todo seria infiel ao

trabalho de preparaccedilatildeo do pedagogo que pretende uma progressatildeo cognitiva O

resultado do trabalho dialeacutetico como bem mostrou a alegoria da caverna depende de

um treino de conversatildeo em que consiste a educaccedilatildeo da alma na direccedilatildeo da ideia um

processo paulatino de ascensatildeo a um grau cognitivo superior que condiciona a alma a

ter tal clareza ou seja a discernir e operar com as ideias mesmo ao lidar com o domiacutenio

visiacutevel como visto O dialeacutetico natildeo abandona tal perspectiva inteligente e ao continuar

operando com ideias demonstra possuir uma visatildeo integral que natildeo se daria ao que

72 Trabattoni tem o seguinte entendimento sobre a metaacutefora da visatildeo a qual descreve uma apreensatildeo

dialeacutetica e natildeo uma intuiccedilatildeo o que tambeacutem se defende nessa argumentaccedilatildeo ldquoAo indicar a instantacircnea

precisatildeo do conhecimento natildeo mediado pelo loacutegos estruturado e descritivo da linguagem a metaacutefora

taacutetil neste caso seria anaacuteloga agravequela oacutetica Como demonstra por outro lado no confronto com 511b4

ao exprimir um conhecimento de caraacuteter discursivo a expressatildeo taacutetil natildeo eacute menos idocircnea daquelas

oacuteticas a faculdade que colhe os objetos relativos ao quarto segmento da linha natildeo eacute portanto a visatildeo

ou a intuiccedilatildeo intelectual mas o loacutegos compreendido na sua plena capacidade do dialeacutegesthai ou seja

de raciocinar dialeticamente Confirma-se assim que a extensatildeo de modelos tiacutepicos do conhecimento

sensiacutevel e intelectual possuem valores metafoacutericos e que consequentemente o uso destas metaacuteforas natildeo

diz nada de decisivo acerca da natureza do conhecimento Cabe pontuar que a dyacutenamis toũ dialeacutegesthai

representa a capacidade universalizante do logos e eacute um instrumento ativo e fomentador do movimento e

da relaccedilatildeo entre o particular e o universal entre a multiplicidade e a unidade De fato esta eacute a funccedilatildeo

da dialeacuteticardquo Trabattoni op cit p 161 Deve-se entender ldquovisatildeordquo ou ldquotocarrdquo como metaacutefora da

apreensatildeo das ideias realizada pela dialeacutetica Natildeo parece haver como apontou Trabattoni a intenccedilatildeo de

mostrar a possibilidade de aquisiccedilatildeo sem o trabalho da dialeacutetica e de todo o processo de conversatildeo ao

inteligiacutevel promovido pela educaccedilatildeo O conhecimento da ideia exige como se tem visto a preparaccedilatildeo da

alma para tal

130

parece sem poder operar no niacutevel tal qual supotildee o estado de λόεζηϛ A inteligecircncia

nesses termos constitui a visatildeo do todo e ldquoter inteligecircnciardquo significa natildeo sair deste

estado natildeo perder esta perspectiva

Pelo que foi analisado a alma pode descer a um domiacutenio inferior sem descer de

niacutevel cognitivo Parece natildeo haver relaccedilatildeo necessaacuteria entre ir agraves sombras e deixar de ser

dialeacutetico Todavia deve-se admitir que precisar o momento desta visatildeo consiste em uma

tarefa bastante difiacutecil e cabiacutevel somente na medida em que se distingue os dois graus de

cogniccedilatildeo δηάλνηα e λνῦο A δηάλνηα natildeo constitui uma visatildeo do todo porque com seu

modo de operar a alma natildeo apreende o caraacuteter ontoloacutegico dos objetos o que eacute a unidade

ou o triacircngulo atendo-se ao aspecto formal e operacional desses - a unidade como

referecircncia numeacuterica o triacircngulo uma forma geomeacutetrica de trecircs lados O que parece

afirmar a visatildeo do todo como uma condiccedilatildeo do dialeacutetico eacute o movimento ascendente ndash

descendente cuja descida se realiza utilizando exclusivamente ideias o que natildeo

configura desse modo uma descida de niacutevel cognitivo A visatildeo ao modo de uma

ζύλνςηο descreve assim um estado elevado da alma cuja capacidade intelectual

apreende a ideia inteligiacutevel e o que se pode inferir a partir dela

A possibilidade de inferecircncia e de conhecimento por parte do filoacutesofo do que eacute

justo e das virtudes se tornam conjugadas com a boa praacutetica poliacutetica a partir das relaccedilotildees

inteligentes as quais tecircm como paracircmetro o inteligiacutevel e que se pode realizar nos termos

da descida do filoacutesofo O condicionamento a um estado de λόεζηϛ e ζύλνςηο resultante

deste exerciacutecio faz supor assim que se trata do estado contemplativo propiciado pela

filosofia no qual se conhece coisas tal como o belo o bom e o justo desta vez dito no

contexto do processo cientiacutefico e do exerciacutecio poliacutetico Longe de consistir em uma

apariccedilatildeo o que se diz da visatildeo do inteligiacutevel sugere assim a construccedilatildeo de uma

perspectiva proacutepria para atingir e lidar com o que eacute real que se realiza antes de tudo a

partir da capacidade de estabelecer determinadas relaccedilotildees utilizando as capacidades

racionais como a cogniccedilatildeo73

Deve-se admitir que ao descrever o fim do processo nos termos de uma visatildeo o

texto abre caminho para algumas interpretaccedilotildees acerca do que consiste de fato a

73 A visatildeo da alma como parece ser a ζύλνςηο apresenta-se desse modo bastante diferente do que se

tem em O Banquete talvez o exemplo mais direto de que venha a ser uma visatildeo do Belo inteligiacutevel nos

termos de uma ἐμαίθλεο ( ) de um salto impetuoso que leva o homem para o estado de contemplaccedilatildeo O

impulso eroacutetico orientado pelo exerciacutecio filosoacutefico permite a visatildeo do Belo e a vivecircncia inteligiacutevel tal

como se tem n‟A Repuacuteblica (211a-b) A diferenccedila entre as narrativas eacute que o Banquete traz uma

descriccedilatildeo deste salto da abrupta aquisiccedilatildeo do Belo como uma visatildeo que irrompe diante da alma enquanto

n‟A Repuacuteblica a ecircnfase da visatildeo Inteligiacutevel ou perspectiva inteligente ao que parece se volta para o

desenrolar da apreensatildeo intelectual que encontra termo no exerciacutecio pedagoacutegico e poliacutetico

131

aquisiccedilatildeo do conhecimento operada pela inteligecircncia Jaacute foi posta a dificuldade em

precisar a passagem na qual se tem a visatildeo da ideia Do mesmo modo jaacute se comentou

sobre a pertinecircncia de considerar o movimento completo da inteligecircncia composto pela

apreensatildeo e pelo estabelecimento de relaccedilotildees tendo a ideia como paradigma O

comentaacuterio de Gosling natildeo estaacute tatildeo distante de algumas conclusotildees das uacuteltimas anaacutelises

sobre a ζύλνςηο realizadas aqui que contra essa posiccedilatildeo diz

ldquoA ecircnfase eacute entretanto sobre unidades isolaacuteveis em contraste

com os particulares multiformes que manifestam um hospedeiro de

propriedades em uma mistura confusa A exigecircncia de que estas

unidades devem ser definiacuteveis conduz no entanto ao sentido de que

natildeo satildeo isolaacuteveis mas constituiacuteram eles mesmos um conjunto inter-

relacionado Isto produziu dificuldades para a visatildeo perceptiva do

conhecimento e um progresso gradual para ver o conhecimento como

proposicionalrdquo74

Ainda que adote uma saiacuteda tiacutepica de uma interpretaccedilatildeo que defende um saber

proposicional Gosling admite a progressatildeo de um conhecimento negando

evidentemente uma apreensatildeo intuitiva Ao que tudo indica o movimento que leva agrave

visatildeo do todo natildeo pode ser tomado no sentido de um aparecimento imprevisto

incalculado de algo que se pretendia buscar cujo alcance era completamente incerto Ao

contraacuterio o sentido que parece se alinhar com o que se tem visto sobre a inteligecircncia

satildeo justamente as inferecircncias que se pode fazer sobre o Bem e os conhecimentos que se

pode ter a partir da ideia Assim o objetivo maior do filoacutesofo natildeo tem em vista um

conhecimento proposicional como chegou a falar o comentador mas tambeacutem

pressupotildee um trabalho deste tipo visto que a apreensatildeo das ideias torna possiacutevel a

definiccedilatildeo e o trabalho dialeacutetico passa pela anaacutelise de premissas O que estaacute em questatildeo

diz respeito ao meu ver acerca do alvo maior o bem e no caso do Feacutedon da

imortalidade portanto diz respeito agravequilo que uma atividade intelectual como a

dialeacutetica e uma perspectiva como a synoacutepsis podem oferecer sobre desses

O proacuteprio Gosling mais adiante traccedila uma definiccedilatildeo do que venha ser uma visatildeo

segundo as imagens do conhecimento que o texto apresenta na qual potildee em questatildeo a

74 Gosling The Argument of the Philosophers p 121

132

concepccedilatildeo de que a visatildeo do dialeacutetico consiste em algo como uma intuiccedilatildeo ou uma

percepccedilatildeo intelectual ele diz

ldquoPrimeiro por elas (imagens do conhecimento) se ajustam a

apreensatildeo final ou progressiva do conjunto de inter-relaccedilotildees De fato

em ambos Symposium e Repuacuteblica eacute o que a linguagem tende a

sugerir Em ambos o estaacutegio final eacute tomado como um resultado cada

vez mais amplo de consideraccedilotildees sinoacutepticas no Symposium (210d) bdquoo

vasto oceano de beleza‟ e na Repuacuteblica o bdquosistema solar das Formas‟

A visatildeo eacute a explicaccedilatildeo de porque todas as coisas belas satildeo chamadas

belas na Repuacuteblica a explicaccedilatildeo do que torna boas todas as coisas

boasrdquo75

O comentador compreende a visatildeo como uma explicaccedilatildeo (explanation)

apontando a relaccedilatildeo de causalidade entre ideia e existentes que com ela se relacionam -

o bem e coisas boas Ao que parece a visatildeo para o autor tem um caraacuteter de identificar

e demonstrar nos termos que uma explicaccedilatildeo pretende tal relaccedilatildeo enquadrando-se

muito mais em processo do que em uma apariccedilatildeo na mente

Natildeo se pretende defender aqui que o conhecimento nesse contexto equivale a

um fenocircmeno que se daacute no intelecto uma percepccedilatildeo intelectual como aponta Gosling

A cogniccedilatildeo envolve operaccedilotildees como a comparaccedilatildeo a deduccedilatildeo a soma por exemplo

que natildeo permitem uma interpretaccedilatildeo da visatildeo como uma passiva recepccedilatildeo da imagem

da ideia Na tentativa de precisar a passagem para o grau da inteligecircncia superando

assim o niacutevel do raciociacutenio matemaacutetico Chen considera a visatildeo como um ato cognitivo

em que se apreende o que pertence ao gecircnero inteligiacutevel

ldquoAo ser educado na dialeacutetica a alma toma instacircncias syggene

por um uacutenico ato da cogniccedilatildeo (by a single act of cognition) que

termina em uma visatildeo do seu genos comum Agora posto em uma

linguagem de relaccedilatildeo o resultado eacute quando volta para conhecer o

referente da segunda relaccedilatildeo ela se move ao longo dessa linha de

relaccedilatildeo para um relatum a visatildeo do que eacute obtido simultaneamente

com a chegada da alma diante dele ndash ou posto simbolicamente (hsup1 +

hsup2 + hn) RH Entatildeo a terceira fronteira eacute cruzada e foi cruzada por

meio da synopsis76

Segundo o comentaacuterio de Chen a visatildeo sinoacuteptica consiste na visatildeo da ideia no

instante em que esta se apresenta mas eacute o que se tem na descese O comentaacuterio eacute

75 idem pg 123

76 Chen op cit p 165

133

pertinente no sentido de que potildee a diferenciaccedilatildeo entre a visatildeo do todo pela dialeacutetica e a

visatildeo parcial que proporciona as matemaacuteticas Entretanto considerar apenas a tomada

da ideia como um ldquouacutenico ato cognitivordquo parece irrelevar a permanecircncia da alma nesse

estado de λόεζηϛ no qual finalmente ela demonstra ldquoter inteligecircnciardquo condiccedilatildeo

importante para as questotildees pedagoacutegicas e poliacuteticas como visto aqui

O que fazer com o movimento da alma ao longo da linha de relaccedilotildees que ela

pode efetuar Se para isso haacute a visatildeo sinoacuteptica como ele proacuteprio compreende estar

presente como entender a ζύλνςηο como um ato Esta posiccedilatildeo parece ser atenuada pelo

proacuteprio Chen mais adiante77

A atividade intelectual que o meacutetodo dialeacutetico exige

mostra as relaccedilotildees operadas pela inteligecircncia e os inteligiacuteveis aiacute utilizados como os

seres matemaacuteticos como os intermediaacuterios para a visatildeo sinoacuteptica Em treinamento o

filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo aprendeu a reconhecer e a utilizar os elementos e as

relaccedilotildees inteligiacuteveis que as disciplinas oferecem uma vez que domina a arte dialeacutetica

ele faz este mesmo reconhecimento e estabelece relaccedilotildees de acordo com as exigecircncias

do meacutetodo A visatildeo tal como sugere a ζύλνςηο supotildee natildeo somente a tomada da ideia

mas o trabalho que se pode fazer posteriormente tendo-a como referecircncia Nesse

sentido ζύλνςηο constitui uma perspectiva especiacutefica capaz de identificar a ideia do

bem e compreender as ideias que subsidiam os valores morais pilares para o bom

governo que soacute o filoacutesofo pode conhecer

Conclusotildees sobre a λόεζηϛ

O pensamento pode ser em resumo definido como a atividade que a alma

realiza por meio de suas disposiccedilotildees intelectuais em busca do seu objeto de desejo o

bem Nos livros VI e VII de A Repuacuteblica o pensar constitui a experiecircncia gnosioloacutegica

de tornar a alma apta a fazer esta busca e se elevar a uma condiccedilatildeo de excelecircncia a qual

se torna possiacutevel com o desenvolvimento de sua capacidade inteligente no seu maacuteximo

grau dita inteligecircncia (θξόλεζηϛ e λόεζηϛ) A inteligecircncia ponto maacuteximo de cogniccedilatildeo

da alma eacute constituiacuteda de uma perspectiva distinta por meio da qual se pode obter o

77 Note-se que a explicaccedilatildeo sobre a apreensatildeo das ideias como um golpe apresenta-se de fato como algo

que parece se dar em partes ao longo de um processo ldquoA exigecircncia de ver em conjunto todas as

instancias do Bem a fim de atingir a visatildeo desta ideia em todos os seus aspectos eacute claro somente um

ideal O que atualmente eacute exigido natildeo eacute tatildeo radical Para obter a visatildeo da ideia do bem tomar as

instacircncias em grupos natildeo individualmente seria o bastante () Chen op cit p 172 nota 8

134

autecircntico conhecimento (ἐπηζηήκε) Nesse niacutevel tem-se o ponto alto do desdobramento

das capacidades intelectivas da alma sendo o conhecimento portanto natildeo mais uma

atividade de cogniccedilatildeo (γλνζηϛ) apenas mas uma perspectiva distinta que consiste em

atingir seres do domiacutenio inteligiacutevel identificar relaccedilotildees inteligiacuteveis e apreender a ideia

do bem o alvo mais importante no contexto do texto Tal perspectiva confere ao

filoacutesofo dono por natureza desta aptidatildeo a habilidade de governo uma vez que o

conhecimeno que a inteligecircncia propicia pode atingir as ideias sob as quais se deve

organizar a cidade justa Por via da atividade inteligente torna-se possiacutevel conhecer a

justiccedila e assim realizar o bom governo uma vez que com a perspectiva privilegiada do

todo e da ideia do bem se pode inferir acerca das noccedilotildees que fundamentam os valores

Ao que tudo indica somente por meio de relaccedilotildees estabelecidas pela inteligecircncia se

adquire o discernimento necessaacuterio para inquerir e executar com base na ideia do bem

o que a cidade tem como demanda

Desse modo a avaliaccedilatildeo das questotildees que se apresentam no cenaacuterio eacutetico-

poliacutetico tal como a investigaccedilatildeo acerca delas daacute-se de maneira apropriada e justa a

partir de um governo que encontra seus fundamentos no exerciacutecio intelectual da

filosofia e em uma epistemologia tal como esta elabora Na figura do filoacutesofo

governante como se viu accedilatildeo poliacutetica e exerciacutecio intelectual satildeo aliados na organizaccedilatildeo

da cidade ideal denotando o papel do pensamento sobretudo da inteligecircncia como a

disposiccedilatildeo propiacutecia para o bom governo e para as accedilotildees justas O pensar em seu modo

excelente consiste em ultima instacircncia na atividade intelectual que busca igualmente

conhecer o que eacute justo e virtuoso ao ter em vista o Bem

Haja vista a importacircncia do pensar no que se refere agrave alma do filoacutesofo pode-se

afirmar o papel mobilizador da atividade intelectual no contexto poliacutetico como o

exerciacutecio com o qual se realiza o cumprimento da natureza da alma filosoacutefica Visto

desse acircngulo θξόλεζηϛ e λόεζηϛ demonstram a distinccedilatildeo da alma justa do filoacutesofo ao

mostraacute-la como a alma que pocircs em exerciacutecio suas naturais habilidades dispondo de suas

capacidades cognitivas para tal Ao adquirir conhecimento a alma filosoacutefica tem os

elementos ideais necessaacuterios para lanccedilar um olhar sobre as operaccedilotildees que ela mesma

realiza e para as questotildees da cidade conquistando assim sua excelecircncia no contexto

eacutetico e poliacutetico ao tornar-se com isso justa e apta para governar A cidade justa

demonstra desse modo sua base intelectual na qual o pensar dado na figura do filoacutesofo

governante eacute o agente mobilizador fundamental para pocircr a cidade de acordo com o que

eacute justo e com o que eacute bom

135

Tal como se mostra a importacircncia do estabelecimento de fundamentos racionais

para a vida poliacutetica em uma perspectiva inversa se pode admitir que o conhecimento

constitui uma questatildeo moral A busca pela excelecircncia do pensamento e pelo verdadeiro

conhecimento se mostra o meio de haver justiccedila tanto para a alma do filoacutesofo que teraacute

cumprido as determinaccedilotildees de sua natureza intelectualista sendo por consequecircncia

justo quanto para a cidade que teraacute por via de um governante orientado pela razatildeo os

meios para que as partes coexistam em harmonia e haja enfim a justiccedila Caso natildeo

houvesse empenho em conhecer a ideia do bem por parte do filoacutesofo hipoacutetese que os

livros VI e VII natildeo colocam mas sobre cujas consequecircncias cabe imaginar em uacuteltima

instacircncia a justiccedila e as virtudes natildeo seriam possiacuteveis nem o filoacutesofo nem a cidade

seriam justos A investigaccedilatildeo acerca do exerciacutecio do pensamento tal como mostrou os

dois livros analisados revela sua utilidade sobretudo ao pocircr em evidecircncia a

possibilidade e os meios de atingir a justiccedila e as virtudes desse modo a ligaccedilatildeo entre o

domiacutenio da realidade do bem e a praacutetica poliacutetica

Dada a finalidade praacutetica da razatildeo a excelecircncia do pensamento se constroacutei e se

confirma no processo de conhecimento Mesmo que a aquisiccedilatildeo das ideias natildeo garanta a

apreensatildeo de uma dimensatildeo maior o bem o meacutetodo dialeacutetico bem como as proacuteprias

ideias satildeo vaacutelidos para a finalidade que lhe eacute atribuiacuteda Dito de outro modo os limites

que o pensamento encontra natildeo invalidam o meacutetodo racional da filosofia sendo correto

consideraacute-lo o mais justo e digno para a busca do bem comum na cidade Na perspectiva

do filoacutesofo d‟A Repuacuteblica a saber do governante que deve voltar sua atenccedilatildeo para a

praacutetica poliacutetica e por isso ter em questatildeo efetivar os conhecimentos o que eacute oferecido

pela ideia acerca do bem parece suficiente para harmonizar a poacutelis Esta suficiecircncia natildeo

eacute vista da mesma maneira no Feacutedon como se analisaraacute uma vez que o filoacutesofo na

iminecircncia da morte tem como objetivo a imortalidade e portanto um domiacutenio sugerido

pelas ideias que se mostra inapreensiacutevel em sua totalidade pelo pensamento Neste

enredo embora eficientes em oferecer o domiacutenio inteligiacutevel a impossibilidade de

conhecer efetivamente esta dimensatildeo maior constitui um problema tornando-se muito

mais visiacutevel o limite do pensar

De qualquer modo a potecircncia do pensamento e seus limites tal como satildeo dados

corroboram a figura de excelecircncia do filoacutesofo A narrativa de experiecircncia intelectual

mostra o desenvolvimento da alma filosoacutefica e portanto do pensamento no processo de

elevaccedilatildeo agrave sua maioridade O pensamento ao atuar como meio de adquirir os

fundamentos dos valores e das regras para a melhor organizaccedilatildeo constitui para o

136

filoacutesofo e para a cidade enquanto atividade permanente um modo de ser justo e bom

Ao mesmo tempo mostra a cidade harmonizando-se e portanto tornando-se justa A

caracteriacutestica de ser agente e paciente comum nos dois diaacutelogos como se veraacute a seguir

no Feacutedon resume a autonomia do pensamento quando atua em seu estado excelente

Antes de iniciar a anaacutelise acerca da inteligecircncia (θξόλεζηϛ) no diaacutelogo Feacutedon eacute

necessaacuterio fazer algumas aproximaccedilotildees com o que se conclui sobre a λόεζηϛ a partir dos

livros VI e VII d‟A Repuacuteblica Em primeiro lugar deve-se considerar a condiccedilatildeo

limitada do filoacutesofo frenta a grandeza dos objetos uacuteltimos que tem em vista o bem e a

morte como jaacute dito As potecircncias e os limites da racionalidade satildeo dados desse modo

dentro do alcance possiacutevel de tais objetos pelo pensamento tendo-se uma visatildeo da

racionalidade operando dentro destas limitaccedilotildees Desse perspectiva a cogniccedilatildeo constitui

a atividade da alma que a potildee tanto quanto possiacutevel em uma condiccedilatildeo de elevaccedilatildeo

desse estado de minoridade que consiste a humanidade representada pelos habitantes

da caverna no livro VII e pela alma presa ao corpo no Feacutedon O tema do conhecimento

assume seu papel na questatildeo do pensamento tal como se viu ao consistir na superaccedilatildeo

operada pela racionalidade de uma condiccedilatildeo de inferioridade intelectual e moral e na

apreensatildeo dos objetos as ideias cuja apreensatildeo reverte em benefiacutecios para alma O

percurso do filoacutesofo agrave beira da morte traz desse modo uma visatildeo desse processo de

conhecimento ao mesmo tempo em que descreve a emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao

corpo como um efeito beneacutefico da atividade filosoacutefica A narrativa do Feacutedon se

aproxima do percurso do aprendiz do livro VII no que se refere agrave necessidade de

mostrar as etapas de superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao ordinaacuterio sensiacutevel e desprovido

de conteuacutedo cognitivo para uma condiccedilatildeo de maioridade da alma e portanto de

autonomia e excelecircncia do pensamento A excelecircncia eacute construiacuteda nos dois contextos

como resultado de um processo progressivo que no resgistro da relaccedilatildeo vida-morte se

daacute durante o tempo de vida

O empenho em investigar e estabelecer definiccedilotildees acerca do pensamento em seu

niacutevel de excelecircncia se apresenta nos dois diaacutelogos como uma exigecircncia Como visto eacute

preciso distinguir e treinar o futuro governante de modo a deixaacute-lo na melhor condiccedilatildeo

137

intelectual e apto a exercer o comando da cidade para isso deve-se ter claro no que

consiste esta distinccedilatildeo O filoacutesofo na iminecircncia da morte precisa dar provas razoaacuteveis e

plausiacuteveis da imortalidade da alma aos seus companheiros e para isso eacute imprescindiacutevel

provar a eficiecircncia da razatildeo no seu grau de maioridade grau no qual se realiza o

filosofar e a sua proacutepria capacidade para tal empresa Desse modo apesar dos

diferentes contextos a investigaccedilatildeo sobre o pensamento se constitui no exame acerca

dos termos que descrevem a atividade inteligente os quais compotildeem o aparato dado

pela proacutepria razatildeo a saber o meacutetodo o loacutegos e as teorias Esses devem receber durante

a sua formulaccedilatildeo e uso o olhar de inspeccedilatildeo do filoacutesofo e ter seu caraacuteter e procedimento

inteligiacuteveis elucidados

No Feacutedon encontrar-se-aacute uma visatildeo mais enfaacutetica do pensamento nos termos de

uma interaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis Dado que natildeo haacute um propoacutesito praacutetico que exige

uma elaboraccedilatildeo em termos de accedilatildeo poliacutetica tal como tem em vista o governante filoacutesofo

da cidade ideal esta relaccedilatildeo se restringiraacute ao comportamento da alma em relaccedilatildeo agraves

influecircncias do corpo e em relaccedilatildeo aos objetos do intelecto A oposiccedilatildeo presente aqui diz

respeito ao corpo e agraves suas influecircncias sendo a relaccedilatildeo intelectual da alma com seres

superiores dada no pensar a saiacuteda para se elevar dessa condiccedilatildeo adversa de estar

encarnada em corpo humano A superaccedilatildeo desta situaccedilatildeo em vida constitui a

inteligecircncia do filoacutesofo e compotildee um quadro de percurso e desenvolvimento intelectual

e no qual se daacute a elevaccedilatildeo ao grau mais refinado e potente do pensamento niacutevel

descrito pela λόεζηϛ nos livros VI e VII

Nesse sentido o que pode ser considerado o efeito praacutetico dos conhecimentos

adquiridos pela filosofia diz respeito agrave proacutepria postura intelectualista do filoacutesofo a qual

confere a ele as virtudes morais e as condiccedilotildees necessaacuterias para o bom destino poacutes-vida

Considerada como um cuidado da alma cabe compreender o exerciacutecio filosoacutefico como

sem duacutevidas um benefiacutecio bastante uacutetil Apesar de ser estimulado pela convicccedilatildeo de

uma boa vida apoacutes a morte as atenccedilotildees dirigidas a alma pela filosofia promovem em

vida reflexotildees vaacutelidas e uma conduta pautada nos melhores valores O lado praacutetico da

filosofia e do exerciacutecio intelectual no Feacutedon revela-se assim na conduta exemplar do

filoacutesofo que em vias de morrer constitui um modelo de alma purificada e por isso

pronta para estar totalmente livre

Tal eacute o resgistro em que se constroacutei a concepccedilatildeo de pensamento excelente no

Feacutedon As primeiras acepccedilotildees de maioridade e distinccedilatildeo do pensamento satildeo dados nos

termos de um pensamento puro assemelhado por isso agraves coisas divinas e portanto livre

138

para atuar de modo autecircntico Em um segundo momento essa mesma superioridade eacute

dada a partir das formulaccedilotildees nos termos de seu procedimento de modo a oferecer uma

versatildeo mais teacutecnica da atividade racional Ambos modelos de cidade ideal e de

existecircncia datildeo mostras de um niacutevel de cogniccedilatildeo que se traduz nessa excelecircncia

exemplar a qual se deve perseguir tanto na vida poliacutetica quanto no que concerne ao uma

postura existencial

139

Parte II Feacutedon

I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel

11 O filoacutesofo agrave beira da morte

O Feacutedon oferece uma perspectiva existencial do filoacutesofo ao narrar a conversa de

Soacutecrates no seu uacuteltimo dia de vida O diaacutelogo apresenta o filoacutesofo que resignado agrave sua

condenaccedilatildeo aceita de bom grado a morte Tem-se nesse enredo a personificaccedilatildeo da

postura intelectual a qual uma vez sempre pautada no exerciacutecio filosoacutefico como

maneira para adquirir as excelecircncias morais e intelectuais pode especular sobre a

imortalidade e crer com base na razatildeo que ao final teraacute garantido um bom destino apoacutes

a morte (Fed 107c1-5) O que aos olhos dos amigos que se despendiam do mestre

parecia inicialmente uma excentricidade e uma insensatez (Fed 62e) se torna coerente

com a explicaccedilatildeo dada sobre a imortalidade A esperanccedila (ἐιπηο) de ter uma boa morte e

a crenccedila na indestrutibilidade da alma convicccedilotildees que justificam esta boa aceitaccedilatildeo

apoiamndashse na verdade nos resultados da investigaccedilatildeo filosoacutefica a qual revela o

fundamento de tais crenccedilas e do proacuteprio loacutegos filosoacutefico

Diferentemente do filoacutesofo de A Repuacuteblica o qual apresenta um modelo de

perfeiccedilatildeo e ao mesmo tempo sugere o iniacutecio e a execuccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo do

caraacuteter filosoacutefico o Soacutecrates do Feacutedon representa por que natildeo o cume deste processo e

a personificaccedilatildeo das qualidades deste modelo Como exemplo de uma vida digna ou

autecircntica a narrativa oferece uma imagem do acabamento do percurso filosoacutefico nesta

figura do Soacutecrates sereno cordato e convicto do que iraacute encontrar apoacutes a morte

percurso que o guardiatildeo aprendiz d‟A Repuacuteblica cabe divagar ainda estaria por

realizar Vale dizer que este percurso filosoacutefico o qual natildeo descreve uma vida poliacutetica

como mostra o filoacutesofo governante apresenta em certa medida o caraacuteter filosoacutefico no

que se refere ao uso da razatildeo e agraves aquisiccedilotildees morais e epistecircmicas que se pode obter

pela filosofia O Soacutecrates do Feacutedon natildeo eacute o filoacutesofo rei mas como filoacutesofo no seu

140

uacuteltimo dia de vida periacuteodo no qual se limita a narrativa disserta sobre a excelecircncia do

pensamento ao investigar sobre a alma e a sua imortalidade

Ao ter a imortalidade da alma como objeto de investigaccedilatildeo o diaacutelogo permite a

anaacutelise da natureza da alma e por consequecircncia do pensamento (θξόλεζηο) Deste

modo o afastamento entre alma e corpo constitui o tema que articula uma explicaccedilatildeo

para a imortalidade oferecendo assim o percurso do filoacutesofo nos termos de uma

preparaccedilatildeo para a morte na qual a alma se purifica pela filosofia A justificativa da boa

aceitaccedilatildeo da morte resulta desta postura intelectualista de desprezo pela satisfaccedilatildeo do

corpo e pelas coisas que se referem aos desejos levianos e agraves vilanias da vida ordinaacuteria

os quais satildeo identificados ao que se refere ao domiacutenio da sensibilidade Uma vez

exercitado na filosofia durante toda a vida e portanto distante das coisas relativas ao

corpo o filoacutesofo assume a condiccedilatildeo semelhante aos objetos que contempla no exerciacutecio

filosoacutefico a saber as ideias e ao que iraacute encontrar apoacutes a morte do corpo Nesse

sentido os resultados do treino na filosofia satildeo muito mais psicoloacutegicos do que praacuteticos

em comparaccedilatildeo ao que se veraacute nos livros V e VII d‟A Repuacuteblica nos quais se tem em

vista uma preparaccedilatildeo para a vida poliacutetica

A preparaccedilatildeo para a morte que a filosofia proporciona se traduz em

discernimento acerca da natureza da alma e por consequecircncia no autecircntico uso da

inteligecircncia (θξόλεζηο) condiccedilatildeo que constitui o verdadeiro cuidado da alma e que

permite realizar suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre o poacutes-vida A inteligecircncia neste contexto

de emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo e agrave vida humana assume posiccedilatildeo central

uma vez que as caracteriacutesticas que o texto atribui agrave alma satildeo da ordem de sua faculdade

cognitiva e de seu parentesco com o gecircnero inteligiacutevel imutaacutevel una indivisiacutevel

incorpoacuterea imortal dotada da faculdade da razatildeo tem a capacidade de conhecer e de

aprender O filoacutesofo eacute identificado portanto agrave alma una que se apresenta apenas em

seu caraacuteter racional e com caracteriacutesticas afins com o gecircnero invisiacutevel78

Esta pode ser

uma dificuldade na comparaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos aqui analisados A visatildeo da alma

que se encontra no Feacutedon natildeo eacute a da alma tripartida do livro IV d‟A Repuacuteblica

Entretanto ambos os diaacutelogos se preocupam em delimitar o caraacuteter racional como

distinto e soberano No livro IV a parte racional da alma deve se sobrepor agraves demais ( )

78 A visatildeo de alma una natildeo eacute unacircnime Haacute comentadores que entendem ser a alma que o Feacutedon

apresenta por um lado dotada de razatildeo e de qualidades semelhantes ao gecircnero invisiacutevel e por outro com

caracteriacutesticas referentes agraves emoccedilotildees e agraves afecccedilotildees do sensiacutevel Dado que essas uacuteltimas Platatildeo descarta ao

privilegiar a alma desencarnada livre do corpo natildeo considero pertinente o debate sobre a possibilidade

de uma biparticcedilatildeo da alma no Feacutedon

141

mostrando a necessidade de ter minimamente claro seu perfil e campo de atuaccedilatildeo De

outro modo mas com o mesmo objetivo o Feacutedon apresenta a alma racional que

embora natildeo se apresente em partes deve por natureza estar no comando de modo a natildeo

se deixar influenciar pelas sensaccedilotildees Nas duas situaccedilotildees a racionalidade se apresenta

diferenciada das caracteriacutesticas da ordem da sensibilidade que a alma pode ter seja

como parte constitutiva seja como afecccedilatildeo diante de sua condiccedilatildeo de estar em um

corpo

As caracteriacutesticas que o Feacutedon apresenta em relaccedilatildeo a alma a oferecem quase

exclusivamente em suas faculdades intelectuais Invisiacutevel incorpoacuterea afim com o

gecircnero inteligiacutevel e dotada de capacidade inteligente (θξόλεζηο) os atributos conferidos

a ela satildeo dados para descrever o seu caraacuteter inteligente sendo deixados de lado os traccedilos

que se referem agraves emoccedilotildees Quando dados esses recebem junto com as percepccedilotildees

advindas da sensibilidade conotaccedilatildeo negativa A autenticidade que o diaacutelogo pretende

imprimir agrave alma tem em vista sua independecircncia em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees sendo o

estado de elevaccedilatildeo intelectual a maior expressatildeo de sua pureza e aquisiccedilatildeo de virtudes e

o apego aos apelos do corpo ao contraacuterio sua condiccedilatildeo de decaimento moral e

intelectual Do mesmo modo que a congenereidade da alma com os objetos incorpoacutereos

confere a ela caracteriacutesticas comuns a esses - quando natildeo as mesmas - o apego da alma

ao corpo pode trazer prejuiacutezos agrave sua natureza Quando ela se fixa nas coisas inteligiacuteveis

comporta-se como tal se ao contraacuterio a alma se apega ao corpo e aos objetos sensiacuteveis

torna se eacutebria pois nessa condiccedilatildeo eacute incapaz ao menos em condiccedilotildees adequadas usar e

se exercitar na capacidade que pode lhe conferir um grau de excelecircncia O conflito

neste contexto adveacutem do antagonismo entre alma e corpo cujas distinccedilotildees de natureza-

o corpo dotado das qualidades do gecircnero visiacutevel eacute composto e portanto passiacutevel de

perecer (Fed 78c) - proporcionam ao filoacutesofo a tensatildeo proacutepria da condiccedilatildeo de

humanidade na qual a alma tem de conviver associada ao corpo e da qual ele filoacutesofo se

livraraacute com a morte estado no qual a alma sobreviveraacute totalmente separada das afliccedilotildees

lanccediladas pelas sensaccedilotildees Nesse sentido o corpo e o que eacute do domiacutenio da αἴζζεζηο

perturbam a alma e constituem um empecilho nessa busca da condiccedilatildeo mais proacutexima de

sua natureza inteligiacutevel

O que supotildee no iniacutecio do diaacutelogo uma perspectiva da interioridade dos

personagens na ordem das emoccedilotildees eacute substituiacutedo pela visatildeo racionalista na qual a

noccedilatildeo de identidade esta fundamentada na alma inteligente Em virtude do seu

parentesco com o domiacutenio inteligiacutevel a alma tem condiccedilotildees suficientes de por si

142

mesma conhecer algo verdadeiramente sem recorrer ao que eacute dado pelos sentidos Os

objetivos do filoacutesofo seus compromissos eacuteticos e epistemoloacutegicos ligam-se dessa

forma agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento exerciacutecio que garante a emancipaccedilatildeo da alma e as

recompensas desejadas ao final do processo de desvinculaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao corpo

Por enquanto para os propoacutesitos deste estudo basta coletar dados que colaborem

para compor um quadro que esboccedila um caraacuteter a ser definido Importa ressaltar os

traccedilos que mais tarde receberatildeo maior detalhamento e conceituaccedilatildeo e que vistos como

aqui se propotildee indicam os elementos e a complexidade que estaacute em causa ao se

pretender traccedilar um perfil da razatildeo Assim deve-se ter em vista que para uma anaacutelise

acerca do pensamento em sua condiccedilatildeo mais alta a figura do filoacutesofo a qual incarna o

uso correto da razatildeo e oferece uma imagem da excelecircncia moral e epistecircmica que

supotildeem-se eacute anaacuteloga agrave noccedilatildeo de inteligecircncia introduz as questotildees que perpassaratildeo nos

capiacutetulos seguintes agrave anaacutelise Ao figurar a posse das virtudes e dos conhecimentos reais

vantagens da vida dedicada agrave filosofia e portanto os resultados da elevaccedilatildeo do intelecto

quando exercitado em sua plena potecircncia o filoacutesofo permite entrever o significado que

o os textos pretendem dar agrave racionalidade neste niacutevel e agrave proacutepria filosofia Natildeo parece

suficiente elencar as qualidades do filoacutesofo sem remontar o percurso que levou a elas

Somente a partir das articulaccedilotildees realizadas pela razatildeo em seu exerciacutecio como acontece

na relaccedilatildeo entre alma e corpo e os efeitos dessa atividade se torna possiacutevel mensurar e

avaliar a atuaccedilatildeo do pensamento tal como o significado e o valor que se atribui a ele

12 O pensar e o estado de morte

Ao explicar (ηὸλ ιόγνλ ἀπνδνῦλαη Fed 63e9)79

acerca do destemor do filoacutesofo

em relaccedilatildeo agrave morte Soacutecrates inaugura a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade da alma

pesquisa que natildeo se mostra exequiacutevel sem uma minuciosa anaacutelise acerca do pensamento

(θξόλεζηο) Considerada a condiccedilatildeo excelente da capacidade racional da alma e

79 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizaremos a traduccedilatildeo de Maria Tereza Schiappa de Azevedo Feacutedon

Platatildeo Ed Imprensa Oficial UNB 2000

143

portanto a via para averiguar adequadamente a sobrevivecircncia apoacutes a morte do corpo o

pensar seraacute examinado a partir da definiccedilatildeo acerca da filosofia como um treino para a

morte mais precisamente para morrer e estar morto (ἢ ἀπνζλῄζθεηλ ηε θαὶ ηεζλάλαη

Fed 64a6) definiccedilatildeo que introduz a perspectiva racionalista do tema Dada nos termos

do exerciacutecio filosoacutefico a morte ganha uma versatildeo filosoacutefica com bases agumentativas

resultantes de uma especiacutefica formulaccedilatildeo de conhecimento de atividade racional e de

objetos verdadeiros Posto assim ηεζλάλαη indica um estado distinto diferente da vida

no seu sentido bioloacutegico no qual a alma sobrevive e para o qual o filoacutesofo eacute treinado

por meio do exerciacutecio filosoacutefico (ἀλὴξ ηῷὄληη ἐλ θηινζνθίᾳ δηαηξίςαο ηὸλ βίνλ

Fed63e9) Nesse contexto a atividade racional constitui a caracteriacutestica da alma capaz

de averiguar acerca deste estado

Platatildeo pretende imprimir agrave morte um sentido estritamente filosoacutefico para dar

iniacutecio a um exame dentro da mesma perspectiva acerca da imortalidade Sendo assim

faz sentido questionar nestes termos ldquo- Acreditamos que a morte eacute alguma coisa

(ἡγνύκεζά ηὸλ ζάλαηνλ Fed 64c2)rdquo Note-se que a formulaccedilatildeo da questatildeo potildee em

evidecircncia o acircngulo em que se pretende investigaacute-la junto com as demais questotildees que

perpassam a argumentaccedilatildeo ηη εἶλαη - ldquoser algordquo traduzindo literalmente prenuncia uma

existecircncia um ser que mais tarde ganharaacute formulaccedilatildeo ontoloacutegica e seraacute uma das

maneiras de se questionar em vista da definiccedilatildeo de algo Posta assim a questatildeo induz o

interlocutor a dar uma resposta positiva entretanto sem o compromisso de dizer o que

ela seria A definiccedilatildeo de morte vem a seguir a separaccedilatildeo alma em relaccedilatildeo ao corpo

- Que outra coisa pois senatildeo a separaccedilatildeo da alma e do corpo

(Ἆξα κὴ ἄιιν ηη ἢ ηὴλ ηο ςπρο ἀπὸ ηνῦ ζώκαηνο ἀπαιιαγήλ) E

nesse caso bdquoestar morto‟ significa isto mesmo que o corpo uma vez

separado da alma subsiste em si e por si mesmo (αὐηὸ θαζ αὑηὸ ηὸ

ζῶκα γεγνλέλαη) agrave parte dela tal como a alma uma vez separada do

corpo subsiste em si e por si mesma (αὐηὴλ θαζαὑηὴλ εἶλαη) agrave parte

dele Ou seraacute a morte algo diverso do que dizemosrdquo80

(Fed 64c3-9)

80 Vale notar uma sutileza no texto original Ao se referir agrave separaccedilatildeo e consequente isolamento do

corpo Platatildeo utiliza o verbo γίγλνκαη enquanto que ao falar do isolamento da alma o verbo escolhido eacute o

verbo εἰκί Os dois verbos que nessa passagem ainda natildeo possuem sentido filosoacutefico ao longo da

investigaccedilatildeo marcaratildeo a importante diferenciaccedilatildeo entre a instabilidade e corrupccedilatildeo do γεγνλέλαη da

γέλεζηϛ em contraposiccedilatildeo agrave imutabilidade e fixidez do ser inteligiacutevel e do que tem familiaridade com ele

como ocorre com a alma Tais distinccedilotildees de gecircnero constituiratildeo ao longo do texto as diferenciaccedilotildees

entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel aqui esboccediladas

144

Assim definida a morte consiste no estado no qual a alma estaacute separada do

corpo Ao mesmo tempo se deve notar o processo dessa separaccedilatildeo no qual o corpo se

torna isolado da alma e do mesmo modo a alma passa a existir por si mesma separada

dele Apartados corpo e alma mostram a partir daiacute naturezas distintas cujo conflito eacute

compreendido vale adiantar pela racionalidade Eacute posto em questatildeo desse modo a

natureza da alma e de sua Inteligecircncia na figura do filoacutesofo que aceita de bom grado a

sua condenaccedilatildeo Para o homem que filosofa eacute natural desprezar (ἀηηκάδεηλ) os prazeres

corporais e tudo o que se refere a ele para se ocupar dos cuidados que dizem respeito agrave

alma (Fed 64e) O desapego pelo que constitui um cuidado ou adorno do corpo e o

consequente voltar-se para a alma (πξὸο δὲ ηὴλ ςπρὴλ ηεηξάθζαη Fed 64e6) consiste

no exerciacutecio de morte no qual o verdadeiro filoacutesofo (ἀιεζῶο θηιόζνθνο Fed64e2) se

empenha

O filosofar origina assim este afastamento da alma em relaccedilatildeo ao corpo que se

daacute pelo desprezo tanto quanto possiacutevel dos apelos e dos prazeres corporais (θαζὅζνλ

δύλαηαη ἀθεζηάλαη αὐηνῦ Fed64e5) Tal postura de afastamento do corpo descreve

deve-se observar um traccedilo do perfil do filoacutesofo que diferentemente da maioria vecirc a

morte como a oportunidade para emancipar a alma e tornaacute-la assim livre das afliccedilotildees

geradas por ele A visatildeo positiva da morte eacute construiacuteda com a intenccedilatildeo de fazer um

discurso em defesa do filoacutesofo condenado no qual se apresente ao mesmo tempo uma

explicaccedilatildeo filosoacutefica e uma justificativa racional e por isso plausiacutevel para a

imortalidade

Diante de tal propoacutesito o texto vai dispor dos elementos e do foco sob os quais

uma investigaccedilatildeo deste tipo se torna possiacutevel O desligamento progressivo da alma em

relaccedilatildeo ao corpo que acontece nesse exerciacutecio de preparaccedilatildeo para a morte torna-se

desse modo a circunstacircncia apropriada em que se deve examinar o pensamento por

apresentar a alma isolada nela mesma (αὐηὴ θαζαὑηὴλ) livre de influecircncias e

perturbaccedilotildees e assim ter suas caracteriacutesticas racionais ressaltadas

ldquo- E o que dizer quanto a adquirir a sabedoria (Τί δὲ δὴ πεξὶ

αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ) eacute ou natildeo o corpo obstaacuteculo

(ἐκπόδηνλ) quando aceitamos associaacute-lo nessa procura Mais

concretamente haacute uma dose de verdade naquilo que os homens

apreendem por exemplo pela vista e pelo ouvido ou (como os poetas

por aiacute repetem agrave saciedade) nada do que vemos ou ouvimos eacute

seguro E refiro-me apenas aos sentidos da vista e do ouvido porque

145

se estes natildeo satildeo seguros e exatos (θαίηνη εἰ αὗηαη ηῶλ πεξὶ ηὸ ζῶκα

αἰζζήζεσλ κὴ ἀθξηβεῖο εἰζηλ κεδὲ ζαθεῖο) os outros muito menos o

satildeo dado serem suponho ainda mais faliacuteveis (θαπιόηεξαί) Ou natildeo

achas

- Mas decerto

- Ora - prosseguiu- em que condiccedilotildees a alma atinge a verdade

(Πόηε νὖλ ἦ δ ὅο ἡ ςπρὴ ηο ἀιεζείαο ἅπηεηαη) Pois quando tenta

qualquer tipo de indagaccedilatildeo com o auxiacutelio do corpo eacute certo e sabido

que este a induz em erro (ἐμαπαηᾶηαη ὑπ αὐηνῦ)rdquo (Fed 65a9-b)

Conveacutem notar a almejada condiccedilatildeo em que eacute dado o pensar a alma atua

plenamente sem impecilhos e desse modo atinge a verdade81

O texto atribui um papel

negativo ao corpo por constituir um impedimento para a aquisiccedilatildeo disto que parece ser

um dos alvos da inquiriccedilatildeo a θξόλεζηο De modo incipiente essa uacuteltima passagem

sugere de antematildeo a noccedilatildeo de alta inteligecircncia que seraacute edificada ao longo do diaacutelogo

O pensar nos termos da θξόλεζηο estaacute vinculado agrave verdade e ao ser livre das

influecircncias corpoacutereas o que confere a ele uma superioridade cujo sentido comeccedila a ser

construiacutedo nesta etapa inicial da investigaccedilatildeo Diferentes deste estado estatildeo as sensaccedilotildees

que por natildeo se mostrarem exatas e claras para uma investigaccedilatildeo (Fed 65a10)

demonstram a insuficiecircncia do corpo e a consequente legitimidade da alma para a

aquisiccedilatildeo desta condiccedilatildeo correspondente ao estar morto que o filoacutesofo almeja Dado que

a realidade e a verdade que interessam ao filoacutesofo apresentam-se apenas na atividade

do raciociacutenio (ινγίδνκαη) 82

o pensar ganha foco e deve ser paralelamente objeto de

estudo na medida em que se mostra relevante para a anaacutelise dos temas que compotildeem a

argumentaccedilatildeo sobre a boa morte do filoacutesofo

O desapego em relaccedilatildeo ao corpo apresenta com este argumento motivos

existenciais e epistemoloacutegicos os quais encontram no exerciacutecio do pensamento a via

para uma explicaccedilatildeo razoaacutevel sobre a morte e sobre a vida ao modo da filosofia e na

θξόλεζηο um dos seus objetivos Desse modo o texto natildeo demora em oferecer cabe

81 O sentido do termo nesta passagem estaacute e geral associado agrave noccedilatildeo de sabedoria conhecimento e

inteligecircncia Robin traduz ldquoposseder proprement l‟inteligencerdquo- Platon Pheacutedon in Editions Belle

Lettres Paris 1957 Dixsaut ldquoet quand il s‟agit de se mettre agrave penserrdquo Platon Pheacutedon GF Flammarion

1991 Opccedilatildeo semelhante agrave que temos na traduccedilatildeo portuguesa faz Gual ldquo[] de La aquisicioacuten misma de

La sabiduriardquo Fedoacuten Editorial Gredos Madrid 1997 Trata-se da primeira ocorrecircncia do termo

Interessa examinar e discutir ao longo da anaacutelise os sentidos que ele adquire e como esses se relacionam

com aquilo que descreve uma teoria da racionalidade no diaacutelogo

82 Fed 65c2 ldquoPor conseguinte admitindo que a natureza das coisas possa em certos aspectos se

apercebida natildeo seraacute justamente pelo raciociacutenio (Ἆξ νὖλ νὐθ ἐλ ηῷ ινγίδεζζαη εἴπεξ πνπ ἄιινζη

θαηάδεινλ αὐηῆ γίγλεηαί ηη ηῶλ ὄλησλ)rdquo Tal eacute o caraacuteter em que o diaacutelogo sugere a aquisiccedilatildeo do

conhecimento a saber como uma manifestaccedilatildeo da realidade dos seres na atividade racional Esta

descriccedilatildeo seraacute novamente formulada em 79d e demonstrada no final do diaacutelogo

146

notar a visatildeo de uma alma cuja principal caracteriacutestica para natildeo dizer quase uacutenica eacute a

racionalidade Com o processo de afastamento do corpo natildeo estatildeo em questatildeo outras

afecccedilotildees que natildeo sejam da ordem da atividade racional ou que natildeo digam respeito a sua

natureza inteligente que a esta altura estaacute para ser estabelecida Assim a narrativa da

separaccedilatildeo entre alma e corpo acentua o caraacuteter racional da alma e potildee em certa medida

os objetivos o sentido e a operacionalidade da atividade inteligente a partir desse

exerciacutecio de separaccedilatildeo O perfil do pensamento vai sendo revelado ao passo que se

realiza a criacutetica e a recusa das sensaccedilotildees e de concepccedilotildees vulgares sobre a morte e sobre

temas como as virtudes e o conhecimento

13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro

Realizadas as primeiras consideraccedilotildees sobre a morte e o sentido em que se deve

conceber o pensar vale analisar passo a passo como aparece o tema do pensamento

Nesse contexto de progressivo desligamento do corpo que constitui o filosofar a alma

estaacute em situaccedilatildeo cada vez mais apropriada para o raciociacutenio Ao mesmo tempo ao

livrar-se de qualquer influecircncia do corporal estaacute em condiccedilotildees de almejar o seu objeto

de desejo o ser (ὀξέγεηαη ηνῦ ὄληνο Fed 65c9) Diante disso logo se reconhece a

necessidade de averiguar o caraacuteter desta racionalidade e dos elementos que a ela se

referem Vale observar que ainda sem ter exposta a sua inteligibilidade nem definido o

seu estatuto ontoloacutegico os temas que devem receber tratamento filosoacutefico satildeo dispostos

para auxiliar na composiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel

fundamental para elucidar a atuaccedilatildeo pensar

147

ldquo- Passamos a outro ponto afirmamos que existe qualquer coisa

como seja o ldquoJustordquo ou natildeo (Τί δὲ δὴ ηὰ ηνηάδε ὦ Σηκκία θακέλ ηη

εἶλαη δίθαηνλ αὐηὸ ἢ νὐδέλ)

- Por Zeus claro que sim

- E o mesmo em relaccedilatildeo a ldquoBelordquo e ldquoBemrdquo (Καὶ αὖ θαιόλ γέ ηη

θαὶ ἀγαζόλ)

- Contudo alguma vez jaacute os viste com os teus proacuteprios olhos (ηη

ηῶλ ηνηνύησλ ηνῖο ὀθζαικνῖο εἶδεο )

83

- Natildeo de modo algum

- Seraacute que os apercebeste por qualquer outra sensaccedilatildeo fiacutesica

(Ἀιι ἄιιῃ ηηλὶ αἰζζήζεη ηῶλ δηὰ ηνῦ ζώκαηνο ἐθήςσ αὐηῶλ) Falo

em geral incluindo por exemplo a Grandeza a Sauacutede a Forccedila em

resumo a realidade e todas as demais coisas aquilo que cada uma

delas preciosamente84

eacute (θαὶ ηῶλ ἄιισλ ἑλὶ ιόγῳ ἁπάλησλ ηο νὐζίαο

ὃ ηπγράλεη ἕθαζηνλ ὄλ) E ou pelo corpo se chega agrave contemplaccedilatildeo da

absoluta verdade delas (ηὸ ἀιεζέζηαηνλ ζεσξεῖηαη) ou entatildeo o

processo eacute outro e aquele de noacutes que mais profundamente se dispuser

a meditar (δηαλνεζλαη) na realidade mesma das coisas que observa eacute

quem mais perto esta da de atingir o conhecimento (γλῶλαη) de cada

uma delasrdquo (Fed 65d3-e4)

O excerto oferece uma primeira descriccedilatildeo acerca do que se pode conceber como

um trabalho intelectual oposto agraves percepccedilotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Dada

nos termos da cogniccedilatildeo (γηγλώζθσ) tem-se o trabalho intelectivo do δηαλνέσ no qual a

alma conhece a essecircncia (νὐζία) daquilo que examina Apreender a essecircncia a realidade

dos objetos em exame quer dizer o mesmo que contemplar a verdade deles Conhecer

consiste assim neste tipo de apreensatildeo que tem em vista o ηη εἶλαη presente nesta

noccedilatildeo de δίθαηνλ αὐηὸ θαιόλ αὐηὸ e ἀγαζόλ αὐηὸ O bem o belo e a justiccedila tal como

quer o filoacutesofo natildeo podem ser conhecidos pelas sensaccedilotildees e devem ser desse modo

apreendidos exclusivamente por esta atividade do pensamento revelando-se portanto

serem da ordem do intelecto Cabe notar que o ηὸ αὐηὸ que acompanha as noccedilotildees

sugeridas e mesmo a νὐζία natildeo satildeo ditas ainda no registro da ontologia Apesar de

evocar a noccedilatildeo abstrata desses conceitos parece precipitado dizer que o texto faz nesse

instante referecircncia agraves Formas O que estaacute em jogo eacute primeiramente delimitar o

verdadeiro objeto da alma e o modo como o filoacutesofo deve proceder para atingi-lo A

nova perspectiva que estaacute sendo proposta a partir daqui a da ζεσξία contemplaccedilatildeo das

83 Observe-se a partir daqui o uso do verbo ὁξάσ e o termo ὄςηο enfatizando a visatildeo sensiacutevel em

contraposiccedilatildeo agrave imagem que se obteacutem pelo trabalho intelectivo da alma Este verbo passa a partir de

agora a denotar a inferioridade da percepccedilatildeo sensiacutevel ao mesmo tempo em que o verbo εἶδνλ assume o

sentido de visatildeo inteligiacutevel isto eacute a visatildeo capaz de apreender os seres inteligiacuteveis

84 Cabe uma notar que o termo correto seria ldquoprecisamenterdquo e natildeo ldquopreciosamenterdquo como traz a

traduccedilatildeo

148

coisas85

desfaz o equiacutevoco de tomar o corpo como instrumento para o conhecimento e

atribui de vez este papel agrave alma

A partir da oposiccedilatildeo corpo - alma sensaccedilatildeo ndash intelecto a dicotomia sensiacutevel ndash

inteligiacutevel que comeccedila a ser delineada ganha definiccedilotildees mais especiacuteficas e se mostra

decisiva para uma pesquisa filosoacutefica Eacute importante estabelecer as diferenciaccedilotildees entre

alma e corpo na qual se verifica que o corpo eacute distinto da alma natildeo se confunde com

ela e eacute o abrigo das sensaccedilotildees por isso tambeacutem das contrariedades que elas podem

apresentar umas com as outras86

Por conta disso eacute incapaz de conhecer a verdade

acerca do que investiga tal como propotildee a filosofia uma vez que as sensaccedilotildees natildeo

oferecem qualquer dado de modo claro e preciso O corpo natildeo constitui assim um

instrumento seguro para uma anaacutelise mas ao contraacuterio confunde e perturba alma como

visto ateacute aqui Por outro lado a alma se mostra capaz de conhecer e eacute desejante do que eacute

real e verdadeiro caracteriacutesticas que obrigam o filoacutesofo a averiguar mais

detalhadamente a αὐηὴ θαζαὑηὴ no desenlace desta separaccedilatildeo Dito de outro modo a

alma por ela mesma apresenta a conduta do filoacutesofo e sua posiccedilatildeo perante vida e morte

ao narrar a maneira como ele lida com as perturbaccedilotildees dos sentidos e de que maneira o

pensar age nesse contexto

ldquo- Ora isso soacute poderaacute realizaacute-lo em plena pureza o homem que

na medida de suas forccedilas for ao encontro delas exclusivamente pela

via do pensamento abstraindo dele o recurso agrave vista ou qualquer um

dos sentidos e sem arrastar nenhum deles atraacutes da razatildeo (Ἆξ νὖλ

ἐθεῖλνο ἂλ ηνῦην πνηήζεηελ θαζαξώηαηα ὅζηηο ὅηη κάιηζηα αὐηῆ ηῆ

δηαλνίᾳ ἴνη ἐθ ἕθαζηνλ κήηε ηηλ ὄςηλ παξαηηζέκελνο ἐλ ηῷ

δηαλνεῖζζαη κήηε [ηηλὰ] ἄιιελ αἴζζεζηλ ἐθέιθσλ κεδεκίαλ κεηὰ ηνῦ

ινγηζκνῦ) que utilizando apenas o pensamento em si mesmo sem

mistura se lanccedila na caccedila de cada uma das realidades em si mesmas e

sem misturas (αὐηῆ θαζ αὑηὴλ εἰιηθξηλεῖ ηῆ δηαλνίᾳ ρξώκελνο αὐηὸ

θαζ αὑηὸ εἰιηθξηλὲο ἕθαζηνλ ἐπηρεηξνῖ ζεξεύεηλ ηῶλ ὄλησλ) liberto

85 Fed 66e1 θαὶ αὐηῆ ηῆ ςπρῆ ζεαηένλ αὐηὰ ηὰ πξάγκαηα

86 Vale ter em vista aqui o que o diaacutelogo sugere logo nas primeiras cenas de Soacutecrates na prisatildeo e o seu

comentaacuterio ao se livrar dos grilhotildees ldquo- Que coisa estranha amigos essa sensaccedilatildeo a que os homens

chamam de prazer Eacute espantoso como naturalmente se associa ao que passa por ser o seu contraacuterio a

dor Ambos se recusam a estar presentes ao mesmo tempo no mesmo homem e todavia se algueacutem

persegue e alcanccedila um deles eacute quase certo e sabido que acaba por alcanccedilar o outro como dois seres

que estivessem ligados por uma soacute cabeccedila () Ora estou acreditando que eacute tambeacutem o que acontece

comigo agrave sensaccedilatildeo de dor que a corrente me provocava na perna eacute agora o prazer que manifestamente

lhe vem no encalccedilordquo (60b3-c) O excerto sugere ser a condiccedilatildeo de humanidade isto eacute da alma ainda

associada ao corpo um estado no qual a alma ainda experimenta as diferentes sensaccedilotildees O corpo nesse

contexto constitui o lugar para a recepccedilatildeo dessas sensaccedilotildees e portanto o lugar onde se apresentam

oposiccedilotildees as quais soacute podem advir do sensiacutevel como prazer e dor A contrariedade tema que seraacute

discutido no diaacutelogo vale adiantar natildeo eacute aceitaacutevel segundo a concepccedilatildeo de alma racional una e invisiacutevel

que estaacute sendo formulada

149

ateacute onde lhe for possiacutevel dos olhos dos ouvidos numa palavra de

todo o corpo - ciente de quanto esta perturba a alma e a impede de

adquirir a verdade e sabedoria (ἀιήζεηάλ ηε θαὶ θξόλεζηλ) quando

ambos se associam Ou natildeo te parece que se algueacutem existe com a

possibilidade de atingir o real (ηνῦ ὄληνο) eacute este mesmordquo (Fed

65e5-66a8)

O afastamento da alma em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees eacute dado nos termos da

purificaccedilatildeo Nesse contexto o pensamento eacute claramente o agente que promove tal

distanciamento e assim o responsaacutevel pelo processo de purificaccedilatildeo Aquele que busca

adquirir o ser deve ter no pensamento o meio de emancipar-se das sensaccedilotildees de modo a

natildeo se deixa arrastar influenciar por elas e desse modo natildeo permitir que estas

imponham obstaacuteculo agrave atividade racional O texto oferece a busca do conhecimento

anaacutelogo ao de uma ldquocaccedila agraves realidadesrdquo que sugere de um lado a dificuldade do

pensamento agir nesse contexto de separaccedilatildeo e por outro o benefiacutecio de ter a alma e o

pensar tornando-se com isso puros (θαζαξόο) e sem mistura (εἰιηθξηλήο) Δηάλνηα e

ινγηζκόο mostram essa atividade racional que nesta circunstacircncia oferece o

pensamento do mesmo modo como uma faculdade em processo de θάζαξζηο ou seja

em contiacutenuo distanciamento do corpoacutereo tanto quanto possiacutevel87

Note-se que o trecho

apresenta nesta relaccedilatildeo o pensamento como agente e paciente na medida em que este

promove a purificaccedilatildeo e ao mesmo tempo se beneficia dela ao se tornar puro e livre

para atuar na aquisiccedilatildeo dos alvos maiores converter-se em alta inteligecircncia e apreender

a verdade88

No processo de purificaccedilatildeo ainda natildeo se tem todavia a descriccedilatildeo de seu

modo excelente como quer o filoacutesofo Entretanto natildeo se deve descartar que nessa fase

em que o sentido da θξόλεζηο como condiccedilatildeo excelente da razatildeo comeccedila a ser

formulado essa noccedilatildeo de pureza que o texto sugere serve aos propoacutesitos de exaltar e

oferecer uma noccedilatildeo de excelecircncia ao modo filosoacutefico Diferentemente de uma noccedilatildeo

baseada em distinccedilotildees de ordem social pretende-se agora uma superioridade intelectual

que se busca a partir de uma purificaccedilatildeo cuja concepccedilatildeo foge agrave noccedilatildeo que se tem nos

87 Chen op cit p 17

88 Vale verificar a afirmaccedilatildeo de BREacuteHIER ldquoMas no Feacutedon ele trata da purificaccedilatildeo do pensamento natildeo

se poderaacute obtecirc-lo se natildeo for pelo proacuteprio pensamento que eacute portanto agraves vezes o ser a se purificar agraves

vezes o meio de purificaccedilatildeo temos sobre isso a declaraccedilatildeo expressa do Feacutedon (69c) pensamento eacute um

bdquomeio de purificaccedilatildeo‟ (katharmos) Para ele a katharsis consiste na verdade na conversatildeo de um

ldquopensamento impurordquo na direccedilatildeo de ldquoum Pensamento puro e infalivelmente perfeitordquo que age sobre o ser

atraveacutes do alcance e dos efeitos disto que aqui se considera o pensamento em seu estado excelente e para

ele constitui a Forma Pensamento Breacutehier E ldquoAretai Katharseisrdquo in Etudes de Philosophie Antiquerdquo

Presses Universitaires de France Paris 1955 p241

150

ritos tradicionais sendo ambos dados no registro da inteligecircncia89

Assim parece

coerente que faccedila parte da alta intelecccedilatildeo que constitui a θξόλεζηο o desapego das

paixotildees desejos e sofrimentos do corpo90

tal como o desprezo por honrarias e outras

vilanias sendo o conhecimento a busca intelectual propiacutecia para isso e a verdade

definida como niacutetido e sem mistura o guia (Fed 66b7)

Cabe observar que o pensamento eacute oferecido como a uacutenica atividade da alma

atraveacutes da qual apresenta o seu caraacuteter enquanto distinta e afastada do corpo A

descriccedilatildeo da purificaccedilatildeo que o pensamento promove tal como se apresenta revela que

ele proacuteprio aparentemente consiste no uacutenico elemento que resiste a esse afastamento

sendo portanto apropriado para supor o conhecimento do que eacute distinto do sensiacutevel e

que concerne agrave alma Este movimento de afastamento que descreve a alma mesmo sem

a intenccedilatildeo de defini-la oferece uma noccedilatildeo a seu respeito na medida vale dizer do que

parece necessaacuterio para a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade Se tomarmos a alma por sua

capacidade e atividade de intelecccedilatildeo que eacute o que interessa ao nosso estudo eacute

conveniente examinar como este pensamento eacute capaz de mover a alma em direccedilatildeo aos

seres inteligiacuteveis ou melhor de que modo e por quais razotildees a alma se move de que

maneira isso constitui o pensar

A pista encontrada por Soacutecrates para um exame racional eacute pautado pela verdade

e tem a consciecircncia de que a alma por ela mesma no exerciacutecio do pensamento eacute a via

adequada para o conhecimento91

Assim na funccedilatildeo de agente purificador o pensamento

separa o que natildeo constitui uma qualidade que colabore para o conhecimento as

sensaccedilotildees e se potildee a contemplar o que estaacute em exame pela proacutepria alma o que em

89 Para Louis Moulinier ldquokatharsisrdquo em geral assume o significado de limpar tornar livre de mistura

purgar Os termos katharos e katharein satildeo os termos que em geral exprimem a pureza no domiacutenio da

inteligecircncia como parece ser o sentido privilegiado no Feacutedon As ocorrecircncias desse significado nesse

domiacutenio fazem referecircncia agrave limpidez do oraacuteculo ou quando katharos significa ldquoclaramenterdquo

O autor

explica ldquo[] os Gregos conceberam uma pureza das coisas e uma pureza do espiacuterito que entre essas

coisas estaacute a verdade e dentro dela a sinceridade esta noccedilatildeo eles exprimiam pelo adjetivo katharos

que ainda eacute muito material e que implica agraves vezes um juiacutezo de valor inteiramente moralrdquo Em toda a sua

obra Moulinier nota a presenccedila da noccedilatildeo de materialidade no que diz respeito ao tema da purificaccedilatildeo

tanto na perspectiva fiacutesica do mundo quanto no plano abstrato O valor material da pureza eacute transposto

para outras perspectivas como o da moralidade e o da intelectualidade Na medicina o termo katharsis se

apresenta em todo o tipo de evacuaccedilatildeo ou escorrimento seja esse escorrimento natural como a

menorreacuteia ou um escorrimento causado por alguma patologia Os dois sentidos que o termo possui na

linguagem meacutedica designam tanto a eliminaccedilatildeo de um mal quanto uma evacuaccedilatildeo que restabelece uma

ordem uma harmonia Moulinier L Le Pure et Le Impure dans La Penseacutee des Grecs- De Homere a

Aristote Librarie Klincksiec Paris 1952 167-170

90 Fed 66c2rdquoPaixotildees desejos temores futilidades e fantasias de toda ordem (ἐπηζπκηῶλ θαὶ θόβσλ θαὶ

εἰδώισλ παληνδαπῶλ θαὶ θιπαξίαο)rdquo

91 Fed 66b3 7 ldquoProvavelmente haacute uma espeacutecie de pista [que por meio da razatildeo] nos guia nas nossas

pesquisas (Κηλδπλεύεη ηνη ὥζπεξ ἀηξαπόο ηηο ἐθθέξεηλ ἡκᾶο [κεηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐλ ηῆ ζθέςεη])rdquo

151

outras palavras representa a sua autonomia Somente a partir desta liberdade que

consiste no desapego da alma e na consequente autonomia do pensamento que os

objetos almejados parecem atingiacuteveis um grau de saber do qual o filoacutesofo eacute amante92

que corresponde ao que tudo indica ao pensar em seu modo excelente

Conveacutem verificar desse modo o sentido dessa pureza dada pelo processo

racional que o filoacutesofo pretende defender para compreender melhor o tipo de objeto

desejado na filosofia O puro (θαζαξόο) eacute anaacutelogo agrave clareza e agrave precisatildeo anteriormente

referidas como qualidades ausentes nos dados fornecidos pelos sentidos e constitui um

atributo supostamente comum em relaccedilatildeo aos objetos aspirados pelo filoacutesofo a verdade

os seres e os deuses que encontraraacute no destino apoacutes a morte (Fed 66e) Nas passagens

onde Soacutecrates confessa ter esperanccedila em obter um bom destino post mortem a θάζαξζηο

aparece como a preparaccedilatildeo apropriada e necessaacuteria para este fim Tem-se claramente a

identificaccedilatildeo desta purificaccedilatildeo ao que eacute divino denotando a proposta de atribuir um

caraacuteter intelectualista agravequilo que tradicionalmente eacute visto no acircmbito da religiosidade

ldquo() assim pois uma vez resgatados da demecircncia (ἀθξνζύλεο)

do corpo eacute razoaacutevel se supor que gozaremos da companhia de outros

seres igualmente puros e conheceremos por noacutes mesmos (γλσζόκεζα

δη ἡκῶλ αὐηῶλ ) tudo o que eacute sem mistura o que equivale talvez a

dizer a verdade (ηνῦην δ ἐζηὶλ ἴζσο ηὸ ἀιεζέο) pois soacute ao impuro

natildeo deveraacute ser permitido tocar o que eacute puro‟ Aqui tens Siacutemias o

que quanto a mim natildeo deixaratildeo de sentir e comentar entre si todos

aqueles que efetivamente amam a sabedoria (πάληαο ηνὺο ὀξζῶο

θηινκαζεῖο) Ou natildeo concordasrdquo (Fed 67a6-b4)

O processo da θάζαξζηο apresenta a sua finalidade metafiacutesica Natildeo seria um erro

dizer de acordo com esta uacuteltima passagem que os termos em que se coloca a questatildeo

religiosa da vida apoacutes a morte recebe a sua versatildeo filosoacutefica na qual o domiacutenio dos

deuses tem uma natureza tal que pode ser atingida apoacutes a alma se desvincular do corpo

O propoacutesito de um argumento acerca da purificaccedilatildeo estaacute justamente em propor o gecircnero

deste domiacutenio dos deuses que o filoacutesofo pretende alcanccedilar Entretanto disto depende

uma minuciosa investigaccedilatildeo sobre a alma e assim sobre a faculdade e o processo

responsaacutevel para esta aquisiccedilatildeo Nesses termos conveacutem especificar no que consiste a

92 Fed 66e1 ldquoEntatildeo sim ser-nos-aacute dado ao que parece alcanccedilar o alvo das nossas aspiraccedilotildees a

sabedoria de que somos amantes (θαὶ ηόηε ὡο ἔνηθελ ἡκῖλ ἔζηαη νὗ ἐπηζπκνῦκέλ ηε θαί θακελ ἐξαζηαὶ

εἶλαη θξνλήζεσο)rdquo

152

purificaccedilatildeo para o filoacutesofo o qual possui uma noccedilatildeo especiacutefica de morte e uma vez que

dela se daacute todo o processo para atingir o bom destino tatildeo almejado O discurso da antiga

tradiccedilatildeo (πάιαη ἐλ ηῷ ιόγῳ ιέγεηαη Fed 67c6) chama de θάζαξζηο o que para o filoacutesofo

consiste na morte a total liberaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo (Fed 67d4-5) Ora

entatildeo qual seria diante disso a vantagem de se purificar na filosofia E poucas

palavras a postura de desapego do filoacutesofo eacute um ensaio para a condiccedilatildeo de total

desvinculaccedilatildeo das coisas que dizem respeito ao corpoacutereo ao fiacutesico na qual a alma em

breve no caso de Soacutecrates se encontraraacute (Fed 67d)

A comeccedilar o objeto do qual os filoacutesofos se dizem amantes mais

especificamente no gecircnero desse objeto constitui um dado importante nessa

purificaccedilatildeo Os homens comuns enfrentam a morte movidos pelas afeiccedilotildees que mantecircm

em vida humana e aparentemente pretendem mantecirc-las na condiccedilatildeo de mortos

mostrando-se assim apegados ao corpo e ao que eacute relativo agrave vida humana (ἀλζξώπηλνο

Fed 68a3) O filoacutesofo ao contraacuterio se move pelo desejo de se reunir a seres divinos

descorporificados identificados aos seres da ordem inteligiacutevel como se veraacute mais

adiante uma vez que reconhece pela filosofia ser a desvinculaccedilatildeo do que eacute relativo agrave

condiccedilatildeo humana como algo positivo93

Outro ponto importante acerca dessa racionalizaccedilatildeo sobre a morte diz respeito a

uma certeza uma convicccedilatildeo (ζθόδξα γὰξ αὐηῷ ηαῦηα δόμεη Fed 68b3) que se adquire

sobre eles pela filosofia como a do bom destino apoacutes a morte para aquele que filosofou

Tal convicccedilatildeo deve-se reparar daacute-se pela via racional e tem em vista junto agrave

pretendida estadia com os deuses (Fed 69c-d6) a aquisiccedilatildeo de um estado de pureza dito

θξνλήζεσο do qual satildeo amantes os filoacutesofos e no qual ele teraacute a desejada sabedoria94

Tem-se ressaltado novamente neste argumento os dois aspectos da θξόλεζηο sua

conotaccedilatildeo de sabedoria alto conhecimento e uma condiccedilatildeo de pureza da alma De

93Sobre a funccedilatildeo do misticismo que Platatildeo apresenta no Feacutedon Brehieacuter pergunta ldquoPoderiacuteamos ser

tentados a considerar o misticismo como um simples meio de intelectualismo de fato uma boa parte dos

argumentos que convida purificar a alma da impureza do corpo (65b-66c) insistem sobre as razotildees

intelectuais da purificaccedilatildeo [] mas podemos crer que as noccedilotildees religiosas introduzidas com um

semelhante acento sejam simples metaacuteforas literaacuteriasrdquo Breacutehier op cit p 237 Compatiacutevel em parte

com a nossa anaacutelise Moulinier comenta ldquoUma tal doutrina eacute no fundo a mesma que a dos Misteacuterios

que por sua vez natildeo prometendo mais que as purificaccedilotildees libertadoras prometem uma felicidade divina

no outro ladordquo Moulinier opcit p 359 Sem pretensotildees de responder a estas questotildees de cunho

religioso importa observar a construccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de depuraccedilatildeo racional em benefiacutecio da alma

que consiste na filosofia

94 Fed 68b4 ldquoPelo menos meu caro amigo assim devem pensar os filoacutesofos que o satildeo de fato pois eacute

neles que em especial se firma esta convicccedilatildeo de que em nenhum outro lugar a natildeo ser ali lhes seraacute

dado alcanccedilar a autecircntica sabedoria (κεδακνῦ ἄιινζη θαζαξῶο ἐληεύμεζζαη θξνλήζεη ἀιι ἢ ἐθεῖ) e

Fed 68a7 ldquoalgueacutem que ame deveras a sabedoria (θξνλήζεσο δὲ ἄξα ηηο ηῷ ὄληη ἐξῶλ) e sinta em si

enraizada essa convicccedilatildeo ()rdquo

153

maneira incisiva o texto apresenta tal estado e esse alto conhecimento possiacutevel somente

com a total separaccedilatildeo entre alma e corpo e portanto inatingiacutevel inteiramente durante a

vida O que pode parecer uma afirmaccedilatildeo frustrante para aquele que se empenhou em

filosofar demonstra na verdade o tipo de crenccedila que o exerciacutecio racional daacute subsiacutedios

Em outras palavras trata-se de apresentar os pilares inteligentes que sustentam a crenccedila

da imortalidade da qual Soacutecrates natildeo abre matildeo e que justificam o seu destemor sendo a

atividade do pensamento atuando livre de influecircncias diversas a base principal para uma

convicccedilatildeo

ldquo[] Pelo menos meu caro assim devem pensar os filoacutesofos que

o satildeo de fato pois eacute neles que em especial se forma a convicccedilatildeo de

que em nenhum lugar a natildeo ser ali lhes seraacute dado alcanccedilar a

autecircntica sabedoria E se isto eacute exato nada mais absurdo (ἀινγία)

portanto como dizia haacute pouco do que um homem dessa tecircmpera

recear a morterdquo (Fed 68 a-b)

Outros adjetivos se somaratildeo agraves vantagens que pode trazer o exerciacutecio da

filosofia As virtudes como coragem (ἀλδξεία Fed 68c5) e temperanccedila (ζσθξνζύλε

Fed 68c8) satildeo aquisiccedilotildees do filoacutesofo ao longo de uma vida dedicada ao pensar e aos

cuidados da alma Diferentemente da noccedilatildeo vulgar de coragem e temperanccedila a

aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude se daacute com conduta de desapego que se realiza pelo

exerciacutecio do pensamento Para a maioria ser corajoso consiste em enfrentar o que lhes

causa temor como a morte sendo neste caso o proacuteprio medo a causa da accedilatildeo De

maneira similar o ser temperante consiste para o natildeo filoacutesofo em certo comedimento

imposto justamente pelo desregramento que o acomete sendo a intemperanccedila portanto

a causa da temperanccedila (Fed 68d-69a4) As accedilotildees para o vulgo tem origem na

irracionalidade das emoccedilotildees afecccedilotildees das quais a alma do filoacutesofo estaacute treinada em natildeo

se deixar influenciar e pode assim agir guiado pela razatildeo

ldquo- Ora meu caro siacutemias talvez natildeo seja esse o processo

adequado de troca devido agrave virtude esse de trocar prazeres por

prazeres sofrimentos por sofrimentos receios por receios ndash uns

maiores por outros menores - como se de moedas tratasse Talvez

que pelo contraacuterio haja uma uacutenica moeda adequada capaz de

assegurar a validade de todas essas trocas ndash a Razatildeo - (ἀιι ᾖ ἐθεῖλν

κόλνλ ηὸ λόκηζκα ὀξζόλ ἀληὶ νὗ δεῖ πάληα ηαῦηα θαηαιιάηηεζζαη

θξόλεζηο) Sim talvez soacute com ela [e mediante ela] se possa de

verdade [comprar e vender] coragem temperanccedila justiccedila numa

palavra a autecircntica virtude que eacute a que vem acompanhada de razatildeo

(ζπιιήβδελ ἀιεζὴο ἀξεηή κεηὰ θξνλήζεσο) []rdquo (Fed 69a6-10)

154

A relaccedilatildeo do filoacutesofo com o corpo e de maneira mais abrangente sua postura

diante das questotildees humanas mostram a especificidade de uma eacutetica baseada na

inteligecircncia Aqueles que dedicam a vida agrave filosofia trocam os apelos e os prazeres

corporais pelas virtudes e assim procuram se depurar do modo mais apropriado (Fed

69a-b) que constitui o cuidado da alma Esses almejam aquilo que por analogia

poderia ser considerado a uacutenica moeda correta a θξόλεζηο a qual deve prevalecer sobre

todo e qualquer tipo de troca ou tentando apreender mais profundamente o sentido da

analogia o valor superior a qualquer moeda que se possa adquirir Diante de tal relaccedilatildeo

cabe analisar a analogia a fim de verificar a noccedilatildeo de valor e de superioridade que o

argumento sugere A argumentaccedilatildeo se utiliza de analogia cujo objeto a moeda

representa a instabilidade dos paradigmas em que o homem comum se baseia para

atribuir valor Note-se que se tem sugerido assim a distinccedilatildeo entre dois planos no qual

fica aparente a dicotomia entre um valor de uso que se refere agrave troca de um prazer pelo

outro e um valor real a θξόλεζηο e as verdadeiras virtudes Como objeto desprovido de

valor intriacutenseco a moeda em seu uso comum demonstra por contraste a superioridade

da θξόλεζηο que eacute dada como objeto em si mesmo valioso Sua importacircncia consiste

justamente na funccedilatildeo de promover as virtudes a qual o filoacutesofo compreende quando se

dispotildee a procurar aquilo que eacute de mais alto valor e descobre ser a proacutepria θξόλεζηο a

fonte dos bens Tal relaccedilatildeo difere desse modo das trocas e das escolhas que se realizam

no plano da simples permuta onde natildeo haacute nenhuma verdadeira aquisiccedilatildeo visto que aiacute

os objetos satildeo efecircmeros As relaccedilotildees para o homem comum constituem uma relaccedilatildeo de

substituiccedilatildeo uma vez que esse efetua uma permuta entre objetos cujo valor eacute o mesmo

enquanto o filoacutesofo ao contraacuterio tem em vista a troca de algo inferior referente ao

corpo por algo superior as virtudes verdadeiras95

o que consiste em uma verdadeira

relaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo

A vida filosoacutefica como um modo intelectivo de purificaccedilatildeo garante assim a

verdadeira aquisiccedilatildeo ou seja a elevaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de alta inteligecircncia e por

consequecircncia promove as verdadeiras virtudes96

Deve-se notar que as virtudes assim

95Rowe tambeacutem comenta sobre a inquietante comparaccedilatildeo dizendo que a base da comparaccedilatildeo natildeo

consiste propriamente na troca de valores mas no valor e na importacircncia dos objetos em questatildeo Na sua

visatildeo isso ajuda a pontuar a phronesis equivalente a sabedoria que natildeo consiste em mais um objeto

dentre tantos outros a ser trocado Plato Phaedo texto estabelecido e comentado por C J Rowe

Cambridge University Press 1996 (Cambridge Greek and Latin Classics) p 149-150

96 Yvon Bregraves compreende a perspectiva que Platatildeo lanccedila sobre a arete da seguinte forma ldquoCom o Feacutedon

a alma se arrisca natildeo mais a tornar-se apenas um receptaacuteculo de arete mas o substituto de arete (op

155

como a θξόλεζηο satildeo postas como objetos almejados e ao mesmo tempo qualidades

passiacuteveis de serem adquiridas com o processo racional de purificaccedilatildeo Natildeo se tem aqui

uma noccedilatildeo de ἀξεηή que embora aliada ao exerciacutecio do pensamento consiste no que se

poderia dizer uma ideia de justiccedila de coragem ou de temperanccedila Trata-se ao que

parece de sugerir uma noccedilatildeo de verdadeira virtude relacionada agrave noccedilatildeo de inteligecircncia

a qual recebe nessa argumentaccedilatildeo seus primeiros contornos Do mesmo modo

pretende-se argumentar acerca do teor racional de sua aquisiccedilatildeo de modo a qualificar e

especificar a conduta do filoacutesofo Assim as virtudes tal como a θξόλεζηο consistem

em qualidades dadas pelo exerciacutecio do pensar ao modo da filosofia e podem ser

referidas como se vecirc nos termos da purificaccedilatildeo Uma vez a alma depurada ela estaacute

dotada de virtudes verdadeiras e portanto livre de apresentar aparecircncias enganosas

(ζθηαγξαθία) de virtude

A partir dessa argumentaccedilatildeo note-se que se agrega agrave noccedilatildeo de alto pensamento

dito nos termos da θξόλεζηο a noccedilatildeo de autecircntica virtude da qual ele eacute tambeacutem

responsaacutevel (θαὶ αὐηὴ ἡ θξόλεζηο κὴ θαζαξκόο ηηο ᾖ Fed 69c2) A dupla face do

pensamento como resultado do processo e ao mesmo tempo agente que o promove

mostra que a aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude corresponde agrave aquisiccedilatildeo do estado de alta

inteligecircncia que pressupotildee a θξόλεζηο Estar na condiccedilatildeo da θξόλεζηο pressupotildee ter

adquirido a alta inteligecircncia pelo processo do proacuteprio pensamento se tornando desse

modo possuidor das virtudes Assim ao mesmo tempo em que se tem agrave mostra alguns

dos seus atributos sugere-se a valoraccedilatildeo do pensar em seu mais alto niacutevel virtuoso

puro e autecircntico por isso condiccedilatildeo almejada pelo filoacutesofo Nos papeacuteis de agente e

paciente o pensar neste niacutevel se apresenta como o cume da atividade intelectual na qual

a alma se encontra em total independecircncia do corpo apesar da convivecircncia com ele e

demonstra atingir por conta disso as coisas em seu modo puro ou em termos

filosoacuteficos verdadeiro Tal pureza lhe permite um grau de compreensatildeo acerca de um

gecircnero distinto diferente do corpoacutereo identificado agrave condiccedilatildeo de estar morto que

constitui a peculiaridade do seu alcance A purificaccedilatildeo torna salientes suas distinccedilotildees e

as distinccedilotildees do que a ele se refere deixando claro que a sua atividade se daacute em torno

deste gecircnero incorpoacutereo diferente do sensiacutevel e tem em vista o que eacute verdadeiro Do

mesmo modo note-se que sendo as virtudes ataacutevicas ao seu exerciacutecio o pensar em

cit paacuteg 193) Jaacute Monique Dixsaut na nota 104 de sua traduccedilatildeo diz ldquo[] o resultado da purificaccedilatildeo

pelo pensamento eacute a katharsis isto eacute resultado do que foi purificado as virtudes Puras de qualquer

erro aos quais concernem seus termos de aplicaccedilatildeo as virtudes se tornam moderaccedilatildeo justiccedila etc[]rdquo

156

busca de sua excelecircncia constitui o ponto em que racionalidade e moral satildeo ligadas no

diaacutelogo e revela assim o teor eacutetico da investigaccedilatildeo sobre a imortalidade e da vida

segundo a filosofia

Dadas as aquisiccedilotildees do exerciacutecio do pensamento na filosofia a defesa da

conduta do filoacutesofo mostra seu valor e seu modo de operar O pensamento tem exposto

nos termos da θάζαξζηο a sua funccedilatildeo no contexto do diaacutelogo dignificar a vida do

filoacutesofo o deixando pleno de virtudes conferir-lhe algum grau de conhecimento97

tornar a alma pura e se tornar com isso cada vez mais puro ou seja livre para pensar

A abrangecircncia desta noccedilatildeo de pensamento puro ou pensamento livre do corpoacutereo natildeo

tem seu caraacuteter inteiramente exposto mas note-se eacute afim e estaacute dentro da proposta de

investigaccedilatildeo da imortalidade como permanecircncia apoacutes a morte do corpo como sugerido

anteriormente Aleacutem disso vale notar que o diaacutelogo elenca atraveacutes dos vaacuterios

argumentos utilizados na investigaccedilatildeo as caracteriacutesticas do pensamento e por enquanto

importa ressaltar as duas importantes atribuiccedilotildees que a noccedilatildeo de θαζαξκόο oferecem

analogamente e que passam a integrar o conjunto de qualidades do trabalho racional

processo e autenticidade este uacuteltimo vinculado agrave ἀιήζεηα Da mesma maneira o

θαζαξόο apresenta clareza e precisatildeo como qualidades referentes aos seus objetos e

portanto compartilhada pelo pensamento Analogamente referida pela θάζαξζηο a

operacionalidade dada nos termos da δηάλνηα e ινγηζκόο que conduz agrave excelecircncia da

razatildeo tem proposto seu valor depurativo O que na purificaccedilatildeo eacute dado como separaccedilatildeo e

afastamento mais adiante seraacute revelado como o discernimento de objetos especiacuteficos

mas que por enquanto constitui um processo de desapego promovido pela filosofia de

valor moral Tais noccedilotildees faratildeo parte da concepccedilatildeo de ciecircncia que o diaacutelogo evocaraacute

mais adiante e compotildeem a partir de entatildeo as caracteriacutesticas da atividade racional a qual

sofreraacute ao longo do diaacutelogo as devidas formulaccedilotildees filosoacuteficas

97 Pakaluk considera que a desvinculaccedilatildeo depuradora que trata o texto se daacute em graus Aos poucos a

alma vai se aproximando do estado em que permaneceraacute quando estiver inteiramente pura liberta do

corpo Ele entende que ao ligar a noccedilatildeo de purificaccedilatildeo com o treino para a morte Platatildeo sugere ser

possiacutevel a depuraccedilatildeo em vida mesmo sendo obviamente limitada ldquoPodemos imaginar tambeacutem que

parte do objetivo de Platatildeo ao introduzir a imagem da purificaccedilatildeo no SD (argumento de defesa de

Soacutecrates) em 65e6-66a 7 e 67c5-d1 eacute sugerir que a separaccedilatildeo nesta vida difere somente em graus da

morte O processo de remover uma impureza eacute naturalmente um processo para alcanccedilar um grau

extremo de uma qualidade que jaacute eacute presente Dizer que bdquonoacutes natildeo podemos conhecer nada puramente na

companhia do corpo‟ (64e4) implica dizer que noacutes jaacute conhecemos algo em algum grau na companhia do

corpordquo Pakaluk Michel ldquoDegrees of Separation in the Phaedordquo in Phronesis - Journal For Ancient

Philosophy Brill XLVIII 2 Leiden 2003 paacuteg 101

157

14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva

Dado o processo de afastamento e a consequente separaccedilatildeo entre corpo e alma

as questotildees acerca de imortalidade satildeo formuladas com vistas para a sobrevivecircncia apoacutes

a morte A partir dos proacuteximos argumentos o foco da argumentaccedilatildeo teraacute em questatildeo a

natureza da alma que como tal permite sua subsistecircncia Surge nos termos da filosofia

especificaccedilotildees acerca do domiacutenio correspondente ao que a tradiccedilatildeo religiosa tem como

poacutes-vida no qual se apresentam algumas caracteriacutesticas daquilo que seraacute descrito como

o domiacutenio da inteligibilidade e que tem portanto a faculdade cognitiva da alma como

testemunho de sua presenccedila nesse plano

ldquo[] Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a

alma subsiste algures (νὐδακνῦ ἔηη ᾖ) e natildeo fica destruiacuteda e

aniquilada (δηαθζείξεηαί ηε θαὶ ἀπνιιύεηαη) no mesmo dia em que

morre Quem sabe se logo depois que dele se liberta e sai natildeo se

desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar

rastro de existecircncia (νὐδὲλ ἔηη νὐδακνῦ ᾖ) Claro que a verificar-se

a hipoacutetese de ela subsistir algures concentrada em si mesma e liberta

(εἴπεξ εἴε πνπ αὐηὴ θαζαὑηὴλ ζπλεζξνηζκέλε θαὶ ἀπειιαγκέλε )

desses males que mesmo haacute pouco enumeravas entatildeo sim haveria

fortes e boas razotildees para esperar que o que dizes Soacutecrates fosse

verdade Poreacutem aiacute estaacute uma coisa que requer talvez natildeo pequeno

esforccedilo persuadir e provar (νὐθ ὀιίγεο παξακπζίαο δεῖηαη θαὶ

πίζηεσο) nada mais nada menos que a alma existe para aleacutem da

morte e manteacutem de alguma forma o uso das suas faculdades e

entendimento (ὡο ἔζηη ηε ςπρὴ ἀπνζαλόληνο ηνῦ ἀλζξώπνπ θαί ηηλα

δύλακηλ ἔρεη θαὶ θξόλεζηλ)rdquo (Fed 70a2-b4)98

Deve-se primeiramente observar que a concepccedilatildeo de alma segundo a tradiccedilatildeo

entra em conflito com a noccedilatildeo de morte oferecida pelo filoacutesofo ateacute aqui Ao se levantar

pela voz de Cebes a possibilidade de destruiccedilatildeo e de aniquilamento coloca-se em

98 Vale chamar a atenccedilatildeo para as traduccedilotildees do termo phronesis Na traduccedilatildeo francesa de Monique

Dixsaut temos esse trecho ldquo[] ela conserva tambeacutem uma certa forccedila e o pensamento (penseacutee)rdquo Dixsaut

op cit p Rowe opta por algo proacuteximo da traduccedilatildeo que estamos seguindo ldquotina dinamin `algum poderacute

`alguma capacidadeacute mas seraacute de fato uma capacidade relevante se for para um entendimento

(understanding)rdquo Rowe op cit p 153 Fowler opta por ldquoany power and intelligencerdquo Fowler H N Plato

Phaedo Harvard University Press Cambridge Massachusetts Loeb Classical Library p243

158

questatildeo de maneira mais direta a natureza da alma que estaacute em jogo A existecircncia da

alma separada do corpo esbarra em um problema que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo

uma vez que na morte o perecimento do corpo eacute visiacutevel Embora o argumento acerca da

filosofia como exerciacutecio para a boa morte seja aceito falta detalhar esta natureza que

oferece condiccedilotildees para uma possiacutevel sobrevivecircncia agrave corrupccedilatildeo Dito de outro modo o

diaacutelogo propotildee uma anaacutelise de planos no qual se pode distinguir corpo e alma a fim de

revelar o gecircnero de cada um e obter a partir disso uma explicaccedilatildeo acerca da destruiccedilatildeo

de um e da permanecircncia do outro Da mesma maneira eacute notaacutevel a necessidade de

demonstrar a possibilidade de rastrear de conhecer em alguma medida tal subsistecircncia

sendo o pensamento e sua capacidade cognitiva as caracteriacutesticas sobreviventes e

portanto uacuteteis para a investigaccedilatildeo

Para isso o diaacutelogo utilizaraacute duas argumentaccedilotildees que procuram demonstrar a

existecircncia A primeira que vem a seguir mostra atraveacutes da anaacutelise do movimento e

princiacutepio de geraccedilatildeo dos seres vivos que a alma se distingue em gecircnero de tudo o que eacute

corruptiacutevel pelo tempo Na sequecircncia com a Teoria da Reminiscecircncia se pretende

oferecer uma explicaccedilatildeo sobre a vivecircncia da alma antes do nascimento em vida humana

ou seja em um periacuteodo anterior agrave sua prisatildeo em um corpo Ambos os argumentos

oferecem uma visatildeo da alma neste domiacutenio distinto e por conseguinte do pensamento

como faculdade do conhecimento e de sua atuaccedilatildeo como capacidade cognitiva Cabe

verificar as primeiras formulaccedilotildees deste outro domiacutenio distinto do sensiacutevel no qual a

alma supostamente pode sobreviver a partir do argumento da geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo e dos

contraacuterios Neles satildeo dadas informaccedilotildees acerca da natureza da alma e acerca da

concepccedilatildeo de inteligibilidade que o texto pretende construir a partir da concepccedilatildeo

filosoacutefica de morte como um estado no qual a alma subsiste

Uma vez de acordo que a alma sobrevive no Hades tal como narra os antigos

misteacuterios (παιαηὸο ιόγνο) parece aceitaacutevel conceber que as almas que ali habitam

regressam renascendo dos que estatildeo mortos Logo deve-se admitir que os vivos nascem

dos mortos o que demonstra portanto a sua existecircncia no paiacutes dos mortos Se

comprovada a validade deste raciociacutenio Soacutecrates e seus amigos teriam encontrado uma

maneira de argumentar a favor da imortalidade (Fed 70c4-d5) O princiacutepio em questatildeo

a saber princiacutepio da geraccedilatildeo o qual governa a geraccedilatildeo dos seres vivos ganha uma

anaacutelise que mostraraacute seus limites em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de vida e morte geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo Ao propor que as coisas se originam do seu oposto cabe verificar se nas

relaccedilotildees entre opostos esse princiacutepio se apresenta seja no que diz respeito a situaccedilotildees

159

opostas como morte-vida seja nas relaccedilotildees em que estatildeo envolvidos conceitos como a

justiccedila o belo e a grandeza Em outros termos a anaacutelise parte da relaccedilatildeo de

contrariedade ἐλαληίνο que daacute origem conforme o raciociacutenio ao nascimento agrave γέλεζηο

(Fed 70d5-e) Seria comum a tudo o que existe surgir de seu oposto Esta pergunta de

fundo norteia a anaacutelise da γέλεζηο e conduz a investigaccedilatildeo de modo a examinar o

proacuteprio princiacutepio e qual contexto ele abrange

Parece evidente que este princiacutepio eacute presente ao se observar a geraccedilatildeo

equivalente a uma mudanccedila de estado O mais fraco pode se tornar mais forte o mais

raacutepido se tornar mais lento coisas injustas podem se tornarem justas o que denota que

entre as coisas que satildeo passiacuteveis de transiccedilatildeo ou seja que podem mudar de estado a

mudanccedila sempre seraacute para o estado contraacuterio (Fed 71a) Da mesma forma a

argumentaccedilatildeo tem em vista o processo de mudanccedila que se daacute no intervalo entre um

estado e outro que constituem o processo de geraccedilatildeo como diminuiccedilatildeo e aumento

aquecimento resfriamento separar unir (Fed 71a12-b10) O argumento coloca assim

estado e processo como os pontos a partir dos quais se deve dar a diferenciaccedilatildeo de

gecircnero entre o que se analisa Examinada dessa perspectiva a morte tem a vida como

seu contraacuterio e morrer e nascer satildeo o processo de passagem de um estado para o outro

gerando-se reciprocamente (Fed 71c) Dado que a alma existe no mundo dos mortos e

que o estar morto se origina do estar vivo e o estar vivo por sua vez adveacutem do estado

de morte parece inegaacutevel que faz parte do processo assim como o morrer o reviver (Τὸ

ἀλαβηώζθεζζαη Fed71d5 72a2)

ldquo- E agora ndash comentou Soacutecrates ndash que caminho vamos noacutes

seguir Ou bem que nos escusamos a compensar esse processo com

seu oposto (mas natildeo seraacute isso deixar a natureza manca (ἀιιὰ ηαύηῃ

ρσιὴ ἔζηαη ἡ θύζηο) ) ou bem que a ldquomorrerrdquo teremos de antepor

um processo de geraccedilatildeo contraacuterio [] ndash E qual em concreto ndash

Reviverrdquo (71e8-13)

Trata-se de dois estados e sobretudo no caso do tema da morte de planos

diferentes em que se analisa a geraccedilatildeo Ainda que natildeo se questione ainda sobre o tipo

destes estados como se daraacute mais adiante cabe notar tal divisatildeo e a dinacircmica que

Soacutecrates sublinhou no processo de geraccedilatildeo O movimento que descreve a γέλεζηο eacute

dotado de uma circularidade que garante o nascimento e a morte dos seres vivos com

essa a alternacircncia de estados Tal noccedilatildeo eacute importante porque sugere a conservaccedilatildeo

daquilo que morre e renasce oferecendo assim subsiacutedios para a tese de permanecircncia da

160

alma Sem um movimento circular que garantisse a alternacircncia entre estados o

fenocircmeno da geraccedilatildeo cessaria uma vez que a mudanccedila que constitui a gecircnese de morte

e vida natildeo aconteceria

ldquo[] se os contraacuterios natildeo se compensassem mutuamente como

que numa sucessatildeo circular (ὡζπεξεὶ θύθιῳ πεξηηόληα) se ao inveacutes

a geraccedilatildeo se processasse linearmente e num uacutenico sentido de um

extremo para o seu oposto sem dar volta na direccedilatildeo do primeiro e

vice-versa bem vecircs todas as coisas acabariam por adquirir a mesma

postura por se sujeitarem a um mesmo estado e seria o fim da

geraccedilatildeo (νἶζζ ὅηη πάληα ηειεπηῶληα ηὸ αὐηὸ ζρκα ἂλ ζρνίε θαὶ ηὸ

αὐηὸ πάζνο ἂλ πάζνη θαὶ παύζαηην γηγλόκελα)rdquo (Fed 72a11-72b5)

Soacutecrates parece ter demonstrado dessa forma a loacutegica que subjaz agrave geraccedilatildeo e

ao mesmo tempo agrave doutrina da transmigraccedilatildeo das almas que narra a antiga doutrina

(Fed 72d6 ndash e2) Ao mesmo tempo estaacute diante de um argumento que autoriza a

investigaccedilatildeo da indestrutibilidade da alma uma vez que tal loacutegica dissipa ao menos por

ora qualquer duacutevida acerca da possibilidade de sua existecircncia e portanto de sua

resistecircncia agrave morte e destruiccedilatildeo do corpo Conveacutem notar ainda alguns elementos deste

argumento Tal como foi dada a geraccedilatildeo assume como principal caracteriacutestica a

transitoriedade entre um estado e outro Deve-se observar que embora a argumentaccedilatildeo

se decirc a partir da observaccedilatildeo da geraccedilatildeo em um sentido bastante amplo e pouco

definido do que existe - seres vivos fenocircmenos da natureza e noccedilotildees abstratas ndash tem-se

por objetivo encontrar um princiacutepio comum que promove tal existecircncia e conferir a ele

uma explicaccedilatildeo filosoacutefica como se viu O plano em que se daacute o exame vale observar

consiste no domiacutenio dos eventos da vida no tempo de sua duraccedilatildeo (βίνο) cuja loacutegica

que os organiza mostra um elemento inexoraacutevel em meio agrave mudanccedila que inicia ou finda

essa duraccedilatildeo a alma que renasce Morte e vida satildeo tomados nessa perspectiva como

circunstacircncias transitoacuterias sendo conferido a elas portanto certa relatividade em

contraste com a conservaccedilatildeo da alma que permanece

Essa parece ser uma estrateacutegia que Soacutecrates utiliza na argumentaccedilatildeo para chegar

ao ponto que tinha em mira demonstrar que algo escapa agrave mudanccedila dos eventos

necessaacuterios agrave vida humana nascer-morrer Se a questatildeo de fundo levava em conta a

possibilidade de destruiccedilatildeo da alma junto com o corpo a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

oferece uma noccedilatildeo de exterioridade a esse princiacutepio atraveacutes do ldquoreviverrdquo o qual

apresenta o processo de geraccedilatildeo como movimento ciacuteclico possiacutevel e ao mesmo tempo

161

sugere que de tal processo participa justamente algo que resiste a transitoriedade das

mudanccedilas Esse aspecto duacutebio do reviver parece importante para fazer a distinccedilatildeo entre

seres abstratos e o plano da experiecircncia que o diaacutelogo vai apresentar mais adiante

Embora tenha a sua sobrevivecircncia demonstrada pelo princiacutepio de geraccedilatildeo a alma parece

natildeo obedececirc-lo na medida em que ela mesma natildeo muda natildeo se aniquila e permanece

portanto no mundo do Hades podendo nascer novamente Sendo assim sua existecircncia

natildeo pode ser tomada tal como existecircncia na natureza e nem sua duraccedilatildeo compreendida

no tempo de vida devendo ser ela de um gecircnero distinto

Importa realizar tais observaccedilotildees para apontar a construccedilatildeo da noccedilatildeo de

domiacutenio em que vai atuar o intelecto Pode-se entrever nessa uacuteltima argumentaccedilatildeo o

plano distinto da vida humana e da corporeidade como o ambiente no qual a θξόλεζηο

de alguma forma atua dada sobrevivecircncia da alma O fato de encontrar um princiacutepio que

apresente uma loacutegica para explicar a sobrevivecircncia da alma eacute do mesmo modo um

dado que deve ser levado em consideraccedilatildeo uma vez que o pensar no exerciacutecio de sua

faculdade teraacute como vaacutelido para a investigaccedilatildeo da imortalidade o que for do acircmbito da

racionalidade Dadas as razotildees para se convencer da subsistecircncia da alma o diaacutelogo

prossegue averiguando as possibilidades de dizecirc-la nesse domiacutenio passando a

especificar de agora em diante a atuaccedilatildeo do pensamento

II A natureza inteligiacutevel

21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva

Apoacutes a conclusatildeo sobre a indestrutibilidade e portanto sobre a preservaccedilatildeo da

faculdade intelectual da alma e de sua capacidade cognitiva os rumos da investigaccedilatildeo

sobre a imortalidade passam a utilizarem elementos epistemoloacutegicos Parece

conveniente que a faculdade intelectual da alma tenha a partir de agora o seu perfil

explorado e o resultado de sua atividade analisado para que se possa averiguar em que

medida tal produto constitui de fato um conhecimento Para tal o texto recorre a Teoria

da Reminiscecircncia um discurso (ιόγνο) jaacute conhecido do ciacuterculo de amigos de Soacutecrates

atraveacutes da qual se pretende demonstrar em certa medida a subsistecircncia e a atuaccedilatildeo

162

intelectual da alma A concepccedilatildeo de rememoraccedilatildeo tal como o Feacutedon apresenta ressalta

o caraacuteter cognitivo do pensamento sendo a ἀλάκλεζηο equivalente agrave atividade do

aprendizado

Introduzir a Teoria como um argumento que oferece provas (αἱ ἀπνδείμεηο Fed

75a5) da imortalidade parece conveniente aos propoacutesitos da investigaccedilatildeo dado que a

accedilatildeo de rememorar permite ao filoacutesofo fazer deduccedilotildees sobre um domiacutenio no qual o

corpo ainda natildeo tinha nenhuma participaccedilatildeo ou seja em um ambiente supostamente

anterior ao nascimento em vida humana Considera-se que a rememoraccedilatildeo constitui

assim um testemunho da accedilatildeo puramente racional e portanto a partir da qual se pode

deduzir acerca da imortalidade

ldquoO que aliaacutes Soacutecrates ndash atalhou Cebes- natildeo vem senatildeo

reforccedilar essa conhecida teoria que trazes agrave baila (θαὶ θαη ἐθεῖλόλ γε

ηὸλ ιόγνλ) ou seja que o aprender natildeo eacute senatildeo recordar segundo

ela eacute indispensaacutevel que tenhamos adquirido em tempo anterior ao

nosso nascimento os conhecimentos que atualmente recordamos (ὅηη

ἡκῖλ ἡ κάζεζηο νὐθ ἄιιν ηη ἢ ἀλάκλεζηο ηπγράλεη νὖζα θαὶ θαηὰ

ηνῦηνλ ἀλάγθε πνπ ἡκᾶο ἐλ πξνηέξῳ ηηλὶ ρξόλῳ κεκαζεθέλαη ἃ λῦλ

ἀλακηκλῃζθόκεζα) Ora tal natildeo seria possiacutevel se a nossa alma natildeo

existisse jaacute algures antes de encarnar nesta forma humana De modo

que ateacute sob este prisma daacute ideia que a alma eacute algo de imortalrdquo (Fed

72e3-73a3)

A elucidaccedilatildeo desta noccedilatildeo de rememoraccedilatildeo como aprendizado vem logo a seguir

No exerciacutecio de rememorar a explicaccedilatildeo (Ἑλὶ κὲλ ιόγῳ Fed 75a7) dada como resposta

correta a um questionamento eacute possiacutevel porque a alma teve conhecimento e uma

atividade racional correta neste periacuteodo anterior99

Desse modo a atividade intelectual

em termos do conhecimento e de um arrazoamento correto (ἐπηζηήκε ἐλνῦζαθαὶ ὀξζὸο

ιόγνο)100

realizados em um estado anterior ao nascimento constitui a condiccedilatildeo para que

99 Fed 73a9-10 ldquo(hellip) quando interrogamos as pessoas desde que saibamos interrogaacute-las elas satildeo por

si capazes de explicar corretamente tudo o que se lhes peccedila ora se natildeo tivesses jaacute um conhecimento

inato e uma correta visatildeo das coisas de forma alguma estariam em condiccedilotildees de fazecirc-lordquo (θαίηνη εἰ κὴ

ἐηύγραλελ αὐηνῖο ἐπηζηήκε ἐλνῦζα θαὶ ὀξζὸο ιόγνο νὐθ ἂλ νἷνί η ἦζαλ ηνῦην πνηζαη)rdquo Fowler traduz

os termos por ldquosome knowledge and right reasonrdquo Fowler op cit p 253

100 Para Dominic Scott esta eacute uma clara alusatildeo de que a Teoria da Reminiscecircncia constitui a exemplo do

que se tem no Meacutenon uma teoria do inatismo Para o autor a diferenccedila da teoria de Platatildeo em relaccedilatildeo a

outras teorias do inatismo diz respeito ao dado de ser o conhecimento latente e sobretudo anterior ao

nascimento Este dado no entanto seria apenas um recurso literaacuterio afim com a prova da preacute-existecircncia

da alma como pretende o argumento sendo a Teoria na verdade sobre a descoberta de conteuacutedos inatos

Scott D Recollection and Experience - Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge

University Press nota 2 p 16 Embora seja a leitura de muitos inteacuterpretes vale dizer que esta natildeo eacute a

perspecitiva que se privilegia neste estudo A compreensatildeo de Chen sobre este ponto eacute bastante afim com

o que se entende aqui O autor chama tal experiecircncia de revivificaccedilatildeo de um conteuacutedo de uma percepccedilatildeo

163

haja rememoraccedilatildeo no estado de vida e uma prova da preexistecircncia da alma em relaccedilatildeo

ao nascimento em um corpo (Fed 73c1-3)

Cabe observar assim que o tipo de operaccedilatildeo do pensamento que a narrativa

acerca da ἀλάκλεζηο propotildee consiste na recuperaccedilatildeo de dados adquiridos em uma

experiecircncia puramente intelectual os quais satildeo considerados conhecimento e razotildees

corretas Aprender ou rememorar consiste nesta atividade de resgate de conhecimento

operaccedilatildeo que pode ser induzida vale dizer por diagramas e outras figuras matemaacuteticas

A passagem cita o exemplo para introduzir o tema da induccedilatildeo da reminiscecircncia e da

conduccedilatildeo do aprendizado Entretanto vale dizer que o aspecto cognitivo que se quer

apresentar no Feacutedon com a Teoria da Reminiscecircncia se desenvolveraacute com importantes

diferenccedilas em relaccedilatildeo ao Meacutenon diaacutelogo no qual o tema eacute explorado com vistas

sobretudo para a questatildeo do aprendizado nos termos de um raciociacutenio indutivo

Enquanto no Meacutenon101

a Teoria pretende oferecer uma explicaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo

da capacidade raciocinativa e de um meacutetodo especiacutefico o meacutetodo indutivo a partir de

figuras matemaacuteticas no Feacutedon interessa mostrar a recuperaccedilatildeo de elementos inteligiacuteveis

nos termos de uma reaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo sensiacutevel a qual eacute dada como um ato simples e

como uma operaccedilatildeo tambeacutem sem grande complexidade da faculdade inteligente da

alma102

preacutevia O que se tem em mente para ele natildeo satildeo os conteuacutedos mas ldquoa revificaccedilatildeo do conteuacutedo desta

percepccedilatildeo preacutevia e o estado de ser lembrado do objeto que eacute mais uma vez vistordquo Ele explica que tal

conteuacutedo percepccedilotildees preacutevias diferenciam-se de ideias inatas de conteuacutedo definido dizendo ldquoA suposta

faculdade inata eacute distinta de ideias inatas exatamente neste ponto natildeo oferece o conteuacutedo necessaacuterio ()

entatildeo a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute indispensaacutevel para oferecer o conteuacutedo do conhecimento os sentidos satildeo

sine qua non para o conhecimentordquo Chen op cit p 25 28 O inatismo tal como a Teoria no Feacutedon

apresenta parece se referir muito mais a uma faculdade inata de apreensatildeo de objetos de determinado tipo

do que a um conteuacutedo antes apreendido e mantido ateacute ser descoberto posteriormente As accedilotildees cognitivas

que descrevem a reminiscecircncia como um resgate de conteuacutedo tal como entendo consistem justamente

em maneiras de a alma realizar uma experiecircncia intelectual semelhante agrave que teve antes do nascimento

cujo resultado pode ser a apreensatildeo dos conceitos Natildeo haacute portanto latecircncia e descoberta de conteuacutedo

mas a descriccedilatildeo de um ato cognitivo que remonta uma experiecircncia intelectual passada

101 A rememoraccedilatildeo como aprendizado que o diaacutelogo Meacutenon apresenta traz uma diferenccedila em relaccedilatildeo ao

que se vecirc no Feacutedon ao considerar que a rememoraccedilatildeo de um conteuacutedo pode levar a outros (Men 81d3)

tal como parece mostrar o argumento no qual Soacutecrates conduz o escravo na investigaccedilatildeo de um problema

da geometria Ao tomar como modelo os meacutetodos dedutivo e indutivo dos geocircmetras (86-87b2) Soacutecrates

admite ter a reminiscecircncia um objetivo diferente que vai aleacutem da demonstraccedilatildeo de um plano inteligiacutevel

testemunhado pelo intelecto Platatildeo Meacutenon traduccedilatildeo de Maura Iglesias 2ordf ed Rio de Janeiro Satildeo Paulo

PUC do Rio Loyola 2003 (coleccedilatildeo Bibliotheca Antiqua)

102 Chen corrobora nossa anaacutelise ao dizer ldquo() a anamnesis como eacute concebida no Feacutedon se distingue

daquela vista no Meacutenon no que segue e em dois outros pontos A) rememoraccedilatildeo de ideias eacute a

rememoraccedilatildeo de ideias de forma isolada isto eacute natildeo da relaccedilatildeo de ideias entre elas mesmas enquanto que

no Meacutenon eacute a rememoraccedilatildeo de um objeto inteligiacutevel em relaccedilatildeo a outros inteligiacuteveis B) a rememoraccedilatildeo

tratada no Feacutedon eacute um instantaneous a rememoraccedilatildeo tratada no Meacutenon consiste em dois estaacutegios cada

um consistindo de um processo racionalrdquoChen op cit p 19-20

164

Eacute importante dar atenccedilatildeo a este uacuteltimo dado porque a partir dele tem iniacutecio uma

explanaccedilatildeo sobre o que se pode considerar a provocaccedilatildeo das sensaccedilotildees como um

estiacutemulo para o pensamento Apesar do papel negativo atribuiacutedo ao corpo e aos dados

sensiacuteveis as proacuteximas passagens mostram a colaboraccedilatildeo dos sentidos como indutores

desta atividade de reminiscecircncia a partir das quais se datildeo como se veraacute a seguir noccedilotildees

inteligiacuteveis como as noccedilotildees matemaacuteticas Vale notar que o contexto deste aprendizado

nos termos da rememoraccedilatildeo pressupotildee a superaccedilatildeo do domiacutenio sensiacutevel entretanto natildeo

exatamente por meio do exerciacutecio intelectual que exigem as operaccedilotildees matemaacuteticas

mas do ato intelectivo que corresponde a uma resposta inteligente da alma ao sensiacutevel

sendo nesse caso a noccedilatildeo matemaacutetica tambeacutem resultado de uma rememoraccedilatildeo

consistindo portanto em uma lembranccedila103

Uma vez aceita a definiccedilatildeo da reminiscecircncia cabe verificar como se constitui

uma rememoraccedilatildeo e como a Teoria potildee a questatildeo da cogniccedilatildeo Como retorno a um

conhecimento a reminiscecircncia designa determinada situaccedilatildeo (ηίλα ηξόπνλ Fed 73c5)

que envolve a participaccedilatildeo dos sentidos e ao mesmo tempo a superaccedilatildeo do domiacutenio

sensiacutevel A partir da percepccedilatildeo seja atraveacutes da visatildeo ou da audiccedilatildeo a alma toma

conhecimento do objeto que experiencia e de outro distinto desse que ela vecirc ou ouve

constituindo assim um conhecimento diferente da percepccedilatildeo sensiacutevel Esse objeto

distinto que a alma capta apreende (ἐλλόεζηο) consiste de fato no objeto lembrado ou

seja recuperado pelo intelecto dito ldquoconhecimentordquo e tal assimilaccedilatildeo no ato de

rememorar104

Natildeo se trata de uma mera percepccedilatildeo sensiacutevel mas de conceber algo que

estaacute para aleacutem dela105

103 Acrill faz um esclarecimento importante ldquoO argumento no Meacutenon diz respeito ao nosso

conhecimento de verdades necessaacuterias () O argumento do Feacutedon difere nisto trata da nossa aquisiccedilatildeo

dos conceitos mais do que de verdades necessaacuteriasrdquo Acrill J ldquoAnamnesis in the Phaedo ndash Remarks on the

73c-75crdquo in Essays on Plato and Aristotle 1997 New York Oxford University Press p 13 De acordo com

o que se tem analisado por verdades necessaacuterias os resultados de uma demonstraccedilatildeo matemaacutetica e por

conceitos as ideias

104 Fed73c6-10 ldquo() suponhamos que um indiviacuteduo percepciona um dado objeto pela vista pelos

ouvidos ou por qualquer outro meio sensorial e natildeo apenas fica a conhecer esse objeto como capta

para aleacutem dele a ideia de um outro que natildeo pertence agrave mesma esfera de conhecimentos natildeo seraacute

razoaacutevel neste caso afirmar que houve uma reminiscecircncia de algo que a nossa mente jaacute tinha captado

(ἐάλ ηίο ηη ἕηεξνλ ἢ ἰδὼλ ἢ ἀθνύζαο ἤ ηηλα ἄιιελ αἴζζεζηλ ιαβὼλ κὴ κόλνλ ἐθεῖλν γλῷ ἀιιὰ θαὶ ἕηεξνλ

ἐλλνήζῃ νὗ κὴ ἡ αὐηὴ ἐπηζηήκε ἀιι ἄιιε ἆξα νὐρὶ ηνῦην δηθαίσο ιέγνκελ ὅηη ἀλεκλήζζε νὗ ηὴλ

ἔλλνηαλ ἔιαβελ)rdquo

105 Acrill aponta para uma dificuldade acerca dos conteuacutedos dados na reminiscecircncia ao colocar uma

questatildeo importante sobre as razotildees do argumento oferecer nesses termos a possibilidade de apreensatildeo de

um segundo conteuacutedo na reminiscecircncia O autor se questiona sobre a omissatildeo da condiccedilatildeo de ser este

ldquooutrordquo anteriormente conhecido o que seria uma condiccedilatildeo condizente com a definiccedilatildeo de reminiscecircncia

mas que no entanto colocaria em risco o objetivo do argumento de constituir uma demonstraccedilatildeo da preacute-

existecircncia da alma Este conhecimento secundaacuterio derivado de uma primeira lembranccedila poderia ser

compreendido como uma invenccedilatildeo uma composiccedilatildeo de uma ideia o que segundo Acrill seria censuraacutevel

165

Ao ver a lira ou o manto do amado o amante se recorda dele do mesmo modo

algueacutem ao avistar Siacutemias ou ver a figura de um cavalo poderia se lembrar de Cebes ou

lembrar de Siacutemias a partir do retrato do proacuteprio Siacutemias (73d-e) Os objetos que possuem

alguma relaccedilatildeo seja de semelhanccedila ou dessemelhanccedila satildeo associados na rememoraccedilatildeo

quando um deles eacute percebido A ligaccedilatildeo entre eles no caso entre uma lira e um homem

descreve o processo de conceber uma ideia (εἶδνο) dada como a tomada de um

conteuacutedo pelo intelecto e oferecendo uma mostra do pensamento atuando de modo a se

distinguir e se elevar em relaccedilatildeo a uma percepccedilatildeo106

Deve-se notar que o que se tem nesse resgate eacute entretanto a forma do amado

nos termos de uma imagem oriunda do sensiacutevel Embora se trate de um conteuacutedo

cognitivo parece notaacutevel a ausecircncia de caraacuteter ontoloacutegico no sentido forte em que εἶδνο

apareceraacute ao longo do diaacutelogo e na Teoria das Ideias Ao que parece o objeto dado pela

lembranccedila tem seu aspecto inteligiacutevel sugerido no que se refere a um conteuacutedo da

mente mas natildeo consiste necessariamente em uma ideia Seria precipitado afirmar que

os conhecimentos tal como satildeo dados neste exemplo referem-se sempre a uma forma

inteligiacutevel O produto mental deste ato de rememorar dito lembranccedila pelo que o texto

sugere ateacute aqui consiste na imagem de uma experiecircncia vivida anteriormente Natildeo se

deve compreender que a lembranccedila de Siacutemias consiste na forma de Siacutemias Parece mais

plausiacutevel supor que ao ter como fonte o Siacutemias conhecido com o qual se teve uma

experiecircncia preacutevia a lembranccedila consista na imagem que remonta tal experiecircncia- o

Siacutemias visto

Nesse sentido a fonte da lembranccedila eacute muito mais empiacuterica e natildeo se trata

portanto da aquisiccedilatildeo de uma ideia Todavia tal aquisiccedilatildeo pode acontecer a partir das

associaccedilotildees possiacuteveis que se pode fazer na reminiscecircncia Ver Siacutemias e conceber que ele

eacute um homem por exemplo lembrar-se de um objeto relacionado a ele ou natildeo descreve

em certa medida a aquisiccedilatildeo de um conteuacutedo intelectual dado que eacute produto de uma

operaccedilatildeo do intelecto como se daraacute mais adiante Contudo natildeo parece estar em questatildeo

neste produto o qual constitui um conceito ou uma ideia caracteriacutesticas e extensotildees que

o qualificariam como tais A caracteriacutestica acerca da lembranccedila que parece ser

em uma investigaccedilatildeo ldquosobre a origem geral das ideiasrdquo e caacute entre noacutes a partir do que se observa natildeo

parece ser o caso Acrill op cit p 23

106 Fed 73d5-9 ldquoOra sabes o que acontece se por exemplo um amante avista uma lira um manto ou

qualquer objeto de que o seu amado habitualmente se serve ao mesmo tempo em que apreende a lira o

seu espiacuterito capta por igual a imagem do amado a quem a lira pertence e aiacute tens pois uma

reminiscecircncia(Οὐθνῦλ νἶζζα ὅηη νἱ ἐξαζηαί ὅηαλ ἴδσζηλ ιύξαλ ἢ ἱκάηηνλ ἢ ἄιιν ηη νἷο ηὰ παηδηθὰ αὐηῶλ

εἴσζε ρξζζαη πάζρνπζη ηνῦην ἔγλσζάλ ηε ηὴλ ιύξαλ θαὶ ἐλ ηῆ δηαλνίᾳ ἔιαβνλ ηὸ εἶδνο ηνῦ παηδὸο νὗ

ἦλ ἡ ιύξα ηνῦην δέ ἐζηηλ ἀλάκλεζηο)rdquo

166

importante ressaltar nesse argumento se refere justamente agrave natureza distinta do

conteuacutedo da faculdade cognitiva107

Conveacutem primeiramente observar que a superaccedilatildeo do intelecto que ocorre na

ἀλάκλεζηο se mostra importante para a prova da imortalidade e para os fins

epistemoloacutegicos que o diaacutelogo aos poucos faz uso a fim de comprovar a validade do

argumento e a eficiecircncia do pensamento Note-se que noccedilotildees como conhecimento

aprendizagem e reta razatildeo satildeo introduzidos ao passo que o diaacutelogo se encaminha para

elucidar a natureza da alma e assim realizar uma profiacutecua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

corpo e agrave percepccedilatildeo do sensiacutevel O argumento da ἀλάκλεζηο lanccedila luz dessa maneira

ao outro domiacutenio que ainda estaacute por ser explanado o qual supostamente abriga a alma

em estado de pureza e os conhecimentos O recurso dado pela Teoria da Reminiscecircncia

permite dessa forma associar o conhecimento e a atividade intelectual a este domiacutenio

distinto deslocando-os do campo que se refere ao corpo ao sensiacutevel para este outro o

qual mais tarde seraacute descrito e identificado ao inteligiacutevel Sendo assim vale examinar

por enquanto as caracteriacutesticas e a operaccedilatildeo desta atividade do pensamento nos termos

de uma rememoraccedilatildeo ou aprendizado atentando para os elementos epistemoloacutegicos que

comeccedilam a ser dispostos na investigaccedilatildeo

O argumento segue de modo a averiguar com mais detalhes as associaccedilotildees e os

objetos que se tem na reminiscecircncia

ldquo - Ora de todos estes exemplos natildeo decorre justamente que

nuns casos a reminiscecircncia se produz a partir de objetos

semelhantes e noutros a partir de objetos dessemelhantes

- Sem duacutevida

- E quando ela se produz a partir de objetos semelhantes natildeo

seraacute inevitaacutevel uma segunda reaccedilatildeo (πξνζπάζρεηλ) como esta ndash a de

nos interrogarmos sobre o grau de semelhanccedila que o objeto atual

apresenta com aquele que recordamos (ἐλλνεῖλ εἴηε ηη ἐιιείπεη ηνῦην

θαηὰ ηὴλ ὁκνηόηεηα εἴηε κὴ ἐθείλνπ)

- Eacute inevitaacutevel ndash confirmou

- Vecirc laacute entatildeo se estaacute certo ndash prosseguiu ndash Afirmamos creio a

existecircncia de algo ldquoigualrdquo (εἰ ηαῦηα νὕησο ἔρεη θακέλ πνύ ηη εἶλαη

ἴζνλ) natildeo quero dizer um tronco de madeira igual a outro tronco ou

uma pedra igual a outra pedra nem nada desse gecircnero mas uma

realidade distinta de todas estas que estaacute para aleacutem delas ndash o igual

107 Para Acrill o conceito eacute equivalente agrave Forma ldquoX-ness is an eternal unchanging Form an

independently existing entityrdquo Acrill op cit p 29 Brisson faz uma criacutetica a este entendimento dizendo

ldquo() the Forms are not equivalent to concepts as J L Acrill wold have it (hellip)rdquo por compreender que no

Feacutedon a reminiscecircncia estaacute explicitamente associada ao inteligiacutevel Brisson ldquoReminiscence in Platordquo in

Platonism and Forms of Intelligence Berlin Akademie Verlag (Dillon J Zouko M E ed) 2008 p 184

nota 13

167

em si mesmo Afirmaremos que isso existe ou natildeo (ἀιιὰ παξὰ ηαῦηα

πάληα ἕηεξόλ ηη αὐηὸ ηὸ ἴζνλ θῶκέλ ηη εἶλαη ἢ κεδέλ)rdquo (Fed 74a)

Esse trecho apresenta de maneira mais assertiva a sugestatildeo da Teoria acerca de

outro domiacutenio e a ligaccedilatildeo que se tem com ele por meio da atividade intelectiva A accedilatildeo

de rememoraccedilatildeo pode se dar a partir de objetos semelhantes paus e pedras iguais ou

dessemelhantes a lembranccedila de um homem por meio da visatildeo de um cavalo Natildeo

parece haver uma regra para as associaccedilotildees realizadas na reminiscecircncia no entanto eacute

evidente que em qualquer ligaccedilatildeo entre o que se associa estaacute presente um conteuacutedo da

ordem do intelecto algo distinto do gecircnero corpoacutereo como a noccedilatildeo de igualdade ou a

imagem do amado Este ldquoalgo outrordquo (ἕηεξόλ ηη) diferente do que se percebe atraveacutes

dos sentidos mostra-se afim com a noccedilatildeo de igualdade que subjaz agraves relaccedilotildees entre as

percepccedilotildees dos paus e pedras que se tem na experiecircncia e que deve ser chamado de ldquoo

proacuteprio igualrdquo (αὐηὸ ηὸ ἴζνλ)

A esta noccedilatildeo que se mostra agora de tipo distinto parece ser conferida um grau

realidade (ηη εἶλαη) ainda natildeo definida evidentemente mas certamente diferente do

corpoacutereo e coerente com este periacuteodo anterior que traz o argumento sendo assim

cognosciacutevel e uacutetil para a investigaccedilatildeo108

(Fed 74b1-3) A partir da igualdade suscitada

pela experiecircncia de dois objetos iguais ou desiguais a alma eacute remetida a esta realidade

Nela o proacuteprio igual eacute concebido e ao ser recuperado pela rememoraccedilatildeo eacute designado

conhecimento (ἐπηζηήκε) (Fed 74b4)

Ora em que termos a imagem de uma experiecircncia anterior dada em uma

reminiscecircncia pode oferecer os seres inteligiacuteveis a ponto de serem tais imagens as

lembranccedilas consideradas conhecimentos Do que pode diferir uma noccedilatildeo ou conceito

dado na reminiscecircncia da ideia Para obter uma resposta cabe verificar novamente

acerca do significado de ἐπηζηήκε Segundo o que sugere o exemplo o que se recupera

na reminiscecircncia satildeo as imagens de inteligiacuteveis anteriormente conhecidos e natildeo os

proacuteprios seres inteligiacuteveis Tal como a partir da lira se tem na rememoraccedilatildeo da imagem

do amado e natildeo ldquoo proacuteprio amadordquo ou seja tem-se X1 e natildeo do proacuteprio X parece

legiacutetimo haver na reminiscecircncia a apreensatildeo de conteuacutedos da ordem do pensamento sem

constituiacuterem necessariamente a apreensatildeo de uma ideia ou conceito Nesse sentido os

conhecimentos consistem nos objetos do pensar outrora experienciados sejam imagens

108 O que aqui se designa como domiacutenio ou realidade sugerida na reminiscecircncia Brisson chama de

ldquototalidade do inteligiacutevelrdquo a qual teria dado agrave alma o conhecimento antes de nascer Brisson 2008 op cit

p 187

168

ou conceitos e o rememorar descreve a recuperaccedilatildeo desta experiecircncia anterior e natildeo um

novo contato entre a alma e os seres tal qual se realizou antes do nascimento nem a

descoberta de ideias abrigadas em algum canto esquecido da memoacuteria como visto 109

Todavia este trecho aponta para a apreensatildeo de uma noccedilatildeo inteligiacutevel que se daacute

indiretamente a partir da reminiscecircncia A concepccedilatildeo do proacuteprio igual constitui uma

mostra da operaccedilatildeo intelectiva decorrente da reminiscecircncia na qual se ultrapassa a

imagem de uma experiecircncia sensiacutevel como acontecia com a imagem de Siacutemias para

um dado inteligiacutevel ou seja apreensiacutevel somente em uma experiecircncia puramente

intelectual Seria portanto o proacuteprio igual uma visatildeo da ideia anteriormente conhecida

Eacute provaacutevel e conforme o que indica o texto a tal produto se daacute o nome de

conhecimento Vale reparar que a atividade e o ato intelectivo que descrevem a

ἀλάκλεζηο mostram o pensar de uma perspectiva especiacutefica Ela descreve a passagem de

um fenocircmeno mental a outro ou seja da percepccedilatildeo do sensiacutevel para uma apreensatildeo

intelectual que acontece nos termos de um ato cognitivo ou de um πξνζπάζρσ (Fed

74a6) respectivamente como uma reaccedilatildeo imediata e como uma operaccedilatildeo racional

simples em resposta aos dados advindos das sensaccedilotildees A resposta nos termos de um

πξνζπάζρσ dito ἐλλνέσ consiste na atividade intelectual por meio da qual se pode

reconhecer o grau de relaccedilatildeo que os objetos percebidos possuem com o proacuteprio igual

conhecimento utilizado como paracircmetro para julgar o que se tem na experiecircncia110

Tal atividade conforme o que sugere o argumento constitui-se da comparaccedilatildeo

entre objetos percebidos e lembrados ou seja entre dados sensoriais e dados

intelectualmente oferecidos pela reminiscecircncia descrevendo uma operaccedilatildeo na qual o

intelecto estabelece um termo inteligiacutevel para fazer relaccedilotildees com o que se observa no

domiacutenio do sensiacutevel Apesar disso parece difiacutecil precisar o grau de ligaccedilatildeo que paus e

pedras percebidos como iguais podem ter com uma noccedilatildeo de igualdade Admite-se que

eacute possiacutevel a percepccedilatildeo de certa igualdade entre os objetos na experiecircncia da visatildeo no

entanto uma vez dada no contexto sensiacutevel natildeo deve ser a mesma nem deve estar

totalmente relacionada agrave outra realidade (Fed 74c)

Cabe notar que nesse estaacutegio da investigaccedilatildeo falta precisar esses conhecimentos

e a realidade a qual se referem para que se possa dizer algo acerca do grau de relaccedilatildeo

109 Segundo Chen o que se tem a partir do argumento da lira eacute o conteuacutedo da percepccedilatildeo preacutevia do

amado ou a imagem de sua forma fiacutesica a qual eacute novamente revivida intelectualmente pelo amante

Chen op cit p 25

110 Segundo Chen o πξνζπάζρσ se refere a ldquoUm pensamento adicional presente pela proacutepria mente o

pensamento da presenccedila ou ausecircncia de alguma deficiecircncia na igualdade do retrato de X para o proacuteprio

Xrdquo Chen op cit p 21

169

de um objeto percebido com isto que se apresenta como αὐηὸ ηὸ ἴζνλ Do mesmo modo

ainda estaacute para ser verificado o verdadeiro alcance da cogniccedilatildeo ou seja da capacidade

intelectiva de conhecer o que se refere a este outro domiacutenio ndash ldquoLogo ndash concluiu- a

igualdade dos tais objetos que referiacuteamos natildeo equivale precisamente ao Igual em si

mesmordquo (Fed 74c4) Ateacute este ponto a noccedilatildeo de ἀλάκλεζηο revelou uma variaccedilatildeo de

aspectos que permitem delinear o perfil da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo

mas sem oferecer muitos esclarecimentos acerca do objeto adquirido na reminiscecircncia

Ao se apresentar nos termos da aprendizagem mostrou sua atuaccedilatildeo como ato cognitivo

que se realiza como a retomada de conteuacutedos de tipo inteligiacutevel Nos termos de uma

operaccedilatildeo a capacidade de elevaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis para a aquisiccedilatildeo de uma

noccedilatildeo inteligiacutevel afim e apreensiacutevel no pensamento (ἐλλνέσ) ndash ldquo[] Sempre que ao

veres um dado objeto a visatildeo desse mesmo objeto te transporte agrave ideia de outro (ἕσο ἂλ

ἄιιν ἰδὼλ ἀπὸ ηαύηεο ηο ὄςεσο ἄιιν ἐλλνήζῃο) seja ele igual ou diverso eacute

necessariamente um caso de reminiscecircnciardquo (Fed 74c13-d1)

A superaccedilatildeo de um domiacutenio em vista de outro parece ser a caracteriacutestica da

ἀλάκλεζηο que mais importa na Teoria para os fins da investigaccedilatildeo pois sugere a

possibilidade de explorar este ἕηεξόλ ηη Por esta razatildeo pode-se supor que outros

aspectos da reminiscecircncia presentes em outros diaacutelogos natildeo satildeo trazidos para o Feacutedon

por serem muitas das questotildees que poderiam parecer pertinentes ao tema na verdade

inconvenientes neste contexto Interessa apresentar a Teoria naquilo que ela auxilia para

a proposiccedilatildeo de um ambiente que diz respeito ao inteligiacutevel anaacutelogo e afim ao estado de

morte no qual se supotildee a alma permaneceraacute Desse modo a diferenciaccedilatildeo dos objetos

que se referem a este outro domiacutenio tal como indica a relaccedilatildeo entre a noccedilatildeo de proacuteprio

igual e a igualdade percebida nos objetos sensiacuteveis decorrente da rememoraccedilatildeo

conduziraacute a investigaccedilatildeo de modo a iluminar as distinccedilotildees de gecircnero cujo exame eacute

necessaacuterio para indicar a natureza e a possibilidade de indestrutibilidade da alma

