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FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2708200008.htm [FOLHA DE SÃO PAULO, PUBLICADO EM 27 DE AGOSTO DE 2000]. Dance, senão estamos perdidos "Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida; e, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas talvez possa se tornar arte" por Pina Bausch Permitam-me, senhoras e senhores, começar com uma história. Certa vez visitei ciganos na Grécia. Estávamos sentados juntos e conversávamos e a certa altura eles começaram a dançar, e eu devia acompanhá-los. Tive um medo enorme e a sensação de que não conseguiria. Aí veio ter comigo uma garotinha, com os seus 12 anos, que não parava de insistir que eu dançasse também. Dizia ela: "Dance, dance, otherwise we are lost" (dance, dance, senão estamos perdidos). Outra bela história: um senhor em Wuppertal, que certa vez me contou de sua mãe centenária em sua aldeia na Turquia, que lhe dizia sempre: "Nada de choro, cante". A dança deve ter outra razão além de simples técnica e perícia. A técnica é importante, mas é só um fundamento. Certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com movimentos. Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde ir. É aí que tem início a dança , e por

PINA BAUSH_Dance, Senão Estamos Perdidos

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dançar primeiro, pensar depois

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FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2708200008.htm [FOLHA DE SÃO PAULO, PUBLICADO EM 27 DE AGOSTO DE 2000].

Dance, senão estamos perdidos

"Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida; e, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas talvez possa se tornar arte"

por Pina Bausch

Permitam-me, senhoras e senhores, começar com uma história.Certa vez visitei ciganos na Grécia. Estávamos sentados juntos e conversávamos e a certa altura eles começaram a dançar, e eu devia acompanhá-los. Tive um medo enorme e a sensação de que não conseguiria. Aí veio ter comigo uma garotinha, com os seus 12 anos, que não parava de insistir que eu dançasse também. Dizia ela: "Dance, dance, otherwise we are lost" (dance, dance, senão estamos perdidos).Outra bela história: um senhor em Wuppertal, que certa vez me contou de sua mãe centenária em sua aldeia na Turquia, que lhe dizia sempre: "Nada de choro, cante".A dança deve ter outra razão além de simples técnica e perícia. A técnica é importante, mas é só um fundamento. Certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com movimentos. Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde ir. É aí que tem início a dança, e por razões inteiramente outras, não por razões de vaidade. Não para mostrar que os dançarinos são capazes de algo de que um espectador não é. Há de se encontrar uma linguagem com palavras, com imagens, movimentos, estados de ânimo que faça pressentir algo que está sempre presente.Esse é um saber bem preciso. Nossos sentimentos, todos eles, são muito precisos. Mas é um processo muito, muito difícil torná-los visíveis. Sempre tenho a sensação de que é algo com que se deve lidar com muito cuidado. Se eles forem nomeados muito rápido com palavras, desaparecem ou se tornam banais. Mas, mesmo assim, é um saber bem preciso o que todos temos, e a dança, a música etc. são uma linguagem bem exata, com que se pode fazer pressentir esse saber. Não se trata de arte, tampouco de mero talento. Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a

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vida. E, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas daquilo que talvez possa se tornar arte.

Desde pequena, a dança foi sempre uma expressão muito importante para mim. Na dança, podia expressar todos os sentimentos que não conseguia dizer em palavras. Pois há tantos estados de ânimo diversos, tantos matizes e nuanças que se podem expressar com a dança. E o que interessa é isto: que se receba essa riqueza, que ela não seja tolhida, mas que se façam ver e sentir os mais variados estados de ânimo.

Mais tarde, ao cursar a escola Folkwang de Essen, aprendi também a conhecer meus próprios limites. Não me refiro aos limites da alma, esta é ilimitada, mas aos limites da forma, do próprio corpo. O magnífico daquela escola, ao lado de meus eminentes professores Kurt Jooss, Hans Züllig, Jean Cebron e outros, era que havia tantas coisas a aprender, e todas a despertar a imaginação: a dança clássica e a moderna, o folclore europeu. Particularmente importante era que, na época, todas as seções ainda se achavam sob o mesmo teto: a música, a ópera, o teatro, a dança, fotógrafos, escultores, gráficos, designers de tecidos, tudo isso podia ser mutuamente desfrutado. E nada mais natural que se conhecesse de tudo um pouco. Desde então, não consigo ver sem espaço. Vejo também como um pintor ou fotógrafo vê. Essa visão espacial, por exemplo, é um componente bem importante de meu trabalho.

Colcha de retalhos

Mais tarde, quando estive em Nova York depois da conclusão do curso, tornei a encontrar uma tal diversidade, uma diversidade na vida. Viver e trabalhar sozinha numa cidade como aquela, com tantas pessoas e mentalidades diversas, essa foi uma impressão profunda e marcante. Aprende-se que não se pode separar nada. Que tudo existe simultaneamente lado a lado e em conjunto e que tudo tem o mesmo valor e a mesma importância. Que é preciso ter grande respeito pelas mais variadas formas de viver e encarar a vida. Esse também é um aspecto relevante de nosso trabalho. Afinal, não somos uma companhia alemã, senão uma colcha de retalhos: pessoas de todos os continentes, das mais diferentes culturas. É como se fosse uma grande rede, hoje uma enorme família, com ligações por toda parte, em todas as culturas. Nosso trabalho não se prende a fronteiras, antes rompe todas as fronteiras. É como as nuvens, como o Sol. Na Índia, inventei para mim esta frase numa conversa: "Se eu fosse um pássaro, seria então um pássaro alemão?".

