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Texto produzido na disciplina de Produção de Revista - 2015/1 - Famecos/PUCRS
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PIONEIRAS DA MEDICINA
Ha 120 anos, três jovens gaúchas enfrentaram preconceitos de uma area
tradicionalmente masculina e foram as primeiras mulheres a se tornarem
médicas no Brasil
Daniela Flor
Nos hospitais, nos consultórios e nas faculdades, mulheres e homens
em seus jalecos brancos exercem e aprendem lado a lado a ciência da saúde
humana. A profissão, que por anos esteve dominada pelo sexo masculino,
gradualmente ganhou um novo perfil. Neste ano, a presença feminina
alcança 43% do total de médicos no Brasil, de acordo com o Conselho
Federal de Medicina. Entre os recém-formados, elas já são maioria. No
entanto, até que o cenário se invertesse, uma trajetória de mais de 120 anos
de preconceitos e esforços foi traçada.
Foram três jovens gaúchas de personalidade forte que tiveram a
audácia de começar a mudar história como as pioneiras da medicina no país.
“É facultada a inscrição aos indivíduos do sexo feminino, para os quais
haverá nas aulas lugares separados.” Com essa frase, um decreto de 19 de
abril de 1879 permitiu o acesso das mulheres aos cursos das universidades
brasileiras. A partir daí, Rita Lobato (1866 – 1954), Ermelinda Lopes (1866 –
1952) e Antonieta Dias (1869 – 1920) enfrentaram momentos de críticas e
ovação, dificuldades e destaque, até serem consagradas, respectivamente,
como as três primeiras mulheres formadas médicas no Brasil.
Os caminhos trilhados pelas jovens foram semelhantes e por várias
vezes se cruzaram. Apesar de serem todas nascidas no Rio Grande do Sul,
foi preciso que se mudassem para o Rio de Janeiro para realizar os estudos
universitários, onde havia uma das poucas escolas de medicina do país. As
famílias de Rita e Antonieta contam que ambas estudaram juntas ainda na
escola quando crianças e, desde então, se instalara uma suposta rixa entre
os pais das moças para saber quem conquistaria primeiro o título de médica.
“Corre a história de que quando a Antonieta nasceu, Joaquim decidiu
que o filho homem seria advogado e a menina, a primeira médica do Brasil.
Não desistiu para que acontecesse o que ele queria”, conta Moema Dias, 57
anos, sobrinha neta da precursora. Joaquim Dias, era dono do jornal Correio
Mercantil, uma influente publicação da cidade de Pelotas, onde morava com
a esposa e seus dois filhos. Apesar de sua filha ser três anos mais nova do
que a colega, ele teria ameaçado os donos do colégio com difamações para
que atrasassem os estudos da rival, reprovando-a, e assim Antonieta poderia
ingressar antes na universidade. Porém, o pai de Rita, Francisco Lopes, a
transferiu para Porto Alegre para finalizar os estudos. A história está
registrada no livro A Primeiras Médica do Brasil, de Alberto Silva, da editora
Irmãos Pongetti.
A influência do pai de Antonieta acabou por se mostrar verdadeira. A
inscrição na faculdade poderia ser feita aos 18 anos, mas documentos da
época comprovam que a menina se matriculara ainda com 15. Joaquim
conseguiu uma autorização, assinada por um político amigo da família, para
que fosse permitida sua entrada antecipada.
Junto com Ermelinda, Rita e Antonieta iniciam os estudos na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1885. A disputa pelo diploma
entre as moças ainda não havia terminado. Dois anos após o ingresso no
curso, Rita se transferiu para a faculdade de Salvador, na Bahia, onde
defendeu sua tese no ano seguinte, se tornando oficialmente a pioneira. As
razões da mudança diferem: o livro de Alberto Silva retrata que o irmão da
médica haveria se envolvido no movimento estudantil, e o pai, que
acompanhava os filhos no Rio, decidira mudar por medo de que fossem
prejudicados na instituição. Por outro lado, os parentes de Antonieta afirmam
que a transferência teria o objetivo de acelerar os estudos de Rita para que
passasse na frente das colegas, pois o curso da Bahia tinha menor duração.
