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por OLAVO AMARAL

Pesquisador visita congresso médico, tenta sobreviver ao marketing da indústria farmacêuticae sai com uma parafernália de brindes

29 DE ABRIL, QUARTA­FEIRA_Na escuridão de sua cela, Paula espera por mim. Para salvá­la,atravesso os corredores da prisão, permeados de objetos ameaçadores criados por computaçãográfica. Desvendo enigmas, cujas respostas são indicadas por letras em negrito, e escolho as portasque me levarão a seu cativeiro: a cela da depressão. Quando a encontro, Paula está de costas e nãonota minha presença. Mas não há mais charadas. Só resta uma saída para despertá­la.

O representante do laboratório Libbsme sussurra o desfecho. “Doutor, agora basta um gesto paralibertar a paciente.” Ele aponta a caixa de Reconter® (escitalopram 10 mg) sobre a mesa. Apanho aembalagem, passando­a em frente a uma câmera. Em segundos a cela desaparece e surge um campoverdejante. Ainda que o rosto computadorizado de Paula não seja tão atraente como parecia na fotomostrada no início do jogo, sei que meu gesto a salvou, e isso basta. Ou quase.

A tela escurece e uma menina sorridente cola um adesivo verde atrás do meu crachá. Contente,agradeço e vou buscar minha garrafa térmica como recompensa.

A ideia desse diário me ocorreu cinco anos atrás, em Gramado, na serra gaúcha, no 6º CongressoBrasileiro de Cérebro, Comportamento e Emoções de 2010, do qual participei com minha namoradada época. Bem mais jovem que eu, ela vivia o drama de ajudar a família a pagar o que hoje equivaleriaa 1 500 reais por mês por dois comprimidos diários de Zyprexa® (olanzapina 10 mg), prescritos parao tratamento de seu pai, incapacitado por uma forma rara de demência.

Quando chegamos ao evento (meu primeiro congresso para médicos depois de ter desertado daclínica para a pesquisa básica, alguns anos antes), achei graça no fato de que tínhamos crachásdiferentes: no meu, de médico, estava escrito “prescritor”; no dela, de estudante, “não prescritor”.Num surto de ingenuidade, pensei que a medida servisse para de alguma forma proteger a mim, o“prescritor”, do bombardeio de marketing da indústria farmacêutica.

A ilusão duraria pouco. Em minutos estávamos na área de exposição, cercados por representantes delaboratório que disputavam minha atenção em troca de café expresso. O primeiro comentário que fizfoi: “Opa, vamos recuperar a grana da olanzapina em cafezinho.” Minha namorada não gostou dapiada, e viria a nutrir uma antipatia pela indústria farmacêutica que dura até hoje. Já eu passei aacalentar um projeto: prometi a mim mesmo que um dia iria a um congresso com o propósitoexplícito de aceitar todos os brindes, petiscos e informações que a indústria tivesse para me oferecer.Não porque precisasse deles, mas para tentar aprender algo no processo.

TARDE_Ao entrar no centro de convenções da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grandedo Sul, o espaço de exposições mais prestigiado de Porto Alegre, para a abertura do World Congresson Brain Behavior and Emotions de 2015 – agora um evento internacional –, não estou muito segurode que queira levar adiante esse registro, ainda que já tivesse desembolsado 1 200 reais pela inscriçãoque dava direito ao crachá de “prescritor”, 400 reais mais cara que a cobrada da categoria “outrosprofissionais”.

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A distinção entre prescritores e não prescritores é fruto da regulamentação da publicidade demedicamentos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Em vigor desde 2009, anorma determina que, em eventos científicos, as propagandas de medicamentos de vendacontrolada sejam distribuídas apenas a profissionais habilitados a receitá­los. Na prática, tornou­seuma forma conveniente de coibir o desperdício da indústria com quem não é médico.

Quando estudante de medicina, antes da vigência da lei, um de meus passatempos favoritos nohospital era “brincar de ser invisível” com meus colegas. Munido do crachá amarelo de estudante, eupassava em frente a um representante de laboratório repetidas vezes, apenas para constatar que elesequer piscava. No momento em que surgia alguém com o crachá verde de médico, a atenção eraimediata.

Alguns médicos lamentam que, depois da regulamentação da Anvisa, os congressos nunca maisforam os mesmos. Um amigo psiquiatra me contou sobre os “bons tempos” em que, ao som demúsica eletrônica, dançarinos divulgavam antidepressivos e médicos embarcavam num tremfantasma que culminava na apresentação de medicamentos para a síndrome do pânico.Por outrolado, um primo meu confessou ter feito um passeio de helicóptero num congresso de oftalmologiaem pleno 2011. Ainda assim, tenho um certo temor de que minha pauta possa se encontrar meiodatada.

Ao entrar na área de exposição, minhas dúvidas logo se dissipam. De cara topo com o fondue dechocolate servido no estande da Sanofi, sob um grande rótulo do indutor de sono Stilnox®CR(hemitartarato de zolpidem 10 mg). Logo descubro, porém, a nêmesis que me acompanhará nospróximos dias: a fila. Pelo menos vinte pessoas esperam pelo fondue. Resolvo voltar mais tarde e meconcentro em brindes menos disputados: pipoca no estande da Nova Químicae café expresso comOvomaltine no da Lundbeck.

No estande da Apsen, avisto uma Harley­Davidson e uma moto de rali. Pergunto ao atendente porque elas estão lá, e ele responde que é uma analogia com o Donaren® (cloridrato de trazodona 50mg), que tanto pode ser um antidepressivo como um indutor de sono. “Ambas são motos, mas paracondições diferentes, entende?” Constrangido com a metáfora, agradeço e vou saindo, mas elepergunta: “O senhor não quer nosso carimbo, doutor?” Percebendo minha ignorância, ele conta queposso concorrer a uma viagem para a próxima edição do congresso, em Buenos Aires, se juntar oscarimbos de todos os expositores. Na bolsa com o material do congresso, encontro uma ficha com 22quadradinhos, que entrego pra ele carimbar. A brincadeira vai ser divertida.

