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Versão de divulgação (não contém o livro na íntegra)

Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

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Versão de divulgação (não contém o livro na íntegra)

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É isso aí bicho!

Contracultura e Psicodelia no Brasil

Versão de divulgação (não contém todos os

capítulos)

Contém:

Introdução

Capítulo 4

Considerações finais

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IGOR FERNANDES PINHEIRO

É isso aí bicho!

Contracultura e Psicodelia no Brasil

PINHEIRO. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil. Rio de Janeiro. Editora Multifoco. 2013.

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Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os veem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.

Jack Kerouac, Na Estrada

Nosso som é o som do mundo para ser sacado e curtido.

Módulo 1000 (jornal Rolling Stone nº 4)

Sejam realistas. Peçam o impossível!

Cartaz dos estudantes franceses em maio de 1968

Há uma certa lógica nessa loucura

Sheakespeare, Hamlet

Tantas histórias, tantas perguntas

Bertolt Brecht

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INTRODUÇÃO:

Vocês gostam de Wanderléa? (Não!) / Vocês gostam do rei Roberto Carlos? (Não!) / Vocês gostam de Serguei?/ Então eu vou cantar as minhas alucinações/ Mas a mamãe me diz assim/ Corta este cabelo, essa juba de leão/ Falei então pra ela, nunca uma tesoura/ Não quero ser careca eu prefiro ser Sansão/ Serguei alargue essas calças/ Que parecem dois funis/ Camisas coloridas faça delas cortinado/ Calça apertadinha só quem usa é transviado/Boca de sino pra marujo fica bem/ Bermudas de florzinha pra meu filho não convém [...] Burguesia respeitosa/ Escravizada a tradições/ Não entende nosso mundo/ Nosso mundo de emoções, ai vai nosso protesto/ Juventude sangue quente/ Nossa música avançada representa nossa gente/ Mamãe me compreenda/ Vossa lenda é do passado/ O agudo da guitarra é pra nós avançado/ Nossa meta é a liberdade/ Nossa música é a emoção/ Nossa vida é mais verdade

Serguei 1

A contracultura brasileira possui elementos que

produzem uma combinação explosiva e obscura, há um

misto de mitologias e esquecimentos a seu respeito. Ao

mesmo tempo em que grandes nomes foram cristalizados

como baluartes da oposição e da radicalidade como Caetano

Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Novos Baianos, Raul

1“As alucinações de Serguei”, música presente no compacto simples do cantor Serguei, lançado em 1966. Gravadora Equipe.

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Seixas e Secos e Molhados, há também um vasto número de

artistas contestadores que construíram experimentalismos

musicais nos palcos e nos estúdios que foram barrados pela

memória social e enquadramentos de memória. Nomes

como Ave Sangria, Módulo 1000, Spectrum e A Bolha

soam estranhos ao grande público. Talvez os artistas

abordados neste livro apareçam pela primeira vez ao leitor.

A geração que compôs uma multidão de jovens de

cabelos compridos que produziram manifestações

relacionadas à contracultura utilizando o rock como

linguagem nas décadas de sessenta e setenta parece estar

estacionada no tempo. As pesquisas não dão conta da

complexidade deste período, além da já mencionada

centralidade em alguns personagens, a história destes jovens

parece estar dispersa no tempo, longe dos livros que

compõem a bibliografia relacionada à música brasileira.

Com a exceção de raras notas na imprensa, alguns antigos

membros de bandas, jornalistas e fãs atuam em sites e blogs,

funcionando assim como memorialistas deste período, não

deixando estas manifestações desvanecerem no tempo.

Desta forma este trabalho busca organizar uma narrativa

acerca da contracultura no Brasil utilizando como referencia

artistas que não foram legitimados pela história e imprensa

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especializada. Como não é possível dar conta de toda

conjuntura neste trabalho, o último capítulo realiza um

estudo de caso referente a uma destas bandas, a banda

Spectrum, a fim de abrir novos caminhos interpretativos

sobre este período.

A psicodelia, palavra presente no título desta

pesquisa, não se refere exatamente ao uso de substâncias

psicoativas alucinógenas como a mescalina e o LSD,

capazes de induzirem distorções percepcionais e cognitivas.

A palavra psicodelia é empregada no sentido estético-

musical alinhado à contracultura, capaz de realizar um som

experimental, distorcido e subjetivo, cujos temas das letras

muitas vezes fazem referência a pensamentos de liberdade,

comportamento rebelde, estilo de vida jovem, diversão,

natureza, temas políticos e as já mencionadas drogas. O fato

é que o psicodelismo foi intensamente expresso na música

brasileira, afinal nunca antes os chamados conjuntos de rock

influenciados pela contracultura foram tão populares.

Contrariando o diagnóstico preponderante na bibliografia

existente, os jovens que ensaiavam em garagens e tocavam

em circuitos de bailes em clubes não eram meros copiadores

americanizados, de certa forma até mesmo alguns elementos

da dita “tradição” brasileira aparecem nas gravações da

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época. Proporcionando assim, mesclas de ritmos brasileiros

ao rock, além do deslocamento dos temas das canções para a

realidade brasileira.

O rock no Brasil passou a ocupar espaço nas notícias

com uma menina que interpretou versões brasileiras de

sucessos internacionais, como “Estúpido Cupido” (Stupid

Cupid) e “Banho de Lua” (Tintarella di luna). Celly

Campelo despertou junto com um grande número de

cantores e instrumentistas que mais tarde seriam

denominados como a Jovem Guarda (devido ao nome do

programa apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e

Wanderléa) o entusiasmo de milhares de jovens no país,

abrindo assim caminho para o que viria a seguir em matéria

de comportamento e contestação no período muitas vezes

denominado como “anos de chumbo”, expressão que

designa o período mais repressivo da ditadura militar no

Brasil, após o recrudescimento do regime militar com a

emissão do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 1968, durante o

governo do então presidente Costa e Silva. Este período se

estendeu até o governo de Ernesto Geisel quando finalmente

os Atos Institucionais foram revogados pela emenda

constitucional nº 11 de 1978.

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Em meio a canções que praguejavam “quero que vá

tudo pro inferno”2 e a emissão de “acordes dissonantes pelos

cinco mil alto-falantes”3 da Tropicália, reflexos da arte e de

questões políticas se espalharam das mais variadas formas

pelo Brasil, unindo influências estadunidenses e europeias a

regionalismos brasileiros, representando assim o grito de

uma geração. Grito este que não se resumia necessariamente

a contestação estrita, era também o grito da diversão

proporcionada por algo novo que estava acontecendo

naquele período. Surgiram por todo país, principalmente nas

regiões metropolitanas, grupos de jovens que queriam fazer

músicas livres das amarras daqueles anos de

conservadorismo.

O modo de se vestir e de viver, os tabus enfrentados

e as apresentações mal comportadas nos palcos

demonstraram uma liberdade jamais vista até então. Porém

estas novidades esbarraram na censura militar, no

conservadorismo da sociedade e até mesmo no

estranhamento por parte das gravadoras. Todos estes fatores

e outros que serão abordados no decorrer deste livro

2“Quero que vá tudo pro inferno”, música gravada por Roberto Carlos, lançada pela CBS em 1965. É a primeira faixa do LP “Jovem Guarda”. 3“Tropicália”, música gravada por Caetano Veloso e lançada pela Phillips em 1967 no LP que leva o nome do cantor.

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apontam para o esquecimento relegado a centenas de

bandas, hoje encontradas no underground4 da música

brasileira. As informações referentes a estes artistas hoje são

acessíveis através da internet, ferramenta da modernidade

que traz à luz informações ignoradas nos livros, mas que

podem ser vasculhadas e compartilhadas em horizontes

virtuais.

