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O limiar dos afectos:
algumas considerações sobre nomeação e
a constituição social de pessoas1
João de Pina-Cabral
Instituto de Ciências Sociais
Universidade de Lisboa
Abril 2005
VERSÃO PRELIMINAR PARA LEITURA
Por favor não citar.
1 Este texto, escrito a pedido de Chiara Pussetti, foi apresentado pela primeira vez
como Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
UNICAMP (Universidade de Campinas), São Paulo Brasil em Abril 2005.
(…) nomear também é acção, uma vez que falar é uma espécie
de acção, com relação a certas coisas.
( Platão 2001: 151)
Este ensaio debruçar-se-á sobre alguns aspectos do processo de
atribuição de nomes a crianças, recorrendo a exemplos
recolhidos em contextos urbanos lusófonos no Brasil e em
Portugal.2 Aqui, como em tantos outros contextos socioculturais,
a atribuição de um nome envolve uma dinâmica relacional de
fortes implicações para os que, assim, passam a estar
“próximos” à criança ou a ser “relacionados” com ela, como se
diria em inglês. Desta forma, a nomeação é um momento
charneira na consolidação dos laços afectivos entre parentes que
se prolongarão mesmo para além das vidas das pessoas
envolvidas – através do que tenho chamado “identidades
continuadas” (cf. Pina Cabral 1991:171-2 e 2003: 122 e seg.s).
Os nomes funcionam como marcas de relações afectivas e, por
conseguinte, como sinalizadores emocionais. Como todos
sabemos, o nosso próprio nome tem potencialidades evocativas
fortíssimas.
Nomear é, assim, um passo central na constituição social
da pessoa – um dos principais meios de integração entre a 2 O artigo constitui um primeiro esforço interpretativo no âmbito do projecto
“Nomes e Cores: complexidade identitária e nomeação pessoal na Bahia”, sedeado
no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e no CEBRAP, São Paulo,
desenvolvido por mim próprio, Susana de Matos Viegas, Ana Lúcia Pastore
Schritzmeyer e Omar Ribeiro Thomaz.
reprodução social e a reprodução humana. Por reprodução
social, refiro-me ao processo pelo qual novas pessoas (agentes e
sujeitos sociais – egos e selves) são constituídas ou removidas;
por reprodução humana refiro-me ao processo pelo qual as
pessoas físicas nascem ou morrem. É bem verdade que, como
muitos antropólogos têm enfatizado, entre estes dois processos
não há uma conexão necessária nem universalmente uniforme.
Contudo, em todos os contextos socioculturais duráveis que têm
sido estudados por antropólogos ou por historiadores sempre
existiram processos explícitos de integração entre estes dois
aspectos.
O momento culturalista e a sua superação
A finalidade principal do presente exercício é contribuir para os
debates que têm vindo a ocorrer no âmbito da antropologia tanto
por relação à temática das emoções como da família e
parentesco. Ao associar as duas temáticas em torno à questão
da nomeação, pretendo devolver centralidade à problemática da
acção social na antropologia, já que, na nossa disciplina, as
últimas duas décadas têm sido marcadas pela hegemonia de
posições de raiz culturalista que enfatizam a centralidade do
“discurso” e a incomensurabilidade da diferenciação cultural. A
saudável preocupação com evitar a “essencialização” da vida
sociocultural foi levada tão longe, que se abandonou pura e
simplesmente a procura de formas de discurso científico que
pretendam superar, pelo menos parcialmente, a diferenciação
cultural.
Os nossos colegas têm tanto medo de que alguma sombra
de etnocentrismo se infiltre nas descrições que fazem da vida
social, que preferem fechar-se numa atitude de cepticismo
epistemológico. Fogem do abismo à frente caindo no abismo
atrás. O temor de lidar com categorias impuras (cf. Latour
1994) é tal que preferem abdicar da tarefa comparativa. Não
percebem assim que, quando se limitam à descrição cultural
fechada sobre si mesma, não estão mais do que a essencializar
essa cultura e que uma cultura, se é um campo de poder, como
eles tão frequentemente enfatizam, nunca poderá descrever-se a
si mesma. No seu texto clássico sobre lutas de galos, Clifford
Geertz afirmava que o “princípio condutor” do antropólogo
deveria ser que “as sociedades, tal como as vidas, contêm as
suas próprias interpretações.” (1979: 223) E é bem verdade, só
que não é toda a verdade: o equívoco implícito nesta afirmação é
o pressuposto de que há um stock fechado de interpretações
para cada vida e para cada cultura.
A “redução discursiva” que silenciosamente veio a ocupar o
lugar de tropo dominante na antropologia dos últimos vinte anos
é uma disposição profundamente enganadora, porque ela só adia
o problema epistemológico, não o supera, como alguns colegas
acharam que poderia vir a acontecer. 3 A Crítica ao Estudo do
Parentesco de David Schneider, publicada em 1984, é hoje
considerada como o texto mais influente na área de estudos da
3 Reproduzo aqui a nota de rodapé de Marilyn Strathern sobre esta questão: “the
dominant theme of modern writing is epistemological (how do we know knowledge)
by contrast with […] the ontological stance of postmodern writing (what kinds of
worlds are there?). Ontological here carries the connotation not of grounding but of
being.” (Strathern 1992: 217, n13) A esperança de superação imediata da condição
moderna que se vivia no início dos anos 90, não parece hoje tão evidente.
família e do parentesco pelos comentadores mais abalizados (cf.
Carsten 2004). Na introdução a esse livro, o mestre americano
insiste que as suas posições não correspondem às que
caracterizavam Leach, Needham e os seus discípulos, quando
estes declararam em 1971 o fim do paradigma clássico da teoria
do parentesco (cf. Needham 1971). Passadas que estão estas
duas décadas, vale a pena atermo-nos à explicação que
Schneider dá para as diferenças que julga existirem entre as
duas posições.