Com meu crachá de prescritor orgulhosamente exposto, recebo convites para lançamentos de livroscom exemplares grátis, para palestras com almoço fornecido pelo McDonald’s e para ter momentosda minha vida desenhados por cartunistas. E vou acumulando brindes, material “informativo” epetiscos – porque as filas dos lanches mais disputados, como sorvete e crepes, são gigantescas. Aospoucos perco o medo dos representantes de laboratório e convenço meu lado sociofóbico de que nãoserei mal recebido se pedir informações. Como um adolescente endinheirado que adentrasse umprostíbulo pela primeira vez, a angústia da rejeição vai sendo substituída pela confiança. Ossimpáticos atendentes ao meu redor conhecem boa parte dos médicos, os chamam pelo nome efazem perguntas sobre sua vida pessoal. Como no sexo pago, a relação comercial não exime oprestador de serviços de demonstrar intimidade – pelo contrário, é o vínculo, mais do que osbrindes, que é usado como moeda de barganha.

Das experiências da tarde, nenhuma supera o resgate de Paula das garras da depressão. O jogo

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eletrônico é um entre os muitos que se espalham pelos estandes. Conhecimento ou habilidade é oque menos importa: os games servem para garantir que o médico se exponha por alguns minutos àmarca do patrocinador, em vez de apanhar os brindes e sair às pressas. As respostas corretas emnegrito ao teste de múltipla escolha me eximem de pensar. Tudo o que preciso é de alguns cliques edo “gesto que liberta” para alcançar a felicidade e conquistar mais um brinde.

NOITE_Ao fim da tarde, já acumulei quatro sacolas de badulaques e folhetos. O peso começa a meincomodar, e vou até o estacionamento deixar o espólio no porta­malas. Na volta, a área deexposição já não está tão cheia, e o público se dirige ao Teatro do Sesi, cujos 1 800lugares costumamatrair os shows mais concorridos de Porto Alegre. Hoje, porém, o palco é ocupado por Jean Decety,pesquisador francês radicado nos Estados Unidos. Para discorrer sobre o senso de justiça nocérebro, ele dá início a sua apresentação com um filme do Batman.

A palestra mostra bem o tom do congresso, que traz o apelo pop da neurociência para um públicopredominantemente constituído de profissionais da saúde. O evento cresceu ao longo de suas onzeedições até alcançar 3 300 participantes este ano, e boa parte da popularidade se deve a umapublicidade competente, alinhada com a estética contemporânea de eventos como os TED Talks, ociclo Fronteiras do Pensamento e as palestras de gurus domundo empresarial: destaque para osnomes e rostos dos palestrantes no programa, títulos espertos e um sofá no centro do palco.

Ao final do primeiro dia, na cerimônia de abertura, o moderador, o presidente do congresso e odiretor do instituto que organiza o evento fazem pronunciamentos curtos e cedem a palavra àdiretora de marketing da Lundbeck, companhia dinamarquesa especializada em medicamentos paradoenças do sistema nervoso. É ela que fará a entrega dos prêmios aos melhores trabalhos inscritosno congresso, o que não a impede de se alongar sobre a história e a missão do laboratório, bem comodo braço sem fins lucrativos que financia eventos e educação médica.

A apresentação culmina com um filme publicitário caprichado, em que imagens de pacientes sealternam com as de uma metrópole movimentada e cheia de luzes, enquanto a legenda “Imagine terde encontrar a única lâmpada com defeito” faz uma analogia com a empreitada de procurar umacausa para as doenças do cérebro. Por alguns instantes, a publicidade chega a me envolver. Quando ovídeo termina, no entanto, me dou conta de que o maior espaço de tempo na abertura do congressocoube a um diretor de marketing.

30 DE ABRIL, QUINTA­FEIRA, MANHÃ_Acordo atrasado e meio grogue por ter dormidopouco, mas logo me animo com as oportunidades do café da manhã. Antes da primeira palestra,recolho atabalhoadamente biscoitos, cupcakes e pães de queijo, sob o olhar complacente de garçonse representantes de laboratório. A mesa de discussão – sobre biomarcadores em psiquiatria – éinteressante, mas a plateia não parece particularmente envolvida. A maior parte do público,composto de profissionais da saúde, parece dar preferência a palestras com enfoque clínico, emdetrimento de dados de pesquisa. É difícil culpá­los: ser médico dá trabalho, e avaliar criticamenteevidências científicas talvez seja coisa para acadêmicos como eu, que têm tempo para tanto. Isso,porém, é o que deixa a porta aberta para a indústria ocupar o espaço.

Segundo dados levantados pela BBC no ano passado, as dez maiores empresas farmacêuticas globais

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gastaram em 2013 cerca de 98,3 bilhões de dólares em vendas e marketing – quase 5% a mais do queo PIB do Equador no mesmo ano. Boa parte da verba vai para o que a indústria chama de “educaçãomédica”, o que inclui patrocínio de congressos, palestras de especialistas e material distribuído porrepresentantes de laboratório. Além de subvencionar os eventos, com frequência a indústria banca otransporte e a hospedagem dosparticipantes: uma pesquisa do Conselho Regional de Medicina doEstado de São Paulo (Cremesp), em 2010, revelou que um em cada dez médicos havia viajado paracongressos com despesas pagas por laboratórios no ano anterior, e mais de um quarto participara deeventos patrocinados pela indústria no mesmo período.

Os estandes estão cheios de “material educativo”. Os mais óbvios são anúncios, com o slogan doproduto, informações publicitárias e a bula. O que mais me chama a atenção, porém, é a presença deartigos científicos – traduzidos na íntegra – sem menção explícita do patrocinador. Para encontrá­lo, é preciso ler até o fim e procurar entre as letras miúdas da seção de conflitos de interesse. Apanhoa esmo um dos artigos no estande da Shire: dos sete autores, cinco são funcionários do laboratório.Os dois outros são psiquiatras acadêmicos, um dos quais recebe fundos de pesquisa de cincolaboratórios e é consultor de três. O segundo recebe subsídio de 44 laboratórios diferentes, atuacomo consultor em 23, como palestrante em 22 e possui ações de quatro.

Embora tal situação possa assustar um leigo, ela é corriqueira na pesquisa clínica. Por causa disso,artigos científicos nos estandes me incomodam mais do que anúncios publicitários: eles são ademonstração prática de quão tênue é a linha entre ciência e marketing. Os artigos apresentampesquisas financiadas pela indústria, desenvolvidas por funcionários e acionistas da indústria,publicadas em revistas que lucram vendendo exemplares para a indústria – que os oferece ao lado delanches e brindes em congressos pagos pela indústria, para médicos que viajaram a convite daindústria. E é difícil até para o mais ingênuo e idealista dos seres acreditar que uma atividadeeducacional desse tipo possa ser isenta.