Além do já mencionado panteão nacional da

contracultura, falado e querido pelos críticos, muito se

escreveu e se falou sobre a contracultura internacional,

principalmente as manifestações ocorridas nos EUA e na

Europa. Hoje Jimi Hendrix, Janis Joplin, Beatles e Rolling

Stones são figurinhas fáceis quando se trata do tema. O

Woodstock e o Monterey Pop Festival5 são eventos

lembrados pela memória referente a este período. Porém o

que estava acontecendo no Brasil em termos de

4Subterrâneo na língua inglesa. Termo utilizado para designar manifestações e produtos da indústria cultural que não são convencionais. 5 Woodstock Music & Art Fair, realizado em agosto de 1969 na cidade de Bethel, região rural de Nova York e Monterey Pop Festival, realizado na cidade de Monterey na Califórnia em junho de 1967. Dois grandes festivais de música que despertaram o interesse de milhares de pessoas para o rock devido à repercussão que causaram. Podemos dizer que estes festivais ajudaram a criar o “know how” técnico e administrativo dos grandes festivais tão difundidos hoje, como o Rock in Rio, Lollapalooza, Wacken Open Air, entre tantos outros.

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contracultura? Será que como espaço de contestação só

existia o tão mencionado e mitificado Píer de Ipanema6,

onde se espalhavam pelo horizonte as dunas do barato

frequentadas por Gal Costa? Na verdade estes ambientes se

espalharam por várias garagens, comunidades, sítios e

praças do Brasil, assim como ocorreram diversos eventos

como o Festival de Verão de Guarapari em 1971 e a I Feira

experimental de música do Nordeste em 1972. Guardadas as

devidas proporções, afinal não se quer com isto comparar

tais eventos, muitas vezes fadados ao fracasso a

empreendimentos gigantescos como o Woodstock. É visível

que as manifestações e contestações pipocaram das mais

distintas maneiras em diversos locais, porém ainda são

pouco exploradas pelos pesquisadores que preferem

privilegiar acontecimentos como “A era dos Festivais”7 e

6Píer construído para viabilizar a construção de um emissário submarino entre 1970 e 1974. Localizado onde hoje é o posto nove. O local despertou primeiramente a atenção dos surfistas por causa do deslocamento da arrebentação das ondas produzidas de forma artificial devido ao deslocamento de areia. “Mas não tardou para que toda sorte de figuras também cruzasse a barreira artificial (as dunas e as cercas) e também chegasse àquele oásis. Lá instaurou-se gradualmente uma coletividade que cada vez mais se integrava ao que mundialmente ficou conhecido como contracultura”. ALONSO. Gustavo. O Píer da Resistência. Ver bibliografia. 7Os Festivais da Música Brasileira eram programas transmitidos pelas emissoras de televisão Excelsior, Record, Rio e Globo no período que vai de 1965 a 1985, mas que teve seu auge nos anos 1960-1970. Estes

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tantos outros redutos consagrados da música brasileira. Não

que os temas mencionados estejam esgotados, porém há

uma grande concentração em determinados assuntos, em

detrimento de outros pouco observados.

Desta forma, nos próximos capítulos serão trazidos à

tona nomes esquecidos que involuntariamente desviaram do

caminho do sucesso. As variações relacionadas ao pop e ao

underground de certa forma serão abordadas a fim de se

descortinar velhos artistas que ainda hoje soam como

novidade, seja pela pouca familiaridade que a sociedade

brasileira possui com as bandas aqui apontadas, seja pelo

estranhamento que causaram e continuam causando, devido

à sonoridade e apresentações nos palcos, entre outros

elementos. O importante é transformar o olhar que observa a

festivais consolidaram o que chamamos hoje de MPB. Entre estes, o I Festival da Música Popular Brasileira (1965) vencido pela música “Arrastão” de autoria de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, defendida por Elis Regina; II Festival da Música Popular Brasileira (1966) vencido pela Música “A Banda” de Chico Buarque, interpretada pelo compositor e Nara Leão; III Festival da Música Popular Brasileira vencido pela música “Ponteio” de Edu Lobo e Capinam. Neste Festival o tropicalismo foi revelado para o grande público, através das músicas “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, defendida junto com os Beat Boys e “Domingo no Parque” de Gilberto Gil, defendida junto com os Mutantes; III FIC (1968) vencido pela música “Sábia” de autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, neste festival a segunda colocada foi “Para não dizer que não falei de Flores” de Geraldo Vandré, emblemática música de protesto.

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música brasileira muitas vezes em categorias homogêneas,

sem levar em consideração as reuniões criativas de

contradições existentes neste período, onde os jovens

estavam bastante distantes de um consenso estético-musical

e político.

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4.1) A GERAÇÃO BENDITA

“Eu sou psicodélico /Eu sou

psicodélico/ A vida para um

hippie é mais vida/ O mundo é

uma flor/ Sem espinhos e sem

dor/ Plantada com amor”

Serguei 8

No Brasil as manifestações de caráter libertário

receberam atenção especial de Luiz Carlos Maciel, um dos

primeiros jornalistas a divulgar a contracultura no país,

através de veículos da imprensa alternativa como os jornais

O Pasquim, Flor do Mal e Rolling Stone. Para o jornalista, a

“Nova Consciência” alterou a velha sociedade estagnada,

contaminando todos, seres perplexos e decepcionados pelos

acontecimentos. Desta forma estes comportamentos se

concretizaram no bojo do underground, nas vozes que

clamam por paz e amor. Em um de seus artigos de jornal

8“Eu Sou Psicodélico” do compacto simples do cantor Serguei. Continental. 1968.

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Maciel finaliza perguntando ao leitor: quem pode negar essa

transformação9?

Depositando esperança na contracultura,

posteriormente Luiz Carlos definiria o conceito de duas

maneiras: como um fenômeno concreto e particular dos

anos sessenta, e como um posicionamento crítico e radical

frente à cultura convencional10. O primeiro sentido do termo

o engessa no tempo, já o segundo o torna mais amplo, uma

conduta que mira o presente e o futuro.

Apontando tanto para os elementos globais quanto

para os elementos locais, Rodrigo Merheb em “O som da

revolução”11 acrescenta que o rock dos anos sessenta bebeu

da fonte oriental a fim de acrescentar um tipo de exotismo,

trazendo assim elementos espirituais e religiosos em

contraponto ao materialismo decadente da sociedade

ocidental. Os elementos da contracultura sob a marca do

rock mais o poderio econômico dos EUA e Inglaterra

criaram alicerces capazes de produzir um novo sumário para

9MACIEL. Luiz Carlos. Sol do Ano Novo. Rolling Stone. n. 36. 05/01/73. p. 21. 10MACIEL. Luiz Carlos. Revista Careta. n. 2736. Julho de 1981. p. 19. 11MERHEB. Rodrigo. Op. Cit.

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a juventude. Ocorreram adaptações em todo o mundo onde

emergiram ingredientes locais12.

Merheb traz uma importante questão acerca do rock

brasileiro: de que maneira o Brasil existe neste contexto? É

apontado o exemplo dos Mutantes, banda muito cultuada

não apenas no Brasil como também no exterior. De acordo

com o autor, até meados dos anos 90 os Mutantes não

possuíam visibilidade para o resto do mundo, permanecendo

um fenômeno nacional. Mesmo no Brasil a banda não foi

referência para os artistas dos anos 80, estes foram

primordialmente influenciados pelo punk britânico e

estadunidense. A obra realizada pelos Mutantes ficou

restrita a poucos ouvintes até mesmo em sua época, a banda

não chegou a fazer um estrondoso sucesso no Brasil. A

barreira quanto ao conhecimento da banda pelos

estrangeiros se deu de diversas formas, afinal os Mutantes

estavam distantes geograficamente, à margem das cenas da

Califórnia e Londres, além disto, utilizavam o idioma

português e uma série de regionalismos. No Brasil havia

tanto o repúdio dos militantes de esquerda ao rock

estrangeiro praticado pela banda como também pelos

conservadores, devido ao som demasiadamente 12MERHEB. Rodrigo.Op. Cit. p. 11.