O ensino médico no Brasil existe desde 1808, quando surgiu a
Faculdade de Medicina da Bahia. Apenas 77 anos depois que uma mulher
alcançou espaço no curso. Até então, elas faziam o papel de benzedeiras,
parteiras e curandeiras, mas não podiam formalizar seus conhecimentos e
adquirir o status da profissão.
Por mais que tenham rompido a barreira de adentrar à universidade,
as três médicas precisaram manter certos padrões inerentes ao sexo: todas
defenderam suas teses no ramo da obstetrícia, o mais próximo de uma
atividade feminina na medicina. Ana Maria Colling, doutora em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, conta em suas pesquisas que,
além de sentarem em um lugar isolado na sala de aula, as jovens não tinham
o mesmo acesso que os colegas aos professores homens. Por isso,
precisavam participar de lições práticas junto às parteiras e assim se
especializaram na área. Hoje, a obstetrícia nem mesmo está entre as
especialidades com maior porcentagem feminina. Segundo dados de 2013 do
Conselho Regional de Medicina, elas dominam a dermatologia, área na qual
72,9% dos profissionais são mulheres, seguida da pediatria (69,6%) e da
genética médica (66,5%).
Mesmo com a presença feminina difundida, a cultura médica mantém
padrões relacionados ao gênero. A vice-presidente do Sindicato Médico do
Rio Grande do Sul, Maria Rita de Assis Brasil, retrata que as especialidades
focadas em procedimentos, como cirurgia, contam com maior número de
homens, enquanto mulheres predominam na área clínica, de consulta e
atendimento a pacientes. “É uma herança da evolução da mulher na área,
que vem de momentos em que nós só ocupávamos posições de cuidado,
como a enfermagem”, afirma.
Maria Rita conta que na época em que cursou a Universidade Federal
de Santa Maria, no início da década de 1980, as residências em
neurocirurgia do Rio Grande do Sul não aceitavam estudantes mulheres. “A
neurologia ainda é um dos poucos nichos em que é evidente o predomínio
masculino, principalmente em cirurgia. Foi um dos que mais tarde incluiu as
médicas”, explica. Para a vice-presidente, a inserção das mulheres na área é
fruto de um avanço gradual que está ligado às conquistas do próprio
movimento feminista nos anos 1960 e 1970: “Foi quando começamos a
deixar de ser exceção e passamos a conquistar espaço em massa”.
O momento em que viveram as pioneiras, porém, era de tensão entre
setores tradicionais da sociedade e defensores dos ideais de emancipação
da mulher, que começavam a ganhar força. Alguns jornais da época já
panfletavam sobre os direitos femininos, como O Echo das Damas, do Rio de
Janeiro. Na ocasião da formatura de Rita, em 1887, uma longa matéria foi
publicada em sua homenagem. Ela é descrita como “um exemplo para as
jovens brasileiras, que só pela instrução poderão aspirar à independência e a
dignidade pessoal”.
Mesmo assim, em 1889, ano em que se formaram Antonieta e
Ermelinda, houve uma peça em cartaz no Rio de Janeiro intitulada As
Doutoras, escrita por Joaquim José de França Junior. A montagem seria uma
comédia com a tentativa de ridicularizar as médicas brasileiras, segundo
registros da historiadora Elizabeth Rago. Mesmo no jornal dirigido pelo pai de
Antonieta, expressões preconceituosas apareceriam mascaradas em elogios:
“Antonieta Dias, como Rita Lobato e Ermelinda Lopes, provam que no Rio
Grande até o sexo fraco arca com todas as dificuldades, simplesmente pelo
desejo ardente de saber”, registra o Correio Mercantil de 1890.
Apesar de suas disputas, a personalidade forte e insistente era
compartilhada pelas médicas. Em carta ao marido, a mãe de Antonieta
expressa as ambições da filha adolescente que acompanhava no Rio de
Janeiro nos exames preparatórios para a faculdade: “Ela tem trabalhado
muito. O seu maior desejo é regressar à Província para mostrar que a mulher
também tem capacidade para estudar e tornar-se útil para a sua Pátria e para
a humanidade”, escreve.