Sugeridas as diferenccedilas entre coisas semelhantes ou iguais e o proacuteprio igual o

diaacutelogo se encaminha de modo a questionar a distinccedilatildeo de gecircneros que se apresenta

nesta atividade de rememorar- (Τί δέ αὐηὰ ηὰ ἴζα ἔζηηλ ὅηε ἄληζά ζνη ἐθάλε ἢ ἡ ἰζόηεο

ἀληζόηεο Fed 74c1) A partir do que se examinou acerca da noccedilatildeo de igualdade cabe

investigar primeiramente a suposta deficiecircncia (ἐλδεήο) do fenocircmeno em relaccedilatildeo agrave

noccedilatildeo abstrata Em outras palavras deve-se analisar no que difere a igualdade

observada em pedras e paus iguais em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de Igual que se verificou nesta

relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo entre dados experienciados O que o texto nota como diferenccedila eacute

170

dito constituir em primeiro lugar um grau de carecircncia por parte da igualdade observada

nos objetos sensiacuteveis do proacuteprio igual (Fed 75d5-7) Assim vale analisar as relaccedilotildees

expressas neste argumento para verificar como opera a superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao

sensiacutevel na rememoraccedilatildeo

Note-se que as relaccedilotildees satildeo dadas em dois planos 1) entre dados sensiacuteveis 2)

entre dados sensiacuteveis e noccedilatildeo inteligiacutevel Em 1) a relaccedilatildeo de igualdade se apresenta nos

seguintes termos X1 eacute igual X2 Xn isto eacute as pedras observadas comparadas entre elas

mesmas apresentam semelhanccedilas o que equivale dizer que satildeo iguais Cabe reparar que

a ideia de igual subjaz a esta relaccedilatildeo embora o foco tenha em vista a igualdade que se

pode observar a partir dos dados sensiacuteveis Nesse sentido tal relaccedilatildeo eacute equivalente a 2

na qual a comparaccedilatildeo se daacute entre os dados advindos do sensiacutevel com o conceito X1

X2 Xn eacute igual X ou seja as pedras observadas possuem relaccedilatildeo com a ideia de igual

dada a igualdade entre elas A intenccedilatildeo eacute sugerir o conteuacutedo inteligiacutevel o proacuteprio igual

como termo regulador para a comparaccedilatildeo mesmo que ainda natildeo se apresente uma

explicaccedilatildeo ontoloacutegica que justifique a sua funccedilatildeo como se daraacute na Teoria das

Formas111

Do mesmo modo a comparaccedilatildeo entre os termos tendo em vista a natildeo

semelhanccedila entre eles ou seja a diferenccedila apresenta outro aspecto da operaccedilatildeo feita na

reminiscecircncia Sobre a diferenccedila entre os objetos vistos o argumento mostra que X1 natildeo

eacute o mesmo que X2 Xn ou seja as pedras embora sejam pedras apresentam distinccedilotildees

umas das outras o que eacute compreendido como natildeo igualdade ou desiguais Apesar da

constataccedilatildeo da natildeo igualdade a relaccedilatildeo ainda tem a noccedilatildeo de igual como paracircmetro

denotando assim a distinccedilatildeo entre a ideia de Igual e a igualdade reconhecida entre os

termos analisados em 1 A igualdade de coisas iguais natildeo eacute idecircntica agrave ideia de igual

Parece vaacutelido oferecer nesse momento da investigaccedilatildeo um argumento que

aponte as distinccedilotildees entre aquilo que se observa e certa especificidade do conteuacutedo

trazido pela reminiscecircncia Todavia tal especificidade natildeo eacute dada com maiores detalhes

tendo-se apenas uma sugestatildeo acerca de sua natureza inteligiacutevel e de algumas noccedilotildees

que caracterizam a ideia tal como a noccedilatildeo de identidade aludida pelo proacuteprio Igual Em

consequecircncia destas distinccedilotildees os objetos sensiacuteveis vistos como iguais assumem uma

posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo ao proacuteprio Igual que comeccedila a ter sua superioridade e

estatuto definido ηη ηῶλ ὄλησλ As coisas iguais (ηὰ ἴζα) se distinguem do Igual (αὐηὸ

ηὸ ἴζνλ) porque natildeo possuem literalmente algo dos seres Dada a explicaccedilatildeo do que

111 Acrill explica este dado por um outro vieacutes ldquoO exemplo eacute um caso de igualdade e a relaccedilatildeo de

igualdade com o seu original eacute de fato assimeacutetricardquo Acrill op cit p 26

171

significa ἐλδεήο lanccedila-se luz de agora em diante para trecircs pontos importantes os quais

passam a ser analisados e formulados filosoficamente 1ordm) a identificaccedilatildeo de ηὸ αὐηὸ ao

ser 2ordm) a indicaccedilatildeo do ser como criteacuterio para julgar algo que se relaciona com ele em

algum grau 3ordm) a contraposiccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o trabalho intelectual que

julga a percepccedilatildeo112

Conveacutem compreender que os desdobramentos que levam agrave apreensatildeo de uma

realidade diversa a partir das experiecircncias sensiacuteveis que se daacute na reminiscecircncia (Fed

74e6) constitui de fato operaccedilotildees simples A Igualdade eacute reconhecida no processo de

rememoraccedilatildeo vindo agrave tona com a experiecircncia de objetos iguais o que parece suficiente

para apreender a distinccedilatildeo entre o proacuteprio igual e as coisas iguais Dar-se conta desta

distinccedilatildeo significa ateacute o momento perceber que as coisas iguais possuem algo em

comum com o proacuteprio Igual e ao mesmo tempo sua deficiecircncia em comparaccedilatildeo a

ele113

A comparaccedilatildeo que se realiza a partir da tomada de conhecimento da Igualdade

consiste portanto em apreender o que haacute de comum e de diferente entre conceito e

percepccedilatildeo a qual expressa ao mesmo tempo a inferioridade do sensiacutevel aqui dito

ἐλδεήο e sugere um viacutenculo a partir do qual eacute possiacutevel estabelecer relaccedilatildeo

Nesse sentido as operaccedilotildees cognitivas que se tecircm na rememoraccedilatildeo consistem

basicamente em reconhecer e identificar elementos concebidos por associaccedilatildeo114

ou por

comparaccedilatildeo a algum outro tal como 1) entre objeto percebido e objeto lembrado e 2)

entre objeto percebido e noccedilatildeo concebida Em 1 A operaccedilatildeo do intelecto se constitui da

imediata reaccedilatildeo da alma a um dado advindo do sensiacutevel ou entre dois objetos

rememorados X rArr S vejo o retrato e lembro-me de Siacutemias ou vejo Cebes e lembro-

me de Siacutemias Trata-se de uma associaccedilatildeo na qual natildeo haacute nenhum juiacutezo envolvido e

portanto natildeo recorre a nenhum termo inteligiacutevel para fazer a mediaccedilatildeo entre os termos

112 Fed 74d9-e4 ldquo-Pois bem estamos de acordo quando uma pessoa olha para um dado objeto e

reflete de si para si mesma bdquoEste objeto que tenho diante dos olhos aspira a identificar-se com

determinada realidade mas estaacute longe de poder identificar-se a ela e lhe eacute pelo contraacuterio bastante

inferior‟- ao fazer tais reflexotildees eacute porque suponho conhecia jaacute essa tal realidade agrave qual segundo ela

se assemelha o objeto em causa embora bastante imperfeitamente (Οὐθνῦλ ὁκνινγνῦκελ ὅηαλ ηίο ηη

ἰδὼλ ἐλλνήζῃ ὅηη βνύιεηαη κὲλ ηνῦην ὃ λῦλ ἐγὼ ὁξῶ εἶλαη νἷνλ ἄιιν ηη ηῶλ ὄλησλ ἐλδεῖ δὲ θαὶ νὐ δύλαηαη

ηνηνῦηνλ εἶλαη [ἴζνλ] νἷνλ ἐθεῖλν ἀιι ἔζηηλ θαπιόηεξνλ ἀλαγθαῖόλ πνπ ηὸλ ηνῦην ἐλλννῦληα ηπρεῖλ

πξνεηδόηα ἐθεῖλν ᾧ θεζηλ αὐηὸ πξνζενηθέλαη κέλ ἐλδεεζηέξσο δὲ ἔρεηλ )rdquo

113 Fed75a1 ldquoigualdades desse tipo tendem todas elas a identificar-se com o Igual em si embora lhe

fiquem bastante aqueacutem ( ὅηη ὀξέγεηαη κὲλ πάληα ηαῦηα εἶλαη νἷνλ ηὸ ἴζνλ ἔρεη δὲ ἐλδεεζηέξσο)

114 Acrill entende a associaccedilatildeo uma operaccedilatildeo essencial agrave reminiscecircncia ldquoInvocar a noccedilatildeo de lembranccedila

implica a disponiblidade de uma explicaccedilatildeo nos termos de leis associativas conectando pensamento e

conteuacutedordquo Acrill op cit p 18

172

associados Pode-se dizer que essa operaccedilatildeo descreve um ato cognitivo simples115

Uma

operaccedilatildeo que pode decorrer deste ato de reminiscecircncia consiste justamente no

ajuizamento deste conteuacutedo do intelecto com a percepccedilatildeo que suscitou a rememoraccedilatildeo

ou com o proacuteprio objeto anteriormente conhecido no qual se tem 2 X eacute S ou X natildeo eacute

S ou seja o retrato eacute (igual) Siacutemias Cebes natildeo eacute Siacutemias Neste caso a referecircncia para o

julgamento da imagem conteuacutedo mental ou da percepccedilatildeo eacute o proacuteprio Siacutemias

previamente conhecido116

Este tipo de operaccedilatildeo que ocorre no registro da

reminiscecircncia comparado ao exerciacutecio intelectual da dialeacutetica constitui uma operaccedilatildeo

simples o πξνζπάζρσ e pede assim como no exemplo das pedras e paus iguais uma

referecircncia exterior agrave sensibilidade previamente conhecida117

Natildeo se tem no contexto da reminiscecircncia detalhes sobre outras operaccedilotildees do

pensar acerca de elementos inteligiacuteveis como apareceraacute com a explanaccedilatildeo acerca do

meacutetodo hipoteacutetico ao final do diaacutelogo O que interessa nessas passagens eacute verificar as

distinccedilotildees das percepccedilotildees sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos conteuacutedos rememorados mostrando

que as afecccedilotildees advindas do sensiacutevel se mostram uacuteteis para rememorar mas que natildeo

consistem elas proacuteprias em uma rememoraccedilatildeo Tais questotildees vale observar conduzem

a investigaccedilatildeo do que era conflituoso no corpo ou seja das sensaccedilotildees entre elas

mesmas tal como se viu no iniacutecio da anaacutelise para o conflito entre o que parece

constituir dois tipos de afecccedilotildees diferentes uma pela percepccedilatildeo do sensiacutevel e a outra

pela atividade do pensamento (πξνζπάζρσ ἐλλνέσ) O argumento acerca da Igualdade

deixa patente o conflito entre dados sensoriais e conteuacutedo inteligiacutevel sugerindo para ele

um criteacuterio ontoloacutegico e intelectual como possiacutevel soluccedilatildeo a qual eacute indicada pela

ἀλάκλεζηο Ao conferir um estatuto distinto para o conteuacutedo do intelecto a Teoria da

Reminiscecircncia propotildee a saiacuteda para as contradiccedilotildees que se pode verificar na observaccedilatildeo

do sensiacutevel e por consequecircncia no contexto da alma presa ao corpo uma vez que os

conhecimentos dados no ato de rememorar e nas operaccedilotildees que advecircm dele se mostram

os elementos corretos e portanto adequados para resolver tais questotildees

115 A aparente ausecircncia de ligaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e a realidade rememorada se deve ao caraacuteter

instantacircneo da reminiscecircncia onde natildeo eacute necessaacuterio um encadeamento causal para obter um objeto por

via da rememoraccedilatildeo Sobre este ponto Acrill explica ldquoReconhecer X como uma lira eacute logicamente

independente de pensar Alcebiacuteades () Por outro lado reconhecer X como a lira de Alcebiacuteades natildeo eacute

logicamente independente pois pensar isto eacute uma lira de Alcebiacuteades jaacute eacute pensar Alcebiacuteades natildeo haacute

relaccedilatildeo temporal causal aquirdquo e mais a frente completa ldquoNovamente ao pensar que isto eacute o retrato de

Siacutemias jaacute estou pensando em Siacutemias mas natildeo vice-versardquo Acrill opcit p 1921

116 Nos termos de Chen a base ontoloacutegica desse argumento eacute o proacuteprio Siacutemias que existe a partir do

qual eacute possiacutevel haver correspondecircncia entre o retrato e a lembranccedila Chen op cit p 23

117 Para Acrill a operaccedilatildeo posterior que ocorre na reminiscecircncia tem o princiacutepio de contiguidade como

princiacutecio associativo Chen op cit p 25

173

22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο

A partir do que se viu cabe reparar a dupla funccedilatildeo da reminiscecircncia na

investigaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que a reminiscecircncia mostra o indiacutecio da existecircncia

da alma na condiccedilatildeo de independecircncia do corpo apresenta-se como uma alternativa aos

impedimentos da sensibilidade para o conhecimento do inteligiacutevel Uma das razotildees para

tal aleacutem da familiaridade que a alma possui com o inteligiacutevel como se veraacute consiste

que a ἀλάκλεζηο tem como estiacutemulo para as accedilotildees cognitivas as proacuteprias sensaccedilotildees Natildeo

se deve no entanto tomar como uma incongruecircncia o dado de ser a experiecircncia sensiacutevel

uma condiccedilatildeo para que se decirc a rememoraccedilatildeo O diaacutelogo pretende afirmar a

anterioridade dos conhecimentos e a reminiscecircncia como a recuperaccedilatildeo deles no

contexto de humanidade no qual a alma natildeo estaacute totalmente isolada e imune agraves

perturbaccedilotildees do corpo e desse modo tem na rememoraccedilatildeo uma resposta inteligente aos

assaltos das sensaccedilotildees

ldquo- E nisto ainda estamos de acordo a noccedilatildeo que temos do Igual

de forma alguma poderia ter-se formado em noacutes a natildeo ser por

intermeacutedio da vista do tato ou de qualquer dos outros sentidos (κὴ

ἄιινζελ αὐηὸ ἐλλελνεθέλαη κεδὲ δπλαηὸλ εἶλαη ἐλλνζαη ἀιι ἢ ἐθ

ηνῦ ἰδεῖλ ἢ ἅςαζζαη ἢ ἔθ ηηλνο ἄιιεο ηῶλ αἰζζήζεσ ηαὐηὸλ δὲ πάληα

ηαῦηα ιέγσ)rdquo (Fed 75a5)

Mesmo diante das constataccedilotildees acerca da inferioridade dos dados sensiacuteveis tal

como as igualdades percebidas cabe agraves sensaccedilotildees a funccedilatildeo de provocar este envio da

alma aos conhecimentos o proacuteprio igual e assim buscar a compreensatildeo deles - o que

nos termos da reminiscecircncia eacute dita como um natildeo esquecimento118

Do mesmo modo a

noccedilatildeo de aprendizado que a Teoria da Reminiscecircncia apresenta consiste tambeacutem em natildeo

ceder ao esquecimento (ἐπηιαλζάλνκαη) ou seja exercitar-se neste tipo de operaccedilatildeo

118 75d7-10 ldquojaacute que o saber natildeo consiste senatildeo nisto em segurar determinado conhecimento que se

alcanccedilou e impedir que se perca (ηὸ γὰξ εἰδέλαη ηνῦη ἔζηηλ ιαβόληα ηνπ ἐπηζηήκελ ἔρεηλ θαὶ κὴ

ἀπνισιεθέλαη ἢ νὐ ηνῦην ιήζελ ιέγνκελ) ou natildeo dizemos noacutes Siacutemias que esquecer eacute deixar escapar

o que conhecemosrdquo

174

intelectiva por meio da qual se pode preservar os conhecimentos antes apreendidos

(Fed 75d7-76a)

Assim a operaccedilatildeo que descreve a cogniccedilatildeo na reminiscecircncia eacute importante notar

atribui funccedilatildeo positiva agraves sensaccedilotildees Diferentemente do que se viu no argumento da

purificaccedilatildeo as sensaccedilotildees satildeo neste contexto um impulso para o desencadeamento da

reminiscecircncia servindo de estiacutemulo para uma accedilatildeo intelectiva Nesse sentido toda a

explicaccedilatildeo do desenrolar da operaccedilatildeo racional que ocorre na reminiscecircncia descreve

muito mais um ato inteligente da capacidade cognitiva a qual se daacute imediatamente

como reaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees do que um processo cognitivo como traz A Repuacuteblica no

Livro VII no qual haacute a gradual superaccedilatildeo do intelecto do plano da sensibilidade para o

plano inteligiacutevel das ideias Tem-se em vista apresentar com a reminiscecircncia uma prova

de apreensatildeo inteligente tambeacutem nos termos de um ato de resgate de conteuacutedos jaacute

conhecidos como se vecirc ao inveacutes de uma narrativa do processo propedecircutico de

preparaccedilatildeo para a aquisiccedilatildeo de uma alta inteligecircncia como acontece no Livro VII ou

uma demonstraccedilatildeo de habilidades intelectuais O texto especifica com isso a uacutenica

maneira no Feacutedon em que se pode considerar uma colaboraccedilatildeo do corpo e do sensiacutevel

para o conhecimento como perturbaccedilatildeo para a qual a alma daacute uma resposta inteligente

Ao sugerir um ato cognitivo como mais uma maneira de a alma reagir agraves sensaccedilotildees o

texto natildeo oferece na verdade grandes novidades em relaccedilatildeo ao resultado do trabalho

cognitivo em comparaccedilatildeo ao exerciacutecio filosoacutefico Embora apresente mais uma faceta da

atividade do intelecto tal sugestatildeo serve apenas para deixar mais uma vez evidente que

o testemunho acerca da possibilidade de uma vida apoacutes a morte se refere agrave faculdade

intelectual da alma e exige superaccedilatildeo do domiacutecio sensiacutevel119

A rememoraccedilatildeo nos termos de uma via cognitiva como mostra o diaacutelogo

apresenta a possibilidade de aquisiccedilatildeo intelectual na condiccedilatildeo adversa para a alma de

estar presa ao corpo aquisiccedilatildeo que se daacute de maneira simples e imediata sem recorrer a

operaccedilotildees intelectuais mais complexas Isto parece ser suficiente para sugerir um limite

para o uso das sensaccedilotildees no que se refere agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento e de um niacutevel

superior do intelecto Do mesmo modo conferir superioridade aos objetos distintos do

119 Chen sintetiza esta compreensatildeo dizendo ldquoDe acordo com a Teoria do Feacutedon a funccedilatildeo geral dos

sentidos eacute dupla Eacute primeiramente informar o que eacute percebido e em seguida estimular a mente a lembrar

do conhecimento uma vez adquirido e depois perdido- uma accedilatildeo sempre acompanhada da outrardquo Chen

op cit p 22 nota 11

175

corpoacutereo tal como o belo o maior o menor o proacuteprio bem reconhecidas como

realidades previamente conhecidas120

Tem-se a partir daqui a proposta de um plano cujos seres satildeo do gecircnero ηὸ αὐηὸ

ὃ ἔζηη os quais consistem em conhecimentos (ηὰο ἐπηζηήκαο Fed 75d4) e satildeo

acessiacuteveis pelo pensamento Tal gecircnero apresenta afinidade com a alma apartada do

corpo e portanto com o pensamento livre de impedimentos A relaccedilatildeo entre alma e ηὰο

ἐπηζηήκαο eacute dada na reminiscecircncia provavelmente para sugerir o inteligiacutevel e esta

afinidade permitindo ao pensamento especular e provar como se pretende a existecircncia

da alma e sua imortalidade Dito de outro modo a rememoraccedilatildeo constitui a primeira

formulaccedilatildeo de atividade inteligente na qual se pode apreender conhecimentos os quais

oferecem uma indicaccedilatildeo acerca da capacidade inteligente da alma em condiccedilatildeo de

pureza pura sem o corpo concomitamente agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia anterior que

ela possui

Faz-se necessaacuterio contudo explicar (δνῦλαη ιόγνλ Fed 76b3) as consequecircncias

da Teoria de modo a demonstraacute-la como uma prova acerca da existecircncia da alma neste

periacuteodo Assim verificar a identificaccedilatildeo da alma com o plano dos seres e apontar as

especificaccedilotildees acerca desta realidade exige concomitantemente um detalhamento do

gecircnero sensiacutevel e de sua deficiecircncia O corpo tomado agora como pertencendo ao

domiacutenio do sensiacutevel estaacute contraposto agrave alma cujo caraacuteter inteligiacutevel seraacute desenvolvido

e com isso se daraacute um maior detalhamento sobre a θξόλεζηο Importa observar que no

argumento da reminiscecircncia o pensamento enquanto faculdade sede do conhecimento e

atividade cognitiva como se viu tem seu caraacuteter firmado concomitante agrave verificaccedilatildeo da

existecircncia da alma Tal como o bem o belo e outros seres do mesmo tipo (Fed 75d5-

76e) ele difere do sensiacutevel e como faculdade da alma preexiste ao corpo121

Embora constitua uma demonstraccedilatildeo da preexistecircncia da alma a relaccedilatildeo entre

alma e conhecimento tal como traz a Teoria natildeo supotildee a cogniccedilatildeo como accedilatildeo

necessaacuteria para a anterioridade dos conhecimentos As ideias natildeo dependem de serem

conhecidas para terem seu caraacuteter e existecircncia firmados embora sejam sugeridas ao

serem apreendidas novamente na rememoraccedilatildeo A relaccedilatildeo esquecimento-rememoraccedilatildeo

que se daacute no aprendizado sugere justamente esta permanecircncia das ideias que estaacute para

120 Fed 75d1 ldquocomo digo selamos genericamente com o roacutetulo de realidade em si (ὅπεξ ιέγσ πεξὶ

ἁπάλησλ νἷο ἐπηζθξαγηδόκεζα ηὸ ldquoαὐηὸ ὃ ἔζηη)rdquo

121 Fed 76c11-13 ldquo- Donde segue Siacutemias que antes de encarnar numa forma humana as nossas

almas existiam jaacute independentemente de um corpo e dotadas de inteligecircncia ( Ἦζαλ ἄξα ὦ Σηκκία αἱ

ςπραὶ θαὶ πξόηεξνλ πξὶλ εἶλαη ἐλ ἀλζξώπνπ εἴδεη ρσξὶο ζσκάησλ θαὶ θξόλεζηλ εἶρνλ)rdquo

176

aleacutem da recuperaccedilatildeo que ocorre no ato e na operaccedilatildeo de rememorar Por outro lado a

alma como supotildee a hipoacutetese da imortalidade precisa ter comprovada a natureza

inteligiacutevel imutaacutevel e eterna das ideias para que se possa comprovar a sua subsistecircncia

agrave morte do corpo ndash tarefa que se daraacute ao longo do diaacutelogo Por enquanto o diaacutelogo

oferece as indicaccedilotildees do que se refere agrave inteligibilidade - seus objetos natureza

operaccedilotildees da capacidade cognitiva domiacutenio ndash na busca de legitimar o trabalho

racional122

O que antes foi narrado nos termos de um pensamento puro livre das

influecircncias do corpo recebe nos argumentos seguintes definiccedilotildees segundo uma

explicaccedilatildeo da filosofia que vecirc na reminiscecircncia o primeiro ato da cogniccedilatildeo e as

condiccedilotildees de sua possibilidade

23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia

Vale comentar os resultados que se obteacutem a partir do dado de serem as

sensaccedilotildees o estiacutemulo para a rememoraccedilatildeo e verificar em que termos a reminiscecircncia

descreve uma atividade cognitiva um ato e uma operaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis

pelo intelecto Natildeo somente para sugerir a anterioridade e a independecircncia da alma em

relaccedilatildeo ao corpo a Teoria da Reminiscecircncia indica um fato importante no Feacutedon ao

atribuir agrave rememoraccedilatildeo o papel de via possiacutevel no qual se obteacutem um grau de aquisiccedilatildeo

dos inteligiacuteveis em vida humana (βίνο) Uma vez que o conhecimento autecircntico eacute

possiacutevel apenas apoacutes a morte a ἀλάκλεζηο oferece elementos uacuteteis como referecircncia na

cogniccedilatildeo Ao que parece a alteridade que se propotildee com ηὰο ἐπηζηήκαο e ἕηεξόλ ηη

serve para propor a base cognitiva exequiacutevel no contexto da vida aquela sobre a qual o

pensamento deve se empenhar para buscar as referecircncias indicadas na rememoraccedilatildeo e

levar a cabo a investigaccedilatildeo filosoacutefica123

Ao considerar tal contexto natildeo parece haver a intenccedilatildeo de afirmar que a

apreensatildeo de ideias eacute algo exclusivo do ato de rememorar O argumento natildeo parece ter

122 Chen op cit p 23 nota 12

123 Nas palavras de Charles Kahn esta ligaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis que mostra a reminiscecircncia

consiste no ponto filosoacutefico essencial do argumento ldquo() A funccedilatildeo preciacutepua aqui da teoria da

reminiscecircncia (como o argumento a partir da afinidade em sequecircncia) consiste em estabelecer a

condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu elo cognitivo com o ser transcendente das Formasrdquo

Kahn C rdquoPlatatildeo e a Reminiscecircnciardquo in Platatildeo (Benson H e col) Artmed 2011 Porto Alegre p 124

177

como proposta portanto apresentar uma relaccedilatildeo de necessidade entre a reminiscecircncia e

um objeto de estatuto ontoloacutegico elevado nem ser a rememoraccedilatildeo necessariamente

acompanhada de um trabalho intelectual posterior As duas situaccedilotildees satildeo descritas na

Teoria e mostram este ato de cogniccedilatildeo em duas perspectivas que acompanham a

dualidade da condiccedilatildeo do homem ser composto de corpo e alma (Fed 79b) ou dito de

outro modo ter a alma associada ao corpo Disto decorre que se tem na reminiscecircncia a

descriccedilatildeo tanto de um ato do pensamento comum ou seja possiacutevel a qualquer homem

quanto uma primeira explicaccedilatildeo acerca da origem das operaccedilotildees inteligentes da alma

Ao se questionar acerca da escolha do caraacuteter da reminiscecircncia por Platatildeo124

Dominic Scott mostra as duas interpretaccedilotildees que surgiram dessa dupla funccedilatildeo da

rememoraccedilatildeo Uma primeira explicaccedilatildeo seria para aplicar certos conceitos agrave experiecircncia

e uma segunda responderia que a finalidade eacute somente elucidar o conhecimento do

filoacutesofo de entidades transcendentes as quais servem para a comparaccedilatildeo com

particulares Na primeira resposta haacute uma colaboraccedilatildeo entre empiacuterico e inato para

explicar o pensamento ordinaacuterio enquanto de acordo com a uacuteltima interpretaccedilatildeo a

reminiscecircncia se refere precisamente as formas125

A resposta que se propotildee para esta

duplicidade a qual parece suficiente para apontar a complexidade do pensamento nos

termos da rememoraccedilatildeo tema deste estudo consiste justamente no duplo aspecto que o

ato cognitivo de rememorar apresenta Ter acesso a um conteuacutedo do intelecto que se

refira agrave experiecircncia empiacuterica uma imagem ou representaccedilatildeo como quer Brisson eacute

possiacutevel tanto quanto ter acesso a um conteuacutedo que se refira agraves ideias Mesmo que a

comparaccedilatildeo faccedila referecircncia agrave forma do igual natildeo parece haver nesse contexto um

objeto definido rigidamente em termos ontoloacutegicos Ao contraacuterio a lembranccedila de

Siacutemias e o conceito de Igual enquanto conteuacutedos mentais satildeo ambos referidos como

conhecimentos Desse modo faz sentido o que Scott afirma em seguida ldquo()

reminiscecircncia eacute usada para cobrir diferentes extensotildees do desenvolvimento intelectual

conforme a interpretaccedilatildeo que se seguerdquo126

No caso do Feacutedon constitui um primeiro

exemplo da via inteligente que o filoacutesofo natildeo deve perder de vista Ao se pretender

124 Scott ao considerar a Teoria da Reminiscecircncia uma forma de inatismo adverte ldquo() devemos nos

perguntar por que Platatildeo decidiu adotar esta em particularrdquo Scott D Recollection and Experience -

Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge University Press p 17 O entendimento

da Teoria como uma forma de inatismo de Scott eacute oposta agrave compreensatildeo de Luc Brisson Enquanto Sc

considera possiacutevel a presenccedila de formas na alma as quais se tornam conhecidas na reminiscecircncia Brisson

diz se tratar de imagens que representam as ideias anteriormente conhecidas natildeo havendo portanto

ideias inatas Brisson op cit p 180 185

125 Scott idem p 17 19

126 Scott ibidem 20

178

elucidar e compreender as operaccedilotildees e estatuto da atividade do pensamento a

reminiscecircncia nos termos do aprendizado parece natildeo ignorar nenhuma das perspectivas

embora sua ecircnfase esteja na cogniccedilatildeo daquilo que seraacute definido como ideia

Desse modo no contexto de oposiccedilatildeo do intelecto agrave sensibilidade e de gradativo

afastamento entre corpo e alma tal como descreve a postura filosoacutefica a aquisiccedilatildeo que

se tem na reminiscecircncia varia sendo diferente para filoacutesofo e natildeo-filoacutesofo A igualdade

que o natildeo filoacutesofo apreende eacute apenas a igualdade perceptiacutevel pelos dados do sensiacutevel em

uma comparaccedilatildeo entre sensiacuteveis Ainda que a ideia do igual ampare esta comparaccedilatildeo

somente o filoacutesofo concebe que haacute por traz das relaccedilotildees entre sensiacuteveis um modelo ideal

que se difere e escapa agraves relaccedilotildees no sensiacutevel Em outras palavras o natildeo filoacutesofo natildeo

apreende a distinccedilatildeo deste igual que ele pode conceber na reminiscecircncia daquelas

igualdades vistas nas pedras e paus natildeo se dando conta portanto da ideia

A aquisiccedilatildeo de uma ideia na rememoraccedilatildeo parece prescindir cabe supor da

iniciaccedilatildeo na filosofia como acontece no ciacuterculo de Soacutecrates ou na induccedilatildeo do pedagogo

filoacutesofo a exemplo do que se vecirc n‟A Repuacuteblica Ao se perguntar pode-se compreender

que a aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia eacute possiacutevel tambeacutem para o natildeo filoacutesofo A

resposta plausiacutevel consiste natildeo segundo o que diz a Teoria no Feacutedon A percepccedilatildeo da

disparidade entre as pedras iguais e o proacuteprio igual e da mesma forma a origem desta

diferenccedila se referem agrave habilidade daquele que se exercita na filosofia As palavras de

Scott parecem concluir de maneira adequada esta questatildeo ldquoEacute inegaacutevel entatildeo que

somente poucas pessoas tenham comparado formas e particularesrdquo127

Todavia natildeo se

pode desconsiderar que a rememoraccedilatildeo eacute um ato exequiacutevel por todo homem ainda que

natildeo se decirc a segunda operaccedilatildeo do intelecto ao rememorar de modo a apreender o

inteligiacutevel A distinccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum eacute justamente conceber

no que a generalidade suscitada pelo trabalho de comparaccedilatildeo a partir da percepccedilatildeo em

realidade consiste conhecimento o qual seraacute elucidado e compreendido por meio do

exerciacutecio hipoteacutetico e natildeo na simplicidade das operaccedilotildees que descrevem a

reminiscecircncia

Sobre o que se apreende na reminiscecircncia Chen eacute mais categoacuterico ao afirmar o

sentido fraco de cogniccedilatildeo que apresenta a Teoria ldquoAnamnesis natildeo eacute o proacuteprio meacutetodo

para atingir a visatildeo das ideias o que ela proporciona eacute a revivificaccedilatildeo da cogniccedilatildeo

original natildeo a proacutepria cogniccedilatildeo originalrdquo128

Na direccedilatildeo oposta destas explicaccedilotildees

127 Scott op cit p 60

128 Chen op cit p 27

179

Acrill considera que a generalidade apreensiacutevel pelo filoacutesofo na rememoraccedilatildeo diz

respeito ao final agraves formas uma vez que ele a entende como tal Ele considera que o

apreensiacutevel para a maioria das pessoas o que se tem desde a infacircncia diz respeito ao

uso da palavra e agrave sua generalidade enquanto para o filoacutesofo eacute apreensiacutevel o significado

desta generalidade como forma imutaacutevel129

A compreensatildeo de Acrill se justifica na

medida em que se sabe que o diaacutelogo trabalha para apresentar as formas e um meacutetodo

para a apreensatildeo delas Nesse sentido ainda que se recupere parcialmente ou

indiretamente o conhecimento o conteuacutedo se revela consistir na forma inteligiacutevel pelo

filoacutesofo

Todavia ao levar em conta o momento da investigaccedilatildeo em que o argumento eacute

oferecido ou seja apoacutes uma primeira defesa do afastamento da alma em relaccedilatildeo ao

corpo onde se tem apenas a alusatildeo do que se apresentaraacute mais tarde como essecircncia a

posiccedilatildeo que considera a lembranccedila tal como uma cogniccedilatildeo insuficiente ou incompleta

parece mais adequada Tais posiccedilotildees parecem privilegiar enfoques diferentes mas

talvez natildeo incompatiacuteveis Do ponto de vista da cogniccedilatildeo trata-se de um tipo de

apreensatildeo que oferece um conhecimento inautecircntico no sentido de um conteuacutedo que faz

referecircncia a outro supostamente verdadeiro experienciado em uma anterioridade Ao

mesmo tempo vale observar que o argumento natildeo faz qualquer sugestatildeo sobre o que

poderia constituir uma referecircncia agraves formas que natildeo as oferecesse apenas em alguma

medida ndash tema que ganharaacute explicaccedilatildeo com a teoria da participaccedilatildeo130

129 ldquo(hellip) a) As pessoas comuns conhecem o uso da palavra ordinaacuteria X e desse modo adquirem

conhecimento de X - idade (X-ness) ela sabe que haacute tal coisa como X-idade e sabe o que ela eacute (no

sentido fraco) b) platonistas concebem que X-idade eacute uma forma eterna imutaacutevel uma entidade

independentemente existenterdquo Acrill op cit p 28-29 Kahn compartilha da mesma interpretaccedilatildeo ao julgar

que o argumento traz uma referecircncia impliacutecita agraves Formas o que explica a generalidade dadas nos

exemplos de paus e pedras Kahn op cit p 125

130 Outra maneira de se perguntar se o conhecimento adquirido na resminiscecircncia se refere agraves ideias

acessiacuteveis aos filoacutesofos ou a outro tipo de conteuacutedo acessiacutevel tambeacutem aos natildeo filoacutesofos consiste em

questionar a imagem ou a visatildeo que se tem na reminiscecircncia de uma ideia eacute a proacutepria ideia Pode-se

dizer que as igualdades percebidas se referem exclusivamente ao proacuteprio igual e natildeo a outro conceito Um

referencial ou uma visatildeo de X natildeo eacute o proacuteprio X entretanto tal conteuacutedo natildeo faria referecircncia a outra

coisa que natildeo X Se tal raciociacutenio procede o que se deve considerar Em uma posiccedilatildeo pessimista em

relaccedilatildeo agrave capacidade de adquirir o conhecimento em sua inteireza e autenticidade Gosling explica o

conteuacutedo da reminiscecircncia como uma ldquoquasi-perceptionrdquo anaacuteloga agrave visatildeo direta que supostamente a alma

teve antes do nascimento Assim ele compreende que o argumento da reminiscecircncia como aprendizado

exige muito mais do que possuir conhecimento a priori estando em jogo a familiaridade com estes

objetos a partir dos quais eacute possiacutevel fazer comparaccedilotildees entre os dados observados Para o autor

justamente tal familiaridade a qual envolve esta semivisatildeo constitui o conhecimento do igual na verdade

uma semicogniccedilatildeo ldquoA conclusatildeo parece ser a de que conhecemos (acquainted) certos objetos os quais

podemos comparar com o que agora observamos bdquoConhecer‟ aqui parece envolver uma quase percepccedilatildeo

(quasi-perception) e isso eacute certamente o que constitui o bdquoconhecimento do igual‟rdquo Gosling op cit p126

180

Perguntar-se sobre em que medida a imagem ou a visatildeo que se tem na

reminiscecircncia de uma ideia oferece a proacutepria ideia faz sentido ao lanccedilar o olhar para a

questatildeo de fundo acerca da aquisiccedilatildeo da ideia e portanto do alcance intelectual Tal

tema no entanto eacute melhor elaborado n‟ A Republica VI na relaccedilatildeo modelo-coacutepia que a

analogia da linha oferece Aqui esta relaccedilatildeo natildeo estaacute em questatildeo se natildeo for para supor

outro domiacutenio131

A consequecircncia que natildeo se deve perder de vista consiste desse modo

em natildeo atribuir agrave reminiscecircncia ou natildeo somente a ela a capacidade de aquisiccedilatildeo das

ideias Natildeo haacute necessariamente aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia da mesma forma

que o exerciacutecio dialeacutetico natildeo descreve obrigatoriamente uma rememoraccedilatildeo Satildeo

atividades cognitivas distintas e no caso da rememoraccedilatildeo natildeo leva somente agraves ideias

inteligiacuteveis Os objetos introduzidos pela ἀλάκλεζηο devem ser resultado do tratamento

intelectual do meacutetodo hipoteacutetico o qual mostraraacute definitivamente a legitimidade da

faculdade intelectual da alma tarefa que a Teoria da Reminiscecircncia tal como se

apresenta natildeo o pode realizar Nesse sentido a Teoria eacute utilizada no Feacutedon para

oferecer uma saiacuteda intelectual nesta circunstacircncia de processo de afastamento da alma

em relaccedilatildeo ao corpo para colaborar nas devidas distinccedilotildees que se pretende realizar sobre

sua capacidade inteligente O que o diaacutelogo mostra com a reminiscecircncia eacute entre os

conteuacutedos que jaacute se analisou mais uma forma de atividade do intelecto que nesta altura

da investigaccedilatildeo constitui uma alternativa para persistir na busca do que eacute verdadeiro e

puro em um contexto adverso agrave natureza inteligente da alma

131 Trabattoni reconhece a relaccedilatildeo que estamos a nos referir entre a gnosiologia n‟A Repuacuteblica e a

reminiscecircncia no Feacutedon ao dizer ldquoNas paacuteginas d‟A Repuacuteblica natildeo aparece a doutrina da reminiscecircncia

que Platatildeo tratou pela primeira vez no Feacutedon e retomou posteriormente no Fedro Todavia natildeo eacute difiacutecil

estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a gnosiologia d‟A Repuacuteblica com a teoria da reminiscecircncia dos dois

diaacuteloacutegos que citamos O conhecimento anterior do mundo ideal corresponde ao perfeito saber das ideias

que os filoacutesofos possuem somente no modelo ideal natildeo na realidade concreta Acredito que se deva

deixar aberto agrave interpretaccedilatildeo de cada um que a ausecircncia do saber perfeito na experiecircncia mundana

dependa do fato que este conhecimento eacute em Platatildeo somente ideal uma vaacutelvula de escape para aqueles

que aplicam o conhecimento humano no uacutenico mundo existente mesmo se se o considera um lugar real o

ideal pertencente a outro mundo a um mundo que o homem conheceu antes de nascer e (re) alcanccedilaraacute

apoacutes a morterdquo Trabattoni op cit p 184 Faz sentido no que diz respeito ao trabalho itelectual a

suposiccedilatildeo de um outro domiacutenio um plano real distinto do mundo ordinaacuterio a partir do qual se obtenha as

referecircncias necessaacuterias Tanto a cidade ideal do filoacutesofo governante quando os objetos ideiais

rememorados servem de paracircmetros e indicam esta realidade a qual o filoacutesofo deseja conhecer O

conhecimento e a rememoraccedilatildeo descrevem assim a atividade que eleva a alma para este outro domiacutenio e

no Feacutedon isto parece ser dito mais objetivamente

181

24 Distinccedilotildees entre alma e corpo

A partir dos temas tratados na Teoria da Reminiscecircncia a questatildeo da

imortalidade dada ateacute entatildeo com elementos do registro da religiatildeo eacute transposta para o

registro da metafiacutesica A existecircncia da alma anterior ao nascimento que o ato racional da

reminiscecircncia testemunha mostra que um maior entendimento sobre os seres deste plano

satildeo os indicativos da possibilidade de sua imortalidade Distintos da sensibilidade as

realidades descobertas como seres anteriores devem apresentar as caracteriacutesticas que

permitem a sobrevivecircncia da alma e do mesmo modo a compreensatildeo acerca da atuaccedilatildeo

do pensamento nesta tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

ldquo- Portanto Siacutemias eis a questatildeo se de fato existem coisas

como essas que temos constantemente nos laacutebios um Belo um Bem e

toda a espeacutecie de realidade que lhes eacute afim (ἡ ηνηαύηε νὐζία) se eacute

esta que tomamos como ponto de referecircncia de tudo (ὑπάξρνπζαλ) o

que os sentidos nos transmitem e a ela reportamos (ἀλαθέξνκελ) os

dados recebidos em virtude de lhe descobrirmos uma existecircncia

anterior que nos pertencia - forccedilosamente entatildeo na medida em que

tais realidades existem assim tambeacutem a nossa alma existe antes de

nascermos caso contraacuterio este nosso argumento cairaacute pela base

[]rdquo (Fed 76d6-e4)

Deve-se observar que tais realidades servem de paracircmetro para estabelecer

relaccedilotildees com os dados advindos do sensiacutevel (θαὶ ηαῦηα ἐθείλῃ ἀπεηθάδνκελ Fed 76e2)

Cabe dessa forma averiguar a questatildeo se baseando estritamente no trabalho racional

dada a capacidade de estabelecer relaccedilotildees com estes seres e fazer atraveacutes deles maiores

inferecircncias sobre o tema Esta constitui uma mudanccedila metodoloacutegica no diaacutelogo digna

de nota Haja vista as diferenciaccedilotildees das realidades e a afinidade da alma com elas

parece razoaacutevel recorrer cada vez mais aos resultados do trabalho racional empregado

na investigaccedilatildeo e ao que se pode conhecer por meio dele sobre tal realidade (θαηαθεύγεη

ὁ ιόγνο Fed 76e9) Desse modo o estado de morte em que supostamente a alma

sobrevive deve ser investigado segundo o que mostra o caraacuteter dos dois tipos de planos

que agora se apresentam amparados pelo ιόγνο no trabalho filosoacutefico Utilizando as

palavras do texto ldquo() ficou por demonstrar (ἀπνδεδεῖρζαη) que ela subsiste tambeacutem

apoacutes a morterdquo (Fed 77b1) o que abordaraacute a alma e a sua imortalidade da perspectiva

182

do seu possiacutevel perecimento em uma comparaccedilatildeo com o aniquilamento dos objetos

fiacutesicos do plano sensiacutevel

Ao considerar a morte como uma destruiccedilatildeo tal como se daacute com os corpos

deve-se questionar se ela eacute suscetiacutevel a um fim desses ou se ao contraacuterio natildeo padece de

qualquer tipo de ruiacutena e se manteacutem viva (Fed 77b3) Estaacute em questatildeo agora a natureza

da alma no que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo O medo da morte que Soacutecrates critica

nos seus interlocutores (Fed 77d4-e) estaacute baseado na concepccedilatildeo tradicional que a

compreende semelhante ao corpoacutereo podendo assim ter fim se dissipando esvoaccedilando

ou sendo destruiacuteda de alguma outra forma Todavia deve-se ter em conta que as uacutenicas

atribuiccedilotildees feitas agrave alma ateacute esta altura da investigaccedilatildeo se refere a sua faculdade

intelectual e a sua capacidade de cogniccedilatildeo (Fed 70b3 76c12) tal como o seu poder de

se purificar de se desvincular do corpoacutereo por meio da filosofia A formulaccedilatildeo sobre a

alma que o discurso filosoacutefico propotildee eacute oposta a concepccedilatildeo tradicional como se tem

observado e apresenta primeiramente como razatildeo para sua indestrutibilidade sua

natureza incorpoacuterea

Tal incorporeidade entenda-se o que se distingue do corpo eacute averiguada como o

contraacuterio de um composto O que eacute de natureza composta estaacute suscetiacutevel agrave

decomposiccedilatildeo dos elementos que o integra sendo dessa forma passiacutevel de ser

destruiacutedo Ao contraacuterio o que eacute de natureza simples natildeo eacute composto (ἀζύλζεηνλ) estaacute

livre de sofrer decomposiccedilatildeo (Fed 78c1-4)

Outra caracteriacutestica que os seres de natureza incorpoacuterea apresenta diz respeito a

mudanccedilas Coisas simples satildeo sempre do mesmo modo comportam-se sempre da

mesma maneira (ὡζαύησο ἔρεη Fed 78c6) enquanto as compostas mudam (Fed 78c6-

8) O ser de realidade diversa do corpoacutereo (ἡ νὐζία) possui tais caracteriacutesticas e da

mesma forma natildeo admite nenhum tipo de mudanccedila (κή πνηε κεηαβνιὴλ θαὶ ἡληηλνῦλ

ἐλδέρεηαη Fed 78d4) Assim os conhecimentos apreensiacuteveis na reminiscecircncia que

indicam a preexistecircncia da alma ao corpo satildeo da mesma natureza incorpoacuterea e

apresentam essas caracteriacutesticas tal como o Igual o Belo e tudo o que eacute dito ldquoser por si

mesmordquo (Fed 78d1-7) Com esta descriccedilatildeo esses seres passam a receber um estatuto

ontoloacutegico que os define como essecircncia (νὐζία) As essecircncias portanto natildeo sofrem

qualquer tipo de mudanccedila ou variaccedilatildeo em nenhum momento satildeo simples (κνλνεηδὲο) e

conserva a sua identidade

Tais definiccedilotildees acerca dos conhecimentos descrevem em boa medida a natureza

de um domiacutenio distinto do sensiacutevel com o qual o ιόγνο filosoacutefico concorrente com o

183

tradicional trabalha A explicaccedilatildeo nos termos da filosofia passa a estabelecer nesta

argumentaccedilatildeo os criteacuterios e os paracircmetros para uma explicaccedilatildeo racional e assim

oferece as caracteriacutesticas dos seres pertencentes a este domiacutenio que satildeo eacute importante

notar os objetos do pensamento O trabalho intelectual envolvido na separaccedilatildeo da alma

em relaccedilatildeo ao corpo ganha explicaccedilotildees acerca de seu desenvolvimento indicando a

forma dialogada da dialeacutetica como o exerciacutecio proacuteprio neste tipo de operaccedilatildeo intelectual

de explanaccedilatildeo acerca das essecircncias (Fed 78d1) Eleger a forma de operar em relaccedilatildeo a

tais objetos defini-los e expor as suas caracteriacutesticas parece importante a esta altura do

diaacutelogo para assegurar na medida do possiacutevel a retidatildeo da investigaccedilatildeo e assim ter

maior esperanccedila sobre a imortalidade da alma e sobre o bom destino do filoacutesofo apoacutes a

morte Do mesmo modo conforme sugere o medo dos amigos de Soacutecrates a

investigaccedilatildeo deve considerar a natureza dos objetos em questatildeo e sendo assim natildeo se

pode realizar uma inquiriccedilatildeo acerca da alma a concebendo como algo corpoacutereo uma

vez que jaacute se deu indicaccedilotildees de se tratarem de seres de naturezas diferentes Parece claro

que para efeito de distinccedilotildees entre alma e corpo a partir de agora se deve ter em conta o

estatuto ontoloacutegico conferido a cada plano e que o domiacutenio das essecircncias eacute acessiacutevel

somente pela atividade do pensamento

25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο

A caracterizaccedilatildeo dos conhecimentos segue de modo a lanccedilar luz no que diz

respeito agrave apreensatildeo e assim na contraposiccedilatildeo sensibilidade-intelecto a partir da qual

seraacute exposta a causa da falibilidade dos sentidos contrariamente agrave eficiecircncia da razatildeo

No domiacutenio da sensibilidade estatildeo as coisas que possuem o atributo de uma essecircncia

como a beleza e a igualdade mas embora seja homocircnima dela os objetos sensiacuteveis

dotados de tais qualidades natildeo consistem nas proacuteprias essecircncias e por isso satildeo passiacuteveis

de corrupccedilatildeo (Fed 78e1) Os objetos sensiacuteveis como um belo cavalo ou pedras iguais

184

satildeo apreendidos pela αἴζζεζηο diferentemente do proacuteprio Belo e da noccedilatildeo de Igualdade

que soacute eacute concebida pela atividade racional mais precisamente pelo raciociacutenio132

Neste argumento a criacutetica ao corpo tem em vista apontar a deficiecircncia das

sensaccedilotildees na aquisiccedilatildeo do conhecimento e justificar por outro lado a excelecircncia do

pensamento nessa funccedilatildeo ao mostrar sua ligaccedilatildeo com o domiacutenio das essecircncias o qual

pode ser compreendido apoacutes as uacuteltimas explicaccedilotildees como domiacutenio inteligiacutevel Importa

comparar pensamento e sensibilidade no que se refere agraves qualidades que cada um pode

acessar A alma e os objetos satildeo examinados assim a partir de dois tipos de existecircncias

(Fed 79a6)133

uma visiacutevel e outra invisiacutevel Os objetos que possuem as caracteriacutesticas

das essecircncias satildeo os invisiacuteveis enquanto os visiacuteveis podem ser corrompidos uma vez

que satildeo da ordem do sensiacutevel A partir desse criteacuterio a alma se mostra mais aparentada

ao que eacute invisiacutevel enquanto o corpo afim com o visiacutevel (Fed 79b4) Essa uacuteltima

argumentaccedilatildeo vale reparar aborda as caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel nos

termos da invisibilidade e da visibilidade Ao mesmo tempo em que oferece uma

definiccedilatildeo uacutetil para o tema da morte ao admitir ser a alma a parte invisiacutevel do homem

(Fed 79b1) e portanto a que deve ser objeto de averiguaccedilatildeo o argumento pontua a

criacutetica aos sentidos mostrando a incapacidade destes de apreender o que eacute da ordem das

essecircncias

O texto com a finalidade de ilustrar a indestrutibilidade da alma mostra na

verdade que temas que se referem agraves essecircncias e ao conhecimento delas como ocorre

com a questatildeo da natureza da alma natildeo deve ser associado agrave sensibilidade mas ao

intelecto Tem-se a total incapacidade da αἴζζεζηο para o conhecimento e ao mesmo

tempo uma explicaccedilatildeo causal acerca da potencialidade cognitiva da θξόλεζηο

ldquo- Caacute estamos entatildeo no que diziacuteamos haacute pouco sempre que a

alma faz uso do corpo (πξνζρξηαη) para se lanccedilar em qualquer

indagaccedilatildeo utilizando a vista o ouvido ou qualquer outro meio

sensorial (e utilizar os sentidos que significa senatildeo utilizar o corpo)

eis que este a arrasta para as realidades em contiacutenuo devir (ἕιθεηαη

ὑπὸ ηνῦ ζώκαηνο) e quanto a ela por aiacute erra mergulhando como

eacutebria na perturbaccedilatildeo e na vertigem (πιαλᾶηαη θαὶ ηαξάηηεηαη θαὶ

132 Fed 79a2 ldquoPois bem essas satildeo justamente as que tu podes ver tocar e apreender pelos restantes

sentidos as outras pelo contraacuterio que mantecircm a sua identidade proacutepria jamais teria meios de captaacute-las

a natildeo ser pelas faculdades da inteligecircncia pois que se trata das realidades invisiacuteveis que a nossa vista

natildeo capta (ηῶλ δὲ θαηὰ ηαὐηὰ ἐρόλησλ νὐθ ἔζηηλ ὅηῳ πνη ἂλ ἄιιῳ ἐπηιάβνην ἢ ηῷ ηο δηαλνίαο

ινγηζκῷ ἀιι ἔζηηλ ἀηδ ηὰ ηνηαῦηα θαὶ νὐρ ὁξαηά)rdquo

133 Privilegiamos a traduccedilatildeo de FOWLER ldquotwo kinds of existencesrdquo para o trecho ldquo δύν εἴδε ηῶλ ὄλησλ

ηὸ κὲλ ὁξαηόλ ηὸ δὲ ἀηδέοrdquo diferentemente da traduccedilatildeo de Azevedo que prefere traduzir eide ton onton

por ldquoduas realidadesrdquo op cit p 275

185

εἰιηγγηᾷ) pois tal eacute a natureza das coisas a que se apega (ἅηε

ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)

- Decerto

- Ao inveacutes quando indaga por si e em si refugiando-se aleacutem no

que eacute puro e sempre existe imortal e idecircntico a si mesmo fica em

razatildeo do seu parentesco para sempre ligada a ele (Ὅηαλ δέ γε αὐηὴ

θαζ αὑηὴλ ζθνπῆ ἐθεῖζε νἴρεηαη εἰο ηὸ θαζαξόλ ηε θαὶ ἀεὶ ὂλ θαὶ

ἀζάλαηνλ θαὶ ὡζαύησο ἔρνλ θαὶ ὡο ζπγγελὴο νὖζα αὐηνῦ ἀεὶ κεη

ἐθείλνπ ηε γίγλεηαη) precisamente quando passa a existir por si e em

si e tal lhe eacute permitido e eacute entatildeo que cessam os seus erros e fixando-

se nessa realidade de aleacutem salvaguarda a sua identidade porque tal

eacute tambeacutem a natureza das coisas a que se apega (ὅηαλπεξ αὐηὴ θαζ

αὑηὴλ γέλεηαη θαὶ ἐμῆ αὐηῆ θαὶ πέπαπηαί ηε ηνῦ πιάλνπ θαὶ πεξὶ

ἐθεῖλα ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὡζαύησο ἔρεη ἅηε ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)

Ora a esse estado de alma natildeo damos noacutes o nome de ldquorazatildeordquo (θαὶ

ηνῦην αὐηο ηὸ πάζεκα θξόλεζηο θέθιεηαη) (Fed 79c-2-d7)

Ao fazer uso dos sentidos para realizar um exame a alma vai na direccedilatildeo

contraacuteria dos inteligiacuteveis e de sua natureza Ao se deixar influenciar pelos dados

sensiacuteveis ela eacute arrastada por eles desviando-se dos objetos que lhe satildeo afins Em

contato com seres de natureza oposta ou seja advindos do corpoacutereo ela permanece em

um estado de perturbaccedilatildeo (ηαξάζζσ) Note-se que o comportamento da alma eacute orientado

pelo domiacutenio ao qual cede a influecircncia Ao se fixar em objetos inteligiacuteveis a alma age

de maneira semelhante a eles mantendo-se reta e conservando a sua natureza imutaacutevel

Se ao contraacuterio ela se deixa influenciar pelo corpo e tendo em vista o que corresponde

ao domiacutenio do sensiacutevel torna-se incapaz de fazer uso da inteligecircncia assumindo assim

um comportamento condizente com ele eacutebrio e errante134

Esse estado de agitaccedilatildeo

constitui a descaracterizaccedilatildeo mais evidente que ela pode sofrer A alma demasiado

influenciada pelo corpo assume suas caracteriacutesticas corpoacutereas no sentido de dispensar a

racionalidade tendo como dano maior se tornar bestial como o corpo A consequecircncia

nefasta do apego da alma ao corpo traz prejuiacutezos agrave sua natureza que significa em uacuteltima

circunstacircncia um uso indevido ou desuso de suas capacidades intelectuais A resposta

da alma nessa condiccedilatildeo conveacutem notar demonstra ser diferente se comparada ao que

acontece em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees corpoacutereas No contato com os objetos sensiacuteveis a

alma entatildeo agitada reage a eles com o trabalho da intelecccedilatildeo

134 Note-se aqui a negatividade atribuiacuteda aos sentidos semelhante ao que constitui uma limitaccedilatildeo para o

meacutetodo geomeacutetrico isto eacute o uso de imagens e a atenccedilatildeo voltada para os objetos do mundo fiacutesico Da

mesma forma observa-se o impecilho que uso do sensiacutevel constitui para a alma na busca pelo

conhecimento presente nos termos do obstaacuteculo para a alma ainda presa ao corpo no contexto do Feacutedon

e das dificuldades que se antepotildeem ao aprendiz conforme o livro VII anaacutelogas agraves dificuldades que

encontra o homem ao sair da caverna O que a uacuteltima parte da linha oferece como pensamento que

trabalha somente com ideias e atraveacutes de ideias aqui se daacute o nome de pensamento puro

186

Cabe analisar de que modo o texto descreve a identificaccedilatildeo da alma como algo

que mais se assemelha ao que eacute inteligiacutevel uniforme indestrutiacutevel divino e imutaacutevel135

em contraponto a uma hiperinfluecircncia do corpoacutereo Vale observar que embora este

ὁκνηόηαηνλ indique a afinidade da alma com o gecircnero invisiacutevel e inteligiacutevel natildeo se

pode compreender haver aqui uma riacutegida definiccedilatildeo de alma Natildeo haacute no horizonte do

texto ainda que se tenha em questatildeo a imortalidade o propoacutesito de traccedilar uma riacutegida

definiccedilatildeo da alma mas salientar as caracteriacutesticas que concernem agrave sua

indestrutibilidade nesse caso note-se seu parentesco com o gecircnero incorpoacutereo que se

manifesta com a atividade inteligente

O diaacutelogo chama atenccedilatildeo para as caracteriacutesticas que satildeo justamente opostas e

portanto comparaacuteveis com as caracteriacutesticas dos seres do gecircnero corpoacutereo de modo a

apresentar assim uma narrativa que descreve a alma basicamente em trecircs estados sob

influecircncia do corpo em processo de desvinculaccedilatildeo do corpo ou seja desapegando-se

dessa influecircncia e totalmente apartada dele o que constitui o estado de morte e

supostamente um estado de alta intelecccedilatildeo tal como se daacute nessa descriccedilatildeo da θξόλεζηο

Faz sentido apresentar desse modo as trecircs circunstacircncias que consiste vale lembrar no

percurso do filoacutesofo Mostrar a alma ao mesmo tempo afim e mais assemelhada ao

divino e imortal natildeo a coloca em um estatuto de igualdade em relaccedilatildeo agraves essecircncias ou agrave

divindade parecendo cabiacutevel portanto oferecer uma imagem dela como algo quase

corpoacutereo por assim dizer que pode demonstrar a hiperinfluecircncia do corpoacutereo e o

consequente desuso da razatildeo no que se refere agrave sua potencialidade cognitiva Em outros

termos para ilustrar o processo de aquisiccedilatildeo da excelecircncia intelectual do filoacutesofo eacute

preciso ter uma visatildeo da alma suscetiacutevel a depuraccedilatildeo racional da filosofia e desse

modo que ofereccedila tanto os resultados dele a exemplo da alma do filoacutesofo quanto a

possibilidade dessa purificaccedilatildeo natildeo ocorrer

A narrativa de uma conduta pautada pelo corpoacutereo no qual as faculdades

inteligiacuteveis da alma natildeo exercem qualquer comando contrariando sua natureza (79e8-

80a5) sugere uma posiccedilatildeo intermediaacuteria da alma entre apelos do sensiacutevel uma vez

encarnada em um corpo humano e sua inclinaccedilatildeo inteligiacutevel dada afinidade com tal

gecircnero A tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel posta em termos de domiacutenios distintos eacute agora

refletida conforme o texto em uma conduta da alma que pode oscilar e que tem no

135 Fed 80b1-3 ldquo() se eacute ao que eacute divino imortal e inteligiacutevel ao que possui uma soacute forma e eacute

indissoluacutevel e se manteacutem constante e igual a si mesmo que a alma mais se identifica ()rdquo ( ηῷ κὲλ ζείῳ

θαὶ ἀζαλάηῳ θαὶ λνεηῷ θαὶ κνλνεηδεῖ θαὶ ἀδηαιύηῳ θαὶ ἀεὶ ὡζαύησο θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνληη ἑαπηῷ

ὁκνηόηαηνλ εἶλαη ςπρή)

187

intelecto a faculdade para orientaacute-la na direccedilatildeo daquilo que ela deveria naturalmente

aspirar A ausecircncia da atuaccedilatildeo da razatildeo ou como diz o texto a ausecircncia do comando da

alma tem origem no apego ao corpoacutereo resultante da convivecircncia (ἅηε ηῷ ζώκαηη ἀεὶ

ζπλνῦζα Fed 81b2) com o corpo o que pode ser visto em certa medida como uma

alteraccedilatildeo em sua natureza Tal alteraccedilatildeo eacute dada analogamente como uma mancha

(κηαίλσ) uma impureza (ἀθάζαξηνο ηνῦ ζώκαηνο Fed 81b1) consequecircncia de uma

conduta na qual a alma desprovida da atividade do pensamento estaacute enleada pelo que se

refere ao corpo mais precisamente prazeres e paixotildees (Fed 81b2-4) A alma nesse

contexto acostuma-se (ἐζίδσ) com as caracteriacutesticas corpoacutereas (ηὸ ζσκαηνεηδέο)

reconhecendo somente estes como verdadeiros recusando o que eacute inteligiacutevel (λνεηὸλ δὲ

θαὶ θηινζνθίᾳ αἱξεηόλ Fed 81b5)

Dominada pelo corpo vecirc-se a corrupccedilatildeo de sua potecircncia cognitiva e a ecircnfase

que o texto cabe notar confere ao pensamento ao identificar a conservaccedilatildeo da natureza

da alma agrave intelecccedilatildeo Em outros termos como responsaacutevel por evitar tal domiacutenio o

pensar exercido pela filosofia pode garantir o bom destino apoacutes a morte e a felicidade

(Fed 81a) por habituar a alma agrave convivecircncia com o que eacute inteligiacutevel e a tornaacute-la

temperante e justa Do mesmo modo ao contraacuterio em uma vida na qual se privilegia os

viacutecios como as glutonias beberronices injusticcedila e tirania (Fed 82a) habituou-se a

alma a tais coisas e tem portanto uma forte relaccedilatildeo e uma assimilaccedilatildeo de sua forma e

de seu modo de ser (Fed 81c4-6) Apegada ao corpo a alma assimila apenas o que eacute

corpoacutereo assumindo algumas caracteriacutesticas dele O que de maneira anaacuteloga eacute dito se

tornar pesada e ser arrastada ao sensiacutevel pelo temor da morte (Fed 81c9) sugere na

verdade a corrupccedilatildeo da natureza da alma devida a ausecircncia da praacutetica do trabalho

intelectual em vista dos inteligiacuteveis (Fed 81c9)

Parece importante mostrar os efeitos negativos desta dominaccedilatildeo do corpo para

enfatizar o modo de vida como o percurso no qual se daacute a depuraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo desta

natureza Como perda do seu caraacuteter se tem anuladas algumas caracteriacutesticas tal como o

uso da racionalidade como jaacute dito e a perda de sua invisibilidade Apoacutes a morte do

corpo as almas ainda muito influenciadas pelo corpoacutereo seratildeo fantasmas que vagaratildeo

em torno dos tuacutemulos podendo assim serem vistas uma vez que compartilham

caracteriacutesticas dele (Fed 81d2) Diferentemente aqueles que conservam as virtudes por

terem o haacutebito de praticaacute-las de algum modo ainda que sem o exerciacutecio da filosofia

188

podem ter um bom destino no poacutes vida136

Note-se que o costume nos termos da praacutetica

e da convivecircncia demonstra o aspecto eacutetico da racionalidade neste intercurso entre

sensiacutevel e inteligiacutevel realizaacutevel pelo pensamento Eacute preciso exercitar a alma a frequentar

o ambiente inteligiacutevel para que possa se preservar e ter um destino compatiacutevel com sua

natureza Dito de outro modo a conduta correta que garante a vida digna e o bom

destino apoacutes a morte depende da preponderacircncia da razatildeo que assegura seu caraacuteter de

ser inteligente e de compartilhar caracteriacutesticas comuns com o domiacutenio invisiacutevel

Conveacutem observar que o diaacutelogo apresenta a conduta como fator determinante na

conservaccedilatildeo da natureza da alma sendo por conta disso o modo de se exercitar

racionalmente um dos pontos importantes a serem abordados a seguir (Fed 81e2)137

A interaccedilatildeo da alma com os inteligiacuteveis realizada que se tem no exerciacutecio

filosoacutefico proporciona um estado duradouro de inteligibilidade cujos efeitos satildeo

prolongados e tecircm reflexos na conduta que o filoacutesofo assume durante a vida e nas

razotildees que fundamentam seu destemor em relaccedilatildeo agrave morte Natildeo constituindo apenas

uma operaccedilatildeo raciocinativa ou de caacutelculo a inteligecircncia consiste na aquisiccedilatildeo das

qualidades dignas de se assemelharem com as essecircncias e com os seres divinos (Εἰο δέ

γε ζεῶλ γέλνο Fed 82b10)

Sugere-se desse modo a elevaccedilatildeo da alma ao grau dos seres superiores

comparaacuteveis agravequeles seres puros e autecircnticos os quais Soacutecrates acredita serem possiacuteveis

de encontrar no melhor destino apoacutes a morte Dado anteriormente como uma capacidade

inteligente da alma de se purificar da negativa influecircncia do corpo o pensar tambeacutem eacute

visto como estado de influecircncia dos inteligiacuteveis (ηὸ πάζεκα) na condiccedilatildeo da alma pura

ou atuando por si mesma (αὐηὴ θαζ αὑηὴλ) isolada do corpo

Cabe ressaltar o papel paradoxal atribuiacutedo ao pensamento no Feacutedon Diante dos

dois movimentos da alma afastamento e aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis a θξόλεζηο

apresenta seu caraacuteter ativo e passivo ao sintetizar o conjunto dos resultados da

identificaccedilatildeo da alma com o domiacutenio suprassensiacutevel ou seja como accedilatildeo de interaccedilatildeo e

136 Fed 82a10-b3 ldquoE dentre estes os mais felizes os mais bem instalados seratildeo ainda os que praticam

essas formas populares e sociaacuteveis de virtude que chamam de temperanccedila e justiccedila ainda que assentes

na forccedila do haacutebito e natildeo na reflexatildeo filosoacutefica (Οὐθνῦλ εὐδαηκνλέζηαηνη ἔθε θαὶ ηνύησλ εἰζὶ θαὶ εἰο

βέιηηζηνλ ηόπνλ ἰόληεο νἱ ηὴλ δεκνηηθὴλ θαὶ πνιηηηθὴλ ἀξεηὴλ ἐπηηεηεδεπθόηεο ἣλ δὴ θαινῦζη

ζσθξνζύλελ ηε θαὶ δηθαηνζύλελ ἐμ ἔζνπο ηε θαὶ κειέηεο γεγνλπῖαλ ἄλεπ θηινζνθίαο ηε θαὶ λνῦ)rdquo

137 Note-se que a natureza inteligente da alma filosoacutefica n‟A Repuacuteblica eacute dada como um dos fatores

decisivos para a escolha e treinamento do futuro governante uma vez que significa aptidatildeo para uma

tarefa (Rep 455b) e demonstra a potencialidade para apreender e se apegar ao belo (476b) enquanto aqui

eacute um fator imprescindiacutevel para a conservaccedilatildeo e restauraccedilatildeo da alma que a filosofia pretende Apesar dos

diferentes contextos estaacute em questatildeo o seu desenvolvimento e a sua preservaccedilatildeo como condiccedilatildeo para

atingir os fins pretendidos o bom governo e a boa morte

189

como os efeitos do reconhecimento deste domiacutenio138

Apesar da estranheza que possa

causar tal afirmaccedilatildeo esse duplo papel eacute o que explica a natureza autocircnoma da alma A

possibilidade de isolamento do que lhe eacute naturalmente adverso como as sensaccedilotildees soacute eacute

possiacutevel por causa dessa faculdade que a eleva a um plano superior e a manteacutem nesse

niacutevel de elevaccedilatildeo onde ele apreende os seres verdadeiros Sua autonomia resulta da

capacidade de interagir com os inteligiacuteveis e de se manter sob influecircncia deles agindo

assim sem o auxiacutelio de outra capacidade e sem se deixar desorientar por algo de outra

ordem Ao mesmo tempo em que se tem uma faculdade tal somente um pensamento

elevado pode assegurar a continuidade da realizaccedilatildeo de sua atividade

Eacute nesses termos que se deve compreender que a alma pura tem o pensamento

igualmente puro influenciado e orientado pelos inteligiacuteveis seres igualmente puros ou

seja de mesma natureza incorpoacuterea e inteligiacutevel O texto acrescenta uma explicaccedilatildeo

acerca do processo de aquisiccedilatildeo do estado excelente do pensamento ao oferecer a sua

constituiccedilatildeo enquanto atividade nessa relaccedilatildeo A descriccedilatildeo do comportamento da alma

nas duas circunstacircncias narradas apresenta o gecircnero da intelecccedilatildeo e dos seus

desdobramentos embora ainda sem se ater agraves especificidades acerca de sua operaccedilatildeo

como vai se dar ao se tratar da dialeacutetica

Vale observar como esse argumento contribui na construccedilatildeo da noccedilatildeo de

excelecircncia do pensamento a partir das questotildees ontoloacutegicas e eacuteticas que se apresentam

O que antes foi dado como pensamento puro termo de empreacutestimo da tradiccedilatildeo recebe

do ιόγνο filosoacutefico suas especificaccedilotildees origem gecircnero objetos e modus operandi

adequado para os fins da cogniccedilatildeo este uacuteltimo tratado com maior detalhe no fim do

diaacutelogo Tais especificaccedilotildees contribuem ateacute aqui para justificar o destemor do filoacutesofo

e sugerir a superioridade de um plano acessiacutevel pelo pensamento que em muito se

identifica com o invisiacutevel e eterno A preservaccedilatildeo de sua natureza ou cuidado da alma

sugere ser a atividade (πξ ηηεηλ Fed 82d5) e o haacutebito (ἔζνο) a condiccedilatildeo para a

felicidade o que no caso do filoacutesofo consiste na vida pautada pelo pensamento

O processo de purificaccedilatildeo ou aquisiccedilatildeo do estado de interaccedilatildeo com as ideias

inteligiacuteveis se daacute como se vecirc em uma eacutetica que encontra seu fundamento na natureza

racional e na atividade de conhecimento desses inteligiacuteveis ao mesmo tempo em que ela

138 Na compreensatildeo de Dixsaut esse ldquoestadordquo ou ldquoafecccedilatildeordquo da psykhe nomeada ldquosaberrdquo tal como

prefere a autora mostra o equiacutevoco em compreender que Platatildeo pergunta o que eacute ser uma ciecircncia uma

ciecircncia constituiacuteda Haacute na verdade o interesse em saber sobre essa relaccedilatildeo entre a alma e os objetos que

a afetam Dixsaut op cit p 145 Este eacute provavelmente o sentido de episteacuteme que encontramos no Feacutedon

a qual deve ser vista como em 79d uma relaccedilatildeo entre a alma e os seres inteligiacuteveis

190

mesma se constitui deste trabalho O filoacutesofo amante do saber do aprendizado potildee-se

com esta praacutetica em condiccedilotildees de atingir o plano superior de seres de gecircnero

identificados ao divino139

ao deixar a filosofia como traz o texto cuidar da alma para

tornaacute-la liberta ou seja natildeo mais submetida ao corpo (Fed 82e) O isolamento da alma

dado nesta postura intelectualista entenda-se que despreza o que natildeo se refere agrave alma e

se dedica agravequilo que se pode tratar apenas pelo intelecto sugere o cuidado de si como

submissatildeo da alma ao pensamento que se daacute sob a forma de convencimento (πείζσ)

(Fed 83a6-b3)

Este ponto ganharaacute foco com a explanaccedilatildeo da dialeacutetica ao final do diaacutelogo e se

mostraraacute importante por expor o meacutetodo do conhecimento e a forma de operar desta

racionalidade defendida ateacute este instante A exposiccedilatildeo que o diaacutelogo aos poucos

ofereceu sobre a θξόλεζηο teve o propoacutesito como se viu de apresentar a partir das

diferenciaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sentidos o gecircnero ao qual pertence e o seu valor para que

fosse possiacutevel fundamentar a noccedilatildeo de imortalidade que o filoacutesofo tem em vista Ao que

parece era importante levantar as questotildees que tocam a natureza da alma para traccedilar seu

perfil corretamente no qual a faculdade inteligente e a inteligecircncia satildeo os elementos sob

os quais cabe maior detalhamento Feitas tais distinccedilotildees o diaacutelogo acentuaraacute o caraacuteter

racionalista desta vida filosoacutefica propondo ao longo do seu desenvolvimento

especificaccedilotildees acerca dos objetos inteligiacuteveis do meacutetodo de aquisiccedilatildeo de tais objetos e

por consequecircncia da operacionalidade deste pensamento em seu modo excelente Todas

as qualificaccedilotildees atribuiacutedas ao inteligiacutevel tal como as provas da imortalidade da alma

passam a ser explicitadas segundo o ιόγνο filosoacutefico o qual ganha uma elaboraccedilatildeo

teacutecnica do meacutetodo filosoacutefico de anaacutelise e construccedilatildeo do discurso abandonando assim

os termos da tradiccedilatildeo

III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico

139 Fed 82b10-c1 ldquoQuanto agrave espeacutecie dos deuses natildeo seraacute permitido o acesso agravequele que natildeo praticou

a filosofia e natildeo se vai daqui totalmente purificado mas somente ao que ama o saber (Εἰο δέ γε ζεῶλ

γέλνο κὴ θηινζνθήζαληη θαὶ παληειῶο θαζαξῷ ἀπηόληη νὐ ζέκηο ἀθηθλεῖζζαη ἀιι ἢ ηῷ θηινκαζεῖ)rdquo

191

A proposta acerca da imortalidade da alma e consequentemente de sua

inteligibilidade eacute analisada segundo a forma cientiacutefica de filosofar A filosofia como

exerciacutecio intelectual aparece a partir de agora natildeo somente nos termos de uma

preparaccedilatildeo para a morte que prevecirc um retorno da alma agrave sua condiccedilatildeo mais autecircntica

ou de uma forma religiosa de obediecircncia ao deus Apolo (Fed 60e-61b) Ela passa a ser

exibida sob a forma da atividade capaz de elaborar instrumentos teoacutericos para a

aquisiccedilatildeo do conhecimento dos seres inteligiacuteveis ao dizer a relaccedilatildeo que a alma mantecircm

com eles (Fed 79d) e para demonstrar a imortalidade O aparato teoacuterico e

metodoloacutegico que Platatildeo elabora mais adiante ao tratar do ιόγνο do meacutetodo e ao

compor a Teoria das Formas colabora para os propoacutesitos do filoacutesofo Deve-se ter em

conta que a intenccedilatildeo de elaborar este aparato indicada no iniacutecio do diaacutelogo na ocasiatildeo

em que Soacutecrates declarava ter composto durante a vida a filosofia por ser justamente

esta a mais alta muacutesica (Fed 60e-61b10) cumpre-se ao especificar no que de fato

consiste e como se daacute essa forma de composiccedilatildeo filosoacutefica e portanto esta ordenaccedilatildeo

intelectual que julga ser superior agrave forma de composiccedilatildeo tradicional

Tem-se com isso a sugestatildeo de uma praacutetica intelectual que nesse contexto

consiste na maneira de compor argumentos140

Dito de outro modo investigar acerca do

meacutetodo filosoacutefico e de seus fundamentos consiste concomitantemente em analisar como

se deve exercer essa atividade intelectual para que ela se torne praticaacutevel no contexto

em que a alma ainda estaacute presa ao corpo ou seja limitada pela condiccedilatildeo de

humanidade

Deve-se notar que tal abordagem acerca da praacutetica filosoacutefica vai ao encontro de

uma questatildeo que surge a partir do que a passagem 79d descreve dado que o estado de

alta inteligecircncia descreve a ligaccedilatildeo do pensamento puro portanto livre do corpo eacute

possiacutevel o conhecimento destes seres na condiccedilatildeo de humanidade na qual a alma ainda

estaacute presa ao corpo A Teoria da Reminiscecircncia mostrou que sim No entanto vale

140 O sonho que visitou Soacutecrates vaacuterias vezes ao longo da vida pedia ao filoacutesofo que fizesse e praticasse

a arte das musas a musikeacute O filoacutesofo obedeceria mais uma vez a ordem do deus como fez durante toda a

vida mas atraveacutes da filosofia a mais alta muacutesica Ao identificar de algum modo a filosofia agrave musike o

diaacutelogo propotildee uma nova definiccedilatildeo para ambos No sonho a muacutesica natildeo aparece somente sob a forma de

mensagem divina tal como define a tradiccedilatildeo mas como exerciacutecio de ldquocompor e praticar a muacutesicardquo (60e-

61b10) A mensagem ganha uma interpretaccedilatildeo racionalista ao ser equiparada agrave filosofia sendo a muacutesica

ao que tudo indica uma espeacutecie de ordenaccedilatildeo segundo a racionalidade que subsidia o exerciacutecio da

filosofia Apesar disso a filosofia se distingue da muacutesica ao criar loacutegoi enquanto que a poesia cria

mythoi e nisso reside a superioridade da atividade filosoacutefica Vale observar que a sugestatildeo do exerciacutecio

filosoacutefico como ordenaccedilatildeo e portanto como trabalho intelectual que Soacutecrates faz no iniacutecio do diaacutelogo

agora se torna especiacutefica por meio da elaboraccedilatildeo da Teoria das Formas e do meacutetodo os quais conferem

caraacuteter cientiacutefico agrave filosofia

192

observar que o tema da imortalidade visto agrave luz dos infortuacutenios e limites da condiccedilatildeo da

alma presa ao corpo encontra na elaboraccedilatildeo do ιόγνο o caminho Assim uma pesquisa

sobre o discurso filosoacutefico no que concerne ao conhecimento e a possibilidade de dizer

as coisas em sua forma inteligiacutevel e portanto autecircntica parece parte do exerciacutecio e um

dos propoacutesitos da investigaccedilatildeo

Este terceiro movimento do Feacutedon propotildee uma reflexatildeo sobre a plausibilidade

das teses defendidas ateacute aqui como construtos do intelecto de modo a atestar mais uma

vez sua legitimidade como o uacutenico meio adequado para tal tarefa Uma vez realizadas

as devidas distinccedilotildees entre alma e corpo sensaccedilotildees e intelecto o empenho de agora em

diante consiste em demonstrar a capacidade do intelecto e a legitimaccedilatildeo de seus

instrumentos Assim os argumentos seguintes oferecem em certa medida um parecer

criacutetico e analiacutetico sobre os feitos que se referem agrave racionalidade e ao gecircnero

suprassensiacutevel sugeridos pela noccedilatildeo de θξόλεζηο tal qual o diaacutelogo propotildee141

O exerciacutecio racional da filosofia dado ateacute entatildeo nos termos de uma postura

intelectualista passa a ser exposto no registro de uma concepccedilatildeo de ciecircncia a partir da

qual a capacidade cognitiva seraacute o ponto de intersecccedilatildeo entre os temas do diaacutelogo A

postura do filoacutesofo de se desligar do que concerne ao corpo como as paixotildees (αὐηὴλ

παξαδηδόλαη ηαῖο ἡδνλαῖο Fed 84a4) eacute dada como o resultado do caacutelculo (ινγηζκόο) da

orientaccedilatildeo da razatildeo O refuacutegio nas essecircncias que se daacute por meio do ιόγνο anteriormente

sugerido para o prosseguimento da investigaccedilatildeo (Fed 79d1) eacute visto sob duas

perspectivas tomado como conduta durante a vida tem por finalidade a libertaccedilatildeo dos

males que afetam a alma na condiccedilatildeo de humanidade como postura gnosioloacutegica tem

como consequecircncia a aquisiccedilatildeo dos seres do que eacute verdadeiro e divino e o retorno agrave

natureza inteligiacutevel (Fed 86a7-b3)

O paralelismo entre conduta moral e aquisiccedilatildeo do conhecimento lanccedila luz a

questotildees acerca da veracidade do argumento e portanto acerca da operacionalidade e

do alcance da inteligecircncia Parece pertinente que a forma do discurso como trabalho da

inteligecircncia deva ter a sua capacidade de persuasatildeo posta de modo indubitaacutevel para que

a tese defendida e explanada a da imortalidade seja comprovada e aceita e o medo do

141 Conceber esta uacuteltima parte do diaacutelogo a qual traz a Teoria das ideias e o meacutetodo hipoteacutetico como

uma explicaccedilatildeo da primeira parte eacute uma leitura aceita para alguns comentadores Chen entender a

explicaccedilatildeo acerca do logos e a sua demonstraccedilatildeo na prova final da imortalidade uma exemplificaccedilatildeo do

treino para a morte dita no iniacutecio do texto Ele explica que apesar de parecer uma afirmaccedilatildeo ldquofantaacutesticardquo

jaacute que tal relaccedilatildeo natildeo eacute dada textualmente pode-se fazer esta associaccedilatildeo porque o exerciacutecio para a morte

que consiste na filosofia se realiza no meacutetodo das hipoacuteteses utilizada para provar a imortalidade da alma

Chen op cit p 30 nota 13

193

fim seja finalmente dissipado Em outras palavras como aspecto formal de uma

racionalidade que fundamenta um modo de vida e explica a morte o ιόγνο filosoacutefico

deve igualmente passar por um exame para que as teses que satildeo por ele explicadas

tenham validade

31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο

Vale a pena expor brevemente os dois argumentos que expotildeem a fragilidade de

uma concepccedilatildeo fisicalista da alma no que se refere a uma prova da imortalidade Eacute

pertinente levantar as caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo a partir das duacutevidas dos

interlocutores de Soacutecrates como contraponto ao que se pretende defender sobre o

discurso filosoacutefico como a forma do trabalho inteligiacutevel A argumentaccedilatildeo que

apresentou a proposiccedilatildeo da alma como ser indestrutiacutevel parece natildeo ter sido inteiramente

aceita (Fed 84c) apoacutes serem dadas as principais abordagens sobre ela Siacutemias questiona

acerca da possibilidade do conhecimento da imortalidade dadas as condiccedilotildees que a vida

humana oferece e a partir disso a validade da argumentaccedilatildeo filosoacutefica O argumento

anterior parece natildeo ter sido capaz de convencer o interlocutor de Soacutecrates que natildeo

pretende abandonar a investigaccedilatildeo apesar de reconhecer as dificuldades Para Siacutemias o

exerciacutecio de investigar se mostra carente de uma base minimamente soacutelida sob a qual

seja possiacutevel construir o discurso e assim constituir algum conhecimento na medida do

que for possiacutevel sobre a imortalidade O risco nesse sentido estaacute justamente em se

lanccedilar em uma experiecircncia que ateacute o momento se mostra destituiacuteda de um fundamento

ldquo() - Vou pois expor-te as minhas duacutevidas e outro tanto faraacute

o nosso Cebes explicando em que aspecto rejeito a tua argumentaccedilatildeo

(θαὶ ἐγώ ηέ ζνη ἐξῶ ὃ ἀπνξῶ θαὶ αὖ ὅδε ᾗ νὐθ ἀπνδέρεηαη ηὰ

εἰξεκέλα) Por mim Soacutecrates acho como talvez tambeacutem tu que um

conhecimento exato nesse tipo de mateacuterias eacute ou impossiacutevel ou

extremamente difiacutecil de adquirir em vida mas por outro lado natildeo

criticar em todos os seus aspectos as afirmaccedilotildees que nesse domiacutenio se

produzem ou renunciar a fazecirc-lo antes de ter esgotado todas as

possibilidades de exame (ἐιέγρεηλ) eacute bem sinal de fraqueza de

espiacuterito (πάλπ καιζαθνῦ εἶλαη ἀλδξόο) Ora nesse campo as

perspectivas que temos satildeo estas aprendermos a verdade de outrem

194

ou descobri-la noacutes ou ainda caso qualquer destas hipoacuteteses seja

inviaacutevel escolhermos dentre as doutrinas humanas a que nos

parecer melhor (βέιηηζηνλ ηῶλ ἀλζξσπίλσλ ιόγσλ) e menos faliacutevel

(εἰ κή ηηο δύλαηην ἀζθαιέζηεξνλ θαὶ ἀθηλδπλόηεξνλ) e como em

jangada arriscar nela a travessia da vida ndash a menos claro que se

consiga com maior seguranccedila e ausecircncia de risco embarcar em

transporte mais soacutelido do que este quero dizer uma doutrina

revelada (ιόγνπ ζείνπ ηηλόο) ()rdquo (Fed 85c1- d3)

Um ιόγνο sobre a imortalidade natildeo eacute possiacutevel sem que haja o trabalho do

pensamento filosoacutefico Mesmo diante da aparente falta de fundamento da pesquisa ao

modo da filosofia e da incerteza quanto aos resultados o discurso que se baseia na

natureza inteligente da alma e por isso na legitimidade das faculdades intelectuais

mostram-se a alternativa mais indicada para a investigaccedilatildeo As razotildees de prosseguir na

investigaccedilatildeo apesar da sua possiacutevel falibilidade potildee a dimensatildeo da limitaccedilatildeo do

pensamento ao explicar o sentido da persistecircncia em tal empresa Parece incontestaacutevel o

trabalho racional que a alma realiza mesmo em condiccedilatildeo hostil ou seja presa ao corpo

Parece vaacutelido que agrave filosofia cabe aprender descobrir (καζεῖλ εὑξεῖλ Fed 85c7) e

buscar o melhor discurso sobre a imortalidade mesmo que se admita a impossibilidade

de conhecer algo sobre o plano suprassensiacutevel em vida humana

Nesse sentido tem-se em vista a κάζεζηο e o que foi sugerido sobre o

conhecimento dos seres verdadeiros tal como mostrou a reminiscecircncia ao se aceitar

como via possiacutevel a busca a partir da proacutepria alma Do mesmo modo o impasse que se

mostra agora natildeo tira do horizonte da investigaccedilatildeo a proposta do conhecimento a partir

desta natureza inteligente e incorpoacuterea haacute pouco defendida da qual a alma se filia

Parece pertinente assim admitir ser o que resulta deste ιόγνο uma descoberta (εὑξεῖλ) e

ser correta a recusa de discursos jaacute estabelecidos sobre a alma e sobre sua natureza

Fraacutegil como a travessia em uma jangada o conhecimento em condiccedilotildees de humanidade

natildeo pode assertivamente dizer o destino da alma apoacutes a morte do corpo entretanto

parece mais razoaacutevel ter o ιόγνο como meio e o pensamento como condutor da pesquisa

Cabe notar que dada a precariedade de qualquer discurso humano sobre o que se

refere ao post-mortem o filoacutesofo se vecirc descomprometido com o acerto mas

comprometido em fazecirc-lo e fazecirc-lo bem lanccedilando sobre ele um minucioso e profundo

exame O receio relaccedilatildeo agrave morte que impedia os interlocutores de Soacutecrates de

persistirem na investigaccedilatildeo sobre a imortalidade (Fed 84d) se mostra assim descabido

sendo a via da racionalidade pela filosofia a que se mostra mais plausiacutevel A

195

superioridade que se pretende atribuir agrave especificidade do discurso filosoacutefico em

comparaccedilatildeo aos outros se restringe ao fato de constituir tambeacutem um autoexame o qual

sugere ao filoacutesofo a noccedilatildeo de sua verdadeira capacidade de cogniccedilatildeo A inquiriccedilatildeo

acerca da natureza da alma e assim do pensamento conduz incontornavelmente a

questionamentos relativos ao seu alcance e modo de operar chamando atenccedilatildeo para o

meacutetodo atraveacutes do qual eacute possiacutevel o conhecimento

Esse instante que serve como interluacutedio inaugura a nova perspectiva sob a qual a

imortalidade da alma seraacute tratada Ateacute agora o diaacutelogo destacou a alma na condiccedilatildeo da

humanidade e em relaccedilatildeo a um plano considerado superior ou seja em relaccedilatildeo ao plano

inteligiacutevel e ao plano da divindade As consideraccedilotildees acerca do pensamento foram

realizadas desse modo a partir desta relaccedilatildeo a qual apontou seu papel como faculdade

da alma seu gecircnero e qualidades mas que no entanto natildeo apresentaram maiores

especificaccedilotildees que demonstrassem a sua legitimidade Ao questionar sobre a validade

do discurso o texto potildee mais uma vez a questatildeo que se liga crucialmente agrave legitimidade

do trabalho racional a natureza imortal da alma que passa a ser examinada com

elementos da filosofia ou seja por meio do meacutetodo filosoacutefico

As duacutevidas acerca do pensamento recebem tratamento na revisatildeo da tese da

indestrutibilidade da alma nos dois proacuteximos argumentos142

O diaacutelogo contrapotildee agrave

pertinecircncia da pesquisa filosoacutefica o medo da morte amparado pela noccedilatildeo de alma que

os interlocutores de Soacutecrates possuem143

O discurso acerca da imortalidade defendido

142 Michael Ferejohn faz um comentaacuterio acerca da postura de Soacutecrates que pode justificar os argumentos

nos quais se potildee agrave prova as concepccedilotildees de seus interlocutores ldquoOs primeiros diaacutelogos bem como o

Meacutenon foram escritos do que podemos chamar perspectiva ldquosocraacuteticardquo isto eacute do ponto de vista de um

inquiridor criacutetico que reconhece que ele proacuteprio natildeo possui conhecimento genuiacuteno e entatildeo se potildee a

descobrir se algueacutem em seu torno estaacute em melhor posiccedilatildeo do que ele a este respeito () Por contraste o

que chamo de ldquoperspectiva socraacuteticardquo e com ela o requerimento de explicaccedilatildeo do conhecimento eacute muito

evidente no Feacutedon ()ldquo Ferejohn M ldquoO Conhecimento e as Formas em Platatildeordquo in Platatildeo (Benson H e

col Org) Porto Alegre Artmed 2011 p 152 A necessidade de testar as proposiccedilotildees conforme sugeriraacute o

meacutetodo hipoteacutetico mais adiante aparece demonstrada nessa exposiccedilatildeo do erro dos discursos dos

interlocutores Assim uma defesa da tese filosoacutefica da imortalidade exigiraacute tambeacutem que seja posta agrave

prova demonstrando concomitantemente assim a atividade da razatildeo e a validade de seu trabalho

143 Siacutemias e Cebes pertenciam agrave escola pitagoacuterica e eram ouvintes de Filolau de Crotona Esse uacuteltimo se

estabeleceu em Tebas em meados do seacuteculo V quando tinha por volta de cinquumlenta anos e teve contato

com os disciacutepulos de Pitaacutegoras Guardini R La Mort de Socrate Editions du Seuil p 142 A visatildeo da

alma como uma harmonia pelos pitagoacutericos eacute criticada no Feacutedon (85c-86e) Platatildeo constata nessa

identificaccedilatildeo a concepccedilatildeo de alma como um elemento corpoacutereo o qual natildeo escaparaacute agrave aniquilaccedilatildeo com a

morte Evidentemente natildeo se deve pensar que o diaacutelogo consiste em uma criacutetica agrave teoria da alma segundo

o pitagorismo ou segundo os misteacuterios mas eacute notaacutevel que ele natildeo ignora tal doutrina considerando-a um

bom ponto de partida para a concepccedilatildeo filosoacutefica de alma que pretende formular Temas como a

imortalidade e transmigraccedilatildeo presentes no diaacutelogo satildeo comuns aos pitagoacutericos e ganham

gradativamente no desenrolar da narrativa os contornos filosoacuteficos tais como Platatildeo os concebe Deste

modo o argumento presente mostra os pontos da visatildeo pitagoacuterica que se mostram incompatiacuteveis com a

alma inteligiacutevel e imortal do Feacutedon Os personagens que dialogam com Soacutecrates na investigaccedilatildeo acerca

196

pelo filoacutesofo ateacute entatildeo esbarra em uma concepccedilatildeo de alma ao modelo do corpoacutereo no

qual a destruiccedilatildeo e o fim satildeo as visotildees que se tem da morte e o medo um sentimento

inevitaacutevel Para expor o ponto de insuficiecircncia (νὐρ ἱθαλῶο Fed 85e2) do discurso

filosoacutefico tal como entendem os interlocutores o diaacutelogo retoma o exemplo da lira

(Fed 73d seg) dando a ele um tratamento diferente dada a nova dificuldade que se

coloca A explicaccedilatildeo de Siacutemias sobre a harmonia mostra a parcial concordacircncia acerca

das distinccedilotildees entre duas naturezas sensiacutevel e inteligiacutevel tal como o filoacutesofo propocircs

Para ele parece compreensiacutevel que a lira enquanto objeto fiacutesico composto de outros

artefatos como as cordas e a madeira seja identificado ao que eacute por natureza destrutiacutevel

terreno composto e mortal A harmonia144

por sua vez eacute incorpoacuterea invisiacutevel e

portanto imortal O interlocutor supotildee diante disso que se o instrumento for destruiacutedo

tiver as cordas dilaceradas e a madeira quebrada de modo algum a lira existiria jaacute que

os elementos fiacutesicos que a compotildeem satildeo destruiacutedos Entretanto segundo o raciociacutenio

proposto pelo filoacutesofo a harmonia permanece dada a natureza atribuiacuteda a ela ou seja

existe ainda assim natildeo perecendo com o fim do instrumento (Fed 85e-86b4)

Surge no entanto o que parece uma dificuldade para o interlocutor O discurso

tradicional descreve a alma nos termos de uma composiccedilatildeo e de uma harmonia de

elementos do corpo misturados com proporccedilatildeo (Fed 86b9-c2) Sendo ela mesma um

tipo de harmonia a tensatildeo e coesatildeo dos elementos fiacutesicos como a temperatura tem

influecircncia havendo assim uma dependecircncia do corpo para se manter harmocircnica e satilde

A exemplo da lira a alma precisa do equiliacutebrio dos elementos do corpo para ser tal

como uma harmonia podendo ser corrompida pela doenccedila e outros males o que

demonstra segundo esse argumento sua possiacutevel destrutibilidade (Fed 86c2-7) A

morte seria portanto a decomposiccedilatildeo desta harmonia e o fim da alma (Fed 86d2)

Do mesmo modo Cebes parece incapaz de conceber algo que natildeo seja ao

modelo do corpoacutereo demonstrando com isso suas dificuldades em seguir e reconstituir

uma argumentaccedilatildeo nos termos da filosofia Ele se diz satisfeito com o discurso do

filoacutesofo (πάλπ ἱθαλῶο ἀπνδεδεῖρζαη Fed 87a3) no que se refere agrave vida da alma antes de

estar na condiccedilatildeo de humanidade (Fed 87a1-4) Todavia considera insuficiente a

demonstraccedilatildeo no que toca a permanecircncia (ζώδσ) da alma apoacutes a morte do corpo Ao

comparar a durabilidade da alma do tecelatildeo ao manto que o veste Cebes demonstra o

da imortalidade representam o contraponto agrave concepccedilatildeo que Platatildeo tem sobre a alma a qual ele se esforccedila

mais uma vez em demonstrar que eacute distinta do corpo

144 A harmonia aqui deve ser pensada como o que hoje chamamos de afinaccedilatildeo conf nota 51 de M T

Schiappa de Azevedo

197

equiacutevoco de um raciociacutenio que busca ter provas da imortalidade a partir da parte mais

fraacutegil o corpo e os objetos corpoacutereos Uma afirmaccedilatildeo baseada no argumento do filoacutesofo

natildeo hesitaria em dizer a sobrevivecircncia da alma que resiste ao perecimento do corpo e do

manto que o cobria No entanto Cebes tem a intenccedilatildeo de demonstrar a durabilidade do

homem tendo como prova o manto que o vestia (Fed 87b4-c6) e a durabilidade da alma

tendo como prova a durabilidade do corpo Se a parte mais vulneraacutevel se encontra

preservada o homem e entatildeo a alma de gecircnero supostamente mais resistente

sobreviveu (Fed 87c6-d3)

O que se demonstra na verdade com esta uacuteltima argumentaccedilatildeo eacute a

incompreensatildeo dos interlocutores natildeo somente sobre o discurso filosoacutefico mas sobre a

tese que se propotildee Parece evidente ao mesmo tempo que Siacutemias natildeo distingue entre a

harmonia nos termos de uma noccedilatildeo apreensiacutevel pelo intelecto e uma relaccedilatildeo bem

equacionada entre elementos como ocorre na muacutesica natildeo conseguindo acompanhar o

exerciacutecio de intelecccedilatildeo que a investigaccedilatildeo exige Do mesmo modo o raciociacutenio

equivocado de Cebes em pretender demonstrar o perecimento da alma demonstra a sua

incompreensatildeo no que se refere agrave distinccedilatildeo de gecircneros A falta de entendimento acerca

da natureza inteligiacutevel da alma conforme as duas objeccedilotildees resultou na descrenccedila sobre

a imortalidade e sobre o alcance do exerciacutecio filosoacutefico Ao tomar a alma como o

resultado da composiccedilatildeo de elementos fiacutesicos que se relacionam entre si Siacutemias

transfere para o corpo a funccedilatildeo de oferecer indiacutecios da natureza e da sobrevivecircncia dela

A consequecircncia deste argumento despoja o pensamento de seu papel de testemunhar a

suposta permanecircncia da alma ficando o trabalho do ιόγνο nesse contexto sem qualquer

fundamento De modo semelhante a visatildeo da alma tal como descreveu Cebes

vulneraacutevel em relaccedilatildeo aos corpos a destitui de toda potecircncia inteligente e portanto da

capacidade de oferecer um discurso apoiado em uma natureza incorpoacuterea para supor o

poacutes-morte

ldquoE o momento exato em que essa morte essa separaccedilatildeo do

corpo acarreta consigo o aniquilamento da alma (argumentaria) eacute o

que ningueacutem sabe ao certo pois natildeo estaacute ao alcance de nenhum de

noacutes pressenti-lo (ἀδύλαηνλ γὰξ εἶλαη ὁηῳνῦλ αἰζζέζζαη ἡκῶλ) Por

isso mesmo quando um homem encara confiadamente a morte essa

confianccedila natildeo tem em princiacutepio razatildeo de ser (ἀλνήησο ζαξξεῖλ) a

menos que consiga demonstrar que a alma eacute de todos os modos

imortal e impereciacutevel (ὃο ἂλ κὴ ἔρῃ ἀπνδεῖμαη ὅηη ἔζηη ςπρὴ

παληάπαζηλ ἀζάλαηόλ ηε θαὶ ἀλώιεζξνλ)rdquo (Fed 88b2-6)

198

As dificuldades de compreensatildeo acerca do discurso do filoacutesofo que mostraram

as questotildees dos ouvintes satildeo uacuteteis porque expotildee o que eacute preciso para melhor

compreender os fundamentos e a construccedilatildeo do logos filosoacutefico Para isso conveacutem

questionar acerca dos motivos de Platatildeo para retomar esses exemplos dessa maneira

sendo a primeira sugestatildeo sua intenccedilatildeo de pocircr em evidecircncia os problemas acerca da

natureza da alma para em seguida reformulaacute-la segundo o meacutetodo que pretende

desenvolver Assim exibe duas argumentaccedilotildees que expotildeem a perspectiva de uma

concepccedilatildeo fisicalista de modo a deixarem evidentes as fragilidades desta concepccedilatildeo

para depois objetaacute-la Com isso ressalta a principal distinccedilatildeo entre esta teoria e a que

pretende propor tanto em termos conceituais quanto metodoloacutegicos Ao que parece tatildeo

importante quanto demonstrar a natureza incorpoacuterea da alma eacute conseguir demonstrar e

testar um discurso com bases seguras capaz de investigar e fazer suposiccedilotildees razoaacuteveis a

respeito de sua imortalidade

32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο

Cabe analisar a defesa do ιόγνο filosoacutefico que o diaacutelogo apresenta antes de dar o

discurso que demonstra a natureza incorpoacuterea da alma e a partir disso a capacidade do

intelecto segundo o meacutetodo e preceitos estritamente filosoacuteficos Diante da descrenccedila que

se instalou apoacutes as duas objeccedilotildees (ἀπηζηία Fed 84d2) as quais desacreditavam na

capacidade do discurso (Fed 88c) pareceu necessaacuterio ao filoacutesofo definir o lugar do

ιόγνο na investigaccedilatildeo de modo a distingui-lo como recurso da inteligecircncia A primeira

caracteriacutestica conferida a ele cabe notar diz respeito agrave identificaccedilatildeo com a humanidade

Recusar o discurso mais precisamente a sua praacutetica seria o mesmo que recusar e nutrir

aversatildeo ao homem Ao equivaler a misantropia agrave misologia o texto sugere ser o ιόγνο o

trabalho caracteriacutestico e portanto possiacutevel da alma no estado de humanidade ndash ldquo()

De fato natildeo haacute coisa pior para um homem do que ganhar aversatildeo pelos argumentos

ora pelo que toca agrave sua origem a misologia natildeo difere da misantropia ()rdquo (Fed

89d2) Tal afirmaccedilatildeo cabe observar resume o que se propocircs acerca da atividade

racional durante o diaacutelogo e de modo mais contundente o que se tinha em questatildeo nas

duas uacuteltimas objeccedilotildees a humanidade estaacute identificada agrave capacidade racional da qual o

199

ιόγνο constitui um recurso formal As questotildees acerca da imortalidade tem no fundo

esta identificaccedilatildeo posta agora em relevo problematizando nesse instante o uso das

capacidades intelectuais individualmente ou seja lanccedilando luz agrave inteligecircncia natildeo

somente em termos de gecircnero mas tambeacutem como instrumento atraveacutes do qual se

demonstra um grau da experiecircncia inteligente

Tal abordagem da inteligecircncia eacute corroborada pela explicaccedilatildeo que se segue sobre

a origem da aversatildeo aos argumentos e ao homem O oacutedio aos homens segundo o texto

surge do desapontamento da confianccedila excessiva depositada em algueacutem A decepccedilatildeo

causa a desconfianccedila que se estende a todos e o julgamento precipitado de que todos

satildeo peacuterfidos (Fed 89d3-e3) Este caso constitui um exemplo de inabilidade nas relaccedilotildees

humanas que serve para ilustrar a diferenciaccedilatildeo moral e em uacuteltima instacircncia de alcance

intelectual entre os homens A inabilidade estaacute em natildeo considerar que a maioria dos

homens esteja em um grau intermediaacuterio entre o completamente bom e o

completamente ruim os quais satildeo casos raros natildeo sendo difiacutecil tal situaccedilatildeo de

desapontamento acontecer A maioria ou seja a situaccedilatildeo mais comum entre os

indiviacuteduos e tambeacutem entre as qualidades eacute a mediana (Fed 90a8-11) O niacutevel mais

alto o qual sugestivamente o filoacutesofo ocupa eacute acessiacutevel apenas para poucos (Fed

90b1)

ldquo() Pois se soubesse lidar com eles suponho consideraria por

certo como eacute o caso que os homens radicalmente bons ou maus satildeo

em nuacutemero reduzidiacutessimo e que a grande maioria estaacute num grau

intermediaacuterio (ὥζπεξ ἔρεη νὕησο ἂλ ἡγήζαην ηνὺο κὲλ ρξεζηνὺο θαὶ

πνλεξνὺο ζθόδξα ὀιίγνπο εἶλαη ἑθαηέξνπο ηνὺο δὲ κεηαμὺ

πιείζηνπο)rdquo (Fed 90a1-3)

A criacutetica se dirige vale notar a quem profere um julgamento A semelhanccedila

entre os homens e os discursos estaacute em poder ser arbitraacuterio ou seja tanto o homem

quanto os argumentos podem estar baseado ou natildeo na razatildeo No que se refere ao

discurso esse eacute tratado nesse caso como mera produccedilatildeo em um jogo de proacute e contra no

qual se atribui valor de verdade ou de falsidade tal como parece acontecer na eriacutestica e

retoacuterica Tal postura diante da razatildeo descreve o alcance cognitivo mediano da maioria e

representa por que natildeo dizer o trabalho racional em um niacutevel mediacuteocre A descrenccedila

no ιόγνο surge desse uso inaacutebil que o coloca como uma forma de convencimento e uma

200

disputa de teses (Fed 91a3) desprovida de um fundamento que o valide e que ofereccedila

seus resultados como algo confiaacutevel145

Com um discurso ora confiaacutevel ora natildeo o natildeo

filoacutesofo demonstra desconhecer a natureza e o uso adequado do ιόγνο natildeo sendo capaz

de identificar no que de fato o discurso deve estar baseado e como proceder

corretamente em relaccedilatildeo a ele

Nesse sentido seria um equiacutevoco atribuir o desconhecimento acerca da

imortalidade da alma agrave forma discursiva da razatildeo que como tal oferece a possibilidade

de conhecer a verdade dos seres da qual o retor permanece privado146

A maneira

sofiacutestica de uso do ιόγνο eacute incapaz de apreender o que pode haver de firme e verdadeiro

em um discurso sendo os homens que o utilizam equivocadamente responsaacuteveis pelo

insucesso em uma argumentaccedilatildeo (Fed 90c8-d7) Dito de outro modo o problema natildeo

satildeo os argumentos mas o uso inadequado e a capacidade discursiva dos homens que

em sua maioria eacute mediana (Fed 90d9-e3)

O uso do discurso pelo filoacutesofo na iminecircncia da morte estaacute norteado pela

verdade e amparado na convicccedilatildeo (Fed 91a9) Esta pode parecer uma afirmaccedilatildeo

destoante da criacutetica feita haacute pouco ao uso sofiacutestico do discurso jaacute que nesse caso natildeo

havia para eles uma base soacutelida e segura Todavia conveacutem observar que tal convicccedilatildeo

se fia na confianccedila que ele atribui ao correto uso do ιόγνο Trata-se ao que parece de

uma crenccedila oriunda da persuasatildeo do proacuteprio ιόγνο filosoacutefico a qual tem a ἀιεζήο como

fator de convencimento (Fed 91b8-c3) O teor de incerteza quanto aos resultados do

ιόγνο tanto no discurso retoacuterico quanto no filosoacutefico deve-se notar natildeo confere ao

discurso como pretende a filosofia um caraacuteter de doutrina ou revelaccedilatildeo de um misteacuterio

como se tem na tradiccedilatildeo O filoacutesofo estaacute descomprometido em anunciar uma verdade de

modo categoacuterico pois sua aspiraccedilatildeo deve se voltar para o plano especulativo no qual se

verifica as possibilidades de dizer sobre a morte por meio de certo tipo de anaacutelise em

torno da natureza da alma Nesse sentido a pesquisa filosoacutefica se mostra muito mais

145 Fed 90b6-c3 ldquoNa verdade eacute noutro aspecto que falo de semelhanccedila quando por exemplo uma

pessoa sem qualquer experiecircncia de argumentos toma por verdadeiro o primeiro que lhe aparece para

pouco depois o reputar de falso (quantas vezes com razatildeo mas quantas vezes sem ela) e assim

sucessivamente com outro e com outro (ᾗ ἐπεηδάλ ηηο πηζηεύζῃ ιόγῳ ηηλὶ ἀιεζεῖ εἶλαη ἄλεπ ηο πεξὶ ηνὺο

ιόγνπο ηέρλεο θἄπεηηα ὀιίγνλ ὕζηεξνλ αὐηῷ δόμῃ ςεπδὴο εἶλαη ἐλίνηε κὲλ ὤλ ἐλίνηε δ νὐθ ὤλ θαὶ

αὖζηο ἕηεξνο θαὶ ἕηεξνο) E tal eacute em especial o caso dos que passam a vida a argumentar proacute e contra

bem sabes como por fim se convencem de terem atingido o cume da sabedoria de serem os uacutenicos a

concluir que nada de satildeo e de seguro haacute nas coisas como nos argumentosrdquo

146 Fed 90d ldquo() seria caso para lamentar que havendo um argumento verdadeiro soacutelido e acessiacutevel

ao entendimento o simples fato de parecer associado a tais que embora permaneccedilam os mesmos tanto

passam por verdadeiros como natildeo servisse de pretexto a qualquer um para natildeo ter de acusar a si e agrave sua

ignoracircncia () privando-se assim de conhecer a verdade dos seres (ηῶλ δὲ ὄλησλ ηο ἀιεζείαο ηε θαὶ

ἐπηζηήκεο ζηεξεζείε)rdquo

201

valiosa ao colocar como se daacute a partir de agora as regras para o uso do ιόγνο e apontar

os caminhos mais seguros para uma investigaccedilatildeo

As recomendaccedilotildees acerca do uso filosoacutefico da razatildeo natildeo tardam A resposta agraves

objeccedilotildees lanccediladas agrave argumentaccedilatildeo filosoacutefica mostra as diferenccedilas entre os discursos e o

erro da tese que concebe a alma como harmonia Uma vez aceita a Teoria da

Reminiscecircncia pelos interlocutores (Fed 91e) deve-se avaliar as teses que apostam na

destruiccedilatildeo da alma por concebecirc-la de alguma maneira como algo corpoacutereo Ao iniciar

a refutaccedilatildeo o filoacutesofo potildee em questatildeo a compatibilidade entre as duas teses Parece

haver um conflito em admitir uma existecircncia anterior agrave vivecircncia em um corpo e supor

uma alma ao modo corpoacutereo que necessita dele para ser como tal harmocircnica ou tem

um fim por ser ela mesma desgastada

ldquo() se persistires nessa convicccedilatildeo (δόμαη) de que a harmonia eacute

algo de compoacutesito (ζπγθεηκέλε) e a nossa alma uma harmonia

resultante de elementos do corpo em tensatildeo de certo natildeo aceitaraacutes

nem dito por ti mesmo (νὐ γάξ πνπ ἀπνδέμῃ γε ζαπηνῦ ιέγνληνο) que

sendo a harmonia algo de compoacutesito possa algum dia ter existido

antes desses mesmos elementos que a deveratildeo constituir ou seraacute que

aceitasrdquo (Fed 92a6-b2)

Dado que a harmonia depende da lira e da tensatildeo das cordas para ser enquanto

tal ela natildeo poderia existir antes do instrumento que a produz mostrando ser a

concepccedilatildeo da alma como uma composiccedilatildeo harmocircnica desse modo insustentaacutevel (Fed

92b4-c3) O filoacutesofo conduz a objeccedilatildeo de modo a equiparar cabe notar uma capacidade

inteligente da alma agrave noccedilatildeo de harmonia ldquo() por qual das ideias te decides (αἱξῆ ηῶλ

ιόγσλ) a de que a aprendizagem (ηὴλ κάζεζηλ) eacute uma reminiscecircncia ou a de que eacute

uma harmoniardquo (Fed 92c8-10) Essa comparaccedilatildeo ajusta o raciociacutenio da refutaccedilatildeo em

andamento agrave concepccedilatildeo de alma que o filoacutesofo defende e mostra o aspecto em relevo

para as assertivas acerca do trabalho argumentativo Parece ser mais uacutetil ao argumento

abordar a alma por meio de seu caraacuteter inteligente para contrapor a uma noccedilatildeo que

deve-se observar varia ao apresentar um aspecto formal e um aspecto conceitual Eacute

possiacutevel compreender a harmonia como fez Siacutemias nos termos de uma composiccedilatildeo

oriunda do instrumento musical ao mesmo tempo em que se pode abordaacute-la nos termos

de uma concepccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo como quer o filoacutesofo Importa opor algo uno e

imutaacutevel a algo que aceita ser tomado com a ambiguidade para mostrar que a alma eacute

concebida erroneamente quando vista com ambiguidade ora composta e sensiacutevel ora

202

preacute-existente e inteligiacutevel e que um discurso deste tipo eacute invaacutelido Ao propor essa

dicotomia com a sugestatildeo da alma harmonia o diaacutelogo tem em mira expor a inabilidade

de estabelecer relaccedilotildees entre elementos do mesmo gecircnero tal como se deu nos outros

tipos de argumentaccedilatildeo Em outras palavras falta aos demais discursos compreenderem

a diferenccedila entre os domiacutenios e aceitar como procedimento estabelecer relaccedilatildeo entre

elementos inteligiacuteveis

Tal deficiecircncia eacute logo compreendida por Siacutemias que admite no que se baseiam

os argumentos natildeo-filosoacuteficos na verossimilhanccedila (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ εὐπξεπείαο)

A origem do engano do discurso sofiacutestico satildeo as aparecircncias que constituem de fato um

fundamento incerto por permitirem apenas uma argumentaccedilatildeo plausiacutevel A partir de

uma base desta natureza tem-se uma opiniatildeo que natildeo enuncia algum conhecimento

sobre a alma e sobre a morte

ldquo- De longe pela primeira Soacutecrates Quanto agrave uacuteltima nada

tenho na realidade a abonaacute-la baseei-me tatildeo soacute numa

verossimilhanccedila numa plausibilidade formal (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ

εὐπξεπείαο) que eacute com certeza a origem dessa convicccedilatildeo na maior

parte dos homens Mas eu proacuteprio sei por experiecircncia quatildeo falazes

satildeo essas demonstraccedilotildees fabricadas a partir de meras

verossimilhanccedilas (ἐγὼ δὲ ηνῖο δηὰ ηῶλ εἰθόησλ ηὰο ἀπνδείμεηο

πνηνπκέλνηο ιόγνηο ζύλνηδα νὖζηλ ἀιαδόζηλ) e a que erros

(ἐμαπαηῶζη) nos induzem seja na geometria seja em qualquer outro

domiacutenio quando mal nos precatamos contra elas ()rdquo (Fed 92c11-

d5)

Por outro lado o ιόγνο filosoacutefico tem na relaccedilatildeo inteligiacutevel entre alma e a

essecircncia a base para as especulaccedilotildees147

Apoacutes a reacuteplica do filoacutesofo Siacutemias estaacute

persuadido (ὡο ἐκαπηὸλ πείζσ 92e1) desta relaccedilatildeo testemunhada pelas operaccedilotildees

inteligentes descritas ateacute agora a reminiscecircncia e a aprendizagem (ὁ δὲ πεξὶ ηο

ἀλακλήζεσο θαὶ καζήζεσο ιόγνο δη ὑπνζέζεσο ἀμίαο ἀπνδέμαζζαη εἴξεηαη Fed 92d6-

7) O discurso filosoacutefico construiacutedo desde o iniacutecio da investigaccedilatildeo apresenta nesse

instante uma demonstraccedilatildeo de seus procedimentos e de seu efeito ao levar o

interlocutor ao reconhecimento das falhas de sua proacutepria tese e a aceitaccedilatildeo da tese

adversaacuteria ndash ldquoOra esse pressuposto tenho para mim que eacute natildeo apenas suficiente como

correto aceitaacute-lo (ἀμηνῖο ἐπηδεηρζλαη ἡκῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἱθαλῶο ηε θαὶ ὀξζῶο

ἀπνδέδεγκαη)rdquo (Fed 92e1) Ao ser posto agrave prova um criteacuterio para a validade do 147 Fed 92d8-9 ldquouma vez que equaciona a existecircncia da alma anteriormente ao nosso nascimento com

a desse tipo de realidade em sirdquo (ὥζπεξ αὐηο ἐζηηλ ἡ νὐζία ἔρνπζα ηὴλ ἐπσλπκίαλ ηὴλ ηνῦ ldquoὃ ἔζηηλrdquo)

203

discurso (ἀλώιεζξόλ ηε θαὶ ἀζάλαηνλ νὖζαλ 95b9-c1) a argumentaccedilatildeo deve resistir ao

exame e ter assim a clareza e a suficiecircncia da tese que defende comprovadas o que

natildeo se verificou com a refutaccedilatildeo das duas objeccedilotildees Resta ao interlocutor prosseguir se

submetendo ao meacutetodo e aos princiacutepios desta forma do uso da razatildeo e ouvir a

desconstruccedilatildeo de sua tese anteriormente defendida148

Natildeo conveacutem analisar em minuacutecias a desconstruccedilatildeo da tese da alma harmonia

todavia devem-se levantar alguns raciociacutenios que oferecem informaccedilotildees sobre a funccedilatildeo

conferida ao intelecto Algumas caracteriacutesticas da alma se chocam com a noccedilatildeo de

harmonia presentes no discurso de Siacutemias 1ordm) sendo a harmonia uma composiccedilatildeo duas

caracteriacutesticas caras a alma por compartilhaacute-las com os seres inteligiacuteveis satildeo postas em

risco a unidade e a imutabilidade Como tal a harmonia pode ser quantificada em

proporccedilatildeo sendo correto dizer ldquomais ou menos harmocircnicardquo entretanto o mesmo natildeo se

pode dizer em relaccedilatildeo a alma a qual natildeo se pode considerar ldquomais plena e

completamente bdquoalma‟ ou menos plena e completamente bdquoalma do que outrardquo (Fed

93a1-b1-6)

Natildeo eacute correto concebecirc-la nos termos de possuir um atributo em maior ou menor

grau de harmonia do mesmo modo natildeo se pode ser e natildeo ser harmocircnica ou

textualmente natildeo pode participar da harmonia nem da desarmonia ter uma identidade

X e participar do seu oposto (Fed 93e) Diante da uacuteltima anaacutelise deve-se admitir 2ordm) a

primazia da inteligecircncia a qual por natureza comanda as accedilotildees do homem (Fed 94b4-

5) Supor a dependecircncia da harmonia em relaccedilatildeo agrave lira eacute o mesmo que considerar a alma

dependente do corpo para ser enquanto tal o que entraria em conflito com a tese

anteriormente aceita de que ela se opotildee aos desejos e apetites do corpo (Fed 94b6-c) A

importacircncia de afirmar tal primazia estaacute justamente em atribuir validade e confianccedila ao

discurso produto da inteligecircncia e preservar a funccedilatildeo de governo (ἄξρσ) do

pensamento em um alto niacutevel θξόληκνλ (Fed 94b5)

Interessa agrave investigaccedilatildeo a partir de agora abordar a alma nos termos de uma

noccedilatildeo com a qual se possa levar adiante a investigaccedilatildeo utilizando para isso elementos

148 Cabe aqui trazer o cometaacuterio de Ferejohn para ressaltar o que se pretende com a refutaccedilatildeo das teses

dos interlocutores ldquoO objetivo central de Soacutecrates nessa obra consiste em estabelecer a imortalidade da

alma Para fazer isso contudo natildeo seria suficiente para ele determinar (ao modo da Repuacuteblica) que as

almas vatildeo se mostrar imortais em sua teoria proposta Antes ele quer mostrar que elas realmente satildeo

imortais Consequentemente ele deve argumentar com base em premissas verdadeiras que estatildeo ao seu

alcance e ao de seus interlocutores em sua condiccedilatildeo de insciecircncia ou do que chamei perspectiva

socraacutetica (perspectiva criacutetica do inquiridor que reconhece sua ignoracircncia e por isso cobra explicaccedilatildeo de

seu intelector supostamente conhecedor) () Soacutecrates no Feacutedon tenta dar razotildees filosoacuteficas para

pensar que a teoria eacute verdadeirardquo Ferejohn opcit p 152

204

inteligiacuteveis como manda a filosofia e deixando de lado uma visatildeo que a considere

individualmente abordagem que o dialogo tambeacutem apresentou Dito de outro modo a

argumentaccedilatildeo aponta a perspectiva a partir da qual conveacutem tratar a alma e o tema da

imortalidade da universalidade das ideias em oposiccedilatildeo ao particular da multiplicidade

das percepccedilotildees do sensiacutevel Dados os ditames para a pesquisa ao modo da filosofia

cabe analisar como se desenvolve tal uso e em que medida a argumentaccedilatildeo sobre a

imortalidade se torna uma demonstraccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia uma vez comprovada a

validade do discurso

33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico

Para contra-argumentar acerca da ideia de que a alma tem o iniacutecio da sua

destruiccedilatildeo ao entrar no corpo (Fed 95d1-4) encontrando seu fim apoacutes muitas

encarnaccedilotildees o diaacutelogo lanccedila luz para o tema que deve ganhar atenccedilatildeo a causa da

geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (γελέζεσο θαὶ θζνξᾶο ηὴλ αἰηίαλ Fed 95e9) Duraccedilatildeo e

imortalidade no discurso de Cebes natildeo satildeo correspondentes Para ele ainda natildeo

convencido pelo filoacutesofo o que se tem com a reminiscecircncia e com a morte do corpo eacute a

demonstraccedilatildeo de um tempo de duraccedilatildeo da alma Ao mesmo tempo em que considera a

existecircncia da alma anterior ao nascimento uma prova de sua duraccedilatildeo entende que ela

sofre com os nascimentos ateacute perecer completamente com a morte (Fed 95c4-e1) natildeo

havendo assim prova de sua imortalidade mas de um periacuteodo limitado de

permanecircncia Cebes que pedia a demonstraccedilatildeo da imortalidade e da conservaccedilatildeo da

alma para que pudesse ter confianccedila no discurso filosoacutefico e aceitar que este natildeo seria

vatildeo e sem sentido (ἀλόεηόλ ηε θαὶ ἠιίζηνλ) (Fed 95b8-c4) tem questionado agora o que

estaacute na base deste tempo de duraccedilatildeo ou seja o que pode de fato revelar o suposto iniacutecio

e fim da existecircncia de modo a tornar evidente a imortalidade

A αἰηία tema herdado dos tempos em que o jovem Soacutecrates frequentava os

estudos da ciecircncia da natureza (θύζεσο ἱζηνξίαλ Fed 96a8) ganha definiccedilatildeo filosoacutefica

junto com a evoluccedilatildeo dos questionamentos sobre a inteligecircncia (λνῦο) Antes examinada

a partir do que se podia observar nos seres vivos e dos fenocircmenos naturais a causa que

205

em um primeiro momento tentava responder o porquecirc da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo o

porquecirc de existirem 149

era associada agraves percepccedilotildees desses eventos Era pertinente desse

modo levantar uma questatildeo qual a causa do pensamento das percepccedilotildees do sensiacutevel e

dos conhecimentos

ldquoE eacute graccedilas ao sangue que pensamos (θξνλνῦκελ) ou ao ar ou

ao fogo Ou nada disso conta e eacute sim o ceacuterebro que nos permite as

sensaccedilotildees (ὁ δ ἐγθέθαιόο ἐζηηλ ὁ ηὰο αἰζζήζεηο παξέρσλ) do ouvido

da vista e do olfato sensaccedilotildees estas que estaratildeo na base da memoacuteria

e da opiniatildeo (ἐθ ηνύησλ δὲ γίγλνηην κλήκε θαὶ δόμα) dando origem

uma vez consolidadas a conhecimentos correspondentes (θαηὰ ηαῦηα

γίγλεζζαη ἐπηζηήκελ)rdquo (Fed 96b2-8)

Vale notar que a pergunta tema desse estudo esteve presente desde o iniacutecio como

tema de fundo e sintetiza as indagaccedilotildees do diaacutelogo ao ligar as trecircs perspectivas que se

referem agrave questatildeo do pensamento seu objeto seu fundamento e seu modo de operar A

conveniecircncia da anaacutelise da causa estaacute desse modo em reunir tais abordagens e indicar o

que subjaz ao pensar Ao se perguntar pela causa questiona-se acerca deste fundamento

que permite a atividade do pensamento ser enquanto tal A explanaccedilatildeo sobre a causa

pretende especificar o foco e o domiacutenio de um discurso delimitando assim o seu

objeto e os meios pelos quais se deve abordar os temas propostos em uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica

O tipo de investigaccedilatildeo (ηαύηελ ηὴλ ζθέςηλ Fed 96c2) que desapontou o jovem

Soacutecrates as ciecircncias naturais levava em consideraccedilatildeo as causas corpoacutereas a carne o

sangue os ossos a comida a bebida (Fed 96c7-9) sendo a explicaccedilatildeo portanto um

montante destes elementos Entretanto tal como buscava o filoacutesofo a investigaccedilatildeo

nestes termos natildeo dava conta de explicar as causas nas relaccedilotildees como nas relaccedilotildees

matemaacuteticas cujos elementos satildeo inteligiacuteveis A razatildeo que levava a unidade a constituir

o dois seja por fraccedilatildeo ou por adiccedilatildeo ou que a faz existir natildeo era do domiacutenio deste tipo

de investigaccedilatildeo (Fed 97a-b) Soacutecrates desejava um tipo de causa como escopo de todas

as coisas existentes obedecendo assim ao criteacuterio de universalidade que o discurso

filosoacutefico exige

149 Fed 96a8-10 ldquoQue interessante natildeo seraacute (pensava eu) conhecer as causas de cada coisa a razatildeo

por que cada uma surge por que cada uma desaparece ou existe (ὑπεξήθαλνο γάξ κνη ἐδόθεη εἶλαη

εἰδέλαη ηὰο αἰηίαο ἑθάζηνπ δηὰ ηί γίγλεηαη ἕθαζηνλ θαὶ δηὰ ηί ἀπόιιπηαηθαὶ δηὰ ηί ἔζηη)rdquo

206

De todo modo as leituras de Anaxaacutegoras mostraram a direccedilatildeo para a causa tal

como queria o filoacutesofo A partir da narrativa do encontro com a tese acerca da

inteligecircncia ordenadora ndash ldquoAiacute se afirmava que era o Espiacuterito o ordenador e causa de

todas as coisasrdquo (ἄξα λνῦο ἐζηηλ ὁ δηαθνζκῶλ ηε θαὶ πάλησλ αἴηηνο) (Fed 97c1-2)

tem-se indicada de maneira objetiva a construccedilatildeo das bases do discurso filosoacutefico as

quais apresentam o trabalho do pensamento em seu niacutevel mais alto e reorganizam nos

termos do discurso filosoacutefico todos os elementos anteriormente dados como

pertencentes ao domiacutenio inteligiacutevel A descriccedilatildeo da comparaccedilatildeo entre os dois meacutetodos

mostra a intenccedilatildeo de delimitar a forma e o meacutetodo investigativo ao modo da filosofia

Narrado segundo discernimento de Soacutecrates (θαηὰ λνῦλ ἐκαπηῷ Fed 97d7) o λνῦο

ordenador de todas as coisas de Anaxaacutegoras constituiacutea uma causa eficiente na qual

todos os elementos estavam ordenados da melhor maneira O melhor e o mais excelente

(ηὸ ἄξηζηνλ θαὶ ηὸ βέιηηζηνλ Fed 97d3) deveriam ser portanto os objetos de anaacutelise

de modo a se investigar a causa e a necessidade de serem enquanto tais e porque razatildeo

tal natureza eacute a melhor150

Estes dois pontos a serem investigados constituem a maneira da investigaccedilatildeo

filosoacutefica inquirir acerca da causa Causa necessidade e no que consiste a melhor

ordenaccedilatildeo satildeo os pontos que devem indicar uma tipo de causa (αἰηίαο εἶδνο Fed 98a2)

que conduziraacute a investigaccedilatildeo para o verdadeiro fundamento de todas as coisas Esse tipo

de causa descreve as causas particulares e a causa comum a tudo por meio da qual eacute

possiacutevel explanar acerca do melhor para cada uma e acerca do bem que as

fundamenta151

A ordenaccedilatildeo segundo a inteligecircncia (ὑπὸ λνῦ αὐηὰ θεθνζκζζαη Fed

98a7) eacute orientada em uacuteltima instacircncia vale adiantar pelo bem (ηὸ ἀγαζὸλ Fed 99c5)

que teraacute nas proacuteximas passagens sua posiccedilatildeo e funccedilatildeo elucidadas

O texto trabalha para oferecer uma relaccedilatildeo causal que tem em vista o seu

fundamento Essa distinccedilatildeo deve ser bem compreendida haacute a causa dos particulares

serem enquanto tais e um fundamento comum a todas elas o qual torna possiacutevel todas

150 Fed 97c4-6 97e3 ldquo() Porque se assim eacute (pensei) se eacute o Espiacuterito que ordena todas as coisas entotilde

por certo que as ordena e dispotildee da forma que for mais conveniente para cada uma delas () Assim

julgava eu por exemplo que me diria primeiramente se a Terra era redonda ou plana em seguida expor-

me-ia a causa e a necessidade de ela assim ser invocando razotildees de conveniecircncia e demonstrando que tal

ou tal natureza lhe era de fato a mais ajustada (εἰ ηνῦζ νὕησο ἔρεη ηόλ γε λνῦλ θνζκνῦληα πάληα

θνζκεῖλ θαὶ ἕθαζηνλ ηηζέλαη ηαύηῃ ὅπῃ ἂλ βέιηηζηα ἔρῃ () ἐπεθδηεγήζεζζαη ηὴλ αἰηίαλ θαὶ ηὴλ

ἀλάγθελ ιέγνληα ηὸ ἄκεηλνλ θαὶ ὅηη αὐηὴλ ἄκεηλνλ ἦλ ηνηαύηελ εἶλαη)rdquo

151 Fed 98b1-3 ldquoE pois uma vez que atribuiacutea tal causa a cada um dos seres e a todos em geral supus

que iria explicar-me onde reside o melhor para cada um deles e aquilo que eacute comumente bom para todos

- (ἑθάζηῳ νὖλ αὐηῶλ ἀπνδηδόληα ηὴλ αἰηίαλ θαὶ θνηλῆ πᾶζη ηὸ ἑθάζηῳ βέιηηζηνλ ᾤκελ θαὶ ηὸ θνηλὸλ

πᾶζηλ ἐπεθδηεγήζεζζαη ἀγαζόλ)rdquo

207

as relaccedilotildees causais a causa de todas as causas Importa realizar tal diferenciaccedilatildeo para

indicar o plano em que se deve pensar esta causa primordial e o tipo de relaccedilatildeo causal

da qual se pretende tratar A escolha de Soacutecrates estaacute fundamentada na escolha do

melhor ordenado pelo λνῦο O fato de o filoacutesofo aceitar a sua condenaccedilatildeo e se manter

encarcerado tem como causa portanto o melhor estabelecido segundo a inteligecircncia e

natildeo o aprisionamento do seu corpo (Fed 99a4-b6) A causa como quer o filoacutesofo diz

respeito em primeiro lugar a um tipo de relaccedilatildeo na qual se deve encontrar a razatildeo de

cada coisa ser tal como eacute a realidade da coisa em segundo lugar deve-se ter em vista o

que a relaccedilatildeo causal indica como fundamento A relaccedilatildeo e o reconhecimento do

fundamento vale notar tecircm a inteligecircncia como agente a qual como todas as outra

coisas tambeacutem tem como causa o bem ndash posiccedilatildeo em geral compreendida erroneamente

e para a qual o filoacutesofo atribuiraacute posiccedilatildeo loacutegica e sentido metafiacutesico (Fed 99b) 152

A narrativa do desapontamento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave tese de Anaxaacutegoras traz

as distinccedilotildees da noccedilatildeo de inteligecircncia (λνῦο) e do meacutetodo investigativo da filosofia

Como se viu a noccedilatildeo de αἰηία que pretende o meacutetodo de Soacutecrates tem em vista o

fundamento que orienta a inteligecircncia e pode assim remeter agrave verdade sobre a alma e

sobre a imortalidade Dada importacircncia da causa primordial as questotildees sobre a causa

dos conhecimentos das percepccedilotildees e do pensamento feitas anteriormente encontram

nessa base comum a sua resposta O bem como causa comum ganha atenccedilatildeo nos

proacuteximos passos da investigaccedilatildeo sendo exposto o teor de sua posiccedilatildeo e a sua

causalidade em relaccedilatildeo ao trabalho do intelecto Do mesmo modo a universalidade do

bem dada a sua condiccedilatildeo colabora para construir a noccedilatildeo de uma razatildeo ordenadora

proacutepria da natureza inteligiacutevel presente no bem nas realidades e em tudo o que eacute

derivado dele a qual a inteligecircncia humana deve perseguir atraveacutes da cadeia de relaccedilotildees

causais Eacute dado desse modo o caminho para o trabalho racional o qual deve ascender agrave

causa maior o bem e aos assuntos que compartilham da mesma realidade como a

imortalidade

152 Este parece ser o ponto em que Soacutecrates pretende diferenciar sua concepccedilatildeo de nous da de

Anaxaacutegoras Como explica Ferejohn o despontamento de Soacutecrates se deve agrave constataccedilatildeo de que ldquo()

havia apenas uma defesa vazia do nous (ao conter frequentes ocorrecircncias do termo) mas sem fazer uso

teoacuterico de fato deste conceito em nenhuma forma que Soacutecrates reconhecia a saber como repositoacuterio de

crenccedilas desejos etc () ao proceder assim negligenciasse as causas reais (tas hocircs alecircthos aitias 98e2-

5) de sua situaccedilatildeordquo Ferejohn opcit p 153

208

IV Atividade do puro pensamento

O texto oferece adiante mais detalhes da relaccedilatildeo que pretende estabelecer entre o

que filosoficamente pode ser dito ldquoo bemrdquo e ldquoo melhorrdquo Ao mesmo tempo em que natildeo

se perdeu de vista a necessidade de manter o ιόγνο filosoacutefico sob inspeccedilatildeo o diaacutelogo

expotildee de maneira franca os elementos com o quais o filoacutesofo deve trabalhar Nesse

sentido o bem e a capacidade da inteligecircncia recebem consideraccedilotildees acerca de sua

natureza inteligiacutevel as quais revelam outros importantes elementos que se referem ao

trabalho do pensamento a saber o meacutetodo dialeacutetico e a Teoria das Ideias Natildeo seria

exagero considerar serem os proacuteximos passos da investigaccedilatildeo uma mostra do

pensamento puro no qual a alma do filoacutesofo descreve o que supotildee ser a livre atuaccedilatildeo do

pensamento e ao mesmo tempo considera ser o mais alto grau de intelecccedilatildeo possiacutevel

A segunda navegaccedilatildeo153

tal como descreve o texto propotildee a passagem para um

tipo de investigaccedilatildeo e de ιόγνο a partir do qual se pode fazer algumas assertivas sobre a

natureza da alma e do pensamento Nesse contexto satildeo dados os elementos e as

operaccedilotildees do intelecto que constituem o trabalho da inteligecircncia no seu niacutevel mais alto

ou seja agraves cercanias de apreender o quanto possiacutevel do bem do belo e por

consequecircncia da imortalidade A partir das explicaccedilotildees seguintes a θξόλεζηο tem a

origem e a constituiccedilatildeo de sua excelecircncia revelada em termos operacionais na relaccedilatildeo

entre pensamento e ideias que se realiza no meacutetodo dialeacutetico Se no iniacutecio da

investigaccedilatildeo seu valor foi estabelecido nos termos da pureza e da mais alta moeda (Fed

69a) acessiacuteveis por meio do modo de vida orientado pela filosofia a argumentaccedilatildeo que

confere meacutetodo agrave atividade filosoacutefica oferece a explicaccedilatildeo desta depuraccedilatildeo e origem da

atribuiccedilatildeo de valoraccedilatildeo ao apontar sua a verdadeira base Dito de outro modo o que

vem a seguir mostra de que maneira e por quais meios se datildeo o contato entre alma e a

realidade inteligiacutevel estado descrito anteriormente (Fed 79d) como fonte do proacuteprio

proacuteprio pensar em seu modo mais autecircntico

153 Fed 99d1 ldquotive de tentar uma segunda via para lanccedilar na sua busca( ηὸλ δεύηεξνλ πινῦλ ἐπὶ ηὴλ

ηο αἰηίαο δήηεζηλ)