O mais assustador é que não é preciso burlar nenhuma regra para que a informação disponívelfavoreça o patrocinador. Em um mundo com milhares de pesquisas realizadas todos os anos, cujosresultados podem ser influenciados por inúmeros vieses no desenho e na análise dosexperimentos,ou mesmo por força do acaso, é praticamente garantido que algumas delas mostrarão a eficácia deum medicamento. E serão geralmente essas que acabarão publicadas e divulgadas, enquantoresultados negativos são rotineiramente engavetados. Com isso, simplesmente escolher osresultados que interessam e torná­los visíveis aos médicos já é um investimento que vale a pena – eque produz uma informação inevitavelmente comprometida.

MEIO­DIA_A hora do almoço reserva dois simpósios­satélite da indústria farmacêutica: o daApsen, sobre o uso da trazodona 150 mg no tratamento da depressão, e o da Janssen, sobre melhorasno prognóstico da esquizofrenia com o tratamento de longa ação. Tais eventos, comuns emcongressos médicos, são restritos a prescritores e em geral consistem em palestras de médicoscontratados pelo patrocinador. Conforme divulgado pelo Wall Street Journal em 2005, um estudointerno da Merck sugeriu que o retorno desse tipo de publicidade é quase duas vezes maior que o deum encontro com um representante. Para estimular os médicos, ambos os simpósios prometemalmoço: lanches do McDonald’s no da Apsen e um lunch box no da Janssen.

Encontro uma amiga que atua como neurologista no interior do estado e a convido para meacompanhar. Como boa parte dos participantes, ela teve sua inscrição paga por um laboratório. Ela

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me diz que, se eu convencer os representantes de que sou um pesquisador de peso, posso conseguirqualquer coisa. Ao passarmos por um dos estandes, um deles põe a mão no ombro dela e exclama:“Doutora, preciso saber da sua vida!” Contrariada, ela o ignora.

Entro no simpósio da Apsen com expectativa. Nas cadeiras, pastas com blocos de anotações ematerial promocional da trazodona 150 mg aguardam os prescritores que surgem com seus BigMacs. Em quinze minutos a sala está quase lotada. A palestra, ministrada por um professor daUniversidade Federal de São Paulo, parece relativamente nos conformes, exceto pelo foco nomedicamento do patrocinador. Todos os estudos apresentados mostram que a eficácia da trazodonaé comparável à de outros antidepressivos – resultado comum numa área em que quase todos osmedicamentos se equivalem nesse quesito. Daí a importância do marketing: basta fazer de ummedicamento assunto de palestra para proporcionar uma vantagem competitiva.

O conferencista menciona inúmeras vezes um certo David Sheehan, autor de vários dos estudoscitados. Graças ao wi­fi providenciado pela AstraZeneca (com a senha “Eficácia”), dou uma espiadano Google. Abro um artigo aleatório e constato, na seção de conflitos de interesse, que o sujeito estáligado a 62 laboratórios. A plateia parece minguar à medida que o apetite pelos Big Macs cede lugar àpreguiça pós­prandial. Minha amiga cochicha que o medicamento do patrocinador não funcionamuito bem como antidepressivo, mas dá um sono legal. Um pouco como a palestra.

Na saída, dou um pulo no simpósio da Janssen, numa sala em que caixas daPizza Hut e sacolas deuma loja de café se espalham pelo chão. A palestra já está na fase das perguntas, e o representante dolaboratório toma a iniciativa de estimular a plateia a se manifestar, sem muito sucesso. Osconferencistas começam a debater entre si, e um deles menciona um paciente com esquizofreniaque se formou em direito e considerava ingressar na pós­graduação. Previsivelmente, ele fazia uso domedicamento do patrocinador, o Invega® Sustenna TM (palmitato de paliperidona). Orepresentante abre um sorriso. Pouco depois, alguém pergunta sobre a síndrome neurolépticamaligna, uma complicação rara do uso de antipsicóticos. O psiquiatra diz que já viu um caso. Osorriso do representante desaparece, mas logo ressurge quando o médico acrescenta que o pacienteevoluiu bem.

TARDE_De volta à área de exposição, me dou conta de que perdi a ficha com os carimbos dospatrocinadores. Consigo uma nova no balcão de inscrições, mas preciso recomeçar do zero. Nosintervalos das palestras da tarde, corro em busca dos carimbos perdidos. No estande do Cogmed, umprograma de treinamento cognitivo computadorizado da Pearson, leio um cartaz: “Seja aplicador dotreinamento que possui 80% de eficácia e está presente em mais de vinte países.” Curioso, dirijo àatendente a pergunta óbvia: “80% de eficácia para quê?” Ela me diz: “Ah, isso quer dizer que 80%dos pacientes terminam o tratamento.” Penso em argumentar que a definição de “eficácia” não éessa, mas me sinto constrangido. No fundo, simpatizo com os representantes, e com a fragilidade dopapel que desempenham ao discutir temas sobre os quais sua formação frequentemente se limita aalguns dias de treinamento de vendas. Mais uma vez, meu coração mole me impede de ser umverdadeiro jornalista investigativo.

No intervalo do meio da tarde, as filas dos lanches aumentam a olhos vistos. Conto trinta pessoasesperando por um crepe com sorvete, calda de chocolate e m&m’s. Sem paciência, sigo até a TorrentPharma e entro numa fila para responder a um teste sobre os remédios da marca. Enquanto aguardo,alguém espalha que na Aché estão distribuindo uma sacola colorida. De graça e sem nenhum teste.

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Logo, porém, chega a notícia de que já acabou. A moça à minha frente, preocupada com sua mala deviagem, pergunta ao representante se o guarda­chuva pode ser levado como bagagem de mão.Quando chega a minha vez, descubro que o teste se resume a ligar rótulos de produtos a afirmaçõessobre sua eficácia. Termino em vinte segundos e ganho minha primeira sombrinha do dia.

Volto ao laboratório Libbs para jogar novamente o jogo do prisioneiro. Dessa vez escolho outropaciente, mas as perguntas são semelhantes e as respostas continuam em negrito. O “gesto queliberta” também segue igual, mas o brinde – aleluia! – é diferente: ganho uma bolsa térmica. Emoutro estande da Libbs, dedicado inteiramente ao Sumaxpro® (sumatriptana 50 mg + naproxenosódico 500 mg), seleciono eventos importantes da minha vida numa tela e digito uma palavra quedescreva cada um deles, enquanto o representante informa que a associação de substâncias docomprimido é a mais vendida nos Estados Unidos – nada como um apelo ao mundo desenvolvido.No final, uma animação gráfica insossa sobrepõe minhas palavras a cenas da vida profissional de ummédico, terminando com o slogan do medicamento (“Viva sem interrupções”). Ganho uma bateriaacessória para celular, até agora o brinde mais útil que recebi.