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Quando retornei à Alemanha, depois de minha temporada em Nova York, tudo o que eu queria fazer era dançar. Mas, como houvesse poucas peças, comecei a coreografar. E mais tarde continuei a fazê-lo, quando o diretor Arno Wüstenhöfer levou-me para Wuppertal. Tudo o que eu queria fazer era dançar. Mas havia os mais diversos dançarinos que queriam dançar e, para fazê-los felizes, fiz as peças e pus em segundo plano o meu próprio desejo de dançar. Por um lado, trabalhamos a princípio com obras musicais que propiciassem certa desenvoltura. Escolhi somente aquelas obras que me concediam a liberdade de criar algo próprio. Gluck, por exemplo, me dava espaço de sobra em "Ifigênia" e em "Orfeu e Eurídice" para que criasse algo próprio com base nessas obras. Nelas, encontrei exatamente o que queria falar. Daí nasceu uma nova forma: a Tanzoper, a ópera-dança. Por outro lado, busquei material próprio e outras formas. Um primeiro exemplo disso foi a peça que recebeu então o título "Fritz".Mais tarde, quando fizemos o "Macbeth" para o teatro de Bochum, surgiu o método das perguntas. Como eu não pudesse chegar aos atores com um lema coreográfico, tendo de começar por outra parte, lhes formulei então perguntas que fazia a mim mesma. As perguntas existem para abordar um tema com toda a cautela. Esse é um método bem aberto e, no entanto, preciso. Pois sempre sei exatamente o que procuro, mas sei com meu sentimento, não com minha cabeça. Por isso nunca se pode perguntar de maneira muito direta. Seria grosseiro demais, e as respostas, demasiado banais. Sei o que procuro, mas não consigo explicá-lo. Antes, é como se fosse preciso pôr-se em paz com as palavras e, com muita calma, deixá-las vir à tona.

Pudor e timidez

As coisas mais belas estão quase sempre bem escondidas. É preciso apanhá-las e cultivá-las e deixá-las crescer bem devagar. O que exige uma grande confiança mútua. Pois, afinal, sempre há limites internos a superar. Por isso gosto de trabalhar com dançarinos que têm uma certa timidez, um certo pudor, que não se entregam facilmente. É imensamente importante que haja esse pudor, essa hesitação, quando se chega a um certo limite no trabalho. Gente que simplesmente chama a atenção está fora de esquadro nesse trabalho. O pudor garante que, se, por exemplo, alguém mostra algo bem pequeno, será algo particular e também será visto como algo particular. É justamente aí que reside a dificuldade: persuadir alguém, por assim dizer, a que também ache isso.

Permitam-me, nessa altura, dizer algo sobre as pessoas magníficas com quem trabalho. Pois não contrato precipuamente dançarinos, estou interessada em

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pessoas. E, nas peças, essas pessoas são antes de tudo elas mesmas, não precisam representar. No trabalho, tento fazer com que encontrem elas próprias o que procuro.

Só então o efeito é convincente, porque autêntico. Só assim posso estar segura de que eles também podem cultivar e levar ao palco aquilo que acham. Cada detalhe é relevante, cada mudança, porque cada alteração produz um efeito diverso. Tudo o que achamos nos ensaios é analisado de perto, para ver se resiste às condições mais adversas. Não tolero nada no qual não posso acreditar, que não convença. Das muitas perguntas, restam no fim só bem poucas coisas que compõem então uma peça. Tudo é virado pelo avesso e repensado a fundo. Cada detalhe sofre um sem-número de metamorfoses, até que por fim encontre seu lugar correto. Sempre é preciso um longo tempo até que algo comece a fluir.

Mesmo que se ignore um único pormenor, o trabalho toma um rumo equivocado, e é muito difícil corrigi-lo. Por isso é que se carece de grande exatidão e honestidade nesse trabalho, e muita coragem. O que mostramos é algo pessoal, mas não privado. Mostra-se algo daquilo que todas as pessoas são. Para encontrá-lo, são necessárias uma grande paciência e pessoas grandiosas, sempre prontas a reiniciar a procura.Permitam-me, nesse ponto, tentar desfazer um mal-entendido que costuma surgir. Mesmo que se diga hoje que a dança-teatro é uma forma bastante nova, nunca me propus inventar um determinado estilo ou um novo teatro. A forma surgiu por si mesma, das perguntas que eu tinha. No trabalho sempre busquei coisas que ainda não conhecesse. Essa é uma busca perene e também custosa, uma batalha.