209

41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa

Conveacutem examinar o bem tal como apresenta o Feacutedon Em primeiro lugar deve-

se observar a sua posiccedilatildeo de verdadeira causa Tal como mostrou o argumento sobre a

αἰηία o bem na condiccedilatildeo de causa de tudo subjaz a todas accedilotildees do filoacutesofo e relaccedilotildees

que se pode estabelecer A noccedilatildeo de causa que estaacute em questatildeo em um primeiro

momento deve-se observar eacute a teleoloacutegica dado que oferece uma explicaccedilatildeo das accedilotildees

objetivos e intenccedilotildees do filoacutesofo No entanto ao propor uma explicaccedilatildeo sobre a

aquisiccedilatildeo destes objetivos e do modo de proceder por meio do meacutetodo o que

denominou de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo a noccedilatildeo de causa se refere agrave possibilidade de

acessar as causas reais154

Em outros termos a causa como entenderaacute o filoacutesofo

repousaraacute sobre aquilo que pode em certa medida oferecer a verdadeira causa sendo

dada assim a pertinecircncia de averiguar acerca da primazia da racionalidade que por

meio de suas operaccedilotildees realizadas de forma adequada e correta pode escolher aquilo

que em certa medida corresponde ao bem ou seja escolher o melhor (Fed 99a9b1)

Vale analisar esta correspondecircncia e verificar as incursotildees do pensamento em

torno desta causa primordial O melhor (βέιηηζηνο) eacute dado como o poder de dispor da

melhor maneira as coisas ou dito de outro modo a causa de estarem dispostas tais

como estatildeo ndash ldquoMas esse porder graccedilas ao qual tais coisas se encontram dispostas da

forma mais conveniente (νἷόλ ηε βέιηηζηα αὐηὰ ηεζλαη δύλακηλ νὕησ λῦλ θεῖζζαη)rdquo

(Fed 99c1) A relaccedilatildeo desta disposiccedilatildeo cabe compreender eacute a melhor porque constitui

a ligaccedilatildeo que o bem faz entre todas as coisas - ldquo() sem pensarem que eacute o bem o

verdadeiro elo que liga entre si todas as coisas e as suporta (θαὶ ὡο ἀιεζῶο ηὸ ἀγαζὸλ

θαὶ δένλ ζπλδεῖλ θαὶ ζπλέρεηλ νὐδὲλ νἴνληαη (Fed 99c5)rdquo155

Interessa ao filoacutesofo

154 Os dois sentidos em que Soacutecrates parece compreender a αἰηία para os quais se pretende chamar

atenccedilatildeo aqui satildeo os mesmos que Ferejohn apontam ldquoSoacutecrates estaacute exprimindo uma preferecircncia clara e

categoacuterica pelas explicaccedilotildees ldquoteleoloacutegicasrdquo (a ldquocausa finalrdquo aristoteacutelica) em termos objetivos intenccedilotildees

e similares contra as que fazem referecircncia somente agraves causas ldquoeficientesrdquo (a ldquocausa motorardquo de

Aristoacuteteles Neste ponto todavia o relato de Soacutecrates daacute uma guinada surpreendente Em 99c6-d1 ele

declara abruptamente que se deu conta em um certo momento que suas explicaccedilotildees teleoloacutegicas

preferidas estavem indisponiacuteveis e que portanto se tornou necessaacuterio para ele dar iniacutecio ao que chama

de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo uma busca por um modo de explicaccedilatildeo ldquosucedacircneordquo que pelo menos esteja ao

seu alcancerdquo Ferejohn op cit p 153 Essa busca estaraacute baseada nas ideias e seraacute considerada por conta

disso uma causa segura a qual o filoacutesofo tanto no Feacutedon quanto no livro VI d‟A Repuacuteblica pretender

conhecer

155 Esta mesma caracteriacutestica do bem eacute dada n‟A Repuacuteblica nos termos da benignidade do bem traccedilo

presente nas coisas que derivam dele apreensiacutevel pelo intelecto Note-se que eacute fundamental para o

trabalho do intelecto essa presenccedila a qual serve de condutor causal que pode levar ao conhecimento

causa primordial

210

desse modo apreender (99c6) essa atuaccedilatildeo do bem como causa a partir desta ordenaccedilatildeo

que dispotildee os astros da melhor maneira o que natildeo se verificou no discurso que

pretendia uma ciecircncia da natureza O desapontamento de Soacutecrates se explica em parte

pela concepccedilatildeo equivocada aos olhos do filoacutesofo evidentemente por natildeo compreender

esta relaccedilatildeo entre o bem o melhor e a inteligecircncia Natildeo parece possiacutevel uma

compreensatildeo correta acerca do λνῦο sem considerar a correspondecircncia entre o melhor e

o bem Em outros termos natildeo haacute uma verdadeira compreensatildeo da natureza e da funccedilatildeo

da inteligecircncia sem ter tal compreensatildeo acerca desta concepccedilatildeo de melhor e do papel do

bem O λνῦο tal como quer Soacutecrates natildeo eacute a causa da ordenaccedilatildeo mas eacute o agente

cognitivo para apreender tal ordenaccedilatildeo e averiguar na medida do possiacutevel o bem como

a verdadeira causa

Vale verificar tal corespondecircncia entre βέιηηζηνο e ἀγαζόο

ldquo() Depois disso uma vez desiludido da observaccedilatildeo dos seres

achei por bem acautelar-me natildeo viesse a acontecer-me a mim o

mesmo que agravequeles que contemplam e observam o Sol em momentos

de eclipse eacute sabido que alguns chegam a perder de vista se natildeo for

atraveacutes da aacutegua ou de qualquer outro meio que mirem a sua imagem

(ζθνπῶληαη ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ) E com pensamentos mais ou menos

deste teor receei ficar irremediavelmente cego de espiacuterito caso

persistisse em fixar os olhos nas coisas em tentar tocar-lhes

diretamente com os meus cinco sentidos (ηῶλ αἰζζήζεσλ) Pensei

entatildeo que o melhor que tinha a fazer era refugiar-me do lado das

ideias e atraveacutes delas inquirir da verdade dos seres (ἔδνμε δή κνη

ρξλαη εἰο ηνὺο ιόγνπο θαηαθπγόληα ἐλ ἐθείλνηο ζθνπεῖλ ηῶλ ὄλησλ

ηὴλ ἀιήζεηαλ) Aliaacutes talvez num aspecto o paralelo natildeo seja exato

pois natildeo eacute quanto a mim ponto resolvido que o estudo dos seres por

meio das suas manifestaccedilotildees externas se revele menos do que as

ideias um estudo agrave base de imagens (ἴζσο κὲλ νὖλ ᾧ εἰθάδσ ηξόπνλ

ηηλὰ νὐθ ἔνηθελ νὐ γὰξ πάλπ ζπγρσξῶ ηὸλ ἐλ [ηνῖο] ιόγνηο

ζθνπνύκελνλ ηὰ ὄληα ἐλ εἰθόζη κᾶιινλ ζθνπεῖλ ἢ ηὸλ ἐλ [ηνῖο]

ἔξγνηο) Seja como for o certo eacute que me lancei por essa via E assim

partindo em cada caso do pressuposto que julgo ser mais seguro tudo

o que se me afigura em concordacircncia com ele tomo por verdadeiro

quer no tocante agraves causas que a qualquer outro aspecto e caso

contraacuterio natildeo o aceito como tal (ἃ κὲλ ἄλ κνη δνθῆ ηνύηῳ ζπκθσλεῖλ

ηίζεκη ὡο ἀιεζ ὄληα θαὶ πεξὶ αἰηίαο θαὶ πεξὶ ηῶλ ἄιισλ ἁπάλησλ

[ὄλησλ] ἃ δ ἂλ κή ὡο νὐθ ἀιεζ) Poreacutem quero explicar-me mais

claramente pois acho que agora natildeo estaacute entendendo- merdquo (Fed

99d4-100a8)

Esta passagem na qual se argumenta sobre a impossibilidade de contemplar

diretamente o bem revela-se de grande importacircncia por propor o alcance do

pensamento A comeccedilar pela metaacutefora da visatildeo em relaccedilatildeo agrave luminosidade do Sol vecirc-se

211

sugeridas as limitaccedilotildees de apreender o bem sendo necessaacuterio usar por conta disso um

recurso teoreacutetico para as tratativas acerca dele Dito de outro modo estatildeo em questatildeo os

instrumentos por meio dos quais o pensamento pode atingir a ideia do bem os quais se

mostram insuficientes para abarcaacute-lo Seja por via das imagens seja pelas ideias esse

uacuteltimo o meio escolhido pelo filoacutesofo a superioridade do bem exige o esforccedilo de

elaborar meios de acessaacute-lo em alguma medida o que demonstra ser a averiguaccedilatildeo

constante do discurso como se tem feito uma praacutetica concordante com a condiccedilatildeo do

pensar em relaccedilatildeo agrave maioridade de tal objeto Nesse sentido os ιόγνηο que se pode dar

consistem em verdade em dizer dos objetos o que realmente satildeo o que no que se refere

ao bem requer o uso da alta inteligecircncia do filoacutesofo Todavia natildeo se trata de definir no

que consiste o bem ou outros objetos mas antes fazer uma afirmaccedilatildeo acerca deles a

partir da qual se daacute iniacutecio o exerciacutecio dialeacutetico O ldquorefugiar-se no ιόγνοrdquo que o filoacutesofo

propotildee deve ser entendido muito mais como reservar-se ao exerciacutecio do meacutetodo

hipoteacutetico do que oferecer um discurso que apresente uma riacutegida definiccedilatildeo156

Os recursos mobilizados para prosseguir a investigaccedilatildeo constituem deve-se

notar a atividade intelectual no seu limite dentro do qual o filoacutesofo conscientemente se

exercita Natildeo se pretende alcanccedilar o bem em sua totalidade da mesma forma que natildeo eacute

possiacutevel como se sabe ter certeza acerca da imortalidade Entretanto este trabalho do

pensamento sabidamente limitado pretende argumentar a favor do que considera ser

razoaacutevel acreditar e carece para tanto de elaborar o meacutetodo correto e de discernir

acerca dos elementos que conduzem agraves noccedilotildees que daratildeo indicaccedilotildees mais confiaacuteveis

sobre a imortalidade

42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese

O meacutetodo eacute enunciado sem rodeios Cotejar cada argumentaccedilatildeo (ἑθάζηνηε

ιόγνλ) com a hipoacutetese que parece ser a mais segura (ἐξξσκελέζηαηνλ) de modo a

156 Chen apresenta uma explicaccedilatildeo condizente com esta argumentaccedilatildeo ldquoιόγνηο usado aqui satildeo

afirmaccedilotildees ou proposiccedilotildees cujo objetivo visa nos informar sobre o que seus referentes realmente satildeo

Eles somente os refletem A este respeito eacute tambeacutem um estudo-imagem como vendo nos objetos

sensiacuteveis na busca pelo verdadeiro conhecimento do que eles realmente satildeo ()rdquo Mas em nota ele

termina por explica ldquoEstes ιόγνηο satildeo usados como premissas para dar uma soluccedilatildeo hipoteacutetica de algum

problemardquo Chen opcit p 30

212

verificar entre elas uma concordacircncia (ζπκθσλέσ) Caso haja a concordacircncia o ιόγνο

deve ser considerado verdadeiro se ao contraacuterio forem discordantes eacute falso Conveacutem

observar os elementos que estatildeo postos no meacutetodo 1ordm) a hipoacutetese como ponto de partida

para a verificaccedilatildeo das teses e validaccedilatildeo do ιόγνο 2ordm) a verdade assume um caraacuteter

formal para validaccedilatildeo do argumento sendo definida nesse instante pode-se apreender

como o ajuste entre o ιόγνο defendido e hipoacutetese proposta O caraacuteter do meacutetodo

filosoacutefico se torna devidamente definido todavia com a especificaccedilatildeo dos elementos

com os quais trabalha Para compreender o teor dessa operaccedilatildeo aparentemente

complexa eacute necessaacuterio tomar a hipoacutetese e fazer o discurso na perspectiva da

inteligibilidade Neste caso eacute necessaacuterio abordar as causas e a causa de tudo no seu

aspecto inteligiacutevel O bem o belo e a grandeza seratildeo analisados em sua natureza157

para

que uma vez aceita a existecircncia destes seja possiacutevel a partir deles argumentar acerca da

imortalidade ou dito de outro modo apresentar a causa de a alma ser imortal

Em uacuteltimas circunstacircncias o meacutetodo pretende verificar as razotildees para apostar

na imortalidade tomando os objetos de anaacutelise a partir do seu aspecto inteligiacutevel ditos

por si mesmos (αὐηὸ θαζ αὑηὸ) como hipoacutetese A investigaccedilatildeo encontra no ιόγνο um

recurso para descrever e apreender as relaccedilotildees inteligiacuteveis ou seja as quais indicam a

relaccedilatildeo entre ideia e particular158

Nesse sentido as premissas lanccediladas no discurso e

avaliadas no exerciacutecio de investigaccedilatildeo segundo o meacutetodo filosoacutefico devem buscar

apresentar a ideia em causa a qual uma vez encontrada nos termos de uma hipoacutetese

uacuteltima serve como paracircmetro a partir do qual se verifica qual dentre as relaccedilotildees

estabelecidas no ιόγνο se mostra afim com ela

Conveacutem prosseguir desse modo na investigaccedilatildeo da causa primeira e a sua

relaccedilatildeo com as demais causas Diz o texto o que existe aleacutem do proacuteprio belo ou seja

coisas consideradas belas satildeo como satildeo por participarem do belo Eacute nesta relaccedilatildeo de

157 Fed 100b5-8 ldquo() tomando por pressuposto a realidade de um Belo que existe em si e por si

mesmo de um Bem de um Grande e assim por diante Se neste ponto me daacutes razatildeo e aceitas a existecircncia

de coisas como estas espero bem a partir delas explicar-te qual seja essa causa e descobrir o que faz

com que a alma seja essa causa e descobrir o que faz com que a alma seja imortal ndash (ὑπνζέκελνο εἶλαί ηη

θαιὸλ αὐηὸ θαζ αὑηὸ θαὶ ἀγαζὸλ θαὶ κέγα θαὶ ηἆιια πάληα () ἐιπίδσ ζνη ἐθ ηνύησλ ηὴλ αἰηίαλ

ἐπηδείμεηλ θαὶ ἀλεπξήζεηλ ὡο ἀζάλαηνλ [ἡ] ςπρή)rdquo

158 Conveacutem emprestar as palavras de Matthews para explicar o sentido que a hipoacutetese assume no

argumento rdquo() elas satildeo proposiccedilotildees envolvendo uma referecircncia agraves formas em questatildeo satildeo consistentes

com a hipoacutetese de que estas formas existem e a negaccedilatildeo delas [formas] seriam inconsistentes com estas

hipoacutetesesrdquo Matthews G Plato ndash Epistemology and Related Logical Problems Faber and Faber London

1972p 33

213

participaccedilatildeo que se daacute a causalidade do belo159

Segundo a teoria da participaccedilatildeo

(κεηέμηο) as coisas se tornam belas pela presenccedila (παξνπζία Fed 100d5) ou pela

comunhatildeo (θνηλσλία Fed 100d6) com o proacuteprio Belo causa das coisas que satildeo belas

(Fed 100d) Do mesmo modo o que possui a qualidade de grande tem como causa a

sua relaccedilatildeo com a grandeza (ηὸ κέγεζνο) e o que eacute pequeno adquire a caracteriacutestica

porque se relaciona com a pequenez (Fed 101a-b3)

Participar do bem ou do belo confere agravequele que participa caracteriacutesticas

distintivas da ideia da qual participa X1 participa de X adquirindo caracteriacutesticas

exclusivas agrave X que as distinguem e a definem como tal A beleza do cavalo ocorre

porque participa da ideia do belo Sem a participaccedilatildeo no belo a beleza do cavalo natildeo

ocorreria A dependecircncia ontoloacutegica dos particulares em relaccedilatildeo agraves ideias se apresenta

nos termos da participaccedilatildeo como a causa do que existe no domiacuteno sensiacutevel Sendo

assim a causa da beleza eacute a ideia do belo No caso de relaccedilotildees da matemaacutetica natildeo se

trata de recorrer a uma causalidade na qual se tem como base a extensatildeo a quantidade

ou a somatoacuteria Em verdade tais relaccedilotildees consistem na participaccedilatildeo do termo na

unidade (κνλάδνο) ou na dualidade (δπάδνο) do um e do dois dadas aqui como a

essecircncia de cada termo uma realidade especiacutefica- (κεηαζρὸλ ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ

Fed101c3) O que parece estar em questatildeo com o exemplo dos nuacutemeros eacute a relaccedilatildeo

inteligente entre termos inteligiacuteveis que subjaz agraves operaccedilotildees matemaacuteticas Por tornarem

existentes a soma e a subtraccedilatildeo relaccedilotildees da onde advecircm o dez e o oito por exemplo

deve ser considerada a verdadeira causa160

O tipo de causa que o filoacutesofo pretende mostrar consiste na causa inteligiacutevel

cujo gecircnero eacute afim com a natureza da alma161

Desse modo os elementos reais que

constituem a causa e como tais fundamentam uma relaccedilatildeo causal tecircm o viacutenculo entre

universais e particulares desvelado na participaccedilatildeo recurso por meio do qual se explica

159 Fed 100c4 ldquose alguma coisa existe aleacutem do Belo em si a uacutenica e exclusiva razatildeo de assim ser eacute o

fato de participar desse mesmo Belo E assim falo de todos os casos semelhantes (εἴ ηί ἐζηηλ ἄιιν θαιὸλ

πιὴλ αὐηὸ ηὸ θαιόλ νὐδὲ δη ἓλ ἄιιν θαιὸλ εἶλαη ἢ δηόηη κεηέρεη ἐθείλνπ ηνῦ θαινῦ θαὶ πάληα δὴ νὕησο

ιέγσ ηῆ ηνηᾷδε αἰηίᾳ ζπγρσξεῖο)rdquo Fed 100d7-8 ldquoNatildeo eacute aliaacutes nisso que faccedilo propriamente questatildeo

mas sim em que eacute graccedilas ao Belo que todas as coisas belas satildeo belas (ἀιι ὅηη ηῷ θαιῷ πάληα ηὰ θαιὰ

[γίγλεηαη] θαιά ηνῦην γάξ κνη δνθεῖ ἀζθαιέζηαηνλ εἶλαη)rdquo

160 Vlastos Natildeo parece ser do interesse de Platatildeo especificar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Reconhecer uma

ligaccedilatildeo entre os dois domiacutenios e mostrar a superioridade ontoloacutegica das formas provavelmente eacute o

bastante para propor o meacutetodo hipoteacutetico Vlastos G ldquoReasons and Causes in the Phaedordquoin op cit p

142

161 Fed 100b3 ldquo() vou entatildeo tentar explicar-te a espeacutecie de causa a que me tenho aplicado (ἔξρνκαη

[γὰξ] δὴ ἐπηρεηξῶλ ζνη ἐπηδείμαζζαη ηο αἰηίαο ηὸ εἶδνο ὃ πεπξαγκάηεπκαη)rdquo

214

a ligaccedilatildeo do sensiacutevel com o inteligiacutevel e no contexto do diaacutelogo serve aos propoacutesitos de

conduzir a investigaccedilatildeo de modo a reconhecer os objetos do intelecto as ideias162

43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento

Dada solidez das hipoacuteteses ponto de partida para a ascensatildeo do pensamento na

apreensatildeo das verdadeiras causas o meacutetodo toma sua forma

ldquo() E para o caso do teu interlocutor se apoiar na hipoacutetese em

si mesma pois bem despachaacute-lo ias sem resposta ateacute verificares se

as consequecircncias dela decorrentes estatildeo entre si em concordacircncia ou

discordacircncia (ζπκθσλεῖ ἢ δηαθσλεῖ) Por outro lado quando fosse

necessaacuterio justificar essa mesma hipoacutetese (ἐπεηδὴ δὲ ἐθείλεο αὐηο

δένη ζε δηδόλαη ιόγνλ) faacute-lo-ias recorrendo a uma hipoacutetese mais

acima que de entre as de igual niacutevel se te afigurasse mais adequada

ateacute chegares a alguma coisa de satisfatoacuterio (ὡζαύησο ἂλ δηδνίεο

ἄιιελ αὖ ὑπόζεζηλ ὑπνζέκελνο ἥηηο ηῶλ ἄλσζελ βειηίζηε θαίλνηην

ἕσο ἐπί ηη ἱθαλὸλ ἔιζνηο) ()rdquo (Fed 101d1- e1)

O meacutetodo hipoteacutetico ou dialeacutetico constitui-se da superaccedilatildeo das premissas ateacute

que se chegue a uma premissa superior que resista a esta eliminaccedilatildeo e se mostre a mais

segura e portanto verdadeira O procedimento de superaccedilatildeo se daacute atraveacutes da anaacutelise e

demonstraccedilatildeo constante dos resultados das hipoacuteteses dadas revelando-as como

suficientes ou natildeo Neste processo de ascensatildeo de uma hipoacutetese a outra superior

consiste no meacutetodo filosoacutefico (Fed 102a1) o qual pretende discernir diferentemente de

como procedem os ἀληηινγηθνὶ princiacutepio e consequecircncias para que se chegue a uma

apreensatildeo dos seres163

A noccedilatildeo de causalidade se torna mais esclarecida com a

explicaccedilatildeo desse meacutetodo dado que o movimento ascendente se daraacute na direccedilatildeo da causa

162 Vlastos comenta o papel da participaccedilatildeo dizendo ldquo() Participaccedilatildeo aqui designa o uacutenico caminho da

relaccedilatildeo ontoloacutegica de dependecircncia entre coisas temporais e as Formas eternas as quais satildeo princiacutepios

fundamentais para a filosofiardquo Vlastos ldquoReasons and Causesrdquo op cit p 141

163 Fed 101e1-3 ldquoEntretanto abster-se-ias de misturar como eacute haacutebito dos controversistas a anaacutelise

dos princiacutepios loacutegicos e a das suas implicaccedilotildees - isto no caso de pretenderes chegar efetivamente a algo

de positivo sobre os seres (ἅκα δὲ νὐθ ἂλ θύξνην ὥζπεξ νἱ ἀληηινγηθνὶ πεξί ηε ηο ἀξρο δηαιεγόκελνο

θαὶ ηῶλ ἐμ ἐθείλεο ὡξκεκέλσλ εἴπεξ βνύινηό ηη ηῶλ ὄλησλ εὑξεῖλ)rdquo

215

a qual se mostraraacute segura por se mostrar indubitaacutevel Dito de outro modo o exerciacutecio de

buscar as causas encontra na dialeacutetica um meacutetodo mais preciso pois ao ter em vista a

apreensatildeo do ser seja nas coisas determinadas seja nas ideias pode chegar a apreensatildeo

daquela que constitui a causa primordial Tal tarefa se torna factiacutevel pela dialeacutetica

porque os objetos com os quais se daacute o exerciacutecio de superaccedilatildeo das hipoacuteteses satildeo da

ordem do inteligiacutevel

Neste sentido cabe precisar o entendimento acerca dos inteligiacuteveis agora dados

como forma (εἶδνο) ou ideia (ἰδέα) As formas satildeo por si mesmas e satildeo a causa do que

delas participam O que tem participaccedilatildeo nas formas recebe dela nome e a caracteriacutestica

que a identifica (Fed 102b1-3) A forma tem sua identidade distinta e preservada natildeo

sendo compatiacutevel portanto com o que lhe eacute oposto tal como o frio natildeo pode participar

do quente nem a grandeza da pequenez (Fed 102e6-103a1) Dada a perspectiva da

inteligibilidade em que se tomam os termos agora em questatildeo o oposto tido como uma

forma (αὐηὸ ηὸ ἐλαληίνλ Fed 103b4) aparece como causa da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo dada

anteriormente

Assim na condiccedilatildeo de εἶδνο da mesma maneira natildeo pode aceitar algo oposto a

ele mesmo (Fed 103b1-c1) O texto potildee em operaccedilatildeo o princiacutepio de identidade e de natildeo

contradiccedilatildeo que acompanha a ideia de forma

ldquoVerifica-se pois em certo nuacutemero de casos como esses que natildeo

soacute a Forma em si mesma conserva para todo o sempre o nome a que

tem direito mas o mesmo acontece com qualquer outra realidade que

embora natildeo se identifique com ela possui sempre enquanto existir o

caraacuteter dessa Forma()rdquo (ὥζηε κὴ κόλνλ αὐηὸ ηὸ εἶδνο ἀμηνῦζζαη

ηνῦ αὑηνῦ ὀλόκαηνο εἰο ηὸλ ἀεὶ ρξόλνλ ἀιιὰ θαὶ ἄιιν ηη ὃ ἔζηη κὲλ

νὐθ ἐθεῖλν ἔρεη δὲ ηὴλ ἐθείλνπ κνξθὴλ ἀεί ὅηαλπεξ ᾖ Fed 103e2-5)

A forma tal como oferece o texto refere-se a uma unidade idecircntica a si mesma

que tecircm expostas nesse argumento as qualidades que a determinam164

Nessa passagem

164 Vale fazer uso das palavras de White para precisar o aspecto essencialista que a ideia apresenta e para

o qual se chama atenccedilatildeo aqui ldquoPor bdquo‟essencialismo ou bdquodoutrina das essecircncias‟ neste artigo quero dizer a

perspectiva sobre algum dado particular X tem qua particular alguma propriedade ou propriedades F

tal que X natildeo pode ser natildeo foi ou natildeo continua a ser sem ter F nem poderia continuar a ser X se

adquiriu o Oposto-F Por bdquoqua particular‟ quer dizer que X tem F natildeo sobre esta ou aquela descriccedilatildeo

216

vecirc-se que sua identidade estaacute de acordo com o gecircnero inteligiacutevel ou seja possui como

os seres inteligiacuteveis invisibilidade imutabilidade e imperecibilidade mas acrescenta-se

a isso um ἴδηνο que o determina como tal conferindo agrave forma caraacuteter especiacutefico

O trecircs o cinco natildeo satildeo idecircnticos agrave forma do iacutempar165

no entanto satildeo nuacutemeros

iacutempares por participarem de sua identidade (Fed 104a5-4)166

Embora natildeo haja

oposiccedilatildeo entre os nuacutemeros por participarem da forma iacutempar o trecircs e o cinco satildeo

nuacutemeros opostos aos nuacutemeros pares dado que a forma par eacute oposta agrave forma iacutempar da

qual esses nuacutemeros participam (Fed 104b6-10) Pode-se apreender a relaccedilatildeo entre as

ideias tal qual o argumento sugere atraveacutes dos elementos partiacutecipes das formas a partir

dos quais se verificaraacute se satildeo de caraacuteter opostos ou natildeo ao relacionarem uns aos outros

Esses a exemplo dos nuacutemeros iacutempares e dos nuacutemeros pares satildeo opostos por

participaccedilatildeo porque tomam a forma (κνξθή Fed 104d10) e em certa medida a

identidade da ideia na qual tecircm participaccedilatildeo O nuacutemero trecircs participa da ideia do trecircs e

do iacutempar assume portanto a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que acompanham tais ideias ndash ldquoNatildeo

haacute duacutevidas certamente que tudo aquilo que a Forma do trecircs ocupa natildeo apenas teraacute de

ser trecircs como iacutempar (νἶζζα γὰξ δήπνπ ὅηη ἃ ἂλ ἡ ηῶλ ηξηῶλ ἰδέα θαηάζρῃ ἀλάγθε

αὐηνῖο νὐ κόλνλ ηξηζὶλ εἶλαη ἀιιὰ θαὶ πεξηηηνῖο)rdquo (Fed 104d5) A ideia e seu partiacutecipe

trazem (ἐπηθέξσ) suas caracteriacutesticas e com elas a oposiccedilatildeo a outras ideias

Cabe aqui alguns esclarecimentos sobre a diferenccedila entre forma (κνξθή) e ideia

e a consequente distinccedilatildeo entre ideia e seus participantes O diaacutelogo parece sugerir

desde o iniacutecio da argumentaccedilatildeo acerca da Teoria a noccedilatildeo de εἶδνο e ἰδέα como

equivalentes a uma essecircncia especiacutefica (ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ 101c3)

correspondente a cada coisa que existe O que existe ou seja algo em particular como

o nuacutemero cinco encontra o seu correspondente inteligiacutevel na ideia de cinco e de iacutempar

mas independente de todas as descriccedilotildeesrdquo White F C ldquoThe Phaedo and The Republic V on The

Essencesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 98 1978 p 142 nota 3

165 Fed 104b1 ldquoconquanto nenhum deles se identifique individualmente com o Iacutempar nem por isso

deixam de ser por natureza iacutemparesrdquo (ὅπεξ ηὸ πεξηηηὸλ ἀεὶ ἕθαζηνο αὐηῶλ ἐζηη πεξηηηόο)

166 Ver Em nota Azevedo chama tenccedilatildeo para a questatildeo dizendo ldquoPelos exemplos do fogo da neve e do

trecircs (que deveraacute entender-se como nuacutemero e natildeo como conjunto de objetos da realidade sensiacutevel) Platatildeo

sugere aqui que as coisas em si natildeo satildeo opostas mas sim os caracteres (morphai) que nelas operam

Este pormenor relaciona-se provavelmente com uma tendecircncia visiacutevel nos diaacutelogos para privilegiar

como Formas as qualidades (opostos) e raramente substacircnciasrdquo Este comentaacuterio ajuda a pontuar um

dado e uma dificuldade que os diaacutelogos apresentam ao abordar as formas e seus aspectos Ao que sugere

o exemplo da igualdade no Feacutedon e ldquodos dedosrdquo no livro VII tanto a quididade a substacircncia como cita a

tradutora quanto as qualidades que a forma abarca e as que lhe satildeo opostas satildeo apreensiacuteveis pela forma

Os nuacutemeros e as relaccedilotildees de semelhanccedila-dessemelhanccedila ou grandeza-pequenez deixam mais aparente

esse duplo uso do termo N‟A Repuacuteblica Platatildeo parece ter deixado claro esta caracteriacutestica ao dizer ldquoMas

de outro lado disse essa propriedade caracteriza muito bem a visatildeo que temos da unidade pois vemos a

mesma coisa como una e como multiplicidade infinitardquo Azevedo M T S in Platatildeo op cit p 139 nota

87

217

sendo explicada a sua existecircncia e as suas caracteriacutesticas pela participaccedilatildeo nestas ideias

Natildeo se deve pensar portanto que a ideia tal como apresenta a Teoria proponha

necessariamente um conjunto de qualidades ndash aleacutem da imparidade nos nuacutemeros iacutempares

e do belo nas coisas consideradas dotadas de beleza- pois isso aparece de modo mais

contundente nos partiacutecipes das formas O que parece estar proposto eacute justamente a

recusa de certas relaccedilotildees que poriam em risco a identidade da forma ndash a neve quente

por exemplo - como a de contrariedade

Ainda que o texto sinalize para a compreensatildeo da ideia como um conjunto a

intenccedilatildeo de oferececirc-la como um ἴδηνο parece prevalecer na discussatildeo natildeo sendo

pertinente destacar as consequecircncias de outras relaccedilotildees aleacutem da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo O

que pode parecer um dado de conteuacutedo (ἐπηθέξσ) expressa a persistecircncia da forma

(εἶδνο) em preservar a sua identidade sendo a ideia de oposiccedilatildeo nesse sentido bastante

pertinente para salientar tal preservaccedilatildeo como caracteriacutestica cara ao que eacute inteligiacutevel

ldquo() dizemos que soacute uma forma oposta recusa aceitar a que lhe

eacute oposta mas que tambeacutem outra coisa que contenha em si um

determinado oposto qualquer que seja o objeto em que se manifeste ndash

tambeacutem ela jamais aceitaraacute em tais circunstacircncias o caraacuteter

contraacuterio daquele que conteacutem ()rdquo (Fed 105a2-6)

O diaacutelogo assume vale notar uma postura bastante praacutetica em relaccedilatildeo ao seu

objetivo Ao argumento importa definir o que se tem preservado na ideia e como se daacute

tal preservaccedilatildeo nas relaccedilotildees que se pode fazer com o discurso para propor uma prova

final acerca da imortalidade da alma Os princiacutepios postos aqui se mostram uacuteteis para a

investigaccedilatildeo ao oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da relaccedilatildeo entre as coisas que tomam

parte na inteligibilidade A tentativa de precisar no que consiste uma relaccedilatildeo de κεηέμηο

antes referida como presenccedila ou comunhatildeo mostra o caminho cognitivo para a

verificaccedilatildeo de uma tese acerca do post mortem no qual se faz necessaacuterio ter claro o

procedimento e a natureza dos objetos a serem conhecidos Tem-se na dialeacutetica deve-

se- reconhecer um procedimento de autoinspeccedilatildeo da razatildeo que valida a sua atividade e

os seus resultados conferindo veracidade agraves teses defendidas dentro dos ditames do

meacutetodo Como meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica a dialeacutetica representa uma maneira

estritamente racional ou seja que natildeo recorre a qualquer recurso da sensibilidade para

conduzir uma investigaccedilatildeo o que constitui uma maneira conveniente dado que se tem

em questatildeo a possiacutevel atividade da alma totalmente apartada do corpo Ele consiste na

forma de operar pelo pensamento de modo a ultrapassar a particularidade do plano

218

sensiacutevel em vista da inteligibilidade do domiacutenio das essecircncias seus verdadeiros objetos

tendo nestes termos ao final o conhecimento acerca do que investiga

Assim natildeo se deve supor que o diaacutelogo ao abordar o meacutetodo hipoteacutetico tenha

abandonado os objetivos que se referem agrave apreensatildeo das ideias e agrave aquisiccedilatildeo do

conhecimento dadas anteriormente Nesse registro do trabalho intelectual sob forma

dialeacutetica o que se tem em foco diz respeito a um procedimento racional consistente para

se obter uma defesa igualmente consistente e digna de confianccedila sobre a imortalidade e

sobre aquele que se mostrou o uacutenico meio para esta investigaccedilatildeo o pensamento A

mudanccedila de abordagem do tema da θξόλεζηο ao longo do diaacutelogo cabe notar mostra a

aceitaccedilatildeo de seu valor dado no iniacutecio da investigaccedilatildeo e o aprofundamento das questotildees

que envolvem o pensar mais precisamente meacutetodo e objeto especiacutefico os quais satildeo

tratados de forma conclusiva nesses uacuteltimos argumentos

Ao elucidar o trabalho do pensamento segundo o meacutetodo tem-se uma

explicaccedilatildeo acerca do filosofar como exerciacutecio racional diante das limitaccedilotildees da

condiccedilatildeo de humanidade jaacute referidos anteriormente na defesa do pensar como via para

se chegar mais proacuteximo do conhecimento em detrimento dos sentidos (Fed 65e1) As

vantagens das tratativas deste meacutetodo estatildeo em reconstituir de forma operacional a

relaccedilatildeo com os objetos inteligiacuteveis que se tem na filosofia demonstrando assim o

alcance do pensamento e oferecendo a possibilidade de fazer suposiccedilotildees sobre a

imortalidade O filoacutesofo encontra neste tipo de exerciacutecio os pilares que justificam a

postura de cuidado da alma (ἐπηκέιεηα Fed 107c2) que se realiza com a postura e

exerciacutecio filosoacutefico modo legiacutetimo de adquirir alguma excelecircncia e inteligecircncia

(βειηίζηελ ηε θαὶ θξνληκσηάηελ γελέζζαη Fed 107d1)

Nesta direccedilatildeo na qual se encontrou um meacutetodo de validaccedilatildeo de um argumento

filosoacutefico a prova da imortalidade da alma consiste na prova da validade do pensar e de

tudo o que anteriormente foi dito acerca do gecircnero da funccedilatildeo e do valor atribuiacutedo ao

alto pensamento Diante das conclusotildees acerca pode-se ter alguma confianccedila sobre o

destino apoacutes a morte e as especulaccedilotildees sobre os temas que excedem o tempo da vida

humana como a morte a partir do meacutetodo com o qual se deve inquirir sobre a

imortalidade A prova se daacute a partir das prerrogativas da dialeacutetica e para tanto parte-se

do aspecto inteligiacutevel da questatildeo ou seja da forma vida e da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que os seres vivos e a alma tem com ela O corpo em comunhatildeo com a alma se torna

vivo (Fed 105c9-11) separado dela eacute apenas um cadaacutever A alma torna o corpo vivo e

219

eacute portanto portadora da vida que nos termos da investigaccedilatildeo consiste na parte que

participa da forma vida

De acordo com esse raciociacutenio de forma a vida natildeo pode aceitar o seu contraacuterio

a morte sendo a forma vida (ηὸ ηο δσο εἶδνο Fed 106d6) e o que tem parte nela a

alma imortais (Fed 105d-e) No mesmo raciociacutenio o que tem parte na vida e portanto

o atributo de imortalidade natildeo pode aceitar a destruiccedilatildeo o que equivale agrave morte ndash ldquo() e

a Forma em si todos concordam que nunca perecemrdquo (Fed 106d5-7) O corpo por natildeo

partilhar da forma vida como a alma estaacute sujeito agrave destruiccedilatildeo (Fed 106e5) Tem-se

explicado ao modo da dialeacutetica a morte do corpo e a imortalidade da alma

Conclusotildees sobre a θξόλεζηο

Em poucas palavras o pensamento descreve a capacidade e a atividade

cognitiva o estado autecircntico do intelecto e o estado de interaccedilatildeo da alma com

inteligiacuteveis na qual permite a ela estar o mais proacuteximo possiacutevel de seu estado natural

Tais aspectos indicam que a excelecircncia do pensamento no diaacutelogo Feacutedon eacute antes

anaacuteloga ao modo autecircntico que a intelecccedilatildeo assume no decorrer da emancipaccedilatildeo da

alma pela filosofia O pensar sobre o qual se pretende argumentar no diaacutelogo para

realizar a investigaccedilatildeo acerca da imortalidade diz respeito ao exerciacutecio pleno da

faculdade inteligente ou dito de outro modo o seu exerciacutecio autocircnomo referido em um

primeiro momento nos termos de ldquopensamento purordquo A liberdade que a θξόλεζηο deve

adquirir em uma condiccedilatildeo de total ausecircncia dos sentidos tal como descreve o estado de

morte mostra a natureza distinta e ascendente da inteligecircncia que tem na elevaccedilatildeo

intelectual e no desapego do sensiacutevel as condiccedilotildees que favorecem seu exerciacutecio A

automonia da razatildeo consiste na condiccedilatildeo mais condizente com a natureza do pensar na

qual a alma atinge o grau maacuteximo de cogniccedilatildeo uma postura adequada agrave sua natureza a

postura intelectual e um meacutetodo para adquirir resultados vaacutelidos em um

empreendimento racional Todo o empreendimento filosoacutefico tem em vista esta

autonomia pois eacute ela a liberdade possiacutevel agrave alma ainda presa em corpo humano

220

O pensamento estabelece relaccedilatildeo com as ideias inteligiacuteveis seu verdadeiro

objeto podendo atraveacutes delas conhecer a verdade e elaborar uma explicaccedilatildeo (loacutegos)

razoaacutevel sobre a imortalidade da alma Do mesmo modo pode inferir acerca da vida

apoacutes a morte do corpo com bases mais seguras dadas pela razatildeo A relaccedilatildeo entre o alma

e inteligiacutevel que o intelecto estabelece nas tratativas com as ideias em um primeiro

momento dada nos termos de uma afecccedilatildeo (Fed 79d) mas posteriormente dita como

um exerciacutecio do loacutegos filosoacutefico indica o conhecimento como o modo de apreensatildeo do

caraacuteter inteligiacutevel o qual eacute afim com a natureza da alma A interaccedilatildeo com inteligiacuteveis

constitui um estado duradouro de inteligibilidade no qual a alma apreende o ser e as

qualidades semelhantes ao que eacute divino tendo por via da alta intelecccedilatildeo desse modo a

restauraccedilatildeo do seu estado natural Dito de outra maneira o alto pensamento que

constitui a θξόλεζηο preserva a natureza inteligente da alma e por consequecircncia seu

verdadeiro modo de atuar

Sendo assim nos termos de uma afecccedilatildeo pode ser entendido como uma resposta

aos objetos com os quais interage de modo a assimilaacute-los Como exerciacutecio inteligente o

qual se daacute por meio do meacutetodo constitui a apreensatildeo dos aspectos inteligiacuteveis acerca do

que se tem em exame de modo a discerni-los e utilizaacute-los tal como se deu na prova da

imortalidade para a qual a Teoria das Ideias e o meacutetodo foram os pilares Nos dois

casos tem-se o pensamento no niacutevel mais alto atuando com os objetos inteligiacuteveis e

trazendo de algum modo benefiacutecios quer como vantagens para a alma as virtudes e o

seu cuidado por exemplo quer como a aquisiccedilatildeo de elementos teoacutericos e

metodoloacutegicos que conduzem a uma hipoacutetese indubitaacutevel Seja como for com o

conhecimento das ideias a alma tem elementos para atraveacutes da filosofia se emancipar do

corpo e fazer suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre um domiacutenio maior o da morte

O caraacuteter de testemunho que o argumento da reminiscecircncia confere ao pensar

indica a afinidade dele com o inteligiacutevel e sobretudo a possibilidade de superaccedilatildeo de

um plano a outro ou seja do sensiacutevel para o inteligiacutevel A descriccedilatildeo desta superaccedilatildeo

afirma a presenccedila de uma faculdade cognitiva independente do corpo e adianta assim a

hipoacutetese da sobrevivecircncia da alma com atividade inteligente em um plano distinto do da

vida humana A anterioridade indicada por meio da reminiscecircncia propotildee de certo

modo o alcance da faculdade da razatildeo o qual se torna limitado ao nascer em corpo

humano mas ao mesmo tempo mostra ao filoacutesofo a possibilidade de explorar outro

objeto aleacutem do experienciado pelas sensaccedilotildees (ἕηεξόλ ηη) um outro domiacutenio O papel de

inquiridor do pensar sugerido nas pistas dadas pela reminiscecircncia encontra na

221

explicaccedilatildeo acerca do loacutegos filosoacutefico os meios para realizar tal superaccedilatildeo O percurso

do intelecto eacute dado neste contexto na verificaccedilatildeo das hipoacuteteses e desse modo na

constante inspeccedilatildeo do objeto e da proacutepria atuaccedilatildeo da razatildeo A alta intelecccedilatildeo estaacute em

fazer este percurso e chegar agrave hipoacutetese inabalaacutevel a ideia do que se investiga Assim a

apreensatildeo na dialeacutetica no Feacutedon se daacute pela superaccedilatildeo de hipoacuteteses mas longe de

constituir uma intuiccedilatildeo o objeto uacuteltimo deve se revelar enquanto tal resistindo ao teste

do filoacutesofo com a sua dialeacutetica O pensamento adquire o seu objeto de conhecimento

apoacutes essa atividade de inquiriccedilatildeo mostrando desse modo seu caraacuteter especulativo

A excelecircncia do pensamento filosoacutefico estaacute diante disso em fazer este percurso

de superaccedilatildeo intelectual ateacute a apreensatildeo da ideia Condizente com o seu aspecto

emancipador e provedor das virtudes o pensamento tal como apresenta o Feacutedon supotildee

antes de tudo a relevacircncia da atividade filosoacutefica embora natildeo se decirc de fato a conquista

de seu objetivo maior Essa eacute a resposta pertinente ao se questionar em que medida a

inteligecircncia da θξόλεζηο eacute exequiacutevel em vida dado que sua plena realizaccedilatildeo ocorre

apoacutes a morte do corpo Trata-se de mostrar no decurso de uma vida filoacutesoacutefica os

esforccedilos e a realizaccedilatildeo plena das possibilidades de conhecimento ainda que estes natildeo

sejam capazes de oferecer mais que uma convicccedilatildeo e alimentar a esperanccedila do filoacutesofo

de obter um bom destino A θξόλεζηο em vida humana se efetiva com o exerciacutecio

filosoacutefico e todo o conhecimento possiacutevel nesta condiccedilatildeo precaacuteria mostrando seu valor

nos benefiacutecios que propricia agrave alma Uma conduta deste tipo encontra sentido na ligaccedilatildeo

que a inteligecircncia estabelece com um domiacutenio das coisas verdadeiras semelhantes ao

divino proporcionando a alma um grau de saber ou seja o conhecimento dos

verdadeiros valores pelos quais ela deve se orientar e seguir O limite do conhecimento

dado pelo que oferece as ideias mostra o fundamento das coisas verdadeiras o que

parece suficiente para indicar o domiacutenio em que deve atuar o pensamento e as

orientaccedilotildees mais importantes para a vida Desse modo a alta inteligecircncia descreve o

amor do filoacutesofo pela sabedoria o qual adquire o conhecimento maacuteximo dentro dos

limites de sua condiccedilatildeo

222

Conclusatildeo geral

Em uacuteltima instacircncia a inteligecircncia consiste na superaccedilatildeo de planos do senso

comum para o filosoacutefico da ignoracircncia para o conhecimento do sensiacutevel para o

inteligiacutevel a partir da qual se apreende os objetos ideais com o objetivo de realizar

inferecircncias razoaacuteveis e portanto plausiacuteveis sobre os temas considerados de maior valor

como o Bem e a imortalidade A excelecircncia de um trabalho como esse estaacute por sua vez

na busca e na apreensatildeo possiacutevel de objetos de tal magnitude atividade que potildee a alma

em sua melhor condiccedilatildeo O movimento de superaccedilatildeo que mostra a ascese da alma a um

plano superior no qual alcanccedila uma condiccedilatildeo de maturidade e perfeiccedilatildeo daacute-se pela

capacidade de apreender as formas e obter assim o verdadeiro conhecimento

Apreender as realidades se traduz em adquirir os conhecimentos e constitui o meio e o

estaacutegio mais elevado da capacidade racional a partir dos quais se pode fazer as

inferecircncias possiacuteveis e plausiacuteveis sobre temas que extrapolam os limites da razatildeo

Tem-se na condiccedilatildeo de ascensatildeo inteligente o desenvolvimento da habilidade de

ascender e de fazer as relaccedilotildees necessaacuterias para apreender a causa ou princiacutepio que

governa tudo e que permite supor o que estaacute aleacutem da capacidade dele proacuteprio

(pensamento) Eacute provaacutevel que nessas duas accedilotildees ascender e relacionar resida a

principal diferenccedila da inteligecircncia O movimento de superaccedilatildeo ao ter em vista algo que

exceda agrave sua capacidade potildee em xeque a sua proacutepria atuaccedilatildeo e alcance o que mostra ser

as realidades o meio para a intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo seu objeto maacuteximo e final A

excelecircncia do pensamento estaacute sendo assim em adquirir este niacutevel de apreensatildeo no

qual se tem o conhecimento maacuteximo e se torna possiacutevel inferir

A superaccedilatildeo que constitui a inteligecircncia natildeo deve ser vista somente na ascensatildeo

em relaccedilatildeo ao plano superior dos inteligiacuteveis Uma completa superaccedilatildeo deve levar em

conta a postura do filoacutesofo em se orientar pelos conhecimentos adquiridos Tanto a

atuaccedilatildeo poliacutetica do filoacutesofo governante quanto a conduta cordata do filoacutesofo na

iminecircncia da morte resultam de ter os inteligiacuteveis como referecircncia o que significa a

permanecircncia no estado de interaccedilatildeo com os seres verdadeiros pela filosofia Ao mesmo

tempo tal estado se constitui da capacidade da razatildeo de estabelecer relaccedilotildees revelando

a face praacutetica dos conhecimentos As ligaccedilotildees que se pode fazer ao modo da visatildeo

223

sinoacuteptica ou ao modo da averiguaccedilatildeo dialeacutetica nos termos de uma superaccedilatildeo de

hipoacuteteses revelam ser factiacuteves os ideais poliacuteticos e existecircncias

A elevaccedilatildeo a um grau de superioridade consiste nesse sentido na frequentaccedilatildeo

ou ascensatildeo e permanecircncia de seres superiores e coloca ao mesmo tempo o filoacutesofo

em situaccedilatildeo de excelecircncia ao exigir dele o desenvolvimento e plena realizaccedilatildeo de sua

capacidade intelectual O pensamento mostra assim sua abrangecircncia nos papeacuteis de

atividade de uma faculdade no seu desenvolvimento e estado e tem na inteligecircncia seu

modo mais elevado e a face mais perfeita de sua atuaccedilatildeo

224

Bibliografia

Ediccedilotildees de apoio

- Platatildeo A Repuacuteblica trad Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

- Platon La Reacutepublique trad Eacutemile Chambry Ed Belles Lettres 1996

- Plato Republic Harvard University Press trad Chris Emlyn-Jones and William

Preddy Loeb Classical Library Vol VI e VI 2013

- Plato The Republic trad And Introduction REAllen Yale University 2006

- Platatildeo Feacutedon trad Maria Teresa Schiappa de Azevedo Imprensa Oficial UNB

2000

- Platon Pheacutedon Paris Flamarion 1991

- Platon Pheacutedon Paris Editions Belle Lettres 1957

- Platatildeo Fedoacuten Editorial Madrid Gredos 1997

- Platatildeo Fedatildeo trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem Ed UFPA 3a ediccedilatildeo 2002

- Plato Phaedo Tradution of C J Rowe Cambridge University Press 1996

(Cambridge Greek and Latin Classics)

- Plato Phaedo trad David Gallop Claredon Press Oxford 2002 2ordf ed

- Plato Phaedo tradution Fowler H N Cambridge Massachusetts Harvard

University Press Loeb Classical Library Vol 1

- Hackford R Plato‟s Phaedo Cambridge 1955

- Platatildeo Fedro Paris Ediccedilotildees 70 Lisboa

- Platon Phegravedre Paris Ed Belles Lettres 1947

- Platon Phegravedre Paris Flammarion 2000

225

Platatildeo Apologia de Soacutecrates Lisboa Ediccedilotildees 70

- Platatildeo Criacuteton Lisboa Ediccedilotildees 70

- Plato Phaedrus tradution Fowler H N Cambridge Massachusetts Harvard

University Press Loeb Classical Library vol 1

- Platatildeo O Banquete Ediccedilotildees 70 Lisboa 2010

- Platatildeo Teeteto trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem Ed UFPA 3a ediccedilatildeo 2001

- Platon Teegraveteacutete in Coleccedilatildeo Belles Lettres tomo VIII

- Platatildeo Sofista trad Jorge Poleikat e Joatildeo Cruz Costa Abril Cultural 1972 (col

Os Pensadores)

- Platatildeo Meacutenon trad Maura Iglesias Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Ed Puc Rio 2003

2a ediccedilatildeo

- Platatildeo A Carta VII Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade dos Santos e Juvino Maia JrSatildeo

Paulo Ediccedilotildees Loyola Ed Puc Rio 2008

- Platatildeo Philebo Trad Fernando Muniz Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Puc Rio 2012

- Platon Ouvres Complegravetes direction Luc Brisson Flammarion 2011

Bibliografia Criacutetica

- Acrill J Anamnesis in the Phaedo ndash Remarks on the 73c-75c ldquo in Essays on

Plato and Aristotle New York Oxford University Press 1997

- Adam J The Republic Of Plato Cambridge University Press vol 2 2009

226

- Allen R E ldquoKnowledge and Forms in Platos Theatetus rdquo in Studies in Plato‟s

Metaphysics London Routledge 2a edition 2013

- Allen R E (ed) Studies in Plato‟s Metaphysics London Routledge 2a erd ed

2013

- Annas J ldquoOn The Intermediatesrdquo in Archiv fuumlr Geschichte der Philosophie 57

1975

- Annas J Introdution agrave la Reacutepublique de Platon Paris Presses Universitaires de

France 1994

- Apolloni D ldquoPlato‟s Affinity Argument for the Immortality of the Soulrdquo in

Journal of the History of Philosophy 34 p 5-32

- Aubenque P ldquoDe L‟ Egaliteacutes des Segments Intermeacutediaires dans La Ligne de La

Reacutepubliquerdquo in Sophie Maietores ndash Chercheurs de Sagesse Paris Institut

d‟Etudes Augustiniennes 1992

- Azevedo M T S Platatildeo Helenismo e Diferenccedila ndash Raiacutezes culturais e Anaacutelises

dos Diaacutelogos Satildeo Paulo Annablume 2012

- Benson H (org) Platatildeo Porto Alegre Artmed 2001

- Bernabeacute A Platatildeo e o Orfismo ndash Diaacutelogos entre Religiatildeo e Filosofia Satildeo Paulo

Annablume 2011

- Bostock D ldquo The Soul And Imortality In Plato‟s Phaedordquo in Gail Fine (ed)

Plato 2- Etics Politcs Religion and the Soul Oxford University Press

- Breacutehier E ldquoAretai Katharseisrdquo in Etudes de Philosophie Antiquerdquo Paris

Presses Universitaires de France 1955

- Brisson L ldquoReminiscence in Platordquo in Platonism and Forms of Intelligence

Dillon J Zouko M E (orgs) Berlin Akademie Verlag 2008

- Brisson L Meyerstein F W Puissance et Limites de la Raison ndash Le Problegraveme

des Valeurs Paris Les Belles Lettres 2014

- Bluck R S ldquoHypotesis in the Phaedo and platonic Dialeticrdquo in Phronesis 1957

- Casertano G ldquoO Bem e a Linhardquo in Xavier D Cornelli G (orgs) A Repuacuteblica

de Platatildeo ndash Outros Olhares Satildeo Paulo Loyola 2011

- Chen C H Acquiring Knowledge of the Ideas- A Study of Plato‟s Methods in

the Phaedo The Symposium and the Central Books of the Republic Franz

Steiner Verlag Stuttgart 1992

227

- Cherniss H ldquoSome Wartime Publications Concerning Platordquo in Harold

Cherniss Select Papers Brill 1977

- _________ ldquoPlato as Mathematician in Haroldrdquo in Cherniss Select Papers Brill

1977

- __________ ldquoThe Philosophical Economy of Theory of Ideasrdquo in Harold

Cherniss Select Papers 1977

- Cooper N ldquoThe Importance of Dianoia in Platos Theory of Formsrdquo in The

Classical Quartely no1 Cambridge University Press On Behalf Association vol

16 1966

- Cordero N L (org) Ontologie et Dialogue- Meacutelanges en Hommage agrave Pierre

Aubenque Paris Vrin 2000

- Cornford F ldquo Mathematics and Dialectic in The Republicrdquo in Mind New Series

no 160 Oxford Press on behalf of the Mind Association vol 41 1932

- ____________ La Teoria Platonica Del Conocimiento El Teeteto y El Sofista

Buenos Aires Paidos 1968

- Denyer N Sun and Line in Plato‟s Republic Cambridge 2007

- Dillon J e Zovko M E Platonism And Forms of Inteligence Akademi Verlag

2008

- Dixsaut M Eacutetudes Sur La Republique de Platon II Paris Vrin 2006 vol 2

- __________Meacutetamorphoses dela Dialectique dans les Dialogues de Platon

Paris Vrin 2001

- __________Platon et la Question de lAcircme Eacutetudes Platoniciennes II Paris

Vrin 2013 1

- ___________Platon et la Question de la Penseacutee - Eacutetudes Platoniciennes I

Paris Vrin 2000

- Dorion LA Socrate Paris PUF 2004

- ________ L‟Autre Socrate ndashEtudes Sur Les Eacutecrits Socratiques de Xeacutenophon

Les Belles Lettres 2013 (col L‟Acircne D‟or)

- Donini P Ferrari F O Exerciacutecio da Razatildeo no Mundo Claacutessico- Perfil da

Filosofia Antiga Satildeo Paulo Annablume 2012

- Ferejohn M ldquoO Conhecimento e as Formas em Platatildeordquo in Platatildeo Benson H

(org) Porto Alegre Artmed 2011

228

- Fine G ldquoKnowledge and Belief in The Republic 5-7rdquo in Plato Oxford

University Press 2000

- Goldschmidt V Le Paradigme das la Dialectique Platonicienne Paris Vrin

2a ed 2003

- ____________ Os diaacutelogos de Platatildeo- Estrutura e Meacutetodo Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2002

- Gosling JCB The Argument of the Philosophers London and New York

Routledge 3a erd 2001

- ___________ ldquoDoacutexa and Duacutenamis in Platos Republicrdquo in Phronesis n 2 Brill

vol 13 1968

- ___________Plato Routledge and Kegan Paul 1973

- Guardini R La Mort de Socrate Paris Editions du Seuil 1954

- Gunthrie W KC Platos Views on The Nature of the Soul in Plato II

Metaphysics and Epistemology Gregory Vlastos ( org) 1971

- Gueacuteroult Martial ldquoLa Meditation de L`Acircme Sur L`Acircme dans Pheacutedonrdquo in

Revue De Metaphysique Et Morale 1926

- Hall R W ldquoPsykhe as Differentiated Unity in the Philosophy of Platordquo in

Phronesis 1963

- Iglesias Maura Platatildeo- ldquoA Descoberta da Almardquo in Boletim do CPA Ano IV

no 56 1998

- Jaeger W Paideia- A Formaccedilatildeo do Homem Grego Satildeo Paulo Martins Fontes

1995

- Kahn C rdquoPlatatildeo e a Reminiscecircnciardquo in Platatildeo Benson H (org) Porto Alegre

Artmed 2011

- Kraut R (org) Platatildeo Satildeo Paulo Ideias e Letras 2013

- Klosko G ldquoThe Tule of Reason in Platos Psychologyrdquo in History Philosophy

Quartely no 5 1988

- Kucharski P Laffiniteacute entre les idees et lacircme dapregraves le Phedon Achives de

Philosophie 26 1963

229

- Loriaux S J L‟Ecirctre et La Forme Selon Platon- Essai Sur Dialectique

Platonicienne Descleacutee De Brouwer 1955

- Mathews G Platos Epistemology and Related Logical Problems Faber and

Faber 1a ed 1972

- Migliori M Il disordine ordinato La filosofia dialettica di Platone

Morcelliana Bresci 2013

- Migliori M Fermani A Platatildeo e Aristoacuteteles ndash Dialeacutetica e Loacutegica Satildeo Paulo

Ediccedilotildees Loyola 2012

- Moravcsisk J M E Patterns in Platos Thought D Reidel Publishing Company

1973

- ____________ Reason and Eros in the Ascent Passage of Symposium Essays in

Ancient Greek Philosophy Anton and Kustas ( orgs) Albany State University

of New York Press 1972

- ____________Plato and Platonism Blackwell 1992

- Morrison J S ldquoTwo Unresolved Difficulties in the Line and Caverdquo in Phronesis

no 03 Brill vol 22 1977

- Moulinier L Le Pure et Le Impure dans La Penseacutee des Grecs- De Homere a

Aristote Paris Librarie Klincksiec

- Murgier C Eacutethiques en Dialogue ndash Aristote Lecteur de Platon Paris Vrin 2013

- Opsomer J In Search of The Truth Academic Tendences in Middle Platonism

Brussel Palais der Acadamien 1998

- Ostenfeld E N Forms Matter and Mind Three Strands in Platos Metaphysics

Springer 1982

- Pakaluk Michel ldquoDegrees of Separation in the Phaedordquo in Phronesis - Journal

For Ancient Philosophy Leiden Brill XLVIII 2 2003

- Pappas N A Repuacuteblica de Platatildeo ediccedilotildees 70 Lisboa 1995

- Passmore J Philosophical Reasing 1961

- Penner T ldquoKnowledge vs True Belief in the Socratic Psychology of Actionrdquo in

Apeiron 1996

230

- _________ ldquoThought and Desire in Platordquo In Plato - A Collection of Critical

Essays Ethics Politics and Philosophy of Art and Religion Gregory

Vlastos (org) Garden City New York Doubleday Anchor Books 1971

- __________ ldquoAs Formas e as Ciecircncias em Soacutecrates e em Platatildeordquo in Platatildeo

Benson H (Org) Porto Alegre Artmed 2011

- Renault O Histoire des doctrines de l‟antiquiteacute classiqueraquo XLV 45 Paris Vrin

2014

- _________Platon ndash La Meacutediation Des Eacutemotions Paris Vrin 2014

- Robinson T M A Psicologia de Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007

- ___________As Origens da Alma ndash Os Gregos e o Conceito de alma de Homero

a Aristoacuteteles Satildeo Paulo Annablume 2010

- Ross W D Theory of Ideas Claredon Press- Michigan University 1953

- Rossetti L Understanding The Phaedrus ndash Proceedings Of The Symposium

Platonicum Germany Academia Verlag Sankt Augustin 1992

- Sallis J Being and Logos ndash Reading the Platonic Dialogues Bloomington and

Indianapolis Indiana University Press 1996 3erd ed

- Santas G X Socrates Philosophy in Plato‟s Early Dialogues Routledge 1979

(col The Arguments of the Philosophers)

- Santos J T Feacutedon- Platatildeo Alda Editores 1998

- Silverman A The Dialectic of Essence ndash Study of Plato‟s Metaphysics New

Jersey Princeton University Press 2002

- Schaumlefer C Leacutexico Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2012

- Schuhl P M Platatildeo e a Arte de Seu Tempo Satildeo Paulo Discurso Editorial

Barcarolla 2010

- Scolnicov S Platatildeo e o Problema Educacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006

- Scott D Recollection and Experience - Plato‟s Theory of Learning and its

Successors Cambridge University Press 1995

231

- Smith N D (ed) Plato Critical Assessments ndash Plato‟s Middle Period

Metaphysics and Epistemology Vol 2 London and New York Routledge 1998

- ___________Plato Critical Assessments ndash Plato‟s Middle Period Psychology

and Value Theory Vol 3 London and New York Routledge 1998

- Stricker E ldquoLa Distinction Entre L‟Entendement (Diaacutenoia) e L‟Intellect (Nous)

Dans La Republique De Platonrdquo in Estudios De La Historia De La Filosofia ndash

Homenaje ao Profesor Rodolfo Mondolfo Vol I Argentina Universidad Nacional

de Tucuman 1957

Stocks J L ldquoThe Divided Line of Rep VIrdquo in The Classical Quartely vol 5 no

2 1911

Trabattoni F ldquoIl Sapere del Filosofordquo in Vergetti M (Ed) La Repubblica

Naacutepoles Bibliopolis vol 5 2003

- Taylor C C W From Beginning to Plato London and New York Routledge

vol 1 2001

- Vlastos G Platonic Studies New Jersey Princeton University Press 2a ed

1981

- White F C ldquoThe Phaedo and The Republic V on The Essencesrdquo in The Journal

of Hellenic Studies Vol 98 1978

- Wolff F Nossa Humanidade ndash De Aristoacuteteles agraves Neurociecircncias Satildeo Paulo Ed

Unesp 2012

- ___________ Soacutecrates o Sorriso da Razatildeo Satildeo Paulo Editora Brasiliense 2a ed

1983

232

  • Phronesis e Noesis em PlatatildeoA Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico
    • RESUMO
    • ABSTRACT
    • Sumaacuterio
    • Parte I A Repuacuteblica
      • V A perspectiva da inteligecircncia
      • Introduccedilatildeo
      • I A Excelecircncia do Filoacutesofo
        • 11 O filoacutesofo governante
        • 12 A melhor parte da alma
        • 13 O Conhecimento dos valores
        • 14 O objeto de desejo do filoacutesofo
        • 15 A postura intelectual
          • II A Cogniccedilatildeo
            • 21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem
            • 22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento
            • 23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios
            • 24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel
              • III Atividade Inteligente
                • 31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα
                • 32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ
                • 33 A funccedilatildeo da dialeacutetica
                • 34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo
                  • IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento
                    • 41 Operaccedilotildees e regras do pensamento
                    • 42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma
                    • 43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο
                    • 44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ
                    • 45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel
                        • Parte II Feacutedon
                          • I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel
                            • 11 O filoacutesofo agrave beira da morte
                            • 12 O pensar e o estado de morte
                            • 13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro
                            • 14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva
                              • II A natureza inteligiacutevel
                                • 21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva
                                • 22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο
                                • 23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia
                                • 24 Distinccedilotildees entre alma e corpo
                                • 25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο
                                  • III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico
                                    • 31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο
                                    • 32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο
                                    • 33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico
                                      • IV Atividade do puro pensamento
                                        • 41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa
                                        • 42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese
                                        • 43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento
                                            • Conclusatildeo geral
                                            • Bibliografia
Page 3: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte

Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Silva Sheila Paulino e Silva

Phronesis e Noesis em Platatildeo A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico Sheila Paulino e Silva Silva orientador Roberto Bolzani Filho Bolzani - Satildeo Paulo 2015

245 f

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Filosofia

1 PLATONISMO 2 FILOSOFIA GREGA 3 RACIOCIacuteNIO

(PENSAMENTO) 4 DIAgraveLOGOS 5 586 I Bolzani Roberto Bolzani Filho orient II Tiacutetulo

1

Para os meus pais

Dona Claudineacuteia e Sr Valter os quais

sem saberem ensinaram-me a

importacircncia de questionar sempre

2

Agradecimentos

Meus francos agradecimentos ao meu orientador Prof Dr Roberto Bolzani Filho

pela oportunidade

Aos Professores Francis Wolff da Eacutecole Normale Superieacuteure- Paris pela preciosa

orientaccedilatildeo e Dimitri El Murr da Universiteacute de Paris I pela generosa acolhida

Pela gentil e orientadora arguiccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo meus

agradecimentos agrave Professora Eliane Christina de Souza (UFSCAR) e Marco Antocircnio

Zingano (USP)

Aos professores Prof Dr Daniel Rossi Nunes Lopes e Prof Adriano Machado

Ribeiro pelo diaacutelogo em aulas e corredores

Aos colegas e professores dos estudos claacutessicos com os quais muito pude

aprender nos grupos de estudos Maria Eduarda Oliveira Prof Dr Andreacute Malta

Vicente de Arruda Sampaio e especialmente ao colega e professor de liacutengua grega

Maacutercio Mauaacute Chaves Ferreira por emprestar inteligecircncia e entusiasmo

Ao pessoal da secretaria Maria Helena Mariecirc Luciana Geni e Susan

Meu muito obrigado aos amigos Deborah Akemi Leila Andreacute Mayra Marina

Rineu Quinaglia e Prof Dr Thomaz Kawauche Agrave minha matildee irmatildeos e agrave Nina

A realizaccedilatildeo desta pesquisa natildeo seria possiacutevel sem as bolsas de estudos que me

foram concedidas a bolsa de doutorado do Conselho Nacional de Pesquisa ndash CNPQ a

qual garantiu que eu pudesse me dedicar exclusivamente a esta pesquisa e a ldquobolsa-

sanduiacutecherdquo concedida pela Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash CAPES imprescindiacutevel para a realizaccedilatildeo dos estudos em Paris

3

RESUMO

SILVA S P Phronesis e Noesis em Platatildeo - A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico

2015 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015

Pretende-se averiguar neste trabalho a concepccedilatildeo de pensamento ou

inteligecircncia que os diaacutelogos A Repuacuteblica VI e VII e Feacutedon apresentam Trata-se de

pontuar a partir da anaacutelise das questotildees que envolvem o trabalho cognitivo da alma

mais precisamente os temas sobre o conhecimento a reminiscecircncia o meacutetodo dialeacutetico

e a apreensatildeo das ideias a concepccedilatildeo de excelecircncia da racionalidade que o pensamento

filosoacutefico sugere Dada a hipoacutetese de que os diaacutelogos oferecem uma visatildeo de aquisiccedilatildeo

de superioridade da alma visatildeo coincidente em muitos aspectos tem-se a sugestatildeo do

pensar nos termos de atividade e de estado igualmente superiores ou excelentes no

qual se tem a plena realizaccedilatildeo das capacidades racionais O cerne da pesquisa consiste

em verificar na descriccedilatildeo da atividade filosoacutefica o que caracteriza a inteligecircncia e obter

uma compreensatildeo acerca desse trabalho do pensamento em sua maacutexima capacidade o

qual se desenvolve na busca do conhecimento que possa dizer acerca das questotildees mais

importantes como o Bem e a imortalidade

Palavras-chave inteligecircncia excelecircncia superaccedilatildeo filoacutesofo

4

ABSTRACT

SILVA S P θξόλεζηϛ and Nόεζηϛ in Plato ndash The Excelence of Philosophic Thought

2015 Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015

It is intended to investigate in this paper the concept of thought or intelligence

that is presented in the dialogues Republic VI and VII and Phaedo It concerns to point

out from the analysis of the issues surrounding the cognitive work of the soul more

precisely the themes about knowledge the reminiscence the dialectical method and the

apprehension of ideas the concept of the excellence of rationality that the philosophical

thought suggests Given the hypothesis that the dialogues offer a view on acquisition of

superiority of the soul coinciding view in many aspects there is the suggestion of

thinking in terms of activity and state equally superior or excellent in which one has the

full accomplishment of the rational capacities The research core consists in verifying

the description of philosophical activity which characterizes the intelligence and

acquiring an understanding of this work of the thought in its full capacity which

develops in the pursuit of the knowledge that can tell about the most important issues

such as Good and immortality

Key-Words intelligence excellence resilience philosopher

5

Lista de abreviaturas

A Repuacuteblica = Rep

Feacutedon = Fed

Meacutenon = Men

Teeteto = Teet

Fedro = Fedr

Livro ou livros = Liv

6

Sumaacuterio

Parte I A Repuacuteblica

Introduccedilatildeo 8

I A Excelecircncia do Filoacutesofo 15

11 O filoacutesofo governante 16

12 A melhor parte da alma 19

13 O Conhecimento dos valores 23

14 O objeto de desejo do filoacutesofo 30

15 A postura intelectual 33

II A Cogniccedilatildeo 37

21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem 37

22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento 41

23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios 51

24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel 56

III Atividade Inteligente 63

31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα 65

32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ 76

33 A funccedilatildeo da dialeacutetica 83

34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo 89

IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento 93

41 Operaccedilotildees e regras do pensamento 93

42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma 101

43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο 105

44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ 110

45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel 117

V A perspectiva da inteligecircncia 125

Conclusotildees sobre a λόεζηϛ 133

Parte II Feacutedon

7

I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel 139

11 O filoacutesofo agrave beira da morte 139

12 O pensar e o estado de morte 142

13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro 146

14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva 157

II A natureza inteligiacutevel 161

21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva 161

22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο 173

23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia 176

24 Distinccedilotildees entre alma e corpo 181

25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο 183

III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico 190

31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο 193

32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο 198

33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico 204

IV Atividade do puro pensamento 208

41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa 209

42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese 211

43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento 214

Conclusotildees sobre a θξόλεζηο 219

Conclusatildeo geral 222

Bibliografia 224

8

Introduccedilatildeo

O que eacute o pensamento Antes de se embrenhar na questatildeo que motivou esta

pesquisa eacute necessaacuterio se dispor a seguir os caminhos ora tortuosos que os textos

colocam para o seu leitor Deve-se dizer que essa natildeo eacute uma questatildeo formulada nesses

termos com este enquadramento aparentemente direto mas erige e tem suas resoluccedilotildees

na medida do que pede o tratamento do assunto tema de cada diaacutelogo Talvez agrave exceccedilatildeo

do Teeteto diaacutelogo o qual apresenta a necessidade de discernir acerca do trabalho

intelectual em oposiccedilatildeo agraves sensaccedilotildees para defender a razatildeo como faculdade cognitiva1 e

do Sofista onde Platatildeo se obriga a responder acerca da possibilidade do falso e desse

modo mostrar a saiacuteda para um loacutegos verdadeiro2 as indagaccedilotildees sobre a atividade do

pensamento eacute dada na maioria das vezes como um questionamento sobre o proacuteprio

exerciacutecio intelectual No desenrolar do exerciacutecio dialoacutegico incontornavelmente os

dialogantes se deparam e precisam em alguma medida pontuar algo acerca do

exerciacutecio racional para dar prosseguimento agrave investigaccedilatildeo

Embora postas nesses termos natildeo se deve concluir que sua importacircncia eacute

deixada em segundo plano Ao contraacuterio trata-se de uma questatildeo pela qual todas as

outras em anaacutelise ganharatildeo legitimidade e revelaratildeo seu fundamento filosoacutefico Sem a

certeza de o diaacutelogo ou no sentido mais teacutecnico o meacutetodo dialeacutetico constituir de fato

uma atividade cognitiva de onde se pode apreender algum conhecimento ou sem a

seguranccedila de seus resultados como conclusotildees vaacutelidas a inquiriccedilatildeo do filoacutesofo natildeo

alcanccedilaria seus objetivos e a investigaccedilatildeo filosoacutefica seria inoacutecua

Os aspectos da atividade do pensar tal como as vaacuterias concepccedilotildees que se pode

ter acerca dele satildeo dadas concomitantemente agraves indagaccedilotildees e respostas que compotildeem o

diaacutelogo filosoacutefico Parece natildeo fazer sentido mostrar o pensar senatildeo em sua atuaccedilatildeo De

fato natildeo parece apropriado tomar o pensamento como uma entidade ou instacircncia

1 Teeteto 189e ldquoMas por pensar entendes a mesma coisa que eurdquo Teeteto trad Carlos Alberto Nunes

Ed UFPA 2001 3a ediccedilatildeo

2 Sofista 263d9-e1 ldquo- E entatildeo natildeo eacute evidente desde jaacute que o pensamento a opiniatildeo a imaginaccedilatildeo satildeo

gecircneros suscetiacuteveis em nossas almas tanto de falsidade como de verdade () Compreenderaacutes mais

facilmente a razatildeo se me deixares explicar em que eles consistem e em que diferem um dos outrosrdquo

Sofista Trad Jorge Poleikat e Joatildeo Cruz Costa Ed Abril Cultural 1972

9

independente ainda que muitas vezes seja inferido e analisado de modo destacado tal

como sugerem as divisotildees e classificaccedilotildees da linha no Livro VI d‟A Repuacuteblica3 e a

formulaccedilatildeo de pensamento puro no Feacutedon4 Tais ocorrecircncias se datildeo a meu ver segundo

o foco narrativo e o contexto em que se daacute ecircnfase agrave atividade mais nobre da alma

Parece plausiacutevel supor que Platatildeo talvez adote como estrateacutegia natildeo perguntar acerca da

racionalidade nesses termos por preferir chamar toda a atenccedilatildeo evidentemente para o

tema eleito Ou ainda eacute possiacutevel conjecturar que a opccedilatildeo de dedicar um diaacutelogo para

responder exclusivamente a esta questatildeo obrigaria o filoacutesofo a acomodar ou a encaixar

subordinadamente os demais temas agraves definiccedilotildees ali atribuiacutedas como uma peccedila nuclear

que faz funcionar as outras que integram um sistema perfeito - concepccedilatildeo de conjunto

que diga-se de passagem parece estar longe de ser aquela que se pode encontrar nos

diaacutelogos O tema do pensamento mais precisamente da racionalidade em seu modo

mais alto mostra assim suas caracteriacutesticas de acordo com o que pede a questatildeo pois

sua realizaccedilatildeo enquanto capacidade se daacute com o desenrolar da investigaccedilatildeo

A polissemia que se atribui aos termos λόεζηϛ e θξόλεζηο demonstram tal

complexidade Ambos assumem ao longo das explanaccedilotildees vaacuterios sentidos ganhando

assim diversas traduccedilotildees tais como saber razatildeo bom senso de acordo com a tocircnica e

com o argumento em que se analisam as questotildees propostas De maneira parecida a

traduccedilatildeo por conhecimento parece seguir a coerecircncia do contexto expondo junto com as

questotildees acerca do pensar em seu grau de excelecircncia a tese sobre o verdadeiro

conhecimento Tais nuanccedilas de sentido quando consideradas propotildeem uma

interpretaccedilatildeo sobre a passagem e sobre o proacuteprio pensamento que muitas vezes vai aleacutem

da reafirmaccedilatildeo da concepccedilatildeo de conhecimento e de inteligecircncia Natildeo se trata

evidentemente de tentar fixar um sentido para cada termo que designa uma atividade

intelectual tampouco considerar as distinccedilotildees que os textos oferecem sobre o pensar um

exerciacutecio a fim de precisar uma nomenclatura Vale a pena verificar o sentido que

Platatildeo parece atribuir ao termo e ao mesmo tempo o que se pode apreender da questatildeo

com essa atribuiccedilatildeo5 Desse modo natildeo se deve admirar as vaacuterias perspectivas em que

ele eacute dado e a evoluccedilatildeo de seu refinamento no interior dos diaacutelogos e na aproximaccedilatildeo

3 As citaccedilotildees do texto seratildeo realizadas a partir da ediccedilatildeo brasileira Platatildeo A Repuacuteblica tradduccedilatildeo Anna

Lia Amaral de Almeida Prado Martins Fontes Satildeo Paulo 2006

4 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizar-se aacute Platatildeo Feacutedon traduccedilatildeo Maria Teresa Schiappa de Azevedo

Imprensa Oficial UNB 2000 5 Platatildeo esclarece ao fim do Livro VII a verdadeira intenccedilatildeo ao realizar as distinccedilotildees e as designaccedilotildees

acerca dos meacutetodos e da atividade racional neles envolvido Longe de ser uma discussatildeo sobre o nome

com o qual se deve referi-los diz pretender examinar as questotildees que suscitam (Rep 533d3)

10

possiacutevel entre as obras Parece ser mais eficiente mostrar as caracteriacutesticas da razatildeo em

seu exerciacutecio por ser a sua atividade o meio mais fiel de dizer a capacidade da alma

buscar a sua excelecircncia

Conveacutem adiantar que embora se pressuponha uma identidade entre o

pensamento nos dois diaacutelogos natildeo se pretende ler um diaacutelogo agrave luz de outro Mais

proveitoso do que tentar responder questotildees e dificuldades da formulaccedilatildeo que um

diaacutelogo apresenta sobre o tema a partir de outro eacute verificar em detalhes o problema em

cada texto e a partir de entatildeo refletir acerca de uma concepccedilatildeo de razatildeo e de atividade

racional no seu modo mais elevado Apesar das diferenccedilas que se pode encontrar em

uma comparaccedilatildeo entre os textos acerca do meacutetodo dialeacutetico das teorias e das visotildees

acerca da alma as quais seratildeo devidamente notadas quando parecer necessaacuterio cabe

assinalar que o emprego desses para o tratamento das questotildees que preocupam o

filoacutesofo parecem ter o mesmo objetivo e oferecem assim uma visatildeo do pensamento

Os aspectos acerca do tema da racionalidade nos diaacutelogos levam inevitavelmente

a diferentes abordagens Em geral os autores que optaram por enfrentar o problema

diretamente valeram-se de uma abordagem loacutegica na qual veem o trabalho intelectual

da filosofia em uacuteltima instacircncia com um propoacutesito de obter definiccedilotildees O caminho para

investigar acerca do pensamento surge nesse segmento da anaacutelise da conceituaccedilatildeo e do

aparato metodoloacutegico especiacutefico sendo o pensar filosoacutefico considerado detidamente

nesta atividade compreendida nos termos de um saber proposicional Outra perspectiva

em que se coloca a questatildeo do pensamento vai na direccedilatildeo oposta na qual se pretende

explicar o conhecimento filosoacutefico como um saber intuitivo uma apreensatildeo ou visatildeo

o qual se obteacutem ao fim de um processo de cogniccedilatildeo Nessa abordagem natildeo raro se

considera a metodologia limitada a qual embora importante parece natildeo ter peso

decisivo na aquisiccedilatildeo dos objetos especiacuteficos da filosofia O pensamento mais

precisamente a inteligecircncia constitui nesse enfoque o movimento que culmina nessa

intuiccedilatildeo

Natildeo se pretende neste trabalho travar uma discussatildeo acerca das visotildees que as

duas correntes pretendem defender Da mesma forma natildeo se tem o objetivo de se situar

em uma delas O que proponho para discussatildeo diz respeito ao modo de interpretar

passagens que permitam sugerir uma compreensatildeo sobre a racionalidade a partir do

estudo destes dois diaacutelogos Suponho que o pensar em seu modo excelente consista

sobretudo na superaccedilatildeo do intelecto em direccedilatildeo aos objetos e domiacutenios superiores

sendo assim a capacidade de alta cogniccedilatildeo e o movimento ascendente que tem em vista

11

as questotildees e as aquisiccedilotildees mais importantes o bem a imortalidade e a felicidade O

pensar compreende desse modo todo o movimento no qual o intelecto atua para sair do

plano das percepccedilotildees e lidar com os objetos que lhe satildeo proacuteprios

Desse modo natildeo se abordaraacute os diaacutelogos a partir de uma perspectiva

cronoloacutegica Pretende-se levantar e analisar as mesmas questotildees independentemente do

que suporia o intervalo entre a feitura e a anterioridade de um ou de outro Deu-se

atenccedilatildeo aos temas que permitem uma anaacutelise detida do assunto sendo considerado

importante para isso destacar os passos na construccedilatildeo do perfil da racionalidade Assim

o contexto em que se coloca e se desenvolve a questatildeo o meacutetodo os objetos a

distinccedilatildeo de planos e a cogniccedilatildeo satildeo temas que pontuam tal construccedilatildeo

O tema nos diaacutelogos

De maneira preacutevia parece pertinente apontar alguns temas e questotildees que

mostram a conveniecircncia de ter os dois diaacutelogos como fonte para o estudo que se propotildee

Cabe alguns comentaacuterios primeiramente acerca da necessidade comum agraves duas obras

de empreender uma investigaccedilatildeo sobre a cogniccedilatildeo e verificar desse modo seu alcance

seus limites procedimentos proacuteprios e validade do pensamento para levar a cabo o

exame da questatildeo tema do diaacutelogo Agrave sua maneira tanto os livros centrais d‟A

Repuacuteblica sobretudo o sexto e seacutetimo livro quanto o Feacutedon mostram que a resposta

acerca do que investigam natildeo dispensa paracircmetros teoacutericos e de meacutetodo adequado que

garantam um exame de acordo com a proposta da filosofia de conhecer

verdadeiramente Sendo assim ambos apresentam as caracteriacutesticas do trabalho racional

segundo a filosofia de modo a oferecer o procedimento e o significado conferido por

ela ao pensamento

Nesse sentido tem-se a importacircncia do estudo acerca de uma noccedilatildeo de um bem

metafiacutesico e compreensiacutevel pelo intelecto para averiguar os fundamentos da cidade

justa tal como mostra o livro VI A conveniecircncia de investigar a ideia do bem surge da

necessidade ter definiccedilotildees e certa clareza acerca do conhecimento ao modo filosoacutefico

uacutenico capaz de apreender tais alicerces Desse modo a cogniccedilatildeo sobretudo torna-se

objeto de investigaccedilatildeo por ser ela a atividade pela qual deve se dar tais apreensotildees e

12

pela qual o filoacutesofo governante deve ter as suas orientaccedilotildees para o comando da cidade

Ao ter a filosofia entre os temas da poliacutetica e uma vez traccedilado o perfil do futuro

governante de acordo com o Livro V faz parte da investigaccedilatildeo distinguir os elementos

que compotildeem o caraacuteter intelectual do filoacutesofo governante e que contribuem por meio

dele para a constituiccedilatildeo da cidade perfeita6 De modo sucinto dado o caraacuteter do

governo e da cidade a saber justo bom virtuoso e saacutebio conveacutem averiguar o que os

torna enquanto tais a saber o uso da racionalidade agrave maneira filosoacutefica Os Livros VI e

VII consistem desse modo nas seccedilotildees onde o filoacutesofo que investiga acerca da justiccedila

tem de se debruccedilar sobre as questotildees especiacuteficas ao tema do pensamento para mostrar a

relevacircncia e magnitude do estudo mais importante

As consideraccedilotildees sobre a alma e sobre o exerciacutecio filosoacutefico no Feacutedon tambeacutem

apontam para a necessidade de discernir acerca dos elementos que compotildeem o trabalho

racional Dada identificaccedilatildeo da alma quase exclusivamente agrave faculdade racional a

cogniccedilatildeo seraacute a atividade que restaura a sua natureza e desse modo que permite

encontrar os meios atraveacutes dos quais eacute possiacutevel dar a ela o tratamento adequado que

garantiraacute as qualidades necessaacuterias a saber virtude e inteligecircncia no mais alto grau

possiacutevel (Fed107c8-d2) Desse modo a filosofia como preparaccedilatildeo para a morte sugere

o percurso desse cuidado que consiste em linhas gerais em uma depuraccedilatildeo racional Eacute

necessaacuterio a partir desse contexto distinguir testar e validar o uso da razatildeo nesse

empreendimento filosoacutefico que tem como fim o bom destino e como objetivo imediato

no episoacutedio em que se passa o diaacutelogo o sucesso de uma investigaccedilatildeo sobre a

imortalidade Tanto a depuraccedilatildeo racional do Feacutedon quanto a elevaccedilatildeo cognitiva do

aprendiz d‟A Repuacuteblica VII datildeo mostras da atuaccedilatildeo do pensamento em busca de atingir

seu niacutevel mais superior

A especificaccedilatildeo da filosofia sobre o pensamento surge nos dois diaacutelogos da

necessidade de investigar e propor no que consiste a sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave esfera

que contempla os oacutergatildeos e os dados da sensibilidade Este seraacute provavelmente o grande

alvo a ser atacado isto eacute o qual deveraacute ser analisado para uma vez expostas as suas

fragilidades elucidar atraveacutes das suas contrastantes diferenccedilas com o inteligiacutevel o

trabalho organizado e preciso da racionalidade Quer no contexto da separaccedilatildeo da alma

6 Rep504e ldquoNatildeo seria ridiacuteculo que nos esforcemos e que tudo faccedilamos para que coisas insignificantes

fiquem tanto quanto possiacutevel mais exatas e niacutetidas mas natildeo consideremos que as mais importantes

mereccedilam tambeacutem maior exatidatildeo ndash Seraacute muito ridiacuteculo [Boa a tua ideacuteia] Mas qual eacute o estudo mais

importante Que objeto atribuis a elerdquo Platatildeo A Repuacuteblica traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado

Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

13

em relaccedilatildeo ao corpo quer no contexto da escolha do futuro governante o qual deve ser

educado para superar a ignoracircncia elevando-se da crenccedila nas imagens a anaacutelise da

atividade intelectual deveraacute contar com as objeccedilotildees lanccediladas ao domiacutenio do sensiacutevel

para propor a positividade do empreendimento racional em relaccedilatildeo aos objetos

metafiacutesicos proacuteprios do intelecto As indagaccedilotildees em torno do pensamento e de sua

legitimidade apontam para elementos afins como as ideias e o meacutetodo dialeacutetico os

quais obtecircm suas determinaccedilotildees junto com os desdobramentos do atividade racional em

oposiccedilatildeo ao que eacute proacuteprio agraves sensaccedilotildees Tal assunto apesar dos diferentes enfoques que

recebe nos diaacutelogos e mesmo apesar das distinccedilotildees que os textos apresentam sobre as

mesmas teorias demonstra o esforccedilo do filoacutesofo em apontar o exerciacutecio filosoacutefico como

a saiacuteda para as questotildees que afligem o homem como a morte e a convivecircncia na cidade

e ao mesmo tempo indicar o exerciacutecio do pensamento como o meio mais adequado para

buscar as possiacuteveis resoluccedilotildees Em outros termos ao eleger a distinccedilatildeo sensiacutevel-

inteligiacutevel como o mote para privilegiar a faculdade cognitiva da alma para o trato

destas questotildees os textos atribuem ao pensar a funccedilatildeo de condicionar a alma ao seu

melhor estado

Outro dado que tornam proacuteximos os diaacutelogos diz respeito agrave figura do filoacutesofo

Ao ocupar o foco das atenccedilotildees seja como aprendiz e governante da cidade ideal seja

como o filoacutesofo nos seus instantes finais o filoacutesofo eacute a personagem que representa o

pensamento filosoacutefico e a sua excelecircncia Como modelo de conduta e de capacidade

cognitiva o filoacutesofo exibe o que deve ser entedido por excelecircncia moral e intelectual

Nesse sentido o que se tem a partir da figura do filoacutesofo que os livros VI e VII d‟ A

Repuacuteblica eacute uma narrativa acerca do processo de aquisiccedilatildeo de uma condiccedilatildeo de

cogniccedilatildeo privilegiada definida como inteligecircncia (λόεζηϛ) a qual pode por isso

especular acerca do bem No Feacutedon tal figura sugere a imagem do processo acabado e

seus resultados e portanto o pensar plenamente desenvolvido (θξόλεζηο) capaz de

conjecturar sobre a imortalidade

Ambas as figuras mostram um modelo de excelecircncia moral e cognitiva que se

realiza concomitantemente agrave aquisiccedilatildeo de uma superioridade intelectual que se

especifica como tal sobretudo pela sua capacidade de apreender seres superiores Tais

seres servem de modelos e paradigmas para a conduta reta e justa e para o proacuteprio uso

da razatildeo que a partir deles pode conjecturar com plausibilidade uma dimensatildeo sempre

superior um domiacutenio que ultrapassa a sua proacutepria capacidade de apreensatildeo do qual

fazem parte o bem e a imortalidade inapreensiacuteveis em sua totalidade

14

A presenccedila de um horizonte amplo e que embora inapreensiacutevel totalmente pelo

pensamento devido agrave sua grandeza tambeacutem eacute um ponto incomum e importante para a

questatildeo a ser investigada nesse estudo A magnanimidade do bem e a

incomensurabilidade do domiacutenio da imortalidade ou estado de morte constitui um

contraponto para o que se refere agrave distinccedilatildeo do pensar ao modo filosoacutefico pois coloca

em questatildeo seu alcance e limite Ao constituir o bem o estudo mais importante

entretanto impossiacutevel de ser conhecido plenamente a investigaccedilatildeo acerca dele deve ser

questionada Do mesmo modo ao ser a morte e a imortalidade o tema sobre o qual vale

a pena arriscar uma explicaccedilatildeo mas que no entanto sobre ele natildeo se pode ter certezas

apenas convicccedilotildees conveacutem perguntar acerca da pertinecircncia desse empreendimento As

questotildees que decorrem desse problema e que conduzem ao tema da pesquisa buscam

saber o que pode a racionalidade conhecer sobre esta dimensatildeo a qual compreende o

bem e a imortalidade Tal propoacutesito obriga a averiguaccedilatildeo dos problemas e das possiacuteveis

respostas que surgem a partir da formulaccedilatildeo do pensamento em seu niacutevel mais alto de

cogniccedilatildeo em sua condiccedilatildeo de excelecircncia considerado o mais indicado para tecer

explicaccedilotildees sobre eles

15

I A Excelecircncia do Filoacutesofo

Diante desta perspectiva na qual um discurso sobre o pensar eacute possiacutevel a partir

de seu exerciacutecio Platatildeo se ocupa em pocircr em relevo nos diaacutelogos A Repuacuteblica e Feacutedon o

pensamento filosoacutefico ou seja o pensamento em seu niacutevel mais alto e portanto

exemplar de modo a constituir um modelo de excelecircncia do pensar anaacutelogo agrave figura do

filoacutesofo O que se apresenta a partir desta figura consiste no modelo de uso da

capacidade maacutexima do intelecto de modo a conquistar seu estado mais distinto e com

isso todos os benefiacutecios que se pode adquirir atraveacutes dele as virtudes a competecircncia

poliacutetica o conhecimento autecircntico a purificaccedilatildeo e o bom destino apoacutes a morte Como

modelo ideal de vida motivada pela busca da sabedoria e pautada no governo da razatildeo

o filoacutesofo e o desenvolvimento de seu intelecto descrito no processo de formaccedilatildeo do

seu caraacuteter no livro VII apresenta um exemplo e uma concepccedilatildeo de magnanimidade

realizaacutevel por meio da busca deste conhecimento superior Distinto de outras

experiecircncias psiacutequicas incluindo as emoccedilotildees e outras atividades mentais as quais

deveratildeo ganhar no Livro VI tratamento para contrastar com o intelecto a razatildeo deve

responder agraves possibilidades de relaccedilatildeo entre uma benignidade identificaacutevel ao divino

com a esfera da vida humana no seu aspecto praacutetico Dito de outro modo a inteligecircncia

tal como se quer formular ganha seu papel a partir da proposta de estabelecer os meios

adequados para que uma vida digna como tem o filoacutesofo do Feacutedon e um governo justo

como pretende o filoacutesofo governante d‟A Repuacuteblica tornem-se realizaacuteveis Desse modo

as accedilotildees do intelecto seus procedimentos e respostas satildeo dadas em busca de

estabelecer esta relaccedilatildeo

Diante de tais objetivos o pensar deve reconhecer a si mesmo ou seja refletir

sobre a sua atividade e sobre as coisas com as quais tem de lidar Essa autorreflexatildeo

sugerida pelo criticismo do filoacutesofo sempre atento aos rumos e procedimentos do

diaacutelogo mostra o exerciacutecio dialeacutetico do ιόγνο filosoacutefico como instrumento da

racionalidade e portanto afim com os propoacutesitos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos

O caraacuteter desta figura se constitui ao mesmo tempo em que esta maneira distinta de uso

da razatildeo apresenta suas especificidades

Assim partindo-se do jaacute enunciado pressuposto de haver uma simeacutetrica

correspondecircncia entre filoacutesofo alma e razatildeo nos diaacutelogos pretende-se tratar em uma

16

primeira parte a questatildeo n‟ A Repuacuteblica e em uma segunda do diaacutelogo Feacutedon Deve-se

ressaltar e analisar os elementos que compotildeem a distinccedilatildeo do filoacutesofo destacando as

questotildees que ganharatildeo tratamento e conceituaccedilatildeo filosoacutefica e que por isso deveratildeo

auxiliar a formar o perfil do pensamento mais alto Desse modo caracteriacutesticas como

qualidades perspectivas objetos seratildeo postos na primeira seccedilatildeo do primeiro capiacutetulo

correspondente a cada parte de modo a contextualizar a questatildeo

11 O filoacutesofo governante

Ao se depararem com a necessidade de perseguir a verdadeira natureza da justiccedila

(Rep 472a-c) e de definir o lugar do filoacutesofo na poacutelis (Rep 474b-c) Soacutecrates e Glaacuteucon

observam a mudanccedila de direccedilatildeo que a investigaccedilatildeo deve tomar no que diz respeito agrave

administraccedilatildeo da cidade (ηῶλ εἰξεκέλσλ πόιηο νἰθήζεηελ Rep 473a8) pondo em foco

assim a questatildeo preliminar mas natildeo menos importante ao tema do pensamento o que

estaacute na base das boas accedilotildees poliacuteticas Com esta questatildeo o diaacutelogo se lanccedila na direccedilatildeo

da causa e do modo justo de agir que ao ser investigada em profundidade conduziraacute

agravequela que parece constituir a verdadeira causa das accedilotildees humanas boas e justas Longe

de se tratar de um mero exerciacutecio abstracionista a investigaccedilatildeo do conceito de justiccedila

aparece indissociaacutevel da anaacutelise da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo poliacutetica exigindo nesta

perspectiva identificar e averiguar os elementos responsaacuteveis por uma praacutetica do

governante conforme o ideal de governo verdadeiramente justo a natureza filosoacutefica e a

formaccedilatildeo adequada Este governante justo e bom que deve comandar a kaliacutepolis uma

vez guardiatildeo das leis e das instituiccedilotildees (Rep 484b-c) representa cabe adiantar por via

do caraacuteter filosoacutefico exposto nos livros centrais o comando e a soberania da razatildeo

Modelo de um ἔζνο superior o filoacutesofo abriga todas as virtudes e conhecimentos

igualmente superiores servindo portanto de paradigma para uma reflexatildeo acerca dos

valores e seus fundamentos

A natureza distinta do filoacutesofo exibido no Livro V oferece um tipo de

personalidade intelectualista sobre a qual se teraacute nos proacuteximos livros explicaccedilotildees sobre

este traccedilo que o caracteriza o intelectualismo Aqui apresentado como aquele que ama

verdade (Rep 474d θηινζε κνλεο 476b) cujo pensamento (δηάλνηα) eacute capaz de ver

17

(eideicircn) a natureza do belo e se apegar a ele ( ἀζπάδνκαη Rep 476b8) capaz de buscar

o proacuteprio belo e de contemplaacute-lo em sua essecircncia (kath‟auto) (Rep 476d) discernindo a

essecircncia das coisas que dela participam (Rep 476d) mostra a distinccedilatildeo do filoacutesofo em

termos morais e poliacuteticos e cognitivos

Por ter o verdadeiro conhecimento o filoacutesofo deve ser o chefe da cidade pois pode

assim salvaguardar as leis e as suas instituiccedilotildees e se necessaacuterio estabelecer as leis do

belo do justo e do bom e mantendo sob guarda as que jaacute existem (Rep 484b-c) O

conhecimento das ideias que fundamentam os valores importantes para uma vida

harmocircnica na cidade deve garantir a manutenccedilatildeo da ordem e da convivecircncia A

sabedoria que o governante deve ter encontra seu fim na conservaccedilatildeo da poacutelis sendo

importante a conduccedilatildeo orientada da maneira correta ou seja orientada na justiccedila e no

verdadeiro bem Assim aquele que naturalmente pode governar ou seja que tem

inclinaccedilatildeo para buscar este saber indispensaacutevel para bem conduzir a cidade deve

apresentar desde a infacircncia caracteriacutesticas que indicam predisposiccedilatildeo para o

conhecimento Tem-se como condiccedilatildeo que a alma do verdadeiro filoacutesofo daquele que

possui alma filosoacutefica e que portanto deve ser treinado de modo a desenvolvecirc-la seja

dotada das seguintes qualidades ama a ciecircncia por inteiro (Rep 485b) natildeo sofre as

vicissitudes da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (Rep 485b) recusa por natureza toda a mentira

e tem afeiccedilatildeo pela verdade e por tudo o que eacute afim com o bem (Rep485c) tem gosto

pelo aprendizado deve se exercitar na busca da verdade (Rep 485d) e ter boa memoacuteria

(Rep 486d1)

O conjunto destas qualidades referentes agrave verdade e ao conhecimento denota a sua

inclinaccedilatildeo para adquirir a virtude da sabedoria Para o filoacutesofo o prazer eacute o prazer da

proacutepria alma fluindo na direccedilatildeo do conhecimento desprezando desse modo os prazeres

e os impulsos do corpo (Rep 485d10-e1) Por via de tal comportamento apresenta

desse modo a virtude da temperanccedila (Rep 485e) Dono de uma natureza incomum

aquele que tem aptidatildeo para a filosofia demonstra possuir grandeza magnanimidade por

ambicionar alcanccedilar o divino e o humano em sua inteireza (Rep 486a) e natildeo teme

desse modo a morte (Rep 486b1) Do mesmo modo dada a sua inteligecircncia considera

mais importante as coisas divinas em oposiccedilatildeo agraves humanas

As virtudes que o acompanham sabedoria justiccedila temperanccedila e coragem advindas

da educaccedilatildeo filosoacutefica atestam o seu lugar de comando na vida puacuteblica e aponta ser o

exerciacutecio filosoacutefico o meio de aquisiccedilatildeo de todas as virtudes Este perfil torna-se

completo com a explicaccedilatildeo em termos epistemoloacutegicos dos traccedilos de sua atividade no

18

livro VI e seu processo de formaccedilatildeo no livro VII Por enquanto tais caracteriacutesticas

expotildeem o caraacuteter cientiacutefico que Platatildeo pretende associar agrave elaboraccedilatildeo de um novo

modelo (παξάδεηγκα) poliacutetico A argumentaccedilatildeo acerca da importacircncia da formaccedilatildeo

intelectual do filoacutesofo desloca para o plano filosoacutefico as questotildees sobre a poacutelis

introduzindo assim um registro de inteligecircncia distinto daquele em que aparentemente

tais questotildees costumam ser consideradas Importa a partir de entatildeo verificar e propor

os elementos estruturantes desta racionalidade que confere todas as virtudes a este que

se mostra um exemplo de maioridade moral e intelectual capaz de realizar do melhor

modo possiacutevel a comunhatildeo entre εἶδνο e πξάμηο ou seja entre o saber intelectual dado pelo

conhecimento das ideias e praacutetica atraveacutes da participaccedilatildeo na vida poliacutetica

Para isso a proposta de uma nova noccedilatildeo de conhecimento (ἐπηζηήκε) e de

inteligecircncia (λόεζηϛ) ganham atenccedilatildeo ao assumir a funccedilatildeo de meio para a aquisiccedilatildeo

daquele que permite intuir sobre o bem a saber a ideia do bem a qual deve constituir

um paradigma para uma boa πξάμηο poliacutetica Parece conveniente dar atenccedilatildeo agrave figura do

guardiatildeo no livro V tal como a do aprendiz no livro VII por ser atraveacutes delas que se

revelam a finalidade e o processo de aquisiccedilatildeo deste tipo de conhecimento Somente no

caso do filoacutesofo natureza e poder poliacutetico coincidem e o processo de treinamento

intelectual do filoacutesofo aprendiz mostra a coerecircncia entre a capacidade cognitiva e

verdadeiro conhecimento habilidade natural e conhecimento especiacutefico caracteriacutesticas

que ao serem desenvolvidas pela filosofia resultam nas qualidades personalizadas na

figura do filoacutesofo

Junto com os desdobramentos epistemoloacutegicos que a discussatildeo ganha ao conduzir a

questatildeo da justiccedila na direccedilatildeo do que seria o governo justo e qual a sua verdadeira causa

surge o tema do pensamento Para que a inteligecircncia que tipifica o filoacutesofo como figura

excelente e portanto mais indicada para o governo tenha fundamento eacute necessaacuterio fazer

consideraccedilotildees acerca daquele que parece constituir o oacutergatildeo proacuteprio a capacidade

proacutepria para o conhecimento e que portanto torna possiacutevel a sua realizaccedilatildeo Na

perspectiva que analogamente toma a cidade como a alma tem-se o pensar se referindo

agrave melhor parte da alma agrave sua parte racional (o logistikon) e ao governante da cidade

Uma explanaccedilatildeo acerca da atuaccedilatildeo do pensamento e a conquista do estado mais alto se

torna o tema central das questotildees poliacuteticas e epistemoloacutegicas que a figura da excelecircncia

do filoacutesofo suscita As bases cientiacuteficas pedidas para nortear as reflexotildees acerca de um

modelo de cidade ideal ilumina o tema da inteligecircncia no conjunto de questotildees

19

relevantes por ser esta a atividade e estado (patheacutemata) crucial para a possibilidade de

uma vida feliz na poacutelis

12 A melhor parte da alma

Para que se chegue agrave cidade perfeita (πόιηο ηειέσο ἀγαζή Rep 427e7) eacute preciso

o arranjo harmocircnico entre as partes que a constituem A organizaccedilatildeo entre os cidadatildeos e

entre as outras cidades depende desse modo de um governante cujo conhecimento

(ἐπηζηήκε) compreenda a cidade como um todo (ὑπὲξ αὑηο ὅιεο) e seja por isso

capaz de estabelecer a melhor relaccedilatildeo entre as partes (Rep 428c11-d3) Adveacutem dos

conhecimentos desse distinto governante a sabedoria que conduziraacute a cidade tornando-a

saacutebia por natureza (Rep 428e8-429a3) Esta forte afirmaccedilatildeo prenuncia a investigaccedilatildeo

dos Livros VI e VII acerca daquela que se mostraraacute a atividade que pode

verdadeiramente realizar tal governo o pensamento em sua excelecircncia realizaacutevel ao

modo da filosofia O domiacutenio da melhor parte da alma dita no Livro IV expressa por

analogia a proposiccedilatildeo de um governo cientificista baseado no conhecimento exercido

pelo filoacutesofo cujo treinamento intelectual lhe permite desenvolver as quatro virtudes na

cidade sabedoria coragem temperanccedila e justiccedila A especificidade do treino dado ao

filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo propotildee deixaacute-lo apto a ocupar a posiccedilatildeo de

governante ao desenvolver sua natural disposiccedilatildeo para o comando Tal

desenvolvimento entretanto natildeo se daria sem um metoacutedico e especiacutefico exerciacutecio que

constitui a experiecircncia intelectual da filosofia Dito de outro modo a experiecircncia do

pensamento nos termos da educaccedilatildeo filosoacutefica confere ao filoacutesofo uma condiccedilatildeo tal que

permite realizar o melhor governo

A conveniecircncia da analogia entre a cidade e a alma mais precisamente sua parte

racional apresentada no livro IV e aparentemente concluiacuteda no Livro VII mostra-se

nesse sentido na possibilidade de investigar com maior profundidade a parte da alma

que deve governar e sobretudo o processo de aquisiccedilatildeo e o significado da excelecircncia

deste que deve ser o elemento dominante ndash ldquo-Ah E um homem justo em nada diferiraacute

de uma cidade justa em relaccedilatildeo ao proacuteprio gecircnero da justiccedila mas seraacute semelhante

(ὅκνηνο)rdquo (Rep 435b1-2) Empregada como um procedimento para a investigaccedilatildeo a

comparaccedilatildeo entre cidade e alma individual permite desse modo a anaacutelise de uma

20

atividade que como modelo deve ser transposta para pensar a cidade como um

organismo harmocircnico e assim justo7 A comparaccedilatildeo serve igualmente aos propoacutesitos

de investigar o pensamento nos termos que concernem agrave aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε a qual

em uacuteltima instacircncia traduz-se no processo de conversatildeo da alma ao bem e agrave ideia do

bem realizada pelo pensar ateacute o seu grau excelente

A elevaccedilatildeo da melhor caracteriacutestica da alma tal como apresentaraacute o Livro VII

(νῦ βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ Rep 532c3-6) realiza-se pelo correto e adequado exerciacutecio por

meio do qual se mostraratildeo as potencialidades e o caraacuteter especiacutefico da racionalidade nos

seus diferentes graus O que no Livro IV eacute sugerido como a cidade justa ou seja o

cumprimento do que determina a natureza de cada classe de acordo com as condiccedilotildees e

disposiccedilotildees de cada uma (πάζε ηε θαὶ ἕμεηο Rep 435b7435b4-5) os livros VI e VII

mostraratildeo como resultado de um processo de desenvolvimento desta natureza dentre as

quais a natureza filosoacutefica se mostra exemplar O desenvolvimento da natureza da alma

filosoacutefica consiste no treino e na busca intelectual do objeto de desejo da alma o bem

que pertence a determinado gecircnero e para isso requer uma atividade caracteriacutestica A

investigaccedilatildeo sobre a justiccedila versa nesses livros especialmente sobre o que deve

cumprir a alma de natureza filosoacutefica a partir da qual se faz uma diferenciaccedilatildeo nos

termos de condiccedilotildees e disposiccedilotildees intelectuais Assim o governo que naturalmente o

filoacutesofo deve exercer encontra nas inquiriccedilotildees sobre a inteligecircncia e seus objetos

especiacuteficos o fundamento racional que justifica tal domiacutenio8 Da mesma forma o objeto

7 Em 368e-369a a analogia aparece justificada como procedimento de maneira mais evidente ldquo() A

justiccedila eacute proacutepria de um indiviacuteduo Eacute tambeacutem proacutepria da cidade toda ndash Sem duacutevida disse ele ndash E a

cidade eacute maior que o indiviacuteduo ndash Maior disse ndash Ora num espaccedilo maior talvez haja mais justiccedila e seja

mais faacutecil entendecirc-la Se quiserdes portanto primeiro examinemos como ela eacute nas cidades depois a

examinemos no indiviacuteduo procurando na forma do menor a semelhanccedila com a da maiorrdquo

8 Anaacutelogo aos conflitos na cidade o conflito que a triparticcedilatildeo ou biparticcedilatildeo apresenta propotildee ao mesmo

tempo os princiacutepios que fundamentam as accedilotildees Desse modo uma accedilatildeo justa tem como base a relaccedilatildeo

equilibrada entre as partes equiliacutebrio alcanccedilaacutevel somente pelo domiacutenio da parte racional Robinson

explica melhor que se pretende argumentar ldquo() Mesmo na alma bipartite do iniacutecio da Repuacuteblica o

conflito era visto como interno as duas bdquonaturezas‟ eram bdquoopostas‟ e precisavam ser bdquoafinadas‟ (375c7-

8 410e) Isso natildeo eacute menos verdade quando o bdquoelemento filosoacutefico‟ eacute considerado realmente o bdquoelemento

raciocinativo‟ e quando o bdquoelemento irasciacutevel‟ longe de ser algo desiderativo eacute visto como bastante

distinto daquilo que eacute genuinamente desiderativo A justiccedila no indiviacuteduo e no Estado acaba sendo o

bdquofazer o proacuteprio trabalho‟ por parte de cada um dos elementos constituintes em um ou outro e a

injusticcedila o oposto (443c-e) Do mesmo modo define-se bdquosobriedade‟ ou bdquoequiliacutebrio‟ em termos que se

encaixam bem com a analogia de uma cidade ou Estado compartimentalizado um homem eacute bdquosoacutebrio‟

bdquodevido agrave amizade e agrave concoacuterdia dessas mesmas partes quando explicitamente o princiacutepio que governa

e seus dois suacuteditos unem-se na crenccedila de que a razatildeo deve governar e natildeo se rebelam contra elerdquo

Robinson T M A Psicologia de Platatildeo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2007 pg 85 Como se daacute o domiacutenio da

razatildeo sobre o desejo e sobre o iacutempeto eacute algo que natildeo parece ser explicado no Livro IV e tampouco nos

Livros VI e VII A razatildeo convenceria as outras partes da alma a cada uma cumprir devidamente sua

funccedilatildeo ou seria uma dominaccedilatildeo feita com reacutedeas curtas como parece ser a atitude da parte racional em

relaccedilatildeo agrave irasciacutevel no Fedro 256b1-3ldquo() senhores de si e disciplinados subjugam o que faz nascer a

21

que deve servir de modelo para as questotildees morais e o procedimento racional descrito

na atividade do dialeacutetico constituem os paracircmetros racionais para a atividade do bom

governo

Por ora natildeo se realizaraacute uma anaacutelise mais profunda sobre as questotildees que

envolvem a triparticcedilatildeo da alma no Livro IV Interessa abordar tal questatildeo na medida em

que se questiona acerca daquilo que eacute indicado como a parte racional da alma que deve

dominar as demais Parece inquestionaacutevel que a parte capaz de realizar as operaccedilotildees

racionais tal como descreveraacute os Livros VI e VII eacute a parte raciocinante por outro lado

vale ressaltar que os aspectos trabalhados nos livros citados mostram justamente como o

domiacutenio da razatildeo se mostra possiacutevel As influecircncias da parte irasciacutevel da alma natildeo

parecem estar em questatildeo Ao contraacuterio como a experiecircncia da conduccedilatildeo da alma feita

pelo pedagogo mostraraacute ao ser bem treinada a alma desenvolve as habilidades que

permitiratildeo no caso do dialeacutetico ter o conhecimento sobre as questotildees que se

relacionam ao bem e ter o discernimento necessaacuterio sobre sua proacutepria arte requisitos

necessaacuterios para o governo Se o dialeacutetico representa a parte racional da alma e em

contrapartida as outras classes de cidadatildeos estatildeo analogamente inferidos pelas demais

em seu uso correto o pensar domina ateacute mesmo a parte irasciacutevel a qual pode ter como

aliada

Todavia uma anaacutelise dos argumentos acerca da relaccedilatildeo entre alma e objeto no

Livro VI e do tratamento das disciplinas matemaacuteticas sobre as sensaccedilotildees ao final do

Livro VII mostram o que verdadeiramente constitui um estiacutemulo para o pensar Ainda

que a alma possua uma parte impetuosa que pode colaborar com sua racionalidade (Rep

440e-441a) no que diz respeito agraves operaccedilotildees e alcance racionais a interaccedilatildeo com os

seres inteligiacuteveis e a provocaccedilatildeo do sensiacutevel sobre a alma se revelam estiacutemulos proacuteprios

para a atividade do pensar Ao que parece o iacutempeto constituinte da alma tal como traz

a triparticcedilatildeo no Livro IV representa muito mais ao que tange o poder e a forccedila de um

dado governo na cidade do que ao tipo de estiacutemulo que trazem as anaacutelises acerca do

pensamento Diferentemente deste iacutempeto irasciacutevel o qual pode associar-se tanto agrave

razatildeo quanto aos desejos (Rep 440b) tais estiacutemulos se datildeo por meio do exerciacutecio

intelectual e assim estatildeo necessariamente em colaboraccedilatildeo com a razatildeo

maldade na alma e deixam em liberdade as forccedilas pelas quais se gera a virtuderdquo Os livros VI e VII

mostram a parte racional em sua operacionalidade sem entrar diretamente ao que parece em questotildees

acerca das demais motivaccedilotildees Pode-se supor somente a possibilidade e como se daacute esse apaziguamento a

exemplo dos resultados que se tem com a educaccedilatildeo do pedagogo no Livro VII Por enquanto vale

acompanhar a descriccedilatildeo das partes para verificar como e em que medida eacute possiacutevel o domiacutenio da razatildeo

22

Um dos pontos que a proposta do filoacutesofo governante com a sua arte dialeacutetica

parece querer mostrar se refere ao que seria um governo inteiramente baseado no

conhecimento e assim sem o risco de sucumbir a uma classe que demonstre

desobediecircncia Do mesmo modo argumentar a favor da racionalidade como ordenadora

das relaccedilotildees entre partes distintas demonstra o interesse em defender o pensamento sua

atividade e resultados Trata-se de propor a organizaccedilatildeo segundo os ditames e

procedimentos inteligentes em oposiccedilatildeo ao que se pode obter a partir do desejo e do

impulso Nesse sentido o pensamento como quer mostrar os Livros VI e VII e como se

propotildee este estudo refere-se exclusivamente ao pensar nos termos da parte racional da

alma a qual em resumo revela-se nas operaccedilotildees que envolvem a percepccedilatildeo nos termos

da opiniatildeo e da aquisiccedilatildeo do conhecimento A justiccedila e o bom governo tecircm como base

diante do que se analisa a formulaccedilatildeo de uma epistemologia baseada na excelecircncia do

exerciacutecio do pensamento tema que ganha ecircnfase nos livros centrais d‟A Repuacuteblica

sobretudo nos Livros VI e VII e a partir do qual se torna possiacutevel dar tratamento

racional agraves questotildees acerca do bem comum e da conduta moral centro das preocupaccedilotildees

e do filoacutesofo

Apoacutes essa explanaccedilatildeo introdutoacuteria sobre o filoacutesofo e sua alma filosoacutefica cabe

comentar alguns dados antes de prosseguir Deve-se natildeo perder de vista o horizonte da

investigaccedilatildeo filosoacutefica que se apresentou na anaacutelise a saber o conhecimento o bem e a

morte Estes satildeo os alvos finais da inquiriccedilatildeo filosoacutefica e devem receber atenccedilatildeo dado

que somente a razatildeo em sua potecircncia maacutexima pode arriscar como se veraacute qualquer

conjectura sustentaacutevel acerca deles Dito de outra perspectiva uma especulaccedilatildeo de

objetos tatildeo grandes e portanto exigentes do ponto de vista cognitivo podem oferecer

informaccedilotildees sobre a inteligecircncia e sobre a concepccedilatildeo de conhecimento que estaacute em

jogo Os dois temas acabam assim por colaborar para mostrar o empreendimento da

cogniccedilatildeo na exploraccedilatildeo de um plano que se distingue da vida prosaica e da mesma

forma para apresentar as minuacutecias de um aparato teoacuterico e metodoloacutegico proacuteprio da

filosofia para superar as dificuldades da investigaccedilatildeo a saber as teorias das ideias e da

23

reminiscecircncia e a dialeacutetica Seraacute por isso que Platatildeo pretendeu nos dois diaacutelogos colocar

alvos tatildeo magnacircnimos O primeiro dado que se verifica eacute que estes temas bem e morte

fazem parte das preocupaccedilotildees daquilo que provavelmente o filoacutesofo considera serem

estas as questotildees de maior importacircncia e que portanto devem ser investigados mesmo

que seja impossiacutevel compreendecirc-los totalmente sendo o bem desse modo considerado

o estudo mais importante e morte-vida a questatildeo sobre qual vale a pena se ocupar

O outro ponto para o qual se deve chamar atenccedilatildeo o qual interessa muito aos

propoacutesitos deste estudo diz respeito ao dado de que ambos apresentam uma perspectiva

a qual ganha conceituaccedilatildeo e participa portanto deste aparato teoacuterico de que se vale a

filosofia a suposiccedilatildeo de um outro plano uma dimensatildeo diferente que de algum modo

orienta a atividade filosoacutefica por abrigar as coisas de mais alto valor anaacutelogo portanto

ao domiacutenio inteligiacutevel A investigaccedilatildeo do filoacutesofo pretende em uacuteltima instacircncia

apreender esses altos valores de modo a compreendecirc-lo o quanto lhe for possiacutevel A

magnanimidade moral que distingue o filoacutesofo dos demais cidadatildeos refere-se agrave tentativa

de apreender no que consiste a maioridade de valores como bondade e justiccedila as quais

ele julga comparaacuteveis agraves coisas divinas Conveacutem assim averiguar a atividade do

pensamento filosoacutefico no que se refere a apreensatildeo dos maiores valores

13 O Conhecimento dos valores

Para tentar compreender como se constituem as qualidades do filoacutesofo e assim

a importacircncia e o significado da superioridade do pensamento ao modo da filosofia

cabe averiguar a concepccedilatildeo do bem que esta a ser construiacuteda Natildeo se pode entender a

excelecircncia do filoacutesofo sem se perguntar o que significa ser bom Assim vale comeccedilar

pelo conhecimento mais importante para o filoacutesofo governante o conhecimento do bem

Tema presente na voz do senso comum o bem seraacute averiguado em um primeiro

momento naquilo que se mostra como qualidade de outras noccedilotildees igualmente

importantes para a cidade O questionamento acerca da justiccedila e de outras virtudes

indicam a inquiriccedilatildeo da noccedilatildeo de ἀγαζόο como a mais urgente por ser a caracteriacutestica

presente em tudo o que eacute concebido como algo considerado positivo Em outros termos

as qualidades que apresentam a justiccedila e as coisas consideradas belas mostram a noccedilatildeo

do bem entre os atributos que aparentemente as constituem e as qualificam

24

positivamente Desse modo o objeto mais especulado e como natildeo poderia deixar de

ser o mais incompreendido segundo a concepccedilatildeo do filoacutesofo recebe a partir de entatildeo

um tratamento agrave luz do que se revelaraacute ser o verdadeiro conhecimento

ldquo- () Mas qual eacute o estudo mais importante Que objeto

atribuis a ele Acreditas que algueacutem te deixaria ir embora sem que te

fizesse essas perguntas (νἴεη ηηλ ἄλ ζε ἔθε ἀθεῖλαη κὴ ἐξσηήζαληα ηί

ἐζηηλ)

- De forma alguma disse eu Vamos Pergunta Em todo caso

natildeo poucas vezes ouviste isso e neste momento ou natildeo pensas nisso

ou tens em mente criar-me dificuldades com tuas objeccedilotildees Acredito

que mais seja isso que pretendes Eacute que jaacute me ouviste dizer muitas

vezes que o estudo mais importante eacute a ideia do bem e que eacute atraveacutes

dela que as accedilotildees justas e outras accedilotildees se tornam uacuteteis e proveitosas

(ἐπεὶ ὅηη γε ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα κέγηζηνλ κάζεκα πνιιάθηο ἀθήθναο ᾗ

δὴ θαὶ δίθαηα θαὶ ηἆιια πξνζρξεζάκελα ρξήζηκα θαὶ ὠθέιηκα

γίγλεηαη) E agora jaacute sabes que eacute isso que vou dizer e aleacutem disso que

natildeo temos conhecimento suficiente dessa ideia Se poreacutem natildeo a

conhecemos ainda que conheccedilamos as outras isso de nada nos

serviraacute como quando possuiacutemos algo sem ter o bem (ὥζπεξ νὐδ εἰ

θεθηῄκεζά ηη ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ) Ou crecircs que haveraacute vantagem na

posse de qualquer coisa que seja se ela natildeo for uma coisa boa Ou

em compreender tudo o mais mas natildeo o bem e nada de belo e bom

(ἢ νἴεη ηη πιένλ εἶλαη πᾶζαλ θηζηλ ἐθηζζαη κὴ κέληνη ἀγαζήλ ἢ

πάληα ηἆιια θξνλεῖλ ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ κεδὲλ

θξνλεῖλ)9

- Por Zeus eu natildeo disserdquo (Rep 504e6-505b4)

Deve-se acompanhar a progressatildeo daquilo que se apreende como qualidade para

a noccedilatildeo de ideia A beleza e a justiccedila qualidades das coisas justas e belas satildeo

consideradas boas e dessa forma parecem expressar uma positividade nos termos de

um valor O que eacute tido como belo justo uacutetil e proveitoso eacute inegavelmente bom e por

isso satildeo atributos que demonstram um valor positivo apreciaacutevel ldquoO bomrdquo confere aos

demais atributos tal positividade que potildee a ideia do bem (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα) como a

caracteriacutestica fundamental de todo o conjunto de coisas que apresentam tais qualidades

Ela torna bom tais atributos e se mostra por isso a origem de tudo o que parece ser

considerado positivo

9 A ediccedilatildeo inglesa utiliza ldquothinkrdquo e ldquoin high regardrdquo para natildeo perder as variaccedilotildees de sentido do termo φρονεῖν que muito enriquecem o trecho - Plato Republic Loeb Harvard University Press 2013 (Classical Library) traduccedilatildeo Chris Emlyn-Jones and William Preddy Vale notar que a utilizaccedilatildeo da palavra neste instante sugere um conhecimento intelectual ao modo filosoacutefico e portanto uma atividade inteligente como se desenvolveraacute mais adiante Observe-se que se atribui a esta atividade um valor uma certa superioridade

25

Cabe notar as perspectivas que levaram agrave funccedilatildeo de origem da ideia do bem para

que se possa assim compreender melhor o sentido em que se pode apreendecirc-la

Embora apareccedila em um plano menos evidente nessa ultima passagem note-se que a

conjugaccedilatildeo bem-positividade sugere tal como se observa ser uma caracteriacutestica da

ideia do bem conferir uma noccedilatildeo de valor Do mesmo modo ao mesmo tempo em que a

noccedilatildeo de ldquobomrdquo aparece quase como um componente das coisas com qualidades

apreciadas ndash afinal ningueacutem diria que as coisas uacuteteis natildeo satildeo boas - o bem se mostra

tambeacutem uma referecircncia a partir da qual se lanccedila um julgamento acerca de algo Este

parece ser o criteacuterio impliacutecito na concepccedilatildeo da maioria que elege algo como apreciaacutevel

Assim tido como um paracircmetro o bem eacute apreendido ele mesmo nos termos de um

valor o que provavelmente justifica a sua apariccedilatildeo apoacutes a tentativa de falar sobre as

virtudes10

Observe-se que esta abordagem valorativa do bem evolui para outros planos As

perspectivas que introduzem a investigaccedilatildeo sobre a ideia do bem satildeo dadas

indistintamente tal como uma abordagem comum Soacutecrates e Glaacuteucon parecem ter

neste momento a consciecircncia desta confusatildeo e da insuficiecircncia de conhecimento acerca

da noccedilatildeo que agora se mostra como a mais importante Dito de outro modo visto como

um valor como um atributo de um conjunto de coisas e por uacuteltimo como a origem das

mesmas o bem exige um estudo que permita dizecirc-lo distintamente de modo que torne

possiacutevel a partir daiacute verificar as virtudes e outras noccedilotildees Desse modo o bem visto

inicialmente como a qualidade comum em um conjunto de coisas apreciaacuteveis tem

destacado a sua posiccedilatildeo de condiccedilatildeo essencial sem a qual tais coisas natildeo existiriam natildeo

seriam como tais isto eacute natildeo apresentariam tal positividade e sobre as quais natildeo seria

possiacutevel saber nada A passagem mostra desse modo a transposiccedilatildeo da perspectiva

comum para a filosoacutefica onde se apresenta a evoluccedilatildeo da anaacutelise das coisas

consideradas justas e belas (δίθαηα κὲλ θαὶ θαιὰ Rep 505d5) e portanto boas ao modo

da apreensatildeo da generalidade de objetos particulares para uma ideia como a ideia do

10 Penner natildeo ignora que mesmo com a investigaccedilatildeo ontoloacutegica a ideia do bem apresente as qualidades no sentido do que eacute beneacutefico e uacutetil ldquoQuanto ao que eacute a Forma do Bem isso seraacute obviamente tatildeo difiacutecil de vir a conhecer (R 506b-507a Phd 97b-100c) quanto eacute difiacutecil em Soacutecrates saber o que satildeo a virtude ou o bem Contudo uma interpretaccedilatildeo do caminho mais longo torna de fato claro que a Forma do Bem eacute a Forma do Vantajoso ou Beneacutefico natildeo eacute como eacute nas interpretaccedilotildees mais influentes desde cerca de 1920 () a forma de um bem impessoal ou quase moralrdquo Penner T ldquoAs Formas e as Ciecircncias em Soacutecrates e em Platatildeordquo in Benson H (Org) Platatildeo Porto Alegre Artmed 2011 p 171 Longe de argumentar a favor da existecircncia de uma ldquoforma do Vantajosordquo como sugere o comentador importa trazer esse dado porque atraveacutes dele se volta atenccedilatildeo para a presenccedila da benignidade da ideia do bem na esfera da vida comum importante para as questotildees poliacuteticas como se veraacute mais adiante

26

bem e da beleza (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ) Esse novo objeto de

investigaccedilatildeo a ideia exige uma abordagem e uma anaacutelise especiacutefica a partir da qual a

ideia do bem seraacute visto na sua condiccedilatildeo de origem e atributo essencial Analisar a

justiccedila e as virtudes natildeo satildeo suficientes sem o conhecimento disto que parece ser o

fundamento delas11

A constataccedilatildeo do verdadeiro objeto a ser investigado note-se exige da mesma

forma uma investigaccedilatildeo acerca de sua apreensatildeo Desse modo o outro ponto importante

a ser avaliado para que se possa investigar o bem como fundamento passa a ser a

aquisiccedilatildeo do bem e a noccedilatildeo de conhecimento Note-se que adquirir o conhecimento

supotildee como quer a filosofia uma noccedilatildeo de saber que aparece nesta atividade Por se

tratar de um novo tipo de investigaccedilatildeo na qual o objeto eacute visto de um acircngulo distinto

exige-se uma capacidade e um modo de investigar igualmente distintos que por

apreender um objeto tal como a ideia do bem consiste em um modo de aquisiccedilatildeo com

suposta superioridade com um valor mais elevado em comparaccedilatildeo ao modo de

investigaccedilatildeo feito ateacute entatildeo Empreende-se uma κέγηζηνλ κάζεκα e portanto uma

aquisiccedilatildeo (θηζηο) que constituiraacute ao que tudo indica o conhecimento nos termos de

uma apreensatildeo em um grau maior

Tal suposiccedilatildeo parece ser confirmada no trecho seguinte Deve-se observar as

distinccedilotildees que passam a ser traccediladas natildeo somente em relaccedilatildeo ao objeto analisado mas

tambeacutem no que se refere a sua abordagem e apreensatildeo Vale ter em vista essa

superaccedilatildeo da particularidade para a universalidade da ideia que sugere a ideia do bem

e ao mesmo tempo a noccedilatildeo de conhecer que o trecho propotildee para acompanhar passo a

passo a relaccedilatildeo entre os propoacutesitos poliacuteticos apresentados anteriormente e a

epistemologia do livro VI Nesse sentido satildeo postas as questotildees que concernem ao

pensamento nos termos de uma apreensatildeo que se daraacute ao modo da filosofia como uma

11 Como natildeo seraacute um tema que o Livros VI e VII levaratildeo adiante conveacutem adiantar as consequecircncias da

inversatildeo intelectualista que Platatildeo propotildee no que se refere ao que se considera ldquobomrdquo Em oposiccedilatildeo ao

prazer as qualidades do Bem que seraacute tratado com mais detalhes nos livros seguintes satildeo dadas como

aquelas caracteriacutesticas que provocam o intelecto e oferecem a ele subsiacutedios para a atividade intelectual

tal como as noccedilotildees geomeacutetricas que satildeo inteligiacuteveis Schuhl indica esse limite nos seguintes termos ldquoSoacute

se poderia pois corretamente julgar pelo prazer o que natildeo apresenta nem utilidade nem verdade nem

semelhanccedila nem sem duacutevida nada prejudicial mas tem como uacutenica razatildeo de ser o encanto () Platatildeo

sublinha que natildeo se pode mais se referir ao prazer quando intervecircm a semelhanccedila e a igualdade sob

qualquer forma que seja pois o que faz o igual ser igual e simeacutetrico o simeacutetrico natildeo eacute a opiniatildeo do

primeiro que se encontra nem o encanto que ele possa encontrar nisso eacute antes de tudo a verdade o

resto praticamente natildeo contardquo Schuhl P M Platatildeo e a Arte de Seu Tempo Discurso Editorial

Barcarolla Satildeo Paulo 2010 p 80-81

27

aquisiccedilatildeo da ideia ou ao modo do senso comum como uma apreensatildeo da aparecircncia

daquilo que se supotildee ser o bem

ldquo- Eis algo que sabes Para a maioria das pessoas o bem eacute o

prazer mas para os mais requintados eacute a inteligecircncia (ηνῖο δὲ

θνκςνηέξνηο θξόλεζηο)

- Sem duacutevida disse

- E sabes meu amigo que os que pensam assim natildeo conseguem

dizer o que eacute a inteligecircncia mas acabam por ser forccedilados a

mencionar a inteligecircncia do bem (νἱ ηνῦην ἡγνύκελνη νὐθ ἔρνπζη

δεῖμαη ἥηηο θξόλεζηο ἀιι ἀλαγθάδνληαη ηειεπηῶληεο ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ

θάλαη)

- E isso eacute muito ridiacuteculo disse

- E como deixaria de ser disse eu se apesar de censurar-nos por

natildeo conhecermos o bem de novo falam como se conhececircssemos Eacute

que dizem que eacute a inteligecircncia do bem como se de nossa parte

estiveacutessemos entendendo o que estatildeo dizendo uma vez que

pronunciam a palavra bem (ἐπεηδὰλ ηὸ ηνῦ ἀγαζνῦ θζέγμσληαη

ὄλνκα)rdquo(Rep 505b8-c4)

Um dos primeiros indiacutecios da mudanccedila de abordagem do bem consiste na

diferenciaccedilatildeo agora anunciada entre o nome e o proacuteprio objeto Haacute uma diferenccedila entre

o bem tal como eacute geralmente dito concebido no senso vulgar e o sentido que se tem em

vista a partir de agora O nome bem proferido comumente ganharaacute um sentido

especiacutefico caracteriacutestico que soacute pode ser desvelado nesta pesquisa que procura

apreendecirc-lo segundo o que eacute (ηί ἐζηηλ) Aqueles que se engajam nesse tipo de

investigaccedilatildeo compreendem as distinccedilotildees do bem O primeiro passo para a averiguaccedilatildeo

da ideia do bem consiste em desassociaacute-la daquilo que ela qualifica Da mesma forma

compreende-se que ele consiste em algo ainda natildeo conhecido mas que estaacute aleacutem

daquilo que se designa como ldquobemrdquo Note-se que tal distinccedilatildeo eacute intriacutenseca agraves questotildees

que envolvem o pensamento O processo de conhecimento que se propotildee nesse instante

natildeo pode ser realizado sem que se tenha uma concepccedilatildeo clara ou ao menos que se

propotildee elucidar sobre os processos que envolvem tal aquisiccedilatildeo Com a passagem de um

registro a outro do comum para o filosoacutefico justifica-se cada vez mais a anaacutelise acerca

da atividade intelectual que efetiva o conhecimento de acordo com o que se propotildee a

partir de agora

Nesse contexto em que se atribui agrave ideia do bem a posiccedilatildeo de origem e a

considera por isso como a mais importante entre todas as noccedilotildees o pensar eacute dito nos

termos do θξνλεῖλ e o conhecimento nos temos de uma apreensatildeo realizada pelo

28

pensamento acerca da ideia do bem Compreender no que consiste esta mais alta

apreensatildeo constitui a proposta epistemoloacutegica do filoacutesofo que seraacute investigada em todo

o livro VI e se tornaraacute no Livro VII o centro das investigaccedilotildees por fundamentar a

pedagogia que se ocuparaacute de mostrar como tornar esta alta intelecccedilatildeo realizaacutevel Parece

inevitaacutevel uma verificaccedilatildeo acerca do pensar em suas variadas maneiras de ocorrer e

principalmente no seu niacutevel mais elevado ao se pretender falar sobre o conhecimento de

qualquer virtude e sobre aquilo que se mostra um objeto de desejo comum a todos

filoacutesofos ou natildeo o bem

Apesar da polissemia12

do termo θξνλεῖλ o que o texto mostra eacute a necessidade

de uma atividade dada ao modo intelectual cujo estatuto cognitivo se distingue de

outras atividades intelectivas Entretanto vale salientar a diferenciaccedilatildeo que

concomitantemente se faz entre o filoacutesofo e o natildeo filoacutesofo Aqueles que compreendem

as distinccedilotildees do bem satildeo considerados por isso mais refinados (θνκςνηέξνηο) em

oposiccedilatildeo agravequeles que possuem uma acepccedilatildeo vulgar sobre ele e buscam somente o

prazer considerando equivocadamente o que eacute prazeroso como bom Observe-se que a

diferenciaccedilatildeo feita sob um criteacuterio epistemoloacutegico tambeacutem apresenta um parecer moral

Aleacutem de exprimir a capacidade superior de cogniccedilatildeo sugerida pelo θξνλεῖλ essa

maneira de se referir aos que conhecem verdadeiramente o bem propotildee uma

qualificaccedilatildeo que ultrapassa o senso vulgar O refinamento dito nesse contexto

certamente parte desta nova abordagem que supotildee o conhecimento do bem tambeacutem

como criteacuterio para a distinccedilatildeo do filoacutesofo e de suas qualidades Conhecer o bem nesse

sentido tornou-se criteacuterio para o julgamento da postura de quem se propotildee a se

pronunciar sobre o bem ou sobre qualquer outra noccedilatildeo

O texto ainda natildeo oferece maiores esclarecimentos sobre o bem como uma

referecircncia nos termos da moralidade Antes eacute necessaacuterio investigaacute-lo de modo a abordar

aquilo que ele eacute essencialmente e elucidar o meacutetodo adequado para conhececirc-lo Apoacutes o

que se analisou das passagens vale ter em vista a progressatildeo de uma perspectiva a outra

e os elementos que vatildeo aos poucos sendo iluminados pela necessidade de investigar a

12 Neste trecho θξόλεζηο recebe vaacuterias traduccedilotildees ldquointelligencerdquo ediccedilatildeo francesa ED Les Belles Lettres

1996 ldquoknowledgerdquo segundo a ediccedilatildeo inglesa Loeb Classical Library Harvard University Press 2013 A

ediccedilatildeo brasileira como a francesa opta por utilizar um termo ldquointeligecircnciardquo que tambeacutem traduz a palavra