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experimental13. É interessante observar que as músicas que

influenciaram os Mutantes e tantas outras bandas nacionais

eram lançadas no Brasil através de um catálogo carente e de

lentas mudanças, o mercado era caro e restrito. A troca de

informações também era muito distinta de hoje, onde os

sites possibilitam um grande número de informações, fotos e

músicas.

Do ponto de vista social e político, Marcos

Napolitano afirma que foram inventados novos espaços de

contestação e expressão, formando-se no final dos anos

sessenta uma rede alternativa de consumo, afastada das

grandes empresas, relacionada ao artesanato, imprensa

alternativa e ao cinema marginal14. Muitos destes circuitos

eram realizados pela população universitária que cresceu

significativamente entre os anos sessenta e setenta.

Napolitano afirma que uma das opções significativas para o

jovem contestador, naquele contexto, era o “desbunde”,

classificado pelo historiador como a busca pela vida “fora”

da sociedade estabelecida. Napolitano observa que a cultura

ligada ao lazer era relacionada à alienação por setores

críticos da juventude, sendo construída assim a visão de que 13Idem. p. 12. 14NAPOLITANO. Marcos. Utopia e Massificação 1950-1980. São Paulo: Contexto. 2001. pp. 82-83.

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a forma alternativa de vida seria realizada de forma

individual e egoísta, diferente do modo tradicional

esquerdista que buscava a libertação coletiva e a expansão

da mente através do debate político e intelectual, não através

de drogas, religiosidade ou misticismo15.

Neste contexto, como já foi mencionado

anteriormente, existiam centenas de artistas atuando no país,

detentores de influências comportamentais e estéticas

bastante heterogêneas. Como exemplos podem ser citados:

The Beatniks, Os Baobás, The Galaxies, The Beat Boys

(argentinos radicados no Brasil), Os Brazões, Liverpool,

Spectrum, Bango, Módulo 1000, Equipe Mercado, A Tribo,

A Barca do Sol, Som Nosso de Cada Dia, Serguei, Moto

Perpétuo, Som Imaginário, Terreno Baldio, Recordando o

Vale das Maçãs, Soma, Veludo, Vímana, Utopia, Brazilian

Octopus, Os Canibais, Blow Up, Os Leif's, The Bubbles

(posteriormente A Bolha), O Terço, Bixo de Seda, Karma,

Achados e Perdidos, Ave Sangria, Analfabitles, Assim

Assado, O Bando, Brazilian Bitles, Casa das Máquinas,

Impacto Cinco, Os Lobos, Made in Brazil, O Peso, Sound

Factory, Pão com Manteiga, Flaviola e o Bando do Sol, Lula

Côrtes, Marconi Notaro, Robertinho Recife, entre tantos 15Idem. p. 84.

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outros. Como não é possível dar conta de tamanha gama de

informações relacionadas a um universo repleto de artistas,

eventos culturais, festivais e discos, no próximo capítulo

será analisado o contexto que permeou a banda Spectrum, a

fim de trazer à tona uma parcela da conjuntura do rock

nacional, dentro do tema delimitado por esta pesquisa.

4.2) DA COSTA OESTE A SERRA FLUMINENSE

“Caminhando, caminhando

vou/ No Quiabo's vou chegar /

Lá encontro, lá encontro/ Em

verdade o meu lugar/ Gente

pura pra se amar/ Muita Paz,

vou meditar”

Spectrum16

Durante o contexto de guerra fria e ditadura militar,

acirrado pela competitividade e autoridade, muitos jovens

tornaram-se adeptos de um conjunto de pensamentos que

defendia a liberdade, criação e cooperação. Neste período,

16“Quiabo’s” da banda Spectrum. LP Geração Bendita. Todamérica, 1971. Composição de Toby e Fernando.

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foi formada na região serrana do Rio de Janeiro, mais

especificamente em Nova Friburgo, a banda Spectrum17.

Nova Friburgo, cidade localizada próxima à capital,

possuía um modesto parque industrial e natureza

exuberante. Não é à toa que o cantor e compositor Beto

Guedes, integrante do Clube da Esquina, compôs um de

seus sucessos inspirado pelas belezas e simplicidade de

Lumiar, distrito da cidade: “Pra passar a noite/ Caçando

sapo, contando caso/ De como deve ser Lumiar [...] Acordar

em Lumiar/ levantar e fazer café/ Só pra sair caçar e pescar/

E passar o dia/ Moendo cana, caçando a lua” 18.

A cidade, uma das mais frias da região, foi

colonizada por suíços e alemães. Conhecida também como a

cidade das flores, a região foi mais um dos lugares em que a

influência da contracultura chegou.

Com o sucesso de bandas como os Beatles e Rolling

Stones, começaram a surgir diversas bandas na região. Uma

destas foi formada pelos irmãos Fernando e Ramon19. O

interesse pela música despertado pela família logo levou a

atração pela sonoridade de apelo jovem que se fazia naquele

período. Desta forma os dois garotos, alunos do tradicional 17Não confundir com a banda australiana Spectrum, formada em 1969. 18Beto Guedes. LP A página do relâmpago elétrico. EMI. 1977. 19Fernando Gomes Correa Jr. e Ramon Gomes Correa.

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Colégio Anchieta, de influência jesuítica, frequentado pela

classe média e famílias mais abastadas da cidade,

conheceram outros alunos interessados em formar uma

banda: Caetano e Nando20. Desta forma a banda em um

primeiro momento teve Fernando na bateria, Ramon no

contrabaixo, Caetano e Nando nas guitarras. Os eventuais

ensaios eram realizados nas casas dos integrantes e

possuíam um repertório dominado pelos sucessos dos

Beatles e da Jovem Guarda. Os instrumentos eram um

problema, afinal eram nacionais, o que na época significava

péssima qualidade. Posteriormente os ensaios foram

transferidos para a escola e a banda recebeu um nome: 2000

Volts. Com o passar do tempo a banda foi compondo o

circuito de bailes realizado em clubes da região, assim como

passou a participar de eventos como festas de aniversário e

shows em colégios. Com o tempo a banda sofreu algumas

mudanças, o irmão de Caetano, o guitarrista Tião21 entrou

na banda e Nando saiu dando lugar a Serginho22. Ramon

também saiu da banda após um grande período fora de

atividade, devido a problemas de saúde. Com esta formação

a banda passou por um amadurecimento após os sucessivos 20José Luiz Caetano da Silva e Fernando José Teixeira de Almeida. 21Sebastião Luiz Caetano da Silva. 22Sérgio Nogueira Régly.

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ensaios e apresentações, aprimorando as técnicas

instrumentais e recebendo influências de outros sons, como

a dupla Simon e Garfunkel, o que trouxe maior

aperfeiçoamento a técnica vocal dos integrantes.

Com o crescente prestígio no circuito local,

relacionado aos covers bem realizados das músicas dos

Beatles, a banda mudou de nome, a fim de se livrar da

identidade adolescente. O nome escolhido foi Spectrum por

soar mais universal.