A posição de Needham é que, não existindo uma
“coisa” unitária a que [o conceito de] parentesco se
refira, não pode haver por maioria de razão uma
teoria sobre o parentesco, pois não pode haver uma
teoria legítima sobre uma “coisa” que não existe. […]
Esta posição depende obviamente da premissa de que
existem “coisas” objectivas independentemente de
[apart from] um observador ou da relação do
observador com elas e que a sua existência e natureza
podem ser objectivamente descritas. (1984: vii)
Para ele, não é possível aceitar a solução wittgensteiniana
proposta por Needham. Este último sustentava que existe
realmente em todas as sociedades um género de disposições
relativas à atribuição de direitos e sua transmissão
intergeracional que poderíamos caracterizar vagamente como
parentesco. A diversidade entre estas disposições seria tal,
porém – e o conceito resultante de tal forma vago –, que não
permitiria a constituição de um campo teórico independente, do
tipo que se tinha pensado que o parentesco poderia constituir.
O parentesco, então, não passaria de mais um tipo de
constituição de significado como tantos outros que caracterizam
a vida sociocultural e estaria intimamente ligado a todos os
outros.
Esta solução, sustenta Schneider, só transfere o peso
analítico da categoria de “parentesco” para a de “geração”
(1984: viii). Mas tal não é assim, pois Needham poderia
simplesmente responder que o que se passa com o “parentesco”
também se passa com “geração”. O problema de Schneider é a
dificuldade que tem em aceitar a noção de que os conceitos que
usa não sejam epistemologicamente puros. Para preservar essa
pureza, prefere abdicar da existência de uma qualquer forma de
objectividade, caindo no idealismo. Para ele, portanto, e nas
suas palavras, “‘o parentesco’ como uma coisa, como um objecto
de estudo, na melhor das hipóteses, só era possível num sentido
muito restritivo, e então provavelmente só nas culturas
Ocidentais, tal como a dos Estados Unidos.” (1980: 119) Mais
tarde, Mary Bouquet e Marilyn Strathern viriam até a sustentar
o mesmo argumento (Strathern 1992 e Bouquet 1993). 4 Para
estes autores, pois, tudo o que pode ser dito sobre uma cultura é
o que ela diz sobre si própria. O problema com esta solução é
que, recusando-se a naturalizar o parentesco, acaba por
naturalizar as “culturas”, o que, como tem sido apontado por
vários autores (cf. Kuper 1999), não é nada menos problemático.
4 Aliás, Marilyn Strathern, no prefácio ao seu influente livro After Nature, escreve:
“David Schneider é o pai antropológico desse livro já que é com as suas ideias sobre
parentesco e contra elas que o livro foi escrito.” (1992: xviii)
Schneider abriu toda uma corrente analítico-interpretativa
que se expandiu para outras áreas da antropologia e que parece
ainda não se ter esgotado, como bem o mostram as obras
recentes de autores como George Marcus (cf. Marcus and
Mascarenhas 2005). Este tipo de postura epistemológica
acabou por se difundir na disciplina, encontrando-se mesmo em
autores que dão centralidade à questão do “poder”. Um bom
exemplo é a obra Language and the Politics of Emotion,
publicada em 1990 nos Estados Unidos por Lila Abu-Lughod e
Catherine Lutz e que foi altamente responsável pela emergência
de um interesse antropológico no estudo das emoções.
Aí as organizadoras argumentam que “a aproximação
analítica mais produtiva ao estudo transcultural da emoção é a
atenção aos discursos sobre emoção e aos discursos emocionais
vistos como práticas sociais dentro de contextos etnográficos
diversificados.” (1990:1) A razão para tal, afirmam as autoras, é
a necessidade de fugir à “essencialização” das emoções e usam
como exemplo negativo autores que, segundo elas, terão
“tratado as emoções como ‘coisas’ com as quais os sistemas
sociais devem ‘lidar’ num sentido funcional.” (1990: 2-3) Mais
uma vez reencontramos a confusão epistemológica que leva
estes autores a não verem soluções intermédias entre, por um
lado, a essencialização funcionalista de fenómenos culturais e,
por outro, a “redução discursiva”. Mais uma vez nas suas
palavras, “Se o significado da emocionalidade diverge
transculturalmente e as aplicações à prática sócio-
organizacional são variáveis, então quaisquer certezas sobre
universais são derrubadas.” (1990: 5)
Posta a questão desta forma radical, poderá parecer que
não há, de facto, outra resposta. Contudo, a forma como a
questão está posta presume já uma posição culturalista do tipo
schneideriano. Que quer dizer “quaisquer certezas”? Quer isto
dizer que abdicamos da possibilidade de encontrar toda e
qualquer semelhança entre os comportamentos humanos em
diferentes culturas? Se assim é, então as autoras não estão
autorizadas a identificar o próprio conceito de “emoção” e qual
seria, pois, o sentido da sua frase? Sem uma qualquer
referência a “coisas”, explícita ou não, a comunicação não é
possível.
Voltemos à frase das autoras. Que querem elas dizer por
“universais”? A possibilidade de pensarmos o conceito nos
termos em que o usavam os autores evolucionistas do início do
século XX ou no sentido funcionalista que Gluckman usava
quando procurava “leis sociais”, não se levanta mais hoje.
Acontece que, desde os meados dos anos 80, os antropólogos
deixaram de debater a questão. Não possuímos, pois, termos
para apreciar em que medida é que podemos ou não falar na
existência de uma “condição humana” universal. Será, pois, que
deixamos de ter termos para debater a nossa comum
humanidade?
Nas palavras de Janet Carsten, “Dir-se-ia por vezes que,
depois de Schneider, os antropólogos deixaram de ter outra
alternativa senão simplesmente documentar de que forma é que,
numa cultura particular, a procriação, o casamento e a morte
são entendidas de forma muito diferente […]. Se é por aí que
nos leva a viragem culturalista [culturalist turn], então penso
que acaba por ser insatisfatória.” (2004: 187) Há que concordar
com a autora, mas parece-me que não podemos ficar por aí, já
que a questão não é só a de saber para onde vamos, mas
também a de saber o que fazer com o passado. Como
poderemos nós voltar a ler todos os esforços comparativos
realizados antes da “viragem culturalista”? A recuperação do
legado antropológico faz parte do projecto de reconstituição
analítica que urge empreender.