Lá pelas quatro da tarde, depois de guardar os presentes no carro, me dirijo à última palestra do dia,ministrada pelo canadense Moshe Szyf, um dos papas da epigenética (estudo da regulação daexpressão dos genes) em psiquiatria. Ele usa um quipá e fala sobre o “novo lamarckismo”. A palestraé boa, ainda que algo exagerada – num determinado momento ele aventa a possibilidade de “revertera pobreza por uma abordagem epigenética”. Como ex­marido de uma psicóloga social, conheçopessoas ligadas às ciências humanas que teriam convulsões ao ouvir isso. Mas a plateia não reage, e osegundo dia de congresso termina. Em casa, lembro de pesar o patrimônio amealhado: 5 quilos emeio até agora.

1º DE MAIO, SEXTA­FEIRA, MADRUGADA_Acordo às quatro da manhã com o vizinho decima, que, de volta do Monsters Tour, bota um metal pra tocar a todo volume. Troco de quarto eponho tampões de ouvido, mas quando o ambiente enfim silencia já não tenho sono. Na falta do quefazer, ligo o computador e reviro sites que documentam a influência do marketing laboratorial sobrea prescrição médica. Ainda que tais dados sejam quase inexistentes no Brasil, uma literaturarelativamente extensa vem abordando o tema nos Estados Unidos nas últimas duas décadas,resultando em regulamentações por parte das associações médicas e na criação de movimentos deresistência à onipresença da indústria.

Lançado em 2000 nos Estados Unidos, o site do No Free Lunch compila diversos estudos sobremarketing farmacêutico e comportamento médico. O grupo ganhou alguma visibilidade em meadosda década passada, ao propor campanhas como a “Anistia de Canetas” (“Troque suas canetas comlogos de laboratório por outras comuns!”). No entanto, a julgar pelo design – e pela mensagem: “Bestviewed on Internet Explorer or Netscape Navigator 7” –, o site não vê uma atualização há tempos.Ao contrário do Just Medicine, liderado pela Associação Americana de Estudantes de Medicina, queparece a todo vapor: dentre os recursos disponíveis, há uma tabela que ranqueia as escolas demedicina em relação às políticas para regular conflitos de interesse de estudantes e professores coma indústria, além de propostas de mudanças no currículo para lidar com a questão.

É evidente que nas últimas duas décadas a discussão sobre conflitos de interesse avançou em váriospaíses, inclusive na esfera legal. Numa iniciativa por mais transparência, a lei norte­americana

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conhecida como Physician Payments Sunshine Act [Lei de Esclarecimento de Pagamentos aMédicos], de 2010, determinou que se listasse num site mantido pelo governo qualquer pagamentode mais de 10 dólares que a indústria tenha feito a médicos e hospitais. Procuro o nome de umaamiga radiologista em Washington e descubro que ela recebeu 134,21 dólares em alimentação ebebidas da General Electric em 2013.

No Brasil, o que mais se assemelha a uma regulamentação – além das normas de publicidade daAnvisa – é um acordo de 2012 entre o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Interfarma(Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, na época presidida por Antônio Britto,ex­governador do Rio Grande do Sul), especificando práticas aceitáveis por parte da indústria. Na época,o Cremesp fez duras críticas ao acordo, argumentando que a tarefa do CFM não era negociar com aindústria, mas determinar os deveres éticos dos médicos nessas questões. A despeito dos protestos,nada mudou desde então, e a discussão parece ter abrandado.

MANHÃ_Atrasado pelo tempo gasto na internet, chego para a última palestra da mesa “Amor, ódioe paixão: os neuromistérios do coração”. O título lembra um de meus verbetes favoritos do UrbanDictionary, neurofication (neuroficação): “O ato de engrandecer artificialmente qualquer área deatividade científica ou não científica com o mistério, a legitimidade e a nobreza da verdadeiraneurociência simplesmente adicionando o prefixo ‘neuro­’ a um termo qualquer.” Ao que tudoindica, funciona: é feriado, são oito da manhã e o auditório está cheio. A palestra, porém, transitaentre alguns estudos relevantes de psicologia e um humor meio lugar­comum. Termina com doistextos virais de internet, um deles atribuído a Luis Fernando Verissimo (o que praticamente garanteque seja apócrifo). A plateia aplaude efusivamente. Agradar o público, no fim das contas, não requermuita ciência.

Fujo da discussão final e corro atrás do café da manhã, na tentativa de me antecipar à multidão. Étarde: um mero pão na chapa já provoca congestionamento. Por sorte, descubro um bolo de cenourasem uma marcação tão cerrada. Cortesia da GlaxoSmithKline, que tem a reputação dúbia de ter sidoalvo do maior processo da história contra um laboratório: um acordo judicial de 2012 determinouque a empresa pagasse 3 bilhões de dólares por promover usos não aprovados dos antidepressivosPaxil e Wellbutrin, além de ocultar dados sobre o risco cardiovascular do Avandia, um medicamentopara diabetes. Coincidência ou não, desde então o laboratório tem se esforçado para assumir umaimagem de transparência, tendo sido o primeiro, dentre os grandes, a comprometer­se adisponibilizar publicamente os resultados de todos os seusestudos clínicos. Mas no momento nadadisso importa tanto quanto o bolo de cenoura sem fila, sob a efígie do Wellbutrin® XL (cloridrato debupropiona 150 e 300 mg) colada à parede do estande.

No intervalo seguinte, encontro uma ex­aluna minha, terapeuta ocupacional, com um crachá deprescritora que lhe deram por engano. “Fez a maior diferença”, ela comenta. Pergunto se elaaproveitou a palestra do McDonald’s da véspera. “Não, a gente foi na da Pizza Hut.” Branding é tudo.Observando as filas, um amigo psiquiatra comenta que os tempos áureos de brindes ficaram paratrás depois da legislação da Anvisa, e que a atual dificuldade para pegar uma caneca ou um guarda­chuva seria a desforra dos representantes de laboratório. “Eles passam os dias fazendo fila emconsultórios médicos, aposto que riem por dentro quando chegam aqui.”

O tempo dispendido por esses empregados não é pouco: a pesquisa de 2010 do Cremesp aponta que80% dos médicos paulistas recebem representantes, e cada um deles costuma visitar de dez a vinte

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consultórios por dia. Tal estratégia pode parecer obsoleta num mundo com informação médicadisponível a alguns cliques. Ainda assim, as despesas com o marketing corpo a corpo representam amaior parte do custo de publicidade da indústria nos Estados Unidos, tendo alcançado quase 15bilhões de dólares em 2012.