A banda então mudou a formação novamente com a

saída de Tião e o ingresso de Toby23, músico que tocava

contrabaixo em outra banda da cidade. A partir deste

momento a banda passou a tocar covers de bandas mais

pesadas como Led Zeppelin e Steppenwolf, porém não

abandonou as harmonizações vocais, incluindo em seu

repertório músicas de grupos como The Mama’s and the

Papa’s.

Imersos no ambiente da contracultura, sinalizado

pela música, veio o convite de Carlos Roberto Bini para

realizar a trilha sonora de um filme que ele, morador de uma

comunidade hippie da região, iria realizar. Assim a banda

deixou de lado o palco para se unir aquela empreitada, desta 23José Carlos Corrêa da Rocha.

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forma o amigo David24 foi convocado para integrar a banda

como guitarrista e ajudar nas composições.

A banda Spectrum realizou contatos com diversas

gravadoras que recusaram o projeto, até que uma pequena e

tradicional gravadora do Rio de Janeiro, a Todamérica

Música Ltda, aceitou participar. Assim, o LP Geração

Bendita, foi produzido em 1971. Este momento que deveria

ser a guinada da banda trouxe uma grande frustração aos

integrantes. Com a censura do filme, indiretamente ocorreu

um cerco à banda, afinal as músicas não estavam

censuradas, porém com esta “mancha”, a pequena banda do

interior foi ignorada pelas rádios apesar do trabalho de

divulgação e publicidade realizado na época. Este ponto

relacionado ao filme e à censura será apresentado no

próximo capítulo.

O disco Geração Bendita possui pouco menos de

trinta minutos, apresentando um repertório que inclui a

mistura de músicas em português e inglês, os temas estão

diretamente relacionados à contracultura em voga como paz,

amor, liberdade, natureza e o desprezo pela sociedade

tecnocrática, como pode ser observado na música “Pingo é

24David John Giecco.

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Letra” 25: “O homem tingiu vermelho a terra/ O branco, a

Paz, perdeu há muito a guerra/ Gente, eu vou me embora/

Vou sair por aí/ Vou procurar um mundo melhor”. Outra

música como “A paz, o amor e você”26 confirma a temática

de fuga que persiste ao longo do disco: “Pelo caminho eu

quero abraçar/ Liberdade/ Gente da vida que vive a cantar/

Liberdade/ Gente que esquece que a vida é má/ Liberdade/

Pelo caminho do Amor/ Liberdade/ Pelo caminho da Paz”.

A palavra liberdade dita sucessivas vezes demonstra a busca

pela libertação na sociedade brasileira, onde a repressão não

era apenas militar, mas também moral.

O objetivo do disco de acordo com a banda era

contestar a “sociedade decadente”, como diz o texto

presente na contracapa do disco:

Lá nas redondezas de Nova Friburgo qualquer um sabe informar onde fica "O Sítio de Carlos Kohler" onde um grupo que todos chamam de "Os Barbudos" rodava o primeiro filme hippie brasileiro:"Geração Bendita". Durante três meses, as duas casas do sítio - Quiabo's e Abobora's - foram transformados em galpões de um estúdio cinematográfico. Carlos Bini tinha deixado a profissão de advogado para ser ator e diretor de uma obra que iria contestar

25Spectrum. 1971. Op. Cit. Composição: Toby e Fernando. 26Idem.

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exatamente tudo aquilo que ele tinha abandonado. O Osservatore Della Domênica, órgão do Vaticano escreveu: "os hippies são na maioria, jovens que renegaram a sociedade em que viviam, precisamente por abominarem a violência sob qualquer forma". Os próprios participantes do filme, dentre eles Toby, Fernando, Caetano, Serginho e David, formaram um conjunto - Spectrum - fizeram as músicas do filme e gravaram este LP, resultado de uma pesquisa de um som livre. O filme versa sobre uma filosofia que para os autores do enredo simbolizam a "sociedade decadente"27.

Quando se observa o panorama global, é possível

perceber que a contracultura brasileira estava alguns anos

atrasada, os discos norte americanos e europeus que

possuíam tais temáticas haviam sido gravados

principalmente na década anterior, desta forma um

observador menos atento poderia considerar que “Geração

Bendita” possuía pitadas de nostalgia, já que o “verão do

amor” já havia perdido bastante força na década de setenta.

Referente à sonoridade do LP, as dissonâncias geradas pela

distorção davam um tom “sujo” à trilha sonora, o que num

primeiro momento parece destoar das mensagens de paz e

27Texto presente na contracapa do LP. Spectrum. 1971. Op. Cit.

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amor, presentes nos vocais harmoniosos. Neste ponto, é

importante destacar que sonoridade de um trabalho musical

tem tanta importância quanto às letras, porém quando

observamos as pesquisas dedicadas à história da música,

percebemos a ênfase na análise das letras, o que torna a

estética sonora um mero acessório que não acrescenta muito

à mensagem da música. O LP da banda Spectrum demonstra

o contrário, os riffs psicodélicos, por vezes caóticos se unem

às harmonias e temas de paz, não destoando da letra e sim

completando o sentido, já que a “a vida é má”, num mundo

que era palco da Guerra do Vietnã e onde a tortura era usada

cotidianamente durante o governo militar. Além destes

aspectos, outro fator que influenciava bastante a sonoridade

das pequenas bandas espalhadas pelo Brasil, fugindo até

mesmo do controle dos músicos, era a baixa qualidade dos

instrumentos acessíveis no país, até mesmo para os garotos

da classe média. Neste período os instrumentos de qualidade

tinham que ser trazidos do exterior. Como relatou Caetano

anos depois em uma entrevista28: "Não tínhamos recursos

técnicos, os instrumentos eram nacionais, de segunda,

terceira mão, mas havia uma coisa maior que nos movia,

28Show Bizz. ROSA. Fernando. Disponível no site: http://www.spectrum.mus.br . Acessado em 01/07/2013.

Page 27: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

que era o sentimento daquela geração". Além do precário

acesso a instrumentos, a falta de “know how” técnico para

se produzir músicas psicodélicas em estúdio atrapalhava

bastante. A desinformação quanto à gravação do rock no

Brasil ainda era grande, as dificuldades eram ainda maiores

quando as músicas apresentavam cunho experimental. Os

jovens influenciados por bandas como Led Zeppelin,

Beatles, Pink Floyd, entre outras, ficavam frustrados com os

técnicos de som e produtores da época, afinal estes não

conseguiam traduzir do campo técnico para o campo sonoro

os pedidos imaginativos dos integrantes das bandas. Estes

pedidos se tornavam ainda mais complicados devido à

quantidade reduzida de canais que os estúdios dispunham. O

sistema de canais é o que possibilita que os instrumentos

sejam gravados separadamente, este sistema passou a ser

amplamente utilizado em experimentos musicais através de

George Martin, produtor dos Beatles29. Martin mesmo com

as limitações da tecnologia da época conseguiu explorar

sonoridades nunca vistas até então. Frutos desta

inventividade podem ser observados principalmente nas

faixas dos discos “Revolver”, “Sgt Pepper’s” e “Abbey 29Para saber mais leia MARTIN. George. Paz, amor e Sgt. Pepper: os bastidores de Sgt. Pepper. Rio de Janeiro: Dumará. 1995.

Page 28: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

Road”. Porém como os jovens que formavam a banda

Spectrum estavam em uma realidade bastante diferente dos

Beatles e não possuíam experiência em estúdio, bons

equipamentos e uma grande gravadora a sua disposição,

Geração Bendita possui um som bastante peculiar para os

desavisados, acostumados com as gravações atuais.