λνήζηϛ o que eacute evidentemente autorizado dado que na analogia da linha dividida o texto apresenta uma

explicaccedilatildeo dessa apreensatildeo cognitiva no niacutevel mais alto Desse modo entende-se λνήζηϛ e θξόλεζηο

como designando tal apreensatildeo A mesma conotaccedilatildeo do termo a saber de apreensatildeo e de elevaccedilatildeo

intelectual apresenta-se no Feacutedon

29

ideia do bem como a posiccedilatildeo que o bem passa a ocupar a noccedilatildeo de conhecimento e as

exigecircncias da ordem cognitivas

ldquo- E os que definem o prazer como um bem Seraacute que estatildeo menos

errados que os outros Esses tambeacutem natildeo seratildeo forccedilados a

reconhecer que haacute prazeres maus (Τί δὲ νἱ ηὴλ ἡδνλὴλ ἀγαζὸλ

ὁξηδόκελνη κῶλ κή ηη ἐιάηηνλνο πιάλεο ἔκπιεῳ ηῶλ ἑηέξσλ ἢ νὐ θαὶ

νὗηνη ἀλαγθάδνληαη ὁκνινγεῖλ ἡδνλὰο εἶλαη θαθάο)

- Natildeo teratildeo outra saiacuteda

- E o que acontece eacute que creio eu eles reconhecem que as mesmas

coisas satildeo boas e maacutes Natildeo eacute

- Entatildeo estaacute evidente que sobre essa questatildeo as divergecircncias

(ἀκθηζβεηήζεηο) satildeo grandes e numerosas

- Como deixariam de serrdquo (Rep 505c6-d1)

A conduccedilatildeo da questatildeo do bem para o plano que se contrapotildee agrave percepccedilatildeo do

sensiacutevel na qual se encontram o prazer e as aparecircncias O pensar a ideia do bem e as

coisas que satildeo que ganham foco na pesquisa compotildeem o polo oposto ainda indefinido

Tal dicotomia marca natildeo soacute o que se mostraraacute uma distinccedilatildeo de gecircnero e domiacutenio de

objetos e de atividades intelectivas como uma distinccedilatildeo de conduta aqui dita na

dicotomia entre a maioria que escolhe as aparecircncias (πνιινὶ ἂλ ἕινηλην ηὰ δνθνῦληα) e

os que investigam os que buscam as coisas que satildeo a realidade (ηὰ ὄληα δεηνῦζηλ) Na

mesma direccedilatildeo cabe reparar a maioria opta pelas aparecircncias enquanto os que buscam a

realidade e portanto dispotildeem do pensamento para conhecer satildeo forccedilados

(ἀλαγθάδνληαη) a reconhecer a ideia do bem Os que se apegam agraves aparecircncias o fazem

ao que parece a partir de uma escolha natildeo havendo imposiccedilatildeo de nenhum tipo para tal

enquanto os que investigam estatildeo submetidos ao que mostra a investigaccedilatildeo

Pode-se dizer que por via dessa distinccedilatildeo e contraposiccedilatildeo entre planos surgem a

noccedilatildeo de conhecimento e a perspectiva filosoacutefica tatildeo preciosa ao tipo de governo que

se almeja Ao mesmo tempo deve-se analisar que tal divisatildeo mostra a tensatildeo entre esses

polos que em algum momento teratildeo definidos o seu caraacuteter e o seu lugar segundo a

noccedilatildeo de organizaccedilatildeo que se tem em vista para a cidade Ao lanccedilar luz sobre a conduta e

ao avaliaacute-la segundo pressupostos epistemoloacutegicos que envolvem o conhecimento do

bem o texto deixa no horizonte a ligaccedilatildeo entre a esfera moral neste instante dada como

postura ante o conhecimento e a esfera cientiacutefica que deve ser a base para as questotildees

morais e poliacuteticas relaccedilatildeo que somente o filoacutesofo pode dar conta As questotildees que

envolvem o conhecimento a saber objeto e meacutetodo ofereceratildeo o teor das diferenccedilas

aqui anunciadas mas para isso uma detalhada explanaccedilatildeo acerca do pensamento ganha

30

destaque jaacute que seu caraacuteter e operacionalidade revelaratildeo os elementos fundamentais

para a realizaccedilatildeo do governo do filoacutesofo

14 O objeto de desejo do filoacutesofo

A formulaccedilatildeo filosoacutefica do bem introduz sob um novo prisma as questotildees acerca

da alma e as suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel O que se viu sugerido como um valor

cientiacutefico acessiacutevel portanto pelo pensamento e que consiste ao mesmo tempo em uma

referecircncia para um julgamento da conduta passa a ser esclarecido assim como as

peculiaridades desta atividade de conhecer tiacutepica dos que buscam apreendecirc-lo Ao

reconhecer as distinccedilotildees dos que se lanccedilam a tal apreensatildeo e portanto ao pensamento

no niacutevel mais elevado Soacutecrates e Glaacuteucon se empenham em detalhar este objeto e este

tipo de investigaccedilatildeo que inevitavelmente traratildeo consequecircncias para o entendimento

sobre a alma e sobre aquela que parece ser a sua atividade excelente Do mesmo modo

esclareceratildeo acerca da possiacutevel apreensatildeo que o natildeo filoacutesofo dado na figura do

guardiatildeo pode ter deste objeto tatildeo valioso para a vigilacircncia da cidade

ldquo- E aquilo que toda alma busca e eacute objeto de todas as suas

accedilotildees (Ὃ δὴ δηώθεη κὲλ ἅπαζα ςπρὴ θαὶ ηνύηνπ ἕλεθα πάληα

πξάηηεη) Embora suspeite que seja algo de valor ela natildeo tem como

apreender suficientemente o que ele eacute nem sentir-se confiante e

segura como a respeito de outras coisas (ἀπνκαληεπνκέλε ηη εἶλαη

ἀπνξνῦζα δὲ θαὶ νὐθ ἔρνπζα ιαβεῖλ ἱθαλῶο ηί πνη ἐζηὶλ νὐδὲ πίζηεη

ρξήζαζζαη κνλίκῳ νἵᾳ θαὶ πεξὶ ηἆιια) e por isso natildeo consegue o

que lhe seria uma ajuda A respeito de algo tatildeo grande como isso

afirmaremos que devem ficar na escuridatildeo tambeacutem os que satildeo os

melhores da cidade em cujas matildeos vamos entregar tudo

- De forma alguma disse

- Em todo caso falei creio que quando se ignora em que o

belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha um

guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes

disso conheceraacute o justo e o belo de maneira suficiente

- E teu prognoacutestico eacute acertado disse

31

- Entatildeo nossa constituiccedilatildeo estaraacute perfeitamente em ordem se

um tal guardiatildeo aquele que sabe disso mantiver vigilacircncia sobre ela

(ἐὰλ ὁηνηνῦηνο αὐηὴλ ἐπηζθνπῆ θύιαμ ὁ ηνύησλ ἐπηζηήκσλ)rdquo (Rep

505e-506b2)

Ao se questionarem sobre o verdadeiro objeto de busca da alma e o que pode ser

a causa de suas atividades aparece o bem No fundo desse questionamento estatildeo as

relaccedilotildees da alma com esta que se mostra ser a ideia com qualidades e com estatuto

ontoloacutegico privilegiado como se analisaraacute reconhecida portanto como a ideia para o

fundamento epistemoloacutegico e moral que o filoacutesofo governante tem em vista A busca de

tal fundamento deve-se atentar inicia com uma advertecircncia que prenuncia a natureza

distinta deste objeto comparaacutevel ao divino (ἀπνκαληεύνκαη) cuja apreensatildeo por

conseguinte natildeo deve ser precipitadamente tomada como suficiente ou como uma

convicccedilatildeo inabalaacutevel A compreensatildeo acerca de tal ideia e portanto acerca do alcance e

das tratativas que a alma possui com o bem note-se que isso se estende agraves almas dos

cidadatildeos (ἅπαζα ςπρὴ) deve se realizar de maneira distinta pois ilumina um ponto

crucial para a conduccedilatildeo e para a organizaccedilatildeo da cidade a causa e o modo de agir da

alma Embora o texto natildeo apresente ainda o meacutetodo especiacutefico para a anaacutelise de um

objeto como a ideia do bem como se daraacute nas proacuteximas passagens importa averiguar

na noccedilatildeo de bem o caraacuteter e as consequecircncias desse fundamento

Natildeo se deve ao que parece entregar a cidade nas matildeos de quem desconhece o

bem e a justiccedila pois disso depende a harmonia da cidade ndash ldquo-Em todo caso falei creio

que quando se ignora o belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha

um guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes disso conheceraacute o

justo e o belo de maneira suficienterdquo (Rep 506a4-7) O objeto almejado por todas as

almas eacute o bem e ao que tudo indica tanto o filoacutesofo quanto o guardiatildeo podem de

algum modo acessaacute-lo Entretanto ele natildeo eacute apreensiacutevel por todas elas como mostraraacute

o livro VII e eacute preciso saber em que medida e em que condiccedilotildees tal acesso eacute possiacutevel e

o que os diferencia aleacutem das determinaccedilotildees dadas pela natureza da alma de cada um A

primeira diferenccedila que surge neste registro parece consistir em uma certa postura que

pode ser cientiacutefica ou permanecer no niacutevel das acepccedilotildees vulgares ou seja natildeo

cientiacuteficas

O filoacutesofo se dispotildee a buscar o bem e portanto demonstra ter conhecimento e

inteligecircncia diferentemente da maioria que natildeo se daacute conta da possibilidade de realizar

tal busca e prefere se fiar nas aparecircncias A figura do guardiatildeo diferente da maioria

32

sugere que eacute possiacutevel para o natildeo filoacutesofo apreender o bem e nesse caso

especificamente tal possibilidade parece se realizar de alguma forma o que eacute

necessaacuterio acontecer para o bem da cidade Cabe chamar atenccedilatildeo para o dado de que a

postura de natildeo se dar conta da importacircncia de tal busca e portanto das relaccedilotildees que o

bem manteacutem com o que eacute belo e justo retrata a ignoracircncia (ἄγλνηα) e a sua funccedilatildeo

peculiar no desenvolvimento da tese moral Ao que parece trata-se justamente de uma

condiccedilatildeo na qual a alma natildeo estaacute submetida agraves condiccedilotildees da busca e por isso natildeo chega

agrave ideia do bem mas que por outro lado apresenta a possibilidade de reconhecer de

algum modo as relaccedilotildees com ele

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar inteiramente o perfil do filoacutesofo do guardiatildeo e da maioria

sem antes verificar a especificidade da relaccedilatildeo que estes mantecircm com o bem

Entretanto eacute bom natildeo perder de vista essas trecircs categorias que apresentam em algum

grau uma relaccedilatildeo com ele seja na apreensatildeo no niacutevel mais alto seja em uma eventual

apreensatildeo de suas relaccedilotildees ou na completa falta de percepccedilatildeo de qualquer ligaccedilatildeo das

coisas com a ideia do bem O objeto legiacutetimo da alma cujos termos da uacuteltima passagem

permitem tomaacute-la como um gecircnero natildeo como um ἅπαζα ςπρὴ eacute o bem e o desafio do

governo do filoacutesofo consiste justamente em empreender o modo de governo explorando

as potencialidades de cada perfil de cidadatildeo

A necessidade de analisar a cogniccedilatildeo o que particularmente objetiva este estudo

surge nos textos a preocupaccedilatildeo em estabelecer um paradigma para os valores morais

Especialmente no livro VI como se viu importa construir uma noccedilatildeo de bem estaacutevel e

universal a qual escape agrave vulnerabilidade do senso comum e que sirva portanto de

modelo para as accedilotildees Nesse sentido se torna elucidado o papel da cogniccedilatildeo como

atividade de conhecer os valores em seu fundamento Assim o exerciacutecio racional

descrito a partir daqui deve ser tomado como o pensamento que conhece os valores

autecircnticos uma vez que apreende o que os fundamenta13

A associaccedilatildeo entre

13 Tal compreensatildeo acerca dos valores e padrotildees eacute na verdade bastante proacutexima da interpretaccedilatildeo de

Brisson e Meyerstein sobre a relaccedilatildeo da Teoria das Formas com as questotildees eacuteticas ldquoOra esta eacutetica

normativa que implica o estabelecimento de valores eacuteticos absolutos Platatildeo a funda a partir do Feacutedon

sobre a existecircncia de realidades natildeo-sensiacuteveis que escapam ao devir que representam a realidade

verdadeira e que ele chamaraacute ldquoFormasrdquo (eidos ou idea) A coragem eacute uma Forma imutaacutevel que para um

ou outro homem representa um padratildeo de medida dessa virtudePor consequecircncia o grau de perfeiccedilatildeo

ao qual o homem atinge este domiacutenio se mede pela distacircncia em relaccedilatildeo agrave este padratildeo idealrdquo Brisson

33

conhecimento e eacutetica ligaccedilatildeo a qual somente o filoacutesofo pode assimilar apoia-se de um

lado na existecircncia destes modelos que natildeo resultam de convenccedilotildees ou seja que natildeo se

estabelecem pelo haacutebito ou por interesses particulares e por outro pelo tipo de atitude

intelectual que se deve empreender A concepccedilatildeo de racionalidade estaacute submetida agraves

necessidades eacuteticas e poliacuteticas e deve ter em vista a cogniccedilatildeo deste tipo de objeto a

saber a ideia do bem e agraves demais noccedilotildees que possuem relaccedilatildeo com ela como a justiccedila

A postura filosoacutefica tem deste modo um comprometimento moral sendo o

conhecimento apreendido no exerciacutecio da filosofia o meio de executaacute-lo e desempenhar

o papel de governante Dado assim vale adiantar o proacuteprio pensamento nesta condiccedilatildeo

constitui algo de grande valor sendo o proacuteprio empreendimento racional uma

demonstraccedilatildeo de virtude Esta conclusatildeo eacute dada mais objetivamente no Feacutedon onde a

θξόλεζηο a qual tambeacutem recebe a conotaccedilatildeo de sabedoria eacute analogamente dita ser a

moeda mais valorosa (Fed 69a7-c3) A anaacutelise da atribuiccedilatildeo de sentido agrave razatildeo no

Feacutedon seraacute realizada posteriormente pois apesar de mostrar semelhanccedilas com o que se

tem visto neste toacutepico merece ser examinada com exclusividade na seccedilatildeo dedicada ao

diaacutelogo Por enquanto deve-se acompanhar as minuacutecias que mostram o caraacuteter

intelectualista fundamental na constituiccedilatildeo moral do filoacutesofo para compreender no que

consiste o intelectualismo filosoacutefico

15 A postura intelectual

As indagaccedilotildees sobre o bem recebem agora delimitaccedilotildees que mostram o registro

em que deve se dar a investigaccedilatildeo ldquo() afirmarias que o bem eacute ciecircncia ou prazer ou

algo outro (πόηεξνλ ἐπηζηήκελ ηὸ ἀγαζὸλ θῂο εἶλαη ἢ ἡδνλήλ ἢ ἄιιν ηη παξὰ ηαῦηα)rdquo

(Rep 506b2-4) O foco de anaacutelise se dirige de maneira digna de nota ao campo que

deve oferecer o bem anaacutelogo ao modo de conhececirc-lo O modo de perguntar por ele natildeo

seria como feito anteriormente ldquoo que eacute o bemrdquo A suspeita que se pode ter acerca

desta comparaccedilatildeo diz respeito agrave relaccedilatildeo que pode haver entre ele e a alma Dado que o

L Meyerstein F W Puissance et Limites de la Raison ndash Le Problegraveme des Valeurs Paris Les Belles

Lettres 2014 p 33

34

bem eacute o objeto que a alma busca e o conhecimento o modo de adquiri-lo faz sentido

assim perguntar se o bem eacute a ἐπηζηήκε ou a ἡδνλή se as considerarmos maneiras de

conceber a bondade do bem ou ao modo do conhecimento filosoacutefico ou ao modo

vulgar respectivamente O que eacute sugerido neste novo acircngulo de anaacutelise eacute novamente a

apreensatildeo mas agora verificando se o bem corresponde ao conhecimento

De acordo com as delimitaccedilotildees para investigaacute-lo natildeo eacute justo dizer o bem sem

conhececirc-lo nem parece uma boa estrateacutegia considerar as opiniotildees dos outros sobre ele

como um conhecimento sem ter ao menos uma opiniatildeo proacutepria Do mesmo modo

fingir saber o que ele eacute natildeo corresponde a uma postura cientiacutefica e justa (Rep 506b)

Tais exemplos traccedilam um perfil que seraacute associado ao natildeo filoacutesofo O que tem sido

considerado pela maioria eacute identificado como as ηὰ δόγκαηα (Rep 506b9) uma visatildeo

comum ou mesmo um percepccedilatildeo individual sobre o assunto mas motivada por uma

aparecircncia de sabedoria

ldquo- O quecirc disse eu Na tua opiniatildeo eacute justo que algueacutem fale do que

natildeo sabe como se soubesse

- Como se soubesse De forma alguma Mas como algueacutem que

quer dizer o que pensa (Τί δέ ἦλ δ ἐγώ δνθεῖ ζνη δίθαηνλ εἶλαη πεξὶ

ὧλ ηηο κὴ νἶδελ ιέγεηλ ὡο εἰδόηα Οὐδακῶο γ ἔθε ὡο εἰδόηα ὡο

κέληνη νἰόκελνλ ηαῦζ ἃ νἴεηαη ἐζέιεηλ ιέγεηλ)rdquo ( Rep 506c2-5)

Eacute importante notar que haacute nessa passagem a distinccedilatildeo de postura intelectual que

seraacute definitiva para a formulaccedilatildeo da noccedilatildeo de conhecimento e para a compreensatildeo do

pensamento Antes de iniciar a investigaccedilatildeo acerca da definiccedilatildeo da ideia do bem parece

importante verificar o que a ela se relaciona tal como a maneira mais adequada de

conhececirc-la Assim uma criacutetica acerca de sua abordagem deve ser dada nos termos dessa

postura uma vez que a alma tem o bem como objetivo Uma opiniatildeo sem conhecimento

eacute considerada uma postura vergonhosa e aquelas consideradas melhores para natildeo dizer

menos comprometedoras do ponto de vista moral carecem de esclarecimento e podem

ser comparadas a uma cegueira (Rep 506c) O que vem a seguir explica esse peso

moral do conhecimento que se pretende dar

ldquo() Ou para ti haacute alguma diferenccedila entre cegos que percorrem

seu caminho no sentido correto e os que tecircm uma opiniatildeo verdadeira

embora natildeo tenham inteligecircncia (ἢ δνθνῦζί ηί ζνη ηπθιῶλ δηαθέξεηλ

ὁδὸλ ὀξζῶο πνξεπνκέλσλ νἱ ἄλεπ λνῦ ἀιεζέο ηη δνμάδνληεο Rep

506c7-9)rdquo

35

Os que opinam sem conhecimento satildeo considerados cegos e no pior dos casos

insolentes Mesmo quando vatildeo pelo caminho correto e entatildeo incorram em um acerto

afirmando algo verdadeiro aqueles que opinam natildeo possuem inteligecircncia (λνῦο)

Chama atenccedilatildeo o dado a mais que parece ser colocado nessa passagem Entre os

que opinam se distinguem aqueles que podem ir pelo caminho correto e opinar algo

verdadeiro Esses satildeo melhores que aqueles que simplesmente proferem opiniotildees

somente por querer dizer (ἐζέιεηλ ιέγεηλ) De todo modo opiniotildees satildeo desprovidas de

inteligecircncia no entanto haacute a possibilidade do acerto Como um cego que tateia para

encontrar o caminho correto e o encontra natildeo se sabe por qual razatildeo o δνμάδνληεο natildeo

parece orientado por um discernimento acerca do que opina Tal comportamento sugere

ser a opiniatildeo verdadeira um juiacutezo correto acertado mas natildeo resulta do trabalho da

inteligecircncia O primeiro questionamento que adveacutem dessa afirmaccedilatildeo consiste em pensar

o que torna possiacutevel e como se daacute o acerto sem conhecimento No entanto antes de

tentar responder a tais perguntas vale reparar que tal acerto se daacute sem haver base

princiacutepio do qual se tenha partido e que servisse de paracircmetro para chegar a algo

verdadeiro Diferentemente do que conhece e tem inteligecircncia os que opinam com

acerto natildeo deixam de ter uma postura errante justamente por natildeo conhecerem a verdade

e seu fundamento inteligiacutevel - que consiste na ideia do bem como se veraacute adiante14

Esse talvez seja um dado a ser investigado no avanccedilar da pesquisa em

comparaccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo uma vez que provavelmente indica a possibilidade do natildeo

filoacutesofo ser governado pelo filoacutesofo e com isso se relacionar com a ideia do bem ainda

que indiretamente Todavia no momento natildeo parece haver elementos suficientes para

compreender no que pode consistir a opiniatildeo verdadeira sem uma investigaccedilatildeo acerca

da relaccedilatildeo entre a alma e o bem Por enquanto o estudo mais importante prossegue

investigando o bem a partir daquilo que se relaciona a ele tendo em vista justamente as

ligaccedilotildees que se podem apreender e que de algum modo o denunciam15

A noccedilatildeo de

acerto e as ligaccedilotildees entre o bem e o que dele deriva dito ldquofilho do bemrdquo sugerem a

complexidade das relaccedilotildees que envolvem essa ideia e portanto da noccedilatildeo do

14 Vale trazer o comentaacuterio de Julia Annas sobre a diferenccedila entre opiniatildeo verdadeira e conhecimento de

acordo com o Livro X dado que o argumento em anaacutelise apresenta a distinccedilatildeo entre um e outro embora

natildeo resolva ldquoO conhecimento envolve do mesmo modo a possibilidade de formular claramente o que eacute

o objeto conhecido e as razotildees pelas quais ele eacute como eacute ora isto implica que se saiba o que permite dar

conta de seu aspecto bom ou mal A opiniatildeo verdadeira natildeo necessita de nada dissordquo Julia ANNAS

Introdution agrave la Reacutepublique de Platon Presses Universitaires de France Paris 1a Ed 1994 pag 243-244

15 Rep 506e3-4 ldquoo que me parece ser o filho do bem e o que eacute muito semelhante a ele (ὃο δὲ ἔθγνλόο ηε

ηνῦ ἀγαζνῦ θαίλεηαη θαὶ ὁκνηόηαηνο ἐθείλῳ)rdquo

36

pensamento como sede e atividade de aquisiccedilatildeo do conhecimento tema que estaacute em

questatildeo Diante da possibilidade do acerto e da verdade na opiniatildeo eacute provaacutevel que a

oposiccedilatildeo opiniatildeo-conhecimento esboce um ponto de contato No entanto seja qual for

esta ligaccedilatildeo mostraraacute a superioridade da inteligecircncia

Vale observar que a oposiccedilatildeo entre conhecimento e opiniatildeo marcam duas

questotildees muito importantes para o prosseguimento da anaacutelise Em primeiro lugar

reforccedila a postura do filoacutesofo como uma questatildeo moral tornando possiacutevel a relaccedilatildeo

conhecimento e praacutetica isto eacute filosofia e governo Dito de maneira mais direta o

intelectualismo do filoacutesofo natildeo pode ser visto como um distanciamento da vida poliacutetica

ao contraacuterio tem seu papel assegurado nela agrave medida que a filosofia se revela

imprescindiacutevel para o bom governo Por extensatildeo a ἐπηζηήκε tem funccedilatildeo poliacutetica

definida e dessa maneira demonstra ter o trabalho racional um aspecto pragmaacutetico no

sentido fraco

Tal eacute o segundo ponto a ser observado no intelectualismo do filoacutesofo O uso da

razatildeo diante das questotildees poliacuteticas tem em vista tambeacutem o lado praacutetico do pensar o

qual se realiza no governo O pensamento que ateacute este ponto se mostra como a

inteligecircncia que conhece as ideais que fundamentam os valores morais como a ideia do

bem deve ter assim seus procedimentos objetos e alcance cognitivo explicados para

mais tarde no livro VII narrar a aplicaccedilatildeo deste conhecimento Desta forma as relaccedilotildees

e classificaccedilotildees que aparecem no livro VI constituem um rico argumento para analisar o

que talvez possa ser considerado o pensar em seu niacutevel mais alto em contraste com

outras atividades mentais Evidentemente que natildeo se exploraraacute as outras atividades aleacutem

deste propoacutesito ou seja fazer um contraponto com a inteligecircncia A busca do filoacutesofo

governante por padrotildees eacuteticos passa agora a ser analisada sob o prisma epistemoloacutegico

O dialeacutetico do livro VI mostra o caraacuteter teacutecnico da filosofia vista de agora em diante

como um exerciacutecio de aquisiccedilatildeo onde aparece com maior ecircnfase o filoacutesofo cientista ou

37

da perspectiva que mais interessa o pensamento nos termos da cogniccedilatildeo a qual a partir

de entatildeo se define como a atividade de buscar as ideias

II A Cogniccedilatildeo

21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem

A pesquisa sobre o que eacute o bem eacute posta de lado sem mais nenhuma explicaccedilatildeo

aleacutem da previsatildeo de se tratar de um objeto cujas exigecircncias demandam um esforccedilo que

vai aleacutem do acircnimo (ηὴλ παξνῦζαλ ὁξκὴλ Rep 506e2)16

de Soacutecrates Dada magnitude

do bem a questatildeo passaraacute a ser investigada a partir do ldquofilho do bemrdquo recurso definido

como o que parece ser mais semelhante a ele (Rep 506d8-e5) O cuidado versaraacute sobre

realizar uma inquiriccedilatildeo de modo a oferecer uma explicaccedilatildeo um caacutelculo verossiacutemil

como o proacuteprio texto diz disto que se revelaraacute herdeiro das caracteriacutesticas do bem ndash ldquo

Recebei portanto os juros e o proacuteprio filho do bem (Rep 507a 4-5) segundo a

16 A ediccedilatildeo inglesa apresenta uma traduccedilatildeo interpretativa mas sem duacutevida bastante coerente para ηὴλ

παξνῦζαλ ὁξκὴλ ldquopresent state of thinkingrdquo Emlyn-Jones C Preddy W op cit p 85 O texto sugere a

incapacidade de apreensatildeo do pensamento diante magnanimidade da ideia do bem mas ao mesmo tempo

a pesquisa intelectual dado por uma acircnimo e por isso um vinculada a uma instacircncia desiderativa Uma

das caracteriacutesticas que distingue o filoacutesofo dos demais se refere a esta postura de busca do conhecimento

que nessa passagem aparece nos termos da ὁξκὴ Vale atentar para a noccedilatildeo de acircnimo intelectual que a

investigaccedilatildeo supotildee o qual agora eacute dita por Soacutecrates como um impulso um esforccedilo Esse seraacute um tema

tratado no livro VII durante a explicaccedilatildeo da proposta propedecircutica na qual se verificaraacute qual a disciplina

apresenta o impulso uacutetil e necessaacuterio para o trabalho intelectual

38

capacidade de apreendecirc-lo ndash ldquoTeremos o maior cuidado que pudermos disserdquo

(Εὐιαβεζόκεζα ἔθε θαηὰ δύλακηλ) (Rep 507a6) As questotildees jaacute levantadas e

definidas em discussotildees anteriores sobre as coisas boas e belas (Πνιιὰ θαιά θαὶ πνιιὰ

ἀγαζὰ) seratildeo revistas a partir desta proposta que comeccedila por distinguir a generalidade

das muacuteltiplas coisas belas e boas da essencialidade da ideia que pressupotildee o novo foco

de investigaccedilatildeo Assim o que era pensado como uma pluralidade de coisas que

apresentavam a benignidade e a beleza como caracteriacutesticas agora abre ocasiatildeo ao que eacute

essencialmente bom e belo que natildeo pode ser outra coisa que a ideia do bem e a ideia do

belo

ldquo- E o proacuteprio belo e o proacuteprio bem e da mesma forma todas

as coisas que naquele momento tiacutenhamos como muacuteltiplas (Καὶ αὐηὸ

δὴ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ θαὶ νὕησ πεξὶ πάλησλ) noacutes agora num

movimento contraacuterio consideramos cada uma em relaccedilatildeo a uma ideia

uacutenica agrave qual damos o nome de essecircncia ndash (ἃ ηόηε ὡο πνιιὰ ἐηίζεκελ

πάιηλ αὖ θαη ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο ldquoὃ ἔζηηλrdquo

ἕθαζηνλ πξνζαγνξεύνκελ)

- Eacute assim

- E das coisas muacuteltiplas afirmamos que satildeo vistas mas natildeo

pensadas enquanto as ideias satildeo pensadas mas natildeo vistas (Καὶ ηὰ

κὲλ δὴ ὁξᾶζζαί θακελ λνεῖζζαη δ νὔ ηὰο δ αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ

ὁξᾶζζαη δ νὔ)rdquo (Rep 507b5-c10)

Este constitui um importante movimento da investigaccedilatildeo ao descrever uma

postura e um foco inteiramente intelectual A perspectiva a partir da qual se pretende

apreender o bem apresenta um elemento que mostra o que haacute de essencial nele a ἰδέα

Deve-se observar a construccedilatildeo deste foco trata-se agora do proacuteprio belo e do proacuteprio

bem (αὐηὸ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ) O que era dito ldquoo bemrdquo e ldquoideia do bemrdquo recebe

agora especificaccedilotildees nos termos de sua identidade A questatildeo parece superar as

caracteriacutesticas e benesses do bem e da beleza para enfatizar aquilo em que mostram ser

autecircnticos ldquoele mesmordquo (ηὸ αὐηό) literalmente o bem ele mesmo o belo ele mesmo

exprimindo dessa forma a sua identidade Tal deve ser o modo a se considerar o bem o

belo e qualquer objeto que estiver sob investigaccedilatildeo O acircngulo que exprime o ηὸ αὐηό eacute

dado conforme uma ideia uacutenica (θαη ἰδέαλ κίαλ) na qual estaacute posto o que eacute essencial

oferecendo por isso o que ele eacute (ὃ ἔζηηλ) A ideia uacutenica consiste portanto no objeto

que exprime o que eacute essencial ao bem ao belo ou ao que se investiga e eacute partir dela

que se daraacute o conhecimento Os termos utilizados para questionar o bem anteriormente

39

recebem nessa passagem uma formulaccedilatildeo especiacutefica Eacute necessaacuterio ter em vista tais

especificaccedilotildees ao se referir a ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα ou para fazer qualquer investigaccedilatildeo da

ordem do conhecimento O termo ὃ ἔζηηλ antes proferido sem maiores especificaccedilotildees

(Rep 506a-b) tem determinado o seu conteuacutedo cognitivo Perguntar-se sobre o bem

consiste em saber o que ele eacute e desse modo eacute perguntar-se sobre a sua essecircncia

manifesta pela ideia Tal relaccedilatildeo entre o bem a ideia e o chamado ldquoo que eacuterdquo mostra

assim aquilo que Soacutecrates considera possiacutevel de apreender17

As especificaccedilotildees sobre a ideia e o ser ganharatildeo explicaccedilotildees O proacuteximo passo

como jaacute previsto diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja agrave apreensatildeo da

ideia Assim o pensamento nos termos do λνῦο aparece como a atividade intelectual

adequada para apreendecirc-las em contraposiccedilatildeo a uma percepccedilatildeo sensiacutevel A dicotomia

enunciada em passagens anteriores como filoacutesofo e natildeo filoacutesofo opiniatildeo e

conhecimento tem uma versatildeo epistecircmica que deve integrar as distinccedilotildees necessaacuterias

para apurar a formulaccedilatildeo dessa perspectiva cientiacutefica o que eacute visiacutevel e o que eacute pensado

Em termos literais as ideias satildeo pensadas enquanto as coisas muacuteltiplas satildeo vistas (ηὰο δ

αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ ὁξᾶζζαη δ νὔ) O pensamento consiste assim na faculdade para

a apreensatildeo das ideias contraposto agraves sensaccedilotildees que apreende somente o que eacute sensiacutevel

(Rep 507c3-4)

Para traccedilar um perfil mais preciso do pensamento e da postura intelectual que o

conhecimento do bem exige vale analisar primeiro o caraacuteter das sensaccedilotildees e das coisas

sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo ao que se refere ao inteligiacutevel Note-se que o que estaacute em

jogo nesse momento eacute muito mais uma definiccedilatildeo de apreensatildeo e que para isso vale

elucidar o que se refere a cada tipo quer da sensibilidade quer do pensamento No caso

das coisas sensiacuteveis antes abordadas nos termos da aparecircncia (ηὰ δνθνῦληα Rep

505d9) o texto mostra os oacutergatildeos da sensibilidade como o que traz a capacidade de

sentir Esses satildeo todavia insuficientes para oferecer qualquer elemento da ordem do

inteligiacutevel Interessa notar o elemento que estaacute para aleacutem da insuficiecircncia dos sentidos e

desse modo delimitar as diferenccedilas entre sensaccedilatildeo e pensamento que se tornam cada

vez mais precisas Importa averiguar aquilo que possibilita a apreensatildeo meio sem o

17 Adam entende que o que eacute tomado como πνιιὰ cada coisa a que se referem diz respeito a uma uacutenica

ideia mas adverte acerca das dificuldades de uma traduccedilatildeo que ofereccedila um sentido claro e simples acerca

de πνιιὰ e ἰδέαλ κίαλ O que lhe parece claro eacute que estes formam uma antiacutetese a qual denota a

contraposiccedilatildeo entre a proacutepria ideia e os πνιιὰ Adam entende que ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ consiste na forma

generalizada de o proacuteprio belo o proacuteprio bem e que o ldquobalanccedilo mais preciso entre ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ e

ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ eacute ldquouma ideia de cada umrdquo chamada ldquoo que eacuterdquo Adam J The Republic of Plato vol II

Cambridge University Press 2009 Pg 81-82

40

qual nenhuma capacidade (δύλακηο Rep 507c8) sensiacutevel e intelectual como se veraacute

poderia exercer a sua funccedilatildeo Entre o ato de ver e o objeto visto se supotildee um terceiro

elemento que torna possiacutevel esse fenocircmeno da visatildeo a luz Sem ela as cores e outras

caracteriacutesticas sensiacuteveis nos objetos seriam invisiacuteveis Natildeo seria possiacutevel utilizar o

oacutergatildeo da visatildeo uma vez que faltaria algo externo a ele que o permitisse ver (Rep

507d11-508a3) A luz eacute descrita como o viacutenculo (ζύδεπμηο Rep 508a1) entre a

sensaccedilatildeo da visatildeo e a capacidade de ser visto Ela consiste portanto naquilo que faz a

ligaccedilatildeo entre percepiente e objeto perceptiacutevel de modo a tornar possiacutevel o

desenvolvimento da capacidade da percepccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de uma

imagem e de tornar o objeto sensorial passiacutevel de ser apreendido mecanismo que

caracteriza o do fenocircmeno da visatildeo

De modo anaacutelogo e paralelo tem-se em foco delinear a capacidade de apreensatildeo

do pensamento e o que o permite atuar Eleito o oacutergatildeo de aquisiccedilatildeo das ideias parece

necessaacuterio investigar a sua relaccedilatildeo com o objeto tiacutepico de uma busca intelectual de

modo a verificar as suas potencialidades Para melhor dizer a respeito do bem faz-se

necessaacuterio especificar natildeo somente as ideias mas ter uma compreensatildeo acerca da

faculdade capaz de estabelecer relaccedilotildees com elas Nesse sentido a pesquisa do bem tal

como eacute feita nas uacuteltimas passagens lanccedila luz agraves questotildees do intelectualismo no que se

refere a sua atuaccedilatildeo como um fenocircmeno da capacidade intelectiva e seu alcance

Representado na figura do filoacutesofo ao longo dos Livros V e VI a intelectualidade

comeccedila a exibir determinaccedilotildees natildeo somente no campo da moralidade mas tambeacutem do

seu exerciacutecio cientiacutefico especiacutefico O que era analisado sob o crivo de um valor moral

como se notou nas abordagens iniciais do bem passa a ser investigado segundo a

formulaccedilatildeo da ciecircncia Da mesma maneira todos os elementos que acompanham a

questatildeo do conhecimento como a ideia e o pensamento satildeo alvo de explicaccedilotildees

Assim as proacuteximas passagens mostraratildeo as operaccedilotildees intelectivas no desenrolar da

explicaccedilatildeo sobre o bem onde seraacute possiacutevel acompanhar as formulaccedilotildees acerca de uma

tiacutepica aquisiccedilatildeo inteligente

41

22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento

A relaccedilatildeo entre faculdade de apreensatildeo e objeto apreensiacutevel depende de algo

exterior que promove a ligaccedilatildeo entre eles A luz aparece assim como um importante

elemento (ἄηηκνλ Rep 508a3) que promove uma relaccedilatildeo entre capacidades ndash de ver e

de ser visto segundo o texto Ela constitui o viacutenculo de descendecircncia entre a causa e

suas derivaccedilotildees entre o sol e o que eacute iluminado por ele possibilitando o conhecimento

acerca dos mesmos O que vem a seguir mostraraacute contudo que mais importante que

este viacutenculo entre δύλακηο como a luz eacute o que a origina a exemplo do sol (Rep

508a8) A analogia propotildee desse modo uma explicaccedilatildeo para a noccedilatildeo de viacutenculo nos

termos de uma relaccedilatildeo natural (θύσ Rep 508a9) ou seja uma relaccedilatildeo que se justifica

dada a sua origem na qual o ser originaacuterio da onde derivam os outros seres assume

maior importacircncia

ldquo- Seraacute assim a relaccedilatildeo natural da visatildeo com esse deus ( Ἆξ νὖλ

ὧδε πέθπθελ ὄςηο πξὸο ηνῦηνλ ηὸλ ζεόλ)

- Como

- A visatildeo natildeo eacute o sol nem a proacutepria visatildeo em si nem o lugar onde

dizemos que ela se daacute isto eacute os olhos

- Natildeo eacute

- Mas eacute creio eu entre os oacutergatildeos dos sentidos o olho eacute mais

semelhante ao sol (Ἀιι ἡιηνεηδέζηαηόλ γε νἶκαη ηῶλ πεξὶ ηὰο

αἰζζήζεηο ὀξγάλσλ)

- De longe o mais semelhante

- Entatildeo tambeacutem o poder que o olho tem ele natildeo o possui com algo

que como um fluxo procede do sol (Οὐθνῦλ θαὶ ηὴλ δύλακηλ ἣλ ἔρεη

ἐθ ηνύηνπ ηακηεπνκέλελ ὥζπεξ ἐπίξξπηνλ θέθηεηαη)

- Eacute bem assim

- Seraacute entatildeo que tambeacutem o sol natildeo eacute a visatildeo mas sendo a causa

dela eacute visto por meio da proacutepria visatildeo (Ἆξ νὖλ νὐ θαὶ ὁ ἥιηνο ὄςηο

κὲλ νὐθ ἔζηηλ αἴηηνο δ ὢλ αὐηο ὁξᾶηαη ὑπ αὐηο ηαύηεο)rdquo (Rep

508a9-b10)

O sol natildeo eacute o fenocircmeno da visatildeo tampouco os olhos oacutergatildeo da visatildeo

(ἡιηνεηδέζηαηόλ Rep 508a9-11) embora os olhos constituam o oacutergatildeo mais semelhante

e portanto mais afim com o sol A capacidade de visatildeo que tecircm os olhos adveacutem do sol

ou seja eacute posta em atividade por ele que no seu papel de fonte originaacuteria transmite tal

habilidade como um fluiacutedo funccedilatildeo desempenhada pela luz A explicaccedilatildeo dada por esta

analogia descreve a relaccedilatildeo de causa e explicita o que se deve entender por uma relaccedilatildeo

42

a ligaccedilatildeo que promove um fenocircmeno a partir do desenvolvimento das capacidades do

objeto apreensiacutevel e do oacutergatildeo que o apreende Trata-se da atribuiccedilatildeo de capacidades e o

que permite o desenvolvimento delas que se explica a partir de uma figura originaacuteria e

superior como o sol Ao que tudo indica a importacircncia de pocircr em foco os elementos

que participam dessa relaccedilatildeo de modo a elencaacute-los e distingui-los estaacute em pocircr em

questatildeo a natureza do que causa o desdobramento da percepccedilatildeo a partir do mecanismo

que constitui o fenocircmeno da visatildeo Natildeo seria correto para a investigaccedilatildeo reconhecer a

causa errada de uma apreensatildeo tampouco superestimar a superioridade do que assume

tal funccedilatildeo

De modo anaacutelogo a natureza inteligiacutevel da ideia do bem natildeo deve ser

confundida nem ter a sua superioridade mitigada reconhecendo-se assim a

superioridade disto que se mostraraacute mais adiante ser o gecircnero inteligiacutevel Da mesma

forma admite-se a superioridade da alta intelecccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees que se tem

na opiniatildeo uma vez que somente nesse niacutevel se pode conhecer algo sobre a verdadeira

causa O estudo do bem como αἴηηνο se revela como um ganho ao mostrar a cadeia de

relaccedilatildeo que eacute possiacutevel inferir a partir da relaccedilatildeo que se mostra entre causa e o que eacute

causado Como sugere a analogia o sol ao emanar seus fluiacutedos permite o conhecimento

do que eacute iluminado e a inferecircncia acerca dele proacuteprio Natildeo eacute conveniente para o

momento discutir a relaccedilatildeo de causalidade que sugestivamente eacute dada na analogia antes

das uacuteltimas informaccedilotildees que o texto iraacute apresentar sobre o bem e a ideia do bem

Interessa observar na analogia a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pensamento e objeto que o

desdobramento da δύλακηο promove a partir da descriccedilatildeo desse ser causador e superior

Tal desdobramento que por ora aparece nos termos do fenocircmeno da percepccedilatildeo sensiacutevel

e da aquisiccedilatildeo inteligiacutevel indicaraacute a origem do comportamento do filoacutesofo do guardiatildeo

e dos outros cidadatildeos quando observado como estados (παζήκαηα) da alma

oferecendo assim uma explicaccedilatildeo mais objetiva sobre as operaccedilotildees do pensamento

Outro dado ao qual se deve dar atenccedilatildeo diz respeito agrave natureza do oacutergatildeo de

apreensatildeo semelhante ao ser originaacuterio Essa consiste em uma importante informaccedilatildeo

para compor a caracterizaccedilatildeo do pensamento como faculdade do conhecimento e

portanto afim com a ideia e com o bem A exemplo dos olhos o oacutergatildeo dos sentidos

mais semelhante com o sol e que sugere portanto uma afinidade natural com ele

descreve a relaccedilatildeo que o pensamento como oacutergatildeo do conhecimento e da inteligecircncia

deve estabelecer com as ideias inteligiacuteveis as quais oferecem de algum modo o bem

A natureza do pensamento eacute semelhante agrave natureza do bem e das ideias e portanto deve

43

ser o meio para reconhecer a relaccedilatildeo que haacute entre o ἀγαζόο e as outras coisas que dele

derivam Deve-se observar que posto nos termos de uma relaccedilatildeo natural de filiaccedilatildeo o

pensamento deve apresentar as caracteriacutesticas afins com o bem Entretanto o texto

ainda natildeo oferece tais elementos antes de propor uma anaacutelise das complexidades do

pensar como uma atividade na alma Por enquanto a distinccedilatildeo entre apreensatildeo

capacidades e fonte de origem parece importante para que se possa mais adiante

empreender uma anaacutelise das operaccedilotildees intelectuais ateacute aqui sugeridas Do mesmo modo

tais diferenciaccedilotildees parecem fundamentais para caracterizar e qualificar o pensar e o

conhecimento de modo a compreender uma certa hierarquia que se constroacutei a partir da

noccedilatildeo de valor a saber a magnanimidade do bem e a importacircncia da ideia do bem

analogamente descrita na superioridade do sol como paracircmetro como referecircncia Como

um paracircmetro tal superioridade permite qualificar algo como niacutetido ou verdadeiro

quando posto em relaccedilatildeo ao bem18

O jogo de oposiccedilotildees que se tem observado ao longo desta pesquisa mostra na

oposiccedilatildeo visiacutevel-inteligiacutevel dita diretamente na analogia do sol as relaccedilotildees que se pode

estabelecer entre os diferentes domiacutenios Vale examinar este tracircmite na figura da luz e

na descriccedilatildeo da relaccedilatildeo de descendecircncia entre o sol e seus filhos onde satildeo sugeridas as

noccedilotildees de causalidade e semelhanccedila como elementos importantes para a atividade

intelectual

ldquo- Pois bem disse eu Deves pensar que eu afirmo que o sol eacute o

filho do bem aquele que o bem engendrou como anaacutelogo a si mesmo

(ηὸλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἔθγνλνλ ὃλ ηἀγαζὸλ ἐγέλλεζελ ἀλάινγνλ ἑαπηῷ)

cuja relaccedilatildeo no mundo inteligiacutevel com a inteligecircncia e as coisas

inteligiacuteveis eacute a mesma que o sol tem no mundo visiacutevel com a vista e

as coisas visiacuteveis (ὅηηπεξ αὐηὸ ἐλ ηῷ λνεηῷ ηόπῳ πξόο ηε λνῦλ θαὶ ηὰ

λννύκελα ηνῦην ηνῦηνλ ἐλ ηῷ ὁξαηῷ πξόο ηε ὄςηλ θαὶ ηὰ ὁξώκελα)rdquo

(Rep 508b12-c2)

18 As palavras de Giovanni Casertano trazem este raciociacutenio de maneira melhor resumida ldquoParece-me

claro que aqui a ideia do bem eacute o que transforma conhecimentos nun sistema fortemente organizado a

que podemos chamar ciecircncia ἐπηζηήκε e ao mesmo tempo valida a niacutevel superior os mesmos

conhecimentos eacute o que daacute um valor maior aos mesmos conhecimentos Neste sentido deve-se entender

que ela eacute a causa tambeacutem da verdade e esta ideia do valor maior conferido da ideia do bem aos

conhecimentos seraacute reafirmado logo depois realccedilando ainda que o sentido do que se quer dizer eacute iacutensito

na imagem que se estaacute usandordquo Casertano G ldquoO Bem e a Linhardquo in Xavier D Cornelli G (orgs) A

Repuacuteblica de Platatildeo ndash Outros Olhares Satildeo Paulo Loyola 2011 p 291 A perspectiva cientiacutefica tal como

aqui se pretende delinear coloca o bem como mostra claramente o comentaacuterio em uma posiccedilatildeo de

superioridade em uma hierarquia que deve ser entendida nos termos de uma divisatildeo na qual os elementos

se organizam em relaccedilatildeo a ele Sendo assim a valoraccedilatildeo que se atribui aos termos diz respeito ao grau de

cognoscibilidade que oferecem nessa relaccedilatildeo

44

O texto se encaminha de modo a pontuar conclusotildees sobre as questotildees postas

aqui O sol eacute a causa (αἴηηνο) da visatildeo uma vez que oferece a luminosidade para que se

realize o fenocircmeno da percepccedilatildeo De modo anaacutelogo conclui-se que o sol eacute a ideia do

bem o filho do bem e que por ser seu descendente eacute semelhante a ele O conhecimento

por sua vez eacute representado nos termos da acuidade da visatildeo do ver nitidamente o que

se observa (Rep 508c4-d2) exibindo assim uma condiccedilatildeo desta formulaccedilatildeo de

conhecimento que vem sendo construiacuteda a condiccedilatildeo de clareza que seraacute explorada mais

adiante Agora dito explicitamente o texto confirma a equiparaccedilatildeo do sol ao filho do

bem Toda a narrativa acerca do fenocircmeno da visatildeo serve para introduzir e estabelecer

os temas considerados importantes no que se refere agrave inteligecircncia Comparado ao sol no

mundo sensiacutevel o bem eacute a causa e o pensamento e as coisas pensadas apresentam com

ele a mesma relaccedilatildeo que a haacute entre o sol a vista e as coisas visiacuteveis A figura da

descendecircncia que aos poucos eacute dita em termos cada vez mais precisos apresenta aquela

que seraacute uma importante noccedilatildeo para a apreensatildeo inteligiacutevel a semelhanccedila que pode

haver em uma analogia Dada como uma caracteriacutestica herdeira do bem ela mostra a

potencialidade de oferececirc-lo ainda que natildeo de modo fidedigno como se veraacute Ela

consiste desse modo em um dos meios pelo qual o pensamento pode se lanccedilar em

busca de uma apreensatildeo pois eacute possiacutevel inferir que o exprime da maneira mais

proacutexima Note-se que ao afirmar que o sol eacute semelhante ao bem o texto valida as

relaccedilotildees feitas na analogia e as consequecircncias que se pode tirar delas Ao mesmo tempo

pontua os graus de descendecircncia e portanto em que grau os objetos em questatildeo se

relacionam com ele

Tais comparaccedilotildees tecircm seus propoacutesitos melhor compreendidos e averiguados

quando analisados em relaccedilatildeo agrave alma A pesquisa do filoacutesofo mostra a sua importacircncia agrave

medida que compreende o quanto que lhe for possiacutevel o valor do bem como fonte

originaacuteria O que antes era sugerido como objeto altamente valoroso (ἀπνκαληεπνκέλε

Rep 505e1) e que por isso qualificava aqueles que empreendiam a sua busca

(θνκςνηέξνηο Rep 505b6) tem explicita a sua importacircncia e distinccedilatildeo nas conclusotildees

da analogia

ldquo- () Pensa assim tambeacutem a respeito da alma Quando ela se

apoacuteia no que a verdade e o ser iluminam ela o concebe e parece ter

inteligecircncia (Οὕησ ηνίλπλ θαὶ ηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη19

ὅηαλ κὲλ νὗ

19 Para compreender melhor a passagem e a proacutepria analogia vale trazer a versatildeo do texto grego

estabelecido por Proclus que Eacutemile Chambry apresenta em seu aparato criacutetico ldquoηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη ηὸ

45

θαηαιάκπεη ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ εἰο ηνῦην ἀπεξείζεηαη ἐλόεζέλ ηε

θαὶ ἔγλσ αὐηὸ θαὶ λνῦλ ἔρεηλ θαίλεηαη) Quando poreacutem se apoacuteia em

algo em que se mistura com a escuridatildeo aquilo que vem a ser e

perece ela emite opiniotildees e a visatildeo turva porque vai mudando suas

opiniotildees numa e noutra direccedilatildeo e entatildeo se assemelha a algueacutem que

natildeo tem inteligecircncia (δνμάδεη ηε θαὶ ἀκβιπώηηεη ἄλσ θαὶ θάησ ηὰο

δόμαο κεηαβάιινλ θαὶ ἔνηθελ αὖ λνῦλ νὐθ ἔρνληη)rdquo (Rep 508d4-9)

Ao reconhecer superioridade do bem a pesquisa pontua os objetos herdeiros

dele ao mesmo tempo em que confere agrave inteligecircncia a superioridade de sua capacidade

cognitiva Dito de outro modo o λνῦο mostra sua aptidatildeo inteligiacutevel ao se revelar o

meio adequado para investigar tais objetos adquirindo deles aquilo que eacute apreensiacutevel

intelectualmente como a ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Nessa atividade reside o alto valor da

intelecccedilatildeo em comparaccedilatildeo ao tipo de apreensatildeo que se tem na opiniatildeo a percepccedilatildeo A

nitidez necessaacuteria para o conhecimento mostra a verdade e o ser caracteriacutesticas do bem

as quais a alma se fixa (ἀπεξείδσ Rep 508d5) ou se apoia como prefere a traduccedilatildeo

para ter aquela que parece ser a sua melhor condiccedilatildeo o seu melhor estado a λόεζηο Ter

inteligecircncia supotildee este processo de aquisiccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de tais atributos

ao mesmo tempo iluminados (θαηαιάκπεη) dados pelo bem

Conveacutem notar assim o sentido em que o texto oferece a verdade que

acompanha o ser nessa passagem como um atributo do bem apreensiacutevel pela alta

intelecccedilatildeo Diferentemente de como foi referido anteriormente (Rep 506c) a verdade

natildeo aparece nos termos de um acerto que pode eventualmente se dar mas como uma

caracteriacutestica do bem que oferece condiccedilotildees para reconhecer o que eacute inteligiacutevel

comparaacutevel agrave luz do sol A passagem mostra os elementos a partir dos quais se daacute a

aquisiccedilatildeo do bem e o proveito que a alma tem desse conhecimento sendo a verdade e o

ser o que deve ser conhecido Cabe considerar assim que este ldquofixar-serdquo da alma diz

respeito agrave apreensatildeo entretanto vale questionar o sentido em que se pode compreendecirc-

lo como uma aquisiccedilatildeo No registro do conhecimento como se tem visto refere-se a um

ὄκκα ηο ςπρο ᾧ δε λόεη ndash Chambry La Republic ed Belles Lettres p 138 As ediccedilotildees biliacutengues no

geral natildeo optam pela versatildeo de Proclus mas cabe comentar as opccedilotildees dado que a passagem sugere o

pensamento anaacutelogo aos olhos e a aquisiccedilatildeo da ideia comparaacutevel ao fenocircmeno da visatildeo Considerar a

inteligecircncia como ldquoos olhos da almardquo parece uma analogia plenamente possiacutevel nessa oraccedilatildeo uma vez

que tal expressatildeo aparece em 533d2 Deve-se entender a inteligecircncia como ldquoolhos da almardquo no sentido de

autecircntico oacutergatildeo do conhecimento e acompanhar o seu desempenho no contexto do estabelecimento de

papeacuteis na relaccedilatildeo cognoscente-cognosciacutevel Seguindo a simetria que a analogia apresenta ao longo da

argumentaccedilatildeo a λνήζηϛ corresponde agrave visatildeo (ὄςηο ὁξάσ) os olhos (ὀθζαικόο ὄκκα) oacutergatildeos da visatildeo ao

λνῦο faculdade da cogniccedilatildeo as vistas o exerciacutecio da visatildeo se refere ao exerciacutecio do intelecto e ao

conhecimento Da mesma forma o sol eacute anaacutelogo agrave ideia do Bem a luz eacute anaacuteloga agrave verdade e as cores

assim como o que se apreende como fenocircmeno visual corresponde agraves ideias

46

tomar posse adquirir caracteriacutesticas inteligiacuteveis do bem verdade e ser Em um outro

sentido bastante possiacutevel mas que natildeo parece conveniente nesse contexto diz respeito

ao fitar ter em mira bastante afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo da ideia inteligiacutevel

aparentemente ainda natildeo sugerida aqui De qualquer modo ter inteligecircncia (λνῦλ ἔρεηλ)

compreende um contato com o inteligiacutevel conduzido pela verdade que promoveraacute um

efeito dito conhecimento O modo e as razotildees para a alma se manter presa a esses

aspectos se daraacute em parte ao longo da explanaccedilatildeo sobre o meacutetodo Por enquanto tem-

se enunciado a importacircncia desta aquisiccedilatildeo e a descriccedilatildeo da postura daquele que pode

adquirir o conhecimento por se lanccedilar a esse exerciacutecio o qual se pode denominar

intelecccedilatildeo no maior grau

Deve-se chamar atenccedilatildeo para o desenlace da sugestatildeo de inteligecircncia como alta

capacidade de aquisiccedilatildeo que o texto apresentou anteriormente (Rep 505b4) nos termos

do θξνλεῖλ e do λνῦο Os desdobramentos desta noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo que vem sendo

construiacuteda qualifica a divisatildeo dos dois tipos de apreensatildeo Segundo o que sugere a

ultima analogia a aquisiccedilatildeo inteligente eacute considerada a mais alta dado o valor dos

abjetos que adquirem enquanto as percepccedilotildees do sensiacutevel ao modo da opiniatildeo eacute posto

em um niacutevel inferior A partir da argumentaccedilatildeo acerca dos aspectos do bem que devem

ser conhecidos e portanto o alvo cognosciacutevel da alma justifica-se a valorizaccedilatildeo pela

busca do bem e o desprezo pela aparecircncia agora nos termos epistemoloacutegicos como quer

a formulaccedilatildeo de conhecimento para a filosofia Tecircm-se os elementos que estatildeo em vista

no verdadeiro conhecimento e com isso uma descriccedilatildeo da conduta da alma nessa

atividade de alta intelecccedilatildeo A retidatildeo da alma do que foi pensado e conhecido

demonstra a relaccedilatildeo natural entre o bem e o resultado dessa relaccedilatildeo ter a verdade e o

ser permanecer de algum modo vinculados a eles o que descreve a θξόλεζηο e a

λόεζηϛ20

Este parece ser um tema crucial de acordo com as intenccedilotildees poliacuteticas do filoacutesofo

Pode-se depreender que o conhecimento como posse da verdade e do ser dado nesta

vinculaccedilatildeo da alma eacute o que garante o bom governo e a organizaccedilatildeo da cidade A

importacircncia de investigar acerca do pensar e evidentemente os seus modos de

apreensatildeo estaacute justamente em tornar expliacutecito o exerciacutecio intelectual que acontece na

20 Descrita assim a noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo eacute bastante parecida com a que se encontra no Feacutedon 79d uma

relaccedilatildeo do pensamento com os seres do domiacutenio inteligiacutevel na qual se tem concomitantemente agrave

aquisiccedilatildeo da ideia a atividade desta apreensatildeo sendo ela proacutepria o resultado da interaccedilatildeo entre a alma e a

ideia Esta talvez constitua a visatildeo mais patente do pensamento nos termos de uma faculdade no qual o

intelecto eacute agente do conhecimento e paciente ao receber do inteligiacutevel estiacutemulo para continuar em

atividade

47

mais alta intelecccedilatildeo e que vai garantir ao filoacutesofo governar com justiccedila Do mesmo

modo iraacute permitir ao filosoacutefo conhecer o alcance e o comportamento intelectual do natildeo

filoacutesofo conhecimento bastante uacutetil para organizar harmonicamente as categorias que

compotildeem a cidade Tal vinculaccedilatildeo entretanto parece ganhar maiores detalhamentos na

analogia da linha Ateacute aqui o que se tem constitui uma caracterizaccedilatildeo ainda pouco

teacutecnica do pensar mas suficiente para oferececirc-lo no sentido restrito aos interesses da

filosofia Deve-se ter em vista que os passos dados pontuam as questotildees que unem o

objetivo poliacutetico e epistecircmico ao lanccedilar para a alma os temas analisados No entanto o

teor desta ligaccedilatildeo entre conhecimento e organizaccedilatildeo poliacutetica seraacute elucidado somente

apoacutes uma anaacutelise da atividade da alma que aparece como se examinaraacute nos termos da

percepccedilatildeo sensiacutevel e da cogniccedilatildeo A aquisiccedilatildeo do conhecimento teraacute a sua explicaccedilatildeo

como fenocircmeno psiacutequico permitindo propor ao mesmo tempo a atividade inteligente de

modo autecircntico e as consequecircncias eacuteticas desta aquisiccedilatildeo temas indiretamente

enunciados nessa vinculaccedilatildeo da alma que pressupotildee a θξόλεζηο e a λόεζηϛ A

formulaccedilatildeo da ideia do bem tem junto com a explicaccedilatildeo do conjunto de atividades

mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo sua posiccedilatildeo definida da onde teraacute explicitado seu papel

de paracircmetro modelo e causa

Antes de um exame minucioso sobre as operaccedilotildees intelectivas cabe ainda

analisar com detalhes o que o texto conclui sobre o bem apoacutes a exposiccedilatildeo da sua relaccedilatildeo

com as ideias e com o pensamento tal como se viu Deve-se observar a transposiccedilatildeo

dos elementos da analogia para a teoria do conhecimento e da ideia do bem que se

propotildee Nesta transposiccedilatildeo estatildeo os dados epistemoloacutegicos que passam a ser utilizados

na investigaccedilatildeo os quais constituem a perspectiva cientiacutefica que Soacutecrates pretende dar

aos objetos em questatildeo

ldquo- Pois bem Eis o que deves afirmar Eacute a ideia do bem que

confere verdade ao que estaacute sendo conhecido e capacidade ao que

conhece (ηὸ ηὴλ ἀιήζεηαλ παξέρνλ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο θαὶ ηῷ

γηγλώζθνληη ηὴλ δύλακηλ ἀπνδηδὸλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέαλ θάζη εἶλαη)

Deves pensaacute-la como causa da ciecircncia e da verdade na medida em

que esta eacute conhecida (αἰηίαλ δ ἐπηζηήκεο νὖζαλ θαὶ ἀιεζείαο ὡο

γηγλσζθνκέλεο κὲλ δηαλννῦ) mas embora a ciecircncia e a verdade

sejam belas pensaraacutes com acerto se pensares que a ideia do bem natildeo

se confunde com elas e as supera em beleza (ἄιιν θαὶ θάιιηνλ ἔηη

ηνύησλ ἡγνύκελνο αὐηὸ ὀξζῶο ἡγήζῃ ἐπηζηήκελ δὲ θαὶ ἀιήζεηαλ)

Como aqui eacute correto considerar que a luz e a visatildeo satildeo semelhantes

ao sol (ἡιηνεηδ) mas natildeo eacute correto tecirc-las como o sol assim tambeacutem

eacute correto considerar que laacute sejam semelhantes ao bem (ἀγαζνεηδ)

mas natildeo eacute correto considerar que uma ou outra seja um bem Ao

48

contraacuterio deve-se atribuir um valor ainda maior agrave natureza do bem

(ἀιι ἔηη κεηδόλσο ηηκεηένλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ)

- A beleza de que falas eacute extraordinaacuteria disse se ela potildee agrave nossa disposiccedilatildeo a ciecircncia e

a verdade mas as supera em beleza (εἰ ἐπηζηήκελ κὲλ θαὶ ἀιήζεηαλ παξέρεη αὐηὸ δ ὑπὲξ ηαῦηα

θάιιεη ἐζηίλ) E tu natildeo deves estar falando que o belo eacute o prazerrdquo (Rep 508e-509 a)

A ideia do bem eacute a causa do conhecimento e da verdade mas natildeo eacute nem a

proacuteprio conhecimento nem a verdade Como causador natildeo pode ser confundida com os

seus derivados dado que esses apresentam algumas de suas caracteriacutesticas como a

verdade e a ciecircncia que satildeo belos Apesar de compartilharem caracteriacutesticas o causador

excede (ὑπέξ) em grau as qualidades atribuiacutedas por ele ao seu derivado Tais qualidades

satildeo suficientes para conferir a benignidade do bem ao que dele deriva entretanto

permitem apenas inferir a partir deles uma dimensatildeo do bem sugestivamente inatingiacutevel

O pensamento como a capacidade de atingi-lo pode no seu exerciacutecio inferir acerca

dele mesmo que natildeo possa apreendecirc-lo totalmente Tal limitaccedilatildeo do pensamento natildeo

representa apesar disso um impedimento para o conhecimento de sua natureza

inteligiacutevel Saber o que eacute o bem nesse sentido constitui um empreendimento para aleacutem

das possibilidades de uma intelecccedilatildeo elevada O que eacute cognosciacutevel acerca dele natildeo deve

ser confundido com ele proacuteprio e este parece consistir em um dos primeiros

discernimentos para a sua apreensatildeo

Para melhor definir e compreender no que consiste uma atuaccedilatildeo inteligente

deve-se analisar as uacuteltimas conclusotildees da analogia sobre o bem segundo a analogia do

sol Como se viu tem-se por objetivo avaliar a sua condiccedilatildeo (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ Rep

509a5) de modo a verificar o seu papel de fundamento da justiccedila e das virtudes

conforme enunciado no iniacutecio da investigaccedilatildeo As uacuteltimas palavras da analogia do sol

coloca finalmente a questatildeo na perspectiva ontoloacutegica que eacute introduzida a partir de

outra analogia uma imagem do bem (ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ Rep 509a9)

ldquo- Creio que diraacutes que o sol natildeo soacute proporciona aos objetos

visiacuteveis a capacidade de serem vistos mas tambeacutem a gecircnese o

crescimento e a nutriccedilatildeo embora ele proacuteprio natildeo seja a gecircnese (ηὴλ

ηνῦ ὁξᾶζζαη δύλακηλ παξέρεηλ θήζεηο ἀιιὰ θαὶ ηὴλ γέλεζηλ θαὶ

αὔμελ θαὶ ηξνθήλ νὐ γέλεζηλ αὐηὸλ ὄληα)

- Como poderia

- Pois bem Deves dizer tambeacutem que natildeo soacute eacute sob a accedilatildeo do bem

que a faculdade de serem conhecidos estaacute presente nos objetos (ηνῖο

γηγλσζθνκέλνηο ηνίλπλ κὴ κόλνλ ηὸ γηγλώζθεζζαη θάλαη ὑπὸ ηνῦ

ἀγαζνῦ παξεῖλαη) mas tambeacutem que eacute sob a accedilatildeo dele que eles ainda

49

vecircm a ter a existecircncia e o ser (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ ὑπ

ἐθείλνπ)21

muito embora o bem natildeo seja essecircncia mas esteja muito

aleacutem da essecircncia em majestade e poder (πξεζβείᾳ θαὶ δπλάκεη )rdquo

(Rep 509b)

O sol proporciona a geraccedilatildeo o crescimento e a nutriccedilatildeo mas ele proacuteprio natildeo eacute a

geraccedilatildeo Condiccedilatildeo anaacuteloga ao bem que proporciona ao objeto a possibilidade de ser

conhecido ser e essecircncia a qual como se veraacute seraacute apreendida nos termos da

realidade Ele proacuteprio natildeo eacute uma essecircncia ele age sobre o que a ele se relaciona O bem

nessa condiccedilatildeo distingue-se de tais objetos do ser e da essecircncia denotando assim a

superioridade de sua posiccedilatildeo e de sua potecircncia Note-se que a ultima passagem

apresenta definiccedilotildees importantes A primeira se refere agraves caracteriacutesticas do bem que os

objetos recebem o ser e a realidade (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ) e a cognoscibilidade

Disso decorre principalmente a definiccedilatildeo em termos ontoloacutegicos do conhecimento a

aquisiccedilatildeo dessas caracteriacutesticas dadas aos objetos na relaccedilatildeo com o bem ou seja a

apreensatildeo da realidade e do ser que neles se apresentam O bem consiste portanto na

causa do ser e da realidade que traz a essecircncia apreensiacuteveis pelo intelecto mas natildeo

pode ser conhecido em sua integridade apenas inferido por aquela que consiste na ideia

mais proacutexima mais semelhante a ele a ideia do bem (Rep 508e-509a4)22

A abordagem ontoloacutegica do bem oferece a perspectiva cientiacutefica como quer a

filosofia Ao apresentar os verdadeiros objetos cognosciacuteveis nesses termos tem-se a

especificidade dos objetos da intelecccedilatildeo da cogniccedilatildeo (γλῶζηο) e da ἐπηζηήκε que

exigiraacute uma explicaccedilatildeo acerca deste gecircnero filiado agrave ideia do bem e desse tipo de

apreensatildeo Vale por enquanto pontuar o que a analogia pretendeu esclarecer o bem eacute

21 Na ediccedilatildeo inglesa temos ldquobeing and realityrdquo opccedilatildeo que parece conveniente ao contexto uma vez que

a questatildeo ontoloacutegica natildeo parece abordar nesta e nas proacuteximas argumentaccedilotildees a questatildeo da existecircncia mas

da realidade dos objetos promovida por esta participaccedilatildeo na ideia do bem Emly-Jones Preddy op cit p

95

22 Para elucidar o que aqui se explica vale citar o que diz Gosling sobre no que consiste a definiccedilatildeo a

partir da noccedilatildeo de conhecimento n‟A Repuacuteblica ldquoPara Platatildeo tambeacutem se concebe o conhecimento como

satisfazer a pergunta bdquoo que eacute X‟ Expresso nos termos de bdquoX eacute F e G‟ isso natildeo parece ser um defeito na

linguagem mas reflete o fato necessaacuterio de que vaacuterias formas satildeo inextrincavelmente inter-relacionadas

Gosling JCB The Argument of the Philosophers Routledge London and New York 3a ed 2001 pg 120

Este seria o caso dos bdquofilhos do bem‟ como se veraacute em seguida no qual todos apresentam o Bem como

causa e por isso se relacionam a ele necessariamente em termos loacutegicos B bsup1 bsup2 bn Desse modo o Bem

pode ser visto a partir da perspectiva inversa ou seja a partir do que dele se origina como acontece com

a verdade com a realidade e com o justo por exemplo Nesse sentido parece compreensiacutevel e pertinente

a questatildeo e a resposta de Gosling as quais antecipam a questatildeo ontoloacutegica e a noccedilatildeo de conhecimento

que seraacute trabalhada no Livro VI e especialmente no Livro VII ao se averiguar as operaccedilotildees especiacuteficas da

matemaacutetica e da dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar a proposta e as distinccedilotildees entre bem e ideia

introduzidas neste argumento cujas diferenciaccedilotildees se apresentaratildeo ao longo da formulaccedilatildeo de

conhecimento (γλῶζηο e ἐπηζηήκε)

50

superior e inapreensiacutevel A ideia do bem o ser a essecircncia a verdade e o conhecimento

satildeo originados pelo Bem Dentre esses a ideia do bem eacute a ideia semelhante a ele sendo

possiacutevel supor portanto uma distinccedilatildeo entre a ideia do bem e as outras ideias Todo

objeto cognosciacutevel tem ser essecircncia e verdade caracteriacutesticas que o torna cognosciacutevel

O pensamento (θξόλεζηο e λόεζηϛ) como oacutergatildeo do conhecimento mostra-se afim desse

tipo de objeto e por consequecircncia afim com a ideia do bem (ἀγαζνεηδ Rep 509a3)

Assim o pensamento como faculdade da cogniccedilatildeo e capacidade cognitiva eacute da mesma

maneira afetado pela accedilatildeo do bem cujo efeito seraacute o desdobramento da capacidade de

intelecccedilatildeo

Eacute importante atentar para as consequecircncias da teoria do bem e da ideia do bem

para que se possa precisar com mais detalhes o pensamento especialmente no que diz

respeito agrave cogniccedilatildeo Parece imprescindiacutevel para compreender as perspectivas em que o

texto o evoca a saber como faculdade e atividade do conhecimento as diferenciaccedilotildees

que esta hierarquia entre bem ideia do bem e outros objetos que possam ser alvo de

uma atividade de cogniccedilatildeo supotildeem Diante do que se tem examinado as caracteriacutesticas

do objeto satildeo condiccedilotildees para a cogniccedilatildeo tanto quanto a faculdade de conhecer Ambos

faculdade do conhecimento e o objeto tecircm de possuir o caraacuteter inteligiacutevel dado pelo

bem como mostrou a analogia do sol ao enfatizar a capacidade do objeto de ser

percebido e a capacidade do percepiente de perceber Desse acircngulo o estudo sobre o

bem serviu para pontuar a condiccedilatildeo de cada elemento de modo a estabelecer e a elucidar

a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo entre eles Nesta ligaccedilatildeo parece clara a ideia do bem como

fundamento a partir do qual se tem um elemento ativo o intelecto e um passivo o

objeto inteligiacutevel Assim tatildeo importante quanto delimitar e elucidar no que consiste

uma atividade inteligente eacute discernir e definir qual eacute o objeto proacuteprio da inteligibilidade

No desenrolar da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento e sobre o conhecimento da justiccedila

e das virtudes por consequecircncia faz-se necessaacuterio averiguar na mesma medida a postura

intelectual o procedimento intelectual e as condiccedilotildees de cogniccedilatildeo que objeto em

questatildeo oferece

51

As explicaccedilotildees acerca da ideia do bem fazem parte da enunciaccedilatildeo e da divisatildeo

que o discurso tiacutepico da filosofia realiza (θακέλ ηε θαὶ δηνξίδνκελ ηῷ ιόγῳ Rep

507b3) De outro acircngulo pode-se verificar assim no que consiste o caraacuteter racionalista

de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica e as suas bases teoacutericas Dados os esclarecimentos sobre

seu objeto especiacutefico ao mesmo tempo se observa a formulaccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo

entre pensamento e sensaccedilotildees a qual recebe uma diferenciaccedilatildeo no registro ontoloacutegico

Com a uacuteltima explicaccedilatildeo sobre a essecircncia antes definida como ldquoideia uacutenicardquo temndashse a

explicaccedilatildeo da origem dos objetos especiacuteficos do pensamento e do que os constituem

enquanto objetos da cogniccedilatildeo (507b) No entanto natildeo parece haver uma completa

compreensatildeo das dificuldades que envolvem o estudo do bem sem antes verificar a

atuaccedilatildeo do intelecto nessa empresa de compreender o que dele se pode conhecer A

busca racionalista do bem parece demandar ainda um maior entendimento sobre sua

inteligibilidade que consequentemente estaacute envolvida na cogniccedilatildeo Ao mesmo tempo

o procedimento adequado para um conhecimento dessa natureza seraacute um ponto

decisivo uma vez que deve se mostrar afim como se analisaraacute com o gecircnero

intelectualista do bem Nesse sentido parece importante antes averiguar o que a

analogia da linha apresenta acerca do gecircnero e dos procedimentos inteligiacuteveis a fim de

obter uma maior compreensatildeo sobre as ideias sobre a suposta hierarquia que haacute entre

elas e sobre as distinccedilotildees e procedimentos da atividade do pensamento nessa aquisiccedilatildeo

23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios

O que se pode considerar ser o ldquopensamentordquo a partir da analogia da linha no livro

VI d‟A Repuacuteblica diz respeito ao conjunto de operaccedilotildees que constituem a percepccedilatildeo

sensiacutevel e a apreensatildeo das ideias a uacuteltima dita conhecimento (ηὸ γλσζηόλ Rep

510a11) Nela se pode depreender um detalhamento da atividade perceptiva e cognitiva

em suas diferentes etapas concomitantemente agrave especificaccedilatildeo dos seus respectivos

52

fenocircmenos de apreensatildeo Desse modo o conhecimento ou de modo mais fiel ao texto

o que eacute da ordem do conhecimento e por isso o que eacute de fato cognosciacutevel ganha

explicaccedilatildeo mais detalhada nas divisotildees que a analogia propotildee O tipo de apreensatildeo mais

importante para os propoacutesitos do filoacutesofo portanto a atividade noeacutetica eacute dada de

acordo com os seus diferentes modos de atuar ou seja segundo o que cada teacutecnica

emprega nos seus diferentes meacutetodos matemaacutetico e dialeacutetico (Rep 510b-c) Para

realccedilar o contraste desta seccedilatildeo que diz respeito agrave inteligecircncia a divisatildeo que pretende

analogamente propor a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel nos termos de gecircnero e lugar

supondo assim um plano sensiacutevel e um plano inteligiacutevel oferece a perspectiva de cada

domiacutenio que daacute base para a explicaccedilatildeo acerca da aquisiccedilatildeo de conhecimento

ldquo() - Pois bem disse eu Pensa que como diziacuteamos eles satildeo dois

e reinam um sobre o gecircnero e mundo inteligiacuteveis e o outro em

compensaccedilatildeo sobre o mundo visiacutevel (βαζηιεύεηλ ηὸ κὲλ λνεηνῦ

γέλνπο ηε θαὶ ηόπνπ ηὸ δ αὖ ὁξαηνῦ) Natildeo falo que reina sobre o ceacuteu

para que natildeo penses que estou fazendo sutil jogo de palavras Mas tu

estaacutes entendendo bem esses dois gecircneros o visiacutevel e o inteligiacutevel

- Eu aceitaria disse e muito bemrdquo (Rep 509c3-d6)

Vale observar as distinccedilotildees tal como a analogia propotildee γέλνs e ηόπνs A

distinccedilatildeo entre gecircnero e lugar marca o plano em que seraacute discutida a questatildeo do

verdadeiro conhecimento e consequentemente do seu modo correto de apreensatildeo A

proposta ao que tudo indica eacute determinar o domiacutenio em que se situa o saber filosoacutefico

o que dito de outro modo consiste em determinar a sua posiccedilatildeo e a sua especificidade

em relaccedilatildeo aos outros conhecimentos Ao mesmo tempo marcar as distinccedilotildees do que se

refere ao conhecimento filosoacutefico ao inteligiacutevel portanto em comparaccedilatildeo ao que

concerne agrave opiniatildeo A noccedilatildeo de lugar ou mundo como prefere a maioria das traduccedilotildees

oferece a posiccedilatildeo para as coisas dos diferentes gecircneros e permite conforme sugere o

texto estabelecer as diferenccedilas e as semelhanccedilas entre eles A dupla forma que a linha

mostra (δηηηὰ εἴδε ὁξαηόλ λνεηόλ Rep 509d4) parece ser uma estrateacutegia para poder

mais tarde argumentar novamente a favor da ideia do bem como paradigma Em outros

termos ao pontuar uma posiccedilatildeo para traccedilar esta distinccedilatildeo o texto categoriza os objetos

e ao mesmo tempo posiciona-os em relaccedilatildeo a uma referecircncia Tal divisatildeo permite

abordar desse modo algumas das noccedilotildees como semelhanccedila e modelo (ηὸ ὁκνησζὲλ

53

πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε Rep 510a11) imitaccedilatildeo (κηκήζηο Rep 510b4) e a noccedilatildeo de

participaccedilatildeo (κεηέρεηλ Rep 511e5)

Do mesmo modo a distinccedilatildeo de gecircnero colabora para a introduccedilatildeo de tais

noccedilotildees agora no que concerne agrave questatildeo do estatuto ontoloacutegico dos objetos de cada

domiacutenio anteriormente sugerido como uma hierarquia Classificar os objetos em

determinados gecircneros torna possiacutevel qualificaacute-los em relaccedilatildeo a um modelo em um

primeiro momento sugerido pela verdade que parece constituir um dos atributos das

ideias inteligiacuteveis As coisas verdadeiras ou as coisas que apresentam a verdade dada

pela ideia do bem mostram as qualificaccedilotildees do inteligiacutevel e satildeo por isso importantes

para compreender o grau de cognoscibilidade que se pode ter em cada domiacutenio quando

postas em contraste agrave carecircncia do sensiacutevel Segundo o contexto comparativo da analogia

da linha dividida ldquoquanto mais os objetos participarem da verdade tanto mais clareza

teratildeordquo (Rep 511e3-4) o que sugere que uma maior cogniccedilatildeo acerca dos objetos

investigados depende de sua participaccedilatildeo no inteligiacutevel e que a clareza pode ser um

criteacuterio para distinguir um objeto inteligiacutevel de um objeto sensiacutevel Esta eacute uma relaccedilatildeo

uacutetil para verificar a questatildeo da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo pois mostra em

que medida os atributos inteligiacuteveis consistem em princiacutepios condutores da

racionalidade

A divisatildeo propotildee desta forma as relaccedilotildees e os criteacuterios que Platatildeo julga

importantes para mostrar a natureza do conhecimento e do conhecer ao modo filosoacutefico

Ela situa e qualifica os objetos postos em questatildeo mostrando a relaccedilatildeo entre os

domiacutenios e o trabalho do pensamento nesta ligaccedilatildeo Note-se que a atividade intelectual

capaz de apreender as ideias e a ideia do bem satildeo as que Platatildeo parece ter em vista para

diferenciar o pensamento caracteriacutestico daquele que filosofa Desse modo a analogia da

linha para a defesa do governo do filoacutesofo se mostra estrateacutegica ao apresentar as

operaccedilotildees envolvidas na apreensatildeo dos objetos inteligiacuteveis e portanto no conhecimento

ao modo filosoacutefico de modo a elucidar o processo intelectual e o meacutetodo especiacutefico que

culmina nesta apreensatildeo Igualmente importantes embora natildeo enfatizado na analogia

satildeo as compreensotildees acerca da percepccedilatildeo e do juiacutezo dado que consiste no modo de

pensar da maioria que deve ser governada pelo filoacutesofo

Antes de analisarmos os domiacutenios e o trabalho de cogniccedilatildeo envolvido em cada

um deve-se ainda observar a proposta de distinccedilatildeo entre eles por via da noccedilatildeo de

desigualdade e pela noccedilatildeo de proporccedilatildeo entre as seccedilotildees Soacutecrates pede que Glaacuteucon

imagine uma linha com partes desiguais (ἄληζα) e segundo a mesma proporccedilatildeo (ἀλὰ ηὸλ

54

αὐηὸλ ιόγνλ) a qual deve descrever ao que parece a relaccedilatildeo entre os domiacutenios a

relaccedilatildeo entre as classes de objetos e por consequecircncia uma diferenciaccedilatildeo de grau

cognitivo (Rep 509d8-510a) O texto natildeo parece chamar atenccedilatildeo para tais noccedilotildees na

representaccedilatildeo sensiacutevel do desenho de uma linha propriamente mas ao contraacuterio propotildee

a partir dessas duas concepccedilotildees os termos para uma comparaccedilatildeo entre objetos de tipos

distintos23

Igualdade a noccedilatildeo que estaacute sendo sugerida pela analogia24

e proporccedilatildeo

parecem constituir a base da estrutura das classificaccedilotildees que Soacutecrates propotildee

analogamente dita uma linha dividida por oferecer os criteacuterios para a disposiccedilatildeo entre

os objetos e a verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre eles Ao mesmo tempo em que se tem desse

modo um criteacuterio para situar os elementos se sensiacuteveis ou se inteligiacuteveis tem-se em

que medida se relacionam sendo assim niacutetidos e obscuros um em relaccedilatildeo ao outro25

23 Rep 509d10 ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια Natildeo se pretende realizar uma longa discussatildeo sobre

o diagrama da linha divida As questotildees acerca do desenho da linha e as interpretaccedilotildees que podem surgir

a partir dele satildeo para esta anaacutelise relevantes nos termos que se propotildee aqui ou seja o sentido das

distinccedilotildees que ela sugere Por consistir em uma representaccedilatildeo sensiacutevel a escolha da parte do desenho que

receberia um tamanho maior a partir desta desigualdade parece deste modo mostrar que algo como um

diagrama deve ser apenas um ponto de partida para buscar o sentido do que estaacute sendo representado a

noccedilatildeo de desigualdade como vemos agora Denyer pontua de modo bastante objetivo este antigo debate

ao comentar ldquoPor que temos de fazer uma escolha tatildeo arbitraacuteria Quando desenhamos um diagrama em

obediecircncia agraves discussotildees de Soacutecrates estamos produzindo uma representaccedilatildeo Tal representaccedilatildeo conteacutem

inevitavelmente caracteriacutesticas irrelevantes caracteriacutesticas que em nada correspondem agrave realidade

representada caracteriacutesticas que natildeo podem ser explicadas pela referecircncia pelo propoacutesito da

representaccedilatildeo A proacutepria resposta para tais caracteriacutesticas eacute claramente ignoraacute-las abstrair a partir da

desordem e pensar aleacutem da representaccedilatildeo em vista da realidade que ela representardquo Denyer N Sun and

Line in Plato‟s Republic 2007 Cambridge p 293 Cabe natildeo perder de vista as distinccedilotildees feitas na

analogia do sol que continuam presentes na linha A principal delas eacute a distinccedilatildeo entre juiacutezo e

conhecimento e entre objeto e pensamento Ao que parece a novidade da linha nos termos de uma

analogia estaacute em mostrar as relaccedilotildees entre a ideia do bem e ideias e do mesmo modo entre ideias e o

pensamento em dois planos de anaacutelise ontoloacutegico e cognitivo deixando evidentes as distinccedilotildees entre as

operaccedilotildees do pensamento O proacuteprio texto apresenta ao fim do Livro VII um parecer sobre o uso da

analogia A passagem 534a6-8 mostra que esta natildeo consiste em uma discussatildeo que deve estar em

primeiro plano sendo mais importante as relaccedilotildees que se estabelecem entre os elementos citadosrdquo ()

Quanto agrave correspondecircncia de que dependem essas coisas e quanto agrave divisatildeo de cada uma das duas

categorias a do opinaacutevel e a do inteligiacutevel deixemos isso de lado Glaacuteucon para que natildeo caiamos em

discussotildees mais complexas que as anterioresrdquo

24 Deve-se notar a discussatildeo acerca do estabelecimento do termo se ἄληζα estabelecido por Plutarco ou

α λ‟ η ζα estabelecido por Stallbaum As traduccedilotildees no geral seguem a opccedilatildeo de Plutarco sendo quase

consenso que o uso tanto de um quanto do outro propotildeem a noccedilatildeo de igualdade como nota Chambry op

cit p 140 Como Chambry Adam op cit p 63 nota 27 concorda que a interpretaccedilatildeo comum ao aceitar

ἄληζα eacute que a desigualdade se refere agrave diferenccedila de clareza e de verdade dos gecircneros sensiacutevel e

inteligiacutevel e entre opinaacutevel e cognosciacutevel De qualquer modo interessa averiguar o sentido desta particcedilatildeo

que apresenta partes iguais ou desiguais segundo os gecircneros que estatildeo sendo formulados

25 Pierre Aubenque compreende a funccedilatildeo do ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ na linha muito proacutexima ao que se

pretende defender nesta anaacutelise Para ele o propoacutesito da analogia da linha divida eacute pensar uma igualdade

de relaccedilotildees entre termos desiguais O interesse da operaccedilatildeo eacute desse modo construir uma proporccedilatildeo uma

analogia cuja estrutura eacute dada no seu modo de construccedilatildeo Uma analogia que trouxesse termos iguais (do

tipo 1=1) perderia a funccedilatildeo pois o objetivo maior eacute estabelecer uma mediaccedilatildeo entre termos extremos

Aubenque P ldquoDe L‟ Egaliteacutes des Segments Intermeacutediaires dans La Ligne de La Reacutepubliquerdquo in Sophie

Maietores ndash Chercheurs de Sagesse Institut d‟Etudes Augustiniennes Paris 1992 p 39 40

55

Desse modo na primeira parte a seccedilatildeo mais inferior da linha se refere agraves

sombras e aos reflexos de objetos originais que por serem da ordem do sensiacutevel natildeo satildeo

senatildeo imagens Estas recebem um estatuto mais baixo por constituiacuterem a imagem de um

objeto tambeacutem sensiacutevel representado na segunda subseccedilatildeo da linha Nesta primeira

seccedilatildeo apresenta-se a relaccedilatildeo objeto ndash reflexo ou ainda modelo e suas derivaccedilotildees

Assim exposto o domiacutenio das coisas visiacuteveis ou da sensibilidade compreende as

imagens como reflexo dos objetos originais e os objetos do mundo fiacutesico ndash ldquoos seres

vivos que nos rodeiam todas as plantas e todos os gecircneros de artefatosrdquo (ηά ηε πεξὶ

ἡκᾶο δῷο θαὶ πᾶλ ηὸ θπηεπηὸλ θαὶ ηὸ ζθεπαζηὸλ ὅινλ γέλνο Rep 510a14) os quais satildeo

considerados os modelos A linha classifica e qualifica as seccedilotildees e as subseccedilotildees e a

ligaccedilatildeo que entre eles eacute estabelecida de acordo com a noccedilatildeo de semelhanccedila (ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) que observe-se evoca a noccedilatildeo de igualdade Do mesmo

modo a verdade serve para a divisatildeo e distinccedilatildeo das partes assim como a noccedilatildeo de

cogniccedilatildeo Objetos originais e imagens assim como os seres matemaacuteticos e a ideia

suprema satildeo relacionados segundo tais noccedilotildees e teratildeo o seu caraacuteter exposto de acordo

com elas Entretanto todas estas noccedilotildees tem base em uma mesma ideia a ideia do bem

que deveraacute norteaacute-las e que seraacute o paracircmetro para qualificar cada um dos objetos

Deve-se no entanto averiguar o que o texto sugere ao descrever as etapas que

antecedem o ponto alto da linha que culmina na aquisiccedilatildeo das formas Elas informam

os outros niacuteveis de cogniccedilatildeo que se distinguem do conhecimento filosoacutefico os quais por

sua vez representam o grau de cogniccedilatildeo dos outros integrantes da cidade Do mesmo

modo que parece importante mostrar a divisatildeo e as peculiaridades de cada classe da

poacutelis para sugerir o funcionamento conjunto e harmocircnico da cidade interessa mostrar

analogamente este conjunto de capacidades da alma por meio das quais se supotildee

apresentar as atividades intelectuais mais importantes no que se refere ao conhecimento

Ao formular o lugar e o gecircnero da opiniatildeo e do conhecimento o texto propotildee uma

concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo fundada neste trabalho da alma dito racional e portanto na

cogniccedilatildeo das coisas verdadeiras Ao mesmo tempo propotildee o domiacutenio do pensamento

revelando ser semelhanccedila e verdade as qualidades que devem orientar o estudo da ideia

do bem

56

24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel

Para analisar a questatildeo do pensamento segundo a analogia da Linha Dividida

antes eacute preciso averiguar como as suas seccedilotildees descrevem de algum modo diferentes

maneiras do pensamento atuar isto eacute em que medida se pode ver a percepccedilatildeo e a

atividade intelectual nas distintas potencialidades e meacutetodos Ao especificar os

domiacutenios a fim de elucidar as caracteriacutesticas do verdadeiro conhecimento entra em

cena o modo de apreensatildeo e incontornavelmente os aspectos do pensamento

ldquondash Pois bem Toma uma linha dividida em duas seccedilotildees desiguais

(ἄληζα) e de novo corta cada seccedilatildeo segundo a mesma proporccedilatildeo

(ηέκλε ἑθάηεξνλ ηὸ ηκκα ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ) a do gecircnero visiacutevel e

a do inteligiacutevel De acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de

nitidez (ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ) que tenham entre si no mundo visiacutevel

teraacutes uma das seccedilotildees as imagens (εἰθόλεο) Chamo as imagens em

primeiro lugar as sombras depois as apariccedilotildees refletidas nas aacuteguas

e nas superfiacutecies opacas lisas e brilhantes e tudo o mais que seja

assim Entendes (θαηαλνεῖο)

- Mas sim estou entendendo (θαηαλνῶ)

- Pois bem Supotildee como outra seccedilatildeo a que se assemelha a essa os

seres vivos que nos rodeiam todas as plantas e todo o gecircnero de

artefatos

- Suponho disse

- Seraacute que aceitarias afirmar disse eu que o gecircnero visiacutevel estaacute

dividido em verdade e natildeo verdade e que como o opinaacutevel estaacute para o

cognosciacutevel assim tambeacutem a imagem estaacute para o modelo (δηῃξζζαη

ἀιεζείᾳ ηε θαὶ κή ὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) (Rep 509d8-510a)

Vale analisar a partir dos criteacuterios estabelecidos a distinccedilatildeo entre os objetos Na

primeira seccedilatildeo reflexos (θαληάζκαηα) e sombras (ηὰο ζθηάο) satildeo na sua condiccedilatildeo de

imagens (ηὰο εἰθόλαο) semelhantes ao modelo ou seja satildeo derivados de um objeto

naquilo que diz respeito agrave sua aparecircncia (ἔνηθελ Rep 510b3) Esses ganham a forma do

objeto ao refleti-lo tornando-os aparentes dando a ele portanto uma forma visiacutevel em

superfiacutecies igualmente visiacuteveis - aparecem na aacutegua e nas superfiacutecies lisas e brilhantes

como diz o texto (Rep 509e-510a2) Ao darem a este objeto uma aparecircncia as imagens

se constituem enquanto tal e tecircm no objeto fiacutesico aparentado o seu modelo A imagem

obteacutem do seu modelo a aparecircncia e estabelece com ele desse modo a relaccedilatildeo de

semelhanccedila - natildeo semelhanccedila As aparecircncias que trazem as imagens eacute conforme o

texto a imitaccedilatildeo do modelo do qual derivam (Rep 510b3)

57

A explicaccedilatildeo sobre o inteligiacutevel apresenta por comparaccedilatildeo este como mais um

dado importante sobre o sensiacutevel a aparecircncia como imitaccedilatildeo (κ κεζηο)26

do objeto

original Sua importacircncia se daacute na medida em que reafirma o caraacuteter derivado do reflexo

e acrescenta a ele a explicaccedilatildeo sobre o que se pode fazer com uma imagem como

mostra o exemplo do procedimento matemaacutetico Dito de outro modo ao compreender a

aparecircncia como a imitaccedilatildeo de um modelo ressalta-se a sua carecircncia de conteuacutedo

cognitivo uma vez que natildeo exprime de modo suficiente o original ao qual se

assemelha27

Em contraste com o inteligiacutevel tal caracteriacutestica o exclui do processo do

conhecimento No domiacutenio sensiacutevel proacuteprio da opiniatildeo a alma apreende como imagem

isto que eacute imitaccedilatildeo dos objetos originais constituindo assim a εηθαζία a conjectura

atividade que parece ser tiacutepica no plano da δόμα Natildeo parece haver neste domiacutenio outro

tipo de atuaccedilatildeo como nos sugere o verbo ἀλαγθάδσ e por consequecircncia outro modo

de fazer especulaccedilatildeo no plano do sensiacutevel Ao ter dividido em gecircnero e lugar as

atividades que a alma realiza aparecem submetidas agraves condiccedilotildees do domiacutenio em que se

descreve sendo a conjectura portanto a atividade possiacutevel no domiacutenio sensiacutevel Ao se

fiar nas imagens para construir hipoacuteteses atribui-se agrave elas uma confianccedila da qual natildeo

satildeo dignas visto serem apenas uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo destituiacuteda de qualquer

conteuacutedo o que seraacute discutido no final do argumento da linha (Rep 511d7-e) Desse

26 Toda a recusa da poesia na educaccedilatildeo do guardiatildeo se explica por meio de um conceito caro a Platatildeo n‟A

Repuacuteblica o conceito de miacutemesis imitaccedilatildeo No Livro III ele se refere agrave relaccedilatildeo entre alguma coisa ou

uma pessoa com a sua representaccedilatildeo na poesia e na pintura Dado que a cidade platocircnica se funda na

suposiccedilatildeo de que cada cidadatildeo executa apenas uma tarefa uacutenica para a qual eacute naturalmente haacutebil

escrever e desempenhar o papel de uma personagem torna-se perversotildees do seu papel social pois atribui agrave

pessoa mais que uma uacutenica natureza (Rep 397d-398a) O mimetismo conduz os jovens aos maus haacutebitos

agrave linguagem grosseira respostas inapropriadas e agraves crises (Rep 395c-d) Quando muito os jovens

deveratildeo dramatizar a vida e os feitos de modelos de virtudes (Rep 396b-e) mas Platatildeo termina a criacutetica

no Liv X 595a-602c Haacute por traacutes dessa criacutetica uma tese que teraacute suas bases ontoloacutegicas explicadas no

livro VI e X que em linhas gerais consiste na tese de que se imita aquilo que se contempla No liv X a

imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo que se faz na poesia eacute uma imitaccedilatildeo da aparecircncia A poesia imita as accedilotildees

humanas (393b-c 395c-396d 605ac) mas na cidade ideal haacute de se imitar os melhores homens (396c-

397b 604e 607a)

27 Natildeo se pretende fazer uma longa anaacutelise sobre a imitaccedilatildeo de modo a recuperar dos outros livros o que

eacute dito sobre este conceito Interessa verificar a partir do seu caraacuteter sensiacutevel como tal caracteriacutestica eacute

oposta ao inteligiacutevel e o uso que a alma pode fazer dela na ascese Cabe entretanto conferir como Schuhl

compreende a noccedilatildeo de imitaccedilatildeo que Platatildeo considera em relaccedilatildeo agrave arte que diga-se de passagem parece

bastante afim nesse contexto Ele entende haver dois sentidos para a imitaccedilatildeo 1ordm a imitaccedilatildeo como coacutepia

(εηθαζηηθήλ) que na arte eacute dada como uma reproduccedilatildeo a qual se conforma agraves proporccedilotildees do modelo 2ordm

uma imitaccedilatildeo que constitui a arte da aparecircncia (θαληαζηηθήλ) Em ambas os recursos disponibilizados

como as proporccedilotildees que envolvem noccedilotildees matemaacuteticas satildeo utilizados para se adequarem ao sentido da

visatildeo e produzirem uma imagem que proporcione prazer esteacutetico Note-se que Platatildeo ataca uma

concepccedilatildeo de arte e de imitaccedilatildeo que atribui agraves sensaccedilotildees os criteacuterios para o juiacutezo a qual abandona a

verdade e o arrazoamento privilegiando assim as aparecircncias - ldquoA parte da Oacutetica chamada de cenografia

investiga como conveacutem desenhar as imagens dos edifiacutecios Como as coisas natildeo parecem tais quais elas

satildeo examina-se natildeo como representar as proporccedilotildees reais mas como as tornar tais quais elas

pareceratildeordquo Schuhl op cit p 30 58

58

modo o procedimento ao modo da opiniatildeo natildeo conduz ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico

dado que estagna nas imagens

Este eacute um ponto importante para o que concerne agrave cogniccedilatildeo Junto com a noccedilatildeo

de aparecircncia que surge da relaccedilatildeo modelo e suas derivaccedilotildees estatildeo as qualidades que vatildeo

classificar os elementos das seccedilotildees no que se refere agrave cogniccedilatildeo como as imagens e os

objetos fiacutesicos das primeiras partes Atributos como clareza verdade e cognoscibilidade

satildeo introduzidos a partir desta uacuteltima distinccedilatildeo de modo a qualificar os objetos A

intenccedilatildeo em usar a analogia da linha com vistas para o que seria o mais alto

conhecimento eacute sugerida na sequecircncia onde aparece de modo mais evidente nas partes

inteligiacuteveis a descriccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da alma Pode-se compreender da

analogia as atividades intelectuais que dizem respeito agrave cogniccedilatildeo ou seja agraves operaccedilotildees

que estabelecem a relaccedilatildeo com as ideias e podem assim apreendecirc-las Nas partes

inferiores da linha tem-se ao mesmo tempo as operaccedilotildees que antecipam a ascensatildeo ao

niacutevel inteligiacutevel e que por natildeo oferecerem o conhecimento em nenhum grau mas por

constituiacuterem de alguma forma uma operaccedilatildeo da mente podem ser consideradas preacute-

cognitivas A linha dividida nesse sentido mostra aquilo que se pode apreender do

sensiacutevel com a percepccedilatildeo e do inteligiacutevel com a cogniccedilatildeo em seus diferentes graus e

maneiras de proceder

Para isso deve-se comeccedilar por analisar ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ as

diferenccedilas e a relaccedilatildeo da linha nessa perspectiva entre o domiacutenio do opinaacutevel e do

cognosciacutevel Na seccedilatildeo que se refere ao sensiacutevel satildeo dados os elementos a partir dos

quais se fundam o juiacutezo a opiniatildeo Eacute importante fazer tais especificaccedilotildees acerca da

imagem para que se possa delimitar o plano no qual o juiacutezo estaacute envolvido e para em

seguida marcar definitivas distinccedilotildees do conhecimento e do seu meacutetodo especiacutefico em

relaccedilatildeo agrave opiniatildeo Cabe observar que a divisatildeo pressupotildee uma relaccedilatildeo entre as partes e

portanto entre os elementos que as compotildeem na qual os planos inferiores se mostram

reflexos do plano superior de acordo com o que propotildee a relaccedilatildeo modelo-imagem28

Tal observaccedilatildeo parece importante por oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da funccedilatildeo

da imagem na linha Ao se questionar acerca da inferioridade da aparecircncia da relaccedilatildeo

original-reflexo que o modelo-imagem propotildee a resposta mais imediata provavelmente

28 Note-se que a preposiccedilatildeo ldquoπξὸοrdquo parece indicar que haacute entre as partes a mesma relaccedilatildeo de

espelhamento que haacute entre modelo e a imagem Do mesmo modo os adveacuterbios ὡο e νὕησ sugerem que se

trata de uma comparaccedilatildeo na qual uma seccedilatildeo um domiacutenio tem seu aspecto analisado em relaccedilatildeo a outro -

laquoζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιειαrdquo (Rep 509d10) laquoὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ

ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζεrdquo (Rep 510a10-11)

59

seria a que sua inferioridade se deve ao fato de ser ela a coacutepia de um original Esse pode

ser um argumento vaacutelido se se tem em vista a superioridade ontoloacutegica do objeto

referido Dito de outro modo o objeto do qual se originam as imagens eacute autecircntico

como os animais e os artefatos do mundo fiacutesico na segunda parte da linha enquanto as

sombras e os reflexos derivados dele isto eacute as imagens natildeo satildeo pelas seguintes razotildees

1ordm natildeo satildeo o proacuteprio objeto 2ordm natildeo dizem o objeto original fidedignamente 3ordm como

satildeo imagens variam ao se referir ao objeto original como se veraacute na alegoria da

caverna 4ordm como satildeo derivadas do objeto dependem dele para existir29

Tais

caracteriacutesticas acabam por definir a aparecircncia e expor suas deficiecircncias sendo a

imagem desse modo um elemento que representa toda a debilidade dos objetos da

esfera sensiacutevel para os fins gnosioloacutegicos que Platatildeo pretende formular

Tal compreensatildeo eacute possiacutevel vale reparar somente se se tem em vista a clareza

como abalizadora da relaccedilatildeo entre o domiacutenio da opiniatildeo e o domiacutenio do conhecimento

(Rep 510a9) Deve-se perguntar a razatildeo de Platatildeo propor uma distinccedilatildeo entre domiacutenios

e objetos e estas relaccedilotildees de superioridade - inferioridade que a linha sugere a partir

desta relaccedilatildeo modelo-coacutepia Tais diferenciaccedilotildees sugerem que a analogia da linha

dividida pretende antes traccedilar e definir planos graus e objetos especiacuteficos em vista da

ἀιήζεηα A divisatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel acompanhada das subdivisotildees recebe

especificaccedilotildees no que diz respeito agraves variaccedilotildees dos objetos e potencialidades de

cogniccedilatildeo agora avaliados segundo o criteacuterio de clareza que exprime a realidade do

objeto em questatildeo A escolha da clareza como criteacuterio provavelmente se deve a

autenticidade que ela confere ao objeto dado que se trata de uma qualidade acessiacutevel

pela cogniccedilatildeo mas tambeacutem por constituir as noccedilotildees importantes para a construccedilatildeo de

valores importantes para a cidade do filoacutesofo Dado que a verdade constitui junto com o

ser e a essecircncia a benignidade do bem uma vez que satildeo atribuiacutedos por ele (Rep 508e-

509a6) este constitui um criteacuterio bastante razoaacutevel para mensurar a proacutepria cogniccedilatildeo e o

que eacute tido como um valor Natildeo parece viaacutevel pensar uma cidade justa e boa sem antes

especificar a noccedilatildeo de justiccedila e de bem e ao mesmo tempo sem discerni-las em seu

modo proacuteprio real Dito de outro modo o que eacute bom apresenta ser essecircncia e verdade

qualidades reconheciacuteveis apenas pelo intelecto

29 Stocks enumera do mesmo modo as diferenccedilas da imagem em relaccedilatildeo ao seu objeto Para ele esta eacute

uma indicaccedilatildeo clara da condiccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos objetos inteligiacuteveis sendo a

analogia da linha um bom exemplo da relaccedilatildeo unilateral de dependecircncia e a equaccedilatildeo da linha uma

explicaccedilatildeo desta relaccedilatildeo entre os dois domiacutenios ndash Stocks J L ldquoThe Divided Line of Rep VIrdquo in The

Classical Quartely vol 5 no 2 1911 p 75

60

Vale considerar as nuanccedilas de sentido de verdade Note-se que o contexto que

coloca verdade - natildeo verdade apresenta as condiccedilotildees em que ela aparece no domiacutenio

visiacutevel Cabe reparar que a abordagem da verdade no registro da sensibilidade tal como

aparece agora eacute posta relativamente ou seja como termo de avaliaccedilatildeo na relaccedilatildeo

modelo-reflexo diferentemente do contexto do estudo da ideia do bem no qual era

apresentada como atributo inteligiacutevel Todavia ela serve para mensurar algo que seraacute

dito verdadeiro ou natildeo a partir da correspondecircncia com um modelo Como se viu em

506c mesmo que constitua um criteacuterio de avaliaccedilatildeo ela eacute dada nos termos da

eventualidade sendo o mesmo nessas circunstacircncias que ldquocorresponde - natildeo

corresponderdquo Natildeo parece haver no domiacutenio sensiacutevel outra maneira de conceber a

verdade dado que natildeo se tem em vista seu fundamento inteligiacutevel A relaccedilatildeo que estaacute

em jogo diz respeito a uma identificaccedilatildeo do objeto com o modelo natildeo se tratando

portanto da realidade do objeto ou do modelo

Desse modo a verdade natildeo acompanha neste plano uma concepccedilatildeo da cogniccedilatildeo

mas o nome que se daacute agrave percepccedilatildeo entre dois elementos que se mostram equivalentes

no caso imagem - modelo sombra - objeto original em uma relaccedilatildeo de

correspondecircncia Parece importante definir o plano em que se enuncia a verdade para

justamente estabelecer a plausibilidade de uma relaccedilatildeo No campo do sensiacutevel natildeo haacute a

garantia de um termo que fundamente as relaccedilotildees como a de semelhanccedila por exemplo

da mesma forma que se encontra no inteligiacutevel estando a verdade desse modo apenas

no plano do ὄλνκα (Rep 505c4) 30

Desse modo uma das noccedilotildees que a linha propotildee diz respeito a esta realidade do

objeto a qual serve de referecircncia e deve ser considerada o verdadeiro objeto a ser

conhecido Um dos esforccedilos de Platatildeo nesta analogia parece consistir em apresentar

uma noccedilatildeo de realidade e a sua relaccedilatildeo com a verdade Realidade e verdade se mostram

em um plano diferente do comum diferente das opiniotildees vulgares Faz parte da tarefa

do filoacutesofo discernir a verdade das vaacuterias aparecircncias de verdade e verificar a natureza

dos objetos e o modo adequado de lidar com eles Esse discernimento comeccedila com a

compreensatildeo da deficiecircncia do domiacutenio da sensibilidade e do juiacutezo em relaccedilatildeo a um

plano mais autecircntico e por isso superior o plano da realidade no domiacutenio inteligiacutevel

Por enquanto nas duas primeiras partes da linha o texto oferece os dados e os tipos de

relaccedilotildees com as quais o leitor deve analisar as proacuteximas etapas

30 Parece vaacutelida tal interpretaccedilatildeo dado que em 505c esta perspectiva eacute posta como adversaacuteria da visatildeo

filosoacutefica que vai buscar a inteligecircncia do bem (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ θάλαη Rep 505b9)

61

Cabe notar que o questionamento acerca do objeto que deve servir de modelo eacute

sugerido tambeacutem pela relaccedilatildeo clareza - natildeo clareza falta de clareza Ao dividir os

objetos segundo o criteacuterio de clareza que apresentam acerca da realidade este parece ser

um dado que potildee diretamente em questatildeo a capacidade de apreensatildeo de alguma verdade

a partir de determinados objetos ao mesmo tempo em que se suspeita da possibilidade

desses oferecerem a realidade acerca de algo31

O domiacutenio sensiacutevel natildeo oferece verdade

acerca dos objetos os quais satildeo derivados de objetos fiacutesicos e portanto sensiacuteveis

sendo considerados assim deficientes A linha nesse sentido mostra com suas seccedilotildees

diferentes graus de apreensatildeo o que estaacute de algum modo relacionado com capacidade

de um objeto mostrar o seu modelo ou dito metaforicamente com a clareza dos

objetos32

A perspectiva que a analogia da linha propotildee a saber a condiccedilatildeo ontoloacutegica

dos objetos e o que eacute possiacutevel apreender deles e atraveacutes deles em termos gnosioloacutegicos

exige verificar a cogniccedilatildeo em seus niacuteveis de apreensatildeo Ao utilizar a noccedilatildeo de clareza

como criteacuterio tem-se sugerido uma realidade dada como modelo a qual natildeo aparece

com carga ontoloacutegica nas primeiras duas seccedilotildees da linha Tal proposiccedilatildeo surge

analogamente da relaccedilatildeo onde os objetos fiacutesicos originais satildeo os objetos reais e nesse

contexto portanto verdadeiros As imagens por outro lado como derivaccedilotildees como

reflexos apenas natildeo satildeo verdadeiras no sentido prosaico do termo Pretende-se mostrar

agora que a sombra de um boneco natildeo eacute o proacuteprio boneco ou seja que o reflexo natildeo eacute

igual ao modelo O que estaacute em questatildeo eacute a diferenccedila entre a coisa e a aparecircncia desta

coisa aparecircncia que ao imitar33

algo ao referi-lo natildeo deve ser confundida com ele

Deve-se ainda observar que o primeiro problema posto pela analogia se refere

justamente ao tipo de diferenciaccedilatildeo entre os objetos Dito de outro modo em que campo

operam as distinccedilotildees as quais se realizam por meio das noccedilotildees de igualdade

semelhanccedila e clareza Na perspectiva ontoloacutegica ou no esboccedilo de uma perspectiva

ontoloacutegica como parece ser o caso natildeo estaacute em questatildeo se um objeto tem mais ser que

outro em termos existecircncia A sombra natildeo existe menos que os bonecos que ela

31 O trecho ldquoDe acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de nitidez (σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφείᾳ) que

tenham entre si no mundo visiacutevel teraacutes uma das seccedilotildees as imagens -(θαί ζνη ἔζηαη ζαθελείᾳ θαὶ

ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια ἐλ κὲλ ηῷ ὁξσκέλῳ ηὸ κὲλ ἕηεξνλ ηκκα εἰθόλεο)rdquo (Rep 509d 10-509e1) parece

deixar evidente a comparaccedilatildeo que se faz na linha dividida os objetos uns em relaccedilatildeo aos outros conforme

se mostram claros ou obscuros ou seja segundo o que podem mostrar acerca do objeto de referecircncia A

clareza eacute vista aqui como a capacidade de manifestar algo a que se refere 32 Cf Stocks op cit p 80

33 Mais adiante em 510b4 o texto notaraacute a aparecircncia como uma imitaccedilatildeo do objeto original

62

reflete34

entretanto por natildeo ser ela mesma o objeto que ela reflete a sombra o oferece

apenas em algum grau Eacute neste sentido que a graduaccedilatildeo de clareza parece atuar posto

que a atenccedilatildeo da linha se volta especialmente como visto para os propoacutesitos acerca da

cogniccedilatildeo A clareza e a verdade satildeo dadas no niacutevel que manifestam o seu modelo e cada

domiacutenio apresenta um niacutevel caracteriacutestico de apreensatildeo35

Pode parecer impreciso falar de uma ldquograduaccedilatildeordquo ao analisar as duas primeiras

seccedilotildees da linha uma vez que as noccedilotildees que servem de criteacuterio satildeo dadas nos termos de

verdade ndash natildeo-verdade claro-obscuro ou seja X ou natildeo-X Tal graduaccedilatildeo vale

adiantar fica mais evidente a seguir com a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e

as especificaccedilotildees acerca do princiacutepio natildeo hipoteacutetico (Rep 510b6) No domiacutenio da

opiniatildeo as caracteriacutesticas atribuiacutedas agraves aparecircncias que as imagens supotildeem se

apresentam como um preacircmbulo para as duas seccedilotildees seguintes que concernem ao

inteligiacutevel e trazem assim as debilidades do sensiacutevel em comparaccedilatildeo com a realidade

da qual ele carece Eacute preciso contrastar as formas inteligiacuteveis os verdadeiros seres com

as suas ocorrecircncias ou seja com as aparecircncias as quais constituem o domiacutenio sensiacutevel

dito natildeo verdadeiro Este ldquonatildeo verdadeirordquo que consiste no natildeo-real no sentido de natildeo

ser idecircntico ao modelo mostra primeiro as mudanccedilas e a multiplicidade caracteriacutesticas

do sensiacutevel para depois expor a estabilidade e a autenticidade do real Enquanto

existentes as imagens possuem alguma realidade no entanto natildeo no mesmo grau que o

seu modelo No mundo sensiacutevel animais e plantas satildeo reais todavia muito mais que a

sombra que as refletem A diferenciaccedilatildeo eacute dada na comparaccedilatildeo de uma seccedilatildeo com a

outra e desse modo natildeo-verdade e sem clareza compreendem a inferioridade das

imagens36

34 Chen explica que a relaccedilatildeo entre os componentes dos niacuteveis mais baixos eacute dada nos termos de

realidade o que equivale a diferentes graus de verdade (aleacutetheia) em relaccedilatildeo ao ser Natildeo haacute ainda nos

niacuteveis mais baixos a verdade no sentido epistemoloacutegico As subdivisotildees da linha mostram a assimetria

das proporccedilotildees de participaccedilatildeo dos objetos os quais satildeo ditos mais ou menos verdadeiros equivalente a

dizer ter mais ou menos clareza Chen op cit p 105-106

35 Vlastos compreende que se pode reconhecer uma variedade de predicados intermediaacuterios entre real e

natildeo-real e portanto uma divisatildeo entre ser e natildeo-ser verdadeiro e falso natildeo eacute a interpretaccedilatildeo adequada do

ldquomais realrdquo ldquomenos-realrdquo Deve-se considerar que no sentido de ldquomais realrdquo cognato a mais verdadeiro e

metaforicamente dito mais claro estatildeo compreendidas as seguintes noccedilotildees 1ordm) melhor revelaccedilatildeo do que

eacute a coisa 2ordm) o sentido de modelo eacute ldquox-mesmordquo isto eacute a Forma Vlastos G ldquoDegrees of Realityrdquo in

Platonic Studies Princeton University Press 1981 p 62

36 Vlastos entende que as caracteriacutesticas do sensiacutevel satildeo como F (Forma) e natildeo-F F no sentido que

possui o ser em um grau que garante ao menos a sua existecircncia e natildeo-F no sentido que ldquosua natureza F foi

adulterada por caracteriacutesticas contraacuterias o que entatildeo poderia nos dar apenas uma ideia confusa e incerta

do que eacute F Algo que poderia ser sujeito de constantes flutuaccedilotildees como encontramos ocorrecircncias de F que

acabaram por serem diferentes em um ou mais aspectos a partir dos quais baseamos nossa concepccedilatildeo

preacutevia de Frdquo Vlastos idem p 63

63

Vale natildeo perder de vista a intenccedilatildeo maior do argumento o conhecimento da

ideia do Bem O objetivo eacute desfazer o mal-entendido de atribuir alguma legitimidade ao

que aparenta ser certo e verdadeiro anaacutelogo agraves sombras e aos reflexos pelo modo

vulgar de apreendecirc-los e de dar algum assentimento acerca deles Nesse sentido a

delimitaccedilatildeo do objeto especiacutefico do conhecimento mostra tal como se vecirc na descriccedilatildeo

do plano sensiacutevel que diante de objetos que satildeo apenas reflexos aparecircncias de

realidades a atividade da alma natildeo consiste mais do que em um juiacutezo ou em uma

convicccedilatildeo Dito de outro modo natildeo eacute a experiecircncia empiacuterica que daraacute a verdade acerca

de algo nem se enunciaraacute alguma verdade conjecturando o que se experiencia de modo

a emitir um juiacutezo como resultado pois no plano do sensiacutevel os objetos natildeo podem

revelar a realidade em toda a sua superioridade

III Atividade Inteligente

Estabelecidos os termos proacuteprios da atividade filosoacutefica tais como seus objetos

domiacutenio de atuaccedilatildeo e objetivos o que vem a seguir versaraacute sobre o conhecimento de

modo a elucidar a operacionalidade que constitui uma aquisiccedilatildeo da ideia Ter-se-aacute

dessa maneira uma explanaccedilatildeo do procedimento inteligente segundo um meacutetodo A

apreensatildeo do inteligiacutevel anteriormente referida como ldquoter inteligecircnciardquo ldquofixar-serdquo no

inteligiacutevel mostra-se agora na sua realizaccedilatildeo permitindo compreender pela via do

meacutetodo o alcance cognitivo e a distinccedilatildeo intelectual e moral do filoacutesofo Nessa

perspectiva vale adiantar tem-se novamente o pensamento nos termos da interaccedilatildeo

entre faculdade e objeto tal como no exemplo do sol mas desta vez com o acreacutescimo

das minuacutecias da realizaccedilatildeo desta ligaccedilatildeo A inteligecircncia aparece nesse contexto como

um efeito desta relaccedilatildeo e como realizaccedilatildeo da natureza inteligente do filoacutesofo que se daacute

na investigaccedilatildeo sobre o bem

Uma vez tratadas as caracteriacutesticas deacutebeis dos objetos no plano sensiacutevel a

exemplo da imagem e as consequecircncias cognitivas de seu uso o foco da explanaccedilatildeo se

64

volta sobretudo para a positividade da realidade a partir da qual se pode realizar a

verdadeira cogniccedilatildeo Os objetos e seus estatutos satildeo explicados a partir de agora em

comparaccedilatildeo com as ideias e em relaccedilatildeo agraves formas adequadas de intelecccedilatildeo para o

conhecimento

ldquo- De outro lado examina tambeacutem como deve ser divida a seccedilatildeo

correspondente ao inteligiacutevel

- Como

- A alma na primeira seccedilatildeo era forccedilada a pesquisar a partir de

hipoacuteteses usando objetos laacute imitados como imagens caminhando na

direccedilatildeo natildeo do princiacutepio mas do fim na outra poreacutem vai da

hipoacutetese ao princiacutepio que natildeo admite hipoacuteteses sem servir-se de

imagens como no outro caso e encaminha sua pesquisa soacute por meio

das proacuteprias ideias ndash(ηὸ δ αὖ ἕηεξνλ - ηὸ ἐπ‟ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ ndash ἐμ

ὑπνζέζεσο ἰνῦζα θαὶ ἄλεπ ηῶλ πεξὶ ἐθεῖλν εἰθόλσλ αὐηνῖο εἴδεζη δη‟

αὐηῶλ ηὴλ κέζνδνλ πνηνπκέλε)rdquo (Rep510b)

No plano inteligiacutevel que concerne ao cognosciacutevel a alma natildeo parte das imagens

para formular as hipoacuteteses mas das proacuteprias hipoacuteteses para chegar ao que constitui o

conhecimento o princiacutepio e o princiacutepio maior (ἀλππόζεηνο) A subida a este princiacutepio

que dispensa as imagens e utiliza um novo elemento as hipoacuteteses seraacute o novo

empreendimento do filoacutesofo no domiacutenio inteligiacutevel segundo o argumento da linha Os

objetos inteligiacuteveis natildeo podem ser atingidos senatildeo de acordo com o meacutetodo especiacutefico

para o conhecimento das ideias e do princiacutepio uacuteltimo que se mostra na atividade do

pensamento em relaccedilatildeo agraves hipoacuteteses O bem e a ideia do bem ganham agora

determinaccedilotildees metodoloacutegicas uma vez definidos seu estatuto e sua posiccedilatildeo no interior

da organizaccedilatildeo do quadro epistemoloacutegico em que se desenrola a atividade cognitiva A

noccedilatildeo de princiacutepio de tudo e por isso natildeo-hipoteacutetico satildeo as designaccedilotildees dadas a eles e

seratildeo conceituadas nos termos do meacutetodo dialeacutetico A inapreensiacutevel grandeza do bem

sugerida pela essecircncia de sua ideia pode ser inferida pelo procedimento dialeacutetico por

meio do qual o pensamento pode apreender o grau de cognoscibilidade possiacutevel acerca

dele Cabe analisar as tratativas do pensamento nesta operaccedilatildeo com as ideias e

sobretudo com a ideia do bem de modo a verificar a relaccedilatildeo objeto - pensamento que aiacute

se mostra

65

31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα

Apoacutes a seccedilatildeo das imagens e dos objetos originais estatildeo na primeira seccedilatildeo do

domiacutenio inteligiacutevel os objetos matemaacuteticos Estes apresentam as propriedades

inteligiacuteveis e demandam por isso um trabalho intelectual que consiste no raciociacutenio

(δηάλνηα)

ldquo- Ora explico outra vez Com a introduccedilatildeo que vou fazer

entenderaacutes com mais facilidade Creio que tu sabes que aqueles que

se ocupam da geometria com caacutelculos e assuntos como esses potildeem

como hipoacuteteses o par e o iacutempar as figuras trecircs espeacutecies de acircngulos e

outras coisas afins de acordo com o objeto de sua pesquisa e de um

lado como se as conhecessem tomam-nas como hipoacuteteses e acham

que natildeo tecircm de prestar contas nem a eles mesmos nem aos outros

(νὐδέλα ιόγνλ νὔηε αὑηνῖο νὔηε ἄιινηο ἔηη ἀμηνῦζη πεξὶ αὐηῶλ

δηδόλαη) sobre isso que segundo eles eacute coisa evidente para qualquer

um e de outro lado comeccedilando a partir dessas hipoacuteteses jaacute ao expor

o restante de maneira consequente acabam por chegar agrave

demonstraccedilatildeo (ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο) daquilo que os levou a

essa pesquisa

- Isso eu sei muito bem disse ele

-Entatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis

que discutem sobre elas ainda que natildeo estejam pensando nelas mas

naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedila Discutem a propoacutesito do

proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a propoacutesito da

diagonal que desenham e o mesmo fazem a respeito de outras

figuras Das figuras que modeladas e desenhadas por eles produzem

sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem imagens

buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam ser vistos

senatildeo com o pensamentordquo (Rep 510c-511a1)

Haacute duas classes de objetos inteligiacuteveis que demandam dois tipos de operaccedilotildees

intelectivas diferentes para que possam ser conhecidos37

Embora as duas seccedilotildees se

baseiem nas hipoacuteteses a abordagem dos seres inteligiacuteveis e o modo de operar pelas

hipoacuteteses faz Platatildeo distinguir na linha a atividade segundo a matemaacutetica e a dialeacutetica

Entre os geocircmetras e os matemaacuteticos (νἱ πεξὶ ηὰο γεσκεηξίαο ηε θαὶ ινγηζκνὺο Rep

510c2) os objetos inteligiacuteveis satildeo os trecircs tipos de acircngulo (γσληῶλ ηξηηηὰ εἴδε Rep

37 Para Cornford ldquoa distinccedilatildeo de objetos eacute uma questatildeo de expediente ao ensinarrdquo- Cornford

Mathematics and Dialectic in The Republic VI ndash VII (I) in Mind New Series vol 4 no 161 Oxford

University Press 1932 p 38 Embora seja inegaacutevel o uso propedecircutico que Cornford aponta interessa

ressaltar as especificidades das ideias matemaacuteticas em relaccedilatildeo agraves ideias morais como a ideia do bem

Dado que a intenccedilatildeo do filoacutesofo no Livro VI consiste em verificar o que fundamenta a justiccedila e a bondade

da cidade ideal conveacutem natildeo perder de vista uma distinccedilatildeo de tipos de ideias o que seraacute melhor defendido

apoacutes a anaacutelise dos argumentos d‟A Repuacuteblica

66

510c5) a noccedilatildeo de par e de iacutempar e as figuras geomeacutetricas (ηὰ ζρήκαηα) que

representam os seres matemaacuteticos como o quadrado e o triacircngulo Os matemaacuteticos

tomam por hipoacuteteses tais objetos sem fazer maiores questionamentos e sem oferecer

maiores explicaccedilotildees sobre eles (Rep 510c6) Do mesmo modo consideram o proacuteprio

meacutetodo matemaacutetico tambeacutem adequado e suficiente para dar o que entendem ser o

conhecimento uma conclusatildeo acerca do que investigavam a qual se tem

consensualmente ndash ldquo() de maneira consequente acabam por chegar agrave demonstraccedilatildeo

daquilo que os levou a essa pesquisardquo (ἤδε δηεμηόληεο ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ

ηνῦην νὗ ἂλ ἐπὶ ζθέςηλ ὁξκήζσζη Rep 510d)38

Com esta criacutetica o foco da analogia da linha ilumina a questatildeo do meacutetodo de

cogniccedilatildeo e ao mesmo tempo as caracteriacutesticas de uma apreensatildeo do inteligiacutevel Natildeo

parece estar mais em questatildeo somente a relaccedilatildeo objeto original e seu reflexo como

exposto nas primeiras seccedilotildees da linha agora parece importante ter em vista tal relaccedilatildeo

no que concerne este tipo de objeto inteligiacutevel e seu modo de apreensatildeo Geometria

matemaacutetica e toda a disciplina desta natureza parecem natildeo corresponder inteiramente ao

processo de cogniccedilatildeo por utilizarem cada uma um meacutetodo sugestivamente inadequado

(Rep 510c5) Nesta parte da linha o meacutetodo aborda a natureza do objeto e ao mesmo

tempo diz de algum modo a atividade intelectual que ele demanda ao mostrar os

pormenores do procedimento como se daraacute na sequecircncia

Vale analisar em detalhes a descriccedilatildeo do procedimento matemaacutetico para

compreender melhor o domiacutenio inteligiacutevel e o que diz a primeira seccedilatildeo sobre a

cogniccedilatildeo A explicaccedilatildeo acerca da construccedilatildeo das hipoacuteteses vem em seguida A

geometria e a matemaacutetica utilizam em seu argumento elementos do visiacutevel das formas

visiacuteveis que eles proacuteprios moldam desenham (πιάηηνπζίλ ηε θαὶ γξάθνπζηλ Rep

510e) Apesar disso a figura geomeacutetrica natildeo parece consistir entretanto a melhor

maneira de exprimir o resultado do que a alta intelecccedilatildeo pode conceber39

Dito de outro

38 Algumas traduccedilotildees como a ediccedilatildeo em portuguecircs que se utiliza para as citaccedilotildees do texto traduzem o

trecho ldquoηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ ηνῦηνrdquo por ldquodemonstraccedilatildeordquo Deve-se notar que algumas traduccedilotildees

preferem ser fieis aos termos do texto grego optando por ldquoagreementrdquo como a traduccedilatildeo de Emlyn-Jones e

Preddy op cit p 101 Ao menos por enquanto parece importante expor a criacutetica ao caraacuteter infundado ou

de base questionaacutevel como se veraacute adiante de uma conclusatildeo ao modo do procedimento matemaacutetico

uma vez que se daacute nos termos de um acordo Cabe adiantar que este seraacute um ponto a ser abordado e

reformulado na dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar o desenvolvimento desta criacutetica ao que se tem

como fundamento na matemaacutetica

39 Rep 510d5 ldquoEntatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis que discute sobre elas

ainda que estejam pensando nelas mas naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedilardquo (ὅηη ηνῖο ὁξσκέλνηο

εἴδεζη πξνζρξῶληαη θαὶ ηνὺο ιόγνπο πεξὶ αὐηῶλ πνηνῦληαη νὐ πεξὶ ηνύησλ δηαλννύκελνη ἀιι ἐθείλσλ

πέξη νἷο ηαῦηα ἔνηθε)

67

modo natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo que se pode dar a um raciociacutenio noeacutetico pois

embora natildeo seja precisamente um reflexo a figura geomeacutetrica consiste na aparecircncia dos

objetos que os geocircmetras procuram O equiacutevoco da geometria parece estar no dado de

que tais formas visiacuteveis satildeo para eles o proacuteprio quadrado e a proacutepria diagonal sobre as

quais se constroacutei um ιόγνο40

O que se tem em vista eacute a noccedilatildeo de quadrado e de

diagonal que natildeo consistem em representaccedilotildees sensiacuteveis ao modo de um espectro como

acontecia com as sombras e com os reflexos nas superfiacutecies e na aacutegua (ηὰο ζθηάο

θαληάζκαηα Rep 510a1) Haacute uma distinccedilatildeo neste instante da forma visiacutevel (ηνῖο

ὁξσκέλνηο εἴδεζη) a figura geomeacutetrica por via da qual o geocircmetra busca o inteligiacutevel

Este tipo de imagem a figura da geometria refere-se a conceitos da geometria e de

algum modo oferece este conteuacutedo que eacute apreensiacutevel somente pela δηάλνηα

ldquo() Das figuras que modeladas e desenhadas por eles

produzem sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem

imagens buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam

ser vistos senatildeo com o pensamentordquo (ηνύηνηο κὲλ ὡο εἰθόζηλ αὖ

ρξώκελνη δεηνῦληεο δὲ αὐηὰ ἐθεῖλα ἰδεῖλ ἃ νὐθ ἂλ ἄιισο ἴδνη ηηο ἢ ηῆ

δηαλνίᾳ (Rep 510e ndash 511a)

Antes de analisar o pensar nesse contexto a δηάλνηα propriamente vale verificar

esse dado que parece ser importante para distinguir a primeira seccedilatildeo inteligiacutevel e para

conferir o grau de conhecimento da realidade dos objetos da investigaccedilatildeo matemaacutetica O

conteuacutedo inteligiacutevel da figura geomeacutetrica estaacute na ordem dos conceitos o que define o

quadrado ldquoo proacutepriordquo impliacutecito em ldquoo proacuteprio quadradordquo e nas outras noccedilotildees

matemaacuteticas como a noccedilatildeo de par e de iacutempar e os tipos de triacircngulos Todavia a criacutetica

ao uso das imagens natildeo apresenta ao menos por enquanto maiores especificaccedilotildees

acerca da realidade dos seres matemaacuteticos O ldquoproacutepriordquo do quadrado natildeo deixa claro se

o que se entende por conceito matemaacutetico constitui uma ideia do quadrado como

poderia conceber a dialeacutetica ou se se trata de um quadrado dado pelo raciociacutenio

matemaacutetico e portanto uma demonstraccedilatildeo que conta com a representaccedilatildeo graacutefica

distinccedilotildees que seratildeo examinadas mais adiante Por parecer uacutetil a uma definiccedilatildeo de

atividade intelectual o texto chama atenccedilatildeo para o dado de que na praacutetica dos

40 Rep 510d8 ldquoDiscutem a propoacutesito do proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a

propoacutesito da diagonal que desenham ()rdquo (ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ ἕλεθα ηνὺο ιόγνπο πνηνύκελνη θαὶ

δηακέηξνπ αὐηο ἀιι νὐ ηαύηεο ἣλ γξάθνπζηλ)

68

geocircmetras se confere a tais imagens a funccedilatildeo de refletir conceitos41

Dito de outro

modo eles buscam as noccedilotildees matemaacuteticas a partir de uma representaccedilatildeo sensiacutevel por

compreenderem equivocadamente ser a figura capaz de referir as noccedilotildees inteligiacuteveis e

ao domiacutenio sensiacutevel simultaneamente

Ao considerar o que jaacute foi exposto sobre a aparecircncia e a sua debilidade em

relaccedilatildeo a uma referecircncia plena de realidade natildeo parece haver a completa aprovaccedilatildeo

deste meacutetodo no que se refere ao mais alto conhecimento Mesmo que se apreenda tais

noccedilotildees atraveacutes da figura geomeacutetrica as mesmas natildeo podem ser compreendidas em toda

a sua realidade por um recurso sensiacutevel como a imagem Em outros termos as noccedilotildees

inteligiacuteveis natildeo satildeo ditas em sua integridade em sua realidade pelas figuras sendo a

argumentaccedilatildeo e a explicaccedilatildeo matemaacutetica obscura carente de clareza ao se atribuir agrave

representaccedilatildeo graacutefica e agrave demonstraccedilatildeo o conhecimento do objeto em questatildeo como se

argumentou no iniacutecio da criacutetica

Dada a carecircncia de clareza da figura embora em menor grau comparada agraves

sombras o ιόγνο matemaacutetico fica comprometido o que explica a conclusatildeo nos termos

de um acordo Esse meacutetodo natildeo alcanccedila o que parece constituir o fundamento do

quadrado e dos conceitos matemaacuteticos o que mostra que a evidecircncia que busca o ιόγνο

geomeacutetrico tem iniacutecio e fim nas figuras sensiacuteveis ainda que seu procedimento e as

proacuteprias figuras envolvam noccedilotildees inteligiacuteveis42

A criacutetica ao meacutetodo matemaacutetico vale

antecipar estaraacute completa apoacutes o exame das disciplinas que colaboram na educaccedilatildeo do

governante e do guardiatildeo da cidade no livro VII Neste instante tem-se avaliados

observe-se os aspectos que ressaltam as limitaccedilotildees da aritmeacutetica e da geometria em

relaccedilatildeo agravequele que se mostraraacute o modo de pensar mais eficiente para o mais alto

conhecimento Assim importa mostrar as fragilidades do meacutetodo dos matemaacuteticos para

mais tarde expor o seu alcance intelectual e a sua utilidade propedecircutica

41 Embora haja a sugestatildeo de uma realidade ao dizer o ldquoquadrado mesmordquo tal indicaccedilatildeo natildeo parece

totalmente clara ao menos ainda A nota de James Adam sobre a ambiguidade de ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ

vale ser citada pois ajuda a pocircr a questatildeo acerca da realidade dos seres matemaacuteticos Ele nota que o

αὐηνῦ se refere antes de tudo ao quadrado ele mesmo (ldquoitselfrdquo) e natildeo diz respeito portanto ao desenho

do quadrado Pode se referir tanto a ideia de quadrado quanto ao quadrado matemaacutetico o qual segundo

ele Platatildeo diz ser distinto da ideia Em seguida Adam vecirc a possibilidade de a ambiguidade ser desfeita a

partir 511a ao se falar do δηαλννύκελνη os quais entende serem os seres matemaacuteticos Adam op cit pg 68

42 Aubenque faz um comentaacuterio que vai nessa direccedilatildeo ldquoQue este objeto intermediaacuterio seja o objeto dos

matemaacuteticos eacute o que se extrai da passagem 510d seg onde o matemaacutetico eacute apresentado como

raciociacutenio sobre as figuras que ele traccedila no sensiacutevel () mas das quais ele se serve como imagens (hoacutes

eikoacutesin) bdquodestas realidades mais altas‟ com as quais tais figuras se assemelham (eacuteoike)rdquo Aubanque op

cit p 42-43

69

A explicaccedilatildeo do procedimento dos geocircmetras expotildee desse modo as

caracteriacutesticas do domiacutenio inteligiacutevel O detalhamento das especificidades acerca deste

plano prossegue com a exposiccedilatildeo da atividade inteligente da alma

ldquo- Pois bem Eis o gecircnero que eu dizia ser o inteligiacutevel Ao

buscaacute-lo a alma eacute obrigada a servir-se de hipoacuteteses e natildeo se

encaminha para o princiacutepio uma vez que natildeo pode elevar-se aleacutem de

hipoacuteteses mas servindo-se das proacuteprias imagens imitadas pelos

objetos da seccedilatildeo inferior que em comparaccedilatildeo com as outras satildeo

tidas e apreciadas como mais niacutetidas

- Entendo disse ele que falas do que se faz na geometria e nas

artes que lhe satildeo afins (ἀδειθαῖο ηέρλαηο)rdquo (Rep 511a3- b2)

Com um tom conclusivo a criacutetica aos matemaacuteticos termina mostrando a que se

deve o erro e as consequecircncias do meacutetodo Como sugerido anteriormente nas condiccedilotildees

que esta seccedilatildeo da linha apresenta a alma eacute impelida a buscar o inteligiacutevel no entanto

natildeo pelo princiacutepio mas pelas hipoacuteteses (Rep 511a3) Ela eacute incapaz de sair das hipoacuteteses

na direccedilatildeo de um niacutevel superior justamente porque permanece presa agraves representaccedilotildees

sem buscar compreender mais profundamente as noccedilotildees apreendidas (Rep 511d5-7)

Ao comparar as imagens como aparecircncias do niacutevel mais baixo e como graacuteficos

do meacutetodo geomeacutetrico a alma as julga e as preza como dotadas de clareza O geocircmetra

considera assim as imagens como fidedignas agraves hipoacuteteses e de certo modo aos objetos

fiacutesicos tomando o resultado que se tem atraveacutes delas como o proacuteprio conhecimento