O pioneirismo de Rita Lobato não se restringiu à medicina. Depois de
formada, ela retornou à Rio Pardo, sua cidade natal, para exercer a profissão.
Aos 66 anos, em 1932, se elegeu a primeira vereadora mulher do Estado,
apenas dois anos após a conquista do direito ao voto feminino no país.
Antonieta clinicou como obstetra pelo resto de vida, em seu consultório em
Pelotas e depois no Rio de Janeiro. Pouco se sabe sobre o futuro de
Ermelinda após a formatura.
A trajetória da vanguardista contava com poucos registros, que se
restringiam a documentos da Faculdade de Medicina da Bahia e histórias
passadas por gerações de sua família. A bibliotecária Nádia Raupp Meucci
cresceu ouvindo da mãe sobre os feitos da “prima Rita”, sua tia bisavó. Nos
anos 2000, Nádia foi a Salvador investigar a carreira da médica. Ela conta
que Rita era conhecida por ser obstinada. Seus pais eram proprietários de
minas de Caulim, que garantiam um alto padrão de vida. Por isso,
incentivaram que a jovem que exercesse a medicina por caridade na região.
“Os relatos são de que quando voltou, ela andava pela cidade numa mula,
com um peão, tratando e atendendo àqueles que precisavam de cuidados”,
descreve Nádia.
Diferentemente da bandeira de conquista do espaço defendida pelas
primeiras médicas, hoje as profissionais precisam lidar com outros
empecilhos para o exercício pleno de sua vocação. Maria Rita acredita que
um ponto crucial seja a segurança ao atender em postos de saúde e
emergências hospitalares. “Nos casos de violência por parte de pacientes e
acompanhantes que já tive conhecimento, as vítimas sempre foram
mulheres”, revela.
A mensagem com que Antonieta abriu a tese que lhe tornou médica há
mais de cem anos, traz os traços de força que ainda são exigidos daquelas
que decidem seguir os passos das três precursoras: “Vencemos a resistência
e o preconceito. Nos imitem o exemplo e compensem o sacrifício”.
A opressão persiste
Apesar de o número de mulheres na medicina estar em crescimento e
superar o de homens nas universidades, casos de preconceito e abuso ainda
precisam ser combatidos pelas estudantes que desejam seguir a carreira de
Rita, Antonieta e Ermelinda. Em novembro de 2014, alunas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) levaram à mídia casos de
estupros que ocorreram em festas promovidas por veteranos do curso.
Também foram denunciados situações de humilhação a que são submetidas
as calouras nos trotes de início do curso.
A estudante Luíza Ribeiro, integrante do coletivo feminista Geni da
FMUSP, conta que há sempre as brincadeiras ditas inofensivas, mas que
carregam cargas machistas e sexistas: “Eu, por exemplo, na primeira cirurgia
que presenciei tive de ouvir do cirurgião que cirurgia era “coisa para macho”;
eu era a única mulher dentre os cerca de 10 alunos ali presentes.”
Luíza afirma que a faculdade não se mostra preparada para lidar com
situações de denúncias e não apoia as estudantes afetadas. “Infelizmente, há
uma burocracia absurda. Há sindicâncias em que perguntas de má-fé são
dirigidas às vítimas, além de erros crassos em termos de Direito
Administrativo, dentre outros absurdos”, critica. A aluna acredita que em
comparação a outros cursos, a medicina não se mostra tão politizada e é
papel dos estudantes trazerem estas discussões à tona.
Após protestos e novas denúncias por parte dos estudantes, uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi aberta na Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) no final do ano para apurar as
violações de direitos humanos na instituição. Porém, os supostos agressores
ainda não receberam punições. Uma carta aberta foi divulgada por alunos e
professores para pedir a prorrogação da formatura de um dos estudantes
acusados de estupro até que seja concluído o processo administrativo ao
qual responde desde 2012. “Nenhuma instituição pode permitir o livro
exercício da medicina por parte de violadores de direitos humanos”, defende
o texto.