Os representantes costumam fazer visitas periódicas aos mesmos profissionais por anos a fio,construindo um vínculo que inclui distribuição de amostras grátis, pequenos brindes e a eventualoferta de palestras com jantares ou financiamento de congressos. Ainda que nenhuma demanda sejafeita, boa parte dos médicos acredita que os representantes sabem o que eles vêm prescrevendo(provavelmente por meio das farmácias, em uma prática irregular repetidamente denunciada pelamídia), e que isso pode ser determinante em sua generosidade.

No estande da Mantecorp, quinze pessoas esperam para concorrer ao sorteio de um tablet. Decidoadiar minha inscrição e, após apanhar uma revista chamada Sinapses &Sinopses na Novartis, entrona fila de um jogo eletrônico do laboratório Servier. Passando o dedo sobre uma caixa doantidepressivo Valdoxan® (agomelatina 25 mg), lanço flechas que estouram balões cujas legendassão sintomas da depressão, no lugar dos quais sobem outros, coloridos, com rótulos como“produtividade” e “expressão de sentimentos”. Três não prescritores competem ferozmente pelapontuação maior – uma espécie de prêmio de consolação para os portadores do crachá que não dábrindes.

Dentro do estande, cerca de dez médicos ouvem com atenção um representante que projeta dadosnuma tela, citando repetidamente o trabalho de um certo “dr. Stahl”. O sujeito faz perguntas demúltipla escolha sobre o Valdoxan®, que a plateia deve responder levantando placas com as letras A,B, C e D. Infiltrado no grupo, acerto três de quatro respostas. Já faz vinte minutos que as palestrascomeçaram, mas nenhum dos presentes sai antes que o representante abra uma cortina e apanheuns bloquinhos para distribuir. Sinto no ar certo desapontamento, e a médica a meu lado diz: “Puxa,não é mais o abridor de vinho.”

Terminado o congresso, descubro que Stephen Stahl é um psicofarmacologista da Universidade daCalifórnia em San Diego, fundador do Neuroscience Education Institute. Numa postagem polêmicade 2011 no blog do instituto, Stahl acusou os críticos da indústria farmacêutica de tê­la afastado decongressos, da educação médica e dos hospitais, e impedido mesmo atividades legais sancionadaspelo órgão regulador americano, como jantares, envio de representantes ou brindes (“Nem café ouágua mineral são permitidos em Massachusetts, o que dizer de um livro?”). Num salto algo ousado,ele conclui que isso levou ao fechamento dos laboratórios de pesquisa em saúde mental daAstraZeneca, GSK e Pfizer, e que saíram vitoriosos “os antipsiquiatras” – gente que não acredita emdoença mental ou na eficácia dos fármacos. A lógica de atrelar a crítica ao marketing à “descrença nadoença mental” parece estranha – tanto quanto a naturalidade em aceitar que a viabilidade de umlaboratório de pesquisa dependa diretamente da publicidade.

Polêmico, o post foi retirado do ar em seu endereço original, embora sobreviva nas páginas decríticos. É um bom exemplo do argumento normalmente invocado para defender a onipresença daindústria na ciência médica: o de que a inovação farmacológica dependeria dela, já que o dinheiroarrecadado com vendas de medicamentos é revertido em pesquisa. O debate é complexo, mas osnúmeros são elucidativos: em 2013, o investimento em pesquisa das dez maiores companhiasfarmacêuticas do mundo foi de 65,8 bilhões de dólares – em torno de 33% a menos do que os jámencionados 98,3 bilhões em “vendas e marketing”. Já os lucros das mesmas empresas, no mesmoperíodo, chegam a 89,8 bilhões de dólares. Críticos do sistema, que vão do Partido Pirata sueco ao

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Nobel de Economia Joseph Stiglitz, alegam que, para cada dólar investido na ciência, a indústriagasta um valor maior do que isso em ações de publicidade para distorcê­la. E que, se tivéssemosdeixado a pesquisa farmacêutica em domínio público, sem patentes, lucros exorbitantes ou despesasde marketing, poderíamos ter mais pesquisa pelo mesmo custo e medicamentos a um preço menor.

MEIO­DIA_Saio da palestra seguinte mais cedo e consigo a proeza de ser um dos primeiros a seservir do almoço. Na Aspen Pharma, agarro um estrogonofe de frango, que traço em pé enquantoespero na fila de inscrição para o sorteio do tablet da Mantecorp. Num golpe de sorte, assisto àdeserção de três estudantes a minha frente, depois de descobrirem que não podem se cadastrar semo crachá de prescritor. Me lembro de meus tempos de crachá amarelo e me solidarizo com eles, aindaque avançar três casas na fila seja tão bom quanto ganhar brindes. Na saída do estande, avisto umbacalhau à Gomes de Sá na Medley, mas a fila me intimida e guardo minha fome para o que prometeser o evento mais interessante do dia.

A “Arena TDAH” – palestra patrocinada pela Shire sobre transtorno de déficit de atenção ehiperatividade em adultos – vem sendo promovida desde o início do congresso. Sobre um ringue emestilo ufc, o cartaz anuncia o “combate” entre Luis Augusto Rohde e André Palmini, acompanhadode lanches do Subway. Médicos dos mais prestigiados do Rio Grande do Sul, ambos pertencem a umageração que se sobressai não só pela atividade clínica, mas por uma carreira sólida comopesquisador. Rohde é presidente da Federação Mundial de Transtorno de Déficit de Atenção eHiperatividade (TDAH), e foi o único psiquiatra brasileiro a integrar a força­tarefa que elaborou aúltima versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da AssociaçãoAmericana de Psiquiatria, o DSM­5. Palmini tem contribuições importantes de pesquisa no campodas epilepsias e é um dos idealizadores do congresso. E, ainda que não conste em seu currículo,também é neurologista do meu avô.

Palmini e Rohde são exemplos do que a indústria farmacêutica chama de “líderes de opinião”:médicos conceituados, capazes de influenciar colegas e frequentemente recrutados por laboratórioscomo consultores e palestrantes. Na condição de pesquisadores ativos, tais profissionais costumamter interesses em verbas de pesquisa e parcerias com a indústria que vão muito além de canetas ebloquinhos. Na declaração de conflitos de interesse disponível no programa do congresso, Rohde ePalmini mencionam ligações com cerca de quatro laboratórios cada um, entre palestras,consultorias e verbas de pesquisa – café pequeno diante dos currículos de psiquiatras norte­americanos.