Nas páginas que se seguem, procurarei vias alternativas ao
culturalismo para interpretar processos de nomeação pessoal,
inspirando-me em vários filósofos contemporâneos que
apresentam propostas realistas de tipo minimalista (p.ex., Lynch
1998). Estou convencido, em particular, que a obra de Donald
Davidson (2001 e 2004) e o seu conceito de “interpretação
radical” nos abrem numerosos caminhos para ultrapassar o
impasse em que se encontra a antropologia contemporânea (cf.
Pina Cabral 2002/3). Seguindo uma pista deixada por Quine, o
autor recomenda-nos que abandonemos a procura de
identidades entre conceitos – tanto no referente a culturas como
a pessoas –, já que essas jamais serão encontradas. No entanto,
se a comunicação entre pessoas ocorre e se, na verdade, como
mostra a história da etnografia, é possível mediar uma grande
parte das diferenças de visão de mundo que caracterizam duas
culturas diferentes, então é porque uma parte considerável do
que partilhamos é comum.
“É bem provável que estejamos errados sobre muitas
coisas;” diz-nos Davidson, “mas a possibilidade de erro depende
da possibilidade de acesso a uma quantidade generosa de
verdades; de facto, quanto mais numerosos os nossos erros, mais
teremos que ter acertado de forma a dar substância aos nossos
desencontros.” (2004: 5) O autor desilude-nos quanto à
possibilidade de perceber o comportamento linguístico fora dos
contextos em que estes surgem (as part of a larger entreprise).
Para que nós possamos fazer sentido do que nos dizem os outros
temos que, por um lado, acreditar que eles fazem sentido (a
disposição a que ele chama caridade interpretativa) e, por outro
lado, temos que partilhar um contexto interpretativo, uma
condição comum, um mundo comum (ao que ele chama
triangulação).
As “coisas”, para recorrer à expressão favorita de
Schneider, não estão para lá da linguagem, escondidas por ela,
como as vê o culturalismo, elas são condição sine qua non para a
possibilidade do discurso. Na frase lapidar de Davidson, “the
possibility of thought comes with company” (2001:88) – a
própria possibilidade do pensar só surge por virtude de
existirmos numa relação triádica em que um dos pólos somos
nós, o outro é a nossa companhia e o terceiro são “as coisas”.
Davidson sustenta esta posição sem abdicar de uma visão
holista sobre a natureza das crenças que subjazem ao
comportamento social (linguístico e outro). As crenças de uma
pessoa, tal como os vários elementos de uma cultura, dependem
umas das outras para adquirir significado. Superficialmente isto
significa que deixa de ser possível comparar o que está numa
mente, ou o que está numa cultura, com o que está noutra, pois
estas compõem todos diferenciados. O passo realmente
revolucionário de Davidson é afirmar que não devemos esperar
identidades, já que a purificação das categorias é um sonho
destrutivo. Pelo contrário, devemos pôr o enfoque sobre
“semelhanças relevantes”, pois só assim podemos explicar tanto
(a) a possibilidade objectiva de nos interpretarmos uns aos
outros como (b) a possibilidade objectiva de realizar etnografia.
Assim, em vez de abandonarmos pura e simplesmente um
conceito como “emoção” ou “parentesco”, argumentando que a
sua origem no pensamento legal europeu lhes retiraria toda e
qualquer validade comparativa, devemos trabalhá-los no sentido
de os “des-etnocentrificar”, como dizia Julian Pitt-Rivers (in Pina
Cabral e Campbell 1992). Façamos, pois, o movimento contrário
ao de Schneider: procuremos identificar nos conceitos que a
antropologia tem vindo a elaborar como instrumentos
comparativos aquilo que eles têm de mais comum. A história de
um conceito deixaria, assim, de ser um empecilho à sua validade
analítica, mas seria antes um meio pelo qual esse conceito
poderia ser “des-etnocentrificado” – nunca totalmente, está
claro, mas sempre mais e mais.
Pessoa e convocação
Ora, a própria etimologia do conceito de pessoa abre todo um
campo de pistas relativas à questão da nomeação. Como insiste
Amélie Rorty no seu ensaio sobre o tema, “A nossa ideia de
pessoa deriva de duas fontes: uma é o teatro, as dramatis
personae do palco; a outra encontra as suas origens na lei. Um
actor assume uma máscara, literalmente per sonae, aquilo pelo
qual passa o som, os muitos papéis que encena. Os papéis de
uma pessoa e a sua posição na narrativa são funções das
escolhas que o posicionam num sistema estrutural, em relação a
outros.” (1969: 309) Assim, a pessoa enquanto peça de um todo
social é uma entidade à qual pode ser atribuída voz, quer dizer,
um ser discursivamente auto-identificado que pode ser sujeito de
responsabilidade: “A ideia de uma pessoa é a ideia de um centro
unificado de escolha e acção, a unidade de responsabilidade
legal e teológica. Tendo escolhido, a pessoa age e, por
conseguinte, é sujeita a acção (actionable), responsável perante
a lei. É na ideia de acção que as fontes legais e teatrais do
conceito de pessoa se reúnem.” (ibid.)