Desse modo compreende como clareza a adequaccedilatildeo entre a representaccedilatildeo e o objeto

representado Tal uso da imagem ressalta o caraacuteter inoacutecuo da aparecircncia e sugere ser o

meacutetodo matemaacutetico tatildeo insuficiente nos termos da alta cogniccedilatildeo quanto o que se tem

na opiniatildeo uma vez que ao final perde de vista os conceitos Por se fixar a imagens e

assim natildeo desenvolver o grau necessaacuterio de intelecccedilatildeo para apreender o fundamento dos

conceitos aritmeacuteticos natildeo pode ir aleacutem de hipoacuteteses que o levaratildeo apenas a outras

hipoacuteteses Desse modo uma vez que a intenccedilatildeo eacute demonstrar a premissa e chegar a uma

conclusatildeo no sentido de ὁκνινγνπκέλσο a matemaacutetica natildeo alcanccedila os princiacutepios O

movimento intelectivo que o matemaacutetico faz consiste desse modo das premissas para a

conclusatildeo sendo as hipoacuteteses o meio para tal43

43 Nickolas Pappas oferece uma explicaccedilatildeo sobre o que Platatildeo compreende por hipoacutetese ldquoTatildeo

improvadas asserccedilotildees sobre entidades matemaacuteticas podem ser aquilo a que Platatildeo daacute o nome de

hipoacutetesesrdquo Para o autor Platatildeo procura um fundamento para toda a matemaacutetica e de algum modo

simultaneamente para a Metafiacutesica ndash papel desempenhado pela Ideia do Bem Haacute o desejo de encontrar

aquilo que nos termos da contemporaneidade se chamaria certeza loacutegica certeza que o axioma

70

Cabe averiguar qual deve ser a compreensatildeo sobre as hipoacuteteses no argumento

dos matemaacuteticos e dos dialeacuteticos no Livro VII Pelo que se tem ateacute agora elas se

referem agraves premissas a partir das quais se constroacutei o raciociacutenio matemaacutetico e uma

conclusatildeo a qual deve estar de acordo com o pressuposto primeiro Desse modo as

hipoacuteteses constituem os pressupostos que satildeo sempre reafirmados ao final do processo

e nesse sentido todo o ιόγνο pode ser compreendido como a explicaccedilatildeo da premissa

ou melhor dizendo como uma demonstraccedilatildeo44

O meacutetodo matemaacutetico se resume agrave

demonstraccedilatildeo de premissas e natildeo ascendem de modo a entender por isso agrave natureza da

ideia envolvida na operaccedilatildeo Com as premissas por sua vez os loacutegicos e os geocircmetras

pretendem dizer o que satildeo os objetos do mundo sensiacutevel e a demonstraccedilatildeo delas

pressupotildee o conhecimento destes objetos Eles compreendem que a evidecircncia (θαλεξόλ)

acerca do objeto investigado eacute dada com esta demonstraccedilatildeo matemaacutetica de algo

existente do mundo fiacutesico atraveacutes das figuras abstendo-se de investigar ou oferecer uma

explicaccedilatildeo acerca do que fundamenta a hipoacutetese ou seja de buscar o ἀλππόζεηνο ou os

proacuteprios princiacutepios que utilizam a ἀξρή

Vale ainda atentar para a singularidade da seccedilatildeo que concerne agrave matemaacutetica O

primeiro ponto a ser notado diz respeito agrave possibilidade de natildeo adquirir conhecimento

nos termos da filosofia mesmo ao lidar com objetos inteligiacuteveis Os matemaacuteticos assim

como os dialeacuteticos como se analisaraacute em detalhe lidam com seres inteligiacuteveis

entretanto devido ao meacutetodo natildeo apropriado para a apreensatildeo deste objeto de grau mais

alto este contato natildeo constitui exatamente um conhecimento nos termos da ἐπηζηήκε

como quer o filoacutesofo O geocircmetra e o matemaacutetico natildeo chegam ao princiacutepio e o ponto

para o qual a analogia parece lanccedilar luz eacute justamente a importacircncia do meacutetodo e

consequentemente da operaccedilatildeo intelectiva que ele demanda Ao problematizar as

condiccedilotildees para o conhecimento questionando os objetos e o procedimento Platatildeo

sugere as diferenccedilas de abordagem epistemoloacutegica Dito de outro modo o caraacuteter

intermediaacuterio que parece ter a matemaacutetica uma vez que estabelece as tratativas entre o

sensiacutevel e o inteligiacutevel oferece as condiccedilotildees para mostrar as possibilidades de

operacionalidade do pensamento em uma primeira etapa do processo de cogniccedilatildeo

matemaacutetico natildeo oferece mas acreditam os geocircmetras estar evidente nas suas demonstraccedilotildees A dialeacutetica

tem a tarefa de definir em termos mais amplos simples e mais abstratos os objetos da matemaacutetica que

carecem de definiccedilatildeo A ascese dialeacutetica da Linha Dividida pode ser vista como uma ldquoclarificaccedilatildeo

definitoacuteriardquo ao inveacutes de uma ldquocerteza axiomaacuteticardquo Pappas op cit p 176-177 Na verdade o que o

dialeacutetico compreende como ideia o matemaacutetico toma como axiomas e noccedilotildees e os utiliza como hipoacutetese

44 Para Cornford o matemaacutetico restringe hipoacutetese agrave afirmaccedilatildeo de uma existecircncia e natildeo de uma definiccedilatildeo

A definiccedilatildeo na matemaacutetica eacute um ιόγνο no sentido de uma explicaccedilatildeo e natildeo de uma causa Cornford op

cit p 39

71

Se nas primeiras seccedilotildees da linha a deficiecircncia das aparecircncias mostrava a

debilidade do sensiacutevel e consequentemente a impossibilidade da cogniccedilatildeo nesta parte

da linha o conhecimento depende mais da atividade que se estabelece em relaccedilatildeo aos

objetos ou seja do meacutetodo45

A geometria que pretende mensurar algo fiacutesico e no

entanto utiliza elementos inteligiacuteveis mostra a possibilidade de uma relaccedilatildeo do sensiacutevel

com o inteligiacutevel que a imagem sozinha natildeo oferecia Mesmo que o meacutetodo da

geometria natildeo ascenda agraves causas e agrave ideia ultima e termine por mirar o domiacutenio

sensiacutevel as tratativas com os conceitos inteligiacuteveis demonstram a capacidade da alma

de inteligir em diferentes niacuteveis e de acordo com a analogia ao menos de dois modos

como um raciociacutenio (δηάλνηα) e como uma intelecccedilatildeo em seu maacuteximo grau (λόεζηο)

Desse modo a distinccedilatildeo entre o princiacutepio e o objeto matemaacutetico merece alguns

esclarecimentos O princiacutepio que Platatildeo sugere nessas passagens se refere a ἀξρή e ao ηὸ

ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ causa dos princiacutepios e dos conceitos matemaacuteticos Eacute a ele que os

objetos da matemaacutetica devem sua realidade O objeto com o qual lida a matemaacutetica eacute o

ηὸ αὐηό ldquoo mesmordquo que exprime o conceito como visto Nesse sentido conhecer as

noccedilotildees matemaacuteticas naquilo que elas tecircm de inteligiacutevel e real constitui um

conhecimento no sentido de cognosciacutevel embora natildeo seja o mesmo conhecimento do

dialeacutetico (ἐπηζηήκε) que justamente apreende o primeiro princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico Os

objetos da matemaacutetica por serem inteligiacuteveis datildeo condiccedilotildees para a alma ter um grau de

frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel mesmo que os matemaacuteticos natildeo se deem conta dos

45 A ambiguidade desta parte da linha fez autores repensarem a verdadeira divisatildeo da linha Stocks por

exemplo entende que pode haver trecircs pares na divisatildeo conforme clareza ou verdade A e B (imagens e

originais) C e D (objetos matemaacuteticos ndash ideias) e AB e CD Entre B e C (originais e objetos matemaacuteticos)

haacute uma dissimetria natildeo havendo uma continuidade no sentido de uma passagem progressiva do grau

maior para o menor Os objetos do sensiacutevel B tem sua representaccedilatildeo em A D a seccedilatildeo mais alta tem a sua

verdade revelada em C na matemaacutetica Deve-se considerar B uma forma esclarecida de A e D uma forma

esclarecida de C ndash Stocks op cit p 76 77 De qualquer modo Stocks percebe haver entre os

seguimentos dos objetos fiacutesicos e o da matemaacutetica uma brusca distinccedilatildeo que ao final agruparia os

elementos da linha nos grupos domiacutenio sensiacutevel- domiacutenio inteligiacutevel e objetos originais fiacutesicos e

metafiacutesicos Chen entende que esta distinccedilatildeo de objetos entre imagem-original eacute assimeacutetrica enquanto a

relaccedilatildeo entre originais fiacutesicos-objetos matemaacuteticos e objetos matemaacuteticos-ideias eacute simeacutetrica uma vez que

a relaccedilatildeo dada pelo caacutelculo eacute intermediada pela noccedilatildeo de igualdade Natildeo se trata portanto de uma mesma

relaccedilatildeo e o texto entende Chen lida com a relaccedilatildeo assimeacutetrica - Chen op cit p 104 Em outras palavras

eacute possiacutevel ver uma riacutegida separaccedilatildeo entre os segmentos intermediaacuterios como Stocks considera ou uma

relativa continuidade como entende Chen As duas posiccedilotildees mostram a meu ver a complexidade da

parte que se refere agrave matemaacutetica na linha como bastante oportuna para propor uma noccedilatildeo de atividade do

pensamento que perpasse de algum modo os domiacutenios e possa chegar a mais superior das ideias a ideia

do bem No caso de Chen o comentaacuterio elege a noccedilatildeo de igualdade (equality) como a noccedilatildeo reguladora

que o caacutelculo utiliza para fazer as relaccedilotildees entre os domiacutenios Esta parece ser uma observaccedilatildeo pertinente e

importante do aspecto da cogniccedilatildeo pois evidencia os tipos de noccedilotildees inteligiacuteveis capaz de fazer esta

relaccedilatildeo entre os domiacutenios e as seccedilotildees Natildeo parece ser qualquer elemento inteligiacutevel que poderia

proporcionar este tracircnsito mas elementos especiacuteficos presentes tanto no domiacutenio sensiacutevel quanto no

inteligiacutevel isto eacute noccedilotildees a partir das quais eacute possiacutevel uma verificaccedilatildeo tanto empiacuterica quanto intelectual

como parecem ser as noccedilotildees matemaacuteticas

72

princiacutepios Sendo o princiacutepio e o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico a causa do conceito (ηὸ αὐηό)

deve-se atentar o matemaacutetico tem a via para a apreensatildeo deles que erroneamente

ignoram Tal noccedilatildeo de causalidade que seraacute detalhada adiante mostra a relaccedilatildeo entre as

duas partes em que se divide o domiacutenio inteligiacutevel e propotildee ao mesmo tempo a

passagem de um niacutevel a outro

Desta vez ao se referir aos objetos matemaacuteticos o texto parece tratar de maneira

mais objetiva a realidade deles e deixar para a questatildeo da cogniccedilatildeo as diferenciaccedilotildees

que propotildeem as divisotildees da linha Pode-se suspeitar que tais noccedilotildees tenham

peculiaridades que fazem Platatildeo utilizaacute-las para ilustrar o processo cognitivo na etapa de

transiccedilatildeo do sensiacutevel para o inteligiacutevel dado que com as noccedilotildees geomeacutetricas eacute possiacutevel

se referir de maneira inteligente ao sensiacutevel ou seja eacute possiacutevel dar um tratamento aos

objetos do mundo sensiacutevel a partir de noccedilotildees inteligiacuteveis Ao fazer uso de elementos

inteligiacuteveis para oferecer uma explicaccedilatildeo que tem por objetivo final dizer sobre o

domiacutenio sensiacutevel tal como se viu na demonstraccedilatildeo o meacutetodo matemaacutetico apresenta a

relaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel e ao mesmo tempo a participaccedilatildeo desta disciplina

em ambos os domiacutenios Desta perspectiva as noccedilotildees matemaacuteticas enviam diretamente

ao ser sem demandar outro tipo de objeto que natildeo sejam as noccedilotildees suscitadas pelas

figuras geomeacutetricas e pelas hipoacuteteses ao modo de axiomas46

A partir disso pode-se experimentar traccedilar um perfil da δηάλνηα visto que eacute a

operaccedilatildeo envolvida nessa tratativa entre seres de inteligibilidade tal como os conceitos

da matemaacutetica e da geometria com vistas para o sensiacutevel Ela apresenta as seguintes

caracteriacutesticas 1) opera partindo da premissa para a conclusatildeo por meio de hipoacuteteses 2)

faz a intermediaccedilatildeo entre conceitos inteligiacuteveis e imagens sensiacuteveis (graacuteficos da

geometria) 3) natildeo chega ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico embora os elementos com os

quais opera sejam inteligiacuteveis e por isso permitiriam fazecirc-lo Pode-se compreender o

movimento do pensamento do raciociacutenio com um grau ascendente e horizontal Em

termos cognitivos ou seja no que se refere ao alvo do conhecimento a atividade do

pensamento ao modo de um raciociacutenio se restringe a ir das hipoacuteteses agrave afirmaccedilatildeo acerca

de algo existente o qual natildeo define nos termos do raciociacutenio matemaacutetico Tal atuaccedilatildeo

parece ser suficiente para caracterizar um movimento que vai do sensiacutevel para um grau

46 Cornford faz uma observaccedilatildeo sobre o que ele chama de bdquoclasses de ideias‟ a qual parece ir ao encontro

desta hipoacutetese ldquoMatemaacuteticos podem usar bdquoimagens visiacuteveis‟ () Ele sabe que natildeo estaacute pensando a

partir destas coleccedilotildees [de representaccedilotildees de coisas] e de figuras mas de ideias Na classe das ideias

morais natildeo haacute imagens visiacuteveis suas semelhanccedilas no mundo satildeo propriedades invisiacuteveis da alma ()

Assim a matemaacutetica serve como o caminho mais faacutecil do mundo sensiacutevel para o mundo inteligiacutevel e deve

preceder ao estudo das ideias moraisrdquo Cornford op cit p 38

73

do inteligiacutevel mas que natildeo vai muito aleacutem da inteligibilidade dos nuacutemeros dos

conceitos matemaacuteticos e das hipoacuteteses

De outro modo em termos de operacionalidade no que diz respeito ao modo e

aos elementos dispostos no raciociacutenio matemaacutetico o procedimento demonstrativo

mostra que o movimento do pensamento consiste em um movimento horizontal uma

vez que permanece em torno da relaccedilatildeo princiacutepio-conclusatildeo tomando-os nos termos da

relaccedilatildeo entre hipoacuteteses A operaccedilatildeo desse modo fica restrita ao princiacutepio do qual

partiu constituindo um movimento de transiccedilatildeo entre as noccedilotildees envolvidas ao modo de

uma variaccedilatildeo entre os elementos que serve para demonstraacute-lo passando de um para

outro sem se lanccedilar questionamentos acerca deles proacuteprios Natildeo haacute nenhum movimento

que considere os elementos tomando-os da perspectiva de sua realidade Mesmo que ldquoo

proacuteprio quadradordquo possibilite inferir um grau ontoloacutegico superior parece ser satisfatoacuterio

para os propoacutesitos dos matemaacuteticos o grau de apreensatildeo do inteligiacutevel que os permita

fazer suas deduccedilotildees e voltar a imagem Parece natildeo haver necessidade de conhecer o

fundamento das noccedilotildees envolvidas no meacutetodo de demonstraccedilatildeo dado que a operaccedilatildeo

consiste justamente em intermediar os conceitos que estatildeo entre a premissa e a

conclusatildeo47

Tal descriccedilatildeo eacute o que torna possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da δηάλνηα ateacute aqui Vecirc-

se que se trata da operaccedilatildeo do pensamento que embora engajado na demonstraccedilatildeo de

noccedilotildees inteligiacuteveis natildeo chega ao princiacutepio maacuteximo e ocupa assim a posiccedilatildeo

intermediaacuteria entre a δόμα e a λόεζηϛ Conforme a primeira seccedilatildeo do domiacutenio

inteligiacutevel seu campo de atuaccedilatildeo versa sobre os inteligiacuteveis entretanto somente sobre

aqueles que mantecircm alguma relaccedilatildeo com o sensiacutevel isto eacute que podem de algum modo

dizecirc-los Dessa maneira a δηάλνηα constitui o primeiro grau do pensamento intelectivo

nos termos da cogniccedilatildeo e ganha lugar no domiacutenio do cognosciacutevel pois se refere ao uso

47 Diante da criacutetica ao procedimento dos matemaacuteticos conveacutem conferir o que Brisson e Meyerstein

explicam sobre o procedimento dos geocircmetras e a apropriaccedilatildeo em certa medida deste tipo de prova por

parte do filoacutesofo ldquoPara o filoacutesofo que na Greacutecia antiga toma como modelo os passos dos geocircmetras

provar implica 1) Por provisoriamente axiomas tambeacutem chamado ldquohipoacutetesesrdquo 2) verifica-se que esses

axiomas natildeo se contradizem 3) verifica-se que deduccedilatildeo obedece agraves regras da loacutegica 4) determina-se se

as consequecircncias decorrentes correspondem na realidade sensiacutevel agravequelas que devem ser 5) se as

respostas agraves questotildees 2 3 e 4 satildeo positivas retornam sobre seus passos para verificar se as hipoacuteteses satildeo

verdadeiramente primordiais ou se em vez disso necessitam de axiomas complementaresrdquo Brisson L

Meyerstein FW op cit p 47-48 Note-se que apesar das diferenciaccedilotildees que Platatildeo se esforccedila em

realizar a matemaacutetica foi uma disciplina de grande inspiraccedilatildeo para o modelo investigativo que pretendia

elaborar para a filosofia Em comum com a matemaacutetica o meacutetodo dialeacutetico teraacute um procedimento que

utiliza hipoacuteteses ou seja parte de ideias e tem a necessidade de investigaacute-las Essa parece ser a grande

contribuiccedilatildeo das matemaacuteticas para a proposiccedilatildeo de um meacutetodo filosoacutefico cabendo a partir de entatildeo

discernir acerca de como proceder segundo os interesses da filosofia

74

e ao consequente entendimento dos elementos inteligiacuteveis ao procurar organizaacute-los de

modo a elaborar uma explicaccedilatildeo48

Uma compreensatildeo mais profunda e detalhada sobre a δηάλνηα pode ser dada com

uma anaacutelise acerca das disciplinas matemaacuteticas no Livro VII Por meio da descriccedilatildeo da

ascese do aprendiz em direccedilatildeo ao conhecimento filosoacutefico eacute possiacutevel mensurar melhor o

grau de inteligecircncia e de cogniccedilatildeo do raciociacutenio O texto trata o raciociacutenio sob o

argumento de que toda disciplina matemaacutetica que conduz agrave ideia do bem pois obriga a

alma a se voltar para o inteligiacutevel e para a contemplaccedilatildeo do ser eacute uacutetil aos propoacutesitos do

pedagogo filoacutesofo49

Assim pretende especificar como ocorre a colaboraccedilatildeo da

geometria da astronomia e da harmonia na educaccedilatildeo do futuro governante e expotildee com

isso o objeto inteligiacutevel de cada uma Do mesmo modo a despeito do que argumenta a

maioria dos geocircmetras e dos astrocircnomos (Rep 526a) a geometria e a astronomia

desempenham o mesmo papel como disciplinas que promovem tal orientaccedilatildeo na medida

em que exigem o trabalho do raciociacutenio atraveacutes das relaccedilotildees que cada uma opera por via

das figuras geomeacutetricas e da observaccedilatildeo do movimento dos corpos celestes

De fato aleacutem de ser um conhecimento uacutetil para a guerra a geometria conhece os

objetos que apresentam a qualidade inteligiacutevel do que eacute perene ou literalmente do que

sempre eacute (ηνῦ ἀεὶ ὄληνο) e natildeo as figuras ou desenhos do que se observa empiricamente

ndash ldquondash Eacute faacutecil ficar de acordo quanto a isso A geometria eacute o conhecimento daquilo que

sempre eacute (Rep 527b7)rdquo Assim conceitos trabalhados pela geometria como

profundidade e pela astronomia como distacircncia movimento e velocidade expressam

relaccedilotildees apreensiacuteveis pelo raciociacutenio matemaacutetico como igualdade e duplicidade e por

isso constituem um aprendizado que treina a alma a trabalhar com o que eacute invisiacutevel e

com o ser (Rep 529b-c) Observe-se que o que vale satildeo as relaccedilotildees matemaacuteticas que

acompanham os conceitos da astronomia e da geometria os quais assim como a noccedilatildeo

de unidade treinam a faculdade inteligente da alma (ηὸ θύζεη θξόληκνλ ἐλ ηῆ ςπρῆ

Rep 530c1) para conhecer qualidades inteligiacuteveis essenciais agrave ideia do bem como

imutabilidade e verdade (Rep 530a3-b4) Do mesmo modo por utilizarem-se dos

nuacutemeros e do caacutelculo o geocircmetra o astrocircnomo e o muacutesico satildeo forccedilados agrave mesma

48 Cornford ldquoSeu entendimento intelectual de uma coerecircncia embora isolada peccedila do raciociacutenio

dedutivo eacute a diaacutenoiardquo Cornford op cit p 51

49 Rep 526e2-4 ldquoTende para laacute afirmamos noacutes tudo quanto obriga a alma a voltar-se para aquele

lugar onde estaacute o mais feliz dos seres () (ἀλαγθάδεη ςπρὴλ εἰο ἐθεῖλνλ ηὸλ ηόπνλ κεηαζηξέθεζζαη ἐλ ᾧ

ἐζηη ηὸ εὐδαηκνλέζηαηνλ ηνῦ ὄληνο) Rep 526e6 ldquoEntatildeo se obriga a contemplar a essecircncia ela nos

conveacutem se obriga a contemplar o devir natildeo nos conveacutemrdquo (Οὐθνῦλ εἰ κὲλ νὐζίαλ ἀλαγθάδεη ζεάζαζζαη

πξνζήθεη εἰ δὲ γέλεζηλ νὐ πξνζήθεη)

75

abstraccedilatildeo que o filoacutesofo e por consequecircncia adquirem o mesmo grau de conhecimento

por lidarem com a inteligibilidade do nuacutemero50

Conveacutem notar que a criacutetica quanto ao meacutetodo empregado e quanto aos objetivos

que tecircm em vista cada disciplina permanece O Livro VII oferece uma versatildeo

pormenorizada acerca da cogniccedilatildeo ao expor com detalhes a operaccedilatildeo intelectual e seu

grau de conhecimento envolvido nas matemaacuteticas Entretanto o argumento natildeo perdeu

de vista os limites destas disciplinas para uma elevaccedilatildeo mais alta ao apontar o equiacutevoco

por parte dos matemaacuteticos no que se refere ao verdadeiro objeto em questatildeo a ideia do

bem e a real contribuiccedilatildeo delas para tal O que o argumento diz da visatildeo dos geocircmetras

acerca da geometria vai ao encontro do que se observou no final do argumento da linha

(Rep 511a) onde se verifica a abstraccedilatildeo inteligiacutevel a partir da experiecircncia empiacuterica que

se realiza ao modo da adequaccedilatildeo do que se vecirc agraves figuras geomeacutetricas - ldquo() ao fazer

suas declaraccedilotildees falam em quadrar em construir uma figura acrescentar usando

sempre termos como esses Ora toda dedicaccedilatildeo a esse aprendizado tem em vista o

conhecimentordquo (Rep527a6-b1) Este parece constituir o objetivo uacuteltimo da geometria

a transposiccedilatildeo do sensiacutevel em direccedilatildeo agraves formas do inteligiacutevel na qual a racionalizaccedilatildeo

se daacute nos termos desse procedimento De todo modo a cogniccedilatildeo acontece todavia sem

ter em vista um conhecimento maior (ἐπηζηήκε)

O mesmo se observa entre os astrocircnomos os quais acreditam ser a astronomia

um conhecimento que equipara os fenocircmenos naturais com os astros sem considerarem

o que haacute de imutaacutevel e verdadeiro neles o que haacute de inteligiacutevel portanto (Rep 530a)

Tambeacutem entre os muacutesicos que julgam ser a harmonia o estudo que mensura e equipara

os sons dados da sensibilidade sem se darem conta da relevacircncia de examinar os

nuacutemeros que satildeo harmocircnicos e as razotildees que haacute para serem como tais (Rep 531a-d) ou

50 Cabe aqui trazer um esclarecimento de Trabattoni que vai ao encontro do que se analisa sobre a

δηάλνηα ldquoConveacutem no entanto esclarecer que natildeo satildeo as expressotildees oacuteticas em si que excluem esta

possibilidade e que para resolver a questatildeo eacute necessaacuterio investigar aleacutem dessa perspectiva Parece-me

que uma anaacutelise mesmo que resumida da metaacutefora da linha nos forneccedila argumentos suficientes para

estabelecermos que Platatildeo conceba que o conhecimento intelectual antes de qualquer coisa eacute um tipo de

pensamento discursivo O esquema dos manuais de filosofia segundo os quais apresentam a diaacutenoia

como o tipo de pensamento discursivo e proposicional que ocupa o terceiro segmento da linha e a noacuteēsis

como o quarto segmento e que seria portanto um pensamento intuitivo e natildeo proposicional natildeo se

verifica de maneira alguma no textordquo Trabattoni F ldquoIl Sapere del Filosofordquo in Vergetti M (Ed) La

Repubblica Naacutepoles Bibliopolis 2003 vol 5 p 158 O comentaacuterio expotildee a complexidade que envolve os

trabalhos do intelecto e a dificuldade ao se pretender dar uma classificaccedilatildeo riacutegida aos tipos de operaccedilatildeo

cognitivas O que Platatildeo parece ter em vista com a divisatildeo eacute primeiramente distinguir o que cada

conhecimento tem em vista para entatildeo mostrar a partir do meacutetodo de cada uma seus alcances e

limitaccedilotildees Raciociacutenio matemaacutetico e inteligecircncia mostram a intelecccedilatildeo ainda que em graus e de maneira

diferentes e que classificaacute-los como conhecimento proposicional o qual busca sobretudo definiccedilotildees ou

intuitivo pode dizer muito pouco sobre o intelecto e sua atividade

76

seja natildeo se questionam no que consiste a harmonia De modo geral diferentemente dos

dialeacuteticos os matemaacuteticos natildeo ascendem ao proacuteprio problema (ἀιι νὐθ εἰο πξνβιήκαηα

ἀλίαζηλ Rep 531c2) na perspectiva do filoacutesofo Mesmo que trabalhem com objetos

inteligiacuteveis e que tenham portanto um grau de intelecccedilatildeo e de cogniccedilatildeo os

matemaacuteticos natildeo demonstram ter o que para o filoacutesofo constituiria um conhecimento

pleno da sua disciplina o fundamento que as torna comuns e afins o natildeo hipoteacutetico

inteligiacutevel a ideia do bem

32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ

A descriccedilatildeo do meacutetodo de cogniccedilatildeo na uacuteltima parte da linha dividida apresenta a

apreensatildeo de ideias a cogniccedilatildeo no seu grau superior A operaccedilatildeo empreendida no

processo e as especificidades dos objetos da cogniccedilatildeo satildeo dadas agrave luz da formulaccedilatildeo

filosoacutefica Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e do conhecimento

proacuteprio deste tipo de apreensatildeo dita inteligente mostra-se segundo o caraacuteter da filosofia

e portanto da atividade cognitiva do filoacutesofo a partir de um meacutetodo especiacutefico

denominado ciecircncia dialeacutetica

ldquo- Pois bem Fica sabendo agora que eu digo que a seccedilatildeo das

coisas inteligiacuteveis eacute aquela em que eacute a proacutepria razatildeo que as apreende

com a forccedila da dialeacutetica (αὐηὸο ὁ ιόγνο ἅπηεηαη ηῆ ηνῦ δηαιέγεζζαη

δπλάκεη) considerando as hipoacuteteses natildeo como princiacutepios mas

realmente como hipoacuteteses como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο

ηε θαὶ ὁξκάο) para chegar ao princiacutepio de tudo aquele que natildeo

admite hipoacuteteses (κέρξη ηνῦ ἀλππνζέηνπ ἐπὶ ηὴλ ηνῦ παληὸο ἀξρὴλ

ἰώλ) Num movimento inverso por sua vez presa a tudo o que

depende desse princiacutepio vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem

servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias ideias

por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (εἴδε)

- Entendo disse mas natildeo como gostaria porque me parece que

estaacutes falando de uma tarefa muito pesada Queres determinar que o

conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da dialeacutetica

(ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο) eacute mais claro (ζαθέζηεξνλ εἶλαη) que

o que se tem por meio das ciecircncias cujos princiacutepios satildeo as hipoacuteteses e

que os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o

pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηῶλ ηερλῶλ αἷο αἱ

ὑπνζέζεηο ἀξραὶ θαὶ δηαλνίᾳ κὲλ ἀλαγθάδνληαη ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ

77

αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη) de outro lado por examinaacute-los sem voltar

ao princiacutepio (δηὰ δὲ ηὸ κὴ ἐπ ἀξρὴλ ἀλειζόληεο) mas a partir de

hipoacuteteses eles natildeo te parecem ter inteligecircncia a respeito deles ainda

que sejam inteligiacuteveis por meio de um princiacutepio Parece-me que

chamas pensamento (δηάλνηαλ) a disposiccedilatildeo (ἕμηλ) dos que estudam

geometria e ciecircncias afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo

inteligecircncia (λνῦλ) jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a

opiniatildeo e a inteligecircncia (ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ

νὖζαλ)rdquo (Rep 511b3-d5)

A primeira distinccedilatildeo do domiacutenio inteligiacutevel eacute dada pela peculiaridade do modo

de apreensatildeo de ideias O ιόγνο apreende toca (ἅπηεηαη) segundo os termos metafoacutericos

do texto o que eacute do gecircnero inteligiacutevel nesta uacuteltima seccedilatildeo da linha Tal relaccedilatildeo a qual

descreve uma apreensatildeo tem seu procedimento explicado logo em seguida tomar as

hipoacuteteses natildeo como princiacutepio mas por aquilo que elas mesmas satildeo utilizando-as

assim como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο) indo ateacute o natildeo-

hipoteacutetico o princiacutepio de tudo De posse do que se apreendeu desse princiacutepio uacuteltimo

retornar na direccedilatildeo de uma conclusatildeo usando as ideias e natildeo as sensaccedilotildees chegando

assim a outras ideias (ηειεπηᾷ εἰο εἴδε) Tal procedimento eacute dado pela potecircncia

dialeacutetica da razatildeo51

que exprime as potencialidades da alma no que se refere agrave

capacidade de cogniccedilatildeo

Vaacuterias satildeo as questotildees que se deve analisar a partir desse trecho Deve-se

comeccedilar por verificar o sentido de hipoacutetese que a ciecircncia dialeacutetica tem em vista e o uso

que faz delas Por conhececirc-las verdadeiramente por saber no que elas consistem o

dialeacutetico procede de acordo com o gecircnero inteligiacutevel Ele utiliza as hipoacuteteses como

hipoacuteteses ou seja sem atribuir a elas maior valor cognitivo e sem tomaacute-las como

axiomas como acontecia no meacutetodo de demonstraccedilatildeo Do mesmo modo natildeo satildeo tidas

pelo filoacutesofo como princiacutepio uacuteltimo a partir do qual se deve iniciar uma inquiriccedilatildeo

tampouco constituem a conclusatildeo do processo cognitivo constituindo apenas graus a

serem superados para que se chegue a um princiacutepio irrefutaacutevel Note-se que a definiccedilatildeo

de hipoacutetese eacute dada por analogia e no que se refere a sua funccedilatildeo dentro do meacutetodo Tal

perspectiva importa observar natildeo a concebe necessariamente nos termos de um

51 O termo ldquorazatildeordquo para a traduccedilatildeo de ιόγνο parece de acordo com os propoacutesitos da descriccedilatildeo da

atividade dialeacutetica O trecho potildee em evidecircncia a distinccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico que diferentemente do

meacutetodo de demonstraccedilatildeo utiliza exclusivamente elementos racionais em toda a sua capacidade de

apreensatildeo Deve-se ter em vista que a palavra ldquorazatildeordquo parece sintetizar assim o alcance cognitivo do

meacutetodo e da potencialidade intelectual da alma do filoacutesofo

78

conceito podendo ser elas proposiccedilotildees ou axiomas A posiccedilatildeo de intermediaacuterias no

movimento de ascese chama atenccedilatildeo para sua utilidade no que se refere ao

procedimento dando a sugestatildeo desse modo de que pode consistir em uma proposiccedilatildeo

qualquer proacuteximo do que tambeacutem se encontra no Feacutedon (Fed 100d)52

justificando por

isso uma averiguaccedilatildeo do seu fundamento Evidentemente a criacutetica ao procedimento

matemaacutetico parece tomar como hipoacuteteses os axiomas e conceitos matemaacuteticos do

mesmo modo o dialeacutetico do livro VI parece considerar apenas as ideias Todavia este

tipo de abordagem coloca em foco o seu uso apontando-as antes de tudo como os

meios que conduzem o pensamento a um grau maior de cogniccedilatildeo Mesmo que se trate

de conceitos enquanto hipoacuteteses natildeo satildeo vistas em seu valor cognitivo jaacute que sua

natureza inteligiacutevel natildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo Conveacutem compreender assim que

diferentemente dos matemaacuteticos para o dialeacutetico importa averiguaacute-las em sua natureza

rumo agrave ideia mais importante sendo esta a caracteriacutestica do pensamento posta em

destaque nesse procedimento

Como se vecirc natildeo se deve atribuir a elas um estatuto de princiacutepio devendo ter

por isso seu conteuacutedo cognitivo questionado ateacute que se chegue ao seu fundamento No

fundamento delas e de tudo (Rep 511b7) no ponto mais alto estaacute a ideia do bem

Parece ser nesse sentido que as hipoacuteteses se mostram os meios para chegar ao princiacutepio

de tudo pois se apresentam como elementos transitoacuterios de modo que se faz necessaacuterio

investigar uma a uma sucessivamente

A passagem entre hipoacuteteses que se eleva para outras ideias eacute dada nos termos de

um movimento ascendente tal como sugerem ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο no qual se

apreende o natildeo-hipoteacutetico Haacute uma notaacutevel progressatildeo nesse movimento dada a

superaccedilatildeo de um elemento provisoacuterio para um elemento basilar o que natildeo se via no

meacutetodo de demonstraccedilatildeo Logo adiante descreve a finalizaccedilatildeo do processo como uma

volta (πάιηλ) do dialeacutetico pelas ideias uma vez que jaacute conheceu o fundamento de tudo

Nesse retorno o dialeacutetico termina por averiguar o que estaacute em questatildeo utilizando desta

vez as proacuteprias ideias valendo-se portanto de elementos inteligiacuteveis o que faz a

conclusatildeo a finalizaccedilatildeo do processo natildeo ser outra que tambeacutem uma ideia O dialeacutetico

tem em mira diferente do geocircmetra natildeo a existecircncia de objetos sensiacuteveis mas as

52 A hipoacutetese no Feacutedon natildeo deve ser compreendida tal como acontece no Liv VI apenas como uma

ideia a ser superada O contexto dialoacutegico em que surge o tema insinua hipoacutetese no sentido mais amplo o

qual compreende natildeo apenas elementos inteligiacuteveis como as ideias mas qualquer afirmaccedilatildeo que se usa

como premissa em uma investigaccedilatildeo De qualquer modo ambos diaacutelogos como se veraacute propotildee a

hipoacutetese como elemento usado no meacutetodo dialeacutetico que colabora para a ascensatildeo a um conhecimento ao

ser analisado e superado

79

proacuteprias ideias que satildeo os objetos inteligiacuteveis proacuteprios deste domiacutenio e que

fundamentam as noccedilotildees matemaacuteticas e os objetos dos niacuteveis antecedentes os objetos

fiacutesicos e as imagens53

Em termos cognitivos se vecirc um movimento linear ascende e a

permanecircncia em um niacutevel superior o qual consiste na saiacuteda das hipoacuteteses para a ideia e

da ideia para outras ideias Visto de outra maneira a compreensatildeo acerca da natureza da

hipoacutetese tal como sugere a dialeacutetica permite a apreensatildeo da ideia que a fundamenta e

potildee o pensamento assim a trabalhar apenas com ideias o que constitui uma elevaccedilatildeo

da atividade inteligente

Deve-se observar no que consiste o tracircmite entre ideias que constitui o meacutetodo

dialeacutetico e a noccedilatildeo de inteligibilidade aiacute envolvida Com a distinccedilatildeo das ideias em

comparaccedilatildeo agraves hipoacuteteses agora o meacutetodo apresenta o procedimento de maneira

condizente com a natureza inteligiacutevel delas A consequecircncia do detalhamento desta

ciecircncia apropriada para a aquisiccedilatildeo do conhecimento e para a frequentaccedilatildeo no domiacutenio

inteligiacutevel eacute a sugestatildeo dos diferentes graus de cogniccedilatildeo e da capacidade intelectiva

inteligente no seu maacuteximo poder de apreensatildeo Sendo as ideias o objeto especiacutefico do

inteligiacutevel a ascese mostra o trabalho do pensamento dado na sua autenticidade uma

vez que natildeo demanda qualquer auxiacutelio de recursos sensiacuteveis como as imagens o que

culmina na cogniccedilatildeo do fundamento inteligiacutevel e portanto no conhecimento maacuteximo

o da realidade A elucidaccedilatildeo acerca do inteligiacutevel eacute um dos propoacutesitos da ciecircncia

dialeacutetica e assim determinar que eacute mais claro mais evidente o que refere ao ser e agrave

contemplaccedilatildeo do inteligiacutevel em comparaccedilatildeo agrave evidecircncia da matemaacutetica e da geometria

denominadas teacutecnicas eacute uma tarefa (ἔξγνλ) do dialeacutetico (Rep 511c4-6)

Desse modo diferenciaccedilotildees importantes satildeo realizadas em torno das atividades

(ἔξγνλ) das disciplinas e das suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel As teacutecnicas tomam as

hipoacuteteses como princiacutepio operam somente com hipoacuteteses e impotildeem a atividade

cognitiva ao modo de um raciociacutenio Desse modo matemaacuteticos e geocircmetras natildeo tecircm

(ἴζρσ) inteligecircncia mesmo que os seres com os quais lidam sejam inteligiacuteveis e

portanto tenham relaccedilatildeo com o princiacutepio o ser inteligiacutevel (Rep 511d1) A relaccedilatildeo que

a matemaacutetica manteacutem com o inteligiacutevel eacute portanto desprovida do grau maacuteximo de

inteligibilidade diferente da dialeacutetica dita ser propriamente uma ciecircncia (ἐπηζηήκε)

53 Rep511b7-c2 ldquo() Num movimento inverso por sua vez presa a tudo que depende desse princiacutepio

vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias

ideias por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (ἁςάκελνο αὐηο πάιηλ αὖ

ἐρόκελνο ηῶλ ἐθείλεο ἐρνκέλσλ νὕησο ἐπὶ ηειεπηὴλ θαηαβαίλῃ αἰζζεηῷ παληάπαζηλ νὐδελὶ

πξνζρξώκελνο ἀιι εἴδεζηλ αὐηνῖο δη αὐηῶλ εἰο αὐηά θαὶ ηειεπηᾷ εἰο εἴδε)rdquo

80

Para compreender a noccedilatildeo de ἐπηζηήκε que acompanha o meacutetodo dialeacutetico isto que

parece ser o niacutevel maacuteximo de cogniccedilatildeo possiacutevel no inteligiacutevel deve-se verificar a noccedilatildeo

de inteligecircncia que se pode ter a partir do que mostram as comparaccedilotildees entre dialeacutetica e

matemaacutetica Desse modo cabe voltar agrave definiccedilatildeo de imagem como a imitaccedilatildeo (κηκήζηο)

do inteligiacutevel que parece se completar apoacutes a introduccedilatildeo da ideia (Rep 510b4)

Haja vista que a imitaccedilatildeo consiste na semelhanccedila de um original na imagem

derivada de um objeto vale verificar tal definiccedilatildeo agrave luz dos objetos inteligiacuteveis que por

serem tais apresentam-se em sua realidade inteligiacutevel diferentemente dos objetos das

outras seccedilotildees da linha Dito ser a imagem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel tem-se duas

consequecircncias para a relaccedilatildeo que se estabelece entre os objetos das seccedilotildees A primeira

diz respeito ao tipo de relaccedilatildeo que vista nestes termos sugere 1) que todos os objetos

satildeo relacionados entre si o de menor grau de clareza constituindo a imitaccedilatildeo do objeto

da seccedilatildeo subsequente de maior grau e 2) os objetos de todas as seccedilotildees estatildeo

relacionados agrave ideia objeto inteligiacutevel do niacutevel mais alto Em termos mais explicativos

as imagens satildeo imitaccedilotildees dos objetos fiacutesicos os objetos fiacutesicos por sua vez satildeo

imitaccedilotildees das ideias inteligiacuteveis as quais aparecem na matemaacutetica como conceitos Da

mesma maneira as imagens por imitarem os objetos sensiacuteveis e esses por sua vez ao

constituiacuterem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel revelam que os objetos de todos os niacuteveis satildeo

derivados do inteligiacutevel e recebem por conta disso a realidade Tal encadeamento ao

mesmo tempo em que coloca o inteligiacutevel como causa dos objetos sensiacuteveis confere ao

sensiacutevel a condiccedilatildeo de reflexo do inteligiacutevel

Essa anaacutelise tem consequecircncias importantes A primeira consiste na explicaccedilatildeo

em certa medida da diferenciaccedilatildeo de grau de conhecimento da realidade e o grau de

manifestaccedilatildeo desta realidade entre os objetos de cada seccedilatildeo e entre os domiacutenios A

segunda na evidente intenccedilatildeo da linha em mostrar a importacircncia do meacutetodo e por

consequecircncia a especificidade de cada operaccedilatildeo cognitiva O conhecimento a partir dos

objetos do sensiacutevel se exclui agrave medida que eles consistem na imagem de outros que

podem ser tambeacutem reflexos onde se tem entatildeo as duas situaccedilotildees a coacutepia do inteligiacutevel

e a coacutepia da coacutepia Assim a realidade tal como manifesta o domiacutenio sensiacutevel natildeo pode

ser via para o conhecimento porque todo ele eacute uma coacutepia uma imagem do domiacutenio

inteligiacutevel sendo pertinente considerar a realidade nessa seccedilatildeo somente do aspecto da

existecircncia Pelo que se vecirc os conceitos geomeacutetricos tratam de inteligiacuteveis com

determinadas caracteriacutesticas que permitem dar tratamento inteligente ao sensiacutevel mas

sobre as quais os geocircmetras natildeo investigam devidamente ou seja natildeo as apreende em

81

seu fundamento A realidade dos seres matemaacuteticos permanece preservada na penuacuteltima

seccedilatildeo da linha e o que coloca os conceitos da geometria em penuacuteltima posiccedilatildeo parece

ser na verdade o meacutetodo de apreensatildeo que aiacute se apresenta

Tal compreensatildeo eacute importante para o propoacutesito de uma pesquisa que versa sobre

o pensamento Ao ter as duas primeiras seccedilotildees como preacircmbulo para a elucidaccedilatildeo de

um domiacutenio inteligiacutevel e de um meacutetodo para a apreensatildeo dessa inteligibilidade as duas

uacuteltimas seccedilotildees se mostram o alvo da verdadeira questatildeo da linha dividida mostrar qual

eacute o verdadeiro objeto a ser conhecido as ideias e a forma de apreendecirc-lo Uma vez que

constituem os objetos no inteligiacutevel as ideias matemaacuteticas satildeo iguais agraves ideias da

dialeacutetica no que diz respeito agrave realidade mas aparecem de maneira desigual no que se

refere ao meacutetodo Isso explica provavelmente porque a partir da terceira parte da linha

se faz referecircncia ao meacutetodo natildeo havendo concomitantemente uma comparaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos com as ideias da uacuteltima seccedilatildeo como acontecia entre imagem e

objeto original nas duas primeiras partes No inteligiacutevel o foco se volta para a operaccedilatildeo

da alma dito raciociacutenio e inteligecircncia respectivamente expressos pelo meacutetodo

demonstrativo e dialeacutetico Nesse sentido os termos potecircncia dialeacutetica e ter inteligecircncia

se justificam dado que estatildeo em relevo os modos de atuaccedilatildeo da alma e as condiccedilotildees

para o conhecimento nas operaccedilotildees que exprimem os meacutetodos Assim ao apreender as

ideias o meacutetodo dialeacutetico apreende a realidade enquanto os matemaacuteticos mesmo

lidando com elas natildeo as compreendem em sua realidade

Outra distinccedilatildeo do tipo de abordagem e uso das ideias que o dialeacutetico realiza em

comparaccedilatildeo ao geocircmetra estaacute na descida ou melhor na finalizaccedilatildeo do processo Por

apreender as ideias o dialeacutetico se mostra capaz de utilizaacute-las como referecircncia em uma

inquiriccedilatildeo ou seja capaz de abordar o objeto em questatildeo tendo em vista o seu

fundamento inteligiacutevel a ideia que lhe confere realidade Ao compreender este

fundamento o dialeacutetico mostra que compreende a realidade da ideia ou seja mostra

que reconhece o que eacute verdadeiro acerca do objeto em questatildeo Todo este movimento

que remonta a cogniccedilatildeo eacute dito ter inteligecircncia e eacute nesse sentido que a conhecimento que

acompanha a dialeacutetica deve ser compreendida como o conhecimento do verdadeiro

fundamento da ideia que embasa os objetos Em outras palavras conhecer a ideia eacute ao

mesmo tempo apreender a realidade e a verdade do termo em questatildeo

A partir da compreensatildeo do meacutetodo dialeacutetico se pode iniciar uma caracterizaccedilatildeo

da λόεζηϛ o processo cognitivo de apreensatildeo da ideia proacuteprio do meacutetodo dialeacutetico

Tem-se assim as seguintes caracteriacutesticas 1) realiza dois movimentos a) ascese

82

superaccedilatildeo das hipoacuteteses b) descida averiguaccedilatildeo das hipoacuteteses a partir do princiacutepio e

conclusatildeo 2) apreende a realidade inteligiacutevel que se diz ldquoo ser inteligiacutevelrdquo e ldquoideiardquo

(ηὸ ὄληνο εἴδε) 3) utiliza a ideia como princiacutepio 4) eacute promovida pela potecircncia

dialeacutetica da razatildeo (ιόγνο) Diferentemente do raciociacutenio a inteligecircncia opera a partir e

exclusivamente com elementos inteligiacuteveis sendo tal procedimento referido nos termos

da contemplaccedilatildeo54

Ter inteligecircncia e contemplar se referem a esta apreensatildeo no mais

alto grau conferindo agrave δηάλνηα assim a posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a δόμα e o λνῦο55

Tem-se desse modo a posiccedilatildeo dos meacutetodos situados segundo a divisatildeo da linha

dividida Cada meacutetodo mostra uma capacidade de apreensatildeo que oferece o

conhecimento de determinada perspectiva ou como jaacute referido antes em algum grau

Parece claro que a cogniccedilatildeo estaacute subordinada em certa medida ao objeto que o meacutetodo

tem em vista e que esse uacuteltimo seraacute o responsaacutevel por apreendecirc-lo Em outras palavras

do meacutetodo depende a cogniccedilatildeo pois a partir dele seraacute dada ou natildeo a perspectiva e a

operaccedilatildeo inteligente Deve-se notar antes de maiores conclusotildees sobre a λόεζηϛ e

mesmo sobre a δηάλνηα que a passagem 511c3-d6 termina por classificar tais operaccedilotildees

dadas pelo meacutetodo como disposiccedilotildees ἕμηο Tal maneira de se referir ao fazer da

geometria e indiretamente da inteligecircncia supotildee uma condiccedilatildeo permanente um estado

que oferece condiccedilotildees de proceder segundo mostrou cada meacutetodo Vale assim verificar

a partir do livro VII o significado desta elevaccedilatildeo do pensamento e acompanhar os

passos dessa ascese intelectual Do mesmo modo verificar as consequecircncias cognitivas

e morais que formam o caraacuteter do filoacutesofo

54 Rep 511c5-7 ldquoQueres determinar que o conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da

dialeacutetica eacute mais claro () e os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o

pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ

ζεσξνύκελνλ ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη)rdquo

55 Rep 511d4 ldquoParece-me que chamas pensamento a disposiccedilatildeo dos que estudam geometria e ciecircncias

afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo inteligecircncia jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a

opiniatildeo e a inteligecircncia (δηάλνηαλ δὲ θαιεῖλ κνη δνθεῖο ηὴλ ηῶλ γεσκεηξηθῶλ ηε θαὶ ηὴλ ηῶλ ηνηνύησλ

ἕμηλ ἀιι νὐ λνῦλ ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ νὖζαλ)rdquo Note-se a ediccedilatildeo brasileira traduz

δηάλνηα por ldquociecircnciardquo termo que para os propoacutesitos de nossa anaacutelise natildeo parece o mais adequado A

ediccedilatildeo inglesa prefere ldquoentendimentordquo (understanding) traduccedilatildeo que tambeacutem natildeo eacute afim embora

evidentemente correta com o aspecto ativo-passivo do pensamento tal como se tem analisado na linha

Uma sugestatildeo de traduccedilatildeo de acordo com o que pretende por em relevo nesse trabalho seria ldquoA mim

pareces chamar raciociacutenio a disposiccedilatildeo dos geocircmetras e de estudos desse tipo mas natildeo inteligecircncia sendo

o raciociacutenio algo intermediaacuterio entre a opiniatildeo e a inteligecircnciardquo Trabattoni comenta sobre os a

dificuldade de atribuir um sentido e uma traduccedilatildeo riacutegida aos quatro estados citados na linha e em resumo

acerca da diaacutenoia afirma que o texto natildeo autoriza uma traduccedilatildeo por ldquoconhecimento discursivordquo Conf

Trabattoni F op cit p 158

83

33 A funccedilatildeo da dialeacutetica

Referidos como ldquopoucosrdquo (ηηλεο ὀιίγνη Rep 531e2) denotando assim o

aspecto incomum de tal capacidade intelectiva (Rep 531e2) o que o texto mostra sobre

os filoacutesofos agora ditos dialeacuteticos no livro VII e sobre a dialeacutetica termina por explicar a

relaccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel e as significativas diferenccedilas acerca dos meacutetodos das

disciplinas Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico inicia no livro VII

anunciando duas das caracteriacutesticas do seu procedimento reconhecer traccedilos inteligiacuteveis

comuns entre os objetos que se analisa (Rep 531d1-2) e dar e receber ιόγνϛ (Rep

531e4-5)

ldquo- Entatildeo Glaucon falei essa jaacute eacute a proacutepria melodia que a

dialeacutetica executa Essa melodia embora soacute a razatildeo possa apreendecirc-

la seria imitada pela faculdade da visatildeo (νὗηνο ἤδε αὐηόο ἐζηηλ ὁ

λόκνο ὃλ ηὸ δηαιέγεζζαη πεξαίλεη ὃλ θαὶ ὄληα λνεηὸλ κηκνῖη ἂλ ἡ ηο

ὄςεσο δύλακηο) que diziacuteamos tenta lanccedilar seu olhar para os

animais para os astros e por fim ao proacuteprio sol (πξὸο αὐηὸλ ηὸλ

ἥιηνλ) Assim tambeacutem quando apenas com a dialeacutetica sem contar

com todos os sentidos algueacutem tentar lanccedilar-se por meio da razatildeo

em busca da essecircncia de cada coisa (νὕησ θαὶ ὅηαλ ηηο ηῷ

δηαιέγεζζαη ἐπηρεηξῆ ἄλεπ παζῶλ ηῶλ αἰζζήζεσλ δηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐπ

αὐηὸ ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ ) e natildeo desiste antes que apreenda soacute pela

inteligecircncia o que eacute o proacuteprio bem (ἂλ θαὶ κὴ ἀπνζηῆ πξὶλ ἂλ αὐηὸ ὃ

ἔζηηλ ἀγαζὸλ αὐηῆ λνήζεη ιάβῃ) ele chega ao limite do inteligiacutevel

como naquele momento aquele outro chegava ao limite do visiacutevel (ἐπ

αὐηῷ γίγλεηαη ηῷ ηνῦ λνεηνῦ ηέιεη ὥζπεξ ἐθεῖλνο ηόηε ἐπὶ ηῷ ηνῦ

ὁξαηνῦ)rdquo (Rep 532a1-b1)

Vaacuterios satildeo os aspectos que se pode analisar acerca do perfil dos dialeacuteticos e por

consequecircncia da proacutepria λόεζηϛ a partir desse argumento Deve-se dar atenccedilatildeo

primeiramente ao modo como eacute posta a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel segundo a

explicaccedilatildeo acerca da capacidade de apreensatildeo do inteligiacutevel pela dialeacutetica (ηὸ

δηαιέγεζζαη δηαιεθηηθή) e da sua independecircncia em relaccedilatildeo ao sensiacutevel Sem recorrer

aos dados da sensibilidade o dialeacutetico apreende o ser do objeto examinado atraveacutes da

razatildeo utilizando-se apenas da faculdade inteligiacutevel a λόεζηϛ Os oacutergatildeos da

sensibilidade e o visiacutevel tecircm notavelmente sua atuaccedilatildeo definida como imitaccedilatildeo da

inteligecircncia e do inteligiacutevel sendo ao que tudo indica uma coacutepia do modus operandi

do domiacutenio real - tal como foi dito ser o caso das imagens no livro VI atraveacutes das quais

84

se verificou que os objetos do niacutevel mais baixo constituiacuteam uma imitaccedilatildeo dos objetos do

niacutevel superior (Rep 510b4) Desta vez o plano inteligiacutevel eacute dado explicitamente como

referecircncia para o visiacutevel cuja relaccedilatildeo o dialeacutetico eacute capaz de reconhecer A perspectiva

do dialeacutetico ao lanccedilar o olhar para o sensiacutevel eacute diferente dos demais por conseguir

distinguir e situar devidamente os dois planos ao ter em vista do conhecimento da ideia

do bem Ele estaacute livre de cometer o equiacutevoco dos demais por buscar sempre o

inteligiacutevel mesmo quando se volta para o que eacute da ordem do visiacutevel A elevaccedilatildeo do

sensiacutevel exige pelo que se observa o reconhecimento do inteligiacutevel no que eacute visiacutevel

sendo indispensaacutevel para isso o exerciacutecio intelectual que as matemaacuteticas oferecem

cujos objetivos versam mais uma vez sobre ldquo() elevar a melhor parte da alma (νῦ

βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ) ateacute a contemplaccedilatildeo do que haacute de excelente nos seres (ηνῦ ἀξίζηνπ ἐλ

ηνῖο νὖζη) ()rdquo (Rep 532c3-6)

Assim a passagem do plano visiacutevel na direccedilatildeo do ponto mais alto do inteligiacutevel

tal como explora na alegoria da caverna recebe com esta nova exposiccedilatildeo do exerciacutecio

dialeacutetico uma elucidativa explicaccedilatildeo nos termos ontoloacutegicos suscitados no argumento

acerca das matemaacuteticas Uma vez que se tem como procedimento ldquo() olhar para as

imagens divinas na aacutegua e para as sombras dos seres (πξὸο δὲ ηὰ ἐλ ὕδαζη θαληάζκαηα

ζεῖα θαὶ ζθηὰο ηῶλ ὄλησλ) mas natildeo para as sombras das figuras (εἰδώισλ ζθηὰο)

projetadas por essa outra luz ()rdquo (Rep 532c1-2) cabe analisar a presenccedila do

inteligiacutevel no visiacutevel tal como o texto apresenta

Todavia antes de verificar este dado vale examinar acerca da dialeacutetica O texto

descreve a potecircncia dialeacutetica (ὁ ηξόπνο ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη δπλάκεσο Rep532d8) no

que se refere ao seu gecircnero e percurso Na condiccedilatildeo de etapa final do processo de

ascensatildeo conduz para o fim e para o repouso56

Do mesmo modo constitui o estaacutegio do

pensamento no qual se apreende natildeo mais as imagens reflexo do inteligiacutevel mas a

verdade ou seja uma caracteriacutestica inteligiacutevel na ordem visiacutevel (Rep 533a2-3) A

apreensatildeo do ser (πέξη ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ Rep 533b1) consiste na caracteriacutestica exclusiva

da dialeacutetica tendo as outras disciplinas como se viu outros objetivos e portanto outro

grau de apreensatildeo

ldquo- Isso pelo menos disse eu ningueacutem nos contestaraacute se dissermos

que nenhum outro meacutetodo tenta sistematicamente apreender em cada

56 Rep 532e3 ldquoEsses caminhos ao que parece jaacute estariam conduzindo para o lugar onde algueacutem laacute

chegado acharia o repouso da viagem e o teacutermino da caminhada (ὁδνῦ ἀλάπαπια ἂλ εἴε θαὶ ηέινο ηο

πνξείαο)rdquo

85

coisa o que ela eacute Ao contraacuterio todas as outras artes se referem a

opiniotildees e desejos dos homens ou estatildeo todas elas voltadas para

processos de geraccedilatildeo ou composiccedilatildeo ou para cuidados com produtos

naturais ou artificiais (ἄιιαη πᾶζαη ηέρλαη ἢ πξὸο δόμαο ἀλζξώπσλ

θαὶ ἐπηζπκίαο εἰζὶλ ἢ πξὸο γελέζεηο ηε θαὶ ζπλζέζεηο ἢ πξὸο

ζεξαπείαλ ηῶλ θπνκέλσλ ηε θαὶ ζπληηζεκέλσλ ἅπαζαη ηεηξάθαηαη)

Quanto agraves restantes as que segundo afirmamos apreendem algo do

ser (ἃο ηνῦ ὄληνο ηη ἔθακελ ἐπηιακβάλεζζαη) isto eacute a geometria e as

que dela derivam vemos que elas sonham com o ser mas despertas

natildeo lhes eacute possiacutevel vecirc-lo enquanto usando hipoacuteteses deixam-no

intocado porque satildeo incapazes de prestar contas sobre elas (ὡο

ὀλεηξώηηνπζη κὲλ πεξὶ ηὸ ὄλ ὕπαξ δὲ ἀδύλαηνλ αὐηαῖο ἰδεῖλ ἕσο ἂλ

ὑπνζέζεζη ρξώκελαη ηαύηαο ἀθηλήηνπο ἐῶζη κὴ δπλάκελαη ιόγνλ

δηδόλαη αὐηῶλ) Quando se tem como princiacutepio (ἀξρὴ) aquilo que se

desconhece e o fim e o meio estatildeo entretecidos com o que se

desconhece que expediente haveria para que tal acordo um dia viesse

a tornar-se ciecircncia

- Nenhum disse elerdquo (Rep 533b-c5)

Apreender apenas algo do ser (ηνῦ ὄληνο ηη) e a incapacidade de dar a razatildeo

(ιόγνλ δηδόλαη) do que se apreende demonstram a impotencialidade cognitiva das outras

disciplinas aqui referidas como ηέρλαη Tal incapacidade eacute atribuiacuteda ao uso equivocado

das hipoacuteteses como se viu tendo-se por consequecircncia apenas uma apreensatildeo parcial

do ser Este ldquoalgo do serrdquo ao que tudo indica refere-se aos nuacutemeros conceitos e

relaccedilotildees que as matemaacuteticas apreendem mas que por essas natildeo terem em vista o

princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico tomam apenas algumas caracteriacutesticas dos objetos

examinados Sendo impossiacutevel para elas reconhecer integralmente o que eacute cada coisa

natildeo alcanccedilam o ser Ao natildeo atingirem o ser natildeo satildeo capazes de dar a razatildeo delas isto eacute

de reconhecer e expor de maneira igualmente racional as relaccedilotildees inteligiacuteveis que dizem

respeito a dado objeto uma vez que o meacutetodo estaacute comprometido ao natildeo reconhecer o

princiacutepio (Rep 533c2-5)

Tal como sugerem as uacuteltimas linhas do excerto nas quais se verifica a falta de

clareza acerca das etapas do meacutetodo da geometria o encadeamento racional que o

meacutetodo deve realizar na cogniccedilatildeo natildeo pode ser remontado por aquele que natildeo conheceu

o princiacutepio Dar explicaccedilatildeo se efetua adequadamente quando o encadeamento

(ζπκπιέθσ) das etapas do processo de cogniccedilatildeo acerca de algo leva ao conhecimento da

essecircncia e assim ambos ser e meacutetodos podem ser expostos em uma explanaccedilatildeo pois

se tem uma perspectiva da totalidade (ζπλνπηηθόο) do que se examina (Rep 537c6-7)

Em outros termos dada a apreensatildeo do ser eacute possiacutevel reconstituir a ordem das relaccedilotildees

que se estabelece ao longo deste processo cognitivo que conduziu agrave essecircncia pois se

86

tem nele o princiacutepio a partir do qual se constitui o conhecimento (ἐπηζηήκε) de algo

Diante disso implicados o fim e o intermezzo do processo com o princiacutepio a apreensatildeo

do princiacutepio determina a orientaccedilatildeo nessas etapas e os resultados O conhecimento do

ser se mostra portanto indispensaacutevel para ter um conhecimento no niacutevel da ἐπηζηήκε e

ao mesmo tempo ser capaz de dar a explicaccedilatildeo a demonstraccedilatildeo desse conhecimento

Somente o dialeacutetico portanto pode demonstrar tal conhecimento e realizar em

um sentido inverso o qual tem em vista a ideia uma apreensatildeo atraveacutes da razatildeo (δηὰ

ηνῦ ιόγνπ) diferentemente dos matemaacuteticos cujo meacutetodo natildeo demonstra o ser mas as

hipoacuteteses das quais partiram

O uso das hipoacuteteses ao modo matemaacutetico natildeo visa superar a forma axiomaacutetica

com que utiliza os elementos e os preceitos ndash a exemplo do que se averiguou no

argumento acerca dos nuacutemeros - diferentemente da ascensatildeo dialeacutetica que ultrapassa

este niacutevel ao colocaacute-los em questatildeo buscando seu fundamento O fundamento a

essecircncia do que se investiga eacute ao mesmo tempo dado na explicaccedilatildeo agrave medida que se

tem a reconstituiccedilatildeo de sua apreensatildeo na dialeacutetica visto que aiacute natildeo se confunde ser com

hipoacutetese O dialeacutetico sabe identificar hipoacutetese e essecircncia dando a cada uma a posiccedilatildeo

que lhe cabe dentro do meacutetodo57

e portanto a ordem para tal reconstituiccedilatildeo racional

como parece constituir o ιόγνο segundo este argumento

ldquo- Entatildeo disse eu soacute o meacutetodo dialeacutetico eliminando as

hipoacuteteses caminha por aiacute na direccedilatildeo do proacuteprio princiacutepio a fim de

dar firmeza aos resultados e realmente pouco a pouco vai

arrastando e levando para o alto o olho da alma que estaacute enterrado

57 Para tornar mais claro o que se propotildee acerca do discernimento do dialeacutetico vale trazer a

diferenciaccedilatildeo que Chen apresenta sobre hipoacuteteses matemaacuteticas e o natildeo-hipoteacutetico no interior do

argumento sobre a visatildeo do todo Ao considerar as hipoacuteteses matemaacuteticas como um ponto de partida para

a transposiccedilatildeo da penuacuteltima etapa e para a ascensatildeo agrave visatildeo do bem o autor apresenta o que entende ser

as razotildees para que isso se ocorra ldquoNo primeiro caso por conta de sua caracteriacutestica essencial de ser

hipoteacutetico no segundo dada a sua propriedade comum de ser semelhante ao bem Como premissas elas

estatildeo relacionadas agrave ideia do bem como hipoacuteteses para um anhypotheton Ser anhypotheton eacute somente um

dos aspectos da ideia como o princiacutepio do todo a visatildeo dela nesse aspecto natildeo mostra sua completa

natureza Mas como eles tambeacutem tecircm a propriedade de ser semelhante ao bem (good-like) assim como os

casos do bem que o acompanham (fellow-instances) fazem veem juntas estas hipoacuteteses neste aspecto e os

casos do bem que o acompanham e desse modo terminaria na visatildeo desta ideia em todos os seus

aspectosrdquo Chen op cit p 172 A visatildeo do todo se deve segundo o autor agrave semelhanccedila do que eacute derivado

do bem e agraves hipoacuteteses que conduzem agrave hipoacutetese maior Postas como premissas em contraste com o natildeo-

hipoteacutetico ver as hipoacuteteses em conjunto como faz o dialeacutetico faz identificar a relaccedilatildeo delas com o bem

conduzindo a alma a visatildeo dele Esse discernimento do dialeacutetico tal como explica Chen mostra a

capacidade de superaccedilatildeo das hipoacuteteses ao vecirc-las no seu fundamento inteligiacutevel o que conforme tem sido

analisado eacute dado exclusivamente pela apreensatildeo do traccedilo inteligiacutevel que exprime a relaccedilatildeo do objeto em

questatildeo com o bem Embora o comentaacuterio ofereccedila a ideia de que a visatildeo do todo se daacute a partir de uma

visatildeo de conjunto os exames feitos ateacute aqui apontam muito mais para um equacionamento no qual se

apreende o inteligiacutevel do que para um apanhado de hipoacuteteses o que ficaraacute mais claro na anaacutelise acerca da

ζύλνςηο

87

em um pacircntano baacuterbaro tendo como colaboradoras e auxiliares

nessa conversatildeo as artes de que falamos Muitas vezes por haacutebito as

chamamos de ciecircncia mas carecem de outro nome que seja mais

niacutetido que o de opiniatildeo e mais impreciso que o de ciecircncia jaacute a

definimos como pensamento (δηάλνηαλ δὲ αὐηὴλ ἔλ γε ηῷ πξόζζελ πνπ

ὡξηζάκεζα) numa passagem anterior de nossa discussatildeo Natildeo se

trata poreacutem parece-me de uma disputa sobre um nome mas do

exame de questotildees tatildeo importantes quanto as que temos diante de noacutes

- Natildeo se trata disse [Basta-nos um nome que faccedila ver claramente

nosso pensamento (Ἀιι ὃ ἂλ κόλνλ δεινῖ πσο ηὴλ ἕμηλ ζαθελείᾳ

ιέγεηλ ἐλ ςπρῆ ltἀξθέζεη)]rdquo (Rep534c7-e6)

Conveacutem notar desse modo que o uso do ιόγνο aparece nesse argumento como

um procedimento formal do conhecimento o qual descreve formalmente os

movimentos da aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε pelo meacutetodo dialeacutetico58

O ιόγνο cabe reparar eacute

dado na medida em que acompanha a aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja constitui-se

como forma que expressa a coerecircncia do pensar na operaccedilatildeo dialeacutetica sendo

dependente portanto da apreensatildeo do fundamento natildeo-hipoteacutetico para ser enquanto tal

Sem a atividade entre ideias natildeo se chega agrave ideia do bem e por consequecircncia natildeo se

tem um ιόγνο que por natildeo ser coerente com ela seja capaz de dizecirc-la Desse modo um

exame acerca da racionalidade em seus vaacuterios niacuteveis procedimentos uacuteteis para o

conhecimento e alcance cognitivo satildeo indispensaacuteveis uma vez que se reconhece aiacute que

a forma loacutegica estaacute condicionada ao seu objeto maior e natildeo o contraacuterio Tem-se com as

explanaccedilotildees acerca da dialeacutetica uma definiccedilatildeo de ιόγνο filosoacutefico distinto dos demais

por meio do qual satildeo expostas as operaccedilotildees no alto niacutevel de cogniccedilatildeo e portanto o

conhecimento segundo a filosofia59

58 Chen compreende igualmente o papel do ιόγνο ao dizer Correspondente agrave λνήζηϛ nesses dois

sentidos [ἐπηζηήκε e γλῶζηο] estatildeo dois aspectos da dialeacutetica dinacircmico e estaacutetico Tanto o exerciacutecio da

δύλακηο noeacutetica resulta no estado noeacutetico (γλῶζηο) quanto o exerciacutecio da δύλακηο ηνῦ δηαιέγεζζαη resulta

na ἐπηζηήκε ηνῦ δηαιέγεζζαη Dialeacutetica no seu aspecto estaacutetico eacute o sistema de tal conhecimento Dialeacutetica

no seu aspecto dinacircmico tem duas formas raciociacutenio e ζύλνςηο da qual resulta no conhecimento

dialeacutetico Chen op cit 1992 p 164 nota 10

59 As palavras de Chen elucidam a concepccedilatildeo de razatildeo segundo a filosofia que se pretende explicar ldquoSer

conhecimento natildeo deve apenas cumprir a exigecircncia de uma consistecircncia loacutegica deve tambeacutem indicar seu

referente como referente em sua realidaderdquo O que o autor chama de consistecircncia loacutegica vale dizer diz

respeito agrave conformidade da estrutura do argumento com seu referente o que foi notado aqui como

coerecircncia entre ser e explicaccedilatildeo Ele admite a partir de 533e que a conclusatildeo de um raciociacutenio

logicamente consistente pode carecer de seu referente o que natildeo constituiria uma ἐπηζηήκε de fato Sem

entrar em detalhes como uma estrutura se mostraria logicamente consistente nessas condiccedilotildees o que natildeo

eacute posto em questatildeo pelo texto importa ressaltar a importacircncia da definiccedilatildeo de ιόγνο que se daacute no final do

Livro VII para mostrar a noccedilatildeo de conhecimento que se defende a visatildeo do ser e da ideia possiacutevel

somente pela atividade Inteligente Natildeo se trata portanto de um aparato loacutegico de manuseio do discurso

semelhante agrave retoacuterica ou eriacutestica mas de uma sofisticaccedilatildeo no uso do ιόγνο que sirva para os propoacutesitos

epistecircmicos do filoacutesofo governante Chen op cit 1992 p 168 nota 3

88

Essa perspectiva confirma a distinccedilatildeo e a classificaccedilatildeo tal como mostrou a linha

dividida O que segue mostra os estados da alma os graus de cogniccedilatildeo e de suas

respectivas distinccedilotildees como vaacutelidas para uma compreensatildeo do que possa ser um estado

de clareza na alma60

A superaccedilatildeo filosoacutefica que se daacute na dialeacutetica narra natildeo se pode

perder de vista um refinamento da alma operada pelos modos inteligentes do

pensamento tal como mostrou a linha dividida e se analisaraacute com mais detalhes na

narrativa da caverna A investigaccedilatildeo dos argumentos vista nos Livros VI e VII tem em

perspectiva assim a elevaccedilatildeo inteligente que resulta no conhecimento e nas virtudes a

qual agora eacute dita pode-se compreender uma clareza nas accedilotildees da alma Tal clareza

envolve portanto operaccedilotildees gnosioloacutegicas as quais funcionam como exerciacutecio por

meio das artes matemaacuteticas para uma efetiva elevaccedilatildeo da alma Coerente com o que eacute

dito em 511c a ἕμηο dada nos termos de uma disposiccedilatildeo um estado permanente da alma

quer do geocircmetra quer do dialeacutetico tem evidenciado o grau de apreensatildeo com o qual a

alma opera segundo o meacutetodo que utiliza e do mesmo modo a clareza que tecircm acerca

dos objetos que examina Nesse sentido observe-se ao mesmo tempo o limite cognitivo

das artes matemaacuteticas justificando sua posiccedilatildeo intermediaacuteria dentre as atividades que

ascende ao conhecimento

Os esclarecimentos que se obteacutem com a explanaccedilatildeo sobre a dialeacutetica e sobre seu

meacutetodo (Rep 533e7-534a8) corroboram as acepccedilotildees sobre as atividades da alma

descritas na analogia da linha Compreendido que o dialeacutetico eacute o uacutenico capaz de

apreender a essecircncia e prestar contas sobre ela o que demonstra seu estado de λνῦο

(Rep 534b) fica evidente sua capacidade para falar sobre o bem e se torna

inegavelmente aceita a sua distinccedilatildeo intelectual e poliacutetica cuja conduta cientificista

pautada no conhecimento da ideia do bem deve servir de paracircmetro no ensino Note-se

que a postura do dialeacutetico frente a busca do bem eacute pautada no que o meacutetodo indica

deixando clara a relaccedilatildeo entre exerciacutecio intelectual o meacutetodo e a apreensatildeo dos

direcionamentos para a praacutetica poliacutetica que se realiza na experiecircncia do pensamento

ldquo-Entatildeo acontece o mesmo a respeito do bem se algueacutem natildeo for

capaz de definir pela razatildeo a ideia do bem distinguindo-a de todas as

outras e como num combate passando atraveacutes de todas as objeccedilotildees

natildeo estiver disposto a natildeo refutaacute-las segundo a opiniatildeo mas segundo

a essecircncia (κὴ θαηὰ δόμαλ ἀιιὰ θαη νὐζίαλ πξνζπκνύκελνο

60 Rep 534e2 ldquoἕμηλ ζαθελείᾳ ιέγεηλ ἐλ ςπρῆrdquo a traduccedilatildeo da ediccedilatildeo inglesa privilegia esse mesmo

sentido que se atribui agrave frase ldquo()[ provided only that it states what corresponds to the state of clarity in

the soul]rdquo ndashEmlyn-Jones e Preddy op cit p 177

89

ἐιέγρεηλ) natildeo atravessar todas essas dificuldades com uma razatildeo

inabalaacutevel (ἐλ πᾶζη ηνύηνηο ἀπηῶηη ηῷ ιόγῳ δηαπνξεύεηαη) se for essa

a postura dele natildeo afirmaraacutes que ele natildeo conhece nem o proacuteprio bem

nem algum outro bem Mas se apreende uma imagem do bem eacute pela

opiniatildeo que a apreende natildeo pela ciecircncia (ἀιι εἴ πῃ εἰδώινπ ηηλὸο

ἐθάπηεηαη δόμῃ νὐθ ἐπηζηήκῃ ἐθάπηεζζαη) e a vida de agora passa-

a sonhando e cochilando sem despertar antes de chegar ao Hades e

laacute dormir completamenterdquo (Rep 534b8-d1)

De posse da inteligecircncia o dialeacutetico tem condiccedilotildees de cumprir os dois

movimentos que o filoacutesofo governante deve realizar ascender e com isso apreender a

ideia do bem e descer ao niacutevel comum ao plano da opiniatildeo e da ignoracircncia

analogamente o das sombras para dizecirc-lo Assim parece se dar o desfecho acerca da

relaccedilatildeo da alma com as sensaccedilotildees no argumento que descreve a dialeacutetica O pensar

conforme mostra o meacutetodo dialeacutetico e a explicaccedilatildeo daacute-se mediante a habilidade de

reconhecer as relaccedilotildees inteligiacuteveis e operar atraveacutes de ideias quer no visiacutevel quer no

inteligiacutevel dado seu conhecimento do ser e da ideia do bem Tem-se definido com isso

o modo de operar e o niacutevel cognitivo da λόεζηϛ apoacutes as mesmas deifniccedilotildees sobre a

δηάλνηα como se viu no exame acerca das matemaacuteticas Da mesma maneira o texto

atribui o estatuto do λνῦο estado da alma em que se daacute o trabalho dialeacutetico o grau mais

elevado da cogniccedilatildeo que se pode ter sobre o bem

34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo

Para bem compreender o que se diz sobre a λόεζηϛ que aparece sugerida no

exerciacutecio de contemplaccedilatildeo da ideia do bem eacute necessaacuterio analisar o sentido de realidade

dos seres inteligiacuteveis e o fundamento natildeo-hipoteacutetico Vale remontar como esta questatildeo

foi introduzida no argumento da linha e como se deu a construccedilatildeo do sentido de

realidade inteligiacutevel tatildeo importante para especificar a operaccedilatildeo de apreensatildeo das ideias

que consiste no conhecimento e no contemplar ao modo dialeacutetico As primeiras

90

distinccedilotildees entre os domiacutenios feitas nos termos de niacutetido e natildeo niacutetido (ζαθελεία θαὶ

ἀζαθεία Rep 509d5) verdadeiro e natildeo verdadeiro (ἀιεζεία ηε θαὶ κή Rep 510a9)

que acompanham a divisatildeo visiacutevel-inteligiacutevel ganham explicaccedilotildees em termos

ontoloacutegicos com a noccedilatildeo de inteligibilidade do inteligiacutevel no seu expoente maior o

princiacutepio natildeo-hipoteacutetico Cabe notar que na exposiccedilatildeo do inteligiacutevel na seccedilatildeo que se

refere agrave geometria as noccedilotildees de princiacutepio e princiacutepio de tudo que exprime o

ἀλππνζέηνο parece ter sua funccedilatildeo latente antes de serem introduzidos o ser do

inteligiacutevel os objetos de contemplaccedilatildeo ndash(ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ ζεσξνύκελνλ) Ateacute

que sejam oferecidas algumas explicaccedilotildees sobre a realidade das ideias a noccedilatildeo de

princiacutepio natildeo tem o seu sentido completo pois natildeo recebe um parecer ontoloacutegico

condizente com a noccedilatildeo de fundamento que a criacutetica ao meacutetodo de demonstraccedilatildeo

sugere A noccedilatildeo de ἀξρή desvinculada da ideia natildeo eacute vista desse modo em sua

inteligibilidade ou seja em sua relaccedilatildeo com o inteligiacutevel dando margem a um tipo de

uso como se tem na geometria Dito de outro modo o princiacutepio de que fala a linha

consiste justamente nesta relaccedilatildeo que os conceitos possuem com o inteligiacutevel que

permite deste modo a cogniccedilatildeo Uma vez natildeo esclarecido o objeto fundador o

princiacutepio basilar dos conceitos que seraacute a ideia natildeo se pode conhecer o objeto em

questatildeo no seu aspecto inteligente Assim dito a cogniccedilatildeo consiste em ver do aspecto

inteligiacutevel oferecido pela ideia (εἴδε) tal como sugere a descida do dialeacutetico

Essa interpretaccedilatildeo parece afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo que o texto

apresenta ao definir a apreensatildeo de ideias como aquisiccedilatildeo inteligente (Rep 511c-d) O

contemplar a partir do meacutetodo dialeacutetico posiccedilatildeo maacutexima no alcance cognitivo consiste

em averiguar desta perspectiva especiacutefica das ideias que analisa o objeto em seu

aspecto inteligiacutevel ou seja em sua realidade A realidade exprime o ser inteligiacutevel dado

pela ideia que eacute visto claramente ou seja visto em sua realidade na contemplaccedilatildeo e

observado parcialmente no procedimento matemaacutetico Nesse sentido a criacutetica ao

meacutetodo demonstrativo mostra que eacute a perspectiva inteligiacutevel que se deve ter em vista

isto eacute a realidade atingiacutevel somente pela potecircncia do meacutetodo dialeacutetico e natildeo a

aparecircncia da realidade a exemplo do que se tem no sensiacutevel A verdade se refere a esta

realidade que exprime o ser inteligiacutevel e a clareza agrave capacidade de observaacute-la Note-se

que o apelo da perspectiva que exige o conhecimento define-se na medida em que

mostra a progressatildeo de uma seccedilatildeo a outra de um objeto a outro de uma perspectiva a

outra tal como se daacute na progressatildeo da hipoacutetese para a ideia da ideia para outras ideias

Ao chegar no niacutevel de clarividecircncia da realidade das ideias proacuteprio da contemplaccedilatildeo

91

chega-se ao princiacutepio dito tambeacutem o princiacutepio dos seres inteligiacuteveis - λνεηῶλ ὄλησλ

κεηὰ ἀξρο61

Examinar a partir do princiacutepio dessa articulaccedilatildeo com o inteligiacutevel

constitui a via para o conhecimento daquele que parece ser eleito o mais superior entre

todos o que a contemplaccedilatildeo mostra como o principio de tudo aquele que natildeo eacute posto

sob inspeccedilatildeo como uma hipoacutetese (ἀλππνζέηνο) visto que constitui o fundamento de

todas elas

O caraacuteter inteligente da λόεζηϛ se completa com tais elucidaccedilotildees sobre a

contemplaccedilatildeo Esta visatildeo do princiacutepio de tudo dado pelas ideias o qual natildeo se deve

perder de vista consiste tambeacutem em uma ideia a qual determina a perspectiva da

inteligecircncia que o conhecimento deve possuir Por outro lado a ascensatildeo a esse

princiacutepio de tudo e a investigaccedilatildeo a partir dele que se daacute no retorno do dialeacutetico mostra

o caraacuteter praacutetico da inteligecircncia e de todo o processo de cogniccedilatildeo no sentido de ser

conveniente a aplicaccedilatildeo dos termos em questatildeo Ascese e descida pelas ideias mostram

o movimento da inteligecircncia que tem como objetivo ver a realidade o ser em toda a sua

extensatildeo apreensiacutevel como fundamento de tudo e portanto como princiacutepio do

conhecimento

Natildeo se pode todavia deixar de fazer maiores questionamentos sobre o ser como

causa e o bem como causa de tudo tal como mostrou o encadeamento feito entre os

objetos das seccedilotildees da linha e a analogia do sol Na perspectiva do princiacutepio esta noccedilatildeo

de causa ganha o sentido de 1) origem de acordo com o que sugeriu a relaccedilatildeo original-

reflexo 2) referecircncia sugerida na perspectiva inferior das imagens 3) objeto real

conforme o que se viu na relaccedilatildeo original-reflexo e na exposiccedilatildeo sobre o inteligiacutevel As

trecircs acepccedilotildees que o ser e o bem assumem como princiacutepio mostra sob vaacuterios acircngulos o

ser que a ideia exprime Como origem ele confere existecircncia aos objetos que dele

derivam- outros objetos natildeo existiriam se natildeo o refletissem Desse modo assume a

condiccedilatildeo de referecircncia pois sendo a causa da existecircncia deve ser o objeto a ser

conhecido Ao ser o objeto do qual deriva todos os outros revela-se como o elemento

uacuteltimo e mais importante em uma cadeia de derivaccedilotildees sendo portanto o uacutenico objeto

real

Algumas conclusotildees parecem ser possiacuteveis sobre a cogniccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a

realidade do ser Em primeiro lugar com a linha didividida Platatildeo parece estar

61 Deve-se compreender λνεηῶλ ὄλησλ κεηὰ ἀξρο como a relaccedilatildeo que o dialeacutetico observa do princiacutepio

com o ser Tal sutileza nem sempre privilegiada pelas traduccedilotildees mostra o reconhecimento do princiacutepio

como a articulaccedilatildeo desta relaccedilatildeo e portanto ponto de partida para a cogniccedilatildeo Somente vinculado ao ser

se pode adquirir conhecimento o que mostra a importacircncia do ἐπ‟ ἀξρὴλ ζθνπεῖλ

92

interessado em afirmar o valor de realidade ou seja de inteligibilidade clareza e

verdade do ser os quais se mostram com as ideias no processo de cogniccedilatildeo Mostrar

esta perspectiva real ocircntica como o grau mais elevado (ἀλσηέξσ) pressupotildee um valor

neste contexto dito epistemoloacutegico e cognitivo Do mesmo modo tais atributos

conferidos agrave ideia objeto do pensamento confere valor ao que resulta dele o discurso

filosoacutefico A postura intelectualista do filoacutesofo e o seu governo adquirem valor desta

forma ao empreender o conhecimento desta realidade Nesse sentido a comparaccedilatildeo

com os geocircmetras constitui um exemplo bastante uacutetil A condiccedilatildeo de intermediaacuterio do

raciociacutenio natildeo possui o mesmo valor epistemoloacutegico e cognitivo no mesmo grau que a

inteligecircncia dialeacutetica uma vez que lhe escapa essa cadeia que mostra o ser como objeto

real Entretanto dado que as ideias matemaacuteticas possuem a mesma realidade que outras

seria razoaacutevel perguntar o que as coloca como intermediaacuterias O meacutetodo matemaacutetico e

os seus objetivos finais como visto Todavia possivelmente as qualidades que

apresentam as ideias da geometria devem justificar de algum modo a escolha de Platatildeo

em utilizar a matemaacutetica para contrapor aos dialeacuteticos

Haja vista a posiccedilatildeo e a importacircncia conferidas agrave ideia do bem para os

propoacutesitos poliacuteticos do filoacutesofo governante natildeo parece descabido questionar acerca das

matemaacuteticas se estas seriam igualmente adequadas para embasar os valores eacuteticos que o

filoacutesofo tem em mira uma vez que os inteligiacuteveis nas matemaacuteticas satildeo noccedilotildees que

permitem de acordo com a sua especificidade tratar o sensiacutevel Dito de outro modo o

conceito de iacutempar o par ou o quadrado dariam conta de originar outras ideias como a

ideia de justiccedila Ateacute aqui note-se que as ideias inteligiacuteveis do uacuteltimo niacutevel natildeo recebem

maiores especificaccedilotildees aleacutem das averiguadas seu grau maacuteximo de realidade apreensiacutevel

pela inteligecircncia Parece possiacutevel no entanto arriscar que existe uma diferenciaccedilatildeo

entre as ideias no que se refere agrave singularidade de cada uma como mostrou o exemplo

da geometria e que para os propoacutesitos poliacuteticos d‟A Repuacuteblica interessa uma divisatildeo e

um discernimento acerca das ideias que se pode alcanccedilar a partir de cada meacutetodo

dialeacutetico por ser possiacutevel reconhecer desse modo sua ligaccedilatildeo com o bem

93

IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento

Diante das especificaccedilotildees da atividade cognitiva conveacutem averiguar os resultados

desse empreendimento no que se refere agraves accedilotildees Desse modo os esclarecimentos sobre

as afecccedilotildees da alma no final do livro VI e os propoacutesitos e praacuteticas do pedagogo no livro

VII constituem um bom desfecho acerca do tema da excelecircncia do pensamento ao

apresentarem o percurso de sua aquisiccedilatildeo e o significado da superioridade da

inteligecircncia Parece necessaacuterio explicar como se concretizam os saberes adquiridos pelo

filoacutesofo e desse modo uma analogia que mostra a atividade racional do ponto de vista

do comportamento psiacutequico e da praacutetica da educaccedilatildeo parecem bastante uacuteteis Ver-se haacute

as tratativas da alma e os ganhos que ela tem com o exerciacutecio da filosofia como uma

resposta agrave frequentaccedilatildeo intelectual na realidade e na verdade dos inteligiacuteveis de modo a

deixar clara a caracteriacutestica ascendente do pensamento na condiccedilatildeo de inteligecircncia Do

mesmo modo no livro VII d‟ A Repuacuteblica se analisaraacute o pensar da perspectiva que

apresenta a cogniccedilatildeo e a ascensatildeo agrave condiccedilatildeo de excelecircncia nos termos de uma

experiecircncia Narrada na educaccedilatildeo do filoacutesofo tal enredo oferece uma visatildeo linear do

desenvolvimento da potecircncia intelectual e consequentemente da consumaccedilatildeo da

natureza filosoacutefica Eacute possiacutevel verificar os efeitos da relaccedilatildeo entre a alma e o inteligiacutevel

no empreendimento pedagoacutegico de modo a ter a λόεζηϛ como resultado da experiecircncia

de cogniccedilatildeo Assim a narrativa acerca da formaccedilatildeo do caraacuteter do filoacutesofo passa a

oferecer outros aspectos da aquisiccedilatildeo da inteligecircncia antes averiguada segundo o seu

meacutetodo e objeto especiacutefico

41 Operaccedilotildees e regras do pensamento

O discernimento que se teve ateacute o momento sobre o domiacutenio do pensamento e

seus meacutetodos distintos de cogniccedilatildeo seraacute visto agrave luz de quatro παζήκαηα quatro estados

da alma que como tais expressam as operaccedilotildees ou atividades intelectivas Tal

abordagem versa sobre o comportamento da alma segundo os graus de cogniccedilatildeo nos

quais os estados podem ser tomados em certa medida como indicadores da accedilatildeo do

intelecto

94

ldquo- Entendeste de modo mais que suficiente disse eu Agora agraves

quatro seccedilotildees se aplica os quatro estados da alma (θαί κνη ἐπὶ ηνῖο

ηέηηαξζη ηκήκαζη ηέηηαξα ηαῦηα παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ γηγλόκελα

ιαβέ) inteligecircncia agrave seccedilatildeo mais elevada pensamento agrave segunda

atribui agrave terceira nome de crenccedila e agrave ultima o de verossimilhanccedila

(λόεζηλ κὲλ ἐπὶ ηῷ ἀλσηάησ δηάλνηαλ δὲ ἐπὶ ηῷ δεπηέξῳ ηῷ ηξίηῳ δὲ

πίζηηλ ἀπόδνο θαὶ ηῷ ηειεπηαίῳ εἰθαζίαλ) e coloca-as numa ordem

em que teu criteacuterio (θαὶ ηάμνλ αὐηὰ ἀλὰ ιόγνλ) seja que quanto mais

os objetos participarem da verdade (ἀιεζείαο κεηέρεη) tanto mais

clareza (ζαθελείαο) teratildeo (Rep 511d9-e)

Depois de esclarecimentos acerca da capacidade cognitiva da alma ou seja apoacutes

verificar a sua potecircncia de apreensatildeo inteligente exequiacutevel pela dialeacutetica (Rep 511b3)

as divisotildees como παζήκαηα ganham apreciaccedilotildees segundo o alcance e a organizaccedilatildeo da

razatildeo (ἀλὰ ιόγνλ) Assim a classificaccedilatildeo das atividades na alma deve ser vista segundo

o que a razatildeo reconheceraacute como verdadeiro e claro ou seja segundo a relaccedilatildeo com o

ser agora dito participaccedilatildeo na verdade e na clareza Posta dessa maneira tal

organizaccedilatildeo enfatiza a aquisiccedilatildeo do ponto de vista da alma e natildeo somente do meacutetodo

no que se refere agraves qualidades do ser Nesse sentido as atividades da alma que satildeo da

ordem do intelecto e do juiacutezo devem ser observadas como as operaccedilotildees realizadas com

vistas agrave verdade e agrave clareza de acordo com determinado domiacutenio e niacutevel Analisadas

desta perspectiva torna-se possiacutevel compreender de que maneira as aquisiccedilotildees

intelectuais se concretizam de modo a constituiacuterem o norte para as accedilotildees poliacuteticas e uma

conduta como a do filoacutesofo

Para melhor compreender em que aspecto tal reclassificaccedilatildeo se mostra

importante vale se questionar acerca do sentido de παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ A rigor o

termo compreende o sentido de uma afecccedilatildeo estado ou condiccedilatildeo As trecircs concepccedilotildees

podem ser encontradas no texto no entanto ao que tudo indica interessa em pontuar o

sentido de afecccedilatildeo nos termos do resultado de determinadas atividades sobre as quais

pretende investigar a saber o que resulta de uma atividade cognitiva e preacute-cognitiva

intelecccedilatildeo e percepccedilatildeo sensiacutevel como parece apresentar respectivamente o domiacutenio do

inteligiacutevel e da opiniatildeo Vale reparar que ao nomear as operaccedilotildees segundo a divisatildeo da

linha o texto mostra a postura e o alcance intelectual da alma possiacutevel em cada domiacutenio

e desta perspectiva o παζήκαηα como um estado uma condiccedilatildeo da alma ao lidar com a

realidade ou a imagem dela A novidade desta classificaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos argumentos

anteriores estaacute em sugerir a esses estados diferenciaccedilotildees para investigar a partir destas

95

distinccedilotildees o trabalho intelectivo ou a atividade mental como desdobramentos da

interaccedilatildeo entre a alma e a realidade Parece razoaacutevel compreender que em tais estados

esteja envolvido um trabalho psiacutequico que corresponda de alguma forma aos diferentes

graus de conhecimento das realidades e que pode ser considerado assim o resultado e

desse modo a manifestaccedilatildeo do trabalho intelectivo em diferentes niacuteveis de intelecccedilatildeo

ou de modo mais geral o pensamento em seus variados modos de operar - afinal o que

justificaria tal distinccedilatildeo entre as atividades se natildeo argumentar acerca da distinccedilatildeo da

atividade da alma e as respostas psiacutequicas diante dos distintos niacuteveis de manifestaccedilotildees

da realidade do ser Cabe analisar as seccedilotildees nesta perspectiva

O domiacutenio da δόμα mostra dois tipos de παζήκαηα O primeiro considerado

mais inferior entre todos consiste na εἰθαζία no que resulta da apreensatildeo ao modo de

uma imagem que se daacute nos termos de uma conjectura das percepccedilotildees sensiacuteveis Esta

concatenaccedilatildeo a partir das aparecircncias que se tem na opiniatildeo natildeo consiste em uma

operaccedilatildeo cognitiva dado que parte de elementos incapazes de manifestar a realidade do

ser A partir do que se analisou tem-se aiacute a percepccedilatildeo no niacutevel mais elementar da

sensibilidade no qual se assimila somente os elementos sensiacuteveis do objeto sem ter

por isso nenhuma apreensatildeo do aspecto inteligiacutevel dele Provavelmente constitui uma

afecccedilatildeo na qual a alma ainda natildeo discerniu com categorias do conhecimento isto eacute

relativas ao ser como a verdade em seu teor inteligiacutevel sendo a atividade no primeiro

niacutevel da opiniatildeo onde os objetos percebidos satildeo vazios de conteuacutedo cognitivos62

Outro estado que compotildee o plano da opiniatildeo segundo na classificaccedilatildeo da linha

refere-se agrave πίζηηο a crenccedila no sentido da convicccedilatildeo acerca dos objetos do plano fiacutesico

os artefatos os animais e outros seres da natureza que manifestam um grau maior de

realidade por constituir um modelo para os reflexos e por isso ocupam um grau acima

na escala de superioridade em comparaccedilatildeo agrave imagem Nesse contexto a alma estaacute

convicta do que observa empiricamente e portanto sem ter diante do que observa uma

postura gnosioloacutegica pois ao contraacuterio cede (ἀπνδίδσκη) a esta convicccedilatildeo permanece

alheia agraves relaccedilotildees que o objeto possui com o inteligiacutevel e desse modo natildeo tem qualquer

apreensatildeo da realidade nem suspeitam da ausecircncia dela

62 Stocks define assim a eikasiacutea ldquoEikasiacutea estado da mente produzido pela contemplaccedilatildeo de um eikoacuten e

como temos visto uma parcial percepccedilatildeo das caracteriacutesticas sensoriais dos originais dos eikoacutenes ele vecirc

o Dzocircon no eikonrdquo O autor define a imagem como uma percepccedilatildeo imperfeita dos originais no qual se

apreende parcialmente a caracteriacutestica sensiacutevel destes Mesmo o objeto sensiacutevel tendo relaccedilatildeo com o ser

na esfera da opiniatildeo natildeo se tem nenhuma apreensatildeo desta ligaccedilatildeo Deste modo a doacutexa no sentido de um

juiacutezo elaborado a partir da experiecircncia empiacuterica como as aparecircncias corresponde a um estaacutegio primaacuterio

da atividade intelectiva no qual ainda natildeo se constitui uma cogniccedilatildeo no sentido epistemoloacutegico de Platatildeo

Stocks op cit p 83

96

Deve-se ter em vista aleacutem disso que tais objetos satildeo igualmente vazios de

conteuacutedo cognitivo visto que o domiacutenio sensiacutevel consiste ontologicamente em um

reflexo na aparecircncia do domiacutenio inteligiacutevel e natildeo tem condiccedilotildees por conta disso de

oferecer base para o conhecimento A alma no registro do visiacutevel (ὁξαηόλ) apresenta

esses tipos de atividade as quais natildeo ultrapassam o niacutevel da percepccedilatildeo do sensiacutevel Em

termos operacionais pode-se dizer que a conjectura e a convicccedilatildeo juntas compotildeem a

percepccedilatildeo em termos cognitivos compotildeem o juiacutezo Ao ter como atividade a percepccedilatildeo

natildeo sendo a alma capaz de reconhecer o viacutenculo com o inteligiacutevel naquilo que observa

na opiniatildeo se abre a possibilidade para o obscuro e para a natildeo-verdade63

A

incapacidade da percepccedilatildeo de apreender uma relaccedilatildeo com o inteligiacutevel faz com que a

alma natildeo reconheccedila a verdade mostrando ser o juiacutezo faliacutevel nas suas afirmaccedilotildees Ao

mesmo tempo por se fiar nas aparecircncias ela natildeo eacute capaz de exprimir mais que outras

aparecircncias ao chegar a uma conclusatildeo visto que carece de conhecer a realidade A

passagem 511e sugere a verdade como uma caracteriacutestica do objeto tomado

intelectualmente Observe-se que no inteligiacutevel sua funccedilatildeo se daacute na relaccedilatildeo entre

cognoscente e ela mesma e natildeo entre dois elementos Se no visiacutevel a dita ldquoverdaderdquo

constituiacutea uma noccedilatildeo de equivalecircncia entre elementos postos em relaccedilatildeo no inteligiacutevel

ela aparece como caracteriacutestica do objeto que na cogniccedilatildeo mostra seu alto grau de

conhecimento e portanto seu alcance da realidade Desse modo sua mensura se daacute nos

termos de uma referecircncia constituinte do objeto a ser conhecido e natildeo como uma noccedilatildeo

vaga de equivalecircncia que empresta a palavra verdade

ao considerar que a linha estabelece uma comparaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel

comparando assim o que se considera ldquoverdaderdquo no visiacutevel domiacutenio das aparecircncias

com a verdade como qualidade do inteligiacutevel faz sentido questionar se os objetos

participam ou natildeo da verdade Nesse sentido a manifestaccedilatildeo da verdade pode ser

relacionada agrave sua apreensatildeo da realidade podendo ser a cogniccedilatildeo nestas circunstacircncias

mensurada Assim o objeto que participa da verdade manifestando-a em toda a sua

inteligibilidade eacute o objeto claro oposto agraves aparecircncias objetos do domiacutenio sensiacutevel que

natildeo satildeo capazes de oferecer o inteligiacutevel em nenhum grau e desse modo natildeo podem

conduzir a nenhuma atividade cognitiva Os objetos que constituem cada gecircnero podem

ser ditos desse modo mais ou menos niacutetidos como ocorrem em 509d10-509e1 sendo

63 Gosling define assim a capacidade da doacutexa ldquoDoacutexa eacute a habilidade de julgar e o que se julga (eph‟ hoi

he duacutenamis) eacute o que as vezes eacute verdade e agraves vezes natildeordquo Ele compreende isso como uma verdade parcial

que a doacutexa eacute capaz de alcanccedilar fruto da oscilaccedilatildeo entre os objetos referidos Gosling JC B ldquoDoacutexa and

Duacutenamis in Plato‟s Republicrdquo in Phronesis no 2 vol 13 1968 p 129 130

97

as imagens obscuras e as ideias niacutetidas O juiacutezo natildeo teria portanto como apreender a

verdade ficando relegado a uma condiccedilatildeo de incogniccedilatildeo bem ao contraacuterio do raciociacutenio

e da inteligecircncia

Diante da debilidade cognitiva da conjectura e da convicccedilatildeo e da consequente

falibilidade do juiacutezo eacute possiacutevel dizer que estes dois primeiros niacuteveis da linha mostram o

pensamento em um estado muito elementar quando comparado agrave inteligibilidade da

cogniccedilatildeo nos termos da dialeacutetica Por outro lado deve-se admitir que Platatildeo parece estar

interessado em todas as disposiccedilotildees (ἕμηο) da alma tanto naquelas que envolvem o

conhecimento quanto naquelas que se referem a opiniatildeo Ao que tudo indica eacute preciso

considerar a δόμα por ser ela a ἕμηο de uma boa parte dos componentes da polis e nesse

sentido ao se ter em vista a organizaccedilatildeo da cidade em suas distintas classes vale dar

atenccedilatildeo a ela da mesma forma que ao λνῦο do filoacutesofo As distinccedilotildees feitas a partir da

comparaccedilatildeo do procedimento demonstrativo e dialeacutetico (Rep 511c3-d5) atribuem

nessa aplicaccedilatildeo da divisatildeo da linha agrave alma o caraacuteter de disposiccedilatildeo no sentido de

condiccedilatildeo da alma em determinado niacutevel em determinado contexto Assim no

cognosciacutevel no inteligiacutevel a alma tem as disposiccedilotildees necessaacuterias para inteligir ou seja

para ter contato com o que eacute verdadeiro o ser real No ambiente da sensibilidade no

visiacutevel natildeo apresenta as mesmas disposiccedilotildees e por isso natildeo atinge a verdade como se

observa

Diferentemente do sensiacutevel o domiacutenio do λνῦο oferece as condiccedilotildees necessaacuterias

para a alma desenvolver as operaccedilotildees inteligentes Nesse niacutevel os dois παζήκαηα na

alma apontam para uma frequentaccedilatildeo que ela manteacutem com os objetos inteligiacuteveis a

partir dos quais eacute possiacutevel a apreensatildeo da realidade A δηάλνηα o primeiro estado desse

domiacutenio pressupotildee a operaccedilatildeo que lida com termos inteligiacuteveis os conceitos

matemaacuteticos de modo a remontaacute-los O raciociacutenio opera pela variaccedilatildeo entre os

elementos de mesma realidade que servem para demonstrar um conceito em questatildeo

Nos termos de uma teacutecnica natildeo eacute proacuteprio do procedimento raciocinativo questionar

acerca do fundamento ontoloacutegico desses conceitos tomando-os assim todos nos

termos de hipoacuteteses uacuteteis em uma demonstraccedilatildeo Desse modo questionar e buscar as

relaccedilotildees dos elementos investigados com o criteacuterio e de clareza fica igualmente limitado

ao niacutevel da clareza e das verdades matemaacuteticas ou seja agravequilo que pode exprimir um

conceito ou o que se deduz a partir dele

A verdade como quer a matemaacutetica provavelmente diz respeito agrave singularidade

que caracterizam as ideias matemaacuteticas Da mesma forma que as ideias morais possuem

98

verdade e ser (ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Rep 508d) mas possuem evidentemente essecircncia

distinta sendo a verdade aiacute dada consequentemente nos limites da identidade do ser que

ela acompanha A ideia do quadrado natildeo tem o mesmo ser da ideia de justiccedila em

termos de identidade e consequentemente a verdade de uma seraacute diferente da outra

Natildeo haacute maiores definiccedilotildees sobre a verdade a natildeo ser a sua inteligibilidade e a

sua filiaccedilatildeo com a ideia do bem A verdade matemaacutetica eacute tatildeo inteligiacutevel quanto a

verdade de uma ideia moral entretanto o sentido em que se quer a verdade no meacutetodo

matemaacutetico eacute igualmente teacutecnico na medida em que remonta o conceito sem maiores

apreensotildees da sua natureza inteligiacutevel Raciocinar leva a alma a compreensotildees da

verdade e da clareza deste tipo sem proporcionar maiores conhecimentos acerca do ser

e do fundamento inteligente dos conceitos Desse modo a δηάλνηα constitui um niacutevel

limitado da cogniccedilatildeo no qual a alma apreende determinadas participaccedilotildees do ser e

portanto a verdade tal como as que se tem com o meacutetodo matemaacutetico Do aspecto

operacional a alma realiza tais apreensotildees com um meacutetodo o de demonstraccedilatildeo que por

natildeo ter como objetivo o conhecimento do fundamento ontoloacutegico eacute classificado como

uma teacutecnica natildeo como um saber Natildeo se pode negar que a δηάλνηα ganha com essas

acepccedilotildees o perfil de um pensamento teacutecnico que atua segundo as regras da arte

chamada aritmeacutetica Ainda que o texto natildeo pretenda marcar rigidamente as designaccedilotildees

utilizadas na linha agraves operaccedilotildees descritas nota-se a intenccedilatildeo de esclarecer a atuaccedilatildeo da

alma ao se lanccedilar a uma atividade dita intelectual No caso da δηάλνηα parece que as

regras que a alma obedece ao raciocinar uma vez que eacute forccedilada (ἀλαγθάδσ) pelos

objetos de determinado domiacutenio e pelo meacutetodo satildeo as ditadas pela matemaacutetica sendo o

raciocinar assim o exerciacutecio segundo tais procedimentos e tais regras A consequecircncia

de proceder assim eacute que a alma estagna e o matemaacutetico natildeo poderia ter a excelecircncia

intelectual e moral do filoacutesofo por conta disso pois natildeo conseguiria chegaria ao grau

maacuteximo de conhecimento possiacutevel ao intelecto

Diferentemente a λόεζηϛ mostra o estado de apreensatildeo da realidade inteligiacutevel

o qual constitui o grau mais elevado da atividade e da condiccedilatildeo da alma Tal apreensatildeo

consiste em adquirir conhecimento do ser e a partir dele reconhecer o viacutenculo dos

objetos pesquisados agrave luz de sua realidade fazendo para isso uso exclusivamente das

ideias Ao consistir na atividade em que a alma opera somente pelas ideias a inteligecircncia

demonstra ser o maior grau de interaccedilatildeo com o inteligiacutevel Ao atuar assim ela conhece

a verdade e a clareza dos objetos uma vez que eacute capaz pela dialeacutetica de observar a

participaccedilatildeo nessas duas caracteriacutesticas do ser O inteligir deixa a alma diante do

99

aspecto inteligiacutevel dos objetos investigados ou seja de posse da ideia desses

colocando-a no maior grau de cogniccedilatildeo no estado de contemplaccedilatildeo A alma que tem

inteligecircncia conhece a verdade e a clareza ao operar com todos os elementos dados pelo

ser A capacidade de apreensatildeo ao inteligir dada pela potecircncia de apreensatildeo do meacutetodo

dialeacutetico torna realizaacutevel a operaccedilatildeo inteligente Em outros termos a alma natildeo

adquiriria o ser se natildeo fizesse uso do meacutetodo adequado para isso o que demonstra a

importacircncia e a peculiaridade da ciecircncia dialeacutetica e sua coerecircncia com o alcance da

inteligecircncia Neste uacuteltimo niacutevel parece claro que o meacutetodo de investigaccedilatildeo determina o

conhecimento uma vez que parece possuir as regras adequadas para tal Ao seguir as

regras do meacutetodo dialeacutetico a alma obedece ao mesmo tempo os criteacuterios de clareza e de

verdade segundo o que se apreende das relaccedilotildees com o ser inteligiacutevel Desse modo em

uacuteltima instacircncia ao obedecer as regras impostas pela dialeacutetica a alma segue o que dita o

proacuteprio ser atuando assim de maneira inteligente As regras do meacutetodo se tornam

assim as regras por excelecircncia do pensar em sua atuaccedilatildeo inteligente O saber que busca

a filosofia se realiza nesse conhecimento da realidade e da verdade dos objetos os quais

apontam para o bem Ao conhecer tais qualidades a alma toma o bem como modelo

demonstrando estar a alma assim no estado de inteligecircncia

Talvez tais distinccedilotildees mostrem a diferenccedila mais determinante para qualificar o

homem comum o matemaacutetico e o dialeacutetico A anaacutelise da atividade intelectual a partir

das distinccedilotildees da linha apontam principalmente a disposiccedilatildeo e a capacidade de cada um

no que se refere ao comportamento Estendendo esta anaacutelise pode-se inferir que se tem

nas atividades da alma indicadas nesses estados que a linha oferece uma explicaccedilatildeo

acerca da disposiccedilatildeo e da capacidade de buscar seguir e de se submeter ao que eacute

verdadeiro ao que eacute dado segundo o ser A consequecircncia desta inferecircncia talvez possa

ser conferida nas passagens que tocam a questatildeo do criteacuterio para a organizaccedilatildeo da

cidade e a funccedilatildeo de cada classe de cidadatildeos nesta organizaccedilatildeo Os παζήκαηα

reconstituem nesse sentido o comportamento da alma do ponto de vista intelectivo

dado como uma ἕμηο uma δύλακηο e um ἔξγνλ expressos no meacutetodo naquilo que ela eacute

capaz de apreender sob a forma da cogniccedilatildeo ou do juiacutezo O foco no proceder intelectivo

revela quatro fenocircmenos mentais cuja distinccedilatildeo e compreensatildeo apresentam quatro

modos do pensamento em contextos de gecircnero diferentes isto eacute em relaccedilatildeo ao sensiacutevel

e em relaccedilatildeo ao inteligiacutevel Dados assim tais modos parecem bastante convenientes agrave

100

proposta de uma cidade com classes variadas de cidadatildeos as quais o filoacutesofo

governante deve comandar64

Evidentemente natildeo se deve compreender que essas quatro operaccedilotildees definem e

mostram o pensar em sua totalidade Deve-se admitir que o texto natildeo oferece

especificaccedilotildees acerca do tema do pensamento em seu conjunto isto eacute como o conjunto

de fenocircmenos que se datildeo a partir de uma atividade sobre os quais se pode inferir a

partir de um estado da alma Entretanto a analogia da linha aborda os quatro principais

aspectos do pensamento no que se refere ao ιόγνο que se propotildee para a cidade Tem-se

provavelmente os quatro aspectos mais importantes capazes de situar cada atividade em

relaccedilatildeo agrave verdade qualidade que ganha fundamento inteligiacutevel e colabora assim para a

teoria moral do governo do filoacutesofo Do mesmo modo as especificaccedilotildees acerca das

atividades intelectuais que traz a linha mostram os efeitos da atividade intelectual da

filosofia anteriormente anunciado como a fixaccedilatildeo da alma (ἀπεξείδσ) ao ser accedilatildeo que

descreve o λνῦλ ἔρεηλ e a θξόλεζηο (Rep 508b d) Ao especificar as operaccedilotildees da alma

tem-se explicado o procedimento os efeitos e o significado desta relaccedilatildeo intelectual

com a ideia do bem que culmina na inteligecircncia

Os distintos παζήκαηα parece se tornarem mais claros ao buscar compreender a

alma em sua caracteriacutestica ativa ao se elucidar as suas operaccedilotildees e ao mesmo tempo

ao revelar os meandros de sua natural passividade que resulta em tais afeccccedilotildees tal

como se daacute na submissatildeo da alma ao ser no caso da λόεζηϛ agraves regras do meacutetodo

matemaacutetico na δηάλνηα e a sujeiccedilatildeo agraves aparecircncias na δόμα A dicotomia atividade-

passividade que o livro VI apresenta tal como se observou nos argumentos analisados

mostra a dinacircmica das relaccedilotildees como uma das bases sobre as quais se deve interferir

atraveacutes da educaccedilatildeo para a organizaccedilatildeo da cidade Ao exibir os efeitos das interaccedilotildees

que a alma pode ter com o inteligiacutevel se mostra a necessidade de compreender a atuaccedilatildeo

64 Entre os autores que partilham da leitura de que haacute a exposiccedilatildeo acerca do trabalho intelectivo na

analogia da Linha estaacute Cornford que compreende haver ldquoquatro experiecircncias mentaisrdquo correspondentes

ao pathema en tei psykhei Note-se a cuidadosa opccedilatildeo ao traduzir paacutethema por ldquoexperiecircnciardquo buscando

muito provavelmente preservar a eiacutekasia e a piacutestis como partes de um processo que visto em todo o

conjunto comeccedila na sensibilidade e termina na apreensatildeo da ideia do bem Ainda que seu interesse seja

apresentar a diaacutenoia e a noeacutesis como as operaccedilotildees inteligentes ele admite com este comentaacuterio haver uma

relaccedilatildeo entre os diferentes niacuteveis de apreensatildeo que as partes da linha representa sendo o primeiro a

percepccedilatildeo e os dois uacuteltimos modos de operaccedilatildeo intelectivas ldquoEste eacute o primeiro lugar onde Platatildeo

contrasta dois modos de operaccedilatildeo da parte racional da almardquo Esta afirmaccedilatildeo de Cornford parece

bastante afim com a proposta do texto de esclarecer a diferenccedila entre opiniatildeo e conhecimento a partir da

dicotomia filoacutesofo-natildeo-filoacutesofo que se apresenta nos livros centrais Tais distinccedilotildees ao que parece

merecem tambeacutem serem vistas do ponto de vista da parte racional da alma tal como a linha especifica

Cornford ldquoMathematics and Dialectic in The Republicrdquoop cit p 37-38

101

dela Vecirc-se que a passividade de uma afecccedilatildeo natildeo estaacute e natildeo deve ser tomada sem a

investigaccedilatildeo da atividade que a origina

Atividade e passividade do pensamento cabe reparar eacute um tema presente que

deve ser analisado tambeacutem no Feacutedon (79d) o qual dito antecipadamente mostraraacute a

graduaccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da filosofia rumo a θξόλεζηο Tomada nos termos de

atividade de alta intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo resultado desta atividade a θξόλεζηο

descreve a interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e os beneacuteficos resultados dessa ligaccedilatildeo

para a alma A dupla funccedilatildeo que descreve os estados classificados na linha parece estar

presente desse modo em uma concepccedilatildeo de afecccedilatildeo que Platatildeo parece ter Mesmo sem

ter a intenccedilatildeo de especificar esta duplicidade observa-se na linha como se observaraacute no

Feacutedon o resultado como expressatildeo de uma atividade e assim a passividade de uma

condiccedilatildeo como efeito da atividade em do pensar em determinado niacutevel O pensamento

abarca desse modo atividade e passividade as quais devem ser vistas

concomitantemente Conveacutem assim perseguir as caracteriacutesticas deste conjunto de

atividades dita pensamento nos argumentos do Livro VII de modo a analisar os

aspectos racionais em uma progressiva interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e dessa

maneira a natureza de uma possiacutevel intervenccedilatildeo da filosofia Natildeo diferente do filoacutesofo

em processo de purificaccedilatildeo do diaacutelogo Feacutedon o aprendiz do Livro VII mostra o

processo de superaccedilatildeo do sensiacutevel como atividade e efeito deste movimento de

interaccedilatildeo do intelecto com a realidade inteligiacutevel O resultado desta superaccedilatildeo

intelectual consiste na superaccedilatildeo ao niacutevel maacuteximo nos demais domiacutenios eacutetico e

poliacutetico elevando a alma agrave melhor condiccedilatildeo que ela pode alcanccedilar ou simplesmente agrave

condiccedilatildeo de excelecircncia

42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma

A Alegoria da Caverna que abre o seacutetimo livro d‟A Repuacuteblica oferece outros

aspectos do pensamento ao sugerir uma imagem da alma nas condiccedilotildees de ignoracircncia

(ἀκαζία Rep 518a7) e de inteligecircncia (λνῦο Rep 518a1) Ao enfatizar seu

102

comportamento na situaccedilatildeo de educaccedilatildeo e de ausecircncia da educaccedilatildeo (Rep 514a1) como

trazem as primeiras linhas do livro o texto aborda o tema da racionalidade da

perspectiva da experiecircncia intelectual da alma mostrando por analogia as condiccedilotildees o

processo e os efeitos deste tipo de exerciacutecio A comparaccedilatildeo entre as naturezas se daacute

agora no que se refere agrave atitude a partir da condiccedilatildeo de ignoracircncia natural ao homem

em sua humanidade diante da possibilidade do conhecimento O movimento de ascese

que mostra a saiacuteda da ignoracircncia na direccedilatildeo do conhecimento descrito na saiacuteda do

prisioneiro liberto da caverna em direccedilatildeo agrave luz da realidade explica a accedilatildeo que promove

e justifica a excelecircncia do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum demonstrando o

caraacuteter da postura que resulta na cogniccedilatildeo ou na permanecircncia na ausecircncia de

conhecimento

Diferentemente da analogia da linha o pensar natildeo teraacute na alegoria da caverna

suas operaccedilotildees explicitadas de modo que se pode analisar cada niacutevel em suas

especificidades metodoloacutegicas A abordagem que pretende salientar as caracteriacutesticas do

filoacutesofo e do natildeo filoacutesofo em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo aponta as relaccedilotildees que se estabelece

entre estes dois tipos de trabalho mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo de modo a sugerir entre

eles uma relaccedilatildeo tal como pressupotildee a saiacuteda e o retorno do filoacutesofo agrave caverna Dito de

outro modo a descriccedilatildeo da ascese e descida do filoacutesofo sugere uma dinacircmica do

pensamento natildeo na sua operacionalidade teacutecnica isto eacute segundo o meacutetodo mas neste

tracircnsito de um plano a outro exequiacutevel pela παηδεία Nesta construccedilatildeo da imagem da

experiecircncia intelectual do conhecimento a racionalidade aparece sob o acircngulo da

condiccedilatildeo humana (ηὰ ἀλζξώπεηά Rep 517d5) sendo a inteligecircncia seu ponto alto e a

ignoracircncia a posiccedilatildeo inferior Assim tanto a figura do prisioneiro quanto a do liberto

descrevem a vivecircncia da alma em duas circunstacircncias antagocircnicas que contrapotildeem a

natural inferioridade do homem comum agrave superioridade de condiccedilatildeo do filoacutesofo dada

pela aquisiccedilatildeo do conhecimento

A mudanccedila de posiccedilatildeo que pode se dar durante a vida (δηὰ βίνπ Rep 515b1)

operada pelo exerciacutecio intelectual eacute dita atraveacutes das dificuldades no processo de

conhecer Nesta narrativa que mostra a libertaccedilatildeo do prisioneiro e a sua gradual

adaptaccedilatildeo a um novo ambiente (Rep 515e-516c6) tem-se a uma imagem da superaccedilatildeo

de um niacutevel a outro pressupondo uma progressatildeo do trabalho intelectual que vai da

percepccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo

103

Cabe acompanhar a narrativa desta experiecircncia atraveacutes da construccedilatildeo da imagem

do prisioneiro que conquista a libertaccedilatildeo Para isso deve-se comeccedilar por analisar o

ambiente e o estado que se refere agrave ignoracircncia (ἀκαζία)

ldquo() Imagina homens que estatildeo numa morada subterracircnea

semelhante a uma furna cujo acesso se faz por uma abertura que

abrange toda a extensatildeo da caverna que estaacute voltada para a luz Laacute

estatildeo eles desde a infacircncia com grilhotildees nas pernas e no pescoccedilo de

modo que fiquem imoacuteveis onde estatildeo e soacute voltem o olhar para a

frente jaacute que os grilhotildees os impedem de virar a cabeccedila De longe

chega-lhes a luz de uma fogueira que arde num local mais alto atraacutes

deles e entre a fogueira e os prisioneiros haacute um caminho em aclive

ao longo do qual se ergue um pequeno muro semelhante ao tabique

que os maacutegicos potildeem entre eles e os espectadores quando lhes

apresentam suas habilidades

- estou imaginando disse

- Pois bem Imagina homens passando ao longo desse pequeno

muro e levando toda a espeacutecie de objetos que ultrapassam a altura do

muro e tambeacutem estaacutetuas de homens e de outros animais feitas de

pedra e de madeira trabalhadas das mais diversas maneiras Alguns

dos que os carregam como eacute natural vatildeo falando e outros seguem

em silecircnciordquo (Rep 514a2-b7)

O ambiente rebaixado e de penumbra que sugere a caverna subterracircnea alude agrave

condiccedilatildeo de inferioridade do homem no que se refere ao conhecimento Tal

inferioridade parece inexoraacutevel ao considerar que este eacute o uacutenico ambiente conhecido

pelos habitantes da caverna visto que estatildeo laacute desde a infacircncia Por estarem de costas

para a abertura da gruta e portanto em posiccedilatildeo contraacuteria agrave saiacuteda tem-se a natural

oposiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo ao que pode provocar o conhecimento de outro lugar

outro plano Outro dado que talvez determine a aparente inflexibilidade desta condiccedilatildeo

eacute a imobilidade que os torna prisioneiros e em permanente estado de ἀκαζία Presos

pelos peacutes pernas e pescoccedilo os moradores da caverna estatildeo impedidos de sair e de fazer

qualquer movimento que os permita ver outro acircngulo e assim realizar qualquer

verificaccedilatildeo acerca do lugar que habitam Limitados pelos grilhotildees natildeo podem

reconhecer a fonte que oferece a baixa luminosidade para a gruta nem a origem dos

ruiacutedos que escutam e das imagens que veem projetadas na parede diante deles Imoacuteveis

e alheios a outra realidade os habitantes da caverna creem que as sombras de animais e

estaacutetuas projetadas satildeo os proacuteprios animais e os proacuteprios homens e natildeo imagens de

104

algum objeto refletido pela luz do fogo Crentes chamam tal conjuntura de real e

consideram as sombras verdadeiras sem ao menos supor um lugar diferente da gruta

permanecendo assim ignorantes (Rep 515b4-5 515c1-2)

A narrativa aponta os elementos que determinam a ignoracircncia e o principal

dentre todos cabe notar consiste na imobilidade que resulta na crenccedila Chama atenccedilatildeo

do mesmo modo que a analogia natildeo indique outro fator que fixa o homem a esta

imobilidade que natildeo seja a natureza Representado pelos grilhotildees o que coloca o

homem na posiccedilatildeo de prisioneiro parece consistir na natural sujeiccedilatildeo aos elementos que

compotildeem o cenaacuterio as sombras crenccedila e o haacutebito agrave escuridatildeo Natildeo parece estar em

questatildeo em um primeiro momento qualquer fator desiderativo para a permanecircncia

nesse estado tampouco alguma deliberaccedilatildeo em livrar-se dele Ao que tudo indica a

proposta da narrativa tem em vista descrever uma situaccedilatildeo hipoteacutetica de elevaccedilatildeo de

uma natural condiccedilatildeo de desconhecimento para a de conhecimento circunstacircncia

considerada mais elevada Para isso elege as variaacuteveis que colaboram para a construccedilatildeo

de uma imagem desobrigada a corresponder fielmente agraves questotildees na vida ordinaacuteria

mas que parecem uacuteteis aos propoacutesitos de uma comparaccedilatildeo (ἀπεηθάδσ Rep 514a1)65

Assim ainda que pareccedilam estranhas importa que tais representaccedilotildees permitam

investigar a questatildeo no registro da suposiccedilatildeo

A incapacidade de discernimento devido as caracteriacutesticas do ambiente e agrave

imobilidade das capacidades que permitiriam reconhecer os objetos verdadeiros mostra

a ignoracircncia como o estado em que a alma natildeo mobiliza suas potencialidades

cognitivas ficando alheia a um tipo de experiecircncia que soacute pode ser realizada pelo

pensamento O resultado desta postura eacute o desconhecimento de uma realidade que daacute

origem ao que ela por haacutebito (λνκίδσ) concebe como verdadeiro e real Este eacute um ponto

que ganha algumas elucidaccedilotildees na alegoria em comparaccedilatildeo ao que trazia a primeira

parte da linha Como componente do segundo grau do primeiro niacutevel na escala que

sugere a linha dividida (Rep 511d9-e) correspondente ao juiacutezo a πίζηηο aparecia como

a convicccedilatildeo nos objetos fiacutesicos tomados como verdadeiros os quais nada mais eram que

as aparecircncias dos objetos reais Por essa razatildeo naquele contexto a convicccedilatildeo natildeo

consistia em um estado em que a alma estava em via de adquirir o conhecimento mas

ao contraacuterio permanecia incapaz de efetuar qualquer relaccedilatildeo que lhe permitisse

reconhecer a realidade inteligiacutevel A crenccedila tal como descreve a linha parece estar

65 Rep 515a4-5 ldquo- Estranho eacute o quadro que descreves disse e estranhos tambeacutem os prisioneiros (-

Semelhante a noacutes disse eu (Ἄηνπνλ ἔθε ιέγεηο εἰθόλα θαὶ δεζκώηαο ἀηόπνπο Ὁκνίνπο ἡκῖλ)rdquo

105

presente na descriccedilatildeo da ignoracircncia que sofre o prisioneiro uma vez que se toma como

real o que se daacute pelo costume ou seja a partir do que regularmente se vecirc por forccedila de

sua condiccedilatildeo

Dito de outro modo o julgamento que o prisioneiro faz tem como base uma

presumiacutevel regularidade das apariccedilotildees projetadas na parede da caverna nas aparecircncias

mesmo fundamento da crenccedila Eacute possiacutevel compreender que a ἀκαζία da alegoria

corresponde agrave δόμα da linha dividida Pode-se encontrar uma correspondecircncia entre os

dois estados se considerarmos que ambos se referem ao desconhecimento da realidade

inteligiacutevel Ambas parecem compreendidas nos termos que se enuncia os riscos de

entregar a salvaguarda da cidade a um guardiatildeo que ignora (ἄγλνηα) e portanto

desconhece a ideia do bem (Rep 5064-7) Entretanto vale ressaltar que o que a alegoria

pretende enfatizar diz respeito ao desconhecimento como um estado natural ao homem

que pode por determinadas razotildees ser abandonado Se na linha se tem uma explicaccedilatildeo

do ponto de vista gnosioloacutegico e epistemoloacutegico desta ἄγλνηα cujo sentido parece

abarcar a opiniatildeo e a ignoracircncia na alegoria ela eacute dada da perspectiva existencialista e

sobretudo poliacutetica visto que marca a posiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a ideia do bem

inteligiacutevel a saber naturalmente inferior e contraacuterio a ele Conveacutem investigar nas

proacuteximas passagens o que o texto sugere acerca do processo de abandono da

inferioridade da ignoracircncia e averiguar o processo intelectivo nessa mudanccedila de

condiccedilatildeo Deve-e atentar para o caraacuteter ascendente da inteligecircncia dada na figura do

aprendiz

43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο

O processo de saiacuteda do estado de ignoracircncia dada nos termos da libertaccedilatildeo de

tal posiccedilatildeo propotildee o iniacutecio do processo do conhecimento que sugere ao mesmo tempo

os estiacutemulos necessaacuterios para o desenvolvimento do exerciacutecio intelectual de ascese e as

reaccedilotildees naturais agraves mudanccedilas de niacutevel cognitivo Diferente do que se viu na analogia do

sol a alegoria natildeo enfatiza a relaccedilatildeo entre alma e objeto e a familiaridade da alma com

106

o inteligiacutevel como suficientes para descrever o que promove a busca pelo conhecimento

ao menos em um primeiro momento A saiacuteda da caverna depende da intervenccedilatildeo de

algueacutem que por conhecer a realidade provoca e orienta esta libertaccedilatildeo Nesse sentido a

ambientaccedilatildeo do liberto agrave luz mostra as dificuldades que envolvem a ascese elevaccedilatildeo

que cabe notar natildeo constitui um processo natural

ldquo- Observa agora disse eu como seria para eles a libertaccedilatildeo dos

grilhotildees e da cura da ignoracircncia se isso lhes ocorresse de forma

natural (Σθόπεη δή ἦλ δ ἐγώ αὐηῶλ ιύζηλ ηε θαὶ ἴαζηλ ηῶλ ηε δεζκῶλ

θαὶ ηο ἀθξνζύλεο νἵα ηηο ἂλ εἴε εἰ θύζεη ηνηάδε ζπκβαίλνη αὐηνῖο)

Sempre que um deles fosse liberado dos grilhotildees e obrigado

(ἀλαγθάδνηην) a pocircr-se de peacute de repente a virar o pescoccedilo a andar e

a olhar para a luz tudo isso o faria sofrer e sob a luminosidade

intensa ficaria incapaz de olhar para aqueles objetos cujas sombras

havia pouco estava vendo O que diria ele na tua opiniatildeo se algueacutem

lhe dissesse que o que ele via antes era apenas uma nonada

(θιπαξίαο) mas que agora mais proacuteximo do ser voltado para o que

eacute mais ser estaacute enxergando (λῦλ δὲ κᾶιιόλ ηη ἐγγπηέξσ ηνῦ ὄληνο θαὶ

πξὸο κᾶιινλ ὄληα ηεηξακκέλνο ὀξζόηεξνλ βιέπνη) melhor e

apontando cada um dos objetos que estavam passando com suas

perguntas o obrigasse a dizer-lhe o que era Natildeo achas que ele se

veria em dificuldades e julgaria que os objetos que via antes eram

mais verdadeiros do que os que lhe estavam sendo mostrados

agorardquo (Rep 515c4 -d7)

O texto mostra as dificuldades de se observar a realidade na figura do prisioneiro

obrigado a pocircr-se em uma posiccedilatildeo diferente e a fazer movimentos nunca realizados

antes O embaraccedilo de lidar com uma nova realidade sugerida pela incapacidade do

receacutem liberto de ver (ἀδπλαηνῖ θαζνξᾶλ) sob luz intensa mostra a natural incapacidade

de frequentaccedilatildeo na realidade inteligiacutevel e ao mesmo tempo a necessidade de orientaccedilatildeo

e de exerciacutecio para que isso ocorra Forccedilado a sair da caverna (ἀλαγθάδσ) e sem estar

adaptado agraves novas condiccedilotildees o prisioneiro insiste em acreditar nas sombras e natildeo

confere qualquer credibilidade aos objetos que agora se apresentam uma vez que soacute tem

a ignara experiecircncia das imagens O abandono da condiccedilatildeo de ignoracircncia natildeo acontece

sem a natural reaccedilatildeo de contrariedade e sofrimento amenizados somente por um

gradativo processo de conformaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas deste novo ambiente Ainda que

fosse arrastado agrave forccedila para um plano mais alto (Rep 515e6) sua reaccedilatildeo seria a de

relutacircncia e demandaria tempo para deixar de se incomodar (ἀγαλαθηέσ Rep 516a1)

com a claridade

107

Tal eacute a descriccedilatildeo da relaccedilatildeo entre alma e objeto no processo de ascese na

narrativa da alegoria A graduaccedilatildeo entre niacuteveis dita nos termos da saiacuteda de um plano e

subida a outro mostra dessa vez a relaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel como resposta ao

contato com objetos distintos Se a analogia do sol descrevia essa reaccedilatildeo do ponto de

vista do fenocircmeno mental ou seja do que se tem na relaccedilatildeo entre faculdade cognitiva e

objeto inteligiacutevel a saber a apreensatildeo da ideia aqui a descriccedilatildeo da reaccedilatildeo do

prisioneiro agrave luminosidade leva em consideraccedilatildeo a θύζηο como um componente

determinante nessa relaccedilatildeo Nesse sentido tais dificuldades representam um aspecto

tambeacutem natural do processo de ascese uma vez que se eacute naturalmente contraacuterio e

desabituado ao inteligiacutevel A relaccedilatildeo entre alma e objeto experienciado dado na alegoria

oferece uma imagem do conhecimento como uma superaccedilatildeo na qual o pensamento se

realiza em todo o seu conjunto de operaccedilotildees ao longo da transposiccedilatildeo desses obstaacuteculos

O foco se volta para o estabelecimento dessa relaccedilatildeo com o inteligiacutevel que se efetiva

nesse percurso oferecendo dessa maneira uma narrativa da passagem da percepccedilatildeo

sensiacutevel para a cogniccedilatildeo inteligiacutevel

Vale lembrar que o propoacutesito de tal abordagem tem em vista a noccedilatildeo de παηδεία

e pretende por isso apontar a possibilidade de conduccedilatildeo ao conhecimento Desse

modo importa assinalar no contexto da alegoria as caracteriacutesticas do pensamento posto

em atividade orientado para a inteligecircncia de modo a averiguar as possiacuteveis

correspondecircncias com o que se analisou na analogia do sol e na analogia da linha

argumentos importantes para uma caracterizaccedilatildeo da racionalidade no livro VI Note-se

que o texto propotildee a superaccedilatildeo cognitiva anaacuteloga agrave gradativa ambientaccedilatildeo na verdadeira

realidade e o viacutenculo entre a alma e o inteligiacutevel sendo constituiacutedo nesta frequentaccedilatildeo

no novo ambiente ao qual aos poucos ela estaraacute familiarizada

ldquo- E se disse eu algueacutem o arrastasse dali aacute forccedila pela ladeira

aacutespera e abrupta (Εἰ δέ ἦλ δ ἐγώ ἐληεῦζελ ἕιθνη ηηο αὐηὸλ βίᾳ δηὰ

ηξαρείαο ηο ἀλαβάζεσο θαὶ ἀλάληνπο) e natildeo o largasse antes de

conseguir arrastaacute-lo para fora e expocirc-lo agrave luz do sol seraacute que ele natildeo

sofreria dores natildeo se indignaria por o arrastarem (ἆξα νὐρὶ

ὀδπλᾶζζαί ηε ἂλ θαὶ ἀγαλαθηεῖλ ἑιθόκελνλ) e quando chegasse laacute ateacute

a luz com os olhos ofuscados pelo fulgor nada seria capaz de ver do

que agora lhe dissessem ser verdadeiro

- De imediato (ἐμαίθλεο) pelo menos disse natildeo seria capaz

- Seria preciso creio que se habituasse se pretendesse ver o que

estivesse no alto (Σπλεζείαο δὴ νἶκαη δένηη ἄλ εἰ κέιινη ηὰ ἄλσ

ὄςεζζαη) Primeiro iria ver muito facilmente as sombras depois as

imagens dos homens e as dos outros objetos na aacutegua e mais tarde os

proacuteprios homens e os objetos depois agrave noite voltando o olhar para

108

a luz dos astros e da lua contemplaria o que estivesse no ceacuteu e o

proacuteprio ceacuteu com mais facilidade que durante o dia o sol se a luz do

sol

- Em uacuteltimo lugar viria creio o sol natildeo os reflexos dele na aacutegua

ou em outra superfiacutecie e ele seria capaz de ver e contemplar o

proacuteprio sol no lugar que eacute o dele tal qual ele eacute (Τειεπηαῖνλ δὴ νἶκαη

ηὸλ ἥιηνλ νὐθ ἐλ ὕδαζηλ νὐδ ἐλ ἀιινηξίᾳ ἕδξᾳ θαληάζκαηα αὐηνῦ

ἀιιαὐηὸλ θαζ αὑηὸλ ἐλ ηῆ αὑηνῦ ρώξᾳ δύλαηη ἂλ θαηηδεῖλ θαὶ

ζεάζαζζαη νἷόο ἐζηηλ)

- Necessariamente disse

- Depois disso a respeito do sol jaacute inferiria (ζπιινγίδνηην) que eacute

ele que cria as estaccedilotildees e os anos e tudo governa (ἐπηηξνπεύσλ) no

mundo visiacutevel e eacute de certo modo a causa (αἴηηνο) de tudo aquilo que

viam

- Eacute evidente que depois de passar por aquelas experiecircncias

chegariam a essas conclusotildees (Δινλ ἔθε ὅηη ἐπὶ ηαῦηα ἂλ κεη

ἐθεῖλα ἔιζνη)rdquo (Rep 515e- 516 c3)