Apesar de ignorado na época, hoje o LP é bastante

procurado por colecionadores e ocupa lugar privilegiado nas

“want lists”, os discos mais procurados no mundo. De

acordo com Hans Pokora, autor da coleção “Record

Collector Dreams”: “Ele é uma jóia da música

psicodélica”30, “o disco é um dos LPs mais procurados em

todo o mundo nesse gênero de música e é uma pepita para

qualquer Colecionador"31. Este tema foi tratado na matéria

do Jornal do Brasil que anunciou: “Disco gravado em 1971

por uma obscura banda de Friburgo vira cult na Europa,

onde colecionadores pagam até US$ 2 mil pelo LP” 32. De

fato o preço reflete a raridade do LP original. O disco foi

relançado em outubro de 2001 pelo selo alemão Shadoks

Music do site Psychedelic Music, frequentado por

30Jornal do Brasil. ESSINGER. Silvio. Um clássico Psicodélico. 14/02/2002. 31Show Bizz. Op. Cit. 32Jornal do Brasil. 14/02/2002. Op. Cit.

Page 29: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

colecionadores de todo o mundo. A tiragem limitada

realizada pelo selo, constituída por pouco mais de 400

discos foi totalmente vendida em questão de dias, hoje o

site33 estrangeiro vende a versão em CD por €15,00 mais

postagem, e anuncia: “Você vai adorar este disco se você

gostar de guitarras distorcidas e grandes canções com vocais

fortes. Todas as faixas são de autoria da banda. O registro

foi feito para um filme que foi o primeiro filme hippie da

América do Sul. A banda também atuou, foi uma produção

de orçamento muito baixo, poucos devem ter visto. Se você

quer um som pesado e psicodélico este é para você” 34. O

jornal Folha de São Paulo35 não foi tão cordial quanto ao

LP, de acordo com o periódico “Eram rocks toscos cantados

em português e inglês, brincando de psicodelia & paz &

amor & liberdade. Foi tudo riscado do mapa - filme,

gravadora, disco, grupo”. A matéria ainda menciona que a

versão pirata da edição alemã é comercializada em CD-R no

centro paulistano. Alguns anos depois a banda Spectrum

33 http://www.psychedelic-music.com 34 tradução livre: You´ll love this one if you´re into screeming psychguitar and great songs with strong vocals. All tracks are by the band. The record was made for a movie which was the first hippy film in South America. The band where the actors too. It was a very low budget production and I think not many have seen it. If you´re into extra heavy Psych this one is for you. 35 Folha de São Paulo. 01/08/2003.

Page 30: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

figurou novamente no jornal, recebendo o status de destaque

na matéria “Blogs colocam na rede raridades da música

brasileira”36.

Como pode ser observado, o disco Geração Bendita

hoje desperta interesse de quem procura por músicas

psicodélicas produzidas no período em que a contracultura

despontava no país, e o interesse pela banda não termina aí,

talvez o fato mais interessante a ser analisado envolvendo a

banda, seja a realização do filme, assim como toda a

truculência militar e repúdio moral por parte de moradores

da cidade. Reside nestes fatos narrados até aqui um ponto

interessante, embora estes acontecimentos estejam

relacionados a uma banda e seus integrantes, isto não

ocorreu de modo isolado. Centenas de bandas em solo

brasileiro viram a derrocada de seus lançamentos naquele

período. Hoje há o movimento de valorização e busca por

estas raridades, muitas vezes chamadas de “nuggets”

(pepitas, uma referência às raras pepitas de ouro). Há

também um segmento do mercado que busca relançar estes

discos raros ou lançar coletâneas que incluem diversas

bandas do período. Na internet há também blogs como o

36Folha de São Paulo. SUZUKI. Shin. Blogs colocam na rede raridades da música brasileira. 29 de maio de 2006.

Page 31: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

Brazilian Nuggets37 e o Lágrima Psicodélica38, dedicados à

música underground e psicodelismo produzido no Brasil,

onde é possível baixar raridades e ler resenhas de discos

“perdidos” na história da música brasileira.

4.3) É ISSO AÍ BICHO

Um a um, os jovens foram chegando aos

sítios Quiabo's e Abóbora's, em Friburgo, e

acabaram formando a primeira comunidade

"hippie" do Brasil. Cultivavam flores e

plantavam para colher. Viviam do

artesanato, vendido na cidade. Em 1970, os

quinze integrantes do grupo quiseram

mostrar sua experiência e pensaram em

fazer um filme, agora já copiado e pronto

para entrar em cartaz. Nome: "Geração

Bendita" ou" É Isso Aí, Bicho".39

Assim como o trecho do jornal acima, várias fontes

indicam esta credibilidade: a primeira comunidade hippie do

Brasil. O que de fato é um exagero, visto que as

comunidades se espalhavam pelo país desde a década de

37http://brnuggets.blogspot.com.br 38http://lagrimapsicodelica2.blogspot.com.br 39O Globo. Filme mostra a vida de hippies em Nova Friburgo. 8/3/1973

Page 32: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

sessenta, porém esta frase deixa transparecer o

estranhamento que as comunidades hippies ainda causavam

naquele período.

A ideia de realizar a película foi de Carl Kohler, o

dono do sítio Quiabo's. O hippie abriu em 1968 uma loja

onde vendia as flores que plantava no sítio, em seguida,

após fechar a loja, pois “achava que não se deviam vender

rosas; não eram produto para comércio”40, abriu uma

mercearia no interior, a onze quilômetros da cidade, onde

ficava o sítio. Com o tempo foram chegando amigos que

passaram a se instalar nas duas casas rústicas do sítio de

cinquenta e dois mil metros quadrados, cortado por um rio e

com uma cachoeira. Para sobreviverem, como era de praxe

entre os hippies, começaram a produzir artesanatos que

passaram a ser vendidos na feira de Nova Friburgo.

A comunidade foi aumentando e Carlos Bini, um dos

novos moradores, chegou com uma câmera e algumas

películas de 16 mm e logo passou a documentar o cotidiano

do sítio. Desta forma Kohler decidiu fazer um filme:

“resolvi fazer uma coisa nova [...] nessa época, estava

acontecendo Woodstock e nós formávamos a única

40Idem.

Page 33: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

comunidade hippie do país”41. Desta vez a comunidade é

lembrada como a única no país de então mais de 90 milhões

de habitantes, além disto, o fragmento demonstra outro fator

interessante, os ecos do festival de Woodstock que já havia

sido realizado alguns anos atrás e continuava influenciando

a geração.

De todos os integrantes da produção do filme,

apenas Carlos Bini possuía algum conhecimento na área do

cinema. Bini e Kohler começaram a escrever o roteiro com

o objetivo de apresentar ao público a possibilidade de se

viver de forma comunitária, longe da sociedade decadente.

Fato que está fortemente presente na trilha sonora produzida

pelos integrantes da banda Spectrum, que passaram a

frequentar e até mesmo morar no sítio, já com os cabelos

compridos e com ideias bastante diferentes da época do

Colégio Anchieta, quando a banda ainda se chamava 2000

Volts. O artesanato cessou e a venda foi fechada, todos os

esforços agora deveriam estar voltados para a produção do

filme. A empresa Meldy Filmes Ltda. foi contratada e Max

Mellinger da equipe foi convocado para ser o diretor de

fotografia, utilizando uma câmara de 35 mm sem zoom.

41Idem.

Page 34: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

O filme começou a ser rodado em 1970 com material

da Meldy Filmes, tendo como atores os próprios moradores

da comunidade hippie. Foram utilizadas como locações, o

sítio e as proximidades, tudo isto em clima de improvisação.