A história ocidental do conceito, portanto, ajuda-nos a
compreender a relação que ele pode ter com a perspectiva da
acção social. Contudo, há que enfatizar que, desde 1938,
quando Marcel Mauss leu a sua famosa Huxley Memorial
Lecture no Royal Anthropological Institute de Londres (2003), ou
os anos 60, quando Fortes falava sobre o conceito tallensi de
pessoa em Paris (1961), já passou muita água por baixo da
ponte. Mais recentemente, Maurice Bloch (1988) e Janet
Carsten5 insistiram sobre o facto de que a concepção
dumontiana do conceito que o radica numa história jurídica
ocidental (Dumont 1985) – e que, por conseguinte, enfatiza a
diferenciação entre visões “ocidentais” e “não-ocidentais” do
termo – é potencialmente enganadora. Se estudarmos
5 Janet Carsten realizou na Escócia um estudo de pessoas que, tendo sido adoptados na infância, procuraram em adultos os seus
genitores. Segundo ela: “a história da procura por estes adoptados dos seus parentes de nascimento [… revela] quão profundamente o
parentesco é intrínseco à condição de pessoa. Sem o conhecimento de uma mãe de nascimento, e em menor grau de um pai de nascimento, o
sentido de self destas pessoas era aparentemente parcial e fracturado. Isto sugere uma noção de pessoa na qual o parentesco não é
simplesmente adicionado à individualidade demarcada (bounded individuality), mas na qual as relações de parentesco são vistas como intrínsecas
ao self.” (2004: 106-7)
etnograficamente as utilizações do conceito de pessoa nas
sociedades europeias – nomeadamente por relação à
constituição da pessoa familiar, vide Pina Cabral 2003: 119-142
– seremos levados a verificar que a polarização entre uma
pessoa individual ocidental e uma pessoa relacional não-
ocidental é patentemente exagerada e enganadora.
A etimologia per sonae deverá alertar-nos para o facto de o
conceito de pessoa implicar chamar e ser chamado – a ideia de
“apelo”, que tem tão fortes ressonâncias legais. Trata-se
essencialmente da ideia de que, convocando e sendo sujeito a
convocação, eu sou reconhecido como actor no todo social. Sou,
pois, chamado a agir e decidir no interior da socialidade através
do meu nome, já que, se quiser abstrair-me das
responsabilidades dessa pertença, sou obrigado a assumir o
anonimato; isto é, tenho que recusar o uso do meu nome.
Dito isto, porém, urge enfatizar que, entre a minha
capacidade de convocar e a minha aptidão a ser convocado por
meio de um nome, não há uma absoluta correspondência nem
formal nem temporal: por outras palavras, pode-se ser pessoa
sem ter nome ou sem ter um só nome e pode-se convocar
alguém que ainda não é capaz de agir como pessoa
(nomeadamente em termos linguísticos). Para ser mais
explícito, no primeiro caso, teríamos as situações de anonimato
ou de pseudónimo e, no segundo, a situação mais comum em que
é dado um nome a uma criança, por vezes antes mesmo dessa
criança nascer ou até de ter sido concebida.
Se já existe um nome para a criança, mesmo antes dela
existir fisicamente, é porque o processo da sua existência social
está já em movimento. Este é o caso, por norma, nas culturas de
raiz ibérica: quando um casal contrai o matrimónio e os
convidados lhe desejam felicidade e fertilidade, presume-se já
que os filhos que eles venham a ter transportarão no seu nome o
patronímico da mãe e o patronímico do pai, nessa ordem.
Muitas vezes até, em Portugal entre as camadas mais abastadas
(cf. Pedroso de Lima 2001), a lista de nomes familiares de entre
os quais os nomes próprios da criança serão escolhidos é
relativamente finita.
Já na Bahia, para dar outro exemplo, é comum o primeiro
filho varão receber exactamente o nome do pai ou do avô
paternos, sucedido de “Filho”, “Neto” ou “Júnior”. Nas
entrevistas que temos feito a jovens mães na Região de Tinharé,6
verificou-se que esta prática – que é formulada por elas através
da expressão “fazer homenagem” – é muito comum e
corresponde a um desejo explícito de interessar o suposto pai
biológico da criança pelo acto reprodutivo, promovendo assim a
paternidade social numa região e camada social onde esta não é
necessariamente a norma. O costume de atribuir a todos os
filhos nomes derivados que incluam a primeira sílaba ou a
primeira letra do nome do pai é concebido pelas entrevistadas
como uma variante da homonímia pai-filho.
Se considerarmos que a reprodução social é um acto
relacional, então ao tomar opções sobre a nomeação de uma
criança está-se a dar existência a uma pessoa social – está-se a
6 Trata-se da região onde estamos a estudar práticas de nomeação pessoal, situada a
sul do Recôncavo bahiano, incluindo o Arquipélado de Tinharé (Morro de São Paulo,
Boipeba e Cairú) assim como a zona costeira para o seu interior, nomeadamente as
prefeituras de Valença, Taperoá, Nilo Peçanha e Ituberá.
realizar um acto de reprodução social através da apropriação de
uma instância de procriação. Este processo é relativamente
universal, se bem que a forma pela qual ocorre possa ser muito
diversificada. Como Pitt-Rivers sublinha no seu ensaio clássico
sobre parentesco e amizade (1973: 89-105, esp. 102), nos países
católicos do sul da Europa, quando era dado aos padrinhos a
opção de escolher o nome da criança, a reprodução social dessa
criança permitia a inclusão na rede de parentesco de pessoas
que lhe eram até aí externas.
O acto de assumir a filiação de uma criança corresponde a
uma alteração na posição relacional de quem o faz7 com
importantes implicações ao nível de obrigações e deveres, pelo
que está normalmente associado a fortes sentimentos de
afectividade. O tema tem, assim, uma longa história na
etnografia, já que raro terá sido o etnógrafo que não relatou que
o processo de constituição da pessoa é (a) temporalmente
diferido, (b) acompanha a atribuição de nomes (ou a sua
alteração sucessiva) e (c) é investido com consideráveis
implicações de natureza simbólica e emocional.
No trabalho que realizei sobre o Alto Minho rural, tornou-
se para mim muito patente que este processo de integração
entre procriação e constituição social de uma pessoa, e o
concomitante processo de atribuição de nome, não eram nem
instantâneos nem, sobretudo, isentos de emotividade.