Os passos dados na elevaccedilatildeo ao inteligiacutevel parecem francamente sugeridos nesta

progressatildeo da visatildeo que descreve o texto Apoacutes a relutacircncia e as dores de estar em um

ambiente desconhecido onde comeccedila a se acostumar com as caracteriacutesticas dele como

a luminosidade o liberto primeiro vecirc com facilidade as sombras na penumbra depois

consegue observar as imagens na aacutegua e finalmente mira diretamente os proacuteprios

objetos originais Receacutem-saiacutedo da caverna o ex-prisioneiro reconhece a multiplicidade

do mundo visiacutevel em seus variados objetos cujos reflexos promovem as sombras e as

imagens Desse modo tem-se a descriccedilatildeo do estado de percepccedilatildeo (αἴζζεζηο) no mundo

visiacutevel na qual os elementos apreendidos satildeo as imagens as sombras os animais e os

objetos do mundo fiacutesico Embora seja difiacutecil fazer uma riacutegida identificaccedilatildeo das partes da

linha com a ascese tal como trata a alegoria parece razoaacutevel entender que a percepccedilatildeo

aparece como a vivecircncia na caverna e esses primeiros momentos da saiacuteda rumo ao

conhecimento o iniacutecio do percurso da experiecircncia intelectual da ascese

No que se refere agrave elevaccedilatildeo da alma ao inteligiacutevel parece razoaacutevel supor os

primoacuterdios desta ascese neste reconhecimento da multiplicidade de elementos do

domiacutenio visiacutevel para marcar as distinccedilotildees do inteligiacutevel e a superioridade da

inteligecircncia Faz sentido mostrar desta perspectiva as evoluccedilotildees da alma que se eleva

da percepccedilatildeo da multiplicidade para a aquisiccedilatildeo do conhecimento da ideia enfatizando

com isso o exerciacutecio do pensamento que aqui eacute dado de modo progressivo e gradual

rumo agrave sua excelecircncia operacional como mostrou a linha e moral como parece propor

109

a alegoria Desse modo a passagem da conjectura para a convicccedilatildeo constitui um

progresso nos termos de um trabalho mental importante de ser dado uma vez que estaacute

em questatildeo o desenvolvimento para o exerciacutecio intelectual Mais que mostrar o prejuiacutezo

cognitivo da δόμα em relaccedilatildeo a ἐπηζηήκε a passagem de uma etapa a outra da

percepccedilatildeo eacute dada como ponto a partir do qual pode haver a mudanccedila (κεηαβνιή Rep

516c6) movimento que pode pocircr a alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel Por enquanto vale ter

em vista que conjectura e convicccedilatildeo compotildeem o conjunto de operaccedilotildees mentais tal

como o raciociacutenio e a intelecccedilatildeo e que constitui o grau de inferioridade da condiccedilatildeo da

alma que pode ser superado

Cabe reparar na sequecircncia que a segunda fase do liberto sugere a atividade

preliminar do pensamento pois parece ir um pouco aleacutem da percepccedilatildeo Nessa etapa o

liberto jaacute suporta a claridade e comeccedila a observar o que eacute reluzente na ausecircncia de luz

sendo possiacutevel para ele realizar as primeiras observaccedilotildees no claro e no escuro no dia e

na noite ateacute encarar o proacuteprio sol em toda a sua luminosidade e grandiosidade Este grau

de adaptaccedilatildeo parece ser o mais adequado para o iniacutecio da atividade intelectual uma vez

que jaacute se eacute capaz de observar em diferentes circunstacircncias e contemplar a proacutepria fonte

de luz Ao inferir (ζπιινγίδνκαη) sobre a causa (αἴηηνο) e sobre a ordenaccedilatildeo

(ἐπηηξνπεύσ) do mundo a partir da contemplaccedilatildeo do sol concluindo ser ele a origem

dos fenocircmenos a alegoria descreve um trabalho do pensar mostrando o que

provavelmente constitui seu exerciacutecio nos primeiros graus do niacutevel inteligiacutevel visto que

causa e princiacutepio satildeo questotildees presentes em uma investigaccedilatildeo racionalista como

mostrou a analogia do sol e da linha

Natildeo se deve perder de vista o objetivo moral e poliacutetico da argumentaccedilatildeo Ao

oferecer um relato das mudanccedilas e das aquisiccedilotildees cognitivas nesta experiecircncia

gnosioloacutegica a alegoria propotildee o fundamento epistemoloacutegico da poliacutetica naquilo que a

ciecircncia pode orientar e portanto intervir a partir de um modelo ideal e de um meacutetodo

adequado de educaccedilatildeo De maneira simeacutetrica o pedagogo e o governante partilham da

mesma funccedilatildeo respectivamente orientar a alma e conduzir a cidade sendo pertinente

portanto uma investigaccedilatildeo acerca do que deve ser mobilizado e dos meios adequados

para que a governabilidade de fato se realize O que eacute posto em questatildeo natildeo eacute outra

coisa que a alma e o que envolve a racionalidade Na condiccedilatildeo superior ao ter adquirido

o conhecimento da realidade portanto o liberto avalia o seu percurso e a sua condiccedilatildeo

anterior considerando depois disso os benefiacutecios de ter se lanccedilado a tal experiecircncia

(Rep 516e1)

110

Esse constitui um dos efeitos da inteligecircncia dito dessa vez nos termos da inteira

conversatildeo da alma agrave ideia do bem operada pelo pensamento no seu movimento de

superaccedilatildeo da multiplicidade sensiacutevel para a unidade inteligiacutevel A ascensatildeo ao

conhecimento estaacute completa uma vez estabelecido o viacutenculo com o domiacutenio inteligiacutevel

sendo a recompensa desse percurso a visatildeo do niacutevel mais alto (ζέαλ ηῶλ ἄλσ ηὴλ εἰο ηὸλ

λνεηὸλ ηόπνλ Rep 517b 4-5) e portanto o conhecimento da ideia do bem Conhecer a

ideia do bem vale assinalar eacute dita como as conclusotildees as quais forccedilosamente se chega

acerca de sua funccedilatildeo como causa do que eacute belo correto verdadeiro e inteligiacutevel66

Tal

conhecimento consiste na base para a accedilatildeo quer no domiacutenio da vida puacuteblica quer no

domiacutenio da vida privada Mais uma vez a apreensatildeo da ideia constitui o ponto alto da

inteligecircncia e o conhecimento dela mostra o que eacute fundamental para a boa accedilatildeo

(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) ou seja para a moral e para a poliacutetica Vecirc-se destacado aqui o

caraacuteter ascendente da inteligecircncia antes dado na superaccedilatildeo das hipoacuteteses rumo agrave ideia

do bem Este certamente constitui um dos traccedilos importantes que compotildeem a distinccedilatildeo

deste modo do pensamento e justifica a sua condiccedilatildeo de excelecircncia

44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ

A παηδεία mostra o pensamento em dois aspectos como a capacidade de

cogniccedilatildeo e como atividade do aprendizado (ηὴλ ἐλνῦζαλ ἑθάζηνπ δύλακηλ ἐλ ηῆ ςπρῆ

θαὶ ηὸ ὄξγαλνλ ᾧ θαηακαλζάλεη ἕθαζηνο Rep 518c) Dessa vez a argumentaccedilatildeo vai se

referir agrave preparaccedilatildeo necessaacuteria que antecede agrave apreensatildeo das ideias ou seja mostra a

conduccedilatildeo da alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel que constitui o aprendizado O movimento

induzido pelo pedagogo consiste em voltar (ζηξέθσ πεξηάγσ Rep 518c79) a alma

para a contemplaccedilatildeo do ser e da sua inteligibilidade tal como se viu na alegoria o que

66 Rep 517b7-c4rdquoEm todo o caso eis o que penso No mundo cognosciacutevel vem por uacuteltimo a ideia do

bem que se deixa ver com dificuldade mas se eacute vista impotildeem-se a conclusatildeo de que para todos eacute a

causa de tudo quanto eacute reto e belo e que no mundo visiacutevel eacute ela quem gera a luz e o senhor da luz e no

mundo inteligiacutevel eacute ela mesma que como senhora propicia verdade e inteligecircncia devendo tecirc-la diante

dos olhos quem quiser agir com sabedoria(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) na vida privada e puacuteblicardquo

111

exige um treinamento de modo a deixaacute-la apta para o conhecimento (Rep 518c8-d1) A

educaccedilatildeo seraacute dada como a arte de mover a alma fazendo com que ela mude de direccedilatildeo

(κεηαζηξέθσ) e contemple o bem desviando-a do que se refere ao devir

ldquo- Pois bem disse eu Pode ser que haja uma arte a arte do

desvio isto eacute de como da maneira mais raacutepida e eficiente essa

pessoa mudaria de direccedilatildeo (Τνύηνπ ηνίλπλ ἦλ δ ἐγώ αὐηνῦ ηέρλε ἂλ

εἴε ηο πεξηαγσγο ηίλα ηξόπνλ ὡο ῥᾷζηά ηε θαὶ ἀλπζηκώηαηα

κεηαζηξαθήζεηαη) Natildeo seria poreacutem para criar dentro dela a visatildeo

porque jaacute a tem mas como natildeo a manteacutem na direccedilatildeo correta e natildeo

olha para onde deve para proporcionar-lhe os meios necessaacuterios

para isso

- Eacute provaacutevel que seja assim disse

- Pois bem As outras virtudes as chamadas virtudes da alma

podem muito bem ser algo muito proacuteximo das do corpo (na realidade

natildeo existindo previamente podem ser criadas mais tarde por meio de

haacutebitos e exerciacutecios (ηῷ ὄληη γὰξ νὐθ ἐλνῦζαη πξόηεξνλ ὕζηεξνλ

ἐκπνηεῖζζαη ἔζεζη θαὶ ἀζθήζεζηλ)) a virtude do pensar poreacutem ao

que parece por ser proacutepria de algo mais divino jamais perde sua

forccedila (ἡ δὲ ηνῦ θξνλζαη παληὸο κᾶιινλ ζεηνηέξνπ ηηλὸο ηπγράλεη ὡο

ἔνηθελ νὖζα ὃ ηὴλ κὲλ δύλακηλ νὐδέπνηε ἀπόιιπζηλ) De acordo com

a direccedilatildeo que lhe eacute imposta (ὑπὸ δὲ ηο πεξηαγσγο) vem a ser uacutetil e

proveitosa ou inuacutetil e nociva ()rdquo (Rep 518d2-519a1)

Um dos importantes aspectos do pensamento que ganha ecircnfase na descriccedilatildeo da

educaccedilatildeo diz respeito agrave possibilidade de exerciacutecio e orientaccedilatildeo da capacidade cognitiva

Ao verificar no argumento como eacute dada a atividade intelectual e por quais meios eacute

possiacutevel mobilizaacute-la observa-se que nesse contexto se tem em vista o pensar ao modo

do exerciacutecio por meio do qual a alma se volta para os inteligiacuteveis a partir daquilo que

ela proacutepria dispotildee O desenrolar da capacidade e das atividades intelectuais da alma as

quais tinha como guia um meacutetodo para as suas operaccedilotildees como se viu na analogia da

linha agora tem seu desenvolvimento a partir do estiacutemulo dado pela arte de orientar do

pedagogo Do mesmo modo como caracteriacutestica indestrutiacutevel da alma o pensar no seu

modo excelente (θξόλεζηο)67

resulta da boa orientaccedilatildeo que lhe eacute dada O aprendizado

por sua vez consiste neste movimento de mudar de direccedilatildeo e manter-se tendo em mira o

inteligiacutevel tal como orienta o pedagogo para que por si mesmo adquira o

conhecimento

67 Φξόλεζηο como capacidade inteligente da alma que existe antes do nascimento e apoacutes a morte do

corpo tem a sua ocorrecircncia no Feacutedon na Teoria da Reminiscecircncia e no argumento final que constitui a

prova da imortalidade como seraacute analisado em detalhe mais tarde

112

Cabe notar que natildeo parece se tratar apenas da atividade do conhecimento ou da

capacidade de cogniccedilatildeo mas sobretudo da potencialidade de voltar-se para o bem As

qualidades que se pode adquirir com o exerciacutecio do pensar se distinguem de um tipo de

virtude que os exerciacutecios fiacutesicos e o haacutebito podem conferir ao corpo Dito deste modo

o treino para o exerciacutecio intelectual em contraste com os exerciacutecios fiacutesicos aponta mais

uma vez o pensamento como a faculdade cuja potencialidade deve ser desenvolvida e

orientada para aquisiccedilatildeo das virtudes que interessam ao filoacutesofo governante

Note-se todavia que ao mesmo tempo em que se tem uma importante afirmaccedilatildeo

acerca do pensar como uma atividade virtuosa ou que demonstra virtude da parte de

quem a realiza parece curioso o dado de que isto depende de uma orientaccedilatildeo que natildeo

seja dada pela sua relaccedilatildeo com a ideia do bem inteligiacutevel diretamente O conhecimento

que ilumina as orientaccedilotildees necessaacuterias para o bom governo natildeo seria possiacutevel sem esse

contato com a ideia do bem Entretanto a figura do pedagogo parece realizar a

mediaccedilatildeo entre os inteligiacuteveis e aquele que estaacute em processo de desenvolvimento

intelectual A intenccedilatildeo pedagoacutegica do argumento tem em vista oferecer um modelo de

educaccedilatildeo e para isso precisa sugerir os meios para mobilizar a alma e indicar o que de

fato a potildee em movimento rumo ao conhecimento Natildeo haacute motivos para supor dessa

forma que uma submissatildeo agrave ideia do bem se daria diretamente como parece ocorrer

com o dialeacutetico dispensando um processo para tal O processo nesse caso eacute orientado

pelo pedagogo e o pensar aqui eacute exibido em suas potencialidades para a aquisiccedilatildeo das

virtudes e em seu desenvolvimento como oacutergatildeo a ser treinado para a cogniccedilatildeo Natildeo se

trata portanto de impor ou transmitir um conteuacutedo considerado cientiacutefico ldquo() a

educaccedilatildeo natildeo eacute o que alguns profissionais que satildeo dizem que ela eacute Natildeo havendo

ciecircncia na alma dizem eles laacute a colocam tal qual colocassem visatildeo em olhos cegosrdquo

(Rep 518d9-c2) mas de dispor daquela que parece ser a caracteriacutestica mais importante

da alma e que deve ser atingida por aquele que tem aptidatildeo para governar

Por outro lado dito deste modo o pensar eacute sugerido como uma grande

habilidade para agir segundo a orientaccedilatildeo que lhe for imposta e de discernir sobre a

alma que estaacute para receber orientaccedilatildeo o que pode resultar na virtude ou no viacutecio Ao

modo de uma habilidade esta visatildeo eacute aparentemente incompatiacutevel com a ideia da

caracteriacutestica excelente da alma como eacute a θξόλεζηο Uma vez que o viacutecio parece

tambeacutem ser resultado dela permite a indagaccedilatildeo em que sentido tal caracteriacutestica

excelente poderia servir aos viacutecios se ela eacute excelente justamente por poder atingir a ideia

do bem

113

ldquo- Ora disse eu se uma alma cuja natureza (ηὸ ηο ηνηαύηεο

θύζεσο) eacute essa jaacute na infacircncia fosse submetida a uma cirurgia em

que lhe fosse cortado o que para ela eacute como uma chumbada algo que

tem afinidade com o devir (ηὰο ηο γελέζεσο ζπγγελεῖο ὥζπεξ

κνιπβδίδαο) e que sendo por natureza adequada (πξνζθπεῖο) aos

banquetes prazeres e glutonerias tais voltam para baixo o olhar da

alma se poreacutem jaacute liberta disso voltasse seu olhar para as coisas

verdadeiras (ὧλ εἰ ἀπαιιαγὲλ πεξηεζηξέθεην εἰο ηὰ ἀιεζ) mesmo

aquela alma a dos homens teria uma visatildeo muito niacutetida como a que

tem das coisas para as quais estaacute voltada agorardquo (Rep 519a8-b6)

Cabe problematizar a partir desta uacuteltima passagem a relaccedilatildeo entre o pensamento

como capacidade e atividade cognitiva e a natureza a qual compreende as noccedilotildees de

habilidade e aptidatildeo que o texto ora oferece A primeira questatildeo que se coloca diz

respeito agrave natureza racional da alma ou seja em que sentido o racionalismo tal como

foi analisado ateacute entatildeo estaacute de acordo com a noccedilatildeo de natureza que determina e

classifica a posiccedilatildeo dos cidadatildeos na cidade Antes de mais nada deve-se notar que a

uacuteltima passagem sugere que a educaccedilatildeo eacute capaz de corrigir a natureza Disso decorre

outra importante e inevitaacutevel questatildeo todos poderiam ser filoacutesofos a partir de uma

educaccedilatildeo adequada A tentadora resposta negativa para essa uacuteltima questatildeo viraacute mais

adiante e mostraraacute justamente como procede esta correccedilatildeo De todo modo o limite entre

o que se pode aperfeiccediloar com exerciacutecio e as potencialidades que se tem naturalmente se

encontram nesse contexto da παηδεία e do θαηακαλζάλσ o qual natildeo oferece maiores

elucidaccedilotildees acerca do assunto antes do texto sugerir um procedimento pedagoacutegico O

que eacute posto interessa observar eacute o caraacuteter racional da alma como gecircnero ou seja

distinto do corpo e como o que se refere ao indiviacuteduo o qual se divide em dois tipos os

que estatildeo voltados para a sua parte inferior e os que tecircm em vista a sua parte superior

Observe-se que ainda natildeo estaacute em questatildeo para a educaccedilatildeo somente a natureza do futuro

filoacutesofo o que se daraacute a seguir mas a partir do que como e com que finalidade a

educaccedilatildeo deve orientar a alma Tal como eacute sugerida a possibilidade de orientaccedilatildeo da

alma parece ter em vista os tipos distintos aqui resumidos nesses dois uacuteltimos

perspectiva bastante conveniente com as pretensotildees de um governo que pretende

organizar de modo harmocircnico as vaacuterias partes da cidade

Dado que o diaacutelogo se refere a naturezas diferentes vale lembrar em que sentido

o texto apresenta tal noccedilatildeo e verificar em que medida se pode compreender o

pensamento como capacidade e atividade da alma De acordo que cada cidadatildeo deve

114

exercer uma funccedilatildeo compatiacutevel com a sua natureza (Rep 453b) e de que existem

distinccedilotildees entre elas a exemplo da diferenccedila entre os homens e as mulheres (Rep

453e) Soacutecrates e Glaacuteucon se datildeo conta da importacircncia de averiguar a espeacutecie das

naturezas que se mostram distintas ou iguais Depreendida ateacute entatildeo a partir das

funccedilotildees a investigaccedilatildeo passa a abordaacute-la da perspectiva inversa a saber da natureza

em seu gecircnero e espeacutecie para a funccedilatildeo Dito de outro modo pretende-se verificar o tipo

de natureza como o fator determinante para atribuir uma funccedilatildeo (Rep 454c-d) O

primeiro ponto que se deve ter em vista se refere ao aspecto que se propotildee analisar a

natureza Parece muito mais plausiacutevel e conveniente aos assuntos da cidade observar a

natureza segundo as caracteriacutesticas que apresenta determinado indiviacuteduo Assim natildeo se

trata de considerar a natureza segundo o gecircnero feminino ou masculino mas considerar

individualmente o que se mostra natural- haacute mulheres que satildeo dotadas para a muacutesica ou

tem amor pela sabedoria mas outras natildeo (Rep 455e-456a) A natureza nesses termos eacute

dada como uma aptidatildeo que manifestaraacute ao mesmo tempo as suas afinidades (Rep

456b) e que deve ser desenvolvida pela educaccedilatildeo (Rep 456d-e) Ao constituir o

elemento individual e intriacutenseco que determina as funccedilotildees dos cidadatildeos a natureza tal

como eacute sugerida contrapotildee-se ao haacutebito fundamento ordinaacuterio para o estabelecimento

da ordem na cidade (Rep 456c) Dado que se persegue o conjunto de aptidotildees

adequadas para determinadas atividades o criteacuterio de excelecircncia para desenvolver os

indiviacuteduos e para harmonizar a cidade (Rep 456e-457a) leva em consideraccedilatildeo ao

mesmo tempo eleger os instrumentos e os meacutetodos convenientes para o

desenvolvimento da aptidatildeo ao ponto da excelecircncia sendo conveniente assim propor

uma educaccedilatildeo adequada para cada tipo de natureza

A excelecircncia nesse sentido refere-se ao desenvolvimento maacuteximo da

capacidade que se tem naturalmente No que se refere agraves virtudes a θξόλεζηο parece ser

a capacidade eleita para tal o que permite presumir que aqueles que naturalmente a

possuem podem desenvolvecirc-la a ponto de se tornar um homem virtuoso e ser ela

portanto uacutetil e proveitosa Por outro lado aqueles que a possuem mas natildeo a

desenvolvem podem adquirir viacutecios e ser tatildeo decaiacutedos quanto aqueles que naturalmente

natildeo a tecircm como parece ser o caso daqueles que satildeo considerados saacutebios mas na

verdade satildeo maus (πνλεξόο) Assim cabe perguntar a habilidade que possuem de

discernir e incutir o viacutecio natildeo eacute sinal da inteligecircncia

115

ldquo () Seraacute que a respeito dos que satildeo chamados maus mas

saacutebios ainda natildeo notaste como eacute penetrante o olhar da almazinha

deles como ela distingue nitidamente os objetos para os quais estaacute

voltada e que porque sua visatildeo natildeo eacute ruim ela eacute obrigada a servir o

viacutecio de forma que quanto mais penetrante for seu olhar tanto mais

danos ela produz ndash (ὡο δξηκὺ κὲλ βιέπεη ηὸ ςπράξηνλ θαὶ ὀμέσο δηνξᾷ

ηαῦηα ἐθ ἃ ηέηξαπηαη ὡο νὐ θαύιελ ἔρνλ ηὴλ ὄςηλ θαθίᾳ δ

ἠλαγθαζκέλνλ ὑπεξεηεῖλ ὥζηε ὅζῳ ἂλ ὀμύηεξνλ βιέπῃ ηνζνύηῳ

πιείσ θαθὰ ἐξγαδόκελνλ) (Rep 519a1-6)

Note-se que os falsos saacutebios parecem ser donos de uma potencialidade jaacute que

demonstram ter discernimento e certa perspicaacutecia entretanto mal orientados produzem

danos (θαθὰ) e prestam um serviccedilo nocivo para a cidade A capacidade que possuem a

qual lhe confere discernimento e agudez natildeo parece constituir a θξόλεζηο dado que a

consequecircncia do desenvolvimento natildeo satildeo as virtudes Ao que parece ateacute esses a

educaccedilatildeo seria capaz de corrigir se fossem orientados desde a infacircncia a desenvolver o

que naturalmente possuem de melhor Com a boa educaccedilatildeo as virtudes naturais a cada

um parecem surgir como resultado o que pressupotildee o desenvolvimento de uma

habilidade nos termos de uma aptidatildeo Bem educado cada um estaacute apto a cumprir a

funccedilatildeo que naturalmente lhe cabe desempenhando bem desse modo o seu papel na

cidade A uacuteltima passagem contrapotildee a figura do filoacutesofo e do natildeo-filoacutesofo na figura do

pedagogo e do falso saacutebio para marcar as distinccedilotildees e as consequecircncias do tipo de

conduccedilatildeo e desenvolvimento que se propotildee em contraste com uma ordinaacuteria concepccedilatildeo

de saber e de governo Do mesmo modo distingue o que pode ser considerado

maioridade excelecircncia de uma grande habilidade nem sempre desenvolvida para a

direccedilatildeo que deveria

Assim no que diz respeito ao governante da cidade haacute a exigecircncia do

conhecimento e portanto da frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel pois a verdade e as virtudes

satildeo conhecidas e adquiridas como jaacute visto nesta experiecircncia intelectual que somente o

filoacutesofo pode empreender (Rep 519b7-c1) Para os que natildeo possuem natureza filosoacutefica

natildeo satildeo possiacuteveis as mais altas aquisiccedilotildees que a filosofia oferece com o seu alto grau de

desenvolvimento intelectual Mesmo bem treinados pelo pedagogo os naturalmente

natildeo-filoacutesofos natildeo ascenderiam ao conhecimento e portanto natildeo poderiam governar O

filoacutesofo por apresentar a aptidatildeo para o conhecimento tem por natureza aptidatildeo para o

governo No entanto apesar da ascensatildeo do filoacutesofo a potencialidade de sua natureza

filosoacutefica parece natildeo estar plenamente desenvolvida se natildeo houver o movimento

descendente ou seja se natildeo houver uma atividade que varie da frequentaccedilatildeo do

116

domiacutenio inteligiacutevel para a obscuridade do domiacutenio sensiacutevel a qual analogamente se

refere agrave praacutetica da educaccedilatildeo e do governo A praacutetica de governar constitui uma

exigecircncia da funccedilatildeo que naturalmente deve desempenhar por um lado e o que parece

ser uma inescapaacutevel consequecircncia da inteligibilidade adquirida com a aquisiccedilatildeo das

ideias por outro Em outras palavras tanto a natureza filosoacutefica quanto os ditames

dados pelo conhecimento determinam que o filoacutesofo desccedila ao domiacutenio aonde deve

conduzir a cidade e os educandos na direccedilatildeo do bem

ldquo- A tarefa que cabe a noacutes fundadores que somos disse eu eacute

obrigar que as melhores naturezas cheguem ao aprendizado (ηάο ηε

βειηίζηαο θύζεηο ἀλαγθάζαη ἀθηθέζζαη πξὸο ηὸ κάζεκα) que no que

falaacutevamos haacute pouco daacutevamos como o melhor de todos isto eacute ver o

bem e fazer aquela caminhada para o alto e depois que a fizerem e jaacute

tiverem contemplado suficientemente o bem natildeo devemos permitir-

lhes o que hoje permitimos

- O quecirc

- Que permaneccedilam laacute disse eu e natildeo queiram descer outra vez

para junto daqueles prisioneiros nem partilhar com eles das labutas

e das honras sejam elas de pouco ou muito valor (εἴηε θαπιόηεξαη

εἴηε ζπνπδαηόηεξαη)rdquo (Rep 519c7-d8)

Natildeo parece haver exagero em compreender que o movimento ascendente e

descendente do percurso intelectual do filoacutesofo tal como eacute dado nessa uacuteltima passagem

resgata o movimento da λόεζηϛ como mostrou o exemplo da linha dividida Nas duas

narrativas tanto na linha quanto agora na educaccedilatildeo de posse do conhecimento apoacutes a

ascese o filoacutesofo deve voltar agraves etapas anteriores agrave condiccedilatildeo anterior no caso para

efetivamente levar a termo a sua atividade inteligente Esta parece ser a face praacutetica do

conhecimento cuja base eacute em uacuteltima circunstacircncia a relaccedilatildeo que se estabelece com o

inteligiacutevel pelo pensamento Tal como se viu na anaacutelise acerca da λόεζηϛ a benignidade

do bem conhecida em tal relaccedilatildeo impotildee-se para a alma como modelo atraveacutes do

meacutetodo dialeacutetico O exerciacutecio de pensar segundo a dialeacutetica potildee a alma em contato com

a ideia do bem que uma vez apreendida serviraacute de paracircmetro para as accedilotildees Nesse

sentido a orientaccedilatildeo e a conduccedilatildeo dada por esta arte (ηέρλε ηο πεξηαγσγο) mostra a

legitimidade do conhecimento ao modo da filosofia para a conduccedilatildeo dos cidadatildeos que

se efetiva nessa partilha das coisas valorosas adquiridas com a ascese

Ao mesmo tempo em que a alta cogniccedilatildeo fornece o conhecimento acerca da

ideia do bem como fundamento da justiccedila e das virtudes a realizaccedilatildeo do bom governo

o qual pretende harmonizar a cidade a partir do bem estar (εὖ πξάμεη Rep 519e2) em

117

todas as partes exige esse segundo movimento A lei da cidade como deve ser baseia-

se nesse princiacutepio de harmonia o qual somente o governante filoacutesofo com a

compreensatildeo do verdadeiro princiacutepio pode estabelecer pela ligaccedilatildeo (ηὸλ ζύλδεζκνλ

Rep 520a4) entre as partes assim a cumprindo efetivamente (Rep 520a) O

conhecimento obtido na contemplaccedilatildeo acerca da verdade das coisas belas boas e justas

faz com que o filoacutesofo tenha o discernimento necessaacuterio acerca das imagens sendo

possiacutevel para ele voltar ao domiacutenio das sombras sem riscos O filoacutesofo estaacute preparado

para ordenar a cidade para comandar os cidadatildeos segundo o que dita a razatildeo

45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel

O completo trabalho que o pensamento pode realizar e consequentemente as

transformaccedilotildees morais que podem ocorrer na alma devido o exerciacutecio intelectual de

ascensatildeo ao inteligiacutevel podem ser dadas somente pelo treino da educaccedilatildeo Como se vecirc a

alegoria da caverna e o argumento da παηδεία e do θαηακαλζάλσ descrevem o exerciacutecio

intelectual da filosofia como o percurso da experiecircncia do conhecimento e oferecem

para isso a figura do filoacutesofo como o modelo ideal desse desenvolvimento que a alma

experimenta a partir desta arte - ldquo- Aqui natildeo se trata de ver de que lado cai um caco de

ceracircmica mas de fazer que uma alma decirc uma volta deixando um dia carregado de

trevas para dirigir-se ateacute o verdadeiro dia isto eacute realizar uma verdadeira ascensatildeo ateacute

o ser Isso afirmamos eacute a verdadeira filosofiardquo (Rep 521c6-9) Como meio de

organizar a cidade a paideia deve mobilizar as diferentes classes de modo a se

submeterem ao governo ideal do filoacutesofo Faz sentido assim apresentar um quadro no

qual a alma estaacute sob coaccedilatildeo No caso da alma filosoacutefica interessa mostrar como se daacute

sua submissatildeo ao bem Desse modo para que o projeto de harmonizaccedilatildeo da polis se

cumpra eacute necessaacuterio averiguar os meios que na educaccedilatildeo ajudam nesse movimento As

orientaccedilotildees e aprendizados aplicados no treinamento do futuro governante devem servir

para pocircr a alma por meio da dialeacutetica obediente ao que oferece a razatildeo o ser a

verdade a ideia do bem

118

Ao especificar assim acerca das disciplinas que promovem o movimento da

alma em direccedilatildeo ao ser - ηνῦ ὄληνο νὖζαλ ἐπάλνδνλ- movimento que constitui a

ascensatildeo intelectual da filosofia tem-se o que parece consistir em uma segunda causa

para a atividade de pensar aleacutem da filiaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel O treino intelectual

para percorrer o caminho entre o devir e o ser (Rep 521d1-4) que algumas artes como a

aritmeacutetica possibilitam (Rep 522c) mostram uma via para a intelecccedilatildeo que permite a

atuaccedilatildeo do pedagogo a inquietaccedilatildeo que a contrariedade entre as percepccedilotildees do sensiacutevel

e a visatildeo do inteligiacutevel causam na alma Tal contrariedade como a que encontra o

receacutem-saiacutedo da caverna ao se deparar com os verdadeiros objetos pode consistir em um

estiacutemulo para o pensamento de modo a fazecirc-lo buscar a verdade Desse modo a

disciplina que parece tocar nessa questatildeo a contradiccedilatildeo entre as aparecircncias em

contraponto ao inteligiacutevel eacute a matemaacutetica Natildeo somente por serem o nuacutemero e o caacutelculo

presentes nas outras artes raciociacutenios e ciecircncias mas principalmente por colocarem em

questatildeo de maneira bastante uacutetil para o filoacutesofo a contradiccedilatildeo entre as percepccedilotildees e

assim a contraposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

Assim o aspecto a ser notado no argumento do Livro VII que toca sobretudo a

aritmeacutetica consiste na utilidade pedagoacutegica dessas disciplinas Natildeo somente o proveito

que se pode ter no que se refere ao treinamento militar ou seja o que se pode aproveitar

delas para fins estrateacutegicos de guerra mas sobretudo o treinamento que se pode dar ao

aprendiz atraveacutes do exerciacutecio intelectual envolvido na operaccedilatildeo com os nuacutemeros

ldquo- Pode bem ser que ele seja por natureza um dos aprendizados

que conduzem a inteligecircncia na direccedilatildeo do que buscamos (Κηλδπλεύεη

ηῶλ πξὸο ηὴλ λόεζηλ ἀγόλησλ θύζεη εἶλαη) mas ningueacutem o usa

corretamente mesmo que ele seja o que sem duacutevida eacute capaz de

arrastar-nos ateacute o ser (ρξζζαη δ νὐδεὶο αὐηῷ ὀξζῶο ἑιθηηθῷ ὄληη

παληάπαζη πξὸο νὐζίαλ) (Rep 523a1-3)

Dada a peculiaridade desse κάζεκα ao que parece eacute possiacutevel obter a destreza de

superar as sensaccedilotildees em vista de um exerciacutecio intelectual atraveacutes da aritmeacutetica na

medida em que ela potildee de forma mais objetiva a multiplicidade e a contradiccedilatildeo das

percepccedilotildees sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo agrave unidade Se no argumento da linha dividida o

meacutetodo matemaacutetico era dado para mostrar um objeto de natureza inteligiacutevel mas cujas

caracteriacutesticas implicavam em limitaccedilotildees cognitivas em comparaccedilatildeo agrave ideia do bem e ao

meacutetodo filosoacutefico agora esta mesma caracteriacutestica a saber ter certa ligaccedilatildeo com o

119

sensiacutevel potildee em certa medida a possibilidade da superaccedilatildeo que constitui o trabalho do

intelecto em relaccedilatildeo ao sensiacutevel

A passagem da contradiccedilatildeo sensiacutevel para a determinaccedilatildeo inteligiacutevel como fazem

as matemaacuteticas parece bastante uacutetil para o contexto da pedagogia e revela de fato uma

superaccedilatildeo do intelecto A noccedilatildeo de superaccedilatildeo que acontece com o caacutelculo realizado na

aritmeacutetica por exemplo a passagem da multiplicidade para a unidade tem por essa

razatildeo grande importacircncia para o aprendizado Este dado se mostra relevante na medida

em que situa a oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel apresentada no Livro VI no que se refere a

uma operaccedilatildeo da mente Na analogia da linha dividida as operaccedilotildees envolvidas nos

estados de percepccedilatildeo e de cogniccedilatildeo satildeo distintas e classificadas nos termos de estados

intelectivos da alma em relaccedilatildeo a determinados objetos O que se mostra agora eacute o

princiacutepio que faz a alma inteligir a partir das sensaccedilotildees e qual o tipo de elevaccedilatildeo que a

matemaacutetica enquanto exerciacutecio intelectual pode promover

ldquo- Vou mostrar falei se me concedes atenccedilatildeo que nas sensaccedilotildees

algumas coisas natildeo convidam a inteligecircncia agrave reflexatildeo (ηὰ κὲλ ἐλ ηαῖο

αἰζζήζεζηλ νὐ παξαθαινῦληα ηὴλ λόεζηλ) como se lhes fosse

suficiente o julgamento feito pela sensaccedilatildeo (ὑπὸ ηο αἰζζήζεσο

θξηλόκελα) mas que outras ordenam (δηαθειεύνκαη) que de toda

maneira a inteligecircncia examine como se a sensaccedilatildeo nada produzisse

de vaacutelido

- O que se vecirc de longe disse e o que eacute desenhado com luzes e

sombras Eacute evidente que eacute disso que falas

- Natildeo conseguiste apreender disse eu o que estou dizendo

- De quecirc disse estaacutes falando

- Natildeo incita agrave reflexatildeo disse eu o que natildeo resulta

simultaneamente em sensaccedilotildees opostas (Τὰ κὲλ νὐ παξαθαινῦληα ἦλ

δ ἐγώ ὅζα κὴ ἐθβαίλεη εἰο ἐλαληίαλ αἴζζεζηλ ἅκα) o que poreacutem

delas resulta eu considero que incita agrave reflexatildeo porque a sensaccedilatildeo

natildeo torna uma coisa mais evidente que seu oposto quer a percebemos

de longe ou de perto Com este exemplo compreenderaacutes melhor o que

estou dizendo ()rdquo (Rep 523b9-c4)

Diante deste novo caraacuteter conferido agrave aritmeacutetica parece vaacutelido questionar se

estaria neste argumento a resposta para uma questatildeo pertinente em relaccedilatildeo agraves divisotildees

da linha o que faz a alma realizar a passagem da segunda parte da primeira divisatildeo a

parte que conteacutem animais e objetos fiacutesicos do reino sensiacutevel para a primeira parte da

segunda divisatildeo a qual abarca os seres matemaacuteticos no domiacutenio Inteligiacutevel Ou

resumidamente qual o elemento e de que modo se daacute a passagem do sensiacutevel para o

inteligiacutevel Para tentar responder essa pergunta e para compreender a operaccedilatildeo

120

envolvida nessa superaccedilatildeo deve-se antes reparar que o argumento sugere um trabalho

mental nos termos da percepccedilatildeo que antecede a intelecccedilatildeo a operaccedilatildeo com seres

inteligiacuteveis As operaccedilotildees em torno da αἴζζεζηο satildeo dadas de dois modos ὑπὸ ηο

αἰζζήζεσο θξηλόκελα um juiacutezo sob efeito das sensaccedilotildees considerando-as suficientes e

ηὰ δὲ παληάπαζη δηαθειεπόκελα ἐθείλελ ἐπηζθέςαζζαη um exame feito a partir do

intelecto natildeo baseado nos dados sensiacuteveis No primeiro caso as sensaccedilotildees satildeo tomadas

como os uacutenicos elementos para se realizar tal atividade dita ao modo de um

discernimento (θξίλσ) consideradas portanto suficientes No segundo caso

consideradas deficientes (νὐδὲλ ὑγηὲο) as sensaccedilotildees tecircm exposta a caracteriacutestica que as

invalidam como via para o conhecimento mas que ao mesmo tempo as revelam um

estiacutemulo para a atividade de pensar no seu modo superior a λόεζηο a saber a

contrariedade que se daacute simultaneamente devido a multiplicidade dos dados sensiacuteveis

As muacuteltiplas sensaccedilotildees que assaltam a alma ao mesmo tempo especificamente

as que se apresentam contraacuterias entre si provocam o pensar na medida em que a

obrigam a realizar uma distinccedilatildeo de modo a determinaacute-lo nos termos inteligiacuteveis o que

pode ser feito tanto pela geometria quanto pela filosofia Formulado nesses termos as

percepccedilotildees do sensiacutevel como estiacutemulo se assemelham ao que se encontra no Feacutedon

onde o intelecto trabalha para promover o afastamento ente alma e corpo como resposta

da alma agraves perturbaccedilotildees advindas da sensibilidade Nesse contexto a contradiccedilatildeo eacute dada

na relaccedilatildeo alma-corpo sendo o pensamento uma resposta inteligente da alma para ela

O que se vecirc aqui no livro VII entretanto diz respeito agrave mesma contradiccedilatildeo mas agora

reunida na matemaacutetica a qual apela para elementos inteligiacuteveis a fim de dar tratamento

aos objetos do mundo sensiacutevel

Embora em contextos diferentes a contradiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel se mostra um

estiacutemulo tanto para o matemaacutetico que vecirc nisso a oportunidade de tratar o sensiacutevel

quanto para o filoacutesofo que se vecirc instigado a questionaacute-la filosoficamente O argumento

pede desse modo uma anaacutelise disto que propotildee como contrariedade para que se possa

compreender tal estiacutemulo Primeiramente longe de se sugerir a passividade de uma

mera recepccedilatildeo de dados sensoriais o texto mostra que a percepccedilatildeo constitui uma

atividade que parece ocorrer inevitavelmente acerca desses dados recebidos quer ao

modo de um discernimento quer ao de uma inspeccedilatildeo como se viu Tal contrariedade

potildee em perspectiva nesse sentido a excitaccedilatildeo advinda do sensiacutevel para um trabalho

inteligente e faz desse modo reconhecer na αἴζζεζηο um fator para que se decirc a

atividade do pensamento (δηάλνηα e λόεζηο)

121

Cabe verificar a explicaccedilatildeo que o texto oferece acerca da contradiccedilatildeo dos dados

sensiacuteveis como origem deste estiacutemulo com o ldquoexemplo dos dedosrdquo Vale a pena analisar

este argumento e compreender no que consiste essa contradiccedilatildeo seus mecanismos e as

peculiaridades disto que se mostra um estiacutemulo para o processo de cogniccedilatildeo Desse

modo o exemplo utilizado para ilustrar o que se pretende dizer acerca das sensaccedilotildees

mostra primeiro que uma sensaccedilatildeo natildeo provoca a inteligecircncia quando vista

unilateralmente ou dito de outro modo somente sob uma uacutenica caracteriacutestica

ldquo() Aqui estatildeo trecircs dedos o polegar o indicador e o meacutedio

- Eacute bem isso disse

- Pois bem Imagina que deles eu falo como se estivesse sendo

vistos de perto Vamos Observa-me a respeito deles o seguinte

- O quecirc

- Cada um deles tem igualmente a aparecircncia de um dedo e por

aiacute natildeo faz diferenccedila se eacute visto no meio ou como uacuteltimo se branco ou

negro se grosso ou fino e assim quanto a todas qualificaccedilotildees como

essas Eacute que em situaccedilotildees como essas a alma da maioria dos homens

natildeo eacute forccedilada a perguntar agrave inteligecircncia o que eacute um dedo porque a

visatildeo em nenhum momento lhe deu sinal de que um dedo eacute tambeacutem

ao mesmo tempo o oposto de um dedordquo (Rep 523b4-d6)

Uma vez observados os dedos sem levar em consideraccedilatildeo outras caracteriacutesticas

como cor e tamanho o que os diferenciam entre si natildeo apresentam nenhuma

contrariedade e por isso natildeo evocam em nada a inteligecircncia A visatildeo de um dedo

parece ser suficiente para informar que o objeto visto consiste em um dedo se se

pretende reconhecer no que consiste um dedo Diferentemente se considerados em

todas as caracteriacutesticas que se pode atribuir a um dedo como cor tamanho espessura

tem-se naquilo que eacute reconhecido como dedo caracteriacutesticas distintas e contraacuterias

pondo a alma em reflexatildeo sobre as percepccedilotildees dessas caracteriacutesticas O que eacute visto e

dito como um dedo pode ser grande e pequeno afinal o dedo meacutedio e o polegar satildeo

diferentes um do outro e ambos ditos ldquodedordquo Em outros termos reconhece-se no

mesmo sujeito o dedo atributos contraacuterios como grande e pequeno Observe-se que

diferente de compreender as sensaccedilotildees como via direta para a definiccedilatildeo de algo de

modo que sentir seja equivalente a conhecer elas satildeo dadas naquilo que proporcionam agrave

alma isto eacute nada mais que a percepccedilatildeo de dados sensoriais Opostas as sensaccedilotildees

causam algo que pode ser proveitoso se usado corretamente o ἀπνξεῖλ a dificuldade de

ter no mesmo sujeito em questatildeo percepccedilotildees antagocircnicas

122

A dificuldade o impasse no qual a alma se vecirc ao se dar conta de atributos

opostos eacute o que a faz recorrer ao intelecto Eacute nestes termos que se pode compreender a

incitaccedilatildeo (παξαθιεηηθόο ἐγεξηηθόο Rep 523e1) da alma ao pensamento a partir das

sensaccedilotildees a procura por meio da razatildeo de uma resoluccedilatildeo para tal dificuldade de

origem na percepccedilatildeo sensiacutevel

ldquo- Entatildeo disse eu em tais situaccedilotildees a alma natildeo se sentiraacute

necessariamente diante de um impasse (Οὐθνῦλ ἦλ δ ἐγώ ἀλαγθαῖνλ

ἔλ γε ηνῖο ηνηνύηνηο αὖ ηὴλ ςπρὴλ ἀπνξεῖλ) O que afinal eacute a dureza

que essa sensaccedilatildeo indica se da mesma coisa ela diz que tambeacutem eacute

mole E o que eacute a sensaccedilatildeo de leveza e de peso se o pesado eacute leve e

o leve eacute o pesado - E satildeo essas interpretaccedilotildees que desconcertam a

alma e exigem exame (Καὶ γάξ ἔθε αὗηαί γε ἄηνπνη ηῆ ςπρῆ αἱ

ἑξκελεῖαη θαὶ ἐπηζθέςεσο δεόκελαη) (Rep 524a6-b2)

Uma vez discorrido acerca de como ocorre e no que consiste o estiacutemulo das

percepccedilotildees que colaboram com o pensar vale examinar com minuacutecias a caracteriacutestica

dos nuacutemeros e do caacutelculo capaz de pocircr e de promover a superaccedilatildeo desse antagonismo

do sensiacutevel A saiacuteda do impasse posto pela sensaccedilatildeo estaacute nas operaccedilotildees intelectivas que

iratildeo investigar o que eacute a unidade em vista destas vaacuterias percepccedilotildees Assim a alma busca

o que eacute o dedo o pesado ou qualquer outra percepccedilatildeo em questatildeo como jaacute dito mas

nos termos que a matemaacutetica oferece como uma unidade de modo a examinar

(ἐπηζθνπεῖλ Rep 524b4) com o caacutelculo e com a inteligecircncia (ινγηζκόλ ηε θαὶ λόεζηλ) se

cada dado recebido diz respeito a um ou a dois objetos (Rep 524b5) Um e dois

constituem as referecircncias nas quais a alma se baseia para realizar uma interpretaccedilatildeo

(ἑξκελεία Rep524b1) do que lhe sobreveacutem Ela procede verificando primeiro se o

objeto que vecirc corresponde a um ou a dois isto eacute o que lhe aparece como dois eacute

entendido como dois nos termos de duas caracteriacutesticas distintas o pesado e o leve por

exemplo igualmente o que eacute visto tambeacutem eacute um ou seja uma uacutenica caracteriacutestica vista

individualmente o peso e a leveza Cada sensaccedilatildeo pode ser concebida como uacutenica

como peso e leveza as quais ditas deste modo supotildeem a noccedilatildeo e natildeo mais a sensaccedilatildeo

de pesado e de leve Assim podem ser concebidas duas quando entendidas como

sensaccedilotildees e uma quando entendidas nos termos de uma noccedilatildeo de natureza inteligiacutevel

Nesse uacuteltimo as caracteriacutesticas satildeo compreendidas como distintas e separadas

A alma entende nesta operaccedilatildeo que caracteriza o ινγηζκόο a unidade a

duplicidade e a relaccedilatildeo entre os objetos soma divisatildeo e ao fim o que mais interessa ao

123

filoacutesofo a indivisibilidade da unidade tal como seraacute sugerido mais adiante A divisatildeo

que a inteligecircncia opera nos termos da matemaacutetica constitui a divisatildeo (δύν

θερσξηζκέλα) daquilo que nos sentidos eacute apreendido como misturado (ἀρώξηζηά) (Rep

524c) A oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel (ηὸ κὲλ λνεηόλ ηὸ δ ὁξαηὸλ Rep 524c13) ganha

a sua versatildeo nesse argumento ao modo da distinccedilatildeo matemaacutetica isto eacute na dicotomia

confuso - distinto ou junto ndash separado (Rep 524c6-8) Constrangida a apreender as

qualidades separadamente a alma faz a distinccedilatildeo matemaacutetica entre sensiacutevel-inteligiacutevel

ao modo de uma abstraccedilatildeo na qual separa a qualidade percebida em termos inteligiacuteveis

como nuacutemero e relaccedilatildeo Uma vez separadas pelo intelecto qualidades como grandeza e

pequenez podem ser averiguadas individualmente ou conforme os propoacutesitos

filosoacuteficos nelas mesmas (Rep 524c10-11)68

Eacute nesta dicotomia que o nuacutemero se mostra capaz de estimular o exerciacutecio

intelectual do raciociacutenio (ὡο ηὰ κὲλ παξαθιεηηθὰ ηο δηαλνίαο Rep 524d2-3) visto

que potildee a unidade indivisiacutevel e o oposto que sempre a acompanha a multiplicidade (εἰ δ

ἀεί ηη αὐηῷ ἅκα ὁξᾶηαη ἐλαληίσκα Rep 524e2) Este constitui um dado importante acerca

dos nuacutemeros uma vez levantada a hipoacutetese da caracteriacutestica ligaccedilatildeo da matemaacutetica com

o sensiacutevel no Livro VI Neste trecho parece claro que tal ligaccedilatildeo se daacute nessa dicotomia

proacutepria do nuacutemero a qual possibilita tanto uma investigaccedilatildeo em vista da essecircncia

quanto uma ordenaccedilatildeo no que se refere agrave esfera do sensiacutevel Em outras palavras ao

mesmo tempo em que a simultaneidade das percepccedilotildees obriga a alma a buscar a unidade

para distinguir e definir um objeto visto tem-se no nuacutemero uma versatildeo inteligiacutevel para

compreender a pluralidade que tambeacutem caracteriza esse mesmo objeto A matemaacutetica se

mostra assim um modo de inquiriccedilatildeo que colabora com a filosofia ao constituir um

caminho para o estudo do ser Ao mesmo tempo eacute uma disciplina que oferece uma

perspectiva inteligente para o que eacute experienciado69

sendo por essa razatildeo uacutetil tambeacutem

para entender e organizar linhas de batalha como jaacute mostrou o texto (Rep 522e)

68 Trabattoni adverte que o ldquoPortanto natildeo se trata de colher a definiccedilatildeo de cada coisardquo Para o autor o

dinamismo do logos filosoacutefico natildeo tem a intenccedilatildeo de definir o objeto pois uma definiccedilatildeo justamente o

cessaria Assim considera que ldquo() na realidade este verbo [dioriacutezō] para Platatildeo significa muito mais

que definir ldquodistinguir delimitar separarrdquo A ldquodefiniccedilatildeordquo em outras palavras eacute o ato pelo qual certo

objeto eacute delimitado quando eacute individuado atraveacutes de uma especifica atribuiccedilatildeo que o diferencia em meio

agrave confusatildeo de um conjunto de outros objetosrdquo O conhecimento na filosofia natildeo deve ser entendido como

um conhecimento proposicional Trabattoni F 2013 p 169-171

69 Para deixar clara a perspectiva em que o argumento aborda os nuacutemeros os conceitos geomeacutetricos vale

trazer o comentaacuterio de Pierre-Maxime Schuhl sobre o que Platatildeo pretendia extrair dos conhecimentos

matemaacuteticos em oposiccedilatildeo ao prazer esteacutetico que se buscava nas artes especialmente escultura e

arquitetura ldquoApoacutes ter assim falado das belezas geomeacutetricas ndash a preferecircncia que lhes eacute dedicada natildeo haacute

124

Uma vez que trabalham com os nuacutemeros o caacutelculo e a aritmeacutetica estimulam

intelectualmente a alma atraveacutes do estudo da unidade a investigar a essecircncia

conduzindo-a a contemplaccedilatildeo do ser e por consequecircncia agraves qualidades proacuteprias do

inteligiacutevel como a verdade (Rep 524e5-525b1) Nisto consiste a superaccedilatildeo que a

matemaacutetica de fato proporciona a elevaccedilatildeo do sensiacutevel em busca da essecircncia inteligiacutevel

cujo exerciacutecio deste movimento torna haacutebil o guerreiro e o filoacutesofo para a funccedilatildeo que

lhes cabem ndash (εἶλαη γελέζεσο ἐμαλαδύληη Rep 525b5-6) Note-se que o argumento natildeo

sugere uma aquisiccedilatildeo da matemaacutetica anaacuteloga ou equivalente ao que se tem na filosofia

Mesmo que haja tal elevaccedilatildeo no exerciacutecio do raciociacutenio aritmeacutetico natildeo eacute a mesma que

mostraraacute a dialeacutetica visto que natildeo atinge a essecircncia mas a sugere atraveacutes da unidade e

do conhecimento da verdade

Como se viu o questionamento acerca do que eacute o um para o matemaacutetico gira

em torno do objeto que observa tendo em consideraccedilatildeo pode-se presumir a noccedilatildeo de

unidade em relaccedilatildeo agrave sua multiplicidade tendo em vista as relaccedilotildees que manteacutem com

ela soma divisatildeo multiplicaccedilatildeo O tratamento inteligente que pode oferecer ao sensiacutevel

exige ainda assim uma superaccedilatildeo das percepccedilotildees que satildeo postas em termos

aritmeacuteticos mas entretanto o objetivo maior consiste no trabalho com o caacutelculo que os

nuacutemeros possibilitam Natildeo parece haver portanto um questionamento acerca da

inteligibilidade da unidade sua natureza e relaccedilatildeo com o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico como

questionaria o filoacutesofo fazendo com que o matemaacutetico permaneccedila em um grau inferior

de elevaccedilatildeo comparado ao dialeacutetico

ldquo- Essa ciecircncia como diziacuteamos haacute pouco com muita forccedila

conduz a alma para o alto e a obriga a discutir a respeito dos

proacuteprios nuacutemeros sem jamais admitir discussatildeo caso algueacutem lhe

proponha nuacutemeros que tenham corpos visiacuteveis e palpaacuteveis Deves

saber que os peritos nesses assuntos se algueacutem usando a sua razatildeo

tenta dividir a proacutepria unidade fazem caccediloada e natildeo admitem isso

Se poreacutem tu a fazes em pedaccedilos eles a multiplicam para que jamais a

unidade se mostre como natildeo una mas como muitas partiacuteculas (ἀιι

ἐὰλ ζὺ θεξκαηίδῃο αὐηό ἐθεῖλνη πνιιαπιαζηνῦζηλ εὐιαβνύκελνη κή

πνηε θαλῆ ηὸ ἓλ κὴ ἓλ ἀιιὰ πνιιὰ κόξηα)rdquo (Rep 525d5e4)

nada de surpreendente pois elas deixam entrever as Ideias e os nuacutemeros com cujo auxiacutelio o demiurgo

deu sua forma definitiva aos elementos ()rdquo Schuhl P M op cit p 78

125

Nesse sentido o estiacutemulo que a aritmeacutetica daacute agrave λόεζηϛ eacute indireto sendo a

operaccedilatildeo intelectual da δηάλνηα ao modo do ινγηζκόο um degrau de ascensatildeo

inteligiacutevel

Dadas nesta perspectiva as matemaacuteticas explicam a origem da ascensatildeo do

domiacutenio sensiacutevel para o domiacutenio inteligiacutevel que o Livro VI indicou no exemplo da linha

dividida O acreacutescimo fundamental do ldquoargumento dos dedosrdquo para explicar a noccedilatildeo de

ascese vale notar consiste na reaccedilatildeo inteligente ao sensiacutevel que o argumento mostra

com a oposiccedilatildeo uno-muacuteltiplo operada pela aritmeacutetica a qual deixa evidente a ligaccedilatildeo

entre um plano e outro e o salto do ηόπνπ ηὸ ὁξαηνῦ para o ηὸ λνεηνῦ γέλνπο efetuada

pelo pensamento Natildeo se trata de oferecer um parecer e uma classificaccedilatildeo agrave atividade

racional de acordo com as qualificaccedilotildees sensiacutevel-inteligiacutevel como anteriormente mas

mostrar nesta experiecircncia do conhecimento tal como quer mostrar o Livro VII ao

oferecer um modelo de educaccedilatildeo porque e como as disciplinas se mostram

verdadeiramente uacuteteis para despertar e conduzir a alma para uma elevaccedilatildeo desse tipo O

argumento responde de certo modo as indagaccedilotildees acerca dos seres matemaacuteticos e da

sua cogniccedilatildeo sendo indicados o nuacutemero como o objeto proacuteprio da matemaacutetica a

unidade como o elemento inteligiacutevel primordial e o caacutelculo como a operaccedilatildeo racional

especiacutefica para este conhecimento O grau de inteligibilidade dos objetos matemaacuteticos

ganha elucidaccedilatildeo com as explicaccedilotildees sobre a unidade a qual do mesmo modo que o

meacutetodo natildeo tem sua natureza inteligiacutevel posta em questatildeo Em outros termos a

exemplo do que se viu na linha o matemaacutetico natildeo busca o um essencial agrave unidade

ficando restrito agraves operaccedilotildees que pode realizar com ele - diga-se de passagem restriccedilatildeo

bastante parecida com a que se identifica no procedimento demonstrativo Todavia tal

restriccedilatildeo serve tambeacutem para revelar o ensino da matemaacutetica como conhecimento

estrateacutegico na educaccedilatildeo do futuro governante e como atividade racional fundamental

para a elevaccedilatildeo da alma ao niacutevel mais alto de sua capacidade inteligente

V A perspectiva da inteligecircncia

A apreensatildeo do ser e da ideia segundo a λόεζηϛ constitui uma forma de visatildeo

que oferece agrave alma o objeto apreendido em sua integralidade Agrave primeira vista uma

126

afirmaccedilatildeo deste tipo pode induzir a questionar a essecircncia ou a ideia como compostos

cujas partes seriam caracteriacutesticas conhecidas no decorrer do exerciacutecio dialeacutetico Esse

natildeo consiste em um raciociacutenio naife se estiver em vista a noccedilatildeo de θαη ἰδέαλ κίαλ

ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο a ideia uacutenica que exprime a realidade a essecircncia (ldquoὃ

ἔζηηλrdquo ἕθαζηνλ) (Rep 517b) e por isso tais caracteriacutesticas Outra maneira de

compreender consiste em julgar que os atributos conhecidos pelo exerciacutecio do

pensamento no niacutevel matemaacutetico ou mesmo no niacutevel dialeacutetico como a verdade ou a

unidade formam todo o composto que a essecircncia exprime alternativa que o argumento

sobre as matemaacuteticas natildeo autoriza visto que o meacutetodo aritmeacutetico ou geomeacutetrico por

exemplo natildeo pretende conhecer a ideia e sim a unidade os conceitos e as operaccedilotildees

realizaacuteveis nesta arte Isso valeria para a dialeacutetica mas natildeo para as matemaacuteticas A

terceira opccedilatildeo a que parece mais fiel agraves dificuldades de se compreender no que consiste

uma visatildeo total do ser na dialeacutetica deixa somente a essecircncia como o que consituiu o

todo de um objeto sendo o pensamento nos termos da intelecccedilatildeo maacutexima capaz de

apreender o ser e consequentemente algumas caracteriacutesticas ataacutevicas a ele como

parece ser o caso da verdade O sentido de totalidade ou integralidade inspirado pela

declaraccedilatildeo da capacidade do dialeacutetico deve ser tomado ao que parece como o conjunto

de atributos da essecircncia apreendidos com o treino nas disciplinas matemaacuteticas o uno

imutaacutevel e invisiacutevel tal como apresenta o argumento no qual se fala das capacidades

cognitivas do aprendiz da arte dialeacutetica

ldquo- Depois desse periacuteodo disse eu a partir dos vinte anos os que

tiveram preferecircncia na escolha receberatildeo honras maiores que os

outros e as noccedilotildees que nessa etapa da educaccedilatildeo crianccedilas que eram

natildeo receberam sistematicamente deveratildeo ser reunidas para que elas

numa visatildeo de conjunto vejam a afinidade que as ciecircncias tecircm entre

si e tambeacutem a natureza do ser (νἱ πξνθξηζέληεο ηηκάο ηε κείδνπο ηῶλ

ἄιισλ νἴζνληαη ηά ηε ρύδελ καζήκαηα παηζὶλ ἐλ ηῆ παηδείᾳ γελόκελα

ηνύηνηο ζπλαθηένλ εἰο ζύλνςηλ νἰθεηόηεηόο ηε ἀιιήισλ ηῶλ

καζεκάησλ θαὶ ηο ηνῦ ὄληνο θύζεσο)

- Pelo menos falou soacute um aprendizado como esse permaneceraacute

firme naqueles em que vier a ocorrer

- Essa eacute a maior prova disse eu de que uma natureza eacute ou natildeo eacute

apta para a dialeacutetica Quem eacute capaz de visatildeo de conjunto estaacute apto

para a dialeacutetica e quem natildeo eacute capaz natildeo estaacute (Καὶ κεγίζηε γε ἦλ δ

ἐγώ πεῖξα δηαιεθηηθο θύζεσο θαὶ κή ὁ κὲλ γὰξ ζπλνπηηθὸο

δηαιεθηηθόο ὁ δὲ κὴ νὔ)ldquo (Rep 537b8-c7)

A visatildeo que o dialeacutetico possui versa sobre o inteligiacutevel isto eacute sobre a natureza

inteligiacutevel do ser e a relaccedilatildeo de familiaridade entre as disciplinas como dito antes (Rep

127

531d) A inteireza com que se pode tomar o inteligiacutevel envolve tambeacutem deve-se

observar um olhar sobre as ηέρλαη com as quais se exercita O treino do aprendiz

requer ao mesmo tempo um exame acerca dos aprendizados que recebe devendo ver

nesses natildeo somente o que eles tecircm por objeto mas tambeacutem o meacutetodo e os resultados de

cada um Assim tal como mostra o contexto da παηδεία a noccedilatildeo de totalidade de visatildeo

que demonstra ter o dialeacutetico eacute composta pela apreensatildeo da realidade e pelo olhar criacutetico

sobre o procedimento das artes sendo esta a perspectiva tiacutepica do dialeacutetico Tal visatildeo

confere a ele deve-se observar um caraacuteter cientificista dado que aposta nos

procedimentos e nos paracircmetros racionais - o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico o ser e a ideia do

bem - para obter o conhecimento de algo A ἐπηζηήκε sob esse acircngulo consiste na

visatildeo dessa integralidade para a qual o dialeacutetico eacute naturalmente inclinado e que se

constitui consequentemente tambeacutem de um exame sobre as operaccedilotildees racionais

expressas nos diferentes meacutetodos que se dispotildee para atingir os inteligiacuteveis70

Desse modo justifica-se que a destreza que se desenvolve pelo treinamento dado

pela educaccedilatildeo deve ser permanentemente exercitada por via do movimento de subida e

descida dialeacutetica A habilidade em inspecionar o objeto em questatildeo exige a inspeccedilatildeo

sobre os meacutetodos racionais uma autoinspeccedilatildeo para garantir ao final o conhecimento

Da mesma maneira na vida puacuteblica tal inspeccedilatildeo serve para assegurar um modo de vida

no qual se decirc o devido respeito e a obediecircncia ao que de fato se deve conhecer e seguir

a verdade o belo a justiccedila e o bem Sem a clara compreensatildeo do que consiste o

exerciacutecio dialeacutetico os aprendizes correm o risco de confundi-la com a arte eriacutestica ou

retoacuterica deixando reduzirem tais noccedilotildees ao niacutevel das opiniotildees (θαὶ πνιιάθηο θαὶ

πνιιαρῆ ἐιέγρσλ εἰο δόμαλ θαηαβάιῃ Rep 538d9) corrompendo assim o processo de

aprendizado e formaccedilatildeo intelectual e moral do futuro governante (Rep Rep 538d6-

539a1) e solapando a credibilidade na filosofia antes adquirida (Rep 539b9-c3) A

postura inteligente que se exprimiraacute mais tarde no governo depende dessa maneira da

dedicaccedilatildeo contiacutenua agrave filosofia por meio do exerciacutecio racional que garantiraacute o exerciacutecio

70 Gosling entende tal visatildeo como uma percepccedilatildeo intelectual da Forma provocada pelo exerciacutecio

dialeacutetico Este tipo de percepccedilatildeo como denomina oferece o conhecimento nos termos de uma

consciecircncia acerca do que se examina Gosling The Argument of the Philosophers p 120 O autoexame

que o exerciacutecio filosoacutefico propotildee tal como aqui se verifica realiza-se na observaccedilatildeo das accedilotildees segundo o

meacutetodo empregado para conhecer e consequentemente na apreensatildeo dessa Forma que constitui o

conhecimento O comentaacuterio do autor nesse sentido vai ao encontro do que aqui se analisa embora

aponte apenas para o que resulta do exerciacutecio A apreensatildeo da realidade e a autoinspeccedilatildeo que acontecem

na dialeacutetica compotildeem pelo que se vecirc esta ldquoconsciecircnciardquo de que fala Gosling dado que o conhecimento

natildeo seria possiacutevel sem que houvesse a atividade intelectual a partir do meacutetodo correto e adequado

128

do governo a favor da cidade como uma accedilatildeo inevitaacutevel dado que estaacute treinado a

contemplar a ideia do bem e desse modo tecirc-lo como modelo (Rep 540a-b)

A semelhanccedila entre filoacutesofo e cidade dita no final do Livro VII (Rep 541b) se

cumpre na medida em que as accedilotildees tanto intelectuais quanto poliacuteticas tenham como

paracircmetro o mesmo elemento o bem e a ideia do bem e sejam realizadas segundo a

operaccedilatildeo da alma que reconhece esta relaccedilatildeo a inteligecircncia A visatildeo de todo que o

dialeacutetico possui garante a frequentaccedilatildeo de maneira inteligente nos planos poliacutetico eacutetico

e cientiacutefico uma vez que constitui a perspectiva na qual identifica as vias inteligiacuteveis

comuns em todos os campos Como dispotildee da capacidade de reconhecer o elo comum

entre as ciecircncias natildeo seria de todo impossiacutevel reconhecer da mesma forma as relaccedilotildees

de afinidade entre o que observa ainda que seja no plano sensiacutevel no qual se daacute a vida

poliacutetica Nesse sentido natildeo se pode abrir matildeo do movimento racional da inteligecircncia

fundamentalmente ἀλάβαζηο e θαηάβαζηο o qual proporciona o reconhecimento das

ligaccedilotildees inteligiacuteveis entre objetos e campos diferentes e permite ao filoacutesofo governante

o trabalho intelectual de inteligir e realizar o exerciacutecio poliacutetico de governar a cidade

Pode-se supor que sem esta peculiaridade da ζύλνςηο natildeo haveria uma maneira

inteligente com a qual o filoacutesofo pudesse mobilizar as partes da cidade para governaacute-las

A visatildeo do todo caracteriacutestica do dialeacutetico consiste assim na apreensatildeo da essecircncia e

da ideia que se realiza com a intelecccedilatildeo ao modo da λόεζηϛ por via do reconhecimento

das relaccedilotildees e aspectos inteligiacuteveis entre os elementos que se tem em exame71

Cabe ainda um debate sobre a ζύλνςηο Para isso vale ter em mente as

limitaccedilotildees expostas no iniacutecio da investigaccedilatildeo sobre a possibilidade de conhecer o bem

Conveacutem lembrar que o estudo acerca do bem se realiza a partir do exame daquilo que a

ele se assemelha e possui propriedades iguais ao bem a ideia do bem analogamente dito

ldquofilho do bemrdquo Natildeo se teve a pretensatildeo com isso de compreender o bem ou mesmo a

ideia do bem em toda a sua magnitude mas somente na medida em que eacute possiacutevel

apreendecirc-los Um estudo acerca da racionalidade isto eacute seus objetos gecircneros

operaccedilotildees procedimentos e alcances como mostraram os argumentos analisados nos

Livros VI e VII apresenta um perfil racional da alma condizente com a natureza e

habilidades do dialeacutetico que eacute educado para ser plenamente consciente dos limites e

alcances cognitivos (Rep 532b1-2) A visatildeo que a alma adquire com a dialeacutetica

71 Em outros termos Chen define assim a ζύλνςηο ldquoSynopsis eacute a atividade da visatildeo de conjunto (seeing-

together) intelectual dos casos ζπγγελή de uma ideia na visatildeo da ideia ao longo da linha de relaccedilatildeo de

derivaccedilatildeordquo Chen op cit p 187

129

demonstra a sua capacidade de ver com clareza tal como sugerido em 533e nesse

sentido equivalente a apreender a realidade Natildeo parece haver no caso da ζύλνςηο algo

como uma visatildeo suacutebita na qual a alma ao fim de um processo repentinamente se depara

com o real As exigecircncias do meacutetodo dialeacutetico demonstram que o processo eacute o que

determina tal apreensatildeo como resultado e natildeo se teria a visatildeo da ideia sem o percurso

anterior no qual se orienta a visatildeo para as coisas inteligiacuteveis72

Em outras palavras a visatildeo ao ser orientada para ver os inteligiacuteveis adquire aos

poucos a habilidade de ver com clareza ou seja de apreender o que eacute do gecircnero

inteligiacutevel constituindo desse modo uma clarividecircncia primeiro sobre as relaccedilotildees

inteligentes como se daacute nas matemaacuteticas e depois sobre o ser as ideias e tudo que seja

do gecircnero inteligiacutevel e possa evidentemente ser apreendido pelo intelecto A

consequecircncia importante da apreensatildeo da visatildeo do todo como se mostra a ζύλνςηο diz

respeito agrave possibilidade de conhecer o justo e as virtudes ou seja aquilo que natildeo eacute dado

precisamente como uma forma mas que no entanto soacute pode ser inferido no caso da

justiccedila e adquirido no caso das virtudes com a visatildeo sinoacuteptica dada por meio do

trabalho da inteligecircncia Natildeo se trata de uma ἐμαίθλεο onde a alma subitamente capta a

ideia como um salto cognitivo Compreender assim a visatildeo do todo seria infiel ao

trabalho de preparaccedilatildeo do pedagogo que pretende uma progressatildeo cognitiva O

resultado do trabalho dialeacutetico como bem mostrou a alegoria da caverna depende de

um treino de conversatildeo em que consiste a educaccedilatildeo da alma na direccedilatildeo da ideia um

processo paulatino de ascensatildeo a um grau cognitivo superior que condiciona a alma a

ter tal clareza ou seja a discernir e operar com as ideias mesmo ao lidar com o domiacutenio

visiacutevel como visto O dialeacutetico natildeo abandona tal perspectiva inteligente e ao continuar

operando com ideias demonstra possuir uma visatildeo integral que natildeo se daria ao que

72 Trabattoni tem o seguinte entendimento sobre a metaacutefora da visatildeo a qual descreve uma apreensatildeo

dialeacutetica e natildeo uma intuiccedilatildeo o que tambeacutem se defende nessa argumentaccedilatildeo ldquoAo indicar a instantacircnea

precisatildeo do conhecimento natildeo mediado pelo loacutegos estruturado e descritivo da linguagem a metaacutefora

taacutetil neste caso seria anaacuteloga agravequela oacutetica Como demonstra por outro lado no confronto com 511b4

ao exprimir um conhecimento de caraacuteter discursivo a expressatildeo taacutetil natildeo eacute menos idocircnea daquelas

oacuteticas a faculdade que colhe os objetos relativos ao quarto segmento da linha natildeo eacute portanto a visatildeo

ou a intuiccedilatildeo intelectual mas o loacutegos compreendido na sua plena capacidade do dialeacutegesthai ou seja

de raciocinar dialeticamente Confirma-se assim que a extensatildeo de modelos tiacutepicos do conhecimento

sensiacutevel e intelectual possuem valores metafoacutericos e que consequentemente o uso destas metaacuteforas natildeo

diz nada de decisivo acerca da natureza do conhecimento Cabe pontuar que a dyacutenamis toũ dialeacutegesthai

representa a capacidade universalizante do logos e eacute um instrumento ativo e fomentador do movimento e

da relaccedilatildeo entre o particular e o universal entre a multiplicidade e a unidade De fato esta eacute a funccedilatildeo

da dialeacuteticardquo Trabattoni op cit p 161 Deve-se entender ldquovisatildeordquo ou ldquotocarrdquo como metaacutefora da

apreensatildeo das ideias realizada pela dialeacutetica Natildeo parece haver como apontou Trabattoni a intenccedilatildeo de

mostrar a possibilidade de aquisiccedilatildeo sem o trabalho da dialeacutetica e de todo o processo de conversatildeo ao

inteligiacutevel promovido pela educaccedilatildeo O conhecimento da ideia exige como se tem visto a preparaccedilatildeo da

alma para tal

130

parece sem poder operar no niacutevel tal qual supotildee o estado de λόεζηϛ A inteligecircncia

nesses termos constitui a visatildeo do todo e ldquoter inteligecircnciardquo significa natildeo sair deste

estado natildeo perder esta perspectiva

Pelo que foi analisado a alma pode descer a um domiacutenio inferior sem descer de

niacutevel cognitivo Parece natildeo haver relaccedilatildeo necessaacuteria entre ir agraves sombras e deixar de ser

dialeacutetico Todavia deve-se admitir que precisar o momento desta visatildeo consiste em uma

tarefa bastante difiacutecil e cabiacutevel somente na medida em que se distingue os dois graus de

cogniccedilatildeo δηάλνηα e λνῦο A δηάλνηα natildeo constitui uma visatildeo do todo porque com seu

modo de operar a alma natildeo apreende o caraacuteter ontoloacutegico dos objetos o que eacute a unidade

ou o triacircngulo atendo-se ao aspecto formal e operacional desses - a unidade como

referecircncia numeacuterica o triacircngulo uma forma geomeacutetrica de trecircs lados O que parece

afirmar a visatildeo do todo como uma condiccedilatildeo do dialeacutetico eacute o movimento ascendente ndash

descendente cuja descida se realiza utilizando exclusivamente ideias o que natildeo

configura desse modo uma descida de niacutevel cognitivo A visatildeo ao modo de uma

ζύλνςηο descreve assim um estado elevado da alma cuja capacidade intelectual

apreende a ideia inteligiacutevel e o que se pode inferir a partir dela

A possibilidade de inferecircncia e de conhecimento por parte do filoacutesofo do que eacute

justo e das virtudes se tornam conjugadas com a boa praacutetica poliacutetica a partir das relaccedilotildees

inteligentes as quais tecircm como paracircmetro o inteligiacutevel e que se pode realizar nos termos

da descida do filoacutesofo O condicionamento a um estado de λόεζηϛ e ζύλνςηο resultante

deste exerciacutecio faz supor assim que se trata do estado contemplativo propiciado pela

filosofia no qual se conhece coisas tal como o belo o bom e o justo desta vez dito no

contexto do processo cientiacutefico e do exerciacutecio poliacutetico Longe de consistir em uma

apariccedilatildeo o que se diz da visatildeo do inteligiacutevel sugere assim a construccedilatildeo de uma

perspectiva proacutepria para atingir e lidar com o que eacute real que se realiza antes de tudo a

partir da capacidade de estabelecer determinadas relaccedilotildees utilizando as capacidades

racionais como a cogniccedilatildeo73

Deve-se admitir que ao descrever o fim do processo nos termos de uma visatildeo o

texto abre caminho para algumas interpretaccedilotildees acerca do que consiste de fato a

73 A visatildeo da alma como parece ser a ζύλνςηο apresenta-se desse modo bastante diferente do que se

tem em O Banquete talvez o exemplo mais direto de que venha a ser uma visatildeo do Belo inteligiacutevel nos

termos de uma ἐμαίθλεο ( ) de um salto impetuoso que leva o homem para o estado de contemplaccedilatildeo O

impulso eroacutetico orientado pelo exerciacutecio filosoacutefico permite a visatildeo do Belo e a vivecircncia inteligiacutevel tal

como se tem n‟A Repuacuteblica (211a-b) A diferenccedila entre as narrativas eacute que o Banquete traz uma

descriccedilatildeo deste salto da abrupta aquisiccedilatildeo do Belo como uma visatildeo que irrompe diante da alma enquanto

n‟A Repuacuteblica a ecircnfase da visatildeo Inteligiacutevel ou perspectiva inteligente ao que parece se volta para o

desenrolar da apreensatildeo intelectual que encontra termo no exerciacutecio pedagoacutegico e poliacutetico

131

aquisiccedilatildeo do conhecimento operada pela inteligecircncia Jaacute foi posta a dificuldade em

precisar a passagem na qual se tem a visatildeo da ideia Do mesmo modo jaacute se comentou

sobre a pertinecircncia de considerar o movimento completo da inteligecircncia composto pela

apreensatildeo e pelo estabelecimento de relaccedilotildees tendo a ideia como paradigma O

comentaacuterio de Gosling natildeo estaacute tatildeo distante de algumas conclusotildees das uacuteltimas anaacutelises

sobre a ζύλνςηο realizadas aqui que contra essa posiccedilatildeo diz

ldquoA ecircnfase eacute entretanto sobre unidades isolaacuteveis em contraste

com os particulares multiformes que manifestam um hospedeiro de

propriedades em uma mistura confusa A exigecircncia de que estas

unidades devem ser definiacuteveis conduz no entanto ao sentido de que

natildeo satildeo isolaacuteveis mas constituiacuteram eles mesmos um conjunto inter-

relacionado Isto produziu dificuldades para a visatildeo perceptiva do

conhecimento e um progresso gradual para ver o conhecimento como

proposicionalrdquo74

Ainda que adote uma saiacuteda tiacutepica de uma interpretaccedilatildeo que defende um saber

proposicional Gosling admite a progressatildeo de um conhecimento negando

evidentemente uma apreensatildeo intuitiva Ao que tudo indica o movimento que leva agrave

visatildeo do todo natildeo pode ser tomado no sentido de um aparecimento imprevisto

incalculado de algo que se pretendia buscar cujo alcance era completamente incerto Ao

contraacuterio o sentido que parece se alinhar com o que se tem visto sobre a inteligecircncia

satildeo justamente as inferecircncias que se pode fazer sobre o Bem e os conhecimentos que se

pode ter a partir da ideia Assim o objetivo maior do filoacutesofo natildeo tem em vista um

conhecimento proposicional como chegou a falar o comentador mas tambeacutem

pressupotildee um trabalho deste tipo visto que a apreensatildeo das ideias torna possiacutevel a

definiccedilatildeo e o trabalho dialeacutetico passa pela anaacutelise de premissas O que estaacute em questatildeo

diz respeito ao meu ver acerca do alvo maior o bem e no caso do Feacutedon da

imortalidade portanto diz respeito agravequilo que uma atividade intelectual como a

dialeacutetica e uma perspectiva como a synoacutepsis podem oferecer sobre desses

O proacuteprio Gosling mais adiante traccedila uma definiccedilatildeo do que venha ser uma visatildeo

segundo as imagens do conhecimento que o texto apresenta na qual potildee em questatildeo a

74 Gosling The Argument of the Philosophers p 121

132

concepccedilatildeo de que a visatildeo do dialeacutetico consiste em algo como uma intuiccedilatildeo ou uma

percepccedilatildeo intelectual ele diz

ldquoPrimeiro por elas (imagens do conhecimento) se ajustam a

apreensatildeo final ou progressiva do conjunto de inter-relaccedilotildees De fato

em ambos Symposium e Repuacuteblica eacute o que a linguagem tende a

sugerir Em ambos o estaacutegio final eacute tomado como um resultado cada

vez mais amplo de consideraccedilotildees sinoacutepticas no Symposium (210d) bdquoo

vasto oceano de beleza‟ e na Repuacuteblica o bdquosistema solar das Formas‟

A visatildeo eacute a explicaccedilatildeo de porque todas as coisas belas satildeo chamadas

belas na Repuacuteblica a explicaccedilatildeo do que torna boas todas as coisas

boasrdquo75

O comentador compreende a visatildeo como uma explicaccedilatildeo (explanation)

apontando a relaccedilatildeo de causalidade entre ideia e existentes que com ela se relacionam -

o bem e coisas boas Ao que parece a visatildeo para o autor tem um caraacuteter de identificar

e demonstrar nos termos que uma explicaccedilatildeo pretende tal relaccedilatildeo enquadrando-se

muito mais em processo do que em uma apariccedilatildeo na mente

Natildeo se pretende defender aqui que o conhecimento nesse contexto equivale a

um fenocircmeno que se daacute no intelecto uma percepccedilatildeo intelectual como aponta Gosling

A cogniccedilatildeo envolve operaccedilotildees como a comparaccedilatildeo a deduccedilatildeo a soma por exemplo

que natildeo permitem uma interpretaccedilatildeo da visatildeo como uma passiva recepccedilatildeo da imagem

da ideia Na tentativa de precisar a passagem para o grau da inteligecircncia superando

assim o niacutevel do raciociacutenio matemaacutetico Chen considera a visatildeo como um ato cognitivo

em que se apreende o que pertence ao gecircnero inteligiacutevel

ldquoAo ser educado na dialeacutetica a alma toma instacircncias syggene

por um uacutenico ato da cogniccedilatildeo (by a single act of cognition) que

termina em uma visatildeo do seu genos comum Agora posto em uma

linguagem de relaccedilatildeo o resultado eacute quando volta para conhecer o

referente da segunda relaccedilatildeo ela se move ao longo dessa linha de

relaccedilatildeo para um relatum a visatildeo do que eacute obtido simultaneamente

com a chegada da alma diante dele ndash ou posto simbolicamente (hsup1 +

hsup2 + hn) RH Entatildeo a terceira fronteira eacute cruzada e foi cruzada por

meio da synopsis76

Segundo o comentaacuterio de Chen a visatildeo sinoacuteptica consiste na visatildeo da ideia no

instante em que esta se apresenta mas eacute o que se tem na descese O comentaacuterio eacute

75 idem pg 123

76 Chen op cit p 165

133

pertinente no sentido de que potildee a diferenciaccedilatildeo entre a visatildeo do todo pela dialeacutetica e a

visatildeo parcial que proporciona as matemaacuteticas Entretanto considerar apenas a tomada

da ideia como um ldquouacutenico ato cognitivordquo parece irrelevar a permanecircncia da alma nesse

estado de λόεζηϛ no qual finalmente ela demonstra ldquoter inteligecircnciardquo condiccedilatildeo

importante para as questotildees pedagoacutegicas e poliacuteticas como visto aqui

O que fazer com o movimento da alma ao longo da linha de relaccedilotildees que ela

pode efetuar Se para isso haacute a visatildeo sinoacuteptica como ele proacuteprio compreende estar

presente como entender a ζύλνςηο como um ato Esta posiccedilatildeo parece ser atenuada pelo

proacuteprio Chen mais adiante77

A atividade intelectual que o meacutetodo dialeacutetico exige

mostra as relaccedilotildees operadas pela inteligecircncia e os inteligiacuteveis aiacute utilizados como os

seres matemaacuteticos como os intermediaacuterios para a visatildeo sinoacuteptica Em treinamento o

filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo aprendeu a reconhecer e a utilizar os elementos e as

relaccedilotildees inteligiacuteveis que as disciplinas oferecem uma vez que domina a arte dialeacutetica

ele faz este mesmo reconhecimento e estabelece relaccedilotildees de acordo com as exigecircncias

do meacutetodo A visatildeo tal como sugere a ζύλνςηο supotildee natildeo somente a tomada da ideia

mas o trabalho que se pode fazer posteriormente tendo-a como referecircncia Nesse

sentido ζύλνςηο constitui uma perspectiva especiacutefica capaz de identificar a ideia do

bem e compreender as ideias que subsidiam os valores morais pilares para o bom

governo que soacute o filoacutesofo pode conhecer

Conclusotildees sobre a λόεζηϛ

O pensamento pode ser em resumo definido como a atividade que a alma

realiza por meio de suas disposiccedilotildees intelectuais em busca do seu objeto de desejo o

bem Nos livros VI e VII de A Repuacuteblica o pensar constitui a experiecircncia gnosioloacutegica

de tornar a alma apta a fazer esta busca e se elevar a uma condiccedilatildeo de excelecircncia a qual

se torna possiacutevel com o desenvolvimento de sua capacidade inteligente no seu maacuteximo

grau dita inteligecircncia (θξόλεζηϛ e λόεζηϛ) A inteligecircncia ponto maacuteximo de cogniccedilatildeo

da alma eacute constituiacuteda de uma perspectiva distinta por meio da qual se pode obter o

77 Note-se que a explicaccedilatildeo sobre a apreensatildeo das ideias como um golpe apresenta-se de fato como algo

que parece se dar em partes ao longo de um processo ldquoA exigecircncia de ver em conjunto todas as

instancias do Bem a fim de atingir a visatildeo desta ideia em todos os seus aspectos eacute claro somente um

ideal O que atualmente eacute exigido natildeo eacute tatildeo radical Para obter a visatildeo da ideia do bem tomar as

instacircncias em grupos natildeo individualmente seria o bastante () Chen op cit p 172 nota 8

134

autecircntico conhecimento (ἐπηζηήκε) Nesse niacutevel tem-se o ponto alto do desdobramento

das capacidades intelectivas da alma sendo o conhecimento portanto natildeo mais uma

atividade de cogniccedilatildeo (γλνζηϛ) apenas mas uma perspectiva distinta que consiste em

atingir seres do domiacutenio inteligiacutevel identificar relaccedilotildees inteligiacuteveis e apreender a ideia

do bem o alvo mais importante no contexto do texto Tal perspectiva confere ao

filoacutesofo dono por natureza desta aptidatildeo a habilidade de governo uma vez que o

conhecimeno que a inteligecircncia propicia pode atingir as ideias sob as quais se deve

organizar a cidade justa Por via da atividade inteligente torna-se possiacutevel conhecer a

justiccedila e assim realizar o bom governo uma vez que com a perspectiva privilegiada do

todo e da ideia do bem se pode inferir acerca das noccedilotildees que fundamentam os valores

Ao que tudo indica somente por meio de relaccedilotildees estabelecidas pela inteligecircncia se

adquire o discernimento necessaacuterio para inquerir e executar com base na ideia do bem

o que a cidade tem como demanda

Desse modo a avaliaccedilatildeo das questotildees que se apresentam no cenaacuterio eacutetico-

poliacutetico tal como a investigaccedilatildeo acerca delas daacute-se de maneira apropriada e justa a

partir de um governo que encontra seus fundamentos no exerciacutecio intelectual da

filosofia e em uma epistemologia tal como esta elabora Na figura do filoacutesofo

governante como se viu accedilatildeo poliacutetica e exerciacutecio intelectual satildeo aliados na organizaccedilatildeo

da cidade ideal denotando o papel do pensamento sobretudo da inteligecircncia como a

disposiccedilatildeo propiacutecia para o bom governo e para as accedilotildees justas O pensar em seu modo

excelente consiste em ultima instacircncia na atividade intelectual que busca igualmente

conhecer o que eacute justo e virtuoso ao ter em vista o Bem

Haja vista a importacircncia do pensar no que se refere agrave alma do filoacutesofo pode-se

afirmar o papel mobilizador da atividade intelectual no contexto poliacutetico como o

exerciacutecio com o qual se realiza o cumprimento da natureza da alma filosoacutefica Visto

desse acircngulo θξόλεζηϛ e λόεζηϛ demonstram a distinccedilatildeo da alma justa do filoacutesofo ao

mostraacute-la como a alma que pocircs em exerciacutecio suas naturais habilidades dispondo de suas

capacidades cognitivas para tal Ao adquirir conhecimento a alma filosoacutefica tem os

elementos ideais necessaacuterios para lanccedilar um olhar sobre as operaccedilotildees que ela mesma

realiza e para as questotildees da cidade conquistando assim sua excelecircncia no contexto

eacutetico e poliacutetico ao tornar-se com isso justa e apta para governar A cidade justa

demonstra desse modo sua base intelectual na qual o pensar dado na figura do filoacutesofo

governante eacute o agente mobilizador fundamental para pocircr a cidade de acordo com o que

eacute justo e com o que eacute bom

135

Tal como se mostra a importacircncia do estabelecimento de fundamentos racionais

para a vida poliacutetica em uma perspectiva inversa se pode admitir que o conhecimento

constitui uma questatildeo moral A busca pela excelecircncia do pensamento e pelo verdadeiro

conhecimento se mostra o meio de haver justiccedila tanto para a alma do filoacutesofo que teraacute

cumprido as determinaccedilotildees de sua natureza intelectualista sendo por consequecircncia

justo quanto para a cidade que teraacute por via de um governante orientado pela razatildeo os

meios para que as partes coexistam em harmonia e haja enfim a justiccedila Caso natildeo

houvesse empenho em conhecer a ideia do bem por parte do filoacutesofo hipoacutetese que os

livros VI e VII natildeo colocam mas sobre cujas consequecircncias cabe imaginar em uacuteltima

instacircncia a justiccedila e as virtudes natildeo seriam possiacuteveis nem o filoacutesofo nem a cidade

seriam justos A investigaccedilatildeo acerca do exerciacutecio do pensamento tal como mostrou os

dois livros analisados revela sua utilidade sobretudo ao pocircr em evidecircncia a

possibilidade e os meios de atingir a justiccedila e as virtudes desse modo a ligaccedilatildeo entre o

domiacutenio da realidade do bem e a praacutetica poliacutetica

Dada a finalidade praacutetica da razatildeo a excelecircncia do pensamento se constroacutei e se

confirma no processo de conhecimento Mesmo que a aquisiccedilatildeo das ideias natildeo garanta a

apreensatildeo de uma dimensatildeo maior o bem o meacutetodo dialeacutetico bem como as proacuteprias

ideias satildeo vaacutelidos para a finalidade que lhe eacute atribuiacuteda Dito de outro modo os limites

que o pensamento encontra natildeo invalidam o meacutetodo racional da filosofia sendo correto

consideraacute-lo o mais justo e digno para a busca do bem comum na cidade Na perspectiva

do filoacutesofo d‟A Repuacuteblica a saber do governante que deve voltar sua atenccedilatildeo para a

praacutetica poliacutetica e por isso ter em questatildeo efetivar os conhecimentos o que eacute oferecido

pela ideia acerca do bem parece suficiente para harmonizar a poacutelis Esta suficiecircncia natildeo

eacute vista da mesma maneira no Feacutedon como se analisaraacute uma vez que o filoacutesofo na

iminecircncia da morte tem como objetivo a imortalidade e portanto um domiacutenio sugerido

pelas ideias que se mostra inapreensiacutevel em sua totalidade pelo pensamento Neste

enredo embora eficientes em oferecer o domiacutenio inteligiacutevel a impossibilidade de

conhecer efetivamente esta dimensatildeo maior constitui um problema tornando-se muito

mais visiacutevel o limite do pensar

De qualquer modo a potecircncia do pensamento e seus limites tal como satildeo dados

corroboram a figura de excelecircncia do filoacutesofo A narrativa de experiecircncia intelectual

mostra o desenvolvimento da alma filosoacutefica e portanto do pensamento no processo de

elevaccedilatildeo agrave sua maioridade O pensamento ao atuar como meio de adquirir os

fundamentos dos valores e das regras para a melhor organizaccedilatildeo constitui para o

136

filoacutesofo e para a cidade enquanto atividade permanente um modo de ser justo e bom

Ao mesmo tempo mostra a cidade harmonizando-se e portanto tornando-se justa A

caracteriacutestica de ser agente e paciente comum nos dois diaacutelogos como se veraacute a seguir

no Feacutedon resume a autonomia do pensamento quando atua em seu estado excelente

Antes de iniciar a anaacutelise acerca da inteligecircncia (θξόλεζηϛ) no diaacutelogo Feacutedon eacute

necessaacuterio fazer algumas aproximaccedilotildees com o que se conclui sobre a λόεζηϛ a partir dos

livros VI e VII d‟A Repuacuteblica Em primeiro lugar deve-se considerar a condiccedilatildeo

limitada do filoacutesofo frenta a grandeza dos objetos uacuteltimos que tem em vista o bem e a

morte como jaacute dito As potecircncias e os limites da racionalidade satildeo dados desse modo

dentro do alcance possiacutevel de tais objetos pelo pensamento tendo-se uma visatildeo da

racionalidade operando dentro destas limitaccedilotildees Desse perspectiva a cogniccedilatildeo constitui

a atividade da alma que a potildee tanto quanto possiacutevel em uma condiccedilatildeo de elevaccedilatildeo

desse estado de minoridade que consiste a humanidade representada pelos habitantes

da caverna no livro VII e pela alma presa ao corpo no Feacutedon O tema do conhecimento

assume seu papel na questatildeo do pensamento tal como se viu ao consistir na superaccedilatildeo

operada pela racionalidade de uma condiccedilatildeo de inferioridade intelectual e moral e na

apreensatildeo dos objetos as ideias cuja apreensatildeo reverte em benefiacutecios para alma O

percurso do filoacutesofo agrave beira da morte traz desse modo uma visatildeo desse processo de

conhecimento ao mesmo tempo em que descreve a emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao

corpo como um efeito beneacutefico da atividade filosoacutefica A narrativa do Feacutedon se

aproxima do percurso do aprendiz do livro VII no que se refere agrave necessidade de

mostrar as etapas de superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao ordinaacuterio sensiacutevel e desprovido

de conteuacutedo cognitivo para uma condiccedilatildeo de maioridade da alma e portanto de

autonomia e excelecircncia do pensamento A excelecircncia eacute construiacuteda nos dois contextos

como resultado de um processo progressivo que no resgistro da relaccedilatildeo vida-morte se

daacute durante o tempo de vida

O empenho em investigar e estabelecer definiccedilotildees acerca do pensamento em seu

niacutevel de excelecircncia se apresenta nos dois diaacutelogos como uma exigecircncia Como visto eacute

preciso distinguir e treinar o futuro governante de modo a deixaacute-lo na melhor condiccedilatildeo

137

intelectual e apto a exercer o comando da cidade para isso deve-se ter claro no que

consiste esta distinccedilatildeo O filoacutesofo na iminecircncia da morte precisa dar provas razoaacuteveis e

plausiacuteveis da imortalidade da alma aos seus companheiros e para isso eacute imprescindiacutevel

provar a eficiecircncia da razatildeo no seu grau de maioridade grau no qual se realiza o

filosofar e a sua proacutepria capacidade para tal empresa Desse modo apesar dos

diferentes contextos a investigaccedilatildeo sobre o pensamento se constitui no exame acerca

dos termos que descrevem a atividade inteligente os quais compotildeem o aparato dado

pela proacutepria razatildeo a saber o meacutetodo o loacutegos e as teorias Esses devem receber durante

a sua formulaccedilatildeo e uso o olhar de inspeccedilatildeo do filoacutesofo e ter seu caraacuteter e procedimento

inteligiacuteveis elucidados

No Feacutedon encontrar-se-aacute uma visatildeo mais enfaacutetica do pensamento nos termos de

uma interaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis Dado que natildeo haacute um propoacutesito praacutetico que exige

uma elaboraccedilatildeo em termos de accedilatildeo poliacutetica tal como tem em vista o governante filoacutesofo

da cidade ideal esta relaccedilatildeo se restringiraacute ao comportamento da alma em relaccedilatildeo agraves

influecircncias do corpo e em relaccedilatildeo aos objetos do intelecto A oposiccedilatildeo presente aqui diz

respeito ao corpo e agraves suas influecircncias sendo a relaccedilatildeo intelectual da alma com seres

superiores dada no pensar a saiacuteda para se elevar dessa condiccedilatildeo adversa de estar

encarnada em corpo humano A superaccedilatildeo desta situaccedilatildeo em vida constitui a

inteligecircncia do filoacutesofo e compotildee um quadro de percurso e desenvolvimento intelectual

e no qual se daacute a elevaccedilatildeo ao grau mais refinado e potente do pensamento niacutevel

descrito pela λόεζηϛ nos livros VI e VII

Nesse sentido o que pode ser considerado o efeito praacutetico dos conhecimentos

adquiridos pela filosofia diz respeito agrave proacutepria postura intelectualista do filoacutesofo a qual

confere a ele as virtudes morais e as condiccedilotildees necessaacuterias para o bom destino poacutes-vida

Considerada como um cuidado da alma cabe compreender o exerciacutecio filosoacutefico como

sem duacutevidas um benefiacutecio bastante uacutetil Apesar de ser estimulado pela convicccedilatildeo de

uma boa vida apoacutes a morte as atenccedilotildees dirigidas a alma pela filosofia promovem em

vida reflexotildees vaacutelidas e uma conduta pautada nos melhores valores O lado praacutetico da

filosofia e do exerciacutecio intelectual no Feacutedon revela-se assim na conduta exemplar do

filoacutesofo que em vias de morrer constitui um modelo de alma purificada e por isso

pronta para estar totalmente livre

Tal eacute o resgistro em que se constroacutei a concepccedilatildeo de pensamento excelente no

Feacutedon As primeiras acepccedilotildees de maioridade e distinccedilatildeo do pensamento satildeo dados nos

termos de um pensamento puro assemelhado por isso agraves coisas divinas e portanto livre

138

para atuar de modo autecircntico Em um segundo momento essa mesma superioridade eacute

dada a partir das formulaccedilotildees nos termos de seu procedimento de modo a oferecer uma

versatildeo mais teacutecnica da atividade racional Ambos modelos de cidade ideal e de

existecircncia datildeo mostras de um niacutevel de cogniccedilatildeo que se traduz nessa excelecircncia

exemplar a qual se deve perseguir tanto na vida poliacutetica quanto no que concerne ao uma

postura existencial

139

Parte II Feacutedon

I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel

11 O filoacutesofo agrave beira da morte

O Feacutedon oferece uma perspectiva existencial do filoacutesofo ao narrar a conversa de

Soacutecrates no seu uacuteltimo dia de vida O diaacutelogo apresenta o filoacutesofo que resignado agrave sua

condenaccedilatildeo aceita de bom grado a morte Tem-se nesse enredo a personificaccedilatildeo da

postura intelectual a qual uma vez sempre pautada no exerciacutecio filosoacutefico como

maneira para adquirir as excelecircncias morais e intelectuais pode especular sobre a

imortalidade e crer com base na razatildeo que ao final teraacute garantido um bom destino apoacutes

a morte (Fed 107c1-5) O que aos olhos dos amigos que se despendiam do mestre

parecia inicialmente uma excentricidade e uma insensatez (Fed 62e) se torna coerente

com a explicaccedilatildeo dada sobre a imortalidade A esperanccedila (ἐιπηο) de ter uma boa morte e

a crenccedila na indestrutibilidade da alma convicccedilotildees que justificam esta boa aceitaccedilatildeo

apoiamndashse na verdade nos resultados da investigaccedilatildeo filosoacutefica a qual revela o

fundamento de tais crenccedilas e do proacuteprio loacutegos filosoacutefico

Diferentemente do filoacutesofo de A Repuacuteblica o qual apresenta um modelo de

perfeiccedilatildeo e ao mesmo tempo sugere o iniacutecio e a execuccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo do

caraacuteter filosoacutefico o Soacutecrates do Feacutedon representa por que natildeo o cume deste processo e

a personificaccedilatildeo das qualidades deste modelo Como exemplo de uma vida digna ou

autecircntica a narrativa oferece uma imagem do acabamento do percurso filosoacutefico nesta

figura do Soacutecrates sereno cordato e convicto do que iraacute encontrar apoacutes a morte

percurso que o guardiatildeo aprendiz d‟A Repuacuteblica cabe divagar ainda estaria por

realizar Vale dizer que este percurso filosoacutefico o qual natildeo descreve uma vida poliacutetica

como mostra o filoacutesofo governante apresenta em certa medida o caraacuteter filosoacutefico no

que se refere ao uso da razatildeo e agraves aquisiccedilotildees morais e epistecircmicas que se pode obter

pela filosofia O Soacutecrates do Feacutedon natildeo eacute o filoacutesofo rei mas como filoacutesofo no seu

140

uacuteltimo dia de vida periacuteodo no qual se limita a narrativa disserta sobre a excelecircncia do

pensamento ao investigar sobre a alma e a sua imortalidade

Ao ter a imortalidade da alma como objeto de investigaccedilatildeo o diaacutelogo permite a

anaacutelise da natureza da alma e por consequecircncia do pensamento (θξόλεζηο) Deste

modo o afastamento entre alma e corpo constitui o tema que articula uma explicaccedilatildeo

para a imortalidade oferecendo assim o percurso do filoacutesofo nos termos de uma

preparaccedilatildeo para a morte na qual a alma se purifica pela filosofia A justificativa da boa

aceitaccedilatildeo da morte resulta desta postura intelectualista de desprezo pela satisfaccedilatildeo do

corpo e pelas coisas que se referem aos desejos levianos e agraves vilanias da vida ordinaacuteria

os quais satildeo identificados ao que se refere ao domiacutenio da sensibilidade Uma vez

exercitado na filosofia durante toda a vida e portanto distante das coisas relativas ao

corpo o filoacutesofo assume a condiccedilatildeo semelhante aos objetos que contempla no exerciacutecio

filosoacutefico a saber as ideias e ao que iraacute encontrar apoacutes a morte do corpo Nesse

sentido os resultados do treino na filosofia satildeo muito mais psicoloacutegicos do que praacuteticos

em comparaccedilatildeo ao que se veraacute nos livros V e VII d‟A Repuacuteblica nos quais se tem em

vista uma preparaccedilatildeo para a vida poliacutetica

A preparaccedilatildeo para a morte que a filosofia proporciona se traduz em

discernimento acerca da natureza da alma e por consequecircncia no autecircntico uso da

inteligecircncia (θξόλεζηο) condiccedilatildeo que constitui o verdadeiro cuidado da alma e que

permite realizar suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre o poacutes-vida A inteligecircncia neste contexto

de emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo e agrave vida humana assume posiccedilatildeo central

uma vez que as caracteriacutesticas que o texto atribui agrave alma satildeo da ordem de sua faculdade

cognitiva e de seu parentesco com o gecircnero inteligiacutevel imutaacutevel una indivisiacutevel

incorpoacuterea imortal dotada da faculdade da razatildeo tem a capacidade de conhecer e de

aprender O filoacutesofo eacute identificado portanto agrave alma una que se apresenta apenas em

seu caraacuteter racional e com caracteriacutesticas afins com o gecircnero invisiacutevel78

Esta pode ser

uma dificuldade na comparaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos aqui analisados A visatildeo da alma

que se encontra no Feacutedon natildeo eacute a da alma tripartida do livro IV d‟A Repuacuteblica

Entretanto ambos os diaacutelogos se preocupam em delimitar o caraacuteter racional como

distinto e soberano No livro IV a parte racional da alma deve se sobrepor agraves demais ( )

78 A visatildeo de alma una natildeo eacute unacircnime Haacute comentadores que entendem ser a alma que o Feacutedon

apresenta por um lado dotada de razatildeo e de qualidades semelhantes ao gecircnero invisiacutevel e por outro com

caracteriacutesticas referentes agraves emoccedilotildees e agraves afecccedilotildees do sensiacutevel Dado que essas uacuteltimas Platatildeo descarta ao

privilegiar a alma desencarnada livre do corpo natildeo considero pertinente o debate sobre a possibilidade

de uma biparticcedilatildeo da alma no Feacutedon

141

mostrando a necessidade de ter minimamente claro seu perfil e campo de atuaccedilatildeo De

outro modo mas com o mesmo objetivo o Feacutedon apresenta a alma racional que

embora natildeo se apresente em partes deve por natureza estar no comando de modo a natildeo

se deixar influenciar pelas sensaccedilotildees Nas duas situaccedilotildees a racionalidade se apresenta

diferenciada das caracteriacutesticas da ordem da sensibilidade que a alma pode ter seja

como parte constitutiva seja como afecccedilatildeo diante de sua condiccedilatildeo de estar em um

corpo

As caracteriacutesticas que o Feacutedon apresenta em relaccedilatildeo a alma a oferecem quase

exclusivamente em suas faculdades intelectuais Invisiacutevel incorpoacuterea afim com o

gecircnero inteligiacutevel e dotada de capacidade inteligente (θξόλεζηο) os atributos conferidos

a ela satildeo dados para descrever o seu caraacuteter inteligente sendo deixados de lado os traccedilos

que se referem agraves emoccedilotildees Quando dados esses recebem junto com as percepccedilotildees

advindas da sensibilidade conotaccedilatildeo negativa A autenticidade que o diaacutelogo pretende

imprimir agrave alma tem em vista sua independecircncia em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees sendo o

estado de elevaccedilatildeo intelectual a maior expressatildeo de sua pureza e aquisiccedilatildeo de virtudes e

o apego aos apelos do corpo ao contraacuterio sua condiccedilatildeo de decaimento moral e

intelectual Do mesmo modo que a congenereidade da alma com os objetos incorpoacutereos

confere a ela caracteriacutesticas comuns a esses - quando natildeo as mesmas - o apego da alma

ao corpo pode trazer prejuiacutezos agrave sua natureza Quando ela se fixa nas coisas inteligiacuteveis

comporta-se como tal se ao contraacuterio a alma se apega ao corpo e aos objetos sensiacuteveis

torna se eacutebria pois nessa condiccedilatildeo eacute incapaz ao menos em condiccedilotildees adequadas usar e

se exercitar na capacidade que pode lhe conferir um grau de excelecircncia O conflito

neste contexto adveacutem do antagonismo entre alma e corpo cujas distinccedilotildees de natureza-

o corpo dotado das qualidades do gecircnero visiacutevel eacute composto e portanto passiacutevel de

perecer (Fed 78c) - proporcionam ao filoacutesofo a tensatildeo proacutepria da condiccedilatildeo de

humanidade na qual a alma tem de conviver associada ao corpo e da qual ele filoacutesofo se

livraraacute com a morte estado no qual a alma sobreviveraacute totalmente separada das afliccedilotildees

lanccediladas pelas sensaccedilotildees Nesse sentido o corpo e o que eacute do domiacutenio da αἴζζεζηο

perturbam a alma e constituem um empecilho nessa busca da condiccedilatildeo mais proacutexima de

sua natureza inteligiacutevel

O que supotildee no iniacutecio do diaacutelogo uma perspectiva da interioridade dos

personagens na ordem das emoccedilotildees eacute substituiacutedo pela visatildeo racionalista na qual a

noccedilatildeo de identidade esta fundamentada na alma inteligente Em virtude do seu

parentesco com o domiacutenio inteligiacutevel a alma tem condiccedilotildees suficientes de por si

142

mesma conhecer algo verdadeiramente sem recorrer ao que eacute dado pelos sentidos Os

objetivos do filoacutesofo seus compromissos eacuteticos e epistemoloacutegicos ligam-se dessa

forma agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento exerciacutecio que garante a emancipaccedilatildeo da alma e as

recompensas desejadas ao final do processo de desvinculaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao corpo

Por enquanto para os propoacutesitos deste estudo basta coletar dados que colaborem

para compor um quadro que esboccedila um caraacuteter a ser definido Importa ressaltar os

traccedilos que mais tarde receberatildeo maior detalhamento e conceituaccedilatildeo e que vistos como

aqui se propotildee indicam os elementos e a complexidade que estaacute em causa ao se

pretender traccedilar um perfil da razatildeo Assim deve-se ter em vista que para uma anaacutelise

acerca do pensamento em sua condiccedilatildeo mais alta a figura do filoacutesofo a qual incarna o

uso correto da razatildeo e oferece uma imagem da excelecircncia moral e epistecircmica que

supotildeem-se eacute anaacuteloga agrave noccedilatildeo de inteligecircncia introduz as questotildees que perpassaratildeo nos

capiacutetulos seguintes agrave anaacutelise Ao figurar a posse das virtudes e dos conhecimentos reais

vantagens da vida dedicada agrave filosofia e portanto os resultados da elevaccedilatildeo do intelecto

quando exercitado em sua plena potecircncia o filoacutesofo permite entrever o significado que

o os textos pretendem dar agrave racionalidade neste niacutevel e agrave proacutepria filosofia Natildeo parece

suficiente elencar as qualidades do filoacutesofo sem remontar o percurso que levou a elas

Somente a partir das articulaccedilotildees realizadas pela razatildeo em seu exerciacutecio como acontece

na relaccedilatildeo entre alma e corpo e os efeitos dessa atividade se torna possiacutevel mensurar e

avaliar a atuaccedilatildeo do pensamento tal como o significado e o valor que se atribui a ele

12 O pensar e o estado de morte

Ao explicar (ηὸλ ιόγνλ ἀπνδνῦλαη Fed 63e9)79

acerca do destemor do filoacutesofo

em relaccedilatildeo agrave morte Soacutecrates inaugura a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade da alma

pesquisa que natildeo se mostra exequiacutevel sem uma minuciosa anaacutelise acerca do pensamento

(θξόλεζηο) Considerada a condiccedilatildeo excelente da capacidade racional da alma e

79 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizaremos a traduccedilatildeo de Maria Tereza Schiappa de Azevedo Feacutedon

Platatildeo Ed Imprensa Oficial UNB 2000

143

portanto a via para averiguar adequadamente a sobrevivecircncia apoacutes a morte do corpo o

pensar seraacute examinado a partir da definiccedilatildeo acerca da filosofia como um treino para a

morte mais precisamente para morrer e estar morto (ἢ ἀπνζλῄζθεηλ ηε θαὶ ηεζλάλαη

Fed 64a6) definiccedilatildeo que introduz a perspectiva racionalista do tema Dada nos termos

do exerciacutecio filosoacutefico a morte ganha uma versatildeo filosoacutefica com bases agumentativas

resultantes de uma especiacutefica formulaccedilatildeo de conhecimento de atividade racional e de

objetos verdadeiros Posto assim ηεζλάλαη indica um estado distinto diferente da vida

no seu sentido bioloacutegico no qual a alma sobrevive e para o qual o filoacutesofo eacute treinado

por meio do exerciacutecio filosoacutefico (ἀλὴξ ηῷὄληη ἐλ θηινζνθίᾳ δηαηξίςαο ηὸλ βίνλ

Fed63e9) Nesse contexto a atividade racional constitui a caracteriacutestica da alma capaz

de averiguar acerca deste estado

Platatildeo pretende imprimir agrave morte um sentido estritamente filosoacutefico para dar

iniacutecio a um exame dentro da mesma perspectiva acerca da imortalidade Sendo assim

faz sentido questionar nestes termos ldquo- Acreditamos que a morte eacute alguma coisa

(ἡγνύκεζά ηὸλ ζάλαηνλ Fed 64c2)rdquo Note-se que a formulaccedilatildeo da questatildeo potildee em

evidecircncia o acircngulo em que se pretende investigaacute-la junto com as demais questotildees que

perpassam a argumentaccedilatildeo ηη εἶλαη - ldquoser algordquo traduzindo literalmente prenuncia uma

existecircncia um ser que mais tarde ganharaacute formulaccedilatildeo ontoloacutegica e seraacute uma das

maneiras de se questionar em vista da definiccedilatildeo de algo Posta assim a questatildeo induz o

interlocutor a dar uma resposta positiva entretanto sem o compromisso de dizer o que

ela seria A definiccedilatildeo de morte vem a seguir a separaccedilatildeo alma em relaccedilatildeo ao corpo

- Que outra coisa pois senatildeo a separaccedilatildeo da alma e do corpo

(Ἆξα κὴ ἄιιν ηη ἢ ηὴλ ηο ςπρο ἀπὸ ηνῦ ζώκαηνο ἀπαιιαγήλ) E

nesse caso bdquoestar morto‟ significa isto mesmo que o corpo uma vez

separado da alma subsiste em si e por si mesmo (αὐηὸ θαζ αὑηὸ ηὸ

ζῶκα γεγνλέλαη) agrave parte dela tal como a alma uma vez separada do

corpo subsiste em si e por si mesma (αὐηὴλ θαζαὑηὴλ εἶλαη) agrave parte

dele Ou seraacute a morte algo diverso do que dizemosrdquo80

(Fed 64c3-9)

80 Vale notar uma sutileza no texto original Ao se referir agrave separaccedilatildeo e consequente isolamento do

corpo Platatildeo utiliza o verbo γίγλνκαη enquanto que ao falar do isolamento da alma o verbo escolhido eacute o

verbo εἰκί Os dois verbos que nessa passagem ainda natildeo possuem sentido filosoacutefico ao longo da

investigaccedilatildeo marcaratildeo a importante diferenciaccedilatildeo entre a instabilidade e corrupccedilatildeo do γεγνλέλαη da

γέλεζηϛ em contraposiccedilatildeo agrave imutabilidade e fixidez do ser inteligiacutevel e do que tem familiaridade com ele

como ocorre com a alma Tais distinccedilotildees de gecircnero constituiratildeo ao longo do texto as diferenciaccedilotildees

entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel aqui esboccediladas

144

Assim definida a morte consiste no estado no qual a alma estaacute separada do

corpo Ao mesmo tempo se deve notar o processo dessa separaccedilatildeo no qual o corpo se

torna isolado da alma e do mesmo modo a alma passa a existir por si mesma separada

dele Apartados corpo e alma mostram a partir daiacute naturezas distintas cujo conflito eacute

compreendido vale adiantar pela racionalidade Eacute posto em questatildeo desse modo a

natureza da alma e de sua Inteligecircncia na figura do filoacutesofo que aceita de bom grado a

sua condenaccedilatildeo Para o homem que filosofa eacute natural desprezar (ἀηηκάδεηλ) os prazeres

corporais e tudo o que se refere a ele para se ocupar dos cuidados que dizem respeito agrave

alma (Fed 64e) O desapego pelo que constitui um cuidado ou adorno do corpo e o

consequente voltar-se para a alma (πξὸο δὲ ηὴλ ςπρὴλ ηεηξάθζαη Fed 64e6) consiste

no exerciacutecio de morte no qual o verdadeiro filoacutesofo (ἀιεζῶο θηιόζνθνο Fed64e2) se

empenha

O filosofar origina assim este afastamento da alma em relaccedilatildeo ao corpo que se

daacute pelo desprezo tanto quanto possiacutevel dos apelos e dos prazeres corporais (θαζὅζνλ

δύλαηαη ἀθεζηάλαη αὐηνῦ Fed64e5) Tal postura de afastamento do corpo descreve

deve-se observar um traccedilo do perfil do filoacutesofo que diferentemente da maioria vecirc a

morte como a oportunidade para emancipar a alma e tornaacute-la assim livre das afliccedilotildees

geradas por ele A visatildeo positiva da morte eacute construiacuteda com a intenccedilatildeo de fazer um

discurso em defesa do filoacutesofo condenado no qual se apresente ao mesmo tempo uma

explicaccedilatildeo filosoacutefica e uma justificativa racional e por isso plausiacutevel para a

imortalidade

Diante de tal propoacutesito o texto vai dispor dos elementos e do foco sob os quais

uma investigaccedilatildeo deste tipo se torna possiacutevel O desligamento progressivo da alma em

relaccedilatildeo ao corpo que acontece nesse exerciacutecio de preparaccedilatildeo para a morte torna-se

desse modo a circunstacircncia apropriada em que se deve examinar o pensamento por

apresentar a alma isolada nela mesma (αὐηὴ θαζαὑηὴλ) livre de influecircncias e

perturbaccedilotildees e assim ter suas caracteriacutesticas racionais ressaltadas

ldquo- E o que dizer quanto a adquirir a sabedoria (Τί δὲ δὴ πεξὶ

αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ) eacute ou natildeo o corpo obstaacuteculo

(ἐκπόδηνλ) quando aceitamos associaacute-lo nessa procura Mais

concretamente haacute uma dose de verdade naquilo que os homens

apreendem por exemplo pela vista e pelo ouvido ou (como os poetas

por aiacute repetem agrave saciedade) nada do que vemos ou ouvimos eacute

seguro E refiro-me apenas aos sentidos da vista e do ouvido porque

145

se estes natildeo satildeo seguros e exatos (θαίηνη εἰ αὗηαη ηῶλ πεξὶ ηὸ ζῶκα

αἰζζήζεσλ κὴ ἀθξηβεῖο εἰζηλ κεδὲ ζαθεῖο) os outros muito menos o

satildeo dado serem suponho ainda mais faliacuteveis (θαπιόηεξαί) Ou natildeo

achas

- Mas decerto

- Ora - prosseguiu- em que condiccedilotildees a alma atinge a verdade

(Πόηε νὖλ ἦ δ ὅο ἡ ςπρὴ ηο ἀιεζείαο ἅπηεηαη) Pois quando tenta

qualquer tipo de indagaccedilatildeo com o auxiacutelio do corpo eacute certo e sabido

que este a induz em erro (ἐμαπαηᾶηαη ὑπ αὐηνῦ)rdquo (Fed 65a9-b)

Conveacutem notar a almejada condiccedilatildeo em que eacute dado o pensar a alma atua

plenamente sem impecilhos e desse modo atinge a verdade81

O texto atribui um papel

negativo ao corpo por constituir um impedimento para a aquisiccedilatildeo disto que parece ser

um dos alvos da inquiriccedilatildeo a θξόλεζηο De modo incipiente essa uacuteltima passagem

sugere de antematildeo a noccedilatildeo de alta inteligecircncia que seraacute edificada ao longo do diaacutelogo

O pensar nos termos da θξόλεζηο estaacute vinculado agrave verdade e ao ser livre das

influecircncias corpoacutereas o que confere a ele uma superioridade cujo sentido comeccedila a ser

construiacutedo nesta etapa inicial da investigaccedilatildeo Diferentes deste estado estatildeo as sensaccedilotildees

que por natildeo se mostrarem exatas e claras para uma investigaccedilatildeo (Fed 65a10)

demonstram a insuficiecircncia do corpo e a consequente legitimidade da alma para a

aquisiccedilatildeo desta condiccedilatildeo correspondente ao estar morto que o filoacutesofo almeja Dado que

a realidade e a verdade que interessam ao filoacutesofo apresentam-se apenas na atividade

do raciociacutenio (ινγίδνκαη) 82

o pensar ganha foco e deve ser paralelamente objeto de

estudo na medida em que se mostra relevante para a anaacutelise dos temas que compotildeem a

argumentaccedilatildeo sobre a boa morte do filoacutesofo

O desapego em relaccedilatildeo ao corpo apresenta com este argumento motivos

existenciais e epistemoloacutegicos os quais encontram no exerciacutecio do pensamento a via

para uma explicaccedilatildeo razoaacutevel sobre a morte e sobre a vida ao modo da filosofia e na

θξόλεζηο um dos seus objetivos Desse modo o texto natildeo demora em oferecer cabe

81 O sentido do termo nesta passagem estaacute e geral associado agrave noccedilatildeo de sabedoria conhecimento e

inteligecircncia Robin traduz ldquoposseder proprement l‟inteligencerdquo- Platon Pheacutedon in Editions Belle

Lettres Paris 1957 Dixsaut ldquoet quand il s‟agit de se mettre agrave penserrdquo Platon Pheacutedon GF Flammarion

1991 Opccedilatildeo semelhante agrave que temos na traduccedilatildeo portuguesa faz Gual ldquo[] de La aquisicioacuten misma de

La sabiduriardquo Fedoacuten Editorial Gredos Madrid 1997 Trata-se da primeira ocorrecircncia do termo

Interessa examinar e discutir ao longo da anaacutelise os sentidos que ele adquire e como esses se relacionam

com aquilo que descreve uma teoria da racionalidade no diaacutelogo

82 Fed 65c2 ldquoPor conseguinte admitindo que a natureza das coisas possa em certos aspectos se

apercebida natildeo seraacute justamente pelo raciociacutenio (Ἆξ νὖλ νὐθ ἐλ ηῷ ινγίδεζζαη εἴπεξ πνπ ἄιινζη

θαηάδεινλ αὐηῆ γίγλεηαί ηη ηῶλ ὄλησλ)rdquo Tal eacute o caraacuteter em que o diaacutelogo sugere a aquisiccedilatildeo do

conhecimento a saber como uma manifestaccedilatildeo da realidade dos seres na atividade racional Esta

descriccedilatildeo seraacute novamente formulada em 79d e demonstrada no final do diaacutelogo

146

notar a visatildeo de uma alma cuja principal caracteriacutestica para natildeo dizer quase uacutenica eacute a

racionalidade Com o processo de afastamento do corpo natildeo estatildeo em questatildeo outras

afecccedilotildees que natildeo sejam da ordem da atividade racional ou que natildeo digam respeito a sua

natureza inteligente que a esta altura estaacute para ser estabelecida Assim a narrativa da

separaccedilatildeo entre alma e corpo acentua o caraacuteter racional da alma e potildee em certa medida

os objetivos o sentido e a operacionalidade da atividade inteligente a partir desse

exerciacutecio de separaccedilatildeo O perfil do pensamento vai sendo revelado ao passo que se

realiza a criacutetica e a recusa das sensaccedilotildees e de concepccedilotildees vulgares sobre a morte e sobre

temas como as virtudes e o conhecimento

13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro

Realizadas as primeiras consideraccedilotildees sobre a morte e o sentido em que se deve

conceber o pensar vale analisar passo a passo como aparece o tema do pensamento

Nesse contexto de progressivo desligamento do corpo que constitui o filosofar a alma

estaacute em situaccedilatildeo cada vez mais apropriada para o raciociacutenio Ao mesmo tempo ao

livrar-se de qualquer influecircncia do corporal estaacute em condiccedilotildees de almejar o seu objeto

de desejo o ser (ὀξέγεηαη ηνῦ ὄληνο Fed 65c9) Diante disso logo se reconhece a

necessidade de averiguar o caraacuteter desta racionalidade e dos elementos que a ela se

referem Vale observar que ainda sem ter exposta a sua inteligibilidade nem definido o

seu estatuto ontoloacutegico os temas que devem receber tratamento filosoacutefico satildeo dispostos

para auxiliar na composiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel

fundamental para elucidar a atuaccedilatildeo pensar

147

ldquo- Passamos a outro ponto afirmamos que existe qualquer coisa

como seja o ldquoJustordquo ou natildeo (Τί δὲ δὴ ηὰ ηνηάδε ὦ Σηκκία θακέλ ηη

εἶλαη δίθαηνλ αὐηὸ ἢ νὐδέλ)

- Por Zeus claro que sim

- E o mesmo em relaccedilatildeo a ldquoBelordquo e ldquoBemrdquo (Καὶ αὖ θαιόλ γέ ηη

θαὶ ἀγαζόλ)

- Contudo alguma vez jaacute os viste com os teus proacuteprios olhos (ηη

ηῶλ ηνηνύησλ ηνῖο ὀθζαικνῖο εἶδεο )

83

- Natildeo de modo algum

- Seraacute que os apercebeste por qualquer outra sensaccedilatildeo fiacutesica

(Ἀιι ἄιιῃ ηηλὶ αἰζζήζεη ηῶλ δηὰ ηνῦ ζώκαηνο ἐθήςσ αὐηῶλ) Falo

em geral incluindo por exemplo a Grandeza a Sauacutede a Forccedila em

resumo a realidade e todas as demais coisas aquilo que cada uma

delas preciosamente84

eacute (θαὶ ηῶλ ἄιισλ ἑλὶ ιόγῳ ἁπάλησλ ηο νὐζίαο

ὃ ηπγράλεη ἕθαζηνλ ὄλ) E ou pelo corpo se chega agrave contemplaccedilatildeo da

absoluta verdade delas (ηὸ ἀιεζέζηαηνλ ζεσξεῖηαη) ou entatildeo o

processo eacute outro e aquele de noacutes que mais profundamente se dispuser

a meditar (δηαλνεζλαη) na realidade mesma das coisas que observa eacute

quem mais perto esta da de atingir o conhecimento (γλῶλαη) de cada

uma delasrdquo (Fed 65d3-e4)

O excerto oferece uma primeira descriccedilatildeo acerca do que se pode conceber como

um trabalho intelectual oposto agraves percepccedilotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Dada

nos termos da cogniccedilatildeo (γηγλώζθσ) tem-se o trabalho intelectivo do δηαλνέσ no qual a

alma conhece a essecircncia (νὐζία) daquilo que examina Apreender a essecircncia a realidade

dos objetos em exame quer dizer o mesmo que contemplar a verdade deles Conhecer

consiste assim neste tipo de apreensatildeo que tem em vista o ηη εἶλαη presente nesta

noccedilatildeo de δίθαηνλ αὐηὸ θαιόλ αὐηὸ e ἀγαζόλ αὐηὸ O bem o belo e a justiccedila tal como

quer o filoacutesofo natildeo podem ser conhecidos pelas sensaccedilotildees e devem ser desse modo

apreendidos exclusivamente por esta atividade do pensamento revelando-se portanto

serem da ordem do intelecto Cabe notar que o ηὸ αὐηὸ que acompanha as noccedilotildees

sugeridas e mesmo a νὐζία natildeo satildeo ditas ainda no registro da ontologia Apesar de

evocar a noccedilatildeo abstrata desses conceitos parece precipitado dizer que o texto faz nesse

instante referecircncia agraves Formas O que estaacute em jogo eacute primeiramente delimitar o

verdadeiro objeto da alma e o modo como o filoacutesofo deve proceder para atingi-lo A

nova perspectiva que estaacute sendo proposta a partir daqui a da ζεσξία contemplaccedilatildeo das

83 Observe-se a partir daqui o uso do verbo ὁξάσ e o termo ὄςηο enfatizando a visatildeo sensiacutevel em

contraposiccedilatildeo agrave imagem que se obteacutem pelo trabalho intelectivo da alma Este verbo passa a partir de

agora a denotar a inferioridade da percepccedilatildeo sensiacutevel ao mesmo tempo em que o verbo εἶδνλ assume o

sentido de visatildeo inteligiacutevel isto eacute a visatildeo capaz de apreender os seres inteligiacuteveis

84 Cabe uma notar que o termo correto seria ldquoprecisamenterdquo e natildeo ldquopreciosamenterdquo como traz a

traduccedilatildeo

148

coisas85

desfaz o equiacutevoco de tomar o corpo como instrumento para o conhecimento e

atribui de vez este papel agrave alma

A partir da oposiccedilatildeo corpo - alma sensaccedilatildeo ndash intelecto a dicotomia sensiacutevel ndash

inteligiacutevel que comeccedila a ser delineada ganha definiccedilotildees mais especiacuteficas e se mostra

decisiva para uma pesquisa filosoacutefica Eacute importante estabelecer as diferenciaccedilotildees entre

alma e corpo na qual se verifica que o corpo eacute distinto da alma natildeo se confunde com

ela e eacute o abrigo das sensaccedilotildees por isso tambeacutem das contrariedades que elas podem

apresentar umas com as outras86

Por conta disso eacute incapaz de conhecer a verdade

acerca do que investiga tal como propotildee a filosofia uma vez que as sensaccedilotildees natildeo

oferecem qualquer dado de modo claro e preciso O corpo natildeo constitui assim um

instrumento seguro para uma anaacutelise mas ao contraacuterio confunde e perturba alma como

visto ateacute aqui Por outro lado a alma se mostra capaz de conhecer e eacute desejante do que eacute

real e verdadeiro caracteriacutesticas que obrigam o filoacutesofo a averiguar mais

detalhadamente a αὐηὴ θαζαὑηὴ no desenlace desta separaccedilatildeo Dito de outro modo a

alma por ela mesma apresenta a conduta do filoacutesofo e sua posiccedilatildeo perante vida e morte

ao narrar a maneira como ele lida com as perturbaccedilotildees dos sentidos e de que maneira o

pensar age nesse contexto

ldquo- Ora isso soacute poderaacute realizaacute-lo em plena pureza o homem que

na medida de suas forccedilas for ao encontro delas exclusivamente pela

via do pensamento abstraindo dele o recurso agrave vista ou qualquer um

dos sentidos e sem arrastar nenhum deles atraacutes da razatildeo (Ἆξ νὖλ

ἐθεῖλνο ἂλ ηνῦην πνηήζεηελ θαζαξώηαηα ὅζηηο ὅηη κάιηζηα αὐηῆ ηῆ

δηαλνίᾳ ἴνη ἐθ ἕθαζηνλ κήηε ηηλ ὄςηλ παξαηηζέκελνο ἐλ ηῷ

δηαλνεῖζζαη κήηε [ηηλὰ] ἄιιελ αἴζζεζηλ ἐθέιθσλ κεδεκίαλ κεηὰ ηνῦ

ινγηζκνῦ) que utilizando apenas o pensamento em si mesmo sem

mistura se lanccedila na caccedila de cada uma das realidades em si mesmas e

sem misturas (αὐηῆ θαζ αὑηὴλ εἰιηθξηλεῖ ηῆ δηαλνίᾳ ρξώκελνο αὐηὸ

θαζ αὑηὸ εἰιηθξηλὲο ἕθαζηνλ ἐπηρεηξνῖ ζεξεύεηλ ηῶλ ὄλησλ) liberto

85 Fed 66e1 θαὶ αὐηῆ ηῆ ςπρῆ ζεαηένλ αὐηὰ ηὰ πξάγκαηα

86 Vale ter em vista aqui o que o diaacutelogo sugere logo nas primeiras cenas de Soacutecrates na prisatildeo e o seu

comentaacuterio ao se livrar dos grilhotildees ldquo- Que coisa estranha amigos essa sensaccedilatildeo a que os homens

chamam de prazer Eacute espantoso como naturalmente se associa ao que passa por ser o seu contraacuterio a

dor Ambos se recusam a estar presentes ao mesmo tempo no mesmo homem e todavia se algueacutem

persegue e alcanccedila um deles eacute quase certo e sabido que acaba por alcanccedilar o outro como dois seres

que estivessem ligados por uma soacute cabeccedila () Ora estou acreditando que eacute tambeacutem o que acontece

comigo agrave sensaccedilatildeo de dor que a corrente me provocava na perna eacute agora o prazer que manifestamente

lhe vem no encalccedilordquo (60b3-c) O excerto sugere ser a condiccedilatildeo de humanidade isto eacute da alma ainda

associada ao corpo um estado no qual a alma ainda experimenta as diferentes sensaccedilotildees O corpo nesse

contexto constitui o lugar para a recepccedilatildeo dessas sensaccedilotildees e portanto o lugar onde se apresentam

oposiccedilotildees as quais soacute podem advir do sensiacutevel como prazer e dor A contrariedade tema que seraacute

discutido no diaacutelogo vale adiantar natildeo eacute aceitaacutevel segundo a concepccedilatildeo de alma racional una e invisiacutevel

que estaacute sendo formulada

149

ateacute onde lhe for possiacutevel dos olhos dos ouvidos numa palavra de

todo o corpo - ciente de quanto esta perturba a alma e a impede de

adquirir a verdade e sabedoria (ἀιήζεηάλ ηε θαὶ θξόλεζηλ) quando

ambos se associam Ou natildeo te parece que se algueacutem existe com a

possibilidade de atingir o real (ηνῦ ὄληνο) eacute este mesmordquo (Fed

65e5-66a8)

O afastamento da alma em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees eacute dado nos termos da

purificaccedilatildeo Nesse contexto o pensamento eacute claramente o agente que promove tal

distanciamento e assim o responsaacutevel pelo processo de purificaccedilatildeo Aquele que busca

adquirir o ser deve ter no pensamento o meio de emancipar-se das sensaccedilotildees de modo a

natildeo se deixa arrastar influenciar por elas e desse modo natildeo permitir que estas

imponham obstaacuteculo agrave atividade racional O texto oferece a busca do conhecimento

anaacutelogo ao de uma ldquocaccedila agraves realidadesrdquo que sugere de um lado a dificuldade do

pensamento agir nesse contexto de separaccedilatildeo e por outro o benefiacutecio de ter a alma e o

pensar tornando-se com isso puros (θαζαξόο) e sem mistura (εἰιηθξηλήο) Δηάλνηα e

ινγηζκόο mostram essa atividade racional que nesta circunstacircncia oferece o

pensamento do mesmo modo como uma faculdade em processo de θάζαξζηο ou seja

em contiacutenuo distanciamento do corpoacutereo tanto quanto possiacutevel87

Note-se que o trecho

apresenta nesta relaccedilatildeo o pensamento como agente e paciente na medida em que este

promove a purificaccedilatildeo e ao mesmo tempo se beneficia dela ao se tornar puro e livre

para atuar na aquisiccedilatildeo dos alvos maiores converter-se em alta inteligecircncia e apreender

a verdade88

No processo de purificaccedilatildeo ainda natildeo se tem todavia a descriccedilatildeo de seu

modo excelente como quer o filoacutesofo Entretanto natildeo se deve descartar que nessa fase

em que o sentido da θξόλεζηο como condiccedilatildeo excelente da razatildeo comeccedila a ser

formulado essa noccedilatildeo de pureza que o texto sugere serve aos propoacutesitos de exaltar e

oferecer uma noccedilatildeo de excelecircncia ao modo filosoacutefico Diferentemente de uma noccedilatildeo

baseada em distinccedilotildees de ordem social pretende-se agora uma superioridade intelectual

que se busca a partir de uma purificaccedilatildeo cuja concepccedilatildeo foge agrave noccedilatildeo que se tem nos

87 Chen op cit p 17

88 Vale verificar a afirmaccedilatildeo de BREacuteHIER ldquoMas no Feacutedon ele trata da purificaccedilatildeo do pensamento natildeo

se poderaacute obtecirc-lo se natildeo for pelo proacuteprio pensamento que eacute portanto agraves vezes o ser a se purificar agraves

vezes o meio de purificaccedilatildeo temos sobre isso a declaraccedilatildeo expressa do Feacutedon (69c) pensamento eacute um

bdquomeio de purificaccedilatildeo‟ (katharmos) Para ele a katharsis consiste na verdade na conversatildeo de um

ldquopensamento impurordquo na direccedilatildeo de ldquoum Pensamento puro e infalivelmente perfeitordquo que age sobre o ser

atraveacutes do alcance e dos efeitos disto que aqui se considera o pensamento em seu estado excelente e para

ele constitui a Forma Pensamento Breacutehier E ldquoAretai Katharseisrdquo in Etudes de Philosophie Antiquerdquo

Presses Universitaires de France Paris 1955 p241

150

ritos tradicionais sendo ambos dados no registro da inteligecircncia89

Assim parece

coerente que faccedila parte da alta intelecccedilatildeo que constitui a θξόλεζηο o desapego das

paixotildees desejos e sofrimentos do corpo90

tal como o desprezo por honrarias e outras

vilanias sendo o conhecimento a busca intelectual propiacutecia para isso e a verdade

definida como niacutetido e sem mistura o guia (Fed 66b7)

Cabe observar que o pensamento eacute oferecido como a uacutenica atividade da alma

atraveacutes da qual apresenta o seu caraacuteter enquanto distinta e afastada do corpo A

descriccedilatildeo da purificaccedilatildeo que o pensamento promove tal como se apresenta revela que

ele proacuteprio aparentemente consiste no uacutenico elemento que resiste a esse afastamento

sendo portanto apropriado para supor o conhecimento do que eacute distinto do sensiacutevel e

que concerne agrave alma Este movimento de afastamento que descreve a alma mesmo sem

a intenccedilatildeo de defini-la oferece uma noccedilatildeo a seu respeito na medida vale dizer do que

parece necessaacuterio para a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade Se tomarmos a alma por sua

capacidade e atividade de intelecccedilatildeo que eacute o que interessa ao nosso estudo eacute

conveniente examinar como este pensamento eacute capaz de mover a alma em direccedilatildeo aos

seres inteligiacuteveis ou melhor de que modo e por quais razotildees a alma se move de que

maneira isso constitui o pensar

A pista encontrada por Soacutecrates para um exame racional eacute pautado pela verdade

e tem a consciecircncia de que a alma por ela mesma no exerciacutecio do pensamento eacute a via

adequada para o conhecimento91

Assim na funccedilatildeo de agente purificador o pensamento

separa o que natildeo constitui uma qualidade que colabore para o conhecimento as

sensaccedilotildees e se potildee a contemplar o que estaacute em exame pela proacutepria alma o que em

89 Para Louis Moulinier ldquokatharsisrdquo em geral assume o significado de limpar tornar livre de mistura

purgar Os termos katharos e katharein satildeo os termos que em geral exprimem a pureza no domiacutenio da

inteligecircncia como parece ser o sentido privilegiado no Feacutedon As ocorrecircncias desse significado nesse

domiacutenio fazem referecircncia agrave limpidez do oraacuteculo ou quando katharos significa ldquoclaramenterdquo