O filme idealizado pela dupla Bini e Kohler conta a história

de um advogado insatisfeito com a profissão enfadonha e

burocrática que resolve abandonar a vida urbana e se unir

aos hippies da cidade. De fato a cena interpretada pelo

próprio Carlos Bini (o protagonista do filme), em que o

advogado renuncia o trabalho gritando “tô louco, tô louco!”

ao som de vozes que ecoam dizendo “aleluia, aleluia” para

enfim abandonar a sociedade e viver em uma comunidade

hippie (o fenômeno “drop out”) traz questões abordadas por

Theodore Roszak em 1969:

muito mais do que receber atenção, a contracultura necessita urgentemente dela; pois não sei onde poderemos encontrar, salvo entre os jovens rebeldes e seus herdeiros das próximas gerações, a insatisfação radical e a inovação capazes de transformar essa nossa desnorteada civilização em algo que um ser humano possa identificar como seu habitat. Eles constituem a matriz em que está gestando um futuro alternativo, mas ainda excessivamente frágil. Admito que a alternativa se apresenta vestida com uma bizarra colcha de retalhos; suas

Page 35: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

vestes foram tomadas emprestadas de fontes variadas e exóticas [...] No entanto, quer me parecer que isso constitui tudo de que dispomos para opor-nos à consolidação final de um totalitarismo tecnocrático no qual nos vemos engenhosamente adaptados a uma existência de todo dissociada das coisas que sempre fizeram da vida uma aventura interessante. 42

A película traz ecos da realidade, já que Carlos Bini

havia abandonado a profissão de advogado para viver no

sítio Quiabo’s. No decorrer do filme, os hippies são

perseguidos por um insistente pastor que tenta a todo custo

converter o grupo. No ínterim destes acontecimentos o ex-

advogado mantém relacionamento com uma menina de

classe média, de origem familiar conservadora, o que traz

vários problemas ao romance do casal. Desta forma a

família, o Estado e a religião, tentam recuperar os hippies,

alça-los ao status quo43.

Durante o final das gravações surgiram os

problemas, decorrentes dos constantes estranhamentos que a

42ROSZAK. Theodore. Op. Cit. p. 8. 43BOUILLET. Rodrigo. Ah, mas que caretice! Texto escrito para a sessão do cineclube Terra Brasilis, realizada no MAM-RJ. Disponível em http://www.vivacine.org.br/site/textos/ver/?id=59 . Acessado em 18/01/2013.

Page 36: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

sociedade de Nova Friburgo tinha com aquele peculiar

grupo. Durante uma cena realizada no centro da cidade, o

delegado da cidade, Amil Nei Richard tomou então uma

atitude drástica em relação aos envolvidos na produção do

filme, como anunciou o jornal O Dia44 em letras garrafais:

“Artistas presos e cabeças raspadas”. De acordo com o

jornal “Os artistas, diretores e produtores foram todos presos

e desfigurados da personalidade de hippies autênticos [...]

todos os protagonistas do filme, depois de terem as

cabeleiras raspadas e a barba escanhoada, além de

despojados de suas roupas exóticas, foram postos em

liberdade”45. Durante a reclusão dos cerca de vinte hippies,

aconteceu um protesto coletivo contra as prisões, protesto

este que não cessou após os jovens receberem a liberdade,

devido à arbitrariedade na maneira como as ações foram

conduzidas, além do fato de que a saída dos ex-detentos

ocorreu sem os longos cabelos e barbas, símbolos da

rebeldia frente ao autoritarismo. A manifestação culminou

em uma confusão generalizada que foi resolvida pelos

policiais após “ameaças de depredação”, de acordo com a

matéria. Em mais uma demonstração de autoritarismo, antes

44O Dia. 27/11/1970. 45Idem.

Page 37: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

de serem soltos, todos os hippies que não moravam na

região foram ordenados pelo delegado a abandonar a cidade

em cinco dias.

Os integrantes da equipe que foram presos tentaram

argumentar que estavam abordando problemas existentes na

sociedade que não poderiam ser ignorados, porém nada

adiantou. No jornal o protesto por parte da equipe

encarcerada é visível, o delegado é chamado por eles de

quadrado e retrógrado. De acordo com Amil Nei Richard, a

motivação da ação aconteceu devido “a cidade haver-se

transformado, com a presença dos estranhos, pois temia que

muitos fossem responsáveis por aliciamento de menores de

outros locais”46. O delegado salientou que diante das

reclamações dos cidadãos friburguenses, mobilizou vários

policiais para prender os hippies e convocou barbeiros para

realizar o que chamou de “Operação Tosquia”, palavra

usada para designar o ato de cortar rente a lã de ovelhas.

Após este absurdo episódio, as filmagens foram

concluídas, porém para que o filme fosse lançado em 1971,

a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) que

controlava a produção artística no país, censurou diversas

46 Idem.

Page 38: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

cenas do filme47. Novas cenas tiveram que ser filmadas para

substituir as cenas proibidas, e o nome do filme foi alterado

para “É isso aí bicho”, nome que consta no catálogo da

cinemateca brasileira. Mesmo com estas mudanças o filme

que estreou apenas em 1972, ficou pouco tempo em cartaz e

teve as cópias recolhidas pela Polícia Federal48. Em

entrevista concedida a alunos de comunicação em Nova

Friburgo no ano de 2008, Carl Kohler afirmou ter sido preso

e obrigado a assinar uma confissão no DOPS, cujo conteúdo

permanece desconhecido até hoje49. Nesta ocasião ele e o

produtor Carlos Doady permaneceram na prisão por cerca

de quarenta dias.

O filme hoje circula livremente no youtube50,

capturado através de uma exibição do Canal Brasil. Parte

disto é fruto do trabalho de resgate da película realizado em

2002 por Carlos Doady e Hernani Heffner, curador de

47Certificado de Censura 71649 de 12/01/1973. 48MARTINS. Thamyres Dias Saldanha. É Isso Aí, Bicho: narrativas sobre o filme Geração Bendita no Jornal A Voz da Serra durante a ditadura militar. Trabalho apresentado no XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação em 2009. p. 3. 49Idem. p. 4. 50Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=blVJzhwf-jQ .Acessado em 01/07/2013

Page 39: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

documentação e pesquisa da Cinemateca do Museu de Arte

Moderna do Rio de Janeiro51.

O produtor Lucien Mellinger depositou os negativos

do filme hippie no final dos anos setenta na cinemateca.

Carlos Doady buscou reaver o filme décadas depois, porém

não sabia onde o rolo estava armazenado. Então após

vasculhar outros lugares procurou a cinemateca localizada

no Aterro do Flamengo. Hernani Heffner encontrou a

película tempos depois dentro de uma lata sem grandes

especificações, havia apenas a palavra “Geração”. Após

isto, foram anos de trabalho e dedicação para que o filme

fosse restaurado digitalmente, o áudio necessitou de

cuidados especiais para ser reparado52.

No dia 31 de maio de 2007 foi realizada uma sessão

única do Cine Clube Terra Brasilis na Cinemateca do

MAM, onde finalmente foi lançado o DVD do filme. O

DVD foi financiado com recursos dos próprios produtores e

buscou visibilidade internacional, possui a opção de sete

legendas, incluindo até mesmo a de idioma japonês.

Retornando aos acontecimentos da década de

setenta, é importante realizar um questionamento. E a mídia 51MARTINS. Op. Cit. p. 4. 52Hernani Heffner concedeu estas informações em depoimento realizado na Cinemateca do MAM no dia 12/07/2013.