Encontrei e descrevi todo um complexo de práticas, conceitos e
7 Vide o interessante argumento de Christian Geffray em Ni père ni mère (1990) em
que ele mostra que, entre os macua de Moçambique, os conceitos europeus de “pai”
e “mãe” não podem ser automaticamente aplicados para descrever os processos de
filiação – o que não significa que estes não ocorram.
atitudes associadas ao processo de liminaridade que
acompanhava a constituição da pessoa (1989: 130-143)
O surgimento de uma criança é um processo prolongado e
que engaja emocionalmente todos os que passam a estar
“relacionados” com essa criança e que, através dela, passam a
estar relacionados entre si. Poder-se-ia dizer que, num contexto
em que a manipulação biológica do processo é altamente
organizada, os tradicionais “perigos” e formas de simbolização
desse momento tivessem perdido a sua relevância. Pelo
contrário, porém, os etnógrafos que se têm interessado pela
questão observam que surge uma espécie de montagem
tecnológica em que os factores de liminaridade sócio-simbólica
são recriados. É que, tal como sempre, o processo está sujeito a
muitos dissabores e possíveis interrupções.
No seu estudo dos efeitos sociais do uso das tecnologias de
ultra-som para monitorizar a gravidez, realizado em Chicago,
Janelle Taylor mostra como o recurso a estas tecnologias envolve
a representação da gravidez como um estado frágil e sujeito a
riscos (1998). O efeito principal destes processos é puxar para
um momento anterior o surgimento da criança enquanto ser
socialmente reconhecido, levando a mãe e as suas relações a
reconhecerem e darem existência social à criança antes do
momento do nascimento.
Contudo, este processo não tem nada de claro nem de
definitivo. Pelo contrário, o reforço da existência pré-natal da
criança e a consolidação dos respectivos laços de afecto (que
ultrapassam em muito a relação com a mãe) potenciam os
perigos dessa criança (a) não ter condições para nascer (no caso
de fetos malformados), (b) nascer prematuramente e, portanto,
correr risco de vida e (c) de ocorrerem graves complicações no
parto. Sobretudo, o teste atribui sexo à criança e inicia assim o
processo de genderização (cf. Pina Cabral 2003: 55-88),
espoletando a atribuição de nome. Os exemplos que apresento
de seguida mostram como esta alteração, que depende da
materialidade do facto de procriação, tem fortes implicações
para as relações afectivas. É nesse sentido que a atribuição de
nome corresponde a um “limiar dos afectos”.
Um hiato ontológico
O trecho que passo a ler é um extracto de uma mensagem
electrónica que me foi enviada pelo nosso colega Igor Machado,
da Universidade Estadual de São Carlos e que reproduzo com
sua licença e o respectivo agradecimento. Discutíamos o nome
Cassiel, que Igor e sua esposa deram ao seu primeiro filho.
Estas são as suas palavras:
Sabe que tive uma experiência muito marcante
quando Cassiel nasceu, que me levou a desejar
escrever algo algum dia e tem tudo a ver com a
pesquisa que vocês estão levando a cabo.
O Cassiel nasceu prematuro, no final do sexto
mês de gravidez. Do nosso ponto de vista, tudo bem,
ele já existia, ou já havia sido "fabricado socialmente"
entre nós (o casal, famílias e amigos). Todos
esperavam pelo Cassiel, como pessoa, independente
dele nascer antes ou depois da hora. Tanto que todos
diziam que ele tinha chegado antes da hora, mas era
sempre ELE, sabe?
O choque foi perceber que na UTI neonatal onde
ele ficou internado por 21 dias, o Cassiel não existia.
As etiquetas nos remédios e todos os artefatos que se
referiam aos cuidados do Cassiel tinham como "nome"
a expressão "RN Sofia Nikolaou" (RN é Recém-
nascido – seguido do nome da mãe). O Cassiel-para-
nós era um "RN Sofia" para o hospital, não tinha
existência legal e era apenas um apêndice da Sofia.
Obviamente isto se referia à liminaridade da UTI
neonatal, pois muitos RN não sobrevivem e, parece
que é como se os que falecem não tivessem chegado a
nascer, não recebem nem um nome. O mais
surpreendente para nós, que já o tínhamos por
Cassiel desde o começo da gravidez, foi ver que não
era uma lógica apenas burocrática. As enfermeiras,
técnicas e médicas que lá trabalhavam chamavam o
Cassiel de "RN Sofia". Na ficha que ficava acima da
incubadora, que trazia informações sobre o bebê NÃO
existia espaço para o nome dele, apenas para o da
mãe.
Com o passar do tempo dentro da UTI, à medida
que Cassiel ia se desenvolvendo, paulatinamente as
trabalhadoras começaram a chamá-lo de Cassiel,
como se a evidência da sobrevivência concedesse a
ele alguma pessoalidade. Por fim, depois de 15 dias
alguém escreveu na tal ficha, por cima dos dados, o
nome "Cassiel", de forma a ultrapassar a lógica
burocrática que continuou chamando-o de RN Sofia
até o fim da internação.
Cheguei à conclusão que a relação entre pessoa
e RN ali naquele lugar liminar era uma espécie de
relação com o peso da criança, era uma "lógica
substantiva". Ele nasceu com 1,5 kg e, quando atingiu
1,8 kg (mais ou menos), ganhou nome para as
trabalhadoras da UTI. Com 2 kg saiu, pronto para o
mundo (quem tem filho prematuro sabe a paranóia
que é a contagem do peso do filho nesses primeiros
dias: tudo na UTI gira em torno disso).
Pouco tempo depois de receber esta mensagem, tendo
ficado muito impressionado pelas observações de Igor, comentei
sobre elas a uma orientanda minha que tinha acabado de dar à
luz a uma criança prematura em Lisboa. A Catarina Fróis falou-
me longamente do sentimento de estranheza que constituía o
facto de ter sido obrigada, depois do parto, a voltar sem a
criança nos braços a uma casa que esperava já por ela. A
criança chama-se Francisca, nome que remete para uma das
avós do pai dela. O nome tinha sido atribuído logo após ter sido
realizado o teste de ultra-som que revelara o sexo do bebé.
Perante o desejo de Catarina de só vir a saber o sexo na altura
do nascimento, toda a família se revoltara, dizendo que “assim
não conseguimos dar personalidade à criança” e a mãe acabou
por ceder.