O autor

explica ldquo[] os Gregos conceberam uma pureza das coisas e uma pureza do espiacuterito que entre essas

coisas estaacute a verdade e dentro dela a sinceridade esta noccedilatildeo eles exprimiam pelo adjetivo katharos

que ainda eacute muito material e que implica agraves vezes um juiacutezo de valor inteiramente moralrdquo Em toda a sua

obra Moulinier nota a presenccedila da noccedilatildeo de materialidade no que diz respeito ao tema da purificaccedilatildeo

tanto na perspectiva fiacutesica do mundo quanto no plano abstrato O valor material da pureza eacute transposto

para outras perspectivas como o da moralidade e o da intelectualidade Na medicina o termo katharsis se

apresenta em todo o tipo de evacuaccedilatildeo ou escorrimento seja esse escorrimento natural como a

menorreacuteia ou um escorrimento causado por alguma patologia Os dois sentidos que o termo possui na

linguagem meacutedica designam tanto a eliminaccedilatildeo de um mal quanto uma evacuaccedilatildeo que restabelece uma

ordem uma harmonia Moulinier L Le Pure et Le Impure dans La Penseacutee des Grecs- De Homere a

Aristote Librarie Klincksiec Paris 1952 167-170

90 Fed 66c2rdquoPaixotildees desejos temores futilidades e fantasias de toda ordem (ἐπηζπκηῶλ θαὶ θόβσλ θαὶ

εἰδώισλ παληνδαπῶλ θαὶ θιπαξίαο)rdquo

91 Fed 66b3 7 ldquoProvavelmente haacute uma espeacutecie de pista [que por meio da razatildeo] nos guia nas nossas

pesquisas (Κηλδπλεύεη ηνη ὥζπεξ ἀηξαπόο ηηο ἐθθέξεηλ ἡκᾶο [κεηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐλ ηῆ ζθέςεη])rdquo

151

outras palavras representa a sua autonomia Somente a partir desta liberdade que

consiste no desapego da alma e na consequente autonomia do pensamento que os

objetos almejados parecem atingiacuteveis um grau de saber do qual o filoacutesofo eacute amante92

que corresponde ao que tudo indica ao pensar em seu modo excelente

Conveacutem verificar desse modo o sentido dessa pureza dada pelo processo

racional que o filoacutesofo pretende defender para compreender melhor o tipo de objeto

desejado na filosofia O puro (θαζαξόο) eacute anaacutelogo agrave clareza e agrave precisatildeo anteriormente

referidas como qualidades ausentes nos dados fornecidos pelos sentidos e constitui um

atributo supostamente comum em relaccedilatildeo aos objetos aspirados pelo filoacutesofo a verdade

os seres e os deuses que encontraraacute no destino apoacutes a morte (Fed 66e) Nas passagens

onde Soacutecrates confessa ter esperanccedila em obter um bom destino post mortem a θάζαξζηο

aparece como a preparaccedilatildeo apropriada e necessaacuteria para este fim Tem-se claramente a

identificaccedilatildeo desta purificaccedilatildeo ao que eacute divino denotando a proposta de atribuir um

caraacuteter intelectualista agravequilo que tradicionalmente eacute visto no acircmbito da religiosidade

ldquo() assim pois uma vez resgatados da demecircncia (ἀθξνζύλεο)

do corpo eacute razoaacutevel se supor que gozaremos da companhia de outros

seres igualmente puros e conheceremos por noacutes mesmos (γλσζόκεζα

δη ἡκῶλ αὐηῶλ ) tudo o que eacute sem mistura o que equivale talvez a

dizer a verdade (ηνῦην δ ἐζηὶλ ἴζσο ηὸ ἀιεζέο) pois soacute ao impuro

natildeo deveraacute ser permitido tocar o que eacute puro‟ Aqui tens Siacutemias o

que quanto a mim natildeo deixaratildeo de sentir e comentar entre si todos

aqueles que efetivamente amam a sabedoria (πάληαο ηνὺο ὀξζῶο

θηινκαζεῖο) Ou natildeo concordasrdquo (Fed 67a6-b4)

O processo da θάζαξζηο apresenta a sua finalidade metafiacutesica Natildeo seria um erro

dizer de acordo com esta uacuteltima passagem que os termos em que se coloca a questatildeo

religiosa da vida apoacutes a morte recebe a sua versatildeo filosoacutefica na qual o domiacutenio dos

deuses tem uma natureza tal que pode ser atingida apoacutes a alma se desvincular do corpo

O propoacutesito de um argumento acerca da purificaccedilatildeo estaacute justamente em propor o gecircnero

deste domiacutenio dos deuses que o filoacutesofo pretende alcanccedilar Entretanto disto depende

uma minuciosa investigaccedilatildeo sobre a alma e assim sobre a faculdade e o processo

responsaacutevel para esta aquisiccedilatildeo Nesses termos conveacutem especificar no que consiste a

92 Fed 66e1 ldquoEntatildeo sim ser-nos-aacute dado ao que parece alcanccedilar o alvo das nossas aspiraccedilotildees a

sabedoria de que somos amantes (θαὶ ηόηε ὡο ἔνηθελ ἡκῖλ ἔζηαη νὗ ἐπηζπκνῦκέλ ηε θαί θακελ ἐξαζηαὶ

εἶλαη θξνλήζεσο)rdquo

152

purificaccedilatildeo para o filoacutesofo o qual possui uma noccedilatildeo especiacutefica de morte e uma vez que

dela se daacute todo o processo para atingir o bom destino tatildeo almejado O discurso da antiga

tradiccedilatildeo (πάιαη ἐλ ηῷ ιόγῳ ιέγεηαη Fed 67c6) chama de θάζαξζηο o que para o filoacutesofo

consiste na morte a total liberaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo (Fed 67d4-5) Ora

entatildeo qual seria diante disso a vantagem de se purificar na filosofia E poucas

palavras a postura de desapego do filoacutesofo eacute um ensaio para a condiccedilatildeo de total

desvinculaccedilatildeo das coisas que dizem respeito ao corpoacutereo ao fiacutesico na qual a alma em

breve no caso de Soacutecrates se encontraraacute (Fed 67d)

A comeccedilar o objeto do qual os filoacutesofos se dizem amantes mais

especificamente no gecircnero desse objeto constitui um dado importante nessa

purificaccedilatildeo Os homens comuns enfrentam a morte movidos pelas afeiccedilotildees que mantecircm

em vida humana e aparentemente pretendem mantecirc-las na condiccedilatildeo de mortos

mostrando-se assim apegados ao corpo e ao que eacute relativo agrave vida humana (ἀλζξώπηλνο

Fed 68a3) O filoacutesofo ao contraacuterio se move pelo desejo de se reunir a seres divinos

descorporificados identificados aos seres da ordem inteligiacutevel como se veraacute mais

adiante uma vez que reconhece pela filosofia ser a desvinculaccedilatildeo do que eacute relativo agrave

condiccedilatildeo humana como algo positivo93

Outro ponto importante acerca dessa racionalizaccedilatildeo sobre a morte diz respeito a

uma certeza uma convicccedilatildeo (ζθόδξα γὰξ αὐηῷ ηαῦηα δόμεη Fed 68b3) que se adquire

sobre eles pela filosofia como a do bom destino apoacutes a morte para aquele que filosofou

Tal convicccedilatildeo deve-se reparar daacute-se pela via racional e tem em vista junto agrave

pretendida estadia com os deuses (Fed 69c-d6) a aquisiccedilatildeo de um estado de pureza dito

θξνλήζεσο do qual satildeo amantes os filoacutesofos e no qual ele teraacute a desejada sabedoria94

Tem-se ressaltado novamente neste argumento os dois aspectos da θξόλεζηο sua

conotaccedilatildeo de sabedoria alto conhecimento e uma condiccedilatildeo de pureza da alma De

93Sobre a funccedilatildeo do misticismo que Platatildeo apresenta no Feacutedon Brehieacuter pergunta ldquoPoderiacuteamos ser

tentados a considerar o misticismo como um simples meio de intelectualismo de fato uma boa parte dos

argumentos que convida purificar a alma da impureza do corpo (65b-66c) insistem sobre as razotildees

intelectuais da purificaccedilatildeo [] mas podemos crer que as noccedilotildees religiosas introduzidas com um

semelhante acento sejam simples metaacuteforas literaacuteriasrdquo Breacutehier op cit p 237 Compatiacutevel em parte

com a nossa anaacutelise Moulinier comenta ldquoUma tal doutrina eacute no fundo a mesma que a dos Misteacuterios

que por sua vez natildeo prometendo mais que as purificaccedilotildees libertadoras prometem uma felicidade divina

no outro ladordquo Moulinier opcit p 359 Sem pretensotildees de responder a estas questotildees de cunho

religioso importa observar a construccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de depuraccedilatildeo racional em benefiacutecio da alma

que consiste na filosofia

94 Fed 68b4 ldquoPelo menos meu caro amigo assim devem pensar os filoacutesofos que o satildeo de fato pois eacute

neles que em especial se firma esta convicccedilatildeo de que em nenhum outro lugar a natildeo ser ali lhes seraacute

dado alcanccedilar a autecircntica sabedoria (κεδακνῦ ἄιινζη θαζαξῶο ἐληεύμεζζαη θξνλήζεη ἀιι ἢ ἐθεῖ) e

Fed 68a7 ldquoalgueacutem que ame deveras a sabedoria (θξνλήζεσο δὲ ἄξα ηηο ηῷ ὄληη ἐξῶλ) e sinta em si

enraizada essa convicccedilatildeo ()rdquo

153

maneira incisiva o texto apresenta tal estado e esse alto conhecimento possiacutevel somente

com a total separaccedilatildeo entre alma e corpo e portanto inatingiacutevel inteiramente durante a

vida O que pode parecer uma afirmaccedilatildeo frustrante para aquele que se empenhou em

filosofar demonstra na verdade o tipo de crenccedila que o exerciacutecio racional daacute subsiacutedios

Em outras palavras trata-se de apresentar os pilares inteligentes que sustentam a crenccedila

da imortalidade da qual Soacutecrates natildeo abre matildeo e que justificam o seu destemor sendo a

atividade do pensamento atuando livre de influecircncias diversas a base principal para uma

convicccedilatildeo

ldquo[] Pelo menos meu caro assim devem pensar os filoacutesofos que

o satildeo de fato pois eacute neles que em especial se forma a convicccedilatildeo de

que em nenhum lugar a natildeo ser ali lhes seraacute dado alcanccedilar a

autecircntica sabedoria E se isto eacute exato nada mais absurdo (ἀινγία)

portanto como dizia haacute pouco do que um homem dessa tecircmpera

recear a morterdquo (Fed 68 a-b)

Outros adjetivos se somaratildeo agraves vantagens que pode trazer o exerciacutecio da

filosofia As virtudes como coragem (ἀλδξεία Fed 68c5) e temperanccedila (ζσθξνζύλε

Fed 68c8) satildeo aquisiccedilotildees do filoacutesofo ao longo de uma vida dedicada ao pensar e aos

cuidados da alma Diferentemente da noccedilatildeo vulgar de coragem e temperanccedila a

aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude se daacute com conduta de desapego que se realiza pelo

exerciacutecio do pensamento Para a maioria ser corajoso consiste em enfrentar o que lhes

causa temor como a morte sendo neste caso o proacuteprio medo a causa da accedilatildeo De

maneira similar o ser temperante consiste para o natildeo filoacutesofo em certo comedimento

imposto justamente pelo desregramento que o acomete sendo a intemperanccedila portanto

a causa da temperanccedila (Fed 68d-69a4) As accedilotildees para o vulgo tem origem na

irracionalidade das emoccedilotildees afecccedilotildees das quais a alma do filoacutesofo estaacute treinada em natildeo

se deixar influenciar e pode assim agir guiado pela razatildeo

ldquo- Ora meu caro siacutemias talvez natildeo seja esse o processo

adequado de troca devido agrave virtude esse de trocar prazeres por

prazeres sofrimentos por sofrimentos receios por receios ndash uns

maiores por outros menores - como se de moedas tratasse Talvez

que pelo contraacuterio haja uma uacutenica moeda adequada capaz de

assegurar a validade de todas essas trocas ndash a Razatildeo - (ἀιι ᾖ ἐθεῖλν

κόλνλ ηὸ λόκηζκα ὀξζόλ ἀληὶ νὗ δεῖ πάληα ηαῦηα θαηαιιάηηεζζαη

θξόλεζηο) Sim talvez soacute com ela [e mediante ela] se possa de

verdade [comprar e vender] coragem temperanccedila justiccedila numa

palavra a autecircntica virtude que eacute a que vem acompanhada de razatildeo

(ζπιιήβδελ ἀιεζὴο ἀξεηή κεηὰ θξνλήζεσο) []rdquo (Fed 69a6-10)

154

A relaccedilatildeo do filoacutesofo com o corpo e de maneira mais abrangente sua postura

diante das questotildees humanas mostram a especificidade de uma eacutetica baseada na

inteligecircncia Aqueles que dedicam a vida agrave filosofia trocam os apelos e os prazeres

corporais pelas virtudes e assim procuram se depurar do modo mais apropriado (Fed

69a-b) que constitui o cuidado da alma Esses almejam aquilo que por analogia

poderia ser considerado a uacutenica moeda correta a θξόλεζηο a qual deve prevalecer sobre

todo e qualquer tipo de troca ou tentando apreender mais profundamente o sentido da

analogia o valor superior a qualquer moeda que se possa adquirir Diante de tal relaccedilatildeo

cabe analisar a analogia a fim de verificar a noccedilatildeo de valor e de superioridade que o

argumento sugere A argumentaccedilatildeo se utiliza de analogia cujo objeto a moeda

representa a instabilidade dos paradigmas em que o homem comum se baseia para

atribuir valor Note-se que se tem sugerido assim a distinccedilatildeo entre dois planos no qual

fica aparente a dicotomia entre um valor de uso que se refere agrave troca de um prazer pelo

outro e um valor real a θξόλεζηο e as verdadeiras virtudes Como objeto desprovido de

valor intriacutenseco a moeda em seu uso comum demonstra por contraste a superioridade

da θξόλεζηο que eacute dada como objeto em si mesmo valioso Sua importacircncia consiste

justamente na funccedilatildeo de promover as virtudes a qual o filoacutesofo compreende quando se

dispotildee a procurar aquilo que eacute de mais alto valor e descobre ser a proacutepria θξόλεζηο a

fonte dos bens Tal relaccedilatildeo difere desse modo das trocas e das escolhas que se realizam

no plano da simples permuta onde natildeo haacute nenhuma verdadeira aquisiccedilatildeo visto que aiacute

os objetos satildeo efecircmeros As relaccedilotildees para o homem comum constituem uma relaccedilatildeo de

substituiccedilatildeo uma vez que esse efetua uma permuta entre objetos cujo valor eacute o mesmo

enquanto o filoacutesofo ao contraacuterio tem em vista a troca de algo inferior referente ao

corpo por algo superior as virtudes verdadeiras95

o que consiste em uma verdadeira

relaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo

A vida filosoacutefica como um modo intelectivo de purificaccedilatildeo garante assim a

verdadeira aquisiccedilatildeo ou seja a elevaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de alta inteligecircncia e por

consequecircncia promove as verdadeiras virtudes96

Deve-se notar que as virtudes assim

95Rowe tambeacutem comenta sobre a inquietante comparaccedilatildeo dizendo que a base da comparaccedilatildeo natildeo

consiste propriamente na troca de valores mas no valor e na importacircncia dos objetos em questatildeo Na sua

visatildeo isso ajuda a pontuar a phronesis equivalente a sabedoria que natildeo consiste em mais um objeto

dentre tantos outros a ser trocado Plato Phaedo texto estabelecido e comentado por C J Rowe

Cambridge University Press 1996 (Cambridge Greek and Latin Classics) p 149-150

96 Yvon Bregraves compreende a perspectiva que Platatildeo lanccedila sobre a arete da seguinte forma ldquoCom o Feacutedon

a alma se arrisca natildeo mais a tornar-se apenas um receptaacuteculo de arete mas o substituto de arete (op

155

como a θξόλεζηο satildeo postas como objetos almejados e ao mesmo tempo qualidades

passiacuteveis de serem adquiridas com o processo racional de purificaccedilatildeo Natildeo se tem aqui

uma noccedilatildeo de ἀξεηή que embora aliada ao exerciacutecio do pensamento consiste no que se

poderia dizer uma ideia de justiccedila de coragem ou de temperanccedila Trata-se ao que

parece de sugerir uma noccedilatildeo de verdadeira virtude relacionada agrave noccedilatildeo de inteligecircncia

a qual recebe nessa argumentaccedilatildeo seus primeiros contornos Do mesmo modo

pretende-se argumentar acerca do teor racional de sua aquisiccedilatildeo de modo a qualificar e

especificar a conduta do filoacutesofo Assim as virtudes tal como a θξόλεζηο consistem

em qualidades dadas pelo exerciacutecio do pensar ao modo da filosofia e podem ser

referidas como se vecirc nos termos da purificaccedilatildeo Uma vez a alma depurada ela estaacute

dotada de virtudes verdadeiras e portanto livre de apresentar aparecircncias enganosas

(ζθηαγξαθία) de virtude

A partir dessa argumentaccedilatildeo note-se que se agrega agrave noccedilatildeo de alto pensamento

dito nos termos da θξόλεζηο a noccedilatildeo de autecircntica virtude da qual ele eacute tambeacutem

responsaacutevel (θαὶ αὐηὴ ἡ θξόλεζηο κὴ θαζαξκόο ηηο ᾖ Fed 69c2) A dupla face do

pensamento como resultado do processo e ao mesmo tempo agente que o promove

mostra que a aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude corresponde agrave aquisiccedilatildeo do estado de alta

inteligecircncia que pressupotildee a θξόλεζηο Estar na condiccedilatildeo da θξόλεζηο pressupotildee ter

adquirido a alta inteligecircncia pelo processo do proacuteprio pensamento se tornando desse

modo possuidor das virtudes Assim ao mesmo tempo em que se tem agrave mostra alguns

dos seus atributos sugere-se a valoraccedilatildeo do pensar em seu mais alto niacutevel virtuoso

puro e autecircntico por isso condiccedilatildeo almejada pelo filoacutesofo Nos papeacuteis de agente e

paciente o pensar neste niacutevel se apresenta como o cume da atividade intelectual na qual

a alma se encontra em total independecircncia do corpo apesar da convivecircncia com ele e

demonstra atingir por conta disso as coisas em seu modo puro ou em termos

filosoacuteficos verdadeiro Tal pureza lhe permite um grau de compreensatildeo acerca de um

gecircnero distinto diferente do corpoacutereo identificado agrave condiccedilatildeo de estar morto que

constitui a peculiaridade do seu alcance A purificaccedilatildeo torna salientes suas distinccedilotildees e

as distinccedilotildees do que a ele se refere deixando claro que a sua atividade se daacute em torno

deste gecircnero incorpoacutereo diferente do sensiacutevel e tem em vista o que eacute verdadeiro Do

mesmo modo note-se que sendo as virtudes ataacutevicas ao seu exerciacutecio o pensar em

cit paacuteg 193) Jaacute Monique Dixsaut na nota 104 de sua traduccedilatildeo diz ldquo[] o resultado da purificaccedilatildeo

pelo pensamento eacute a katharsis isto eacute resultado do que foi purificado as virtudes Puras de qualquer

erro aos quais concernem seus termos de aplicaccedilatildeo as virtudes se tornam moderaccedilatildeo justiccedila etc[]rdquo

156

busca de sua excelecircncia constitui o ponto em que racionalidade e moral satildeo ligadas no

diaacutelogo e revela assim o teor eacutetico da investigaccedilatildeo sobre a imortalidade e da vida

segundo a filosofia

Dadas as aquisiccedilotildees do exerciacutecio do pensamento na filosofia a defesa da

conduta do filoacutesofo mostra seu valor e seu modo de operar O pensamento tem exposto

nos termos da θάζαξζηο a sua funccedilatildeo no contexto do diaacutelogo dignificar a vida do

filoacutesofo o deixando pleno de virtudes conferir-lhe algum grau de conhecimento97

tornar a alma pura e se tornar com isso cada vez mais puro ou seja livre para pensar

A abrangecircncia desta noccedilatildeo de pensamento puro ou pensamento livre do corpoacutereo natildeo

tem seu caraacuteter inteiramente exposto mas note-se eacute afim e estaacute dentro da proposta de

investigaccedilatildeo da imortalidade como permanecircncia apoacutes a morte do corpo como sugerido

anteriormente Aleacutem disso vale notar que o diaacutelogo elenca atraveacutes dos vaacuterios

argumentos utilizados na investigaccedilatildeo as caracteriacutesticas do pensamento e por enquanto

importa ressaltar as duas importantes atribuiccedilotildees que a noccedilatildeo de θαζαξκόο oferecem

analogamente e que passam a integrar o conjunto de qualidades do trabalho racional

processo e autenticidade este uacuteltimo vinculado agrave ἀιήζεηα Da mesma maneira o

θαζαξόο apresenta clareza e precisatildeo como qualidades referentes aos seus objetos e

portanto compartilhada pelo pensamento Analogamente referida pela θάζαξζηο a

operacionalidade dada nos termos da δηάλνηα e ινγηζκόο que conduz agrave excelecircncia da

razatildeo tem proposto seu valor depurativo O que na purificaccedilatildeo eacute dado como separaccedilatildeo e

afastamento mais adiante seraacute revelado como o discernimento de objetos especiacuteficos

mas que por enquanto constitui um processo de desapego promovido pela filosofia de

valor moral Tais noccedilotildees faratildeo parte da concepccedilatildeo de ciecircncia que o diaacutelogo evocaraacute

mais adiante e compotildeem a partir de entatildeo as caracteriacutesticas da atividade racional a qual

sofreraacute ao longo do diaacutelogo as devidas formulaccedilotildees filosoacuteficas

97 Pakaluk considera que a desvinculaccedilatildeo depuradora que trata o texto se daacute em graus Aos poucos a

alma vai se aproximando do estado em que permaneceraacute quando estiver inteiramente pura liberta do

corpo Ele entende que ao ligar a noccedilatildeo de purificaccedilatildeo com o treino para a morte Platatildeo sugere ser

possiacutevel a depuraccedilatildeo em vida mesmo sendo obviamente limitada ldquoPodemos imaginar tambeacutem que

parte do objetivo de Platatildeo ao introduzir a imagem da purificaccedilatildeo no SD (argumento de defesa de

Soacutecrates) em 65e6-66a 7 e 67c5-d1 eacute sugerir que a separaccedilatildeo nesta vida difere somente em graus da

morte O processo de remover uma impureza eacute naturalmente um processo para alcanccedilar um grau

extremo de uma qualidade que jaacute eacute presente Dizer que bdquonoacutes natildeo podemos conhecer nada puramente na

companhia do corpo‟ (64e4) implica dizer que noacutes jaacute conhecemos algo em algum grau na companhia do

corpordquo Pakaluk Michel ldquoDegrees of Separation in the Phaedordquo in Phronesis - Journal For Ancient

Philosophy Brill XLVIII 2 Leiden 2003 paacuteg 101

157

14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva

Dado o processo de afastamento e a consequente separaccedilatildeo entre corpo e alma

as questotildees acerca de imortalidade satildeo formuladas com vistas para a sobrevivecircncia apoacutes

a morte A partir dos proacuteximos argumentos o foco da argumentaccedilatildeo teraacute em questatildeo a

natureza da alma que como tal permite sua subsistecircncia Surge nos termos da filosofia

especificaccedilotildees acerca do domiacutenio correspondente ao que a tradiccedilatildeo religiosa tem como

poacutes-vida no qual se apresentam algumas caracteriacutesticas daquilo que seraacute descrito como

o domiacutenio da inteligibilidade e que tem portanto a faculdade cognitiva da alma como

testemunho de sua presenccedila nesse plano

ldquo[] Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a

alma subsiste algures (νὐδακνῦ ἔηη ᾖ) e natildeo fica destruiacuteda e

aniquilada (δηαθζείξεηαί ηε θαὶ ἀπνιιύεηαη) no mesmo dia em que

morre Quem sabe se logo depois que dele se liberta e sai natildeo se

desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar

rastro de existecircncia (νὐδὲλ ἔηη νὐδακνῦ ᾖ) Claro que a verificar-se

a hipoacutetese de ela subsistir algures concentrada em si mesma e liberta

(εἴπεξ εἴε πνπ αὐηὴ θαζαὑηὴλ ζπλεζξνηζκέλε θαὶ ἀπειιαγκέλε )

desses males que mesmo haacute pouco enumeravas entatildeo sim haveria

fortes e boas razotildees para esperar que o que dizes Soacutecrates fosse

verdade Poreacutem aiacute estaacute uma coisa que requer talvez natildeo pequeno

esforccedilo persuadir e provar (νὐθ ὀιίγεο παξακπζίαο δεῖηαη θαὶ

πίζηεσο) nada mais nada menos que a alma existe para aleacutem da

morte e manteacutem de alguma forma o uso das suas faculdades e

entendimento (ὡο ἔζηη ηε ςπρὴ ἀπνζαλόληνο ηνῦ ἀλζξώπνπ θαί ηηλα

δύλακηλ ἔρεη θαὶ θξόλεζηλ)rdquo (Fed 70a2-b4)98

Deve-se primeiramente observar que a concepccedilatildeo de alma segundo a tradiccedilatildeo

entra em conflito com a noccedilatildeo de morte oferecida pelo filoacutesofo ateacute aqui Ao se levantar

pela voz de Cebes a possibilidade de destruiccedilatildeo e de aniquilamento coloca-se em

98 Vale chamar a atenccedilatildeo para as traduccedilotildees do termo phronesis Na traduccedilatildeo francesa de Monique

Dixsaut temos esse trecho ldquo[] ela conserva tambeacutem uma certa forccedila e o pensamento (penseacutee)rdquo Dixsaut

op cit p Rowe opta por algo proacuteximo da traduccedilatildeo que estamos seguindo ldquotina dinamin `algum poderacute

`alguma capacidadeacute mas seraacute de fato uma capacidade relevante se for para um entendimento

(understanding)rdquo Rowe op cit p 153 Fowler opta por ldquoany power and intelligencerdquo Fowler H N Plato

Phaedo Harvard University Press Cambridge Massachusetts Loeb Classical Library p243

158

questatildeo de maneira mais direta a natureza da alma que estaacute em jogo A existecircncia da

alma separada do corpo esbarra em um problema que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo

uma vez que na morte o perecimento do corpo eacute visiacutevel Embora o argumento acerca da

filosofia como exerciacutecio para a boa morte seja aceito falta detalhar esta natureza que

oferece condiccedilotildees para uma possiacutevel sobrevivecircncia agrave corrupccedilatildeo Dito de outro modo o

diaacutelogo propotildee uma anaacutelise de planos no qual se pode distinguir corpo e alma a fim de

revelar o gecircnero de cada um e obter a partir disso uma explicaccedilatildeo acerca da destruiccedilatildeo

de um e da permanecircncia do outro Da mesma maneira eacute notaacutevel a necessidade de

demonstrar a possibilidade de rastrear de conhecer em alguma medida tal subsistecircncia

sendo o pensamento e sua capacidade cognitiva as caracteriacutesticas sobreviventes e

portanto uacuteteis para a investigaccedilatildeo

Para isso o diaacutelogo utilizaraacute duas argumentaccedilotildees que procuram demonstrar a

existecircncia A primeira que vem a seguir mostra atraveacutes da anaacutelise do movimento e

princiacutepio de geraccedilatildeo dos seres vivos que a alma se distingue em gecircnero de tudo o que eacute

corruptiacutevel pelo tempo Na sequecircncia com a Teoria da Reminiscecircncia se pretende

oferecer uma explicaccedilatildeo sobre a vivecircncia da alma antes do nascimento em vida humana

ou seja em um periacuteodo anterior agrave sua prisatildeo em um corpo Ambos os argumentos

oferecem uma visatildeo da alma neste domiacutenio distinto e por conseguinte do pensamento

como faculdade do conhecimento e de sua atuaccedilatildeo como capacidade cognitiva Cabe

verificar as primeiras formulaccedilotildees deste outro domiacutenio distinto do sensiacutevel no qual a

alma supostamente pode sobreviver a partir do argumento da geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo e dos

contraacuterios Neles satildeo dadas informaccedilotildees acerca da natureza da alma e acerca da

concepccedilatildeo de inteligibilidade que o texto pretende construir a partir da concepccedilatildeo

filosoacutefica de morte como um estado no qual a alma subsiste

Uma vez de acordo que a alma sobrevive no Hades tal como narra os antigos

misteacuterios (παιαηὸο ιόγνο) parece aceitaacutevel conceber que as almas que ali habitam

regressam renascendo dos que estatildeo mortos Logo deve-se admitir que os vivos nascem

dos mortos o que demonstra portanto a sua existecircncia no paiacutes dos mortos Se

comprovada a validade deste raciociacutenio Soacutecrates e seus amigos teriam encontrado uma

maneira de argumentar a favor da imortalidade (Fed 70c4-d5) O princiacutepio em questatildeo

a saber princiacutepio da geraccedilatildeo o qual governa a geraccedilatildeo dos seres vivos ganha uma

anaacutelise que mostraraacute seus limites em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de vida e morte geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo Ao propor que as coisas se originam do seu oposto cabe verificar se nas

relaccedilotildees entre opostos esse princiacutepio se apresenta seja no que diz respeito a situaccedilotildees

159

opostas como morte-vida seja nas relaccedilotildees em que estatildeo envolvidos conceitos como a

justiccedila o belo e a grandeza Em outros termos a anaacutelise parte da relaccedilatildeo de

contrariedade ἐλαληίνο que daacute origem conforme o raciociacutenio ao nascimento agrave γέλεζηο

(Fed 70d5-e) Seria comum a tudo o que existe surgir de seu oposto Esta pergunta de

fundo norteia a anaacutelise da γέλεζηο e conduz a investigaccedilatildeo de modo a examinar o

proacuteprio princiacutepio e qual contexto ele abrange

Parece evidente que este princiacutepio eacute presente ao se observar a geraccedilatildeo

equivalente a uma mudanccedila de estado O mais fraco pode se tornar mais forte o mais

raacutepido se tornar mais lento coisas injustas podem se tornarem justas o que denota que

entre as coisas que satildeo passiacuteveis de transiccedilatildeo ou seja que podem mudar de estado a

mudanccedila sempre seraacute para o estado contraacuterio (Fed 71a) Da mesma forma a

argumentaccedilatildeo tem em vista o processo de mudanccedila que se daacute no intervalo entre um

estado e outro que constituem o processo de geraccedilatildeo como diminuiccedilatildeo e aumento

aquecimento resfriamento separar unir (Fed 71a12-b10) O argumento coloca assim

estado e processo como os pontos a partir dos quais se deve dar a diferenciaccedilatildeo de

gecircnero entre o que se analisa Examinada dessa perspectiva a morte tem a vida como

seu contraacuterio e morrer e nascer satildeo o processo de passagem de um estado para o outro

gerando-se reciprocamente (Fed 71c) Dado que a alma existe no mundo dos mortos e

que o estar morto se origina do estar vivo e o estar vivo por sua vez adveacutem do estado

de morte parece inegaacutevel que faz parte do processo assim como o morrer o reviver (Τὸ

ἀλαβηώζθεζζαη Fed71d5 72a2)

ldquo- E agora ndash comentou Soacutecrates ndash que caminho vamos noacutes

seguir Ou bem que nos escusamos a compensar esse processo com

seu oposto (mas natildeo seraacute isso deixar a natureza manca (ἀιιὰ ηαύηῃ

ρσιὴ ἔζηαη ἡ θύζηο) ) ou bem que a ldquomorrerrdquo teremos de antepor

um processo de geraccedilatildeo contraacuterio [] ndash E qual em concreto ndash

Reviverrdquo (71e8-13)

Trata-se de dois estados e sobretudo no caso do tema da morte de planos

diferentes em que se analisa a geraccedilatildeo Ainda que natildeo se questione ainda sobre o tipo

destes estados como se daraacute mais adiante cabe notar tal divisatildeo e a dinacircmica que

Soacutecrates sublinhou no processo de geraccedilatildeo O movimento que descreve a γέλεζηο eacute

dotado de uma circularidade que garante o nascimento e a morte dos seres vivos com

essa a alternacircncia de estados Tal noccedilatildeo eacute importante porque sugere a conservaccedilatildeo

daquilo que morre e renasce oferecendo assim subsiacutedios para a tese de permanecircncia da

160

alma Sem um movimento circular que garantisse a alternacircncia entre estados o

fenocircmeno da geraccedilatildeo cessaria uma vez que a mudanccedila que constitui a gecircnese de morte

e vida natildeo aconteceria

ldquo[] se os contraacuterios natildeo se compensassem mutuamente como

que numa sucessatildeo circular (ὡζπεξεὶ θύθιῳ πεξηηόληα) se ao inveacutes

a geraccedilatildeo se processasse linearmente e num uacutenico sentido de um

extremo para o seu oposto sem dar volta na direccedilatildeo do primeiro e

vice-versa bem vecircs todas as coisas acabariam por adquirir a mesma

postura por se sujeitarem a um mesmo estado e seria o fim da

geraccedilatildeo (νἶζζ ὅηη πάληα ηειεπηῶληα ηὸ αὐηὸ ζρκα ἂλ ζρνίε θαὶ ηὸ

αὐηὸ πάζνο ἂλ πάζνη θαὶ παύζαηην γηγλόκελα)rdquo (Fed 72a11-72b5)

Soacutecrates parece ter demonstrado dessa forma a loacutegica que subjaz agrave geraccedilatildeo e

ao mesmo tempo agrave doutrina da transmigraccedilatildeo das almas que narra a antiga doutrina

(Fed 72d6 ndash e2) Ao mesmo tempo estaacute diante de um argumento que autoriza a

investigaccedilatildeo da indestrutibilidade da alma uma vez que tal loacutegica dissipa ao menos por

ora qualquer duacutevida acerca da possibilidade de sua existecircncia e portanto de sua

resistecircncia agrave morte e destruiccedilatildeo do corpo Conveacutem notar ainda alguns elementos deste

argumento Tal como foi dada a geraccedilatildeo assume como principal caracteriacutestica a

transitoriedade entre um estado e outro Deve-se observar que embora a argumentaccedilatildeo

se decirc a partir da observaccedilatildeo da geraccedilatildeo em um sentido bastante amplo e pouco

definido do que existe - seres vivos fenocircmenos da natureza e noccedilotildees abstratas ndash tem-se

por objetivo encontrar um princiacutepio comum que promove tal existecircncia e conferir a ele

uma explicaccedilatildeo filosoacutefica como se viu O plano em que se daacute o exame vale observar

consiste no domiacutenio dos eventos da vida no tempo de sua duraccedilatildeo (βίνο) cuja loacutegica

que os organiza mostra um elemento inexoraacutevel em meio agrave mudanccedila que inicia ou finda

essa duraccedilatildeo a alma que renasce Morte e vida satildeo tomados nessa perspectiva como

circunstacircncias transitoacuterias sendo conferido a elas portanto certa relatividade em

contraste com a conservaccedilatildeo da alma que permanece

Essa parece ser uma estrateacutegia que Soacutecrates utiliza na argumentaccedilatildeo para chegar

ao ponto que tinha em mira demonstrar que algo escapa agrave mudanccedila dos eventos

necessaacuterios agrave vida humana nascer-morrer Se a questatildeo de fundo levava em conta a

possibilidade de destruiccedilatildeo da alma junto com o corpo a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo

oferece uma noccedilatildeo de exterioridade a esse princiacutepio atraveacutes do ldquoreviverrdquo o qual

apresenta o processo de geraccedilatildeo como movimento ciacuteclico possiacutevel e ao mesmo tempo

161

sugere que de tal processo participa justamente algo que resiste a transitoriedade das

mudanccedilas Esse aspecto duacutebio do reviver parece importante para fazer a distinccedilatildeo entre

seres abstratos e o plano da experiecircncia que o diaacutelogo vai apresentar mais adiante

Embora tenha a sua sobrevivecircncia demonstrada pelo princiacutepio de geraccedilatildeo a alma parece

natildeo obedececirc-lo na medida em que ela mesma natildeo muda natildeo se aniquila e permanece

portanto no mundo do Hades podendo nascer novamente Sendo assim sua existecircncia

natildeo pode ser tomada tal como existecircncia na natureza e nem sua duraccedilatildeo compreendida

no tempo de vida devendo ser ela de um gecircnero distinto

Importa realizar tais observaccedilotildees para apontar a construccedilatildeo da noccedilatildeo de

domiacutenio em que vai atuar o intelecto Pode-se entrever nessa uacuteltima argumentaccedilatildeo o

plano distinto da vida humana e da corporeidade como o ambiente no qual a θξόλεζηο

de alguma forma atua dada sobrevivecircncia da alma O fato de encontrar um princiacutepio que

apresente uma loacutegica para explicar a sobrevivecircncia da alma eacute do mesmo modo um

dado que deve ser levado em consideraccedilatildeo uma vez que o pensar no exerciacutecio de sua

faculdade teraacute como vaacutelido para a investigaccedilatildeo da imortalidade o que for do acircmbito da

racionalidade Dadas as razotildees para se convencer da subsistecircncia da alma o diaacutelogo

prossegue averiguando as possibilidades de dizecirc-la nesse domiacutenio passando a

especificar de agora em diante a atuaccedilatildeo do pensamento

II A natureza inteligiacutevel

21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva

Apoacutes a conclusatildeo sobre a indestrutibilidade e portanto sobre a preservaccedilatildeo da

faculdade intelectual da alma e de sua capacidade cognitiva os rumos da investigaccedilatildeo

sobre a imortalidade passam a utilizarem elementos epistemoloacutegicos Parece

conveniente que a faculdade intelectual da alma tenha a partir de agora o seu perfil

explorado e o resultado de sua atividade analisado para que se possa averiguar em que

medida tal produto constitui de fato um conhecimento Para tal o texto recorre a Teoria

da Reminiscecircncia um discurso (ιόγνο) jaacute conhecido do ciacuterculo de amigos de Soacutecrates

atraveacutes da qual se pretende demonstrar em certa medida a subsistecircncia e a atuaccedilatildeo

162

intelectual da alma A concepccedilatildeo de rememoraccedilatildeo tal como o Feacutedon apresenta ressalta

o caraacuteter cognitivo do pensamento sendo a ἀλάκλεζηο equivalente agrave atividade do

aprendizado

Introduzir a Teoria como um argumento que oferece provas (αἱ ἀπνδείμεηο Fed

75a5) da imortalidade parece conveniente aos propoacutesitos da investigaccedilatildeo dado que a

accedilatildeo de rememorar permite ao filoacutesofo fazer deduccedilotildees sobre um domiacutenio no qual o

corpo ainda natildeo tinha nenhuma participaccedilatildeo ou seja em um ambiente supostamente

anterior ao nascimento em vida humana Considera-se que a rememoraccedilatildeo constitui

assim um testemunho da accedilatildeo puramente racional e portanto a partir da qual se pode

deduzir acerca da imortalidade

ldquoO que aliaacutes Soacutecrates ndash atalhou Cebes- natildeo vem senatildeo

reforccedilar essa conhecida teoria que trazes agrave baila (θαὶ θαη ἐθεῖλόλ γε

ηὸλ ιόγνλ) ou seja que o aprender natildeo eacute senatildeo recordar segundo

ela eacute indispensaacutevel que tenhamos adquirido em tempo anterior ao

nosso nascimento os conhecimentos que atualmente recordamos (ὅηη

ἡκῖλ ἡ κάζεζηο νὐθ ἄιιν ηη ἢ ἀλάκλεζηο ηπγράλεη νὖζα θαὶ θαηὰ

ηνῦηνλ ἀλάγθε πνπ ἡκᾶο ἐλ πξνηέξῳ ηηλὶ ρξόλῳ κεκαζεθέλαη ἃ λῦλ

ἀλακηκλῃζθόκεζα) Ora tal natildeo seria possiacutevel se a nossa alma natildeo

existisse jaacute algures antes de encarnar nesta forma humana De modo

que ateacute sob este prisma daacute ideia que a alma eacute algo de imortalrdquo (Fed

72e3-73a3)

A elucidaccedilatildeo desta noccedilatildeo de rememoraccedilatildeo como aprendizado vem logo a seguir

No exerciacutecio de rememorar a explicaccedilatildeo (Ἑλὶ κὲλ ιόγῳ Fed 75a7) dada como resposta

correta a um questionamento eacute possiacutevel porque a alma teve conhecimento e uma

atividade racional correta neste periacuteodo anterior99

Desse modo a atividade intelectual

em termos do conhecimento e de um arrazoamento correto (ἐπηζηήκε ἐλνῦζαθαὶ ὀξζὸο

ιόγνο)100

realizados em um estado anterior ao nascimento constitui a condiccedilatildeo para que

99 Fed 73a9-10 ldquo(hellip) quando interrogamos as pessoas desde que saibamos interrogaacute-las elas satildeo por

si capazes de explicar corretamente tudo o que se lhes peccedila ora se natildeo tivesses jaacute um conhecimento

inato e uma correta visatildeo das coisas de forma alguma estariam em condiccedilotildees de fazecirc-lordquo (θαίηνη εἰ κὴ

ἐηύγραλελ αὐηνῖο ἐπηζηήκε ἐλνῦζα θαὶ ὀξζὸο ιόγνο νὐθ ἂλ νἷνί η ἦζαλ ηνῦην πνηζαη)rdquo Fowler traduz

os termos por ldquosome knowledge and right reasonrdquo Fowler op cit p 253

100 Para Dominic Scott esta eacute uma clara alusatildeo de que a Teoria da Reminiscecircncia constitui a exemplo do

que se tem no Meacutenon uma teoria do inatismo Para o autor a diferenccedila da teoria de Platatildeo em relaccedilatildeo a

outras teorias do inatismo diz respeito ao dado de ser o conhecimento latente e sobretudo anterior ao

nascimento Este dado no entanto seria apenas um recurso literaacuterio afim com a prova da preacute-existecircncia

da alma como pretende o argumento sendo a Teoria na verdade sobre a descoberta de conteuacutedos inatos

Scott D Recollection and Experience - Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge

University Press nota 2 p 16 Embora seja a leitura de muitos inteacuterpretes vale dizer que esta natildeo eacute a

perspecitiva que se privilegia neste estudo A compreensatildeo de Chen sobre este ponto eacute bastante afim com

o que se entende aqui O autor chama tal experiecircncia de revivificaccedilatildeo de um conteuacutedo de uma percepccedilatildeo

163

haja rememoraccedilatildeo no estado de vida e uma prova da preexistecircncia da alma em relaccedilatildeo

ao nascimento em um corpo (Fed 73c1-3)

Cabe observar assim que o tipo de operaccedilatildeo do pensamento que a narrativa

acerca da ἀλάκλεζηο propotildee consiste na recuperaccedilatildeo de dados adquiridos em uma

experiecircncia puramente intelectual os quais satildeo considerados conhecimento e razotildees

corretas Aprender ou rememorar consiste nesta atividade de resgate de conhecimento

operaccedilatildeo que pode ser induzida vale dizer por diagramas e outras figuras matemaacuteticas

A passagem cita o exemplo para introduzir o tema da induccedilatildeo da reminiscecircncia e da

conduccedilatildeo do aprendizado Entretanto vale dizer que o aspecto cognitivo que se quer

apresentar no Feacutedon com a Teoria da Reminiscecircncia se desenvolveraacute com importantes

diferenccedilas em relaccedilatildeo ao Meacutenon diaacutelogo no qual o tema eacute explorado com vistas

sobretudo para a questatildeo do aprendizado nos termos de um raciociacutenio indutivo

Enquanto no Meacutenon101

a Teoria pretende oferecer uma explicaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo

da capacidade raciocinativa e de um meacutetodo especiacutefico o meacutetodo indutivo a partir de

figuras matemaacuteticas no Feacutedon interessa mostrar a recuperaccedilatildeo de elementos inteligiacuteveis

nos termos de uma reaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo sensiacutevel a qual eacute dada como um ato simples e

como uma operaccedilatildeo tambeacutem sem grande complexidade da faculdade inteligente da

alma102

preacutevia O que se tem em mente para ele natildeo satildeo os conteuacutedos mas ldquoa revificaccedilatildeo do conteuacutedo desta

percepccedilatildeo preacutevia e o estado de ser lembrado do objeto que eacute mais uma vez vistordquo Ele explica que tal

conteuacutedo percepccedilotildees preacutevias diferenciam-se de ideias inatas de conteuacutedo definido dizendo ldquoA suposta

faculdade inata eacute distinta de ideias inatas exatamente neste ponto natildeo oferece o conteuacutedo necessaacuterio ()

entatildeo a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute indispensaacutevel para oferecer o conteuacutedo do conhecimento os sentidos satildeo

sine qua non para o conhecimentordquo Chen op cit p 25 28 O inatismo tal como a Teoria no Feacutedon

apresenta parece se referir muito mais a uma faculdade inata de apreensatildeo de objetos de determinado tipo

do que a um conteuacutedo antes apreendido e mantido ateacute ser descoberto posteriormente As accedilotildees cognitivas

que descrevem a reminiscecircncia como um resgate de conteuacutedo tal como entendo consistem justamente

em maneiras de a alma realizar uma experiecircncia intelectual semelhante agrave que teve antes do nascimento

cujo resultado pode ser a apreensatildeo dos conceitos Natildeo haacute portanto latecircncia e descoberta de conteuacutedo

mas a descriccedilatildeo de um ato cognitivo que remonta uma experiecircncia intelectual passada

101 A rememoraccedilatildeo como aprendizado que o diaacutelogo Meacutenon apresenta traz uma diferenccedila em relaccedilatildeo ao

que se vecirc no Feacutedon ao considerar que a rememoraccedilatildeo de um conteuacutedo pode levar a outros (Men 81d3)

tal como parece mostrar o argumento no qual Soacutecrates conduz o escravo na investigaccedilatildeo de um problema

da geometria Ao tomar como modelo os meacutetodos dedutivo e indutivo dos geocircmetras (86-87b2) Soacutecrates

admite ter a reminiscecircncia um objetivo diferente que vai aleacutem da demonstraccedilatildeo de um plano inteligiacutevel

testemunhado pelo intelecto Platatildeo Meacutenon traduccedilatildeo de Maura Iglesias 2ordf ed Rio de Janeiro Satildeo Paulo

PUC do Rio Loyola 2003 (coleccedilatildeo Bibliotheca Antiqua)

102 Chen corrobora nossa anaacutelise ao dizer ldquo() a anamnesis como eacute concebida no Feacutedon se distingue

daquela vista no Meacutenon no que segue e em dois outros pontos A) rememoraccedilatildeo de ideias eacute a

rememoraccedilatildeo de ideias de forma isolada isto eacute natildeo da relaccedilatildeo de ideias entre elas mesmas enquanto que

no Meacutenon eacute a rememoraccedilatildeo de um objeto inteligiacutevel em relaccedilatildeo a outros inteligiacuteveis B) a rememoraccedilatildeo

tratada no Feacutedon eacute um instantaneous a rememoraccedilatildeo tratada no Meacutenon consiste em dois estaacutegios cada

um consistindo de um processo racionalrdquoChen op cit p 19-20

164

Eacute importante dar atenccedilatildeo a este uacuteltimo dado porque a partir dele tem iniacutecio uma

explanaccedilatildeo sobre o que se pode considerar a provocaccedilatildeo das sensaccedilotildees como um

estiacutemulo para o pensamento Apesar do papel negativo atribuiacutedo ao corpo e aos dados

sensiacuteveis as proacuteximas passagens mostram a colaboraccedilatildeo dos sentidos como indutores

desta atividade de reminiscecircncia a partir das quais se datildeo como se veraacute a seguir noccedilotildees

inteligiacuteveis como as noccedilotildees matemaacuteticas Vale notar que o contexto deste aprendizado

nos termos da rememoraccedilatildeo pressupotildee a superaccedilatildeo do domiacutenio sensiacutevel entretanto natildeo

exatamente por meio do exerciacutecio intelectual que exigem as operaccedilotildees matemaacuteticas

mas do ato intelectivo que corresponde a uma resposta inteligente da alma ao sensiacutevel

sendo nesse caso a noccedilatildeo matemaacutetica tambeacutem resultado de uma rememoraccedilatildeo

consistindo portanto em uma lembranccedila103

Uma vez aceita a definiccedilatildeo da reminiscecircncia cabe verificar como se constitui

uma rememoraccedilatildeo e como a Teoria potildee a questatildeo da cogniccedilatildeo Como retorno a um

conhecimento a reminiscecircncia designa determinada situaccedilatildeo (ηίλα ηξόπνλ Fed 73c5)

que envolve a participaccedilatildeo dos sentidos e ao mesmo tempo a superaccedilatildeo do domiacutenio

sensiacutevel A partir da percepccedilatildeo seja atraveacutes da visatildeo ou da audiccedilatildeo a alma toma

conhecimento do objeto que experiencia e de outro distinto desse que ela vecirc ou ouve

constituindo assim um conhecimento diferente da percepccedilatildeo sensiacutevel Esse objeto

distinto que a alma capta apreende (ἐλλόεζηο) consiste de fato no objeto lembrado ou

seja recuperado pelo intelecto dito ldquoconhecimentordquo e tal assimilaccedilatildeo no ato de

rememorar104

Natildeo se trata de uma mera percepccedilatildeo sensiacutevel mas de conceber algo que

estaacute para aleacutem dela105

103 Acrill faz um esclarecimento importante ldquoO argumento no Meacutenon diz respeito ao nosso

conhecimento de verdades necessaacuterias () O argumento do Feacutedon difere nisto trata da nossa aquisiccedilatildeo

dos conceitos mais do que de verdades necessaacuteriasrdquo Acrill J ldquoAnamnesis in the Phaedo ndash Remarks on the

73c-75crdquo in Essays on Plato and Aristotle 1997 New York Oxford University Press p 13 De acordo com

o que se tem analisado por verdades necessaacuterias os resultados de uma demonstraccedilatildeo matemaacutetica e por

conceitos as ideias

104 Fed73c6-10 ldquo() suponhamos que um indiviacuteduo percepciona um dado objeto pela vista pelos

ouvidos ou por qualquer outro meio sensorial e natildeo apenas fica a conhecer esse objeto como capta

para aleacutem dele a ideia de um outro que natildeo pertence agrave mesma esfera de conhecimentos natildeo seraacute

razoaacutevel neste caso afirmar que houve uma reminiscecircncia de algo que a nossa mente jaacute tinha captado

(ἐάλ ηίο ηη ἕηεξνλ ἢ ἰδὼλ ἢ ἀθνύζαο ἤ ηηλα ἄιιελ αἴζζεζηλ ιαβὼλ κὴ κόλνλ ἐθεῖλν γλῷ ἀιιὰ θαὶ ἕηεξνλ

ἐλλνήζῃ νὗ κὴ ἡ αὐηὴ ἐπηζηήκε ἀιι ἄιιε ἆξα νὐρὶ ηνῦην δηθαίσο ιέγνκελ ὅηη ἀλεκλήζζε νὗ ηὴλ

ἔλλνηαλ ἔιαβελ)rdquo

105 Acrill aponta para uma dificuldade acerca dos conteuacutedos dados na reminiscecircncia ao colocar uma

questatildeo importante sobre as razotildees do argumento oferecer nesses termos a possibilidade de apreensatildeo de

um segundo conteuacutedo na reminiscecircncia O autor se questiona sobre a omissatildeo da condiccedilatildeo de ser este

ldquooutrordquo anteriormente conhecido o que seria uma condiccedilatildeo condizente com a definiccedilatildeo de reminiscecircncia

mas que no entanto colocaria em risco o objetivo do argumento de constituir uma demonstraccedilatildeo da preacute-

existecircncia da alma Este conhecimento secundaacuterio derivado de uma primeira lembranccedila poderia ser

compreendido como uma invenccedilatildeo uma composiccedilatildeo de uma ideia o que segundo Acrill seria censuraacutevel

165

Ao ver a lira ou o manto do amado o amante se recorda dele do mesmo modo

algueacutem ao avistar Siacutemias ou ver a figura de um cavalo poderia se lembrar de Cebes ou

lembrar de Siacutemias a partir do retrato do proacuteprio Siacutemias (73d-e) Os objetos que possuem

alguma relaccedilatildeo seja de semelhanccedila ou dessemelhanccedila satildeo associados na rememoraccedilatildeo

quando um deles eacute percebido A ligaccedilatildeo entre eles no caso entre uma lira e um homem

descreve o processo de conceber uma ideia (εἶδνο) dada como a tomada de um

conteuacutedo pelo intelecto e oferecendo uma mostra do pensamento atuando de modo a se

distinguir e se elevar em relaccedilatildeo a uma percepccedilatildeo106

Deve-se notar que o que se tem nesse resgate eacute entretanto a forma do amado

nos termos de uma imagem oriunda do sensiacutevel Embora se trate de um conteuacutedo

cognitivo parece notaacutevel a ausecircncia de caraacuteter ontoloacutegico no sentido forte em que εἶδνο

apareceraacute ao longo do diaacutelogo e na Teoria das Ideias Ao que parece o objeto dado pela

lembranccedila tem seu aspecto inteligiacutevel sugerido no que se refere a um conteuacutedo da

mente mas natildeo consiste necessariamente em uma ideia Seria precipitado afirmar que

os conhecimentos tal como satildeo dados neste exemplo referem-se sempre a uma forma

inteligiacutevel O produto mental deste ato de rememorar dito lembranccedila pelo que o texto

sugere ateacute aqui consiste na imagem de uma experiecircncia vivida anteriormente Natildeo se

deve compreender que a lembranccedila de Siacutemias consiste na forma de Siacutemias Parece mais

plausiacutevel supor que ao ter como fonte o Siacutemias conhecido com o qual se teve uma

experiecircncia preacutevia a lembranccedila consista na imagem que remonta tal experiecircncia- o

Siacutemias visto

Nesse sentido a fonte da lembranccedila eacute muito mais empiacuterica e natildeo se trata

portanto da aquisiccedilatildeo de uma ideia Todavia tal aquisiccedilatildeo pode acontecer a partir das

associaccedilotildees possiacuteveis que se pode fazer na reminiscecircncia Ver Siacutemias e conceber que ele

eacute um homem por exemplo lembrar-se de um objeto relacionado a ele ou natildeo descreve

em certa medida a aquisiccedilatildeo de um conteuacutedo intelectual dado que eacute produto de uma

operaccedilatildeo do intelecto como se daraacute mais adiante Contudo natildeo parece estar em questatildeo

neste produto o qual constitui um conceito ou uma ideia caracteriacutesticas e extensotildees que

o qualificariam como tais A caracteriacutestica acerca da lembranccedila que parece ser

em uma investigaccedilatildeo ldquosobre a origem geral das ideiasrdquo e caacute entre noacutes a partir do que se observa natildeo

parece ser o caso Acrill op cit p 23

106 Fed 73d5-9 ldquoOra sabes o que acontece se por exemplo um amante avista uma lira um manto ou

qualquer objeto de que o seu amado habitualmente se serve ao mesmo tempo em que apreende a lira o

seu espiacuterito capta por igual a imagem do amado a quem a lira pertence e aiacute tens pois uma

reminiscecircncia(Οὐθνῦλ νἶζζα ὅηη νἱ ἐξαζηαί ὅηαλ ἴδσζηλ ιύξαλ ἢ ἱκάηηνλ ἢ ἄιιν ηη νἷο ηὰ παηδηθὰ αὐηῶλ

εἴσζε ρξζζαη πάζρνπζη ηνῦην ἔγλσζάλ ηε ηὴλ ιύξαλ θαὶ ἐλ ηῆ δηαλνίᾳ ἔιαβνλ ηὸ εἶδνο ηνῦ παηδὸο νὗ

ἦλ ἡ ιύξα ηνῦην δέ ἐζηηλ ἀλάκλεζηο)rdquo

166

importante ressaltar nesse argumento se refere justamente agrave natureza distinta do

conteuacutedo da faculdade cognitiva107

Conveacutem primeiramente observar que a superaccedilatildeo do intelecto que ocorre na

ἀλάκλεζηο se mostra importante para a prova da imortalidade e para os fins

epistemoloacutegicos que o diaacutelogo aos poucos faz uso a fim de comprovar a validade do

argumento e a eficiecircncia do pensamento Note-se que noccedilotildees como conhecimento

aprendizagem e reta razatildeo satildeo introduzidos ao passo que o diaacutelogo se encaminha para

elucidar a natureza da alma e assim realizar uma profiacutecua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

corpo e agrave percepccedilatildeo do sensiacutevel O argumento da ἀλάκλεζηο lanccedila luz dessa maneira

ao outro domiacutenio que ainda estaacute por ser explanado o qual supostamente abriga a alma

em estado de pureza e os conhecimentos O recurso dado pela Teoria da Reminiscecircncia

permite dessa forma associar o conhecimento e a atividade intelectual a este domiacutenio

distinto deslocando-os do campo que se refere ao corpo ao sensiacutevel para este outro o

qual mais tarde seraacute descrito e identificado ao inteligiacutevel Sendo assim vale examinar

por enquanto as caracteriacutesticas e a operaccedilatildeo desta atividade do pensamento nos termos

de uma rememoraccedilatildeo ou aprendizado atentando para os elementos epistemoloacutegicos que

comeccedilam a ser dispostos na investigaccedilatildeo

O argumento segue de modo a averiguar com mais detalhes as associaccedilotildees e os

objetos que se tem na reminiscecircncia

ldquo - Ora de todos estes exemplos natildeo decorre justamente que

nuns casos a reminiscecircncia se produz a partir de objetos

semelhantes e noutros a partir de objetos dessemelhantes

- Sem duacutevida

- E quando ela se produz a partir de objetos semelhantes natildeo

seraacute inevitaacutevel uma segunda reaccedilatildeo (πξνζπάζρεηλ) como esta ndash a de

nos interrogarmos sobre o grau de semelhanccedila que o objeto atual

apresenta com aquele que recordamos (ἐλλνεῖλ εἴηε ηη ἐιιείπεη ηνῦην

θαηὰ ηὴλ ὁκνηόηεηα εἴηε κὴ ἐθείλνπ)

- Eacute inevitaacutevel ndash confirmou

- Vecirc laacute entatildeo se estaacute certo ndash prosseguiu ndash Afirmamos creio a

existecircncia de algo ldquoigualrdquo (εἰ ηαῦηα νὕησο ἔρεη θακέλ πνύ ηη εἶλαη

ἴζνλ) natildeo quero dizer um tronco de madeira igual a outro tronco ou

uma pedra igual a outra pedra nem nada desse gecircnero mas uma

realidade distinta de todas estas que estaacute para aleacutem delas ndash o igual

107 Para Acrill o conceito eacute equivalente agrave Forma ldquoX-ness is an eternal unchanging Form an

independently existing entityrdquo Acrill op cit p 29 Brisson faz uma criacutetica a este entendimento dizendo

ldquo() the Forms are not equivalent to concepts as J L Acrill wold have it (hellip)rdquo por compreender que no

Feacutedon a reminiscecircncia estaacute explicitamente associada ao inteligiacutevel Brisson ldquoReminiscence in Platordquo in

Platonism and Forms of Intelligence Berlin Akademie Verlag (Dillon J Zouko M E ed) 2008 p 184

nota 13

167

em si mesmo Afirmaremos que isso existe ou natildeo (ἀιιὰ παξὰ ηαῦηα

πάληα ἕηεξόλ ηη αὐηὸ ηὸ ἴζνλ θῶκέλ ηη εἶλαη ἢ κεδέλ)rdquo (Fed 74a)

Esse trecho apresenta de maneira mais assertiva a sugestatildeo da Teoria acerca de

outro domiacutenio e a ligaccedilatildeo que se tem com ele por meio da atividade intelectiva A accedilatildeo

de rememoraccedilatildeo pode se dar a partir de objetos semelhantes paus e pedras iguais ou

dessemelhantes a lembranccedila de um homem por meio da visatildeo de um cavalo Natildeo

parece haver uma regra para as associaccedilotildees realizadas na reminiscecircncia no entanto eacute

evidente que em qualquer ligaccedilatildeo entre o que se associa estaacute presente um conteuacutedo da

ordem do intelecto algo distinto do gecircnero corpoacutereo como a noccedilatildeo de igualdade ou a

imagem do amado Este ldquoalgo outrordquo (ἕηεξόλ ηη) diferente do que se percebe atraveacutes

dos sentidos mostra-se afim com a noccedilatildeo de igualdade que subjaz agraves relaccedilotildees entre as

percepccedilotildees dos paus e pedras que se tem na experiecircncia e que deve ser chamado de ldquoo

proacuteprio igualrdquo (αὐηὸ ηὸ ἴζνλ)

A esta noccedilatildeo que se mostra agora de tipo distinto parece ser conferida um grau

realidade (ηη εἶλαη) ainda natildeo definida evidentemente mas certamente diferente do

corpoacutereo e coerente com este periacuteodo anterior que traz o argumento sendo assim

cognosciacutevel e uacutetil para a investigaccedilatildeo108

(Fed 74b1-3) A partir da igualdade suscitada

pela experiecircncia de dois objetos iguais ou desiguais a alma eacute remetida a esta realidade

Nela o proacuteprio igual eacute concebido e ao ser recuperado pela rememoraccedilatildeo eacute designado

conhecimento (ἐπηζηήκε) (Fed 74b4)

Ora em que termos a imagem de uma experiecircncia anterior dada em uma

reminiscecircncia pode oferecer os seres inteligiacuteveis a ponto de serem tais imagens as

lembranccedilas consideradas conhecimentos Do que pode diferir uma noccedilatildeo ou conceito

dado na reminiscecircncia da ideia Para obter uma resposta cabe verificar novamente

acerca do significado de ἐπηζηήκε Segundo o que sugere o exemplo o que se recupera

na reminiscecircncia satildeo as imagens de inteligiacuteveis anteriormente conhecidos e natildeo os

proacuteprios seres inteligiacuteveis Tal como a partir da lira se tem na rememoraccedilatildeo da imagem

do amado e natildeo ldquoo proacuteprio amadordquo ou seja tem-se X1 e natildeo do proacuteprio X parece

legiacutetimo haver na reminiscecircncia a apreensatildeo de conteuacutedos da ordem do pensamento sem

constituiacuterem necessariamente a apreensatildeo de uma ideia ou conceito Nesse sentido os

conhecimentos consistem nos objetos do pensar outrora experienciados sejam imagens

108 O que aqui se designa como domiacutenio ou realidade sugerida na reminiscecircncia Brisson chama de

ldquototalidade do inteligiacutevelrdquo a qual teria dado agrave alma o conhecimento antes de nascer Brisson 2008 op cit

p 187

168

ou conceitos e o rememorar descreve a recuperaccedilatildeo desta experiecircncia anterior e natildeo um

novo contato entre a alma e os seres tal qual se realizou antes do nascimento nem a

descoberta de ideias abrigadas em algum canto esquecido da memoacuteria como visto 109

Todavia este trecho aponta para a apreensatildeo de uma noccedilatildeo inteligiacutevel que se daacute

indiretamente a partir da reminiscecircncia A concepccedilatildeo do proacuteprio igual constitui uma

mostra da operaccedilatildeo intelectiva decorrente da reminiscecircncia na qual se ultrapassa a

imagem de uma experiecircncia sensiacutevel como acontecia com a imagem de Siacutemias para

um dado inteligiacutevel ou seja apreensiacutevel somente em uma experiecircncia puramente

intelectual Seria portanto o proacuteprio igual uma visatildeo da ideia anteriormente conhecida

Eacute provaacutevel e conforme o que indica o texto a tal produto se daacute o nome de

conhecimento Vale reparar que a atividade e o ato intelectivo que descrevem a

ἀλάκλεζηο mostram o pensar de uma perspectiva especiacutefica Ela descreve a passagem de

um fenocircmeno mental a outro ou seja da percepccedilatildeo do sensiacutevel para uma apreensatildeo

intelectual que acontece nos termos de um ato cognitivo ou de um πξνζπάζρσ (Fed

74a6) respectivamente como uma reaccedilatildeo imediata e como uma operaccedilatildeo racional

simples em resposta aos dados advindos das sensaccedilotildees A resposta nos termos de um

πξνζπάζρσ dito ἐλλνέσ consiste na atividade intelectual por meio da qual se pode

reconhecer o grau de relaccedilatildeo que os objetos percebidos possuem com o proacuteprio igual

conhecimento utilizado como paracircmetro para julgar o que se tem na experiecircncia110

Tal atividade conforme o que sugere o argumento constitui-se da comparaccedilatildeo

entre objetos percebidos e lembrados ou seja entre dados sensoriais e dados

intelectualmente oferecidos pela reminiscecircncia descrevendo uma operaccedilatildeo na qual o

intelecto estabelece um termo inteligiacutevel para fazer relaccedilotildees com o que se observa no

domiacutenio do sensiacutevel Apesar disso parece difiacutecil precisar o grau de ligaccedilatildeo que paus e

pedras percebidos como iguais podem ter com uma noccedilatildeo de igualdade Admite-se que

eacute possiacutevel a percepccedilatildeo de certa igualdade entre os objetos na experiecircncia da visatildeo no

entanto uma vez dada no contexto sensiacutevel natildeo deve ser a mesma nem deve estar

totalmente relacionada agrave outra realidade (Fed 74c)

Cabe notar que nesse estaacutegio da investigaccedilatildeo falta precisar esses conhecimentos

e a realidade a qual se referem para que se possa dizer algo acerca do grau de relaccedilatildeo

109 Segundo Chen o que se tem a partir do argumento da lira eacute o conteuacutedo da percepccedilatildeo preacutevia do

amado ou a imagem de sua forma fiacutesica a qual eacute novamente revivida intelectualmente pelo amante

Chen op cit p 25

110 Segundo Chen o πξνζπάζρσ se refere a ldquoUm pensamento adicional presente pela proacutepria mente o

pensamento da presenccedila ou ausecircncia de alguma deficiecircncia na igualdade do retrato de X para o proacuteprio

Xrdquo Chen op cit p 21

169

de um objeto percebido com isto que se apresenta como αὐηὸ ηὸ ἴζνλ Do mesmo modo

ainda estaacute para ser verificado o verdadeiro alcance da cogniccedilatildeo ou seja da capacidade

intelectiva de conhecer o que se refere a este outro domiacutenio ndash ldquoLogo ndash concluiu- a

igualdade dos tais objetos que referiacuteamos natildeo equivale precisamente ao Igual em si

mesmordquo (Fed 74c4) Ateacute este ponto a noccedilatildeo de ἀλάκλεζηο revelou uma variaccedilatildeo de

aspectos que permitem delinear o perfil da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo

mas sem oferecer muitos esclarecimentos acerca do objeto adquirido na reminiscecircncia

Ao se apresentar nos termos da aprendizagem mostrou sua atuaccedilatildeo como ato cognitivo

que se realiza como a retomada de conteuacutedos de tipo inteligiacutevel Nos termos de uma

operaccedilatildeo a capacidade de elevaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis para a aquisiccedilatildeo de uma

noccedilatildeo inteligiacutevel afim e apreensiacutevel no pensamento (ἐλλνέσ) ndash ldquo[] Sempre que ao

veres um dado objeto a visatildeo desse mesmo objeto te transporte agrave ideia de outro (ἕσο ἂλ

ἄιιν ἰδὼλ ἀπὸ ηαύηεο ηο ὄςεσο ἄιιν ἐλλνήζῃο) seja ele igual ou diverso eacute

necessariamente um caso de reminiscecircnciardquo (Fed 74c13-d1)

A superaccedilatildeo de um domiacutenio em vista de outro parece ser a caracteriacutestica da

ἀλάκλεζηο que mais importa na Teoria para os fins da investigaccedilatildeo pois sugere a

possibilidade de explorar este ἕηεξόλ ηη Por esta razatildeo pode-se supor que outros

aspectos da reminiscecircncia presentes em outros diaacutelogos natildeo satildeo trazidos para o Feacutedon

por serem muitas das questotildees que poderiam parecer pertinentes ao tema na verdade

inconvenientes neste contexto Interessa apresentar a Teoria naquilo que ela auxilia para

a proposiccedilatildeo de um ambiente que diz respeito ao inteligiacutevel anaacutelogo e afim ao estado de

morte no qual se supotildee a alma permaneceraacute Desse modo a diferenciaccedilatildeo dos objetos

que se referem a este outro domiacutenio tal como indica a relaccedilatildeo entre a noccedilatildeo de proacuteprio

igual e a igualdade percebida nos objetos sensiacuteveis decorrente da rememoraccedilatildeo

conduziraacute a investigaccedilatildeo de modo a iluminar as distinccedilotildees de gecircnero cujo exame eacute

necessaacuterio para indicar a natureza e a possibilidade de indestrutibilidade da alma

Sugeridas as diferenccedilas entre coisas semelhantes ou iguais e o proacuteprio igual o

diaacutelogo se encaminha de modo a questionar a distinccedilatildeo de gecircneros que se apresenta

nesta atividade de rememorar- (Τί δέ αὐηὰ ηὰ ἴζα ἔζηηλ ὅηε ἄληζά ζνη ἐθάλε ἢ ἡ ἰζόηεο

ἀληζόηεο Fed 74c1) A partir do que se examinou acerca da noccedilatildeo de igualdade cabe

investigar primeiramente a suposta deficiecircncia (ἐλδεήο) do fenocircmeno em relaccedilatildeo agrave

noccedilatildeo abstrata Em outras palavras deve-se analisar no que difere a igualdade

observada em pedras e paus iguais em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de Igual que se verificou nesta

relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo entre dados experienciados O que o texto nota como diferenccedila eacute

170

dito constituir em primeiro lugar um grau de carecircncia por parte da igualdade observada

nos objetos sensiacuteveis do proacuteprio igual (Fed 75d5-7) Assim vale analisar as relaccedilotildees

expressas neste argumento para verificar como opera a superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao

sensiacutevel na rememoraccedilatildeo

Note-se que as relaccedilotildees satildeo dadas em dois planos 1) entre dados sensiacuteveis 2)

entre dados sensiacuteveis e noccedilatildeo inteligiacutevel Em 1) a relaccedilatildeo de igualdade se apresenta nos

seguintes termos X1 eacute igual X2 Xn isto eacute as pedras observadas comparadas entre elas

mesmas apresentam semelhanccedilas o que equivale dizer que satildeo iguais Cabe reparar que

a ideia de igual subjaz a esta relaccedilatildeo embora o foco tenha em vista a igualdade que se

pode observar a partir dos dados sensiacuteveis Nesse sentido tal relaccedilatildeo eacute equivalente a 2

na qual a comparaccedilatildeo se daacute entre os dados advindos do sensiacutevel com o conceito X1

X2 Xn eacute igual X ou seja as pedras observadas possuem relaccedilatildeo com a ideia de igual

dada a igualdade entre elas A intenccedilatildeo eacute sugerir o conteuacutedo inteligiacutevel o proacuteprio igual

como termo regulador para a comparaccedilatildeo mesmo que ainda natildeo se apresente uma

explicaccedilatildeo ontoloacutegica que justifique a sua funccedilatildeo como se daraacute na Teoria das

Formas111

Do mesmo modo a comparaccedilatildeo entre os termos tendo em vista a natildeo

semelhanccedila entre eles ou seja a diferenccedila apresenta outro aspecto da operaccedilatildeo feita na

reminiscecircncia Sobre a diferenccedila entre os objetos vistos o argumento mostra que X1 natildeo

eacute o mesmo que X2 Xn ou seja as pedras embora sejam pedras apresentam distinccedilotildees

umas das outras o que eacute compreendido como natildeo igualdade ou desiguais Apesar da

constataccedilatildeo da natildeo igualdade a relaccedilatildeo ainda tem a noccedilatildeo de igual como paracircmetro

denotando assim a distinccedilatildeo entre a ideia de Igual e a igualdade reconhecida entre os

termos analisados em 1 A igualdade de coisas iguais natildeo eacute idecircntica agrave ideia de igual

Parece vaacutelido oferecer nesse momento da investigaccedilatildeo um argumento que

aponte as distinccedilotildees entre aquilo que se observa e certa especificidade do conteuacutedo

trazido pela reminiscecircncia Todavia tal especificidade natildeo eacute dada com maiores detalhes

tendo-se apenas uma sugestatildeo acerca de sua natureza inteligiacutevel e de algumas noccedilotildees

que caracterizam a ideia tal como a noccedilatildeo de identidade aludida pelo proacuteprio Igual Em

consequecircncia destas distinccedilotildees os objetos sensiacuteveis vistos como iguais assumem uma

posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo ao proacuteprio Igual que comeccedila a ter sua superioridade e

estatuto definido ηη ηῶλ ὄλησλ As coisas iguais (ηὰ ἴζα) se distinguem do Igual (αὐηὸ

ηὸ ἴζνλ) porque natildeo possuem literalmente algo dos seres Dada a explicaccedilatildeo do que

111 Acrill explica este dado por um outro vieacutes ldquoO exemplo eacute um caso de igualdade e a relaccedilatildeo de

igualdade com o seu original eacute de fato assimeacutetricardquo Acrill op cit p 26

171

significa ἐλδεήο lanccedila-se luz de agora em diante para trecircs pontos importantes os quais

passam a ser analisados e formulados filosoficamente 1ordm) a identificaccedilatildeo de ηὸ αὐηὸ ao

ser 2ordm) a indicaccedilatildeo do ser como criteacuterio para julgar algo que se relaciona com ele em

algum grau 3ordm) a contraposiccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o trabalho intelectual que

julga a percepccedilatildeo112

Conveacutem compreender que os desdobramentos que levam agrave apreensatildeo de uma

realidade diversa a partir das experiecircncias sensiacuteveis que se daacute na reminiscecircncia (Fed

74e6) constitui de fato operaccedilotildees simples A Igualdade eacute reconhecida no processo de

rememoraccedilatildeo vindo agrave tona com a experiecircncia de objetos iguais o que parece suficiente

para apreender a distinccedilatildeo entre o proacuteprio igual e as coisas iguais Dar-se conta desta

distinccedilatildeo significa ateacute o momento perceber que as coisas iguais possuem algo em

comum com o proacuteprio Igual e ao mesmo tempo sua deficiecircncia em comparaccedilatildeo a

ele113

A comparaccedilatildeo que se realiza a partir da tomada de conhecimento da Igualdade

consiste portanto em apreender o que haacute de comum e de diferente entre conceito e

percepccedilatildeo a qual expressa ao mesmo tempo a inferioridade do sensiacutevel aqui dito

ἐλδεήο e sugere um viacutenculo a partir do qual eacute possiacutevel estabelecer relaccedilatildeo

Nesse sentido as operaccedilotildees cognitivas que se tecircm na rememoraccedilatildeo consistem

basicamente em reconhecer e identificar elementos concebidos por associaccedilatildeo114

ou por

comparaccedilatildeo a algum outro tal como 1) entre objeto percebido e objeto lembrado e 2)

entre objeto percebido e noccedilatildeo concebida Em 1 A operaccedilatildeo do intelecto se constitui da

imediata reaccedilatildeo da alma a um dado advindo do sensiacutevel ou entre dois objetos

rememorados X rArr S vejo o retrato e lembro-me de Siacutemias ou vejo Cebes e lembro-

me de Siacutemias Trata-se de uma associaccedilatildeo na qual natildeo haacute nenhum juiacutezo envolvido e

portanto natildeo recorre a nenhum termo inteligiacutevel para fazer a mediaccedilatildeo entre os termos

112 Fed 74d9-e4 ldquo-Pois bem estamos de acordo quando uma pessoa olha para um dado objeto e

reflete de si para si mesma bdquoEste objeto que tenho diante dos olhos aspira a identificar-se com

determinada realidade mas estaacute longe de poder identificar-se a ela e lhe eacute pelo contraacuterio bastante

inferior‟- ao fazer tais reflexotildees eacute porque suponho conhecia jaacute essa tal realidade agrave qual segundo ela

se assemelha o objeto em causa embora bastante imperfeitamente (Οὐθνῦλ ὁκνινγνῦκελ ὅηαλ ηίο ηη

ἰδὼλ ἐλλνήζῃ ὅηη βνύιεηαη κὲλ ηνῦην ὃ λῦλ ἐγὼ ὁξῶ εἶλαη νἷνλ ἄιιν ηη ηῶλ ὄλησλ ἐλδεῖ δὲ θαὶ νὐ δύλαηαη

ηνηνῦηνλ εἶλαη [ἴζνλ] νἷνλ ἐθεῖλν ἀιι ἔζηηλ θαπιόηεξνλ ἀλαγθαῖόλ πνπ ηὸλ ηνῦην ἐλλννῦληα ηπρεῖλ

πξνεηδόηα ἐθεῖλν ᾧ θεζηλ αὐηὸ πξνζενηθέλαη κέλ ἐλδεεζηέξσο δὲ ἔρεηλ )rdquo

113 Fed75a1 ldquoigualdades desse tipo tendem todas elas a identificar-se com o Igual em si embora lhe

fiquem bastante aqueacutem ( ὅηη ὀξέγεηαη κὲλ πάληα ηαῦηα εἶλαη νἷνλ ηὸ ἴζνλ ἔρεη δὲ ἐλδεεζηέξσο)

114 Acrill entende a associaccedilatildeo uma operaccedilatildeo essencial agrave reminiscecircncia ldquoInvocar a noccedilatildeo de lembranccedila

implica a disponiblidade de uma explicaccedilatildeo nos termos de leis associativas conectando pensamento e

conteuacutedordquo Acrill op cit p 18

172

associados Pode-se dizer que essa operaccedilatildeo descreve um ato cognitivo simples115

Uma

operaccedilatildeo que pode decorrer deste ato de reminiscecircncia consiste justamente no

ajuizamento deste conteuacutedo do intelecto com a percepccedilatildeo que suscitou a rememoraccedilatildeo

ou com o proacuteprio objeto anteriormente conhecido no qual se tem 2 X eacute S ou X natildeo eacute

S ou seja o retrato eacute (igual) Siacutemias Cebes natildeo eacute Siacutemias Neste caso a referecircncia para o

julgamento da imagem conteuacutedo mental ou da percepccedilatildeo eacute o proacuteprio Siacutemias

previamente conhecido116

Este tipo de operaccedilatildeo que ocorre no registro da

reminiscecircncia comparado ao exerciacutecio intelectual da dialeacutetica constitui uma operaccedilatildeo

simples o πξνζπάζρσ e pede assim como no exemplo das pedras e paus iguais uma

referecircncia exterior agrave sensibilidade previamente conhecida117

Natildeo se tem no contexto da reminiscecircncia detalhes sobre outras operaccedilotildees do

pensar acerca de elementos inteligiacuteveis como apareceraacute com a explanaccedilatildeo acerca do

meacutetodo hipoteacutetico ao final do diaacutelogo O que interessa nessas passagens eacute verificar as

distinccedilotildees das percepccedilotildees sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos conteuacutedos rememorados mostrando

que as afecccedilotildees advindas do sensiacutevel se mostram uacuteteis para rememorar mas que natildeo

consistem elas proacuteprias em uma rememoraccedilatildeo Tais questotildees vale observar conduzem

a investigaccedilatildeo do que era conflituoso no corpo ou seja das sensaccedilotildees entre elas

mesmas tal como se viu no iniacutecio da anaacutelise para o conflito entre o que parece

constituir dois tipos de afecccedilotildees diferentes uma pela percepccedilatildeo do sensiacutevel e a outra

pela atividade do pensamento (πξνζπάζρσ ἐλλνέσ) O argumento acerca da Igualdade

deixa patente o conflito entre dados sensoriais e conteuacutedo inteligiacutevel sugerindo para ele

um criteacuterio ontoloacutegico e intelectual como possiacutevel soluccedilatildeo a qual eacute indicada pela

ἀλάκλεζηο Ao conferir um estatuto distinto para o conteuacutedo do intelecto a Teoria da

Reminiscecircncia propotildee a saiacuteda para as contradiccedilotildees que se pode verificar na observaccedilatildeo

do sensiacutevel e por consequecircncia no contexto da alma presa ao corpo uma vez que os

conhecimentos dados no ato de rememorar e nas operaccedilotildees que advecircm dele se mostram

os elementos corretos e portanto adequados para resolver tais questotildees

115 A aparente ausecircncia de ligaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e a realidade rememorada se deve ao caraacuteter

instantacircneo da reminiscecircncia onde natildeo eacute necessaacuterio um encadeamento causal para obter um objeto por

via da rememoraccedilatildeo Sobre este ponto Acrill explica ldquoReconhecer X como uma lira eacute logicamente

independente de pensar Alcebiacuteades () Por outro lado reconhecer X como a lira de Alcebiacuteades natildeo eacute

logicamente independente pois pensar isto eacute uma lira de Alcebiacuteades jaacute eacute pensar Alcebiacuteades natildeo haacute

relaccedilatildeo temporal causal aquirdquo e mais a frente completa ldquoNovamente ao pensar que isto eacute o retrato de

Siacutemias jaacute estou pensando em Siacutemias mas natildeo vice-versardquo Acrill opcit p 1921

116 Nos termos de Chen a base ontoloacutegica desse argumento eacute o proacuteprio Siacutemias que existe a partir do

qual eacute possiacutevel haver correspondecircncia entre o retrato e a lembranccedila Chen op cit p 23

117 Para Acrill a operaccedilatildeo posterior que ocorre na reminiscecircncia tem o princiacutepio de contiguidade como

princiacutecio associativo Chen op cit p 25

173

22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο

A partir do que se viu cabe reparar a dupla funccedilatildeo da reminiscecircncia na

investigaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que a reminiscecircncia mostra o indiacutecio da existecircncia

da alma na condiccedilatildeo de independecircncia do corpo apresenta-se como uma alternativa aos

impedimentos da sensibilidade para o conhecimento do inteligiacutevel Uma das razotildees para

tal aleacutem da familiaridade que a alma possui com o inteligiacutevel como se veraacute consiste

que a ἀλάκλεζηο tem como estiacutemulo para as accedilotildees cognitivas as proacuteprias sensaccedilotildees Natildeo

se deve no entanto tomar como uma incongruecircncia o dado de ser a experiecircncia sensiacutevel

uma condiccedilatildeo para que se decirc a rememoraccedilatildeo O diaacutelogo pretende afirmar a

anterioridade dos conhecimentos e a reminiscecircncia como a recuperaccedilatildeo deles no

contexto de humanidade no qual a alma natildeo estaacute totalmente isolada e imune agraves

perturbaccedilotildees do corpo e desse modo tem na rememoraccedilatildeo uma resposta inteligente aos

assaltos das sensaccedilotildees

ldquo- E nisto ainda estamos de acordo a noccedilatildeo que temos do Igual

de forma alguma poderia ter-se formado em noacutes a natildeo ser por

intermeacutedio da vista do tato ou de qualquer dos outros sentidos (κὴ

ἄιινζελ αὐηὸ ἐλλελνεθέλαη κεδὲ δπλαηὸλ εἶλαη ἐλλνζαη ἀιι ἢ ἐθ

ηνῦ ἰδεῖλ ἢ ἅςαζζαη ἢ ἔθ ηηλνο ἄιιεο ηῶλ αἰζζήζεσ ηαὐηὸλ δὲ πάληα

ηαῦηα ιέγσ)rdquo (Fed 75a5)

Mesmo diante das constataccedilotildees acerca da inferioridade dos dados sensiacuteveis tal

como as igualdades percebidas cabe agraves sensaccedilotildees a funccedilatildeo de provocar este envio da

alma aos conhecimentos o proacuteprio igual e assim buscar a compreensatildeo deles - o que

nos termos da reminiscecircncia eacute dita como um natildeo esquecimento118

Do mesmo modo a

noccedilatildeo de aprendizado que a Teoria da Reminiscecircncia apresenta consiste tambeacutem em natildeo

ceder ao esquecimento (ἐπηιαλζάλνκαη) ou seja exercitar-se neste tipo de operaccedilatildeo

118 75d7-10 ldquojaacute que o saber natildeo consiste senatildeo nisto em segurar determinado conhecimento que se

alcanccedilou e impedir que se perca (ηὸ γὰξ εἰδέλαη ηνῦη ἔζηηλ ιαβόληα ηνπ ἐπηζηήκελ ἔρεηλ θαὶ κὴ

ἀπνισιεθέλαη ἢ νὐ ηνῦην ιήζελ ιέγνκελ) ou natildeo dizemos noacutes Siacutemias que esquecer eacute deixar escapar

o que conhecemosrdquo

174

intelectiva por meio da qual se pode preservar os conhecimentos antes apreendidos

(Fed 75d7-76a)

Assim a operaccedilatildeo que descreve a cogniccedilatildeo na reminiscecircncia eacute importante notar

atribui funccedilatildeo positiva agraves sensaccedilotildees Diferentemente do que se viu no argumento da

purificaccedilatildeo as sensaccedilotildees satildeo neste contexto um impulso para o desencadeamento da

reminiscecircncia servindo de estiacutemulo para uma accedilatildeo intelectiva Nesse sentido toda a

explicaccedilatildeo do desenrolar da operaccedilatildeo racional que ocorre na reminiscecircncia descreve

muito mais um ato inteligente da capacidade cognitiva a qual se daacute imediatamente

como reaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees do que um processo cognitivo como traz A Repuacuteblica no

Livro VII no qual haacute a gradual superaccedilatildeo do intelecto do plano da sensibilidade para o

plano inteligiacutevel das ideias Tem-se em vista apresentar com a reminiscecircncia uma prova

de apreensatildeo inteligente tambeacutem nos termos de um ato de resgate de conteuacutedos jaacute

conhecidos como se vecirc ao inveacutes de uma narrativa do processo propedecircutico de

preparaccedilatildeo para a aquisiccedilatildeo de uma alta inteligecircncia como acontece no Livro VII ou

uma demonstraccedilatildeo de habilidades intelectuais O texto especifica com isso a uacutenica

maneira no Feacutedon em que se pode considerar uma colaboraccedilatildeo do corpo e do sensiacutevel

para o conhecimento como perturbaccedilatildeo para a qual a alma daacute uma resposta inteligente

Ao sugerir um ato cognitivo como mais uma maneira de a alma reagir agraves sensaccedilotildees o

texto natildeo oferece na verdade grandes novidades em relaccedilatildeo ao resultado do trabalho

cognitivo em comparaccedilatildeo ao exerciacutecio filosoacutefico Embora apresente mais uma faceta da

atividade do intelecto tal sugestatildeo serve apenas para deixar mais uma vez evidente que

o testemunho acerca da possibilidade de uma vida apoacutes a morte se refere agrave faculdade

intelectual da alma e exige superaccedilatildeo do domiacutecio sensiacutevel119

A rememoraccedilatildeo nos termos de uma via cognitiva como mostra o diaacutelogo

apresenta a possibilidade de aquisiccedilatildeo intelectual na condiccedilatildeo adversa para a alma de

estar presa ao corpo aquisiccedilatildeo que se daacute de maneira simples e imediata sem recorrer a

operaccedilotildees intelectuais mais complexas Isto parece ser suficiente para sugerir um limite

para o uso das sensaccedilotildees no que se refere agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento e de um niacutevel

superior do intelecto Do mesmo modo conferir superioridade aos objetos distintos do

119 Chen sintetiza esta compreensatildeo dizendo ldquoDe acordo com a Teoria do Feacutedon a funccedilatildeo geral dos

sentidos eacute dupla Eacute primeiramente informar o que eacute percebido e em seguida estimular a mente a lembrar

do conhecimento uma vez adquirido e depois perdido- uma accedilatildeo sempre acompanhada da outrardquo Chen

op cit p 22 nota 11

175

corpoacutereo tal como o belo o maior o menor o proacuteprio bem reconhecidas como

realidades previamente conhecidas120

Tem-se a partir daqui a proposta de um plano cujos seres satildeo do gecircnero ηὸ αὐηὸ

ὃ ἔζηη os quais consistem em conhecimentos (ηὰο ἐπηζηήκαο Fed 75d4) e satildeo

acessiacuteveis pelo pensamento Tal gecircnero apresenta afinidade com a alma apartada do

corpo e portanto com o pensamento livre de impedimentos A relaccedilatildeo entre alma e ηὰο

ἐπηζηήκαο eacute dada na reminiscecircncia provavelmente para sugerir o inteligiacutevel e esta

afinidade permitindo ao pensamento especular e provar como se pretende a existecircncia

da alma e sua imortalidade Dito de outro modo a rememoraccedilatildeo constitui a primeira

formulaccedilatildeo de atividade inteligente na qual se pode apreender conhecimentos os quais

oferecem uma indicaccedilatildeo acerca da capacidade inteligente da alma em condiccedilatildeo de

pureza pura sem o corpo concomitamente agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia anterior que

ela possui

Faz-se necessaacuterio contudo explicar (δνῦλαη ιόγνλ Fed 76b3) as consequecircncias

da Teoria de modo a demonstraacute-la como uma prova acerca da existecircncia da alma neste

periacuteodo Assim verificar a identificaccedilatildeo da alma com o plano dos seres e apontar as

especificaccedilotildees acerca desta realidade exige concomitantemente um detalhamento do

gecircnero sensiacutevel e de sua deficiecircncia O corpo tomado agora como pertencendo ao

domiacutenio do sensiacutevel estaacute contraposto agrave alma cujo caraacuteter inteligiacutevel seraacute desenvolvido

e com isso se daraacute um maior detalhamento sobre a θξόλεζηο Importa observar que no

argumento da reminiscecircncia o pensamento enquanto faculdade sede do conhecimento e

atividade cognitiva como se viu tem seu caraacuteter firmado concomitante agrave verificaccedilatildeo da

existecircncia da alma Tal como o bem o belo e outros seres do mesmo tipo (Fed 75d5-

76e) ele difere do sensiacutevel e como faculdade da alma preexiste ao corpo121

Embora constitua uma demonstraccedilatildeo da preexistecircncia da alma a relaccedilatildeo entre

alma e conhecimento tal como traz a Teoria natildeo supotildee a cogniccedilatildeo como accedilatildeo

necessaacuteria para a anterioridade dos conhecimentos As ideias natildeo dependem de serem

conhecidas para terem seu caraacuteter e existecircncia firmados embora sejam sugeridas ao

serem apreendidas novamente na rememoraccedilatildeo A relaccedilatildeo esquecimento-rememoraccedilatildeo

que se daacute no aprendizado sugere justamente esta permanecircncia das ideias que estaacute para

120 Fed 75d1 ldquocomo digo selamos genericamente com o roacutetulo de realidade em si (ὅπεξ ιέγσ πεξὶ

ἁπάλησλ νἷο ἐπηζθξαγηδόκεζα ηὸ ldquoαὐηὸ ὃ ἔζηη)rdquo

121 Fed 76c11-13 ldquo- Donde segue Siacutemias que antes de encarnar numa forma humana as nossas

almas existiam jaacute independentemente de um corpo e dotadas de inteligecircncia ( Ἦζαλ ἄξα ὦ Σηκκία αἱ

ςπραὶ θαὶ πξόηεξνλ πξὶλ εἶλαη ἐλ ἀλζξώπνπ εἴδεη ρσξὶο ζσκάησλ θαὶ θξόλεζηλ εἶρνλ)rdquo

176

aleacutem da recuperaccedilatildeo que ocorre no ato e na operaccedilatildeo de rememorar Por outro lado a

alma como supotildee a hipoacutetese da imortalidade precisa ter comprovada a natureza

inteligiacutevel imutaacutevel e eterna das ideias para que se possa comprovar a sua subsistecircncia

agrave morte do corpo ndash tarefa que se daraacute ao longo do diaacutelogo Por enquanto o diaacutelogo

oferece as indicaccedilotildees do que se refere agrave inteligibilidade - seus objetos natureza

operaccedilotildees da capacidade cognitiva domiacutenio ndash na busca de legitimar o trabalho

racional122

O que antes foi narrado nos termos de um pensamento puro livre das

influecircncias do corpo recebe nos argumentos seguintes definiccedilotildees segundo uma

explicaccedilatildeo da filosofia que vecirc na reminiscecircncia o primeiro ato da cogniccedilatildeo e as

condiccedilotildees de sua possibilidade

23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia

Vale comentar os resultados que se obteacutem a partir do dado de serem as

sensaccedilotildees o estiacutemulo para a rememoraccedilatildeo e verificar em que termos a reminiscecircncia

descreve uma atividade cognitiva um ato e uma operaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis

pelo intelecto Natildeo somente para sugerir a anterioridade e a independecircncia da alma em

relaccedilatildeo ao corpo a Teoria da Reminiscecircncia indica um fato importante no Feacutedon ao

atribuir agrave rememoraccedilatildeo o papel de via possiacutevel no qual se obteacutem um grau de aquisiccedilatildeo

dos inteligiacuteveis em vida humana (βίνο) Uma vez que o conhecimento autecircntico eacute

possiacutevel apenas apoacutes a morte a ἀλάκλεζηο oferece elementos uacuteteis como referecircncia na

cogniccedilatildeo Ao que parece a alteridade que se propotildee com ηὰο ἐπηζηήκαο e ἕηεξόλ ηη

serve para propor a base cognitiva exequiacutevel no contexto da vida aquela sobre a qual o

pensamento deve se empenhar para buscar as referecircncias indicadas na rememoraccedilatildeo e

levar a cabo a investigaccedilatildeo filosoacutefica123

Ao considerar tal contexto natildeo parece haver a intenccedilatildeo de afirmar que a

apreensatildeo de ideias eacute algo exclusivo do ato de rememorar O argumento natildeo parece ter

122 Chen op cit p 23 nota 12

123 Nas palavras de Charles Kahn esta ligaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis que mostra a reminiscecircncia

consiste no ponto filosoacutefico essencial do argumento ldquo() A funccedilatildeo preciacutepua aqui da teoria da

reminiscecircncia (como o argumento a partir da afinidade em sequecircncia) consiste em estabelecer a

condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu elo cognitivo com o ser transcendente das Formasrdquo

Kahn C rdquoPlatatildeo e a Reminiscecircnciardquo in Platatildeo (Benson H e col) Artmed 2011 Porto Alegre p 124

177

como proposta portanto apresentar uma relaccedilatildeo de necessidade entre a reminiscecircncia e

um objeto de estatuto ontoloacutegico elevado nem ser a rememoraccedilatildeo necessariamente

acompanhada de um trabalho intelectual posterior As duas situaccedilotildees satildeo descritas na

Teoria e mostram este ato de cogniccedilatildeo em duas perspectivas que acompanham a

dualidade da condiccedilatildeo do homem ser composto de corpo e alma (Fed 79b) ou dito de

outro modo ter a alma associada ao corpo Disto decorre que se tem na reminiscecircncia a

descriccedilatildeo tanto de um ato do pensamento comum ou seja possiacutevel a qualquer homem

quanto uma primeira explicaccedilatildeo acerca da origem das operaccedilotildees inteligentes da alma

Ao se questionar acerca da escolha do caraacuteter da reminiscecircncia por Platatildeo124

Dominic Scott mostra as duas interpretaccedilotildees que surgiram dessa dupla funccedilatildeo da

rememoraccedilatildeo Uma primeira explicaccedilatildeo seria para aplicar certos conceitos agrave experiecircncia

e uma segunda responderia que a finalidade eacute somente elucidar o conhecimento do

filoacutesofo de entidades transcendentes as quais servem para a comparaccedilatildeo com

particulares Na primeira resposta haacute uma colaboraccedilatildeo entre empiacuterico e inato para

explicar o pensamento ordinaacuterio enquanto de acordo com a uacuteltima interpretaccedilatildeo a

reminiscecircncia se refere precisamente as formas125

A resposta que se propotildee para esta

duplicidade a qual parece suficiente para apontar a complexidade do pensamento nos

termos da rememoraccedilatildeo tema deste estudo consiste justamente no duplo aspecto que o

ato cognitivo de rememorar apresenta Ter acesso a um conteuacutedo do intelecto que se

refira agrave experiecircncia empiacuterica uma imagem ou representaccedilatildeo como quer Brisson eacute

possiacutevel tanto quanto ter acesso a um conteuacutedo que se refira agraves ideias Mesmo que a

comparaccedilatildeo faccedila referecircncia agrave forma do igual natildeo parece haver nesse contexto um

objeto definido rigidamente em termos ontoloacutegicos Ao contraacuterio a lembranccedila de

Siacutemias e o conceito de Igual enquanto conteuacutedos mentais satildeo ambos referidos como

conhecimentos Desse modo faz sentido o que Scott afirma em seguida ldquo()

reminiscecircncia eacute usada para cobrir diferentes extensotildees do desenvolvimento intelectual

conforme a interpretaccedilatildeo que se seguerdquo126

No caso do Feacutedon constitui um primeiro

exemplo da via inteligente que o filoacutesofo natildeo deve perder de vista Ao se pretender

124 Scott ao considerar a Teoria da Reminiscecircncia uma forma de inatismo adverte ldquo() devemos nos

perguntar por que Platatildeo decidiu adotar esta em particularrdquo Scott D Recollection and Experience -

Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge University Press p 17 O entendimento

da Teoria como uma forma de inatismo de Scott eacute oposta agrave compreensatildeo de Luc Brisson Enquanto Sc

considera possiacutevel a presenccedila de formas na alma as quais se tornam conhecidas na reminiscecircncia Brisson

diz se tratar de imagens que representam as ideias anteriormente conhecidas natildeo havendo portanto

ideias inatas Brisson op cit p 180 185

125 Scott idem p 17 19

126 Scott ibidem 20

178

elucidar e compreender as operaccedilotildees e estatuto da atividade do pensamento a

reminiscecircncia nos termos do aprendizado parece natildeo ignorar nenhuma das perspectivas

embora sua ecircnfase esteja na cogniccedilatildeo daquilo que seraacute definido como ideia

Desse modo no contexto de oposiccedilatildeo do intelecto agrave sensibilidade e de gradativo

afastamento entre corpo e alma tal como descreve a postura filosoacutefica a aquisiccedilatildeo que

se tem na reminiscecircncia varia sendo diferente para filoacutesofo e natildeo-filoacutesofo A igualdade

que o natildeo filoacutesofo apreende eacute apenas a igualdade perceptiacutevel pelos dados do sensiacutevel em

uma comparaccedilatildeo entre sensiacuteveis Ainda que a ideia do igual ampare esta comparaccedilatildeo

somente o filoacutesofo concebe que haacute por traz das relaccedilotildees entre sensiacuteveis um modelo ideal

que se difere e escapa agraves relaccedilotildees no sensiacutevel Em outras palavras o natildeo filoacutesofo natildeo

apreende a distinccedilatildeo deste igual que ele pode conceber na reminiscecircncia daquelas

igualdades vistas nas pedras e paus natildeo se dando conta portanto da ideia

A aquisiccedilatildeo de uma ideia na rememoraccedilatildeo parece prescindir cabe supor da

iniciaccedilatildeo na filosofia como acontece no ciacuterculo de Soacutecrates ou na induccedilatildeo do pedagogo

filoacutesofo a exemplo do que se vecirc n‟A Repuacuteblica Ao se perguntar pode-se compreender

que a aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia eacute possiacutevel tambeacutem para o natildeo filoacutesofo A

resposta plausiacutevel consiste natildeo segundo o que diz a Teoria no Feacutedon A percepccedilatildeo da

disparidade entre as pedras iguais e o proacuteprio igual e da mesma forma a origem desta

diferenccedila se referem agrave habilidade daquele que se exercita na filosofia As palavras de

Scott parecem concluir de maneira adequada esta questatildeo ldquoEacute inegaacutevel entatildeo que

somente poucas pessoas tenham comparado formas e particularesrdquo127

Todavia natildeo se

pode desconsiderar que a rememoraccedilatildeo eacute um ato exequiacutevel por todo homem ainda que

natildeo se decirc a segunda operaccedilatildeo do intelecto ao rememorar de modo a apreender o

inteligiacutevel A distinccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum eacute justamente conceber

no que a generalidade suscitada pelo trabalho de comparaccedilatildeo a partir da percepccedilatildeo em

realidade consiste conhecimento o qual seraacute elucidado e compreendido por meio do

exerciacutecio hipoteacutetico e natildeo na simplicidade das operaccedilotildees que descrevem a

reminiscecircncia

Sobre o que se apreende na reminiscecircncia Chen eacute mais categoacuterico ao afirmar o

sentido fraco de cogniccedilatildeo que apresenta a Teoria ldquoAnamnesis natildeo eacute o proacuteprio meacutetodo

para atingir a visatildeo das ideias o que ela proporciona eacute a revivificaccedilatildeo da cogniccedilatildeo

original natildeo a proacutepria cogniccedilatildeo originalrdquo128

Na direccedilatildeo oposta destas explicaccedilotildees

127 Scott op cit p 60

128 Chen op cit p 27

179

Acrill considera que a generalidade apreensiacutevel pelo filoacutesofo na rememoraccedilatildeo diz

respeito ao final agraves formas uma vez que ele a entende como tal Ele considera que o

apreensiacutevel para a maioria das pessoas o que se tem desde a infacircncia diz respeito ao

uso da palavra e agrave sua generalidade enquanto para o filoacutesofo eacute apreensiacutevel o significado

desta generalidade como forma imutaacutevel129

A compreensatildeo de Acrill se justifica na

medida em que se sabe que o diaacutelogo trabalha para apresentar as formas e um meacutetodo

para a apreensatildeo delas Nesse sentido ainda que se recupere parcialmente ou

indiretamente o conhecimento o conteuacutedo se revela consistir na forma inteligiacutevel pelo

filoacutesofo

Todavia ao levar em conta o momento da investigaccedilatildeo em que o argumento eacute

oferecido ou seja apoacutes uma primeira defesa do afastamento da alma em relaccedilatildeo ao

corpo onde se tem apenas a alusatildeo do que se apresentaraacute mais tarde como essecircncia a

posiccedilatildeo que considera a lembranccedila tal como uma cogniccedilatildeo insuficiente ou incompleta

parece mais adequada Tais posiccedilotildees parecem privilegiar enfoques diferentes mas

talvez natildeo incompatiacuteveis Do ponto de vista da cogniccedilatildeo trata-se de um tipo de

apreensatildeo que oferece um conhecimento inautecircntico no sentido de um conteuacutedo que faz

referecircncia a outro supostamente verdadeiro experienciado em uma anterioridade Ao

mesmo tempo vale observar que o argumento natildeo faz qualquer sugestatildeo sobre o que

poderia constituir uma referecircncia agraves formas que natildeo as oferecesse apenas em alguma

medida ndash tema que ganharaacute explicaccedilatildeo com a teoria da participaccedilatildeo130

129 ldquo(hellip) a) As pessoas comuns conhecem o uso da palavra ordinaacuteria X e desse modo adquirem

conhecimento de X - idade (X-ness) ela sabe que haacute tal coisa como X-idade e sabe o que ela eacute (no

sentido fraco) b) platonistas concebem que X-idade eacute uma forma eterna imutaacutevel uma entidade

independentemente existenterdquo Acrill op cit p 28-29 Kahn compartilha da mesma interpretaccedilatildeo ao julgar

que o argumento traz uma referecircncia impliacutecita agraves Formas o que explica a generalidade dadas nos

exemplos de paus e pedras Kahn op cit p 125

130 Outra maneira de se perguntar se o conhecimento adquirido na resminiscecircncia se refere agraves ideias

acessiacuteveis aos filoacutesofos ou a outro tipo de conteuacutedo acessiacutevel tambeacutem aos natildeo filoacutesofos consiste em

questionar a imagem ou a visatildeo que se tem na reminiscecircncia de uma ideia eacute a proacutepria ideia Pode-se

dizer que as igualdades percebidas se referem exclusivamente ao proacuteprio igual e natildeo a outro conceito Um

referencial ou uma visatildeo de X natildeo eacute o proacuteprio X entretanto tal conteuacutedo natildeo faria referecircncia a outra

coisa que natildeo X Se tal raciociacutenio procede o que se deve considerar Em uma posiccedilatildeo pessimista em

relaccedilatildeo agrave capacidade de adquirir o conhecimento em sua inteireza e autenticidade Gosling explica o

conteuacutedo da reminiscecircncia como uma ldquoquasi-perceptionrdquo anaacuteloga agrave visatildeo direta que supostamente a alma

teve antes do nascimento Assim ele compreende que o argumento da reminiscecircncia como aprendizado

exige muito mais do que possuir conhecimento a priori estando em jogo a familiaridade com estes

objetos a partir dos quais eacute possiacutevel fazer comparaccedilotildees entre os dados observados Para o autor

justamente tal familiaridade a qual envolve esta semivisatildeo constitui o conhecimento do igual na verdade

uma semicogniccedilatildeo ldquoA conclusatildeo parece ser a de que conhecemos (acquainted) certos objetos os quais

podemos comparar com o que agora observamos bdquoConhecer‟ aqui parece envolver uma quase percepccedilatildeo

(quasi-perception) e isso eacute certamente o que constitui o bdquoconhecimento do igual‟rdquo Gosling op cit p126

180

Perguntar-se sobre em que medida a imagem ou a visatildeo que se tem na

reminiscecircncia de uma ideia oferece a proacutepria ideia faz sentido ao lanccedilar o olhar para a

questatildeo de fundo acerca da aquisiccedilatildeo da ideia e portanto do alcance intelectual Tal

tema no entanto eacute melhor elaborado n‟ A Republica VI na relaccedilatildeo modelo-coacutepia que a

analogia da linha oferece Aqui esta relaccedilatildeo natildeo estaacute em questatildeo se natildeo for para supor

outro domiacutenio131

A consequecircncia que natildeo se deve perder de vista consiste desse modo

em natildeo atribuir agrave reminiscecircncia ou natildeo somente a ela a capacidade de aquisiccedilatildeo das

ideias Natildeo haacute necessariamente aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia da mesma forma

que o exerciacutecio dialeacutetico natildeo descreve obrigatoriamente uma rememoraccedilatildeo Satildeo

atividades cognitivas distintas e no caso da rememoraccedilatildeo natildeo leva somente agraves ideias

inteligiacuteveis Os objetos introduzidos pela ἀλάκλεζηο devem ser resultado do tratamento

intelectual do meacutetodo hipoteacutetico o qual mostraraacute definitivamente a legitimidade da

faculdade intelectual da alma tarefa que a Teoria da Reminiscecircncia tal como se

apresenta natildeo o pode realizar Nesse sentido a Teoria eacute utilizada no Feacutedon para

oferecer uma saiacuteda intelectual nesta circunstacircncia de processo de afastamento da alma

em relaccedilatildeo ao corpo para colaborar nas devidas distinccedilotildees que se pretende realizar sobre

sua capacidade inteligente O que o diaacutelogo mostra com a reminiscecircncia eacute entre os

conteuacutedos que jaacute se analisou mais uma forma de atividade do intelecto que nesta altura

da investigaccedilatildeo constitui uma alternativa para persistir na busca do que eacute verdadeiro e

puro em um contexto adverso agrave natureza inteligente da alma

131 Trabattoni reconhece a relaccedilatildeo que estamos a nos referir entre a gnosiologia n‟A Repuacuteblica e a

reminiscecircncia no Feacutedon ao dizer ldquoNas paacuteginas d‟A Repuacuteblica natildeo aparece a doutrina da reminiscecircncia

que Platatildeo tratou pela primeira vez no Feacutedon e retomou posteriormente no Fedro Todavia natildeo eacute difiacutecil

estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a gnosiologia d‟A Repuacuteblica com a teoria da reminiscecircncia dos dois

diaacuteloacutegos que citamos O conhecimento anterior do mundo ideal corresponde ao perfeito saber das ideias

que os filoacutesofos possuem somente no modelo ideal natildeo na realidade concreta Acredito que se deva

deixar aberto agrave interpretaccedilatildeo de cada um que a ausecircncia do saber perfeito na experiecircncia mundana

dependa do fato que este conhecimento eacute em Platatildeo somente ideal uma vaacutelvula de escape para aqueles

que aplicam o conhecimento humano no uacutenico mundo existente mesmo se se o considera um lugar real o

ideal pertencente a outro mundo a um mundo que o homem conheceu antes de nascer e (re) alcanccedilaraacute

apoacutes a morterdquo Trabattoni op cit p 184 Faz sentido no que diz respeito ao trabalho itelectual a

suposiccedilatildeo de um outro domiacutenio um plano real distinto do mundo ordinaacuterio a partir do qual se obtenha as

referecircncias necessaacuterias Tanto a cidade ideal do filoacutesofo governante quando os objetos ideiais

rememorados servem de paracircmetros e indicam esta realidade a qual o filoacutesofo deseja conhecer O

conhecimento e a rememoraccedilatildeo descrevem assim a atividade que eleva a alma para este outro domiacutenio e

no Feacutedon isto parece ser dito mais objetivamente

181

24 Distinccedilotildees entre alma e corpo

A partir dos temas tratados na Teoria da Reminiscecircncia a questatildeo da

imortalidade dada ateacute entatildeo com elementos do registro da religiatildeo eacute transposta para o

registro da metafiacutesica A existecircncia da alma anterior ao nascimento que o ato racional da

reminiscecircncia testemunha mostra que um maior entendimento sobre os seres deste plano

satildeo os indicativos da possibilidade de sua imortalidade Distintos da sensibilidade as

realidades descobertas como seres anteriores devem apresentar as caracteriacutesticas que

permitem a sobrevivecircncia da alma e do mesmo modo a compreensatildeo acerca da atuaccedilatildeo

do pensamento nesta tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

ldquo- Portanto Siacutemias eis a questatildeo se de fato existem coisas

como essas que temos constantemente nos laacutebios um Belo um Bem e

toda a espeacutecie de realidade que lhes eacute afim (ἡ ηνηαύηε νὐζία) se eacute

esta que tomamos como ponto de referecircncia de tudo (ὑπάξρνπζαλ) o

que os sentidos nos transmitem e a ela reportamos (ἀλαθέξνκελ) os

dados recebidos em virtude de lhe descobrirmos uma existecircncia

anterior que nos pertencia - forccedilosamente entatildeo na medida em que

tais realidades existem assim tambeacutem a nossa alma existe antes de

nascermos caso contraacuterio este nosso argumento cairaacute pela base

[]rdquo (Fed 76d6-e4)

Deve-se observar que tais realidades servem de paracircmetro para estabelecer

relaccedilotildees com os dados advindos do sensiacutevel (θαὶ ηαῦηα ἐθείλῃ ἀπεηθάδνκελ Fed 76e2)

Cabe dessa forma averiguar a questatildeo se baseando estritamente no trabalho racional

dada a capacidade de estabelecer relaccedilotildees com estes seres e fazer atraveacutes deles maiores

inferecircncias sobre o tema Esta constitui uma mudanccedila metodoloacutegica no diaacutelogo digna

de nota Haja vista as diferenciaccedilotildees das realidades e a afinidade da alma com elas

parece razoaacutevel recorrer cada vez mais aos resultados do trabalho racional empregado

na investigaccedilatildeo e ao que se pode conhecer por meio dele sobre tal realidade (θαηαθεύγεη

ὁ ιόγνο Fed 76e9) Desse modo o estado de morte em que supostamente a alma

sobrevive deve ser investigado segundo o que mostra o caraacuteter dos dois tipos de planos

que agora se apresentam amparados pelo ιόγνο no trabalho filosoacutefico Utilizando as

palavras do texto ldquo() ficou por demonstrar (ἀπνδεδεῖρζαη) que ela subsiste tambeacutem

apoacutes a morterdquo (Fed 77b1) o que abordaraacute a alma e a sua imortalidade da perspectiva

182

do seu possiacutevel perecimento em uma comparaccedilatildeo com o aniquilamento dos objetos

fiacutesicos do plano sensiacutevel

Ao considerar a morte como uma destruiccedilatildeo tal como se daacute com os corpos

deve-se questionar se ela eacute suscetiacutevel a um fim desses ou se ao contraacuterio natildeo padece de

qualquer tipo de ruiacutena e se manteacutem viva (Fed 77b3) Estaacute em questatildeo agora a natureza

da alma no que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo O medo da morte que Soacutecrates critica

nos seus interlocutores (Fed 77d4-e) estaacute baseado na concepccedilatildeo tradicional que a

compreende semelhante ao corpoacutereo podendo assim ter fim se dissipando esvoaccedilando

ou sendo destruiacuteda de alguma outra forma Todavia deve-se ter em conta que as uacutenicas

atribuiccedilotildees feitas agrave alma ateacute esta altura da investigaccedilatildeo se refere a sua faculdade

intelectual e a sua capacidade de cogniccedilatildeo (Fed 70b3 76c12) tal como o seu poder de

se purificar de se desvincular do corpoacutereo por meio da filosofia A formulaccedilatildeo sobre a

alma que o discurso filosoacutefico propotildee eacute oposta a concepccedilatildeo tradicional como se tem

observado e apresenta primeiramente como razatildeo para sua indestrutibilidade sua

natureza incorpoacuterea

Tal incorporeidade entenda-se o que se distingue do corpo eacute averiguada como o

contraacuterio de um composto O que eacute de natureza composta estaacute suscetiacutevel agrave

decomposiccedilatildeo dos elementos que o integra sendo dessa forma passiacutevel de ser

destruiacutedo Ao contraacuterio o que eacute de natureza simples natildeo eacute composto (ἀζύλζεηνλ) estaacute

livre de sofrer decomposiccedilatildeo (Fed 78c1-4)

Outra caracteriacutestica que os seres de natureza incorpoacuterea apresenta diz respeito a

mudanccedilas Coisas simples satildeo sempre do mesmo modo comportam-se sempre da

mesma maneira (ὡζαύησο ἔρεη Fed 78c6) enquanto as compostas mudam (Fed 78c6-

8) O ser de realidade diversa do corpoacutereo (ἡ νὐζία) possui tais caracteriacutesticas e da

mesma forma natildeo admite nenhum tipo de mudanccedila (κή πνηε κεηαβνιὴλ θαὶ ἡληηλνῦλ

ἐλδέρεηαη Fed 78d4) Assim os conhecimentos apreensiacuteveis na reminiscecircncia que

indicam a preexistecircncia da alma ao corpo satildeo da mesma natureza incorpoacuterea e

apresentam essas caracteriacutesticas tal como o Igual o Belo e tudo o que eacute dito ldquoser por si

mesmordquo (Fed 78d1-7) Com esta descriccedilatildeo esses seres passam a receber um estatuto

ontoloacutegico que os define como essecircncia (νὐζία) As essecircncias portanto natildeo sofrem

qualquer tipo de mudanccedila ou variaccedilatildeo em nenhum momento satildeo simples (κνλνεηδὲο) e

conserva a sua identidade

Tais definiccedilotildees acerca dos conhecimentos descrevem em boa medida a natureza

de um domiacutenio distinto do sensiacutevel com o qual o ιόγνο filosoacutefico concorrente com o

183

tradicional trabalha A explicaccedilatildeo nos termos da filosofia passa a estabelecer nesta

argumentaccedilatildeo os criteacuterios e os paracircmetros para uma explicaccedilatildeo racional e assim

oferece as caracteriacutesticas dos seres pertencentes a este domiacutenio que satildeo eacute importante

notar os objetos do pensamento O trabalho intelectual envolvido na separaccedilatildeo da alma

em relaccedilatildeo ao corpo ganha explicaccedilotildees acerca de seu desenvolvimento indicando a

forma dialogada da dialeacutetica como o exerciacutecio proacuteprio neste tipo de operaccedilatildeo intelectual

de explanaccedilatildeo acerca das essecircncias (Fed 78d1) Eleger a forma de operar em relaccedilatildeo a

tais objetos defini-los e expor as suas caracteriacutesticas parece importante a esta altura do

diaacutelogo para assegurar na medida do possiacutevel a retidatildeo da investigaccedilatildeo e assim ter

maior esperanccedila sobre a imortalidade da alma e sobre o bom destino do filoacutesofo apoacutes a

morte Do mesmo modo conforme sugere o medo dos amigos de Soacutecrates a

investigaccedilatildeo deve considerar a natureza dos objetos em questatildeo e sendo assim natildeo se

pode realizar uma inquiriccedilatildeo acerca da alma a concebendo como algo corpoacutereo uma

vez que jaacute se deu indicaccedilotildees de se tratarem de seres de naturezas diferentes Parece claro

que para efeito de distinccedilotildees entre alma e corpo a partir de agora se deve ter em conta o

estatuto ontoloacutegico conferido a cada plano e que o domiacutenio das essecircncias eacute acessiacutevel

somente pela atividade do pensamento

25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο

A caracterizaccedilatildeo dos conhecimentos segue de modo a lanccedilar luz no que diz

respeito agrave apreensatildeo e assim na contraposiccedilatildeo sensibilidade-intelecto a partir da qual

seraacute exposta a causa da falibilidade dos sentidos contrariamente agrave eficiecircncia da razatildeo

No domiacutenio da sensibilidade estatildeo as coisas que possuem o atributo de uma essecircncia

como a beleza e a igualdade mas embora seja homocircnima dela os objetos sensiacuteveis

dotados de tais qualidades natildeo consistem nas proacuteprias essecircncias e por isso satildeo passiacuteveis

de corrupccedilatildeo (Fed 78e1) Os objetos sensiacuteveis como um belo cavalo ou pedras iguais

184

satildeo apreendidos pela αἴζζεζηο diferentemente do proacuteprio Belo e da noccedilatildeo de Igualdade

que soacute eacute concebida pela atividade racional mais precisamente pelo raciociacutenio132

Neste argumento a criacutetica ao corpo tem em vista apontar a deficiecircncia das

sensaccedilotildees na aquisiccedilatildeo do conhecimento e justificar por outro lado a excelecircncia do

pensamento nessa funccedilatildeo ao mostrar sua ligaccedilatildeo com o domiacutenio das essecircncias o qual

pode ser compreendido apoacutes as uacuteltimas explicaccedilotildees como domiacutenio inteligiacutevel Importa

comparar pensamento e sensibilidade no que se refere agraves qualidades que cada um pode

acessar A alma e os objetos satildeo examinados assim a partir de dois tipos de existecircncias

(Fed 79a6)133

uma visiacutevel e outra invisiacutevel Os objetos que possuem as caracteriacutesticas

das essecircncias satildeo os invisiacuteveis enquanto os visiacuteveis podem ser corrompidos uma vez

que satildeo da ordem do sensiacutevel A partir desse criteacuterio a alma se mostra mais aparentada

ao que eacute invisiacutevel enquanto o corpo afim com o visiacutevel (Fed 79b4) Essa uacuteltima

argumentaccedilatildeo vale reparar aborda as caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel nos

termos da invisibilidade e da visibilidade Ao mesmo tempo em que oferece uma

definiccedilatildeo uacutetil para o tema da morte ao admitir ser a alma a parte invisiacutevel do homem

(Fed 79b1) e portanto a que deve ser objeto de averiguaccedilatildeo o argumento pontua a

criacutetica aos sentidos mostrando a incapacidade destes de apreender o que eacute da ordem das

essecircncias

O texto com a finalidade de ilustrar a indestrutibilidade da alma mostra na

verdade que temas que se referem agraves essecircncias e ao conhecimento delas como ocorre

com a questatildeo da natureza da alma natildeo deve ser associado agrave sensibilidade mas ao

intelecto Tem-se a total incapacidade da αἴζζεζηο para o conhecimento e ao mesmo

tempo uma explicaccedilatildeo causal acerca da potencialidade cognitiva da θξόλεζηο

ldquo- Caacute estamos entatildeo no que diziacuteamos haacute pouco sempre que a

alma faz uso do corpo (πξνζρξηαη) para se lanccedilar em qualquer

indagaccedilatildeo utilizando a vista o ouvido ou qualquer outro meio

sensorial (e utilizar os sentidos que significa senatildeo utilizar o corpo)

eis que este a arrasta para as realidades em contiacutenuo devir (ἕιθεηαη

ὑπὸ ηνῦ ζώκαηνο) e quanto a ela por aiacute erra mergulhando como

eacutebria na perturbaccedilatildeo e na vertigem (πιαλᾶηαη θαὶ ηαξάηηεηαη θαὶ

132 Fed 79a2 ldquoPois bem essas satildeo justamente as que tu podes ver tocar e apreender pelos restantes

sentidos as outras pelo contraacuterio que mantecircm a sua identidade proacutepria jamais teria meios de captaacute-las

a natildeo ser pelas faculdades da inteligecircncia pois que se trata das realidades invisiacuteveis que a nossa vista

natildeo capta (ηῶλ δὲ θαηὰ ηαὐηὰ ἐρόλησλ νὐθ ἔζηηλ ὅηῳ πνη ἂλ ἄιιῳ ἐπηιάβνην ἢ ηῷ ηο δηαλνίαο

ινγηζκῷ ἀιι ἔζηηλ ἀηδ ηὰ ηνηαῦηα θαὶ νὐρ ὁξαηά)rdquo

133 Privilegiamos a traduccedilatildeo de FOWLER ldquotwo kinds of existencesrdquo para o trecho ldquo δύν εἴδε ηῶλ ὄλησλ

ηὸ κὲλ ὁξαηόλ ηὸ δὲ ἀηδέοrdquo diferentemente da traduccedilatildeo de Azevedo que prefere traduzir eide ton onton

por ldquoduas realidadesrdquo op cit p 275

185

εἰιηγγηᾷ) pois tal eacute a natureza das coisas a que se apega (ἅηε

ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)

- Decerto

- Ao inveacutes quando indaga por si e em si refugiando-se aleacutem no

que eacute puro e sempre existe imortal e idecircntico a si mesmo fica em

razatildeo do seu parentesco para sempre ligada a ele (Ὅηαλ δέ γε αὐηὴ

θαζ αὑηὴλ ζθνπῆ ἐθεῖζε νἴρεηαη εἰο ηὸ θαζαξόλ ηε θαὶ ἀεὶ ὂλ θαὶ

ἀζάλαηνλ θαὶ ὡζαύησο ἔρνλ θαὶ ὡο ζπγγελὴο νὖζα αὐηνῦ ἀεὶ κεη

ἐθείλνπ ηε γίγλεηαη) precisamente quando passa a existir por si e em

si e tal lhe eacute permitido e eacute entatildeo que cessam os seus erros e fixando-

se nessa realidade de aleacutem salvaguarda a sua identidade porque tal

eacute tambeacutem a natureza das coisas a que se apega (ὅηαλπεξ αὐηὴ θαζ

αὑηὴλ γέλεηαη θαὶ ἐμῆ αὐηῆ θαὶ πέπαπηαί ηε ηνῦ πιάλνπ θαὶ πεξὶ

ἐθεῖλα ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὡζαύησο ἔρεη ἅηε ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)

Ora a esse estado de alma natildeo damos noacutes o nome de ldquorazatildeordquo (θαὶ

ηνῦην αὐηο ηὸ πάζεκα θξόλεζηο θέθιεηαη) (Fed 79c-2-d7)

Ao fazer uso dos sentidos para realizar um exame a alma vai na direccedilatildeo

contraacuteria dos inteligiacuteveis e de sua natureza Ao se deixar influenciar pelos dados

sensiacuteveis ela eacute arrastada por eles desviando-se dos objetos que lhe satildeo afins Em

contato com seres de natureza oposta ou seja advindos do corpoacutereo ela permanece em

um estado de perturbaccedilatildeo (ηαξάζζσ) Note-se que o comportamento da alma eacute orientado

pelo domiacutenio ao qual cede a influecircncia Ao se fixar em objetos inteligiacuteveis a alma age

de maneira semelhante a eles mantendo-se reta e conservando a sua natureza imutaacutevel

Se ao contraacuterio ela se deixa influenciar pelo corpo e tendo em vista o que corresponde

ao domiacutenio do sensiacutevel torna-se incapaz de fazer uso da inteligecircncia assumindo assim

um comportamento condizente com ele eacutebrio e errante134

Esse estado de agitaccedilatildeo

constitui a descaracterizaccedilatildeo mais evidente que ela pode sofrer A alma demasiado

influenciada pelo corpo assume suas caracteriacutesticas corpoacutereas no sentido de dispensar a

racionalidade tendo como dano maior se tornar bestial como o corpo A consequecircncia

nefasta do apego da alma ao corpo traz prejuiacutezos agrave sua natureza que significa em uacuteltima

circunstacircncia um uso indevido ou desuso de suas capacidades intelectuais A resposta

da alma nessa condiccedilatildeo conveacutem notar demonstra ser diferente se comparada ao que

acontece em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees corpoacutereas No contato com os objetos sensiacuteveis a

alma entatildeo agitada reage a eles com o trabalho da intelecccedilatildeo

134 Note-se aqui a negatividade atribuiacuteda aos sentidos semelhante ao que constitui uma limitaccedilatildeo para o

meacutetodo geomeacutetrico isto eacute o uso de imagens e a atenccedilatildeo voltada para os objetos do mundo fiacutesico Da

mesma forma observa-se o impecilho que uso do sensiacutevel constitui para a alma na busca pelo

conhecimento presente nos termos do obstaacuteculo para a alma ainda presa ao corpo no contexto do Feacutedon

e das dificuldades que se antepotildeem ao aprendiz conforme o livro VII anaacutelogas agraves dificuldades que

encontra o homem ao sair da caverna O que a uacuteltima parte da linha oferece como pensamento que

trabalha somente com ideias e atraveacutes de ideias aqui se daacute o nome de pensamento puro

186

Cabe analisar de que modo o texto descreve a identificaccedilatildeo da alma como algo

que mais se assemelha ao que eacute inteligiacutevel uniforme indestrutiacutevel divino e imutaacutevel135

em contraponto a uma hiperinfluecircncia do corpoacutereo Vale observar que embora este

ὁκνηόηαηνλ indique a afinidade da alma com o gecircnero invisiacutevel e inteligiacutevel natildeo se

pode compreender haver aqui uma riacutegida definiccedilatildeo de alma Natildeo haacute no horizonte do

texto ainda que se tenha em questatildeo a imortalidade o propoacutesito de traccedilar uma riacutegida

definiccedilatildeo da alma mas salientar as caracteriacutesticas que concernem agrave sua

indestrutibilidade nesse caso note-se seu parentesco com o gecircnero incorpoacutereo que se

manifesta com a atividade inteligente

O diaacutelogo chama atenccedilatildeo para as caracteriacutesticas que satildeo justamente opostas e

portanto comparaacuteveis com as caracteriacutesticas dos seres do gecircnero corpoacutereo de modo a

apresentar assim uma narrativa que descreve a alma basicamente em trecircs estados sob

influecircncia do corpo em processo de desvinculaccedilatildeo do corpo ou seja desapegando-se

dessa influecircncia e totalmente apartada dele o que constitui o estado de morte e

supostamente um estado de alta intelecccedilatildeo tal como se daacute nessa descriccedilatildeo da θξόλεζηο

Faz sentido apresentar desse modo as trecircs circunstacircncias que consiste vale lembrar no

percurso do filoacutesofo Mostrar a alma ao mesmo tempo afim e mais assemelhada ao

divino e imortal natildeo a coloca em um estatuto de igualdade em relaccedilatildeo agraves essecircncias ou agrave

divindade parecendo cabiacutevel portanto oferecer uma imagem dela como algo quase

corpoacutereo por assim dizer que pode demonstrar a hiperinfluecircncia do corpoacutereo e o

consequente desuso da razatildeo no que se refere agrave sua potencialidade cognitiva Em outros

termos para ilustrar o processo de aquisiccedilatildeo da excelecircncia intelectual do filoacutesofo eacute

preciso ter uma visatildeo da alma suscetiacutevel a depuraccedilatildeo racional da filosofia e desse

modo que ofereccedila tanto os resultados dele a exemplo da alma do filoacutesofo quanto a

possibilidade dessa purificaccedilatildeo natildeo ocorrer

A narrativa de uma conduta pautada pelo corpoacutereo no qual as faculdades

inteligiacuteveis da alma natildeo exercem qualquer comando contrariando sua natureza (79e8-

80a5) sugere uma posiccedilatildeo intermediaacuteria da alma entre apelos do sensiacutevel uma vez

encarnada em um corpo humano e sua inclinaccedilatildeo inteligiacutevel dada afinidade com tal

gecircnero A tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel posta em termos de domiacutenios distintos eacute agora

refletida conforme o texto em uma conduta da alma que pode oscilar e que tem no

135 Fed 80b1-3 ldquo() se eacute ao que eacute divino imortal e inteligiacutevel ao que possui uma soacute forma e eacute

indissoluacutevel e se manteacutem constante e igual a si mesmo que a alma mais se identifica ()rdquo ( ηῷ κὲλ ζείῳ

θαὶ ἀζαλάηῳ θαὶ λνεηῷ θαὶ κνλνεηδεῖ θαὶ ἀδηαιύηῳ θαὶ ἀεὶ ὡζαύησο θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνληη ἑαπηῷ

ὁκνηόηαηνλ εἶλαη ςπρή)

187

intelecto a faculdade para orientaacute-la na direccedilatildeo daquilo que ela deveria naturalmente

aspirar A ausecircncia da atuaccedilatildeo da razatildeo ou como diz o texto a ausecircncia do comando da

alma tem origem no apego ao corpoacutereo resultante da convivecircncia (ἅηε ηῷ ζώκαηη ἀεὶ

ζπλνῦζα Fed 81b2) com o corpo o que pode ser visto em certa medida como uma

alteraccedilatildeo em sua natureza Tal alteraccedilatildeo eacute dada analogamente como uma mancha

(κηαίλσ) uma impureza (ἀθάζαξηνο ηνῦ ζώκαηνο Fed 81b1) consequecircncia de uma

conduta na qual a alma desprovida da atividade do pensamento estaacute enleada pelo que se

refere ao corpo mais precisamente prazeres e paixotildees (Fed 81b2-4) A alma nesse

contexto acostuma-se (ἐζίδσ) com as caracteriacutesticas corpoacutereas (ηὸ ζσκαηνεηδέο)

reconhecendo somente estes como verdadeiros recusando o que eacute inteligiacutevel (λνεηὸλ δὲ

θαὶ θηινζνθίᾳ αἱξεηόλ Fed 81b5)

Dominada pelo corpo vecirc-se a corrupccedilatildeo de sua potecircncia cognitiva e a ecircnfase

que o texto cabe notar confere ao pensamento ao identificar a conservaccedilatildeo da natureza

da alma agrave intelecccedilatildeo Em outros termos como responsaacutevel por evitar tal domiacutenio o

pensar exercido pela filosofia pode garantir o bom destino apoacutes a morte e a felicidade

(Fed 81a) por habituar a alma agrave convivecircncia com o que eacute inteligiacutevel e a tornaacute-la

temperante e justa Do mesmo modo ao contraacuterio em uma vida na qual se privilegia os

viacutecios como as glutonias beberronices injusticcedila e tirania (Fed 82a) habituou-se a

alma a tais coisas e tem portanto uma forte relaccedilatildeo e uma assimilaccedilatildeo de sua forma e

de seu modo de ser (Fed 81c4-6) Apegada ao corpo a alma assimila apenas o que eacute

corpoacutereo assumindo algumas caracteriacutesticas dele O que de maneira anaacuteloga eacute dito se

tornar pesada e ser arrastada ao sensiacutevel pelo temor da morte (Fed 81c9) sugere na

verdade a corrupccedilatildeo da natureza da alma devida a ausecircncia da praacutetica do trabalho

intelectual em vista dos inteligiacuteveis (Fed 81c9)

Parece importante mostrar os efeitos negativos desta dominaccedilatildeo do corpo para

enfatizar o modo de vida como o percurso no qual se daacute a depuraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo desta

natureza Como perda do seu caraacuteter se tem anuladas algumas caracteriacutesticas tal como o

uso da racionalidade como jaacute dito e a perda de sua invisibilidade Apoacutes a morte do

corpo as almas ainda muito influenciadas pelo corpoacutereo seratildeo fantasmas que vagaratildeo

em torno dos tuacutemulos podendo assim serem vistas uma vez que compartilham

caracteriacutesticas dele (Fed 81d2) Diferentemente aqueles que conservam as virtudes por

terem o haacutebito de praticaacute-las de algum modo ainda que sem o exerciacutecio da filosofia

188

podem ter um bom destino no poacutes vida136

Note-se que o costume nos termos da praacutetica

e da convivecircncia demonstra o aspecto eacutetico da racionalidade neste intercurso entre

sensiacutevel e inteligiacutevel realizaacutevel pelo pensamento Eacute preciso exercitar a alma a frequentar

o ambiente inteligiacutevel para que possa se preservar e ter um destino compatiacutevel com sua

natureza Dito de outro modo a conduta correta que garante a vida digna e o bom

destino apoacutes a morte depende da preponderacircncia da razatildeo que assegura seu caraacuteter de

ser inteligente e de compartilhar caracteriacutesticas comuns com o domiacutenio invisiacutevel

Conveacutem observar que o diaacutelogo apresenta a conduta como fator determinante na

conservaccedilatildeo da natureza da alma sendo por conta disso o modo de se exercitar

racionalmente um dos pontos importantes a serem abordados a seguir (Fed 81e2)137

A interaccedilatildeo da alma com os inteligiacuteveis realizada que se tem no exerciacutecio

filosoacutefico proporciona um estado duradouro de inteligibilidade cujos efeitos satildeo

prolongados e tecircm reflexos na conduta que o filoacutesofo assume durante a vida e nas

razotildees que fundamentam seu destemor em relaccedilatildeo agrave morte Natildeo constituindo apenas

uma operaccedilatildeo raciocinativa ou de caacutelculo a inteligecircncia consiste na aquisiccedilatildeo das

qualidades dignas de se assemelharem com as essecircncias e com os seres divinos (Εἰο δέ

γε ζεῶλ γέλνο Fed 82b10)

Sugere-se desse modo a elevaccedilatildeo da alma ao grau dos seres superiores

comparaacuteveis agravequeles seres puros e autecircnticos os quais Soacutecrates acredita serem possiacuteveis

de encontrar no melhor destino apoacutes a morte Dado anteriormente como uma capacidade

inteligente da alma de se purificar da negativa influecircncia do corpo o pensar tambeacutem eacute

visto como estado de influecircncia dos inteligiacuteveis (ηὸ πάζεκα) na condiccedilatildeo da alma pura

ou atuando por si mesma (αὐηὴ θαζ αὑηὴλ) isolada do corpo

Cabe ressaltar o papel paradoxal atribuiacutedo ao pensamento no Feacutedon Diante dos

dois movimentos da alma afastamento e aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis a θξόλεζηο

apresenta seu caraacuteter ativo e passivo ao sintetizar o conjunto dos resultados da

identificaccedilatildeo da alma com o domiacutenio suprassensiacutevel ou seja como accedilatildeo de interaccedilatildeo e

136 Fed 82a10-b3 ldquoE dentre estes os mais felizes os mais bem instalados seratildeo ainda os que praticam

essas formas populares e sociaacuteveis de virtude que chamam de temperanccedila e justiccedila ainda que assentes

na forccedila do haacutebito e natildeo na reflexatildeo filosoacutefica (Οὐθνῦλ εὐδαηκνλέζηαηνη ἔθε θαὶ ηνύησλ εἰζὶ θαὶ εἰο

βέιηηζηνλ ηόπνλ ἰόληεο νἱ ηὴλ δεκνηηθὴλ θαὶ πνιηηηθὴλ ἀξεηὴλ ἐπηηεηεδεπθόηεο ἣλ δὴ θαινῦζη

ζσθξνζύλελ ηε θαὶ δηθαηνζύλελ ἐμ ἔζνπο ηε θαὶ κειέηεο γεγνλπῖαλ ἄλεπ θηινζνθίαο ηε θαὶ λνῦ)rdquo