O marketing algo apelativo do cartaz parece surtir efeito, e uma fila gigantesca em espiral se forma naporta. Quando enfim consigo entrar, meus piores temores se realizam: os lanches do Subwayacabaram, e me dou por feliz ao sentar numa das últimas cadeiras disponíveis.

O representante da indústria anuncia que serão quatro temas, com réplica e tréplica, e que osdebatedores “vão assumir posições contrárias entre si, que não representam necessariamente as suaspróprias” – pelo jeito, eles de fato apostam no conceito de luta marcial. O debate, porém, segue umcurso amistoso. Os dois palestrantes são eloquentes e geralmente acabam por convergir em suasvisões. Me divirto com uma pergunta sobre o “TDAH de alto funcionamento” – o indivíduo bem­sucedido que consegue cumprir seus compromissos, mas negligencia sua casa em desordem eageladeira que jamais é limpa. Eu mesmo estou sem água no refrigerador há cinco dias.Curiosamente, o debate se encerra quase sem menção ao produto do patrocinador, o Venvanse

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(dimesilato de lisdexanfetamina). Um desavisado poderia pensar que o esforço do fabricante foi parao ralo. Mas o importante nem sempre é vender a medicação: por vezes o investimento está emvender a doença.

Num artigo de 2003 para a revista Medical Marketing & Media, o publicitário Vince Parry discorresobre o que chama de condition branding, processo que consiste em transformar um quadro clínicoem marca. “Se puder definir entre médicos e pacientes uma condição particular e seus sintomasassociados, você também poderá prescrever o melhor tratamento para essa condição”, ensina oautor. Parry segue descrevendo exemplos bem­sucedidos – a propagação do conceito de “halitose”como uma condição médica na década de 20, quando a Warner­Lambert quis expandir o mercadodo Listerine (“Aumentar a importância de uma condição existente”); a redefinição da impotênciacomo “disfunção erétil” no final da década de 90, quando a Pfizer lançou o Viagra (“Redefinir umacondição existente para reduzir o estigma”); e a criação do conceito do “transtorno do pânico” comoum diagnóstico específico nos anos 70, financiada em parte pela Upjohn, fabricante do Xanax(“Desenvolver uma nova condição para construir reconhecimento de uma necessidade não satisfeitado mercado”).

A expansão do diagnóstico médico não é necessariamente ruim: um paciente com sintomas esofrimentos até então sem causa pode buscar tratamento e melhorar sua vida. Mas ao ver umpublicitário debater o conceito em termos tão cândidos, é difícil acreditar que algo não esteja errado.

Na psiquiatria, provavelmente nenhuma doença tem sido tão controversa quanto o TDAH, cujoreconhecimento e medicação cresceram de modo astronômico ao longo das últimas duas décadas. Aprodução do medicamento mais comumente usado, o metilfenidato (mais conhecido pelo nomecomercial de Ritalina®), aumentou cerca de trinta vezes nos Estados Unidos entre 1990 e 2012,mesmo que a evidência disponível (parte da qual publicada pelo grupo de Luis Augusto Rohde) sugiraque a prevalência dos sintomas tenha se mantido relativamente estável. Defensores da relevância dotranstorno argumentam que, ainda que o problema de diagnóstico exagerado possa existir, osnúmeros refletem em parte o reconhecimento de uma condição antes não percebida. Isso nãoimpede que o TDAH tenha se transformado no alvo preferencial dos críticos de uma“supermedicalização” da sociedade.

Ao contrário do que boa parte do público tende a pensar, o debate sobre a identificação de umtranstorno mental pouco tem de biológico – em última análise, o ponto em que um comportamentodeixa de ser uma variação da normalidade para ser considerado patológico é inevitavelmente umaconvenção clínica. O manual da Associação Americana de Psiquiatria propõe critérios objetivos paraa definição do TDAH: a presença de seis entre nove sintomas de desatenção e seis entre novesintomas de hiperatividade antes dos 12 anos de idade, em mais de um ambiente ou circunstância,com prejuízo de funcionamento social, acadêmico ou ocupacional, sem que isso seja explicado poroutro transtorno.

É óbvio, no entanto, que tais “receitas de bolo” não são aplicadas rigidamente, e que a prevalência deum diagnóstico acaba sendo definida pela visão subjetiva dos médicos, dos pacientes e de seuentorno. Nesse sentido, o investimento realizado pela Shire parece endossar a ideia de que o TDAHem adultos é relevante e tratável. Ao lado do anúncio da palestra, um cartaz informa que “O TDAHtambém pode acometer adultos e normalmente encontra­se associado a outras comorbidades”, eque, “apesar de 5,8% dos adultos possuírem a doença, muitos são subdiagnosticados e poucos sãotratados”. Essa é a mensagem que precisa ser veiculada – e associar especialistas de peso como Rohdee Palmini a ela parece valer a pena, mesmo que eles sequer mencionem o medicamento do

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patrocinador.

TARDE E NOITE_A tarde prossegue com uma palestra sobre videogames, outrora vilões, hojeferramentas de treinamento cognitivo para neurocientistas e alguns psiquiatras. Cansado pela noitemaldormida e aborrecido por ter perdido o lanche do Subway, saio no intervalo e a multidãosequiosa de brindes já não me diverte. No centro da área de exposição forma­se uma fila colossal: oestande da Nova Química promove o lançamento do livro Integrando Psicoterapia ePsicofarmacologia, de Irismar Reis, Thomas Schwartz e Stephen Stahl (o mesmo do post polêmicona internet), prometendo 300 exemplares gratuitos. O dr. Reis está autografando o livro, e a fila,com pelo menos 200 pessoas, anda a passos de tartaruga. Pergunto a uma moça no pelotão da frentequanto tempo ela esperou para chegar até ali. “Pelo menosuma hora”, ela responde. E acrescenta queas senhas já devem ter se esgotado. Jogo a toalha.

Compenso o livro perdido com três Danoninhos, surrupiados no estande da Danone, que anuncia osuplemento vitamínico Souvenaid®. Assoberbado pela confusão, saio da área de exposição para arua e descubro que a poucos passos da luz fluorescente há um agradável dia de sol. Na ausência debancos, sento no meio­fio para tomar os Danoninhos e acabo me deitando na grama. Vencido pelocansaço, vou embora mais cedo. Em casa, peso os brindes e descubro que acumulei outros 3,3 quilosde espólio. Ao todo, já são quase 9 quilos de bugigangas.