Na altura que Catarina falava comigo, a Francisca estava já
fora de perigo, mas continuava no hospital e os pais, quando a
iam visitar diariamente, sentiam-se perturbados pelo facto de, no
hospital, terem se identificar como os pais, não da Francisca,
mas do “bebé Fróis”. Esta forma de nomeação perturbava-os,
pois se, por um lado, retirava à Francisca a sua qualidade de
pessoa autónoma com género determinado – qualidade que ela
já tinha desde que o teste de ultra-som tinha identificado o seu
sexo; por outro lado, nem sequer se referia a ela pelo
patronímico do pai. Ora, como se sabe, nos sistemas lusófonos,
em princípio, presume-se que a criança é preferencialmente
identificada por esse sobrenome, apesar de receber também o
patronímico da mãe. Como enfatiza Igor Machado, o que estava
em causa era o recurso a um meio simbólico de negar a
existência autónoma do feto.
No seu ensaio sobre a categoria de pessoa entre os
Tallensi, Meyer Fortes insiste no facto de que a constituição de
uma pessoa é um processo prolongado que pode até não chegar
ao seu fim, dependendo de toda uma série de outros factores.
Na sua famosa expressão, o nascimento só assegura “um
quantum mínimo de pessoalidade” (1987: 26). Nos casos
lusófonos acima apresentados, porém, como já vimos, a partir do
momento em que o teste pré-natal tinha assegurado o género da
criança e a sua adequação, tinha-se tornado possível atribuir-lhe
um nome e a criança passara a existir – era um “ELE” para a
família, como enfatiza Igor recorrendo a maiúsculas.
Nos ambientes urbanos contemporâneos de nomeação
lusófona, aliás, a noção implícita é que, a partir do momento em
que existe, a criança tem todos os direitos e todas as relações e
toda a unicidade que lhe incumbem como pessoa. Um feto ao
qual foi dado um nome existe, é uma pessoa – é preciso,
portanto, começar a dar-lhe “personalidade”, na expressão dos
parentes de Francisca. A implicação do uso desta expressão é
que lhe são atribuídas as características emocionais de uma
pessoa; “os traços de personalidade”, essas características que a
distinguem de outras pessoas. O pressuposto é que não há duas
pessoas iguais e que ser pessoa é ser diferente.
Subjacente a este complexo conceptual está toda uma
história cultural. De facto, o catolicismo ibérico é o pano de
fundo sobre o qual ocorrem estes dois processos, apesar de
ambas as famílias não serem religiosas. A noção de alma e a sua
associação à atribuição de um “nome de pia” – o que os ingleses
chamam Christian name e nós agora dizemos “nome próprio” –
não pode passar desapercebida. A alma não surge aos pedaços,
ela é criada integralmente e a ambiguidade da existência da
alma é uma das grandes fontes de conflitualidade teológica e
política não só no passado do Cristianismo, como hoje – e
precisamente por relação às técnicas de reprodução assistida.
Não importa aqui abordar a complexa história teológica do
Limbo – esse local místico onde estariam sedeadas as almas que,
não tendo cometido pecado mortal, estão afastadas da presença
de Deus, por não haverem sido remidas do pecado original pelo
baptismo.8 Bastará lembrar que o problema da ambiguidade 8 Importa, ainda, sublinhar quão distante dos importantíssimos debates
contemporâneos sobre reprodução assistida, aborto e eutanásia está a origem da
questão na concepção judaico-cristã da alma. Os comentadores antropológicos, pelo
menos, tendem a remeter a questão exclusivamente para o “individualismo
ocidental” e a sua relação com o conceito de Natureza – que, por sua vez, a remete
decorrente da constituição da pessoa ser um processo diferido
nem é novo nem foi jamais menos contraditório do que é nos
dias que passam. Ora o que estes dois casos nos exemplificam é
justamente a necessidade de lidar com a contradição entre, por
um lado, a concepção de que a formação da pessoa é integral,
sendo moralmente errado negar a seja quem for a integralidade
da sua pessoalidade/personalidade e, por outro, o facto do
processo ser temporalmente diferido, ser revertível e estar
sujeito a um escalonamento.
Há dois aspectos que forçam os intervenientes nestes dois
exemplos a confrontarem-se com essa contradição – que, como
enfatizam, foi emocionalmente um desafio para ambas as
famílias. O primeiro é o facto da criança que o teste de gravidez
revelou, à qual o teste de ultra-som deu género, que
consequentemente recebeu nome como membro de uma família,
que tem até já um espaço seu, na medida em que, tratando-se de
famílias de classe média, o espaço doméstico é preparado para a
recepção da criança … em suma, essa criança não é formada de
repente: a sua personalidade é criada aos pedaços e, na verdade,
o momento central para que esta se consolide está ainda longe
no futuro. A observação não-sistemática sugere que, para
muitas famílias, o passo central será mesmo o momento em que
a criança comece a falar e a responder ao seu nome.9
historicamente, como bem explicitam as obras de Schneider (1980, 1984) e
Strathern (1992) para a hegemonia intelectual anglo-americana (norte americana e
inglesa, respectivamente) – deixando de lado a problemática da alma no cristianismo
europeu, que remeteria, sem dúvida, para centralidades “ocidentais” anteriores.9 Esta questão do que poderíamos chamar patamares de pessoalidade começa, aliás,
ainda antes do teste de ultra-som e tem importantes implicações para os debates
médico-deontológicos e teológicos que se têm desenvolvido em torno a este tema.
O segundo factor que contribui para tornar esta
contradição sobressaliente é a evidência material de que este
acto de procriação pode não vingar. Tratar-se-á, então, de uma
“morte” ou não? Para aprofundar a questão teríamos que nos
afastar muito dos temas do presente ensaio. Bastará, pois, aqui,
verificar que o aparelho médico, plenamente consciente de que a
contradição poderá ter efeitos emocionais, morais, legais e até
relacionais (nomeadamente ao nível do futuro das relações
conjugais), tenta proteger-se a si mesmo e à família da plena
força da tempestade de emoções que a contradição implica.