Não se pode recorrer a nada: a nenhuma tradição, a nenhuma experiência. Não há nada que sirva de apoio. Estamos sozinhos diante da vida e das experiências que fazemos, e nossa solitária tentativa é fazer visível, ou ao menos sugerir, aquilo que sempre se soube. Isso é o que está sempre a fazer qualquer artista em qualquer época. E de nada ajuda que já tenhamos feito várias peças. A cada peça nova, a busca torna a iniciar, e toda vez tenho medo de não conseguir. Os meios na dança-teatro nasceram a partir de uma certa necessidade e também de uma certa carência: encontrar uma linguagem para aquilo que não se pode expressar de outra forma.E assim também é com os cenários que desenvolvi juntamente com Rolf Borzik e Peter Pabst. Terra, água, folhagem ou pedras no palco criam uma atmosfera sensível toda própria. Alteram os movimentos, esboçam vestígios de movimentos, exalam certos aromas. A terra gruda na pele, a água embebe

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as roupas, torna-as pesadas e produz ruídos. As pedras de um muro derrubado tornam o passo difícil e inseguro. Quando se traz para dentro do teatro algo que em geral se encontra fora, faz-se apelo ao olhar. Coisas que julgamos conhecer, de repente as vemos de maneira inteiramente nova e diversa, como se pela primeira vez. Os muitos materiais que utilizamos são coisas simples, que na verdade não fazem parte do contexto. Eles irritam, convidam a pessoa a contemplar de outro modo, pois possuem também um certo impacto. Ocupam nossos sentidos e fazem com que se pare de pensar e se comece a sentir.

Por isso os dançarinos também não usam colantes nem figurinos estilizados. As roupas, inventadas, reinventadas e esboçadas antes por Rolf Borzik e hoje por Marion Cito são, por um lado, roupas bem normais e, por outro, roupas bem suntuosas e magnificentes. Há uma certa elegância, mas a elegância também logo é rompida. Há também figuras estranhas, por vezes grotescas, as quais não é possível classificar imediatamente. As cores são de extrema importância. Por um lado, a questão é não querer se distinguir da vida cotidiana. Mas é também mostrar a grande riqueza de formas e cores que sempre existiu.

O mesmo ocorre com as músicas que Matthias Burkert e Andreas Eisenschneider, que os dançarinos e muitos amigos no mundo inteiro buscam. Todas essas músicas mostram como pode ser precisa e diversa a expressão dos sentimentos. A riqueza é tamanha que não se pode parar de buscar e aprender.Só que também aqui a escolha e a ligação com o que ocorre no palco é um processo de imensa dificuldade e morosidade. Sou incapaz de lhes dizer como sei que tal ou qual música é a melhor. Mas, entre as muitas e muitas músicas que ouço para cada produção, sempre uma única realmente convém.Mesmo os animais e as flores, todas as coisas que usamos no palco, fazem parte de nossa vida cotidiana. Há crocodilos ou uma bela e triste história de amor com um hipopótamo. Para que se possam contar histórias que não podem ser ditas por palavras. Ao mesmo tempo, pode-se mostrar algo da solidão, da pobreza, do carinho. Para tanto não são necessárias explicações nem alusões. Tudo é sempre diretamente visível. E cada espectador pode compreender de imediato com seu próprio corpo e seu próprio coração. Essa é a maravilha da dança: que o corpo seja uma realidade pela qual se atravessa. Ele nos dá algo bastante concreto que se pode captar, sentir e que nos move. Os espectadores são sempre uma parte do espetáculo, tal como eu própria sou uma parte do espetáculo, ainda que não esteja no palco. E cada espectador é convidado a confiar em seus próprios sentimentos. Em nossos programas também nunca há uma indicação de como as peças devem ser compreendidas. Temos de fazer nossas próprias experiências, como na vida. Isso ninguém pode nos impedir.

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Possibilidades do palco

Mas a fantástica possibilidade que temos no palco é que ali nos é permitido fazer o que não se permite na vida cotidiana. Sempre tento compreender de onde vêm certos sentimentos. Os antagonismos são importantes, nesse sentido. É preciso que tudo seja visto, que nada escape. Só assim podemos pressentir em que época vivemos hoje. A realidade é muito maior do que podemos cogitar. Existe praticamente tudo, mesmo as coisas mais inacreditáveis, que não somos capazes nem sequer de imaginar.Às vezes só podemos esclarecer algo encarando o que não sabemos. E às vezes as perguntas que fazemos levam a coisas muito mais antigas, que não procedem só de nossa cultura nem só tratam do aqui e agora. É como se recuperássemos um saber que sempre tivemos, mas que nem sempre é consciente e presente. Que nos lembra de algo que nos é comum a todos. E que nos dá também grande força e esperança.Nesse sentido, todas as nossas peças são como uma única grande peça, tal como a vida, ou melhor, como fragmentos da vida. As perguntas não cessam e a busca não cessa. Nisso existe algo de infindo, que faz a beleza da coisa. Quando assisto ao nosso trabalho, ainda continuo a ter a sensação de que acabei de começar.

Discurso proferido por ocasião do recebimento do título de doutora "honoris causa" da Universidade de Bolonha (Itália).Tradução de José Marcos Macedo.