Page 40: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

local, como reagiu a todos estes acontecimentos dignos de

manchetes, ainda mais se tratando de uma cidade do

interior? O jornal A Voz da Serra, o principal jornal da

cidade na época ignorou o assunto. Em novembro, o mês

das prisões, nada foi noticiado. O silêncio só foi cessado no

final de dezembro quando o jornalista Pedro Paulo Cúrio,

com o pseudônimo W. Robson deu nota dez para o diretor

Carlos Bini em sua coluna, que tinha como objetivo fazer

menção às pessoas que se destacaram naquele ano de 1970:

Para Carlos Bini, cineasta da jovem geração. Idealista em eterna ebulição. Com a inteligência que Deus lhe deu, soube aproveitar um caso de polícia na mais completa máquina publicitária em torno do seu filme Geração Bendita, que segundo o linguajar dos nossos filhos: Vai ser um barato53.

A abordagem foi bastante concisa, considerando que

a prisão dos hippies havia ocorrido há quase um mês. De

fato nada foi explicado e a alusão à “máquina publicitária”

possivelmente se refere ao fato de Carlos Bini estar

vociferando pela cidade acerca dos acontecimentos recentes,

53 Idem. p. 8.

Page 41: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

assim como ter dito aos jornais metropolitanos que iria

processar o delegado Amil Rechaid.

O caso só aparece novamente na Voz da Serra em 30

de janeiro do ano seguinte:

Que a rapaziada friburguense fique “baratinada” com a providencial vassourada de Amil Rechaid, em prol da moralização de nossos costumes, até certo ponto achamos graça da turma raivosa batendo com as perninhas, tão somente porque o Delegado não está ligado na dêles... – Afinal de contas, são jovens amadurecendo nesta intranqüila metamorfose de uma juventude que ainda pergunta pra onde vai. O que não perdoamos é a inconcebível revolta de certos pais tidos como “prafrentex”, que se consideram ofendidos com a aplaudida ação daquela autoridade, que com as suas “batidas-blitzes” tanto incomoda os seus adoráveis filhinhos. Êstes, minha gente, estes não tenha a menor dúvida, estão realmente com a cuca totalmente fundida, no linguajar maroto dessa gente nova e em ebulição. Como se pode reprovar, repudiar, combater um trabalho tão útil oportuno em prol da coletividade friburguense? Amyl vem procedendo uma ação digna de elogios gerais. Fiscaliza tudo. Aconselha. Repreende. Prende os salafrários. A então rendosa “indústria” dos mendigos turistas, já se sente profundamente abalada em sua estrutura de abuso aos corações

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moles de Friburgo. (...) A“gang” do tóxico explora outras bandas, sabendo que subir a serra com ele aqui é uma temeridade. (...) Aplaudimos, sem reservas, Amyl Rechaid (...) Merece êle dos pais sensatos o mais decidido apoio. Faz êle muito bem em mostrar o sol a nascer quadrado àqueles que tentam botar um “arco íris na moringa” de uma juventude tão bela como sói ser a nossa (...)54

O tom moralista e ambíguo do jornalista Pedro Paulo

Cúrio, o mesmo que no ano anterior havia elogiado os

hippies, indica o estereótipo da alienação por parte dos

“salafrários” da classe média. Diferente do repúdio aos

jovens, a atitude do delegado Rechaid é elogiada “sem

reservas”. Isto de certa forma demonstra o aspecto

autoritário daquela sociedade. O sociólogo José Murilo de

Carvalho chama isto de “função do cacete”, capaz de

dissuadir os que fogem do espírito nacional de cooperação e

patriotismo55. Esta perseguição não era corrente apenas na

cidade serrana, neste período era comum que os hippies

54Voz da serra, A. CÚRIO. Pedro Paulo. Na tonga da mironga do cabuletê! 30/01/1971. 55CARVALHO. José Murilo de. Cidadania a porrete. in Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte. Editora Itatiaia/INL. 1984. p 309.

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vissem “o sol nascer quadrado”, como indicou a revista

Veja de março de 1970 que anunciava: “hippies sem paz”:

a Polícia Federal ordenou a todos os Estados uma campanha rigorosa contra os jovens de colar no pescoço e cabelos compridos. Na semana passada, perto de duzentos deles foram presos na Feira de Arte de Ipanema, no Rio, e doze foram expulsos de sua minifeira na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, onde vendiam pinturas. Cento e vinte estão presos em Salvador e mais alguns foram para a cadeia no Recife, onde serão investigados um a um 56.

Fato parecido ocorreu em Búzios, aonde “soldados

chegaram de surpresa e perseguiram os hippies pelas ruas da

cidade. Muitos tentaram se esconder, mas todas elas foram

vasculhadas e os cabeludos foram levados para a cadeia de

Cabo Frio, em grandes caminhões”57.

Dos casos truculentos da década de setenta,

relacionados à contracultura, talvez um dos mais famosos

seja o que envolveu os integrantes do grupo “hipongo”, Os

Doces Bárbaros, cujos integrantes eram Gilberto Gil,

Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. No dia da

56Veja. 04/03/1970. Edição 76. p. 70. 57Intervalo. Presa a filha de Carlos Manga. n. 419. Janeiro de 1971.

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estreia das apresentações na cidade de Florianópolis, a

polícia invadiu os quartos do hotel onde os baianos

dormiam. Como resultado desta operação Gilberto Gil foi

condenado a tratamento psiquiátrico “como medida

necessária e de urgência” na cidade de Florianópolis. O

tratamento depois foi direcionado para um sanatório no Rio

de Janeiro58.

Em relação aos hippies de Nova Friburgo, o tom

moralista apresentado anteriormente no jornal A Voz da

Serra permaneceu uma semana depois de forma bem afinada

com o “Brasil grande” entoado pelos militares, “o país que

vai pra frente” do “ame-o ou deixe-o”. Este pequeno

fragmento diz muito sobre o silêncio reservado ao caso

envolvendo os hippies do sítio Quiabo’s:

À imprensa cabe o papel de evitar o sensacionalismo, encarando o problema em ângulos essenciais sobriamente. Vamos enaltecer a juventude produtiva, a que ama o país e seu desenvolvimento. Aquela que não é notícia, mas precisa ser 59.

Se o filme e os hippies não possuíam prestígio

naquela época, hoje passadas mais de quatro décadas desde 58ARAÚJO. Paulo César de. Op. Cit. p 138. 59Voz da serra, A. 06/02/1971.

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a realização da obra, a película parece ter recebido

reconhecimento, além da já referida exibição no MAM-RJ,

o filme fez parte da mostra “O rock no cinema brasileiro”,

realizada no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de

Janeiro em 2011. Como indica o Jornal do Brasil, a mostra

tinha como objetivo “traça a evolução do rock de forma

cronológica a partir da cinematografia brasileira”60,

“Geração Bendita” estava na programação junto a filmes

como “Juventude e Ternura”, estrelado por Wanderléa, e

“Bete Balanço”.

De fato o filme é um destaque na cinematografia

brasileira, não exatamente por seu valor técnico ou

linguagem cinematográfica, e sim por retratar de forma

quase documental aquela época onde a contracultura era

uma realidade em meio ao conservadorismo brasileiro. A

obra de Carlos Bini quanto à produção cinematográfica, não

é um “Hair” 61 tupiniquim, nem o longa-metragem nacional

pioneiro a abordar a temática da contracultura. O filme

60Jornal do Brasil. 29/09/2011. Disponível em: http://www.jb.com.br/programa/noticias/2011/09/29/o-rock-no-cinema-brasileiro-2/ . Acessado em 01/07/2013. 61Musical estadunidense dirigido por Milos Forman em 1979.

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“Meteorango Kid: o herói intergalático” 62, de 1969 já havia

abordado o assunto por outro viés.

Em “Geração Bendita”, os cortes entre as cenas

foram mal realizados, os atores eram amadores e a

dublagem deixa a desejar. Para completar, os diálogos são

pouco desenvolvidos durante os 86 minutos de projeção.