Assim, tanto no Brasil como em Portugal, a solução
adoptada é a de negar a existência autónoma ao feto associando-
o por meio de tecnónimos à mãe – “recém-nascido de fulana”,
“bebé tal”. A solução, porém, é ela mesma um factor de
potencialização da contradição – já que, confrontados com ela,
os membros da família, que estavam já plenamente envolvidos
na tarefa de constituição de personalidade, são obrigados a
efectuar uma suspensão do processo. Por muito que o queiram
evitar, o deferimento do processo de constituição de pessoa
impõe-se-lhes. Os efeitos emocionais deste hiato ontológico que
recai sobre o seu filho não serão, porventura, tão devastadores
quanto seriam os resultantes da morte; mas são, sem dúvida,
dolorosos. Nestes dois casos, felizmente, o sofrimento deste
Telma Salem, no seu valioso artigo sobre o estatuto do embrião e a noção de pessoa,
demonstra por relação ao debate em torno aos embriões extracorporais ou “pré-
implantados”, que o primeiro patamar surge aos 14 dias de fecundação, quando
essa “potencial pessoa” ou “pré-embrião” desenvolve a chamada “linha primitiva” –
isto é, o ordenamento celular que virá mais tarde a dar azo à espinha dorsal (Salem
1997: 81).
limiar dos afectos, “a paranoia” como diz Igor, foi superado pela
sobrevivência física da Francisca e do Cassiel.
Uso a expressão “devastador” avisadamente, porque
estamos a falar de um processo emocional com efeitos imediatos
sobre a arquitectura destas famílias. O possível colapso do acto
de procriação levaria à ruína do acto de reprodução social – da
criação de parentesco que lhe estava associada. O efeito sobre
as relações afectivas é duplo, pois uma criança não só está
relacionada com pessoas como cria laços entre pessoas através
da afinidade.
Assim, não é de surpreender que muitas mães peçam para
continuar a ignorar o sexo da criança depois dos testes de ultra-
som, como Catarina foi inicialmente tentada a fazer. A
responsabilidade de transportar durante toda a gravidez um ser
plenamente criado pode revelar-se excessivamente onerosa,
sobretudo porque as implicações familiares associadas ao sexo
do feto podem ser graves.10 Uma mãe bahiana por nós
entrevistada, 11 proibiu ao médico que divulgasse o sexo da
criança como forma de reduzir a ansiedade ligada ao fortíssimo
desejo que sentia de que a sua terceira criança fosse do sexo
feminino. O seu marido tinha acabado de ter uma filha de uma
relação extra-conjugal e tinha reconhecido a paternidade dessa
criança desculpando-se com o desejo de ter uma filha, já que
10 A relação de contemporaneidade entre revelação do sexo, constituição de
pessoalidade e nomeação tem fortes implicações para a discussão sobre a relação
entre género e pessoalidade que se tem vindo a desenvolver em torno ao
pensamento de Marilyn Strathern, que esperamos poder vir a estudar
posteriormente.11 Funrural, Valença, BA, Janeiro 2005, entrevistadora Ulla Romeo – a quem tomo
aqui ocasião para agradecer o seu notável empenho e eficiência.
eles só tinham dois filhos. Curiosamente, apesar do conflito
público em que estava envolvida com a mãe da criança (e que
tinha até dado azo a um caso de polícia), a nossa entrevistada
aceitava a criança como sua parente e quando a entrevistadora
pediu que lhe mostrasse a fotografia dos seus filhos, apresentou
automaticamente três fotos, incluindo a da filha adulterina do
marido. Assim, se não queria saber o sexo do nascituro era, nas
suas palavras, por causa da “expectativa” – o que outros
chamariam stress, “paranóia”.
O que resulta evidente destes exemplos é que as práticas
discursivas destas três pessoas dependem profundamente tanto
de parâmetros de efectivação material como de contextos de
relacionamento social que ultrapassam em muito as
performances comunicativas da emoção. O sexo da criança, o
peso da criança, o nome do pai, a existência de relações de
parentesco de origem adulterina – tudo isto são factores
constituintes das emoções. Abu-Lughod e Lutz propunham que
deveríamos “ver a emoção como uma prática discursiva” (1990:
10), que deveríamos “trabalhar para soltar a emoção da
psicobiologia.” (1990: 12) Quinze anos depois, parece evidente
que tal ideal nunca será atingido e que nem sequer é desejável.
Reduzir a emoção desta mulher a um discurso – o seu medo,
nunca totalmente explicitado e só perceptível nas entrelinhas, de
que o feto fosse masculino – seria como reduzir o pensamento à
linguagem ou os conceitos às palavras. Os dois tipos de
fenómenos estão indissoluvelmente associados mas não serão
nunca a mesma coisa.
Mais que isso, porém, a “redução discursiva” esquece a
forma como a materialidade é parte constituinte das relações
sociais. Igor Machado afirma com um misto de ironia e revolta,
“Cheguei à conclusão que a relação entre pessoa e RN ali
naquele lugar liminar era uma espécie de relação com o peso da
criança, era uma ‘lógica substantiva’.” A objectividade dos laços
afectivos, tanto quanto a objectividade das pessoas físicas não
são externas às emoções. Não há uma fronteira clara entre, por
um lado, a materialidade da pessoa e das suas relações afectivas
e, por outro, as emoções que sente.
O que está em causa, na verdade, é uma versão do
processo de interpretação que Donald Davidson identifica como
fundando tanto a linguagem como o próprio pensamento. Este
envolve uma triangulação entre eu próprio, o outro e um mundo
comum que funciona como contexto referencial e sem o qual
nenhuma interpretação seria possível. Os laços de afecto (tanto
quanto as emoções que eles convocam) não existem fora de uma
condição social. Por isso, a existência de laços de afecto implica
a partilha de um mundo comum pelos que os possuem, implica
que sabem que partilham um mundo comum e implica que
pensam sobre ele de formas bastante semelhantes (2001:121).