À noite dou um pulo na festa do congresso, que fecha o Bar Opinião, tradicional casa noturna dePorto Alegre. Lá, estabeleço uma improvável amizade com Duda, uma menina de 17 anos, ainda noensino médio, filha de uma afluente família mato­grossense. Fascinada pelo cérebro, ela se inscreveuno congresso e veio até Porto Alegre para participar dele. Parece entusiasmada com a festa,enquanto eu, desprovido de energia, me despeço com um tchau conformado em direção ao sono queme falta.

2 DE MAIO, SÁBADO_Acordo com fome. De lanche em lanche, há dias não faço uma refeiçãonormal. Sem palestras que me atraiam no primeiro horário, encaro uma tigela de cereal em casae chego ao congresso já no intervalo. A área de exposição está mais vazia, e talvez seja a hora de terminha vida ilustrada pelo cartunista da Libbs. Quando me aproximo, porém, ainda há filas ali. Pareceum paradoxo: se eu, que me inscrevi no congresso com o objetivo de angariar os brindes, nãoencontro tempo para esperar, como alguém que veio para assistir às palestras consegue se dar aoluxo de ficar na fila?

Frustrado, vou até o estande da Medley, mas a representante me diz que tanto as bolsas quanto oscarimbos personalizados acabaram. Pergunto de quantos carimbos eles dispunham, e ela diz quehaviam preparado 4 mil. Como foram cerca de 3 300 inscritos (e 140 palestrantes), a únicaalternativa plausível é que diversas pessoas tenham abocanhado mais de um. Não só me sintoinjustiçado, como um tanto incompetente como recolhedor de brindes. A moça se desculpa e meconvida para o festival de sanduíches do almoço.

Os lanches também começam a rarear, e os representantes se mostram mais relapsos. No estante doSumaxpro®, um deles diz que os prescritores não precisam se submeter à atividade no computadorpara levar o brinde, mas que têm de esperar um pouco para que ele possa “passar um ou dois

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conceitos sobre o medicamento” – inclusive a indefectível afirmação de que é a associação maisprescrita nos Estados Unidos. Um médico se aproxima para reclamar que a bateria acessória decelular que eles distribuíram não funciona direito. O representante sugere, sem muita convicção,que ele tente carregá­la no computador e não na tomada.

Quando o intervalo termina, penso que é o momento de encarar um dos cartunistas. Espero dezminutos na fila, ao longo dos quais reparo nas fotos dispostas nas paredes do estande, com famíliascheias da mesma felicidade doméstica estampada em anúncios de lojas de roupas, supermercados oumargarinas. Quando por fim sento em frente ao artista – um argentino radicado no Brasil, com umaexpressão que revela o cansaço das dez horas de trabalho praticamente ininterruptas por dia –, tenhoa impressão de que estar no congresso deve ser mais duro para ele do que para mim.

Na saída, encontro meu amigo Diogo Lara, escalado como moderador em algumas palestras.Reclamo das filas na área de exposição, e ele comenta que, considerando o preço da hora dosmédicos, não faz nenhum sentido que eles percam vinte minutos em troca de um pratinho decomida em vez de pagar 30 e poucos reais pelo bufê. Ele define isso como um“bug neuroeconômico”, e eu acho graça, mas o argumento faz sentido.

Um dos maiores especialistas no campo da neuroeconomia, o controverso Dan Ariely, costuma dizerque “Grátis!” é uma categoria de preço diferente de qualquer outra – talvez por evocar uma decisãoem que aparentemente não há nada a se perder. Ariely cita inúmeros estudos que mostram que,confrontadas com algo oferecido de graça, as pessoas abandonam a lógica econômica racional queutilizam em transações pagas em prol do apelo do custo zero. Isso talvez explique parte da eficácia deuma estratégia de marketing tão rasa quanto distribuir canetas e bloquinhos.

Um presente, por questões inerentes ao senso de reciprocidade, tem um impacto que transcende alógica econômica. Por mais que a maior parte dos médicos acredite que, ao contrário de bensvaliosos, ninharias não sejam capazes de favorecer um determinado laboratório ou medicamento,antropólogos e psicólogos sociais argumentam que a dívida inconsciente – criada por um presenteou pela palavra amigável de um representante – pode ser suficiente para direcionar a prescrição.

E a estratégia, no fim das contas, parece funcionar, ainda que as evidências disponíveis sobre o temasejam fragmentárias. Um estudo norte­americano comparou médicos que haviam solicitado a adiçãode medicamentos de um laboratório específico aos formulários de um hospital com seus colegas quenão haviam feito o mesmo. No primeiro grupo, a proporção de médicos visitados por representantesda companhia em questão era sete vezes maior. Outro estudo, realizado após três cursos deatualização sobre drogas para hipertensão de laboratórios distintos, verificou que a prescrição domedicamento do patrocinador pelos médicos participantes aumentou em todos os casos. Umaterceira pesquisa analisou um par de cursos em resorts com despesas pagas e concluiu que os eventosaumentavam a prescrição da droga do patrocinador em quase três vezes – mesmo que apenas umentre vinte médicos participantes declarasse acreditar que a mordomia poderia influir em suaspráticas.

Um crítico poderia argumentar que os dados são meras correlações, e que nunca foi realizado umexperimento controlado sobre o tema, como recomendaria o protocolo da ciência médica. Naprática, porém, se a indústria gasta dezenas de bilhões anuais em marketing, seria difícil acreditarque ela não possui evidência ainda mais convincente de que a coisa funciona.

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MEIO­DIA_As opções para o almoço incluem espetinhos na Aspen, hambúrgueres na EMS, crepesna Nova Química, saladas em potinhos na Lundbeck, polenta com ragu na Torrent Pharma eo festival de sanduíches na Medley. Seguindo a lógica das filas menores, apanho um potinho desalada de macarrão, um espetinho de linguiça e um resto de molho de ragu com queijo, já sempolenta, que sobrou do ataque coletivo ao bufê da Torrent. Entre um lanche e outro, encontro Duda,minha amiga da festa da véspera, que reclama das filas e do tratamento que recebe com seu crachá denão prescritor. Uma ideia me ocorre.