Entre as cenas do filme é mostrado o cotidiano do Sítio

Quiabo’s, onde os moradores cozinham, fumam maconha,

tocam instrumentos, tomam banhos coletivos de cachoeira e

até mesmo caçam e matam um porco em tom solene de

sacrifício. É importante frisar que na película há um

delegado que em certo ponto da história exige a captura de

todos hippies que “estiverem dando sopa”. Os hippies após

serem presos sem nenhum tipo de reação permanecem a

noite toda na cadeia. Após a soltura, o grupo resolve “se

mudar para bem longe da civilização, para ter como

companheira apenas a natureza”, e um hippie afirma

“iremos buscar um lugar para nossa filosofia, aqui está

dando azar, vamos em busca de paz”.

Como é possível observar, realidade e ficção se

confundem em “Geração Bendita”. Não é à toa que durante

62Meteorango Kid: o herói intergalático. Brasil. 1969. Diretor: André Luiz Oliveira.

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o trailer do filme o narrador diz: “delegado interrompe filme

hippie e ordena: corta! [...] artistas presos e cabeças

raspadas” e finaliza “você precisa saber, conhecer de

verdade o que é viver numa filosofia sem preconceitos e

sadia”. Desta forma, além das cenas onde o grupo jovem,

formado por homens e mulheres aparece nu na cachoeira,

violando os bons costumes, a clara menção ao delegado

Amyl Rechaid incomodou bastante os censores. O fato é

que com os sucessivos problemas que vão desde o

amadorismo do filme, assim como a repressão moral e

política, fizeram com que o filme fosse um fiasco. O sítio

Quiabo’s teve que ser colocado à venda para cobrir os

prejuízos e a banda Spectrum, já com o disco gravado não

voltou a se apresentar na cidade depois do duro baque.

Algum tempo depois, com uma nova formação a banda

tentou viver de música nas noites de Ipanema, porém a

empreitada não vingou. Por fim os integrantes da banda

voltaram a participar de uma nova produção de Carlos Bini:

“Guru das sete cidades”, gravado no Piauí, porém sem o

mesmo entusiasmo. Depois desta experiência a banda

Spectrum chegou ao fim e os integrantes se dispersaram.

Mais de trinta anos depois da gravação do LP, o

funcionário público aposentado José Luiz Caetano

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lembraria: ''Chorava de alegria e tristeza. Sentia um arrepio

ao ver a amplitude do trabalho que tínhamos feito. E tudo se

perdera no vento, jogado em alguma prateleira''63.

63Jornal do Brasil. Um clássico psicodélico. ESSINGER. Silvio. 14/02/2002.

Page 49: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resultado de uma entrevista concedida por

John Lennon em 1970, a revista Rolling Stone publicou as

famosas palavras: “O sonho acabou. E não estou falando

apenas que os Beatles chegaram ao fim, falo de toda a

geração. O sonho acabou e tive de encarar a chamada

realidade”64. Isto somado ao fatídico resultado do Festival

de Altamont, ocorrido em dezembro de 1969, onde durante

uma apresentação dos Rolling Stones um dos espectadores

que engrossava a multidão foi esfaqueado e morto, sinalizou

opiniões que indicavam o fim da contracultura como um

movimento capaz de trazer resultados significativos para as

questões existentes no início da década de setenta. O

movimento hippie parecia se deteriorar no final dos anos

sessenta, porém como foi exposto nestes capítulos, a

contracultura perdurou e alçou novos horizontes. Embora o

movimento enfrentasse uma “ressaca” e reformulação nos

EUA, no Brasil a comunidade formada no sítio Quiabos’s

em plena década de setenta se organizava e desenvolvia

“Geração Bendita”, enfrentando sinais de esgotamento

64WENNER. Jann S. (Org.). Lembranças de Lennon. São Paulo: Conrad. 2001.

Page 50: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

apenas alguns anos mais tarde. Nesta conjuntura a banda

Spectrum através das músicas e letras demonstrava certa

amargura diante das circunstâncias sociais e políticas

presenciadas no Brasil.

Apesar da dita derrocada do movimento hippie e das

críticas às condutas da contracultura, o fato é que os novos

comportamentos existentes nos anos sessenta foram

incorporados à sociedade, assim como levaram à políticas

reformistas que atualizaram alguns destes anseios. A música

relacionada à contracultura foi intensamente incorporada à

indústria cultural, atingindo não apenas os jovens rebeldes

identificados com os valores daquela geração, tornando-se

assim uma referência cultural dos novos tempos.

No que diz respeito à História, embora distante dos

enquadramentos de memória, a produção de estética

psicodélica contracultural realizada no Brasil continua

existindo no que o historiador Paulo César de Araújo

chamou de patrimônio afetivo. Em uma rápida busca na

internet é possível ter acesso a uma grande quantidade de

LPs raros e as mais diversas informações sobre estas bandas

que ainda são incógnitas, verdadeiras raridades.

Informações guardadas, compartilhadas e apreciadas por

gerações distintas: a que viveu as décadas de 1960-70 e a

Page 51: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

dos jovens de hoje que possuem admiração por aquele

período.

A contracultura brasileira possui diversas fases e

centenas de personagens, desta forma é um campo de

pesquisa que necessita de novas abordagens, a fim de trazer

à tona memórias subterrâneas. Além disto, a música é

apenas uma das faces da contracultura, há um grande

universo, permeado por artistas plásticos, cineastas,

artesãos, entre tantos outros indivíduos que através de

distintas formas se manifestaram neste período. O estudo

destas manifestações é capaz de gerar novas perspectivas

históricas.

De acordo com o Jornal do Brasil65, após a

dissolução da banda Spectrum, José Luiz Caetano casou e

passou a trabalhar como professor de Shiatsu e

posteriormente se tornou funcionário público. Caetano foi

quem tratou do processo de relançamento do LP pelo selo

alemão Psychedelic Music. Este trâmite envolveu buscas e

encontros com os outros músicos de “Geração

Bendita” ainda vivos: os guitarristas David John Giecco

(pecuarista na cidade de Bom Jardim, município vizinho de

65Jornal do Brasil.14/02/2002. Op. Cit.

Page 52: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

Nova Friburgo) e Sérgio Nogueira Régly (o Serginho,

desenhista na área de construção civil em Nova Friburgo), o

baterista Fernando Gomes Correa Jr. (um dos idealizadores

da banda, trabalha no Rio de Janeiro na área de

informática). O baixista José Carlos Corrêa da Rocha

(Toby) morreu na década de 90 em um acidente de carro.

Carl Reinhard Kohler - o antigo dono do sítio Quiabo’s e

um dos idealizadores do filme - faleceu aos 72 anos, após

ser vítima da tragédia que atingiu Nova Friburgo em janeiro

de 2011, causada pelas fortes chuvas66.

Apesar de não terem sido um fenômeno da indústria

cultural, o LP e o filme possuem grande valor como

documentos de uma época de conflitos e sonhos. Os

produtos possuem qualidade técnica amadora, mas estão

recheados de audácia. O que desagradou alguns dos

conservadores moradores da cidade, gerando represálias

através do aparato repressor vigente no governo militar. A

história da banda Spectrum é uma entre centenas que

merecem ser contadas a fim de se demonstrar

comportamentos e composições que vão além do que

66Portal do Ministério Público: www.mp.rj.gov.br/.../RELACAO_NOMINAL_01_06_2011.xls .Acessado em 18/01/2013

Page 53: Pinheiro. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil (VERSÃO DE DIVULGAÇÃO)

estamos acostumados. Novas possibilidades serão assim

reveladas.

Para compreender melhor o fenômeno da

contracultura, assim como suas inúmeras possibilidades e

representações, verifique a relação de filmes, LPs e livros

presentes nas páginas seguintes.