Conclusão
Se tentarmos olhar para os exemplos acima apresentados
através desta noção de triangulação é fácil perceber que os
referentes materiais que contextualizam o processo de
integração entre a constituição de pessoas sociais e a procriação
são da mais variadíssima ordem. Noutro contexto tive já
ocasião para notar que a própria materialidade do corpo da
criança é interpretada à luz de toda uma tessitura de
“parecenças” que constituem o corpo da criança como um
“corpo familiar” (Pina Cabral 2003: 153 e seg.s). A evidência
dessas parecenças é, por um lado intersubjectivamente
constituída e, por outro, assenta sobre parecenças físicas
identificáveis até por um observador desinteressado.
A co-substancialidade constituída tanto
paradigmaticamente pela partilha de substâncias alimentares
em contextos domésticos como sintagmaticamente pela
intimidade de contacto físico é um outro destes factores de
materialidade. O espaço físico doméstico e a sua apropriação
comum, tanto quanto as relações legais de parentesco e os
meios de sua objectificação – documentos, heranças, direitos,
etc. –, tudo isto são factores de contextualização material dos
laços de afecto.
O nome pessoal, na sua materialidade, funciona como um
agente coagulante da larga maioria destes processos de
objectificação dos laços de afecto. O nome identifica e distingue
a pessoa ao mesmo tempo que a situa num tecido de relações
familiares, demarcando o acesso a direitos e o assumir de
obrigações. O processo de consolidação física da criança e a
atribuição de nome que geralmente o acompanha conformam,
pois, um limiar de afectos, com todas as implicações emocionais
que tal tem para os que estão relacionados com a criança.
Antes de concluir gostava de explicitar algumas das
implicações mais gerais do género de argumento que tenho
vindo a desenvolver. Na sua obra After Nature de 1992, Marilyn
Strathern examina as implicações que as novas técnicas de
reprodução assistida podem ter para a teoria antropológica. O
seu argumento é que a centralidade da polaridade
Natureza/Cultura foi minada definitivamente pelo facto da
intervenção biológica sobre os processos que eram
anteriormente considerados naturais lhes ter retirado a sua
imutabilidade e, portanto, a capacidade de funcionarem como
termos fixos de referência.
O resultado deste processo não foi o desaparecimento da
Natureza, diz-nos a autora. Pelo contrário, esta tornou-se mais e
mais visível, nomeadamente através da sua manipulação no
apelo ao consumo. O que se teria definitivamente alterado é “a
concepção de pessoas como indivíduos e da sociedade como uma
visão relacional de pessoas.” Mas, continua a autora, se a
Natureza não desapareceu, a sua “função radicadora”
(grounding function) sim desapareceu. A Natureza deixou de
funcionar como “um modelo ou analogia para a própria ideia de
contexto.” (1992: 195) A conclusão que tira é que, e cito, “o
conhecimento (por assim dizer) deixará de procurar o seu
próprio fundamento, pois os seus contextos deixarão de ser
significantes.” (1992: 197)
Esta identificação entre o mundo comum material e a
“natureza” é, na verdade, como bem demonstra Strathern, um
desenvolvimento intelectual que acompanha a hegemonia global
anglo-americana dos últimos três séculos. A questão que temos
de levantar, porém, é se essa identificação e o individualismo
teórico que a ela está estreitamente associado são (a)
características das formas de viver do quotidiano informal do
próprio mundo anglo-americano, por contraste com as teorias
políticas, económicas e morais das suas elites, ou se (b) esse
“nós” antropológico – que continua a ser tão omnipresente – se
aplica, de facto, aos que não somos nem nunca viremos a ser
membros da intelligentzia anglo-americana.
As implicações nacionalistas da identificação entre teoria
antropológica e cultural “americana” ou “inglesa” (trata-se,
aliás, de uma das principais diferenças entre as formulações de
Schneider e Strathern) deveria alertar-nos logo para algo que só
“nos” pode preocupar – a “nós”, insisto, que não somos membros
das referidas elites intelectuais: a questão da identity politics
subjacente silenciosamente a todo este debate.
Marilyn Strathern inicia o seu livro dizendo: “Este é um
exercício sobre a imaginação cultural – com respeito tanto ao
nosso tema principal (o parentesco inglês) como à disciplina que
constitui a minha tecnologia potenciadora (a antropologia
social). Na linha do idioma personificante de ambos, eu quero
demonstrar a forma pela qual as ideias se comportam.” (1991:
xvii) Talvez eu próprio não tivesse sido alertado para os
problemas de uma política da identidade implícitos nesta
formulação – há que reconhecer – se não fosse o facto de, um
ano após After Nature, ter saído um livro de Mary Bouquet sobre
parentesco inglês(1993), onde se fundamenta este argumento
por referência a uma suposta incapacidade dos alunos
universitários portugueses de aprender a teoria antropológica do
parentesco – apreciação que me deixou perplexo, mais tarde
corroborada por Marilyn Strathern na sua Aula Inaugural para a
Cátedra de Antropologia Social de Cambridge. Sendo eu
também “português”, levantar-se-á a possibilidade de eu próprio
não ter percebido o essencial do que li de Radcliffe-Brown ou
Fortes?
Penso que é importante, neste momento, dissociarmo-nos
das conclusões de Marilyn Strathern tanto nesta matéria como
sobretudo na sustentação de que a questão epistemológica
perdeu a sua relevância nos dias que passam. Não só me parece
um pouco apressada essa fé na pós-modernidade, como
resultando de um desvio idealista no culturalismo que urge
rejeitar. A tecnologia pode bem ter alterado os termos em que
pensávamos a polaridade Natureza/Cultura, mas não alterou a
interdependência entre processos sociais e materiais nem a
complexidade da forma como cultura e materialidade se
integram. O conhecimento jamais deixará de procurar o seu
fundamento na materialidade, na medida em que não existe sem
esse fundamento.
Assim, pois, concluo que reduzir o estudo da emoção – e
em especial dos laços de afecto que fundam as nossas reacções
emocionais – a um estudo dos discursos da emoção é não
compreender que o etnógrafo, na sua materialidade, é co-
existente com os etnografados e que só através do mundo
comum que partilham é que ele pode dar sentido às observações
etnográficas que realiza.
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