137 Note-se que a natureza inteligente da alma filosoacutefica n‟A Repuacuteblica eacute dada como um dos fatores

decisivos para a escolha e treinamento do futuro governante uma vez que significa aptidatildeo para uma

tarefa (Rep 455b) e demonstra a potencialidade para apreender e se apegar ao belo (476b) enquanto aqui

eacute um fator imprescindiacutevel para a conservaccedilatildeo e restauraccedilatildeo da alma que a filosofia pretende Apesar dos

diferentes contextos estaacute em questatildeo o seu desenvolvimento e a sua preservaccedilatildeo como condiccedilatildeo para

atingir os fins pretendidos o bom governo e a boa morte

189

como os efeitos do reconhecimento deste domiacutenio138

Apesar da estranheza que possa

causar tal afirmaccedilatildeo esse duplo papel eacute o que explica a natureza autocircnoma da alma A

possibilidade de isolamento do que lhe eacute naturalmente adverso como as sensaccedilotildees soacute eacute

possiacutevel por causa dessa faculdade que a eleva a um plano superior e a manteacutem nesse

niacutevel de elevaccedilatildeo onde ele apreende os seres verdadeiros Sua autonomia resulta da

capacidade de interagir com os inteligiacuteveis e de se manter sob influecircncia deles agindo

assim sem o auxiacutelio de outra capacidade e sem se deixar desorientar por algo de outra

ordem Ao mesmo tempo em que se tem uma faculdade tal somente um pensamento

elevado pode assegurar a continuidade da realizaccedilatildeo de sua atividade

Eacute nesses termos que se deve compreender que a alma pura tem o pensamento

igualmente puro influenciado e orientado pelos inteligiacuteveis seres igualmente puros ou

seja de mesma natureza incorpoacuterea e inteligiacutevel O texto acrescenta uma explicaccedilatildeo

acerca do processo de aquisiccedilatildeo do estado excelente do pensamento ao oferecer a sua

constituiccedilatildeo enquanto atividade nessa relaccedilatildeo A descriccedilatildeo do comportamento da alma

nas duas circunstacircncias narradas apresenta o gecircnero da intelecccedilatildeo e dos seus

desdobramentos embora ainda sem se ater agraves especificidades acerca de sua operaccedilatildeo

como vai se dar ao se tratar da dialeacutetica

Vale observar como esse argumento contribui na construccedilatildeo da noccedilatildeo de

excelecircncia do pensamento a partir das questotildees ontoloacutegicas e eacuteticas que se apresentam

O que antes foi dado como pensamento puro termo de empreacutestimo da tradiccedilatildeo recebe

do ιόγνο filosoacutefico suas especificaccedilotildees origem gecircnero objetos e modus operandi

adequado para os fins da cogniccedilatildeo este uacuteltimo tratado com maior detalhe no fim do

diaacutelogo Tais especificaccedilotildees contribuem ateacute aqui para justificar o destemor do filoacutesofo

e sugerir a superioridade de um plano acessiacutevel pelo pensamento que em muito se

identifica com o invisiacutevel e eterno A preservaccedilatildeo de sua natureza ou cuidado da alma

sugere ser a atividade (πξ ηηεηλ Fed 82d5) e o haacutebito (ἔζνο) a condiccedilatildeo para a

felicidade o que no caso do filoacutesofo consiste na vida pautada pelo pensamento

O processo de purificaccedilatildeo ou aquisiccedilatildeo do estado de interaccedilatildeo com as ideias

inteligiacuteveis se daacute como se vecirc em uma eacutetica que encontra seu fundamento na natureza

racional e na atividade de conhecimento desses inteligiacuteveis ao mesmo tempo em que ela

138 Na compreensatildeo de Dixsaut esse ldquoestadordquo ou ldquoafecccedilatildeordquo da psykhe nomeada ldquosaberrdquo tal como

prefere a autora mostra o equiacutevoco em compreender que Platatildeo pergunta o que eacute ser uma ciecircncia uma

ciecircncia constituiacuteda Haacute na verdade o interesse em saber sobre essa relaccedilatildeo entre a alma e os objetos que

a afetam Dixsaut op cit p 145 Este eacute provavelmente o sentido de episteacuteme que encontramos no Feacutedon

a qual deve ser vista como em 79d uma relaccedilatildeo entre a alma e os seres inteligiacuteveis

190

mesma se constitui deste trabalho O filoacutesofo amante do saber do aprendizado potildee-se

com esta praacutetica em condiccedilotildees de atingir o plano superior de seres de gecircnero

identificados ao divino139

ao deixar a filosofia como traz o texto cuidar da alma para

tornaacute-la liberta ou seja natildeo mais submetida ao corpo (Fed 82e) O isolamento da alma

dado nesta postura intelectualista entenda-se que despreza o que natildeo se refere agrave alma e

se dedica agravequilo que se pode tratar apenas pelo intelecto sugere o cuidado de si como

submissatildeo da alma ao pensamento que se daacute sob a forma de convencimento (πείζσ)

(Fed 83a6-b3)

Este ponto ganharaacute foco com a explanaccedilatildeo da dialeacutetica ao final do diaacutelogo e se

mostraraacute importante por expor o meacutetodo do conhecimento e a forma de operar desta

racionalidade defendida ateacute este instante A exposiccedilatildeo que o diaacutelogo aos poucos

ofereceu sobre a θξόλεζηο teve o propoacutesito como se viu de apresentar a partir das

diferenciaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sentidos o gecircnero ao qual pertence e o seu valor para que

fosse possiacutevel fundamentar a noccedilatildeo de imortalidade que o filoacutesofo tem em vista Ao que

parece era importante levantar as questotildees que tocam a natureza da alma para traccedilar seu

perfil corretamente no qual a faculdade inteligente e a inteligecircncia satildeo os elementos sob

os quais cabe maior detalhamento Feitas tais distinccedilotildees o diaacutelogo acentuaraacute o caraacuteter

racionalista desta vida filosoacutefica propondo ao longo do seu desenvolvimento

especificaccedilotildees acerca dos objetos inteligiacuteveis do meacutetodo de aquisiccedilatildeo de tais objetos e

por consequecircncia da operacionalidade deste pensamento em seu modo excelente Todas

as qualificaccedilotildees atribuiacutedas ao inteligiacutevel tal como as provas da imortalidade da alma

passam a ser explicitadas segundo o ιόγνο filosoacutefico o qual ganha uma elaboraccedilatildeo

teacutecnica do meacutetodo filosoacutefico de anaacutelise e construccedilatildeo do discurso abandonando assim

os termos da tradiccedilatildeo

III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico

139 Fed 82b10-c1 ldquoQuanto agrave espeacutecie dos deuses natildeo seraacute permitido o acesso agravequele que natildeo praticou

a filosofia e natildeo se vai daqui totalmente purificado mas somente ao que ama o saber (Εἰο δέ γε ζεῶλ

γέλνο κὴ θηινζνθήζαληη θαὶ παληειῶο θαζαξῷ ἀπηόληη νὐ ζέκηο ἀθηθλεῖζζαη ἀιι ἢ ηῷ θηινκαζεῖ)rdquo

191

A proposta acerca da imortalidade da alma e consequentemente de sua

inteligibilidade eacute analisada segundo a forma cientiacutefica de filosofar A filosofia como

exerciacutecio intelectual aparece a partir de agora natildeo somente nos termos de uma

preparaccedilatildeo para a morte que prevecirc um retorno da alma agrave sua condiccedilatildeo mais autecircntica

ou de uma forma religiosa de obediecircncia ao deus Apolo (Fed 60e-61b) Ela passa a ser

exibida sob a forma da atividade capaz de elaborar instrumentos teoacutericos para a

aquisiccedilatildeo do conhecimento dos seres inteligiacuteveis ao dizer a relaccedilatildeo que a alma mantecircm

com eles (Fed 79d) e para demonstrar a imortalidade O aparato teoacuterico e

metodoloacutegico que Platatildeo elabora mais adiante ao tratar do ιόγνο do meacutetodo e ao

compor a Teoria das Formas colabora para os propoacutesitos do filoacutesofo Deve-se ter em

conta que a intenccedilatildeo de elaborar este aparato indicada no iniacutecio do diaacutelogo na ocasiatildeo

em que Soacutecrates declarava ter composto durante a vida a filosofia por ser justamente

esta a mais alta muacutesica (Fed 60e-61b10) cumpre-se ao especificar no que de fato

consiste e como se daacute essa forma de composiccedilatildeo filosoacutefica e portanto esta ordenaccedilatildeo

intelectual que julga ser superior agrave forma de composiccedilatildeo tradicional

Tem-se com isso a sugestatildeo de uma praacutetica intelectual que nesse contexto

consiste na maneira de compor argumentos140

Dito de outro modo investigar acerca do

meacutetodo filosoacutefico e de seus fundamentos consiste concomitantemente em analisar como

se deve exercer essa atividade intelectual para que ela se torne praticaacutevel no contexto

em que a alma ainda estaacute presa ao corpo ou seja limitada pela condiccedilatildeo de

humanidade

Deve-se notar que tal abordagem acerca da praacutetica filosoacutefica vai ao encontro de

uma questatildeo que surge a partir do que a passagem 79d descreve dado que o estado de

alta inteligecircncia descreve a ligaccedilatildeo do pensamento puro portanto livre do corpo eacute

possiacutevel o conhecimento destes seres na condiccedilatildeo de humanidade na qual a alma ainda

estaacute presa ao corpo A Teoria da Reminiscecircncia mostrou que sim No entanto vale

140 O sonho que visitou Soacutecrates vaacuterias vezes ao longo da vida pedia ao filoacutesofo que fizesse e praticasse

a arte das musas a musikeacute O filoacutesofo obedeceria mais uma vez a ordem do deus como fez durante toda a

vida mas atraveacutes da filosofia a mais alta muacutesica Ao identificar de algum modo a filosofia agrave musike o

diaacutelogo propotildee uma nova definiccedilatildeo para ambos No sonho a muacutesica natildeo aparece somente sob a forma de

mensagem divina tal como define a tradiccedilatildeo mas como exerciacutecio de ldquocompor e praticar a muacutesicardquo (60e-

61b10) A mensagem ganha uma interpretaccedilatildeo racionalista ao ser equiparada agrave filosofia sendo a muacutesica

ao que tudo indica uma espeacutecie de ordenaccedilatildeo segundo a racionalidade que subsidia o exerciacutecio da

filosofia Apesar disso a filosofia se distingue da muacutesica ao criar loacutegoi enquanto que a poesia cria

mythoi e nisso reside a superioridade da atividade filosoacutefica Vale observar que a sugestatildeo do exerciacutecio

filosoacutefico como ordenaccedilatildeo e portanto como trabalho intelectual que Soacutecrates faz no iniacutecio do diaacutelogo

agora se torna especiacutefica por meio da elaboraccedilatildeo da Teoria das Formas e do meacutetodo os quais conferem

caraacuteter cientiacutefico agrave filosofia

192

observar que o tema da imortalidade visto agrave luz dos infortuacutenios e limites da condiccedilatildeo da

alma presa ao corpo encontra na elaboraccedilatildeo do ιόγνο o caminho Assim uma pesquisa

sobre o discurso filosoacutefico no que concerne ao conhecimento e a possibilidade de dizer

as coisas em sua forma inteligiacutevel e portanto autecircntica parece parte do exerciacutecio e um

dos propoacutesitos da investigaccedilatildeo

Este terceiro movimento do Feacutedon propotildee uma reflexatildeo sobre a plausibilidade

das teses defendidas ateacute aqui como construtos do intelecto de modo a atestar mais uma

vez sua legitimidade como o uacutenico meio adequado para tal tarefa Uma vez realizadas

as devidas distinccedilotildees entre alma e corpo sensaccedilotildees e intelecto o empenho de agora em

diante consiste em demonstrar a capacidade do intelecto e a legitimaccedilatildeo de seus

instrumentos Assim os argumentos seguintes oferecem em certa medida um parecer

criacutetico e analiacutetico sobre os feitos que se referem agrave racionalidade e ao gecircnero

suprassensiacutevel sugeridos pela noccedilatildeo de θξόλεζηο tal qual o diaacutelogo propotildee141

O exerciacutecio racional da filosofia dado ateacute entatildeo nos termos de uma postura

intelectualista passa a ser exposto no registro de uma concepccedilatildeo de ciecircncia a partir da

qual a capacidade cognitiva seraacute o ponto de intersecccedilatildeo entre os temas do diaacutelogo A

postura do filoacutesofo de se desligar do que concerne ao corpo como as paixotildees (αὐηὴλ

παξαδηδόλαη ηαῖο ἡδνλαῖο Fed 84a4) eacute dada como o resultado do caacutelculo (ινγηζκόο) da

orientaccedilatildeo da razatildeo O refuacutegio nas essecircncias que se daacute por meio do ιόγνο anteriormente

sugerido para o prosseguimento da investigaccedilatildeo (Fed 79d1) eacute visto sob duas

perspectivas tomado como conduta durante a vida tem por finalidade a libertaccedilatildeo dos

males que afetam a alma na condiccedilatildeo de humanidade como postura gnosioloacutegica tem

como consequecircncia a aquisiccedilatildeo dos seres do que eacute verdadeiro e divino e o retorno agrave

natureza inteligiacutevel (Fed 86a7-b3)

O paralelismo entre conduta moral e aquisiccedilatildeo do conhecimento lanccedila luz a

questotildees acerca da veracidade do argumento e portanto acerca da operacionalidade e

do alcance da inteligecircncia Parece pertinente que a forma do discurso como trabalho da

inteligecircncia deva ter a sua capacidade de persuasatildeo posta de modo indubitaacutevel para que

a tese defendida e explanada a da imortalidade seja comprovada e aceita e o medo do

141 Conceber esta uacuteltima parte do diaacutelogo a qual traz a Teoria das ideias e o meacutetodo hipoteacutetico como

uma explicaccedilatildeo da primeira parte eacute uma leitura aceita para alguns comentadores Chen entender a

explicaccedilatildeo acerca do logos e a sua demonstraccedilatildeo na prova final da imortalidade uma exemplificaccedilatildeo do

treino para a morte dita no iniacutecio do texto Ele explica que apesar de parecer uma afirmaccedilatildeo ldquofantaacutesticardquo

jaacute que tal relaccedilatildeo natildeo eacute dada textualmente pode-se fazer esta associaccedilatildeo porque o exerciacutecio para a morte

que consiste na filosofia se realiza no meacutetodo das hipoacuteteses utilizada para provar a imortalidade da alma

Chen op cit p 30 nota 13

193

fim seja finalmente dissipado Em outras palavras como aspecto formal de uma

racionalidade que fundamenta um modo de vida e explica a morte o ιόγνο filosoacutefico

deve igualmente passar por um exame para que as teses que satildeo por ele explicadas

tenham validade

31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο

Vale a pena expor brevemente os dois argumentos que expotildeem a fragilidade de

uma concepccedilatildeo fisicalista da alma no que se refere a uma prova da imortalidade Eacute

pertinente levantar as caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo a partir das duacutevidas dos

interlocutores de Soacutecrates como contraponto ao que se pretende defender sobre o

discurso filosoacutefico como a forma do trabalho inteligiacutevel A argumentaccedilatildeo que

apresentou a proposiccedilatildeo da alma como ser indestrutiacutevel parece natildeo ter sido inteiramente

aceita (Fed 84c) apoacutes serem dadas as principais abordagens sobre ela Siacutemias questiona

acerca da possibilidade do conhecimento da imortalidade dadas as condiccedilotildees que a vida

humana oferece e a partir disso a validade da argumentaccedilatildeo filosoacutefica O argumento

anterior parece natildeo ter sido capaz de convencer o interlocutor de Soacutecrates que natildeo

pretende abandonar a investigaccedilatildeo apesar de reconhecer as dificuldades Para Siacutemias o

exerciacutecio de investigar se mostra carente de uma base minimamente soacutelida sob a qual

seja possiacutevel construir o discurso e assim constituir algum conhecimento na medida do

que for possiacutevel sobre a imortalidade O risco nesse sentido estaacute justamente em se

lanccedilar em uma experiecircncia que ateacute o momento se mostra destituiacuteda de um fundamento

ldquo() - Vou pois expor-te as minhas duacutevidas e outro tanto faraacute

o nosso Cebes explicando em que aspecto rejeito a tua argumentaccedilatildeo

(θαὶ ἐγώ ηέ ζνη ἐξῶ ὃ ἀπνξῶ θαὶ αὖ ὅδε ᾗ νὐθ ἀπνδέρεηαη ηὰ

εἰξεκέλα) Por mim Soacutecrates acho como talvez tambeacutem tu que um

conhecimento exato nesse tipo de mateacuterias eacute ou impossiacutevel ou

extremamente difiacutecil de adquirir em vida mas por outro lado natildeo

criticar em todos os seus aspectos as afirmaccedilotildees que nesse domiacutenio se

produzem ou renunciar a fazecirc-lo antes de ter esgotado todas as

possibilidades de exame (ἐιέγρεηλ) eacute bem sinal de fraqueza de

espiacuterito (πάλπ καιζαθνῦ εἶλαη ἀλδξόο) Ora nesse campo as

perspectivas que temos satildeo estas aprendermos a verdade de outrem

194

ou descobri-la noacutes ou ainda caso qualquer destas hipoacuteteses seja

inviaacutevel escolhermos dentre as doutrinas humanas a que nos

parecer melhor (βέιηηζηνλ ηῶλ ἀλζξσπίλσλ ιόγσλ) e menos faliacutevel

(εἰ κή ηηο δύλαηην ἀζθαιέζηεξνλ θαὶ ἀθηλδπλόηεξνλ) e como em

jangada arriscar nela a travessia da vida ndash a menos claro que se

consiga com maior seguranccedila e ausecircncia de risco embarcar em

transporte mais soacutelido do que este quero dizer uma doutrina

revelada (ιόγνπ ζείνπ ηηλόο) ()rdquo (Fed 85c1- d3)

Um ιόγνο sobre a imortalidade natildeo eacute possiacutevel sem que haja o trabalho do

pensamento filosoacutefico Mesmo diante da aparente falta de fundamento da pesquisa ao

modo da filosofia e da incerteza quanto aos resultados o discurso que se baseia na

natureza inteligente da alma e por isso na legitimidade das faculdades intelectuais

mostram-se a alternativa mais indicada para a investigaccedilatildeo As razotildees de prosseguir na

investigaccedilatildeo apesar da sua possiacutevel falibilidade potildee a dimensatildeo da limitaccedilatildeo do

pensamento ao explicar o sentido da persistecircncia em tal empresa Parece incontestaacutevel o

trabalho racional que a alma realiza mesmo em condiccedilatildeo hostil ou seja presa ao corpo

Parece vaacutelido que agrave filosofia cabe aprender descobrir (καζεῖλ εὑξεῖλ Fed 85c7) e

buscar o melhor discurso sobre a imortalidade mesmo que se admita a impossibilidade

de conhecer algo sobre o plano suprassensiacutevel em vida humana

Nesse sentido tem-se em vista a κάζεζηο e o que foi sugerido sobre o

conhecimento dos seres verdadeiros tal como mostrou a reminiscecircncia ao se aceitar

como via possiacutevel a busca a partir da proacutepria alma Do mesmo modo o impasse que se

mostra agora natildeo tira do horizonte da investigaccedilatildeo a proposta do conhecimento a partir

desta natureza inteligente e incorpoacuterea haacute pouco defendida da qual a alma se filia

Parece pertinente assim admitir ser o que resulta deste ιόγνο uma descoberta (εὑξεῖλ) e

ser correta a recusa de discursos jaacute estabelecidos sobre a alma e sobre sua natureza

Fraacutegil como a travessia em uma jangada o conhecimento em condiccedilotildees de humanidade

natildeo pode assertivamente dizer o destino da alma apoacutes a morte do corpo entretanto

parece mais razoaacutevel ter o ιόγνο como meio e o pensamento como condutor da pesquisa

Cabe notar que dada a precariedade de qualquer discurso humano sobre o que se

refere ao post-mortem o filoacutesofo se vecirc descomprometido com o acerto mas

comprometido em fazecirc-lo e fazecirc-lo bem lanccedilando sobre ele um minucioso e profundo

exame O receio relaccedilatildeo agrave morte que impedia os interlocutores de Soacutecrates de

persistirem na investigaccedilatildeo sobre a imortalidade (Fed 84d) se mostra assim descabido

sendo a via da racionalidade pela filosofia a que se mostra mais plausiacutevel A

195

superioridade que se pretende atribuir agrave especificidade do discurso filosoacutefico em

comparaccedilatildeo aos outros se restringe ao fato de constituir tambeacutem um autoexame o qual

sugere ao filoacutesofo a noccedilatildeo de sua verdadeira capacidade de cogniccedilatildeo A inquiriccedilatildeo

acerca da natureza da alma e assim do pensamento conduz incontornavelmente a

questionamentos relativos ao seu alcance e modo de operar chamando atenccedilatildeo para o

meacutetodo atraveacutes do qual eacute possiacutevel o conhecimento

Esse instante que serve como interluacutedio inaugura a nova perspectiva sob a qual a

imortalidade da alma seraacute tratada Ateacute agora o diaacutelogo destacou a alma na condiccedilatildeo da

humanidade e em relaccedilatildeo a um plano considerado superior ou seja em relaccedilatildeo ao plano

inteligiacutevel e ao plano da divindade As consideraccedilotildees acerca do pensamento foram

realizadas desse modo a partir desta relaccedilatildeo a qual apontou seu papel como faculdade

da alma seu gecircnero e qualidades mas que no entanto natildeo apresentaram maiores

especificaccedilotildees que demonstrassem a sua legitimidade Ao questionar sobre a validade

do discurso o texto potildee mais uma vez a questatildeo que se liga crucialmente agrave legitimidade

do trabalho racional a natureza imortal da alma que passa a ser examinada com

elementos da filosofia ou seja por meio do meacutetodo filosoacutefico

As duacutevidas acerca do pensamento recebem tratamento na revisatildeo da tese da

indestrutibilidade da alma nos dois proacuteximos argumentos142

O diaacutelogo contrapotildee agrave

pertinecircncia da pesquisa filosoacutefica o medo da morte amparado pela noccedilatildeo de alma que

os interlocutores de Soacutecrates possuem143

O discurso acerca da imortalidade defendido

142 Michael Ferejohn faz um comentaacuterio acerca da postura de Soacutecrates que pode justificar os argumentos

nos quais se potildee agrave prova as concepccedilotildees de seus interlocutores ldquoOs primeiros diaacutelogos bem como o

Meacutenon foram escritos do que podemos chamar perspectiva ldquosocraacuteticardquo isto eacute do ponto de vista de um

inquiridor criacutetico que reconhece que ele proacuteprio natildeo possui conhecimento genuiacuteno e entatildeo se potildee a

descobrir se algueacutem em seu torno estaacute em melhor posiccedilatildeo do que ele a este respeito () Por contraste o

que chamo de ldquoperspectiva socraacuteticardquo e com ela o requerimento de explicaccedilatildeo do conhecimento eacute muito

evidente no Feacutedon ()ldquo Ferejohn M ldquoO Conhecimento e as Formas em Platatildeordquo in Platatildeo (Benson H e

col Org) Porto Alegre Artmed 2011 p 152 A necessidade de testar as proposiccedilotildees conforme sugeriraacute o

meacutetodo hipoteacutetico mais adiante aparece demonstrada nessa exposiccedilatildeo do erro dos discursos dos

interlocutores Assim uma defesa da tese filosoacutefica da imortalidade exigiraacute tambeacutem que seja posta agrave

prova demonstrando concomitantemente assim a atividade da razatildeo e a validade de seu trabalho

143 Siacutemias e Cebes pertenciam agrave escola pitagoacuterica e eram ouvintes de Filolau de Crotona Esse uacuteltimo se

estabeleceu em Tebas em meados do seacuteculo V quando tinha por volta de cinquumlenta anos e teve contato

com os disciacutepulos de Pitaacutegoras Guardini R La Mort de Socrate Editions du Seuil p 142 A visatildeo da

alma como uma harmonia pelos pitagoacutericos eacute criticada no Feacutedon (85c-86e) Platatildeo constata nessa

identificaccedilatildeo a concepccedilatildeo de alma como um elemento corpoacutereo o qual natildeo escaparaacute agrave aniquilaccedilatildeo com a

morte Evidentemente natildeo se deve pensar que o diaacutelogo consiste em uma criacutetica agrave teoria da alma segundo

o pitagorismo ou segundo os misteacuterios mas eacute notaacutevel que ele natildeo ignora tal doutrina considerando-a um

bom ponto de partida para a concepccedilatildeo filosoacutefica de alma que pretende formular Temas como a

imortalidade e transmigraccedilatildeo presentes no diaacutelogo satildeo comuns aos pitagoacutericos e ganham

gradativamente no desenrolar da narrativa os contornos filosoacuteficos tais como Platatildeo os concebe Deste

modo o argumento presente mostra os pontos da visatildeo pitagoacuterica que se mostram incompatiacuteveis com a

alma inteligiacutevel e imortal do Feacutedon Os personagens que dialogam com Soacutecrates na investigaccedilatildeo acerca

196

pelo filoacutesofo ateacute entatildeo esbarra em uma concepccedilatildeo de alma ao modelo do corpoacutereo no

qual a destruiccedilatildeo e o fim satildeo as visotildees que se tem da morte e o medo um sentimento

inevitaacutevel Para expor o ponto de insuficiecircncia (νὐρ ἱθαλῶο Fed 85e2) do discurso

filosoacutefico tal como entendem os interlocutores o diaacutelogo retoma o exemplo da lira

(Fed 73d seg) dando a ele um tratamento diferente dada a nova dificuldade que se

coloca A explicaccedilatildeo de Siacutemias sobre a harmonia mostra a parcial concordacircncia acerca

das distinccedilotildees entre duas naturezas sensiacutevel e inteligiacutevel tal como o filoacutesofo propocircs

Para ele parece compreensiacutevel que a lira enquanto objeto fiacutesico composto de outros

artefatos como as cordas e a madeira seja identificado ao que eacute por natureza destrutiacutevel

terreno composto e mortal A harmonia144

por sua vez eacute incorpoacuterea invisiacutevel e

portanto imortal O interlocutor supotildee diante disso que se o instrumento for destruiacutedo

tiver as cordas dilaceradas e a madeira quebrada de modo algum a lira existiria jaacute que

os elementos fiacutesicos que a compotildeem satildeo destruiacutedos Entretanto segundo o raciociacutenio

proposto pelo filoacutesofo a harmonia permanece dada a natureza atribuiacuteda a ela ou seja

existe ainda assim natildeo perecendo com o fim do instrumento (Fed 85e-86b4)

Surge no entanto o que parece uma dificuldade para o interlocutor O discurso

tradicional descreve a alma nos termos de uma composiccedilatildeo e de uma harmonia de

elementos do corpo misturados com proporccedilatildeo (Fed 86b9-c2) Sendo ela mesma um

tipo de harmonia a tensatildeo e coesatildeo dos elementos fiacutesicos como a temperatura tem

influecircncia havendo assim uma dependecircncia do corpo para se manter harmocircnica e satilde

A exemplo da lira a alma precisa do equiliacutebrio dos elementos do corpo para ser tal

como uma harmonia podendo ser corrompida pela doenccedila e outros males o que

demonstra segundo esse argumento sua possiacutevel destrutibilidade (Fed 86c2-7) A

morte seria portanto a decomposiccedilatildeo desta harmonia e o fim da alma (Fed 86d2)

Do mesmo modo Cebes parece incapaz de conceber algo que natildeo seja ao

modelo do corpoacutereo demonstrando com isso suas dificuldades em seguir e reconstituir

uma argumentaccedilatildeo nos termos da filosofia Ele se diz satisfeito com o discurso do

filoacutesofo (πάλπ ἱθαλῶο ἀπνδεδεῖρζαη Fed 87a3) no que se refere agrave vida da alma antes de

estar na condiccedilatildeo de humanidade (Fed 87a1-4) Todavia considera insuficiente a

demonstraccedilatildeo no que toca a permanecircncia (ζώδσ) da alma apoacutes a morte do corpo Ao

comparar a durabilidade da alma do tecelatildeo ao manto que o veste Cebes demonstra o

da imortalidade representam o contraponto agrave concepccedilatildeo que Platatildeo tem sobre a alma a qual ele se esforccedila

mais uma vez em demonstrar que eacute distinta do corpo

144 A harmonia aqui deve ser pensada como o que hoje chamamos de afinaccedilatildeo conf nota 51 de M T

Schiappa de Azevedo

197

equiacutevoco de um raciociacutenio que busca ter provas da imortalidade a partir da parte mais

fraacutegil o corpo e os objetos corpoacutereos Uma afirmaccedilatildeo baseada no argumento do filoacutesofo

natildeo hesitaria em dizer a sobrevivecircncia da alma que resiste ao perecimento do corpo e do

manto que o cobria No entanto Cebes tem a intenccedilatildeo de demonstrar a durabilidade do

homem tendo como prova o manto que o vestia (Fed 87b4-c6) e a durabilidade da alma

tendo como prova a durabilidade do corpo Se a parte mais vulneraacutevel se encontra

preservada o homem e entatildeo a alma de gecircnero supostamente mais resistente

sobreviveu (Fed 87c6-d3)

O que se demonstra na verdade com esta uacuteltima argumentaccedilatildeo eacute a

incompreensatildeo dos interlocutores natildeo somente sobre o discurso filosoacutefico mas sobre a

tese que se propotildee Parece evidente ao mesmo tempo que Siacutemias natildeo distingue entre a

harmonia nos termos de uma noccedilatildeo apreensiacutevel pelo intelecto e uma relaccedilatildeo bem

equacionada entre elementos como ocorre na muacutesica natildeo conseguindo acompanhar o

exerciacutecio de intelecccedilatildeo que a investigaccedilatildeo exige Do mesmo modo o raciociacutenio

equivocado de Cebes em pretender demonstrar o perecimento da alma demonstra a sua

incompreensatildeo no que se refere agrave distinccedilatildeo de gecircneros A falta de entendimento acerca

da natureza inteligiacutevel da alma conforme as duas objeccedilotildees resultou na descrenccedila sobre

a imortalidade e sobre o alcance do exerciacutecio filosoacutefico Ao tomar a alma como o

resultado da composiccedilatildeo de elementos fiacutesicos que se relacionam entre si Siacutemias

transfere para o corpo a funccedilatildeo de oferecer indiacutecios da natureza e da sobrevivecircncia dela

A consequecircncia deste argumento despoja o pensamento de seu papel de testemunhar a

suposta permanecircncia da alma ficando o trabalho do ιόγνο nesse contexto sem qualquer

fundamento De modo semelhante a visatildeo da alma tal como descreveu Cebes

vulneraacutevel em relaccedilatildeo aos corpos a destitui de toda potecircncia inteligente e portanto da

capacidade de oferecer um discurso apoiado em uma natureza incorpoacuterea para supor o

poacutes-morte

ldquoE o momento exato em que essa morte essa separaccedilatildeo do

corpo acarreta consigo o aniquilamento da alma (argumentaria) eacute o

que ningueacutem sabe ao certo pois natildeo estaacute ao alcance de nenhum de

noacutes pressenti-lo (ἀδύλαηνλ γὰξ εἶλαη ὁηῳνῦλ αἰζζέζζαη ἡκῶλ) Por

isso mesmo quando um homem encara confiadamente a morte essa

confianccedila natildeo tem em princiacutepio razatildeo de ser (ἀλνήησο ζαξξεῖλ) a

menos que consiga demonstrar que a alma eacute de todos os modos

imortal e impereciacutevel (ὃο ἂλ κὴ ἔρῃ ἀπνδεῖμαη ὅηη ἔζηη ςπρὴ

παληάπαζηλ ἀζάλαηόλ ηε θαὶ ἀλώιεζξνλ)rdquo (Fed 88b2-6)

198

As dificuldades de compreensatildeo acerca do discurso do filoacutesofo que mostraram

as questotildees dos ouvintes satildeo uacuteteis porque expotildee o que eacute preciso para melhor

compreender os fundamentos e a construccedilatildeo do logos filosoacutefico Para isso conveacutem

questionar acerca dos motivos de Platatildeo para retomar esses exemplos dessa maneira

sendo a primeira sugestatildeo sua intenccedilatildeo de pocircr em evidecircncia os problemas acerca da

natureza da alma para em seguida reformulaacute-la segundo o meacutetodo que pretende

desenvolver Assim exibe duas argumentaccedilotildees que expotildeem a perspectiva de uma

concepccedilatildeo fisicalista de modo a deixarem evidentes as fragilidades desta concepccedilatildeo

para depois objetaacute-la Com isso ressalta a principal distinccedilatildeo entre esta teoria e a que

pretende propor tanto em termos conceituais quanto metodoloacutegicos Ao que parece tatildeo

importante quanto demonstrar a natureza incorpoacuterea da alma eacute conseguir demonstrar e

testar um discurso com bases seguras capaz de investigar e fazer suposiccedilotildees razoaacuteveis a

respeito de sua imortalidade

32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο

Cabe analisar a defesa do ιόγνο filosoacutefico que o diaacutelogo apresenta antes de dar o

discurso que demonstra a natureza incorpoacuterea da alma e a partir disso a capacidade do

intelecto segundo o meacutetodo e preceitos estritamente filosoacuteficos Diante da descrenccedila que

se instalou apoacutes as duas objeccedilotildees (ἀπηζηία Fed 84d2) as quais desacreditavam na

capacidade do discurso (Fed 88c) pareceu necessaacuterio ao filoacutesofo definir o lugar do

ιόγνο na investigaccedilatildeo de modo a distingui-lo como recurso da inteligecircncia A primeira

caracteriacutestica conferida a ele cabe notar diz respeito agrave identificaccedilatildeo com a humanidade

Recusar o discurso mais precisamente a sua praacutetica seria o mesmo que recusar e nutrir

aversatildeo ao homem Ao equivaler a misantropia agrave misologia o texto sugere ser o ιόγνο o

trabalho caracteriacutestico e portanto possiacutevel da alma no estado de humanidade ndash ldquo()

De fato natildeo haacute coisa pior para um homem do que ganhar aversatildeo pelos argumentos

ora pelo que toca agrave sua origem a misologia natildeo difere da misantropia ()rdquo (Fed

89d2) Tal afirmaccedilatildeo cabe observar resume o que se propocircs acerca da atividade

racional durante o diaacutelogo e de modo mais contundente o que se tinha em questatildeo nas

duas uacuteltimas objeccedilotildees a humanidade estaacute identificada agrave capacidade racional da qual o

199

ιόγνο constitui um recurso formal As questotildees acerca da imortalidade tem no fundo

esta identificaccedilatildeo posta agora em relevo problematizando nesse instante o uso das

capacidades intelectuais individualmente ou seja lanccedilando luz agrave inteligecircncia natildeo

somente em termos de gecircnero mas tambeacutem como instrumento atraveacutes do qual se

demonstra um grau da experiecircncia inteligente

Tal abordagem da inteligecircncia eacute corroborada pela explicaccedilatildeo que se segue sobre

a origem da aversatildeo aos argumentos e ao homem O oacutedio aos homens segundo o texto

surge do desapontamento da confianccedila excessiva depositada em algueacutem A decepccedilatildeo

causa a desconfianccedila que se estende a todos e o julgamento precipitado de que todos

satildeo peacuterfidos (Fed 89d3-e3) Este caso constitui um exemplo de inabilidade nas relaccedilotildees

humanas que serve para ilustrar a diferenciaccedilatildeo moral e em uacuteltima instacircncia de alcance

intelectual entre os homens A inabilidade estaacute em natildeo considerar que a maioria dos

homens esteja em um grau intermediaacuterio entre o completamente bom e o

completamente ruim os quais satildeo casos raros natildeo sendo difiacutecil tal situaccedilatildeo de

desapontamento acontecer A maioria ou seja a situaccedilatildeo mais comum entre os

indiviacuteduos e tambeacutem entre as qualidades eacute a mediana (Fed 90a8-11) O niacutevel mais

alto o qual sugestivamente o filoacutesofo ocupa eacute acessiacutevel apenas para poucos (Fed

90b1)

ldquo() Pois se soubesse lidar com eles suponho consideraria por

certo como eacute o caso que os homens radicalmente bons ou maus satildeo

em nuacutemero reduzidiacutessimo e que a grande maioria estaacute num grau

intermediaacuterio (ὥζπεξ ἔρεη νὕησο ἂλ ἡγήζαην ηνὺο κὲλ ρξεζηνὺο θαὶ

πνλεξνὺο ζθόδξα ὀιίγνπο εἶλαη ἑθαηέξνπο ηνὺο δὲ κεηαμὺ

πιείζηνπο)rdquo (Fed 90a1-3)

A criacutetica se dirige vale notar a quem profere um julgamento A semelhanccedila

entre os homens e os discursos estaacute em poder ser arbitraacuterio ou seja tanto o homem

quanto os argumentos podem estar baseado ou natildeo na razatildeo No que se refere ao

discurso esse eacute tratado nesse caso como mera produccedilatildeo em um jogo de proacute e contra no

qual se atribui valor de verdade ou de falsidade tal como parece acontecer na eriacutestica e

retoacuterica Tal postura diante da razatildeo descreve o alcance cognitivo mediano da maioria e

representa por que natildeo dizer o trabalho racional em um niacutevel mediacuteocre A descrenccedila

no ιόγνο surge desse uso inaacutebil que o coloca como uma forma de convencimento e uma

200

disputa de teses (Fed 91a3) desprovida de um fundamento que o valide e que ofereccedila

seus resultados como algo confiaacutevel145

Com um discurso ora confiaacutevel ora natildeo o natildeo

filoacutesofo demonstra desconhecer a natureza e o uso adequado do ιόγνο natildeo sendo capaz

de identificar no que de fato o discurso deve estar baseado e como proceder

corretamente em relaccedilatildeo a ele

Nesse sentido seria um equiacutevoco atribuir o desconhecimento acerca da

imortalidade da alma agrave forma discursiva da razatildeo que como tal oferece a possibilidade

de conhecer a verdade dos seres da qual o retor permanece privado146

A maneira

sofiacutestica de uso do ιόγνο eacute incapaz de apreender o que pode haver de firme e verdadeiro

em um discurso sendo os homens que o utilizam equivocadamente responsaacuteveis pelo

insucesso em uma argumentaccedilatildeo (Fed 90c8-d7) Dito de outro modo o problema natildeo

satildeo os argumentos mas o uso inadequado e a capacidade discursiva dos homens que

em sua maioria eacute mediana (Fed 90d9-e3)

O uso do discurso pelo filoacutesofo na iminecircncia da morte estaacute norteado pela

verdade e amparado na convicccedilatildeo (Fed 91a9) Esta pode parecer uma afirmaccedilatildeo

destoante da criacutetica feita haacute pouco ao uso sofiacutestico do discurso jaacute que nesse caso natildeo

havia para eles uma base soacutelida e segura Todavia conveacutem observar que tal convicccedilatildeo

se fia na confianccedila que ele atribui ao correto uso do ιόγνο Trata-se ao que parece de

uma crenccedila oriunda da persuasatildeo do proacuteprio ιόγνο filosoacutefico a qual tem a ἀιεζήο como

fator de convencimento (Fed 91b8-c3) O teor de incerteza quanto aos resultados do

ιόγνο tanto no discurso retoacuterico quanto no filosoacutefico deve-se notar natildeo confere ao

discurso como pretende a filosofia um caraacuteter de doutrina ou revelaccedilatildeo de um misteacuterio

como se tem na tradiccedilatildeo O filoacutesofo estaacute descomprometido em anunciar uma verdade de

modo categoacuterico pois sua aspiraccedilatildeo deve se voltar para o plano especulativo no qual se

verifica as possibilidades de dizer sobre a morte por meio de certo tipo de anaacutelise em

torno da natureza da alma Nesse sentido a pesquisa filosoacutefica se mostra muito mais

145 Fed 90b6-c3 ldquoNa verdade eacute noutro aspecto que falo de semelhanccedila quando por exemplo uma

pessoa sem qualquer experiecircncia de argumentos toma por verdadeiro o primeiro que lhe aparece para

pouco depois o reputar de falso (quantas vezes com razatildeo mas quantas vezes sem ela) e assim

sucessivamente com outro e com outro (ᾗ ἐπεηδάλ ηηο πηζηεύζῃ ιόγῳ ηηλὶ ἀιεζεῖ εἶλαη ἄλεπ ηο πεξὶ ηνὺο

ιόγνπο ηέρλεο θἄπεηηα ὀιίγνλ ὕζηεξνλ αὐηῷ δόμῃ ςεπδὴο εἶλαη ἐλίνηε κὲλ ὤλ ἐλίνηε δ νὐθ ὤλ θαὶ

αὖζηο ἕηεξνο θαὶ ἕηεξνο) E tal eacute em especial o caso dos que passam a vida a argumentar proacute e contra

bem sabes como por fim se convencem de terem atingido o cume da sabedoria de serem os uacutenicos a

concluir que nada de satildeo e de seguro haacute nas coisas como nos argumentosrdquo

146 Fed 90d ldquo() seria caso para lamentar que havendo um argumento verdadeiro soacutelido e acessiacutevel

ao entendimento o simples fato de parecer associado a tais que embora permaneccedilam os mesmos tanto

passam por verdadeiros como natildeo servisse de pretexto a qualquer um para natildeo ter de acusar a si e agrave sua

ignoracircncia () privando-se assim de conhecer a verdade dos seres (ηῶλ δὲ ὄλησλ ηο ἀιεζείαο ηε θαὶ

ἐπηζηήκεο ζηεξεζείε)rdquo

201

valiosa ao colocar como se daacute a partir de agora as regras para o uso do ιόγνο e apontar

os caminhos mais seguros para uma investigaccedilatildeo

As recomendaccedilotildees acerca do uso filosoacutefico da razatildeo natildeo tardam A resposta agraves

objeccedilotildees lanccediladas agrave argumentaccedilatildeo filosoacutefica mostra as diferenccedilas entre os discursos e o

erro da tese que concebe a alma como harmonia Uma vez aceita a Teoria da

Reminiscecircncia pelos interlocutores (Fed 91e) deve-se avaliar as teses que apostam na

destruiccedilatildeo da alma por concebecirc-la de alguma maneira como algo corpoacutereo Ao iniciar

a refutaccedilatildeo o filoacutesofo potildee em questatildeo a compatibilidade entre as duas teses Parece

haver um conflito em admitir uma existecircncia anterior agrave vivecircncia em um corpo e supor

uma alma ao modo corpoacutereo que necessita dele para ser como tal harmocircnica ou tem

um fim por ser ela mesma desgastada

ldquo() se persistires nessa convicccedilatildeo (δόμαη) de que a harmonia eacute

algo de compoacutesito (ζπγθεηκέλε) e a nossa alma uma harmonia

resultante de elementos do corpo em tensatildeo de certo natildeo aceitaraacutes

nem dito por ti mesmo (νὐ γάξ πνπ ἀπνδέμῃ γε ζαπηνῦ ιέγνληνο) que

sendo a harmonia algo de compoacutesito possa algum dia ter existido

antes desses mesmos elementos que a deveratildeo constituir ou seraacute que

aceitasrdquo (Fed 92a6-b2)

Dado que a harmonia depende da lira e da tensatildeo das cordas para ser enquanto

tal ela natildeo poderia existir antes do instrumento que a produz mostrando ser a

concepccedilatildeo da alma como uma composiccedilatildeo harmocircnica desse modo insustentaacutevel (Fed

92b4-c3) O filoacutesofo conduz a objeccedilatildeo de modo a equiparar cabe notar uma capacidade

inteligente da alma agrave noccedilatildeo de harmonia ldquo() por qual das ideias te decides (αἱξῆ ηῶλ

ιόγσλ) a de que a aprendizagem (ηὴλ κάζεζηλ) eacute uma reminiscecircncia ou a de que eacute

uma harmoniardquo (Fed 92c8-10) Essa comparaccedilatildeo ajusta o raciociacutenio da refutaccedilatildeo em

andamento agrave concepccedilatildeo de alma que o filoacutesofo defende e mostra o aspecto em relevo

para as assertivas acerca do trabalho argumentativo Parece ser mais uacutetil ao argumento

abordar a alma por meio de seu caraacuteter inteligente para contrapor a uma noccedilatildeo que

deve-se observar varia ao apresentar um aspecto formal e um aspecto conceitual Eacute

possiacutevel compreender a harmonia como fez Siacutemias nos termos de uma composiccedilatildeo

oriunda do instrumento musical ao mesmo tempo em que se pode abordaacute-la nos termos

de uma concepccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo como quer o filoacutesofo Importa opor algo uno e

imutaacutevel a algo que aceita ser tomado com a ambiguidade para mostrar que a alma eacute

concebida erroneamente quando vista com ambiguidade ora composta e sensiacutevel ora

202

preacute-existente e inteligiacutevel e que um discurso deste tipo eacute invaacutelido Ao propor essa

dicotomia com a sugestatildeo da alma harmonia o diaacutelogo tem em mira expor a inabilidade

de estabelecer relaccedilotildees entre elementos do mesmo gecircnero tal como se deu nos outros

tipos de argumentaccedilatildeo Em outras palavras falta aos demais discursos compreenderem

a diferenccedila entre os domiacutenios e aceitar como procedimento estabelecer relaccedilatildeo entre

elementos inteligiacuteveis

Tal deficiecircncia eacute logo compreendida por Siacutemias que admite no que se baseiam

os argumentos natildeo-filosoacuteficos na verossimilhanccedila (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ εὐπξεπείαο)

A origem do engano do discurso sofiacutestico satildeo as aparecircncias que constituem de fato um

fundamento incerto por permitirem apenas uma argumentaccedilatildeo plausiacutevel A partir de

uma base desta natureza tem-se uma opiniatildeo que natildeo enuncia algum conhecimento

sobre a alma e sobre a morte

ldquo- De longe pela primeira Soacutecrates Quanto agrave uacuteltima nada

tenho na realidade a abonaacute-la baseei-me tatildeo soacute numa

verossimilhanccedila numa plausibilidade formal (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ

εὐπξεπείαο) que eacute com certeza a origem dessa convicccedilatildeo na maior

parte dos homens Mas eu proacuteprio sei por experiecircncia quatildeo falazes

satildeo essas demonstraccedilotildees fabricadas a partir de meras

verossimilhanccedilas (ἐγὼ δὲ ηνῖο δηὰ ηῶλ εἰθόησλ ηὰο ἀπνδείμεηο

πνηνπκέλνηο ιόγνηο ζύλνηδα νὖζηλ ἀιαδόζηλ) e a que erros

(ἐμαπαηῶζη) nos induzem seja na geometria seja em qualquer outro

domiacutenio quando mal nos precatamos contra elas ()rdquo (Fed 92c11-

d5)

Por outro lado o ιόγνο filosoacutefico tem na relaccedilatildeo inteligiacutevel entre alma e a

essecircncia a base para as especulaccedilotildees147

Apoacutes a reacuteplica do filoacutesofo Siacutemias estaacute

persuadido (ὡο ἐκαπηὸλ πείζσ 92e1) desta relaccedilatildeo testemunhada pelas operaccedilotildees

inteligentes descritas ateacute agora a reminiscecircncia e a aprendizagem (ὁ δὲ πεξὶ ηο

ἀλακλήζεσο θαὶ καζήζεσο ιόγνο δη ὑπνζέζεσο ἀμίαο ἀπνδέμαζζαη εἴξεηαη Fed 92d6-

7) O discurso filosoacutefico construiacutedo desde o iniacutecio da investigaccedilatildeo apresenta nesse

instante uma demonstraccedilatildeo de seus procedimentos e de seu efeito ao levar o

interlocutor ao reconhecimento das falhas de sua proacutepria tese e a aceitaccedilatildeo da tese

adversaacuteria ndash ldquoOra esse pressuposto tenho para mim que eacute natildeo apenas suficiente como

correto aceitaacute-lo (ἀμηνῖο ἐπηδεηρζλαη ἡκῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἱθαλῶο ηε θαὶ ὀξζῶο

ἀπνδέδεγκαη)rdquo (Fed 92e1) Ao ser posto agrave prova um criteacuterio para a validade do 147 Fed 92d8-9 ldquouma vez que equaciona a existecircncia da alma anteriormente ao nosso nascimento com

a desse tipo de realidade em sirdquo (ὥζπεξ αὐηο ἐζηηλ ἡ νὐζία ἔρνπζα ηὴλ ἐπσλπκίαλ ηὴλ ηνῦ ldquoὃ ἔζηηλrdquo)

203

discurso (ἀλώιεζξόλ ηε θαὶ ἀζάλαηνλ νὖζαλ 95b9-c1) a argumentaccedilatildeo deve resistir ao

exame e ter assim a clareza e a suficiecircncia da tese que defende comprovadas o que

natildeo se verificou com a refutaccedilatildeo das duas objeccedilotildees Resta ao interlocutor prosseguir se

submetendo ao meacutetodo e aos princiacutepios desta forma do uso da razatildeo e ouvir a

desconstruccedilatildeo de sua tese anteriormente defendida148

Natildeo conveacutem analisar em minuacutecias a desconstruccedilatildeo da tese da alma harmonia

todavia devem-se levantar alguns raciociacutenios que oferecem informaccedilotildees sobre a funccedilatildeo

conferida ao intelecto Algumas caracteriacutesticas da alma se chocam com a noccedilatildeo de

harmonia presentes no discurso de Siacutemias 1ordm) sendo a harmonia uma composiccedilatildeo duas

caracteriacutesticas caras a alma por compartilhaacute-las com os seres inteligiacuteveis satildeo postas em

risco a unidade e a imutabilidade Como tal a harmonia pode ser quantificada em

proporccedilatildeo sendo correto dizer ldquomais ou menos harmocircnicardquo entretanto o mesmo natildeo se

pode dizer em relaccedilatildeo a alma a qual natildeo se pode considerar ldquomais plena e

completamente bdquoalma‟ ou menos plena e completamente bdquoalma do que outrardquo (Fed

93a1-b1-6)

Natildeo eacute correto concebecirc-la nos termos de possuir um atributo em maior ou menor

grau de harmonia do mesmo modo natildeo se pode ser e natildeo ser harmocircnica ou

textualmente natildeo pode participar da harmonia nem da desarmonia ter uma identidade

X e participar do seu oposto (Fed 93e) Diante da uacuteltima anaacutelise deve-se admitir 2ordm) a

primazia da inteligecircncia a qual por natureza comanda as accedilotildees do homem (Fed 94b4-

5) Supor a dependecircncia da harmonia em relaccedilatildeo agrave lira eacute o mesmo que considerar a alma

dependente do corpo para ser enquanto tal o que entraria em conflito com a tese

anteriormente aceita de que ela se opotildee aos desejos e apetites do corpo (Fed 94b6-c) A

importacircncia de afirmar tal primazia estaacute justamente em atribuir validade e confianccedila ao

discurso produto da inteligecircncia e preservar a funccedilatildeo de governo (ἄξρσ) do

pensamento em um alto niacutevel θξόληκνλ (Fed 94b5)

Interessa agrave investigaccedilatildeo a partir de agora abordar a alma nos termos de uma

noccedilatildeo com a qual se possa levar adiante a investigaccedilatildeo utilizando para isso elementos

148 Cabe aqui trazer o cometaacuterio de Ferejohn para ressaltar o que se pretende com a refutaccedilatildeo das teses

dos interlocutores ldquoO objetivo central de Soacutecrates nessa obra consiste em estabelecer a imortalidade da

alma Para fazer isso contudo natildeo seria suficiente para ele determinar (ao modo da Repuacuteblica) que as

almas vatildeo se mostrar imortais em sua teoria proposta Antes ele quer mostrar que elas realmente satildeo

imortais Consequentemente ele deve argumentar com base em premissas verdadeiras que estatildeo ao seu

alcance e ao de seus interlocutores em sua condiccedilatildeo de insciecircncia ou do que chamei perspectiva

socraacutetica (perspectiva criacutetica do inquiridor que reconhece sua ignoracircncia e por isso cobra explicaccedilatildeo de

seu intelector supostamente conhecedor) () Soacutecrates no Feacutedon tenta dar razotildees filosoacuteficas para

pensar que a teoria eacute verdadeirardquo Ferejohn opcit p 152

204

inteligiacuteveis como manda a filosofia e deixando de lado uma visatildeo que a considere

individualmente abordagem que o dialogo tambeacutem apresentou Dito de outro modo a

argumentaccedilatildeo aponta a perspectiva a partir da qual conveacutem tratar a alma e o tema da

imortalidade da universalidade das ideias em oposiccedilatildeo ao particular da multiplicidade

das percepccedilotildees do sensiacutevel Dados os ditames para a pesquisa ao modo da filosofia

cabe analisar como se desenvolve tal uso e em que medida a argumentaccedilatildeo sobre a

imortalidade se torna uma demonstraccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia uma vez comprovada a

validade do discurso

33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico

Para contra-argumentar acerca da ideia de que a alma tem o iniacutecio da sua

destruiccedilatildeo ao entrar no corpo (Fed 95d1-4) encontrando seu fim apoacutes muitas

encarnaccedilotildees o diaacutelogo lanccedila luz para o tema que deve ganhar atenccedilatildeo a causa da

geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (γελέζεσο θαὶ θζνξᾶο ηὴλ αἰηίαλ Fed 95e9) Duraccedilatildeo e

imortalidade no discurso de Cebes natildeo satildeo correspondentes Para ele ainda natildeo

convencido pelo filoacutesofo o que se tem com a reminiscecircncia e com a morte do corpo eacute a

demonstraccedilatildeo de um tempo de duraccedilatildeo da alma Ao mesmo tempo em que considera a

existecircncia da alma anterior ao nascimento uma prova de sua duraccedilatildeo entende que ela

sofre com os nascimentos ateacute perecer completamente com a morte (Fed 95c4-e1) natildeo

havendo assim prova de sua imortalidade mas de um periacuteodo limitado de

permanecircncia Cebes que pedia a demonstraccedilatildeo da imortalidade e da conservaccedilatildeo da

alma para que pudesse ter confianccedila no discurso filosoacutefico e aceitar que este natildeo seria

vatildeo e sem sentido (ἀλόεηόλ ηε θαὶ ἠιίζηνλ) (Fed 95b8-c4) tem questionado agora o que

estaacute na base deste tempo de duraccedilatildeo ou seja o que pode de fato revelar o suposto iniacutecio

e fim da existecircncia de modo a tornar evidente a imortalidade

A αἰηία tema herdado dos tempos em que o jovem Soacutecrates frequentava os

estudos da ciecircncia da natureza (θύζεσο ἱζηνξίαλ Fed 96a8) ganha definiccedilatildeo filosoacutefica

junto com a evoluccedilatildeo dos questionamentos sobre a inteligecircncia (λνῦο) Antes examinada

a partir do que se podia observar nos seres vivos e dos fenocircmenos naturais a causa que

205

em um primeiro momento tentava responder o porquecirc da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo o

porquecirc de existirem 149

era associada agraves percepccedilotildees desses eventos Era pertinente desse

modo levantar uma questatildeo qual a causa do pensamento das percepccedilotildees do sensiacutevel e

dos conhecimentos

ldquoE eacute graccedilas ao sangue que pensamos (θξνλνῦκελ) ou ao ar ou

ao fogo Ou nada disso conta e eacute sim o ceacuterebro que nos permite as

sensaccedilotildees (ὁ δ ἐγθέθαιόο ἐζηηλ ὁ ηὰο αἰζζήζεηο παξέρσλ) do ouvido

da vista e do olfato sensaccedilotildees estas que estaratildeo na base da memoacuteria

e da opiniatildeo (ἐθ ηνύησλ δὲ γίγλνηην κλήκε θαὶ δόμα) dando origem

uma vez consolidadas a conhecimentos correspondentes (θαηὰ ηαῦηα

γίγλεζζαη ἐπηζηήκελ)rdquo (Fed 96b2-8)

Vale notar que a pergunta tema desse estudo esteve presente desde o iniacutecio como

tema de fundo e sintetiza as indagaccedilotildees do diaacutelogo ao ligar as trecircs perspectivas que se

referem agrave questatildeo do pensamento seu objeto seu fundamento e seu modo de operar A

conveniecircncia da anaacutelise da causa estaacute desse modo em reunir tais abordagens e indicar o

que subjaz ao pensar Ao se perguntar pela causa questiona-se acerca deste fundamento

que permite a atividade do pensamento ser enquanto tal A explanaccedilatildeo sobre a causa

pretende especificar o foco e o domiacutenio de um discurso delimitando assim o seu

objeto e os meios pelos quais se deve abordar os temas propostos em uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica

O tipo de investigaccedilatildeo (ηαύηελ ηὴλ ζθέςηλ Fed 96c2) que desapontou o jovem

Soacutecrates as ciecircncias naturais levava em consideraccedilatildeo as causas corpoacutereas a carne o

sangue os ossos a comida a bebida (Fed 96c7-9) sendo a explicaccedilatildeo portanto um

montante destes elementos Entretanto tal como buscava o filoacutesofo a investigaccedilatildeo

nestes termos natildeo dava conta de explicar as causas nas relaccedilotildees como nas relaccedilotildees

matemaacuteticas cujos elementos satildeo inteligiacuteveis A razatildeo que levava a unidade a constituir

o dois seja por fraccedilatildeo ou por adiccedilatildeo ou que a faz existir natildeo era do domiacutenio deste tipo

de investigaccedilatildeo (Fed 97a-b) Soacutecrates desejava um tipo de causa como escopo de todas

as coisas existentes obedecendo assim ao criteacuterio de universalidade que o discurso

filosoacutefico exige

149 Fed 96a8-10 ldquoQue interessante natildeo seraacute (pensava eu) conhecer as causas de cada coisa a razatildeo

por que cada uma surge por que cada uma desaparece ou existe (ὑπεξήθαλνο γάξ κνη ἐδόθεη εἶλαη

εἰδέλαη ηὰο αἰηίαο ἑθάζηνπ δηὰ ηί γίγλεηαη ἕθαζηνλ θαὶ δηὰ ηί ἀπόιιπηαηθαὶ δηὰ ηί ἔζηη)rdquo

206

De todo modo as leituras de Anaxaacutegoras mostraram a direccedilatildeo para a causa tal

como queria o filoacutesofo A partir da narrativa do encontro com a tese acerca da

inteligecircncia ordenadora ndash ldquoAiacute se afirmava que era o Espiacuterito o ordenador e causa de

todas as coisasrdquo (ἄξα λνῦο ἐζηηλ ὁ δηαθνζκῶλ ηε θαὶ πάλησλ αἴηηνο) (Fed 97c1-2)

tem-se indicada de maneira objetiva a construccedilatildeo das bases do discurso filosoacutefico as

quais apresentam o trabalho do pensamento em seu niacutevel mais alto e reorganizam nos

termos do discurso filosoacutefico todos os elementos anteriormente dados como

pertencentes ao domiacutenio inteligiacutevel A descriccedilatildeo da comparaccedilatildeo entre os dois meacutetodos

mostra a intenccedilatildeo de delimitar a forma e o meacutetodo investigativo ao modo da filosofia

Narrado segundo discernimento de Soacutecrates (θαηὰ λνῦλ ἐκαπηῷ Fed 97d7) o λνῦο

ordenador de todas as coisas de Anaxaacutegoras constituiacutea uma causa eficiente na qual

todos os elementos estavam ordenados da melhor maneira O melhor e o mais excelente

(ηὸ ἄξηζηνλ θαὶ ηὸ βέιηηζηνλ Fed 97d3) deveriam ser portanto os objetos de anaacutelise

de modo a se investigar a causa e a necessidade de serem enquanto tais e porque razatildeo

tal natureza eacute a melhor150

Estes dois pontos a serem investigados constituem a maneira da investigaccedilatildeo

filosoacutefica inquirir acerca da causa Causa necessidade e no que consiste a melhor

ordenaccedilatildeo satildeo os pontos que devem indicar uma tipo de causa (αἰηίαο εἶδνο Fed 98a2)

que conduziraacute a investigaccedilatildeo para o verdadeiro fundamento de todas as coisas Esse tipo

de causa descreve as causas particulares e a causa comum a tudo por meio da qual eacute

possiacutevel explanar acerca do melhor para cada uma e acerca do bem que as

fundamenta151

A ordenaccedilatildeo segundo a inteligecircncia (ὑπὸ λνῦ αὐηὰ θεθνζκζζαη Fed

98a7) eacute orientada em uacuteltima instacircncia vale adiantar pelo bem (ηὸ ἀγαζὸλ Fed 99c5)

que teraacute nas proacuteximas passagens sua posiccedilatildeo e funccedilatildeo elucidadas

O texto trabalha para oferecer uma relaccedilatildeo causal que tem em vista o seu

fundamento Essa distinccedilatildeo deve ser bem compreendida haacute a causa dos particulares

serem enquanto tais e um fundamento comum a todas elas o qual torna possiacutevel todas

150 Fed 97c4-6 97e3 ldquo() Porque se assim eacute (pensei) se eacute o Espiacuterito que ordena todas as coisas entotilde

por certo que as ordena e dispotildee da forma que for mais conveniente para cada uma delas () Assim

julgava eu por exemplo que me diria primeiramente se a Terra era redonda ou plana em seguida expor-

me-ia a causa e a necessidade de ela assim ser invocando razotildees de conveniecircncia e demonstrando que tal

ou tal natureza lhe era de fato a mais ajustada (εἰ ηνῦζ νὕησο ἔρεη ηόλ γε λνῦλ θνζκνῦληα πάληα

θνζκεῖλ θαὶ ἕθαζηνλ ηηζέλαη ηαύηῃ ὅπῃ ἂλ βέιηηζηα ἔρῃ () ἐπεθδηεγήζεζζαη ηὴλ αἰηίαλ θαὶ ηὴλ

ἀλάγθελ ιέγνληα ηὸ ἄκεηλνλ θαὶ ὅηη αὐηὴλ ἄκεηλνλ ἦλ ηνηαύηελ εἶλαη)rdquo

151 Fed 98b1-3 ldquoE pois uma vez que atribuiacutea tal causa a cada um dos seres e a todos em geral supus

que iria explicar-me onde reside o melhor para cada um deles e aquilo que eacute comumente bom para todos

- (ἑθάζηῳ νὖλ αὐηῶλ ἀπνδηδόληα ηὴλ αἰηίαλ θαὶ θνηλῆ πᾶζη ηὸ ἑθάζηῳ βέιηηζηνλ ᾤκελ θαὶ ηὸ θνηλὸλ

πᾶζηλ ἐπεθδηεγήζεζζαη ἀγαζόλ)rdquo

207

as relaccedilotildees causais a causa de todas as causas Importa realizar tal diferenciaccedilatildeo para

indicar o plano em que se deve pensar esta causa primordial e o tipo de relaccedilatildeo causal

da qual se pretende tratar A escolha de Soacutecrates estaacute fundamentada na escolha do

melhor ordenado pelo λνῦο O fato de o filoacutesofo aceitar a sua condenaccedilatildeo e se manter

encarcerado tem como causa portanto o melhor estabelecido segundo a inteligecircncia e

natildeo o aprisionamento do seu corpo (Fed 99a4-b6) A causa como quer o filoacutesofo diz

respeito em primeiro lugar a um tipo de relaccedilatildeo na qual se deve encontrar a razatildeo de

cada coisa ser tal como eacute a realidade da coisa em segundo lugar deve-se ter em vista o

que a relaccedilatildeo causal indica como fundamento A relaccedilatildeo e o reconhecimento do

fundamento vale notar tecircm a inteligecircncia como agente a qual como todas as outra

coisas tambeacutem tem como causa o bem ndash posiccedilatildeo em geral compreendida erroneamente

e para a qual o filoacutesofo atribuiraacute posiccedilatildeo loacutegica e sentido metafiacutesico (Fed 99b) 152

A narrativa do desapontamento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave tese de Anaxaacutegoras traz

as distinccedilotildees da noccedilatildeo de inteligecircncia (λνῦο) e do meacutetodo investigativo da filosofia

Como se viu a noccedilatildeo de αἰηία que pretende o meacutetodo de Soacutecrates tem em vista o

fundamento que orienta a inteligecircncia e pode assim remeter agrave verdade sobre a alma e

sobre a imortalidade Dada importacircncia da causa primordial as questotildees sobre a causa

dos conhecimentos das percepccedilotildees e do pensamento feitas anteriormente encontram

nessa base comum a sua resposta O bem como causa comum ganha atenccedilatildeo nos

proacuteximos passos da investigaccedilatildeo sendo exposto o teor de sua posiccedilatildeo e a sua

causalidade em relaccedilatildeo ao trabalho do intelecto Do mesmo modo a universalidade do

bem dada a sua condiccedilatildeo colabora para construir a noccedilatildeo de uma razatildeo ordenadora

proacutepria da natureza inteligiacutevel presente no bem nas realidades e em tudo o que eacute

derivado dele a qual a inteligecircncia humana deve perseguir atraveacutes da cadeia de relaccedilotildees

causais Eacute dado desse modo o caminho para o trabalho racional o qual deve ascender agrave

causa maior o bem e aos assuntos que compartilham da mesma realidade como a

imortalidade

152 Este parece ser o ponto em que Soacutecrates pretende diferenciar sua concepccedilatildeo de nous da de

Anaxaacutegoras Como explica Ferejohn o despontamento de Soacutecrates se deve agrave constataccedilatildeo de que ldquo()

havia apenas uma defesa vazia do nous (ao conter frequentes ocorrecircncias do termo) mas sem fazer uso

teoacuterico de fato deste conceito em nenhuma forma que Soacutecrates reconhecia a saber como repositoacuterio de

crenccedilas desejos etc () ao proceder assim negligenciasse as causas reais (tas hocircs alecircthos aitias 98e2-

5) de sua situaccedilatildeordquo Ferejohn opcit p 153

208

IV Atividade do puro pensamento

O texto oferece adiante mais detalhes da relaccedilatildeo que pretende estabelecer entre o

que filosoficamente pode ser dito ldquoo bemrdquo e ldquoo melhorrdquo Ao mesmo tempo em que natildeo

se perdeu de vista a necessidade de manter o ιόγνο filosoacutefico sob inspeccedilatildeo o diaacutelogo

expotildee de maneira franca os elementos com o quais o filoacutesofo deve trabalhar Nesse

sentido o bem e a capacidade da inteligecircncia recebem consideraccedilotildees acerca de sua

natureza inteligiacutevel as quais revelam outros importantes elementos que se referem ao

trabalho do pensamento a saber o meacutetodo dialeacutetico e a Teoria das Ideias Natildeo seria

exagero considerar serem os proacuteximos passos da investigaccedilatildeo uma mostra do

pensamento puro no qual a alma do filoacutesofo descreve o que supotildee ser a livre atuaccedilatildeo do

pensamento e ao mesmo tempo considera ser o mais alto grau de intelecccedilatildeo possiacutevel

A segunda navegaccedilatildeo153

tal como descreve o texto propotildee a passagem para um

tipo de investigaccedilatildeo e de ιόγνο a partir do qual se pode fazer algumas assertivas sobre a

natureza da alma e do pensamento Nesse contexto satildeo dados os elementos e as

operaccedilotildees do intelecto que constituem o trabalho da inteligecircncia no seu niacutevel mais alto

ou seja agraves cercanias de apreender o quanto possiacutevel do bem do belo e por

consequecircncia da imortalidade A partir das explicaccedilotildees seguintes a θξόλεζηο tem a

origem e a constituiccedilatildeo de sua excelecircncia revelada em termos operacionais na relaccedilatildeo

entre pensamento e ideias que se realiza no meacutetodo dialeacutetico Se no iniacutecio da

investigaccedilatildeo seu valor foi estabelecido nos termos da pureza e da mais alta moeda (Fed

69a) acessiacuteveis por meio do modo de vida orientado pela filosofia a argumentaccedilatildeo que

confere meacutetodo agrave atividade filosoacutefica oferece a explicaccedilatildeo desta depuraccedilatildeo e origem da

atribuiccedilatildeo de valoraccedilatildeo ao apontar sua a verdadeira base Dito de outro modo o que

vem a seguir mostra de que maneira e por quais meios se datildeo o contato entre alma e a

realidade inteligiacutevel estado descrito anteriormente (Fed 79d) como fonte do proacuteprio

proacuteprio pensar em seu modo mais autecircntico

153 Fed 99d1 ldquotive de tentar uma segunda via para lanccedilar na sua busca( ηὸλ δεύηεξνλ πινῦλ ἐπὶ ηὴλ

ηο αἰηίαο δήηεζηλ)

209

41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa

Conveacutem examinar o bem tal como apresenta o Feacutedon Em primeiro lugar deve-

se observar a sua posiccedilatildeo de verdadeira causa Tal como mostrou o argumento sobre a

αἰηία o bem na condiccedilatildeo de causa de tudo subjaz a todas accedilotildees do filoacutesofo e relaccedilotildees

que se pode estabelecer A noccedilatildeo de causa que estaacute em questatildeo em um primeiro

momento deve-se observar eacute a teleoloacutegica dado que oferece uma explicaccedilatildeo das accedilotildees

objetivos e intenccedilotildees do filoacutesofo No entanto ao propor uma explicaccedilatildeo sobre a

aquisiccedilatildeo destes objetivos e do modo de proceder por meio do meacutetodo o que

denominou de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo a noccedilatildeo de causa se refere agrave possibilidade de

acessar as causas reais154

Em outros termos a causa como entenderaacute o filoacutesofo

repousaraacute sobre aquilo que pode em certa medida oferecer a verdadeira causa sendo

dada assim a pertinecircncia de averiguar acerca da primazia da racionalidade que por

meio de suas operaccedilotildees realizadas de forma adequada e correta pode escolher aquilo

que em certa medida corresponde ao bem ou seja escolher o melhor (Fed 99a9b1)

Vale analisar esta correspondecircncia e verificar as incursotildees do pensamento em

torno desta causa primordial O melhor (βέιηηζηνο) eacute dado como o poder de dispor da

melhor maneira as coisas ou dito de outro modo a causa de estarem dispostas tais

como estatildeo ndash ldquoMas esse porder graccedilas ao qual tais coisas se encontram dispostas da

forma mais conveniente (νἷόλ ηε βέιηηζηα αὐηὰ ηεζλαη δύλακηλ νὕησ λῦλ θεῖζζαη)rdquo

(Fed 99c1) A relaccedilatildeo desta disposiccedilatildeo cabe compreender eacute a melhor porque constitui

a ligaccedilatildeo que o bem faz entre todas as coisas - ldquo() sem pensarem que eacute o bem o

verdadeiro elo que liga entre si todas as coisas e as suporta (θαὶ ὡο ἀιεζῶο ηὸ ἀγαζὸλ

θαὶ δένλ ζπλδεῖλ θαὶ ζπλέρεηλ νὐδὲλ νἴνληαη (Fed 99c5)rdquo155

Interessa ao filoacutesofo

154 Os dois sentidos em que Soacutecrates parece compreender a αἰηία para os quais se pretende chamar

atenccedilatildeo aqui satildeo os mesmos que Ferejohn apontam ldquoSoacutecrates estaacute exprimindo uma preferecircncia clara e

categoacuterica pelas explicaccedilotildees ldquoteleoloacutegicasrdquo (a ldquocausa finalrdquo aristoteacutelica) em termos objetivos intenccedilotildees

e similares contra as que fazem referecircncia somente agraves causas ldquoeficientesrdquo (a ldquocausa motorardquo de

Aristoacuteteles Neste ponto todavia o relato de Soacutecrates daacute uma guinada surpreendente Em 99c6-d1 ele

declara abruptamente que se deu conta em um certo momento que suas explicaccedilotildees teleoloacutegicas

preferidas estavem indisponiacuteveis e que portanto se tornou necessaacuterio para ele dar iniacutecio ao que chama

de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo uma busca por um modo de explicaccedilatildeo ldquosucedacircneordquo que pelo menos esteja ao

seu alcancerdquo Ferejohn op cit p 153 Essa busca estaraacute baseada nas ideias e seraacute considerada por conta

disso uma causa segura a qual o filoacutesofo tanto no Feacutedon quanto no livro VI d‟A Repuacuteblica pretender

conhecer

155 Esta mesma caracteriacutestica do bem eacute dada n‟A Repuacuteblica nos termos da benignidade do bem traccedilo

presente nas coisas que derivam dele apreensiacutevel pelo intelecto Note-se que eacute fundamental para o

trabalho do intelecto essa presenccedila a qual serve de condutor causal que pode levar ao conhecimento

causa primordial

210

desse modo apreender (99c6) essa atuaccedilatildeo do bem como causa a partir desta ordenaccedilatildeo

que dispotildee os astros da melhor maneira o que natildeo se verificou no discurso que

pretendia uma ciecircncia da natureza O desapontamento de Soacutecrates se explica em parte

pela concepccedilatildeo equivocada aos olhos do filoacutesofo evidentemente por natildeo compreender

esta relaccedilatildeo entre o bem o melhor e a inteligecircncia Natildeo parece possiacutevel uma

compreensatildeo correta acerca do λνῦο sem considerar a correspondecircncia entre o melhor e

o bem Em outros termos natildeo haacute uma verdadeira compreensatildeo da natureza e da funccedilatildeo

da inteligecircncia sem ter tal compreensatildeo acerca desta concepccedilatildeo de melhor e do papel do

bem O λνῦο tal como quer Soacutecrates natildeo eacute a causa da ordenaccedilatildeo mas eacute o agente

cognitivo para apreender tal ordenaccedilatildeo e averiguar na medida do possiacutevel o bem como

a verdadeira causa

Vale verificar tal corespondecircncia entre βέιηηζηνο e ἀγαζόο

ldquo() Depois disso uma vez desiludido da observaccedilatildeo dos seres

achei por bem acautelar-me natildeo viesse a acontecer-me a mim o

mesmo que agravequeles que contemplam e observam o Sol em momentos

de eclipse eacute sabido que alguns chegam a perder de vista se natildeo for

atraveacutes da aacutegua ou de qualquer outro meio que mirem a sua imagem

(ζθνπῶληαη ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ) E com pensamentos mais ou menos

deste teor receei ficar irremediavelmente cego de espiacuterito caso

persistisse em fixar os olhos nas coisas em tentar tocar-lhes

diretamente com os meus cinco sentidos (ηῶλ αἰζζήζεσλ) Pensei

entatildeo que o melhor que tinha a fazer era refugiar-me do lado das

ideias e atraveacutes delas inquirir da verdade dos seres (ἔδνμε δή κνη

ρξλαη εἰο ηνὺο ιόγνπο θαηαθπγόληα ἐλ ἐθείλνηο ζθνπεῖλ ηῶλ ὄλησλ

ηὴλ ἀιήζεηαλ) Aliaacutes talvez num aspecto o paralelo natildeo seja exato

pois natildeo eacute quanto a mim ponto resolvido que o estudo dos seres por

meio das suas manifestaccedilotildees externas se revele menos do que as

ideias um estudo agrave base de imagens (ἴζσο κὲλ νὖλ ᾧ εἰθάδσ ηξόπνλ

ηηλὰ νὐθ ἔνηθελ νὐ γὰξ πάλπ ζπγρσξῶ ηὸλ ἐλ [ηνῖο] ιόγνηο

ζθνπνύκελνλ ηὰ ὄληα ἐλ εἰθόζη κᾶιινλ ζθνπεῖλ ἢ ηὸλ ἐλ [ηνῖο]

ἔξγνηο) Seja como for o certo eacute que me lancei por essa via E assim

partindo em cada caso do pressuposto que julgo ser mais seguro tudo

o que se me afigura em concordacircncia com ele tomo por verdadeiro

quer no tocante agraves causas que a qualquer outro aspecto e caso

contraacuterio natildeo o aceito como tal (ἃ κὲλ ἄλ κνη δνθῆ ηνύηῳ ζπκθσλεῖλ

ηίζεκη ὡο ἀιεζ ὄληα θαὶ πεξὶ αἰηίαο θαὶ πεξὶ ηῶλ ἄιισλ ἁπάλησλ

[ὄλησλ] ἃ δ ἂλ κή ὡο νὐθ ἀιεζ) Poreacutem quero explicar-me mais

claramente pois acho que agora natildeo estaacute entendendo- merdquo (Fed

99d4-100a8)

Esta passagem na qual se argumenta sobre a impossibilidade de contemplar

diretamente o bem revela-se de grande importacircncia por propor o alcance do

pensamento A comeccedilar pela metaacutefora da visatildeo em relaccedilatildeo agrave luminosidade do Sol vecirc-se

211

sugeridas as limitaccedilotildees de apreender o bem sendo necessaacuterio usar por conta disso um

recurso teoreacutetico para as tratativas acerca dele Dito de outro modo estatildeo em questatildeo os

instrumentos por meio dos quais o pensamento pode atingir a ideia do bem os quais se

mostram insuficientes para abarcaacute-lo Seja por via das imagens seja pelas ideias esse

uacuteltimo o meio escolhido pelo filoacutesofo a superioridade do bem exige o esforccedilo de

elaborar meios de acessaacute-lo em alguma medida o que demonstra ser a averiguaccedilatildeo

constante do discurso como se tem feito uma praacutetica concordante com a condiccedilatildeo do

pensar em relaccedilatildeo agrave maioridade de tal objeto Nesse sentido os ιόγνηο que se pode dar

consistem em verdade em dizer dos objetos o que realmente satildeo o que no que se refere

ao bem requer o uso da alta inteligecircncia do filoacutesofo Todavia natildeo se trata de definir no

que consiste o bem ou outros objetos mas antes fazer uma afirmaccedilatildeo acerca deles a

partir da qual se daacute iniacutecio o exerciacutecio dialeacutetico O ldquorefugiar-se no ιόγνοrdquo que o filoacutesofo

propotildee deve ser entendido muito mais como reservar-se ao exerciacutecio do meacutetodo

hipoteacutetico do que oferecer um discurso que apresente uma riacutegida definiccedilatildeo156

Os recursos mobilizados para prosseguir a investigaccedilatildeo constituem deve-se

notar a atividade intelectual no seu limite dentro do qual o filoacutesofo conscientemente se

exercita Natildeo se pretende alcanccedilar o bem em sua totalidade da mesma forma que natildeo eacute

possiacutevel como se sabe ter certeza acerca da imortalidade Entretanto este trabalho do

pensamento sabidamente limitado pretende argumentar a favor do que considera ser

razoaacutevel acreditar e carece para tanto de elaborar o meacutetodo correto e de discernir

acerca dos elementos que conduzem agraves noccedilotildees que daratildeo indicaccedilotildees mais confiaacuteveis

sobre a imortalidade

42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese

O meacutetodo eacute enunciado sem rodeios Cotejar cada argumentaccedilatildeo (ἑθάζηνηε

ιόγνλ) com a hipoacutetese que parece ser a mais segura (ἐξξσκελέζηαηνλ) de modo a

156 Chen apresenta uma explicaccedilatildeo condizente com esta argumentaccedilatildeo ldquoιόγνηο usado aqui satildeo

afirmaccedilotildees ou proposiccedilotildees cujo objetivo visa nos informar sobre o que seus referentes realmente satildeo

Eles somente os refletem A este respeito eacute tambeacutem um estudo-imagem como vendo nos objetos

sensiacuteveis na busca pelo verdadeiro conhecimento do que eles realmente satildeo ()rdquo Mas em nota ele

termina por explica ldquoEstes ιόγνηο satildeo usados como premissas para dar uma soluccedilatildeo hipoteacutetica de algum

problemardquo Chen opcit p 30

212

verificar entre elas uma concordacircncia (ζπκθσλέσ) Caso haja a concordacircncia o ιόγνο

deve ser considerado verdadeiro se ao contraacuterio forem discordantes eacute falso Conveacutem

observar os elementos que estatildeo postos no meacutetodo 1ordm) a hipoacutetese como ponto de partida

para a verificaccedilatildeo das teses e validaccedilatildeo do ιόγνο 2ordm) a verdade assume um caraacuteter

formal para validaccedilatildeo do argumento sendo definida nesse instante pode-se apreender

como o ajuste entre o ιόγνο defendido e hipoacutetese proposta O caraacuteter do meacutetodo

filosoacutefico se torna devidamente definido todavia com a especificaccedilatildeo dos elementos

com os quais trabalha Para compreender o teor dessa operaccedilatildeo aparentemente

complexa eacute necessaacuterio tomar a hipoacutetese e fazer o discurso na perspectiva da

inteligibilidade Neste caso eacute necessaacuterio abordar as causas e a causa de tudo no seu

aspecto inteligiacutevel O bem o belo e a grandeza seratildeo analisados em sua natureza157

para

que uma vez aceita a existecircncia destes seja possiacutevel a partir deles argumentar acerca da

imortalidade ou dito de outro modo apresentar a causa de a alma ser imortal

Em uacuteltimas circunstacircncias o meacutetodo pretende verificar as razotildees para apostar

na imortalidade tomando os objetos de anaacutelise a partir do seu aspecto inteligiacutevel ditos

por si mesmos (αὐηὸ θαζ αὑηὸ) como hipoacutetese A investigaccedilatildeo encontra no ιόγνο um

recurso para descrever e apreender as relaccedilotildees inteligiacuteveis ou seja as quais indicam a

relaccedilatildeo entre ideia e particular158

Nesse sentido as premissas lanccediladas no discurso e

avaliadas no exerciacutecio de investigaccedilatildeo segundo o meacutetodo filosoacutefico devem buscar

apresentar a ideia em causa a qual uma vez encontrada nos termos de uma hipoacutetese

uacuteltima serve como paracircmetro a partir do qual se verifica qual dentre as relaccedilotildees

estabelecidas no ιόγνο se mostra afim com ela

Conveacutem prosseguir desse modo na investigaccedilatildeo da causa primeira e a sua

relaccedilatildeo com as demais causas Diz o texto o que existe aleacutem do proacuteprio belo ou seja

coisas consideradas belas satildeo como satildeo por participarem do belo Eacute nesta relaccedilatildeo de

157 Fed 100b5-8 ldquo() tomando por pressuposto a realidade de um Belo que existe em si e por si

mesmo de um Bem de um Grande e assim por diante Se neste ponto me daacutes razatildeo e aceitas a existecircncia

de coisas como estas espero bem a partir delas explicar-te qual seja essa causa e descobrir o que faz

com que a alma seja essa causa e descobrir o que faz com que a alma seja imortal ndash (ὑπνζέκελνο εἶλαί ηη

θαιὸλ αὐηὸ θαζ αὑηὸ θαὶ ἀγαζὸλ θαὶ κέγα θαὶ ηἆιια πάληα () ἐιπίδσ ζνη ἐθ ηνύησλ ηὴλ αἰηίαλ

ἐπηδείμεηλ θαὶ ἀλεπξήζεηλ ὡο ἀζάλαηνλ [ἡ] ςπρή)rdquo

158 Conveacutem emprestar as palavras de Matthews para explicar o sentido que a hipoacutetese assume no

argumento rdquo() elas satildeo proposiccedilotildees envolvendo uma referecircncia agraves formas em questatildeo satildeo consistentes

com a hipoacutetese de que estas formas existem e a negaccedilatildeo delas [formas] seriam inconsistentes com estas

hipoacutetesesrdquo Matthews G Plato ndash Epistemology and Related Logical Problems Faber and Faber London

1972p 33

213

participaccedilatildeo que se daacute a causalidade do belo159

Segundo a teoria da participaccedilatildeo

(κεηέμηο) as coisas se tornam belas pela presenccedila (παξνπζία Fed 100d5) ou pela

comunhatildeo (θνηλσλία Fed 100d6) com o proacuteprio Belo causa das coisas que satildeo belas

(Fed 100d) Do mesmo modo o que possui a qualidade de grande tem como causa a

sua relaccedilatildeo com a grandeza (ηὸ κέγεζνο) e o que eacute pequeno adquire a caracteriacutestica

porque se relaciona com a pequenez (Fed 101a-b3)

Participar do bem ou do belo confere agravequele que participa caracteriacutesticas

distintivas da ideia da qual participa X1 participa de X adquirindo caracteriacutesticas

exclusivas agrave X que as distinguem e a definem como tal A beleza do cavalo ocorre

porque participa da ideia do belo Sem a participaccedilatildeo no belo a beleza do cavalo natildeo

ocorreria A dependecircncia ontoloacutegica dos particulares em relaccedilatildeo agraves ideias se apresenta

nos termos da participaccedilatildeo como a causa do que existe no domiacuteno sensiacutevel Sendo

assim a causa da beleza eacute a ideia do belo No caso de relaccedilotildees da matemaacutetica natildeo se

trata de recorrer a uma causalidade na qual se tem como base a extensatildeo a quantidade

ou a somatoacuteria Em verdade tais relaccedilotildees consistem na participaccedilatildeo do termo na

unidade (κνλάδνο) ou na dualidade (δπάδνο) do um e do dois dadas aqui como a

essecircncia de cada termo uma realidade especiacutefica- (κεηαζρὸλ ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ

Fed101c3) O que parece estar em questatildeo com o exemplo dos nuacutemeros eacute a relaccedilatildeo

inteligente entre termos inteligiacuteveis que subjaz agraves operaccedilotildees matemaacuteticas Por tornarem

existentes a soma e a subtraccedilatildeo relaccedilotildees da onde advecircm o dez e o oito por exemplo

deve ser considerada a verdadeira causa160

O tipo de causa que o filoacutesofo pretende mostrar consiste na causa inteligiacutevel

cujo gecircnero eacute afim com a natureza da alma161

Desse modo os elementos reais que

constituem a causa e como tais fundamentam uma relaccedilatildeo causal tecircm o viacutenculo entre

universais e particulares desvelado na participaccedilatildeo recurso por meio do qual se explica

159 Fed 100c4 ldquose alguma coisa existe aleacutem do Belo em si a uacutenica e exclusiva razatildeo de assim ser eacute o

fato de participar desse mesmo Belo E assim falo de todos os casos semelhantes (εἴ ηί ἐζηηλ ἄιιν θαιὸλ

πιὴλ αὐηὸ ηὸ θαιόλ νὐδὲ δη ἓλ ἄιιν θαιὸλ εἶλαη ἢ δηόηη κεηέρεη ἐθείλνπ ηνῦ θαινῦ θαὶ πάληα δὴ νὕησο

ιέγσ ηῆ ηνηᾷδε αἰηίᾳ ζπγρσξεῖο)rdquo Fed 100d7-8 ldquoNatildeo eacute aliaacutes nisso que faccedilo propriamente questatildeo

mas sim em que eacute graccedilas ao Belo que todas as coisas belas satildeo belas (ἀιι ὅηη ηῷ θαιῷ πάληα ηὰ θαιὰ

[γίγλεηαη] θαιά ηνῦην γάξ κνη δνθεῖ ἀζθαιέζηαηνλ εἶλαη)rdquo

160 Vlastos Natildeo parece ser do interesse de Platatildeo especificar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Reconhecer uma

ligaccedilatildeo entre os dois domiacutenios e mostrar a superioridade ontoloacutegica das formas provavelmente eacute o

bastante para propor o meacutetodo hipoteacutetico Vlastos G ldquoReasons and Causes in the Phaedordquoin op cit p

142

161 Fed 100b3 ldquo() vou entatildeo tentar explicar-te a espeacutecie de causa a que me tenho aplicado (ἔξρνκαη

[γὰξ] δὴ ἐπηρεηξῶλ ζνη ἐπηδείμαζζαη ηο αἰηίαο ηὸ εἶδνο ὃ πεπξαγκάηεπκαη)rdquo

214

a ligaccedilatildeo do sensiacutevel com o inteligiacutevel e no contexto do diaacutelogo serve aos propoacutesitos de

conduzir a investigaccedilatildeo de modo a reconhecer os objetos do intelecto as ideias162

43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento

Dada solidez das hipoacuteteses ponto de partida para a ascensatildeo do pensamento na

apreensatildeo das verdadeiras causas o meacutetodo toma sua forma

ldquo() E para o caso do teu interlocutor se apoiar na hipoacutetese em

si mesma pois bem despachaacute-lo ias sem resposta ateacute verificares se

as consequecircncias dela decorrentes estatildeo entre si em concordacircncia ou

discordacircncia (ζπκθσλεῖ ἢ δηαθσλεῖ) Por outro lado quando fosse

necessaacuterio justificar essa mesma hipoacutetese (ἐπεηδὴ δὲ ἐθείλεο αὐηο

δένη ζε δηδόλαη ιόγνλ) faacute-lo-ias recorrendo a uma hipoacutetese mais

acima que de entre as de igual niacutevel se te afigurasse mais adequada

ateacute chegares a alguma coisa de satisfatoacuterio (ὡζαύησο ἂλ δηδνίεο

ἄιιελ αὖ ὑπόζεζηλ ὑπνζέκελνο ἥηηο ηῶλ ἄλσζελ βειηίζηε θαίλνηην

ἕσο ἐπί ηη ἱθαλὸλ ἔιζνηο) ()rdquo (Fed 101d1- e1)

O meacutetodo hipoteacutetico ou dialeacutetico constitui-se da superaccedilatildeo das premissas ateacute

que se chegue a uma premissa superior que resista a esta eliminaccedilatildeo e se mostre a mais

segura e portanto verdadeira O procedimento de superaccedilatildeo se daacute atraveacutes da anaacutelise e

demonstraccedilatildeo constante dos resultados das hipoacuteteses dadas revelando-as como

suficientes ou natildeo Neste processo de ascensatildeo de uma hipoacutetese a outra superior

consiste no meacutetodo filosoacutefico (Fed 102a1) o qual pretende discernir diferentemente de

como procedem os ἀληηινγηθνὶ princiacutepio e consequecircncias para que se chegue a uma

apreensatildeo dos seres163

A noccedilatildeo de causalidade se torna mais esclarecida com a

explicaccedilatildeo desse meacutetodo dado que o movimento ascendente se daraacute na direccedilatildeo da causa

162 Vlastos comenta o papel da participaccedilatildeo dizendo ldquo() Participaccedilatildeo aqui designa o uacutenico caminho da

relaccedilatildeo ontoloacutegica de dependecircncia entre coisas temporais e as Formas eternas as quais satildeo princiacutepios

fundamentais para a filosofiardquo Vlastos ldquoReasons and Causesrdquo op cit p 141

163 Fed 101e1-3 ldquoEntretanto abster-se-ias de misturar como eacute haacutebito dos controversistas a anaacutelise

dos princiacutepios loacutegicos e a das suas implicaccedilotildees - isto no caso de pretenderes chegar efetivamente a algo

de positivo sobre os seres (ἅκα δὲ νὐθ ἂλ θύξνην ὥζπεξ νἱ ἀληηινγηθνὶ πεξί ηε ηο ἀξρο δηαιεγόκελνο

θαὶ ηῶλ ἐμ ἐθείλεο ὡξκεκέλσλ εἴπεξ βνύινηό ηη ηῶλ ὄλησλ εὑξεῖλ)rdquo

215

a qual se mostraraacute segura por se mostrar indubitaacutevel Dito de outro modo o exerciacutecio de

buscar as causas encontra na dialeacutetica um meacutetodo mais preciso pois ao ter em vista a

apreensatildeo do ser seja nas coisas determinadas seja nas ideias pode chegar a apreensatildeo

daquela que constitui a causa primordial Tal tarefa se torna factiacutevel pela dialeacutetica

porque os objetos com os quais se daacute o exerciacutecio de superaccedilatildeo das hipoacuteteses satildeo da

ordem do inteligiacutevel

Neste sentido cabe precisar o entendimento acerca dos inteligiacuteveis agora dados

como forma (εἶδνο) ou ideia (ἰδέα) As formas satildeo por si mesmas e satildeo a causa do que

delas participam O que tem participaccedilatildeo nas formas recebe dela nome e a caracteriacutestica

que a identifica (Fed 102b1-3) A forma tem sua identidade distinta e preservada natildeo

sendo compatiacutevel portanto com o que lhe eacute oposto tal como o frio natildeo pode participar

do quente nem a grandeza da pequenez (Fed 102e6-103a1) Dada a perspectiva da

inteligibilidade em que se tomam os termos agora em questatildeo o oposto tido como uma

forma (αὐηὸ ηὸ ἐλαληίνλ Fed 103b4) aparece como causa da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo dada

anteriormente

Assim na condiccedilatildeo de εἶδνο da mesma maneira natildeo pode aceitar algo oposto a

ele mesmo (Fed 103b1-c1) O texto potildee em operaccedilatildeo o princiacutepio de identidade e de natildeo

contradiccedilatildeo que acompanha a ideia de forma

ldquoVerifica-se pois em certo nuacutemero de casos como esses que natildeo

soacute a Forma em si mesma conserva para todo o sempre o nome a que

tem direito mas o mesmo acontece com qualquer outra realidade que

embora natildeo se identifique com ela possui sempre enquanto existir o

caraacuteter dessa Forma()rdquo (ὥζηε κὴ κόλνλ αὐηὸ ηὸ εἶδνο ἀμηνῦζζαη

ηνῦ αὑηνῦ ὀλόκαηνο εἰο ηὸλ ἀεὶ ρξόλνλ ἀιιὰ θαὶ ἄιιν ηη ὃ ἔζηη κὲλ

νὐθ ἐθεῖλν ἔρεη δὲ ηὴλ ἐθείλνπ κνξθὴλ ἀεί ὅηαλπεξ ᾖ Fed 103e2-5)

A forma tal como oferece o texto refere-se a uma unidade idecircntica a si mesma

que tecircm expostas nesse argumento as qualidades que a determinam164

Nessa passagem

164 Vale fazer uso das palavras de White para precisar o aspecto essencialista que a ideia apresenta e para

o qual se chama atenccedilatildeo aqui ldquoPor bdquo‟essencialismo ou bdquodoutrina das essecircncias‟ neste artigo quero dizer a

perspectiva sobre algum dado particular X tem qua particular alguma propriedade ou propriedades F

tal que X natildeo pode ser natildeo foi ou natildeo continua a ser sem ter F nem poderia continuar a ser X se

adquiriu o Oposto-F Por bdquoqua particular‟ quer dizer que X tem F natildeo sobre esta ou aquela descriccedilatildeo

216

vecirc-se que sua identidade estaacute de acordo com o gecircnero inteligiacutevel ou seja possui como

os seres inteligiacuteveis invisibilidade imutabilidade e imperecibilidade mas acrescenta-se

a isso um ἴδηνο que o determina como tal conferindo agrave forma caraacuteter especiacutefico

O trecircs o cinco natildeo satildeo idecircnticos agrave forma do iacutempar165

no entanto satildeo nuacutemeros

iacutempares por participarem de sua identidade (Fed 104a5-4)166

Embora natildeo haja

oposiccedilatildeo entre os nuacutemeros por participarem da forma iacutempar o trecircs e o cinco satildeo

nuacutemeros opostos aos nuacutemeros pares dado que a forma par eacute oposta agrave forma iacutempar da

qual esses nuacutemeros participam (Fed 104b6-10) Pode-se apreender a relaccedilatildeo entre as

ideias tal qual o argumento sugere atraveacutes dos elementos partiacutecipes das formas a partir

dos quais se verificaraacute se satildeo de caraacuteter opostos ou natildeo ao relacionarem uns aos outros

Esses a exemplo dos nuacutemeros iacutempares e dos nuacutemeros pares satildeo opostos por

participaccedilatildeo porque tomam a forma (κνξθή Fed 104d10) e em certa medida a

identidade da ideia na qual tecircm participaccedilatildeo O nuacutemero trecircs participa da ideia do trecircs e

do iacutempar assume portanto a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que acompanham tais ideias ndash ldquoNatildeo

haacute duacutevidas certamente que tudo aquilo que a Forma do trecircs ocupa natildeo apenas teraacute de

ser trecircs como iacutempar (νἶζζα γὰξ δήπνπ ὅηη ἃ ἂλ ἡ ηῶλ ηξηῶλ ἰδέα θαηάζρῃ ἀλάγθε

αὐηνῖο νὐ κόλνλ ηξηζὶλ εἶλαη ἀιιὰ θαὶ πεξηηηνῖο)rdquo (Fed 104d5) A ideia e seu partiacutecipe

trazem (ἐπηθέξσ) suas caracteriacutesticas e com elas a oposiccedilatildeo a outras ideias

Cabe aqui alguns esclarecimentos sobre a diferenccedila entre forma (κνξθή) e ideia

e a consequente distinccedilatildeo entre ideia e seus participantes O diaacutelogo parece sugerir

desde o iniacutecio da argumentaccedilatildeo acerca da Teoria a noccedilatildeo de εἶδνο e ἰδέα como

equivalentes a uma essecircncia especiacutefica (ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ 101c3)

correspondente a cada coisa que existe O que existe ou seja algo em particular como

o nuacutemero cinco encontra o seu correspondente inteligiacutevel na ideia de cinco e de iacutempar

mas independente de todas as descriccedilotildeesrdquo White F C ldquoThe Phaedo and The Republic V on The

Essencesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 98 1978 p 142 nota 3

165 Fed 104b1 ldquoconquanto nenhum deles se identifique individualmente com o Iacutempar nem por isso

deixam de ser por natureza iacutemparesrdquo (ὅπεξ ηὸ πεξηηηὸλ ἀεὶ ἕθαζηνο αὐηῶλ ἐζηη πεξηηηόο)

166 Ver Em nota Azevedo chama tenccedilatildeo para a questatildeo dizendo ldquoPelos exemplos do fogo da neve e do

trecircs (que deveraacute entender-se como nuacutemero e natildeo como conjunto de objetos da realidade sensiacutevel) Platatildeo

sugere aqui que as coisas em si natildeo satildeo opostas mas sim os caracteres (morphai) que nelas operam

Este pormenor relaciona-se provavelmente com uma tendecircncia visiacutevel nos diaacutelogos para privilegiar

como Formas as qualidades (opostos) e raramente substacircnciasrdquo Este comentaacuterio ajuda a pontuar um

dado e uma dificuldade que os diaacutelogos apresentam ao abordar as formas e seus aspectos Ao que sugere

o exemplo da igualdade no Feacutedon e ldquodos dedosrdquo no livro VII tanto a quididade a substacircncia como cita a

tradutora quanto as qualidades que a forma abarca e as que lhe satildeo opostas satildeo apreensiacuteveis pela forma

Os nuacutemeros e as relaccedilotildees de semelhanccedila-dessemelhanccedila ou grandeza-pequenez deixam mais aparente

esse duplo uso do termo N‟A Repuacuteblica Platatildeo parece ter deixado claro esta caracteriacutestica ao dizer ldquoMas

de outro lado disse essa propriedade caracteriza muito bem a visatildeo que temos da unidade pois vemos a

mesma coisa como una e como multiplicidade infinitardquo Azevedo M T S in Platatildeo op cit p 139 nota

87

217

sendo explicada a sua existecircncia e as suas caracteriacutesticas pela participaccedilatildeo nestas ideias

Natildeo se deve pensar portanto que a ideia tal como apresenta a Teoria proponha

necessariamente um conjunto de qualidades ndash aleacutem da imparidade nos nuacutemeros iacutempares

e do belo nas coisas consideradas dotadas de beleza- pois isso aparece de modo mais

contundente nos partiacutecipes das formas O que parece estar proposto eacute justamente a

recusa de certas relaccedilotildees que poriam em risco a identidade da forma ndash a neve quente

por exemplo - como a de contrariedade

Ainda que o texto sinalize para a compreensatildeo da ideia como um conjunto a

intenccedilatildeo de oferececirc-la como um ἴδηνο parece prevalecer na discussatildeo natildeo sendo

pertinente destacar as consequecircncias de outras relaccedilotildees aleacutem da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo O

que pode parecer um dado de conteuacutedo (ἐπηθέξσ) expressa a persistecircncia da forma

(εἶδνο) em preservar a sua identidade sendo a ideia de oposiccedilatildeo nesse sentido bastante

pertinente para salientar tal preservaccedilatildeo como caracteriacutestica cara ao que eacute inteligiacutevel

ldquo() dizemos que soacute uma forma oposta recusa aceitar a que lhe

eacute oposta mas que tambeacutem outra coisa que contenha em si um

determinado oposto qualquer que seja o objeto em que se manifeste ndash

tambeacutem ela jamais aceitaraacute em tais circunstacircncias o caraacuteter

contraacuterio daquele que conteacutem ()rdquo (Fed 105a2-6)

O diaacutelogo assume vale notar uma postura bastante praacutetica em relaccedilatildeo ao seu

objetivo Ao argumento importa definir o que se tem preservado na ideia e como se daacute

tal preservaccedilatildeo nas relaccedilotildees que se pode fazer com o discurso para propor uma prova

final acerca da imortalidade da alma Os princiacutepios postos aqui se mostram uacuteteis para a

investigaccedilatildeo ao oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da relaccedilatildeo entre as coisas que tomam

parte na inteligibilidade A tentativa de precisar no que consiste uma relaccedilatildeo de κεηέμηο

antes referida como presenccedila ou comunhatildeo mostra o caminho cognitivo para a

verificaccedilatildeo de uma tese acerca do post mortem no qual se faz necessaacuterio ter claro o

procedimento e a natureza dos objetos a serem conhecidos Tem-se na dialeacutetica deve-

se- reconhecer um procedimento de autoinspeccedilatildeo da razatildeo que valida a sua atividade e

os seus resultados conferindo veracidade agraves teses defendidas dentro dos ditames do

meacutetodo Como meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica a dialeacutetica representa uma maneira

estritamente racional ou seja que natildeo recorre a qualquer recurso da sensibilidade para

conduzir uma investigaccedilatildeo o que constitui uma maneira conveniente dado que se tem

em questatildeo a possiacutevel atividade da alma totalmente apartada do corpo Ele consiste na

forma de operar pelo pensamento de modo a ultrapassar a particularidade do plano

218

sensiacutevel em vista da inteligibilidade do domiacutenio das essecircncias seus verdadeiros objetos

tendo nestes termos ao final o conhecimento acerca do que investiga

Assim natildeo se deve supor que o diaacutelogo ao abordar o meacutetodo hipoteacutetico tenha

abandonado os objetivos que se referem agrave apreensatildeo das ideias e agrave aquisiccedilatildeo do

conhecimento dadas anteriormente Nesse registro do trabalho intelectual sob forma

dialeacutetica o que se tem em foco diz respeito a um procedimento racional consistente para

se obter uma defesa igualmente consistente e digna de confianccedila sobre a imortalidade e

sobre aquele que se mostrou o uacutenico meio para esta investigaccedilatildeo o pensamento A

mudanccedila de abordagem do tema da θξόλεζηο ao longo do diaacutelogo cabe notar mostra a

aceitaccedilatildeo de seu valor dado no iniacutecio da investigaccedilatildeo e o aprofundamento das questotildees

que envolvem o pensar mais precisamente meacutetodo e objeto especiacutefico os quais satildeo

tratados de forma conclusiva nesses uacuteltimos argumentos

Ao elucidar o trabalho do pensamento segundo o meacutetodo tem-se uma

explicaccedilatildeo acerca do filosofar como exerciacutecio racional diante das limitaccedilotildees da

condiccedilatildeo de humanidade jaacute referidos anteriormente na defesa do pensar como via para

se chegar mais proacuteximo do conhecimento em detrimento dos sentidos (Fed 65e1) As

vantagens das tratativas deste meacutetodo estatildeo em reconstituir de forma operacional a

relaccedilatildeo com os objetos inteligiacuteveis que se tem na filosofia demonstrando assim o

alcance do pensamento e oferecendo a possibilidade de fazer suposiccedilotildees sobre a

imortalidade O filoacutesofo encontra neste tipo de exerciacutecio os pilares que justificam a

postura de cuidado da alma (ἐπηκέιεηα Fed 107c2) que se realiza com a postura e

exerciacutecio filosoacutefico modo legiacutetimo de adquirir alguma excelecircncia e inteligecircncia

(βειηίζηελ ηε θαὶ θξνληκσηάηελ γελέζζαη Fed 107d1)

Nesta direccedilatildeo na qual se encontrou um meacutetodo de validaccedilatildeo de um argumento

filosoacutefico a prova da imortalidade da alma consiste na prova da validade do pensar e de

tudo o que anteriormente foi dito acerca do gecircnero da funccedilatildeo e do valor atribuiacutedo ao

alto pensamento Diante das conclusotildees acerca pode-se ter alguma confianccedila sobre o

destino apoacutes a morte e as especulaccedilotildees sobre os temas que excedem o tempo da vida

humana como a morte a partir do meacutetodo com o qual se deve inquirir sobre a

imortalidade A prova se daacute a partir das prerrogativas da dialeacutetica e para tanto parte-se

do aspecto inteligiacutevel da questatildeo ou seja da forma vida e da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo

que os seres vivos e a alma tem com ela O corpo em comunhatildeo com a alma se torna

vivo (Fed 105c9-11) separado dela eacute apenas um cadaacutever A alma torna o corpo vivo e

219

eacute portanto portadora da vida que nos termos da investigaccedilatildeo consiste na parte que

participa da forma vida

De acordo com esse raciociacutenio de forma a vida natildeo pode aceitar o seu contraacuterio

a morte sendo a forma vida (ηὸ ηο δσο εἶδνο Fed 106d6) e o que tem parte nela a

alma imortais (Fed 105d-e) No mesmo raciociacutenio o que tem parte na vida e portanto

o atributo de imortalidade natildeo pode aceitar a destruiccedilatildeo o que equivale agrave morte ndash ldquo() e

a Forma em si todos concordam que nunca perecemrdquo (Fed 106d5-7) O corpo por natildeo

partilhar da forma vida como a alma estaacute sujeito agrave destruiccedilatildeo (Fed 106e5) Tem-se

explicado ao modo da dialeacutetica a morte do corpo e a imortalidade da alma

Conclusotildees sobre a θξόλεζηο

Em poucas palavras o pensamento descreve a capacidade e a atividade

cognitiva o estado autecircntico do intelecto e o estado de interaccedilatildeo da alma com

inteligiacuteveis na qual permite a ela estar o mais proacuteximo possiacutevel de seu estado natural

Tais aspectos indicam que a excelecircncia do pensamento no diaacutelogo Feacutedon eacute antes

anaacuteloga ao modo autecircntico que a intelecccedilatildeo assume no decorrer da emancipaccedilatildeo da

alma pela filosofia O pensar sobre o qual se pretende argumentar no diaacutelogo para

realizar a investigaccedilatildeo acerca da imortalidade diz respeito ao exerciacutecio pleno da

faculdade inteligente ou dito de outro modo o seu exerciacutecio autocircnomo referido em um

primeiro momento nos termos de ldquopensamento purordquo A liberdade que a θξόλεζηο deve

adquirir em uma condiccedilatildeo de total ausecircncia dos sentidos tal como descreve o estado de

morte mostra a natureza distinta e ascendente da inteligecircncia que tem na elevaccedilatildeo

intelectual e no desapego do sensiacutevel as condiccedilotildees que favorecem seu exerciacutecio A

automonia da razatildeo consiste na condiccedilatildeo mais condizente com a natureza do pensar na

qual a alma atinge o grau maacuteximo de cogniccedilatildeo uma postura adequada agrave sua natureza a

postura intelectual e um meacutetodo para adquirir resultados vaacutelidos em um

empreendimento racional Todo o empreendimento filosoacutefico tem em vista esta

autonomia pois eacute ela a liberdade possiacutevel agrave alma ainda presa em corpo humano

220

O pensamento estabelece relaccedilatildeo com as ideias inteligiacuteveis seu verdadeiro

objeto podendo atraveacutes delas conhecer a verdade e elaborar uma explicaccedilatildeo (loacutegos)

razoaacutevel sobre a imortalidade da alma Do mesmo modo pode inferir acerca da vida

apoacutes a morte do corpo com bases mais seguras dadas pela razatildeo A relaccedilatildeo entre o alma

e inteligiacutevel que o intelecto estabelece nas tratativas com as ideias em um primeiro

momento dada nos termos de uma afecccedilatildeo (Fed 79d) mas posteriormente dita como

um exerciacutecio do loacutegos filosoacutefico indica o conhecimento como o modo de apreensatildeo do

caraacuteter inteligiacutevel o qual eacute afim com a natureza da alma A interaccedilatildeo com inteligiacuteveis

constitui um estado duradouro de inteligibilidade no qual a alma apreende o ser e as

qualidades semelhantes ao que eacute divino tendo por via da alta intelecccedilatildeo desse modo a

restauraccedilatildeo do seu estado natural Dito de outra maneira o alto pensamento que

constitui a θξόλεζηο preserva a natureza inteligente da alma e por consequecircncia seu

verdadeiro modo de atuar

Sendo assim nos termos de uma afecccedilatildeo pode ser entendido como uma resposta

aos objetos com os quais interage de modo a assimilaacute-los Como exerciacutecio inteligente o

qual se daacute por meio do meacutetodo constitui a apreensatildeo dos aspectos inteligiacuteveis acerca do

que se tem em exame de modo a discerni-los e utilizaacute-los tal como se deu na prova da

imortalidade para a qual a Teoria das Ideias e o meacutetodo foram os pilares Nos dois

casos tem-se o pensamento no niacutevel mais alto atuando com os objetos inteligiacuteveis e

trazendo de algum modo benefiacutecios quer como vantagens para a alma as virtudes e o

seu cuidado por exemplo quer como a aquisiccedilatildeo de elementos teoacutericos e

metodoloacutegicos que conduzem a uma hipoacutetese indubitaacutevel Seja como for com o

conhecimento das ideias a alma tem elementos para atraveacutes da filosofia se emancipar do

corpo e fazer suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre um domiacutenio maior o da morte

O caraacuteter de testemunho que o argumento da reminiscecircncia confere ao pensar

indica a afinidade dele com o inteligiacutevel e sobretudo a possibilidade de superaccedilatildeo de

um plano a outro ou seja do sensiacutevel para o inteligiacutevel A descriccedilatildeo desta superaccedilatildeo

afirma a presenccedila de uma faculdade cognitiva independente do corpo e adianta assim a

hipoacutetese da sobrevivecircncia da alma com atividade inteligente em um plano distinto do da

vida humana A anterioridade indicada por meio da reminiscecircncia propotildee de certo

modo o alcance da faculdade da razatildeo o qual se torna limitado ao nascer em corpo

humano mas ao mesmo tempo mostra ao filoacutesofo a possibilidade de explorar outro

objeto aleacutem do experienciado pelas sensaccedilotildees (ἕηεξόλ ηη) um outro domiacutenio O papel de

inquiridor do pensar sugerido nas pistas dadas pela reminiscecircncia encontra na

221

explicaccedilatildeo acerca do loacutegos filosoacutefico os meios para realizar tal superaccedilatildeo O percurso

do intelecto eacute dado neste contexto na verificaccedilatildeo das hipoacuteteses e desse modo na

constante inspeccedilatildeo do objeto e da proacutepria atuaccedilatildeo da razatildeo A alta intelecccedilatildeo estaacute em

fazer este percurso e chegar agrave hipoacutetese inabalaacutevel a ideia do que se investiga Assim a

apreensatildeo na dialeacutetica no Feacutedon se daacute pela superaccedilatildeo de hipoacuteteses mas longe de

constituir uma intuiccedilatildeo o objeto uacuteltimo deve se revelar enquanto tal resistindo ao teste

do filoacutesofo com a sua dialeacutetica O pensamento adquire o seu objeto de conhecimento

apoacutes essa atividade de inquiriccedilatildeo mostrando desse modo seu caraacuteter especulativo

A excelecircncia do pensamento filosoacutefico estaacute diante disso em fazer este percurso

de superaccedilatildeo intelectual ateacute a apreensatildeo da ideia Condizente com o seu aspecto

emancipador e provedor das virtudes o pensamento tal como apresenta o Feacutedon supotildee

antes de tudo a relevacircncia da atividade filosoacutefica embora natildeo se decirc de fato a conquista

de seu objetivo maior Essa eacute a resposta pertinente ao se questionar em que medida a

inteligecircncia da θξόλεζηο eacute exequiacutevel em vida dado que sua plena realizaccedilatildeo ocorre

apoacutes a morte do corpo Trata-se de mostrar no decurso de uma vida filoacutesoacutefica os

esforccedilos e a realizaccedilatildeo plena das possibilidades de conhecimento ainda que estes natildeo

sejam capazes de oferecer mais que uma convicccedilatildeo e alimentar a esperanccedila do filoacutesofo

de obter um bom destino A θξόλεζηο em vida humana se efetiva com o exerciacutecio

filosoacutefico e todo o conhecimento possiacutevel nesta condiccedilatildeo precaacuteria mostrando seu valor

nos benefiacutecios que propricia agrave alma Uma conduta deste tipo encontra sentido na ligaccedilatildeo

que a inteligecircncia estabelece com um domiacutenio das coisas verdadeiras semelhantes ao

divino proporcionando a alma um grau de saber ou seja o conhecimento dos

verdadeiros valores pelos quais ela deve se orientar e seguir O limite do conhecimento

dado pelo que oferece as ideias mostra o fundamento das coisas verdadeiras o que

parece suficiente para indicar o domiacutenio em que deve atuar o pensamento e as

orientaccedilotildees mais importantes para a vida Desse modo a alta inteligecircncia descreve o

amor do filoacutesofo pela sabedoria o qual adquire o conhecimento maacuteximo dentro dos

limites de sua condiccedilatildeo

222

Conclusatildeo geral

Em uacuteltima instacircncia a inteligecircncia consiste na superaccedilatildeo de planos do senso

comum para o filosoacutefico da ignoracircncia para o conhecimento do sensiacutevel para o

inteligiacutevel a partir da qual se apreende os objetos ideais com o objetivo de realizar

inferecircncias razoaacuteveis e portanto plausiacuteveis sobre os temas considerados de maior valor

como o Bem e a imortalidade A excelecircncia de um trabalho como esse estaacute por sua vez

na busca e na apreensatildeo possiacutevel de objetos de tal magnitude atividade que potildee a alma

em sua melhor condiccedilatildeo O movimento de superaccedilatildeo que mostra a ascese da alma a um

plano superior no qual alcanccedila uma condiccedilatildeo de maturidade e perfeiccedilatildeo daacute-se pela

capacidade de apreender as formas e obter assim o verdadeiro conhecimento

Apreender as realidades se traduz em adquirir os conhecimentos e constitui o meio e o

estaacutegio mais elevado da capacidade racional a partir dos quais se pode fazer as

inferecircncias possiacuteveis e plausiacuteveis sobre temas que extrapolam os limites da razatildeo

Tem-se na condiccedilatildeo de ascensatildeo inteligente o desenvolvimento da habilidade de

ascender e de fazer as relaccedilotildees necessaacuterias para apreender a causa ou princiacutepio que

governa tudo e que permite supor o que estaacute aleacutem da capacidade dele proacuteprio

(pensamento) Eacute provaacutevel que nessas duas accedilotildees ascender e relacionar resida a

principal diferenccedila da inteligecircncia O movimento de superaccedilatildeo ao ter em vista algo que

exceda agrave sua capacidade potildee em xeque a sua proacutepria atuaccedilatildeo e alcance o que mostra ser

as realidades o meio para a intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo seu objeto maacuteximo e final A

excelecircncia do pensamento estaacute sendo assim em adquirir este niacutevel de apreensatildeo no

qual se tem o conhecimento maacuteximo e se torna possiacutevel inferir

A superaccedilatildeo que constitui a inteligecircncia natildeo deve ser vista somente na ascensatildeo

em relaccedilatildeo ao plano superior dos inteligiacuteveis Uma completa superaccedilatildeo deve levar em

conta a postura do filoacutesofo em se orientar pelos conhecimentos adquiridos Tanto a

atuaccedilatildeo poliacutetica do filoacutesofo governante quanto a conduta cordata do filoacutesofo na

iminecircncia da morte resultam de ter os inteligiacuteveis como referecircncia o que significa a

permanecircncia no estado de interaccedilatildeo com os seres verdadeiros pela filosofia Ao mesmo

tempo tal estado se constitui da capacidade da razatildeo de estabelecer relaccedilotildees revelando

a face praacutetica dos conhecimentos As ligaccedilotildees que se pode fazer ao modo da visatildeo

223

sinoacuteptica ou ao modo da averiguaccedilatildeo dialeacutetica nos termos de uma superaccedilatildeo de

hipoacuteteses revelam ser factiacuteves os ideais poliacuteticos e existecircncias

A elevaccedilatildeo a um grau de superioridade consiste nesse sentido na frequentaccedilatildeo

ou ascensatildeo e permanecircncia de seres superiores e coloca ao mesmo tempo o filoacutesofo

em situaccedilatildeo de excelecircncia ao exigir dele o desenvolvimento e plena realizaccedilatildeo de sua

capacidade intelectual O pensamento mostra assim sua abrangecircncia nos papeacuteis de

atividade de uma faculdade no seu desenvolvimento e estado e tem na inteligecircncia seu

modo mais elevado e a face mais perfeita de sua atuaccedilatildeo

224

Bibliografia

Ediccedilotildees de apoio

- Platatildeo A Repuacuteblica trad Anna Lia Amaral de Almeida Prado Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

- Platon La Reacutepublique trad Eacutemile Chambry Ed Belles Lettres 1996

- Plato Republic Harvard University Press trad Chris Emlyn-Jones and William

Preddy Loeb Classical Library Vol VI e VI 2013

- Plato The Republic trad And Introduction REAllen Yale University 2006

- Platatildeo Feacutedon trad Maria Teresa Schiappa de Azevedo Imprensa Oficial UNB

2000

- Platon Pheacutedon Paris Flamarion 1991

- Platon Pheacutedon Paris Editions Belle Lettres 1957

- Platatildeo Fedoacuten Editorial Madrid Gredos 1997

- Platatildeo Fedatildeo trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem Ed UFPA 3a ediccedilatildeo 2002

- Plato Phaedo Tradution of C J Rowe Cambridge University Press 1996

(Cambridge Greek and Latin Classics)

- Plato Phaedo trad David Gallop Claredon Press Oxford 2002 2ordf ed

- Plato Phaedo tradution Fowler H N Cambridge Massachusetts Harvard

University Press Loeb Classical Library Vol 1

- Hackford R Plato‟s Phaedo Cambridge 1955

- Platatildeo Fedro Paris Ediccedilotildees 70 Lisboa

- Platon Phegravedre Paris Ed Belles Lettres 1947

- Platon Phegravedre Paris Flammarion 2000

225

Platatildeo Apologia de Soacutecrates Lisboa Ediccedilotildees 70

- Platatildeo Criacuteton Lisboa Ediccedilotildees 70

- Plato Phaedrus tradution Fowler H N Cambridge Massachusetts Harvard

University Press Loeb Classical Library vol 1

- Platatildeo O Banquete Ediccedilotildees 70 Lisboa 2010

- Platatildeo Teeteto trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem Ed UFPA 3a ediccedilatildeo 2001

- Platon Teegraveteacutete in Coleccedilatildeo Belles Lettres tomo VIII

- Platatildeo Sofista trad Jorge Poleikat e Joatildeo Cruz Costa Abril Cultural 1972 (col

Os Pensadores)

- Platatildeo Meacutenon trad Maura Iglesias Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Ed Puc Rio 2003

2a ediccedilatildeo

- Platatildeo A Carta VII Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade dos Santos e Juvino Maia JrSatildeo

Paulo Ediccedilotildees Loyola Ed Puc Rio 2008

- Platatildeo Philebo Trad Fernando Muniz Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Puc Rio 2012

- Platon Ouvres Complegravetes direction Luc Brisson Flammarion 2011

Bibliografia Criacutetica

- Acrill J Anamnesis in the Phaedo ndash Remarks on the 73c-75c ldquo in Essays on

Plato and Aristotle New York Oxford University Press 1997

- Adam J The Republic Of Plato Cambridge University Press vol 2 2009

226

- Allen R E ldquoKnowledge and Forms in Platos Theatetus rdquo in Studies in Plato‟s

Metaphysics London Routledge 2a edition 2013

- Allen R E (ed) Studies in Plato‟s Metaphysics London Routledge 2a erd ed

2013

- Annas J ldquoOn The Intermediatesrdquo in Archiv fuumlr Geschichte der Philosophie 57

1975

- Annas J Introdution agrave la Reacutepublique de Platon Paris Presses Universitaires de

France 1994

- Apolloni D ldquoPlato‟s Affinity Argument for the Immortality of the Soulrdquo in

Journal of the History of Philosophy 34 p 5-32

- Aubenque P ldquoDe L‟ Egaliteacutes des Segments Intermeacutediaires dans La Ligne de La

Reacutepubliquerdquo in Sophie Maietores ndash Chercheurs de Sagesse Paris Institut

d‟Etudes Augustiniennes 1992

- Azevedo M T S Platatildeo Helenismo e Diferenccedila ndash Raiacutezes culturais e Anaacutelises

dos Diaacutelogos Satildeo Paulo Annablume 2012

- Benson H (org) Platatildeo Porto Alegre Artmed 2001

- Bernabeacute A Platatildeo e o Orfismo ndash Diaacutelogos entre Religiatildeo e Filosofia Satildeo Paulo

Annablume 2011

- Bostock D ldquo The Soul And Imortality In Plato‟s Phaedordquo in Gail Fine (ed)

Plato 2- Etics Politcs Religion and the Soul Oxford University Press

- Breacutehier E ldquoAretai Katharseisrdquo in Etudes de Philosophie Antiquerdquo Paris

Presses Universitaires de France 1955

- Brisson L ldquoReminiscence in Platordquo in Platonism and Forms of Intelligence

Dillon J Zouko M E (orgs) Berlin Akademie Verlag 2008

- Brisson L Meyerstein F W Puissance et Limites de la Raison ndash Le Problegraveme

des Valeurs Paris Les Belles Lettres 2014

- Bluck R S ldquoHypotesis in the Phaedo and platonic Dialeticrdquo in Phronesis 1957

- Casertano G ldquoO Bem e a Linhardquo in Xavier D Cornelli G (orgs) A Repuacuteblica

de Platatildeo ndash Outros Olhares Satildeo Paulo Loyola 2011

- Chen C H Acquiring Knowledge of the Ideas- A Study of Plato‟s Methods in

the Phaedo The Symposium and the Central Books of the Republic Franz

Steiner Verlag Stuttgart 1992

227

- Cherniss H ldquoSome Wartime Publications Concerning Platordquo in Harold

Cherniss Select Papers Brill 1977

- _________ ldquoPlato as Mathematician in Haroldrdquo in Cherniss Select Papers Brill

1977

- __________ ldquoThe Philosophical Economy of Theory of Ideasrdquo in Harold

Cherniss Select Papers 1977

- Cooper N ldquoThe Importance of Dianoia in Platos Theory of Formsrdquo in The

Classical Quartely no1 Cambridge University Press On Behalf Association vol

16 1966

- Cordero N L (org) Ontologie et Dialogue- Meacutelanges en Hommage agrave Pierre

Aubenque Paris Vrin 2000

- Cornford F ldquo Mathematics and Dialectic in The Republicrdquo in Mind New Series

no 160 Oxford Press on behalf of the Mind Association vol 41 1932

- ____________ La Teoria Platonica Del Conocimiento El Teeteto y El Sofista

Buenos Aires Paidos 1968

- Denyer N Sun and Line in Plato‟s Republic Cambridge 2007

- Dillon J e Zovko M E Platonism And Forms of Inteligence Akademi Verlag

2008

- Dixsaut M Eacutetudes Sur La Republique de Platon II Paris Vrin 2006 vol 2

- __________Meacutetamorphoses dela Dialectique dans les Dialogues de Platon

Paris Vrin 2001

- __________Platon et la Question de lAcircme Eacutetudes Platoniciennes II Paris

Vrin 2013 1

- ___________Platon et la Question de la Penseacutee - Eacutetudes Platoniciennes I

Paris Vrin 2000

- Dorion LA Socrate Paris PUF 2004

- ________ L‟Autre Socrate ndashEtudes Sur Les Eacutecrits Socratiques de Xeacutenophon

Les Belles Lettres 2013 (col L‟Acircne D‟or)

- Donini P Ferrari F O Exerciacutecio da Razatildeo no Mundo Claacutessico- Perfil da

Filosofia Antiga Satildeo Paulo Annablume 2012

- Ferejohn M ldquoO Conhecimento e as Formas em Platatildeordquo in Platatildeo Benson H

(org) Porto Alegre Artmed 2011

228

- Fine G ldquoKnowledge and Belief in The Republic 5-7rdquo in Plato Oxford

University Press 2000

- Goldschmidt V Le Paradigme das la Dialectique Platonicienne Paris Vrin

2a ed 2003

- ____________ Os diaacutelogos de Platatildeo- Estrutura e Meacutetodo Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2002

- Gosling JCB The Argument of the Philosophers London and New York

Routledge 3a erd 2001

- ___________ ldquoDoacutexa and Duacutenamis in Platos Republicrdquo in Phronesis n 2 Brill

vol 13 1968

- ___________Plato Routledge and Kegan Paul 1973

- Guardini R La Mort de Socrate Paris Editions du Seuil 1954

- Gunthrie W KC Platos Views on The Nature of the Soul in Plato II

Metaphysics and Epistemology Gregory Vlastos ( org) 1971

- Gueacuteroult Martial ldquoLa Meditation de L`Acircme Sur L`Acircme dans Pheacutedonrdquo in

Revue De Metaphysique Et Morale 1926

- Hall R W ldquoPsykhe as Differentiated Unity in the Philosophy of Platordquo in

Phronesis 1963

- Iglesias Maura Platatildeo- ldquoA Descoberta da Almardquo in Boletim do CPA Ano IV

no 56 1998

- Jaeger W Paideia- A Formaccedilatildeo do Homem Grego Satildeo Paulo Martins Fontes

1995

- Kahn C rdquoPlatatildeo e a Reminiscecircnciardquo in Platatildeo Benson H (org) Porto Alegre

Artmed 2011

- Kraut R (org) Platatildeo Satildeo Paulo Ideias e Letras 2013

- Klosko G ldquoThe Tule of Reason in Platos Psychologyrdquo in History Philosophy

Quartely no 5 1988

- Kucharski P Laffiniteacute entre les idees et lacircme dapregraves le Phedon Achives de

Philosophie 26 1963

229

- Loriaux S J L‟Ecirctre et La Forme Selon Platon- Essai Sur Dialectique

Platonicienne Descleacutee De Brouwer 1955

- Mathews G Platos Epistemology and Related Logical Problems Faber and

Faber 1a ed 1972

- Migliori M Il disordine ordinato La filosofia dialettica di Platone

Morcelliana Bresci 2013

- Migliori M Fermani A Platatildeo e Aristoacuteteles ndash Dialeacutetica e Loacutegica Satildeo Paulo

Ediccedilotildees Loyola 2012

- Moravcsisk J M E Patterns in Platos Thought D Reidel Publishing Company

1973

- ____________ Reason and Eros in the Ascent Passage of Symposium Essays in

Ancient Greek Philosophy Anton and Kustas ( orgs) Albany State University

of New York Press 1972

- ____________Plato and Platonism Blackwell 1992

- Morrison J S ldquoTwo Unresolved Difficulties in the Line and Caverdquo in Phronesis

no 03 Brill vol 22 1977

- Moulinier L Le Pure et Le Impure dans La Penseacutee des Grecs- De Homere a

Aristote Paris Librarie Klincksiec

- Murgier C Eacutethiques en Dialogue ndash Aristote Lecteur de Platon Paris Vrin 2013

- Opsomer J In Search of The Truth Academic Tendences in Middle Platonism

Brussel Palais der Acadamien 1998

- Ostenfeld E N Forms Matter and Mind Three Strands in Platos Metaphysics

Springer 1982

- Pakaluk Michel ldquoDegrees of Separation in the Phaedordquo in Phronesis - Journal

For Ancient Philosophy Leiden Brill XLVIII 2 2003

- Pappas N A Repuacuteblica de Platatildeo ediccedilotildees 70 Lisboa 1995

- Passmore J Philosophical Reasing 1961

- Penner T ldquoKnowledge vs True Belief in the Socratic Psychology of Actionrdquo in

Apeiron 1996

230

- _________ ldquoThought and Desire in Platordquo In Plato - A Collection of Critical

Essays Ethics Politics and Philosophy of Art and Religion Gregory

Vlastos (org) Garden City New York Doubleday Anchor Books 1971

- __________ ldquoAs Formas e as Ciecircncias em Soacutecrates e em Platatildeordquo in Platatildeo

Benson H (Org) Porto Alegre Artmed 2011

- Renault O Histoire des doctrines de l‟antiquiteacute classiqueraquo XLV 45 Paris Vrin

2014

- _________Platon ndash La Meacutediation Des Eacutemotions Paris Vrin 2014

- Robinson T M A Psicologia de Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007

- ___________As Origens da Alma ndash Os Gregos e o Conceito de alma de Homero

a Aristoacuteteles Satildeo Paulo Annablume 2010

- Ross W D Theory of Ideas Claredon Press- Michigan University 1953

- Rossetti L Understanding The Phaedrus ndash Proceedings Of The Symposium

Platonicum Germany Academia Verlag Sankt Augustin 1992

- Sallis J Being and Logos ndash Reading the Platonic Dialogues Bloomington and

Indianapolis Indiana University Press 1996 3erd ed

- Santas G X Socrates Philosophy in Plato‟s Early Dialogues Routledge 1979

(col The Arguments of the Philosophers)

- Santos J T Feacutedon- Platatildeo Alda Editores 1998

- Silverman A The Dialectic of Essence ndash Study of Plato‟s Metaphysics New

Jersey Princeton University Press 2002

- Schaumlefer C Leacutexico Platatildeo Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2012

- Schuhl P M Platatildeo e a Arte de Seu Tempo Satildeo Paulo Discurso Editorial

Barcarolla 2010

- Scolnicov S Platatildeo e o Problema Educacional Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006

- Scott D Recollection and Experience - Plato‟s Theory of Learning and its

Successors Cambridge University Press 1995

231

- Smith N D (ed) Plato Critical Assessments ndash Plato‟s Middle Period

Metaphysics and Epistemology Vol 2 London and New York Routledge 1998

- ___________Plato Critical Assessments ndash Plato‟s Middle Period Psychology

and Value Theory Vol 3 London and New York Routledge 1998

- Stricker E ldquoLa Distinction Entre L‟Entendement (Diaacutenoia) e L‟Intellect (Nous)

Dans La Republique De Platonrdquo in Estudios De La Historia De La Filosofia ndash

Homenaje ao Profesor Rodolfo Mondolfo Vol I Argentina Universidad Nacional

de Tucuman 1957

Stocks J L ldquoThe Divided Line of Rep VIrdquo in The Classical Quartely vol 5 no

2 1911

Trabattoni F ldquoIl Sapere del Filosofordquo in Vergetti M (Ed) La Repubblica

Naacutepoles Bibliopolis vol 5 2003

- Taylor C C W From Beginning to Plato London and New York Routledge

vol 1 2001

- Vlastos G Platonic Studies New Jersey Princeton University Press 2a ed

1981

- White F C ldquoThe Phaedo and The Republic V on The Essencesrdquo in The Journal

of Hellenic Studies Vol 98 1978

- Wolff F Nossa Humanidade ndash De Aristoacuteteles agraves Neurociecircncias Satildeo Paulo Ed

Unesp 2012

- ___________ Soacutecrates o Sorriso da Razatildeo Satildeo Paulo Editora Brasiliense 2a ed

1983

232

  • Phronesis e Noesis em PlatatildeoA Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico
    • RESUMO
    • ABSTRACT
    • Sumaacuterio
    • Parte I A Repuacuteblica
      • V A perspectiva da inteligecircncia
      • Introduccedilatildeo
      • I A Excelecircncia do Filoacutesofo
        • 11 O filoacutesofo governante
        • 12 A melhor parte da alma
        • 13 O Conhecimento dos valores
        • 14 O objeto de desejo do filoacutesofo
        • 15 A postura intelectual
          • II A Cogniccedilatildeo
            • 21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem
            • 22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento
            • 23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios
            • 24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel
              • III Atividade Inteligente
                • 31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα
                • 32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ
                • 33 A funccedilatildeo da dialeacutetica
                • 34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo
                  • IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento
                    • 41 Operaccedilotildees e regras do pensamento
                    • 42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma
                    • 43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο
                    • 44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ
                    • 45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel
                        • Parte II Feacutedon
                          • I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel
                            • 11 O filoacutesofo agrave beira da morte
                            • 12 O pensar e o estado de morte
                            • 13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro
                            • 14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva
                              • II A natureza inteligiacutevel
                                • 21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva
                                • 22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο
                                • 23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia
                                • 24 Distinccedilotildees entre alma e corpo
                                • 25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο
                                  • III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico
                                    • 31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο
                                    • 32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο
                                    • 33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico
                                      • IV Atividade do puro pensamento
                                        • 41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa
                                        • 42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese
                                        • 43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento
                                            • Conclusatildeo geral
                                            • Bibliografia
Page 4: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 5: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 6: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 7: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 8: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 9: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 10: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 11: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 12: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 13: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 14: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 15: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 16: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 17: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 18: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 19: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 20: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 21: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 22: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 23: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 24: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 25: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 26: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 27: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 28: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 29: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 30: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 31: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 32: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 33: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 34: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 35: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 36: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 37: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 38: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 39: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 40: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 41: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 42: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 43: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 44: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 45: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 46: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 47: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 48: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 49: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 50: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 51: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 52: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 53: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 54: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 55: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 56: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 57: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 58: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 59: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 60: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 61: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 62: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 63: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 64: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 65: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 66: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 67: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 68: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 69: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 70: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 71: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 72: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 73: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 74: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 75: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 76: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 77: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 78: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 79: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 80: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 81: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 82: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 83: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 84: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 85: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 86: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 87: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 88: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 89: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 90: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 91: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 92: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 93: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 94: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 95: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 96: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 97: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 98: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 99: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 100: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 101: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 102: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 103: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 104: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 105: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 106: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 107: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 108: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 109: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 110: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 111: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 112: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 113: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 114: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 115: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 116: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 117: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 118: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 119: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 120: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 121: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 122: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 123: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 124: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 125: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 126: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 127: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 128: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 129: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 130: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 131: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 132: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 133: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 134: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 135: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 136: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 137: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 138: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 139: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 140: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 141: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 142: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 143: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 144: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 145: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 146: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 147: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 148: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 149: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 150: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 151: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 152: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 153: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 154: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 155: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 156: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 157: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 158: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 159: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 160: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 161: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 162: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 163: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 164: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 165: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 166: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 167: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 168: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 169: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 170: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 171: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 172: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 173: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 174: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 175: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 176: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 177: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 178: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 179: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 180: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 181: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 182: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 183: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 184: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 185: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 186: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 187: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 188: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 189: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 190: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 191: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 192: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 193: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 194: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 195: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 196: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 197: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 198: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 199: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 200: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 201: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 202: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 203: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 204: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 205: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 206: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 207: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 208: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 209: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 210: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 211: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 212: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 213: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 214: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 215: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 216: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 217: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 218: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 219: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 220: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 221: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 222: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 223: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 224: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 225: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 226: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 227: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 228: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 229: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 230: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 231: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 232: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 233: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 234: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,
Page 235: Phronesis e Noesis em Platão A Excelência do Pensamento ...Carlos Alberto Nunes Ed. UFPA 2001 3a. edição 2 Sofista 263d9-e1: “- E então, não é evidente, desde já, que o pensamento,