Levo Duda ao estande da Libbs e pergunto à representante se a garota pode jogar o game doprisioneiro, sob minha responsabilidade. A moça concorda, e a menina já está colocando os fones deouvido quando outro funcionário vem nos informar que infelizmente isso não é possível, pois elespoderiam ser multados pela Anvisa. Decepcionado, pego os fones e digo que eu mesmo vou jogar,mas que as perguntas serão respondidas por Duda. Ela se intimida, dizendo que não saberáresponder, mas eu explico que as respostas corretas aparecem em negrito. “Ah, assim é fácil”, elacomenta. E continua, encarando o representante: “Por que vocês não dão o brinde logo? Já vi queesse jogo é só para fazer ele ficar olhando para esse comprimidinho aí.” Ele responde, constrangido:“É, é mais ou menos isso.” Às vezes é preciso uma criança para dizer que o rei está nu.

TARDE E NOITE_Fico até o fim do congresso para assistir à última mesa do dia, que reúne DiogoLara e Iván Izquierdo, meu ex­orientador de doutorado, ambos da PUC­RS. Mas a verdade é queestou exaurido. Na saída, já é noite e os estandes que frequentei durante a maior parte dos últimosdias vão sendo removidos a toque de caixa. Amanhã o espaço provavelmente será ocupado por outraexposição comercial: de tratores, telefones ou produtos de beleza. A mim, resta ir embora, imersoem reflexões. E levando no porta­malas seis sacolas, duas bolsas térmicas, dois carregadores decelular, uma caneca, doze canetas, duas amostras de vitamina D, duas caixas de lenços, uma pasta,quatro bloquinhos, um nécessaire, três cadernos, um boné, uma garrafa térmica, dois guarda­chuvase três caricaturas.

O que aprendi? Que essa parece ser uma história sem vilões óbvios, à qual as habituais teorias daconspiração não se aplicam. Quase todos os implicados, vários deles amigos meus ou profissionaisque admiro, podem justificar seu envolvimento com a indústria de maneira legítima. Osorganizadores podem argumentar que seria impossível realizar um congresso desse porte sem verbasda indústria. Além disso, mesmo que não houvesse patrocínio oficial, o conflito de interesse nãodesapareceria, já que boa parte dos palestrantes continuaria possuindo vínculos com laboratórios.Palestrantes subsidiados pela indústria podem alegar que essa proximidade, além da renda extra,abre portas e oportunidades de financiamento e divulgação para suas pesquisas. Médicos querecebem representantes de laboratório frequentemente invocam como razão legítima a obtenção deamostras grátis para repassar a pacientes com dificuldades financeiras. E os representantes delaboratório, por fim, têm o argumento mais convincente de todos para participar do circo: essa é aprofissão deles, da qual dependem para pagar suas contas. Como é o caso dos próprios laboratórios,que evidentemente visam ao lucro para poder prestar contas aos acionistas.

Além disso, descontados alguns excessos, o conteúdo das palestras não foi escancaradamentepublicitário, o material distribuído era, em boa medida, constituído de artigos científicos, por vezessem slogans, e o conteúdo do congresso, no que diz respeito à pesquisa básica, foi melhor do que euesperava. E mesmo sem a presença da indústria, a ciência estaria de qualquer forma sujeita a uma

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variedade enorme de conflito de interesses. Ainda que sem patrocínios, patentes ou participação noslucros, pesquisadores da área biomédica são tentados a superfaturar dados e inflar conclusões parapublicar artigos, obter financiamentos e progredir na carreira. A competição e outros aspectos docapitalismo estão entranhados na academia e na sociedade, e nem todas as regulamentações oudeclarações de conflito de interesses serão capazes de trazer isenção.

Dito isso, o fato é que o mundo está cheio dessas feiras de exposição em que médicos ganham BigMacs e fondues de chocolate, se empanturram de brindes, gastam horas ouvindo discursospublicitários, recebem afagos psicológicos de aduladores profissionais, perdem tempo ao manter osolhos fixos em telas que mostram um desfile de rótulos de medicamentos e brincam comembalagens que salvam pacientes virtuais. E mesmo uma adolescente de 17 anos é capaz de se darconta de que algo parece errado nisso.

Ainda assim, Duda só enxerga a ponta mais óbvia do iceberg. Sob a superfície, existe um imensopolvo com braços de centenas de bilhões de dólares – que financia a pesquisa de novosmedicamentos, a testagem clínica dos mesmos, os órgãos que regulam sua aprovação, os legisladoresque regulamentam o processo, as revistas que publicam os resultados de pesquisa, os eventos que osdivulgam, as sociedades que produzem diretrizes clínicas, o acesso dos médicos ao conhecimento, emesmo as entidades que representam os pacientes.

“Não existe almoço grátis”, diz o ditado. E, se eu e mais de 3 mil congressistas comemos de graça nosúltimos dias, é porque alguém pagou a conta. Não se trata de caridade da indústria farmacêutica, queacumula margens de lucros maiores do que quase qualquer outro empreendimento lícito no mundoao longo das últimas décadas. Quem sustenta o circo são pessoas comuns que, para tomar decisõessobre sua saúde, dependem dos indivíduos que perambulam pela área de exposição com seus crachásde prescritores.

Como um político com seus eleitores, um médico tem com seus pacientes uma relação fiduciária queo obriga, do ponto de vista ético e legal, a representar de forma isenta os interesses dessas pessoas aoatendê­las. Mesmo assim, um estudo de 1980 mostrou que 85% de um grupo de estudantes demedicina americanos considerava errado que um político aceitasse um presente de 50 dólares de umlobista, mas que somente 46% consideravam problemático que um médico aceitasse um brindesemelhante de um laboratório. Mais sintomaticamente ainda, 61% de um grupo de residentesrespondeu que suas relações com a indústria eram incapazes de afetar suas próprias práticas deprescrição, mas apenas 16% afirmariam o mesmo sobre seus colegas. Por mais que eu tente, nãoconsigo enxergar como a conta possa fechar. Mas talvez eu já não consiga pensar direito, depois dequatro dias trabalhando como agente duplo.

Pouco depois do Cérebro, Comportamento e Emoções de 2010, eu resolveria o problema do pai deminha então namorada ligando para um de meus muitos colegas de profissão que recebemrepresentantes de laboratório, vários dos quais me ajudaram na preparação deste diário. Semgrandes escrúpulos, pedi um par de caixas de amostras grátis de Zyprexa® que ele havia recebido dosrepresentantes da Eli Lilly. Isso deu conta do tratamento do meu ex­sogro por um mês, além deaumentar consideravelmente meu status junto à família. Algum tempo depois, a promissóriapassaria para o Sistema Único de Saúde, que atualmente fornece a versão genérica do medicamento.No fim das contas, os braços do polvo somos todos nós. E o alimento dele também.

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