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Piratas e Outros contos - Visionvox · 2017. 12. 18. · Um garotinho ganhou uma dezena de doces, com os quais se empanturrou. Um velhinho chato, mas extremamente solitário, cheirou

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Piratas e Outros Contos

Gian Danton

Piratas e Outros contos

Gian Danton2013

Copyright © 2013, Gian Danton & Navras DigitalEdição e projeto gráfico:

Gustavo Gonçalves

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Produção:Editora Navras Digital

Rua Antero Mota, 115 – Cordeiro – Recife-PEwww.navras.com.br

Fone|fax: 81 3083-2363Copyright © 2013 Navras Digital

Todos os Direitos reservadosISBN: 1490417206

ISBN-13: 978-1490417202

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SobreaObra

Capitão Black é um dos piratas mais temidos dos sete mares. Sua tripulação eraconhecida por sua crueldade e pelos saques. Mas tudo muda quando encontram um

tesouro em um barco navegando sozinho pelo oceano. O tesouro do diabo resgata a magiae o terror das histórias de corsários. Além disso, o volume traz mais dois contos, O

mercador de olhos, uma homenagem ao cinema expressionista, e Manuscrito encontradoem uma garrafa, uma releitura do famoso conto de Edgar Alan Poe. São textos escritospelo premiado roteirista Gian Danton, que já tirou o sono de muitas pessoas em obras

como Manticore.

SÚMARIO

Sobre a Obra

Prefácio

O MERCADOR DE OLHOS

MANUSCRITO ENCONTRADO EM UMA GARRAFA

PIRARAS - O TESOURO DO DIABO

LEVIATÃ

A SENHORA DAS AGUAS

Boto

Sobre o Autor

Livros da Navras Digital

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Nas Redes Sociais

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Prefácio

Conhecido por escrever roteiros para quadrinhos, Gian Danton foi autorda graphic novel Manticore, tendo ganhado os prêmios Angelo Agostinie HQ Mix. Autor do texto do álbum Histórias de Guerra, pela editoraOpera Graphica, já participou de livros do gênero fantástico e é autor dediversos livros técnicos nas áreas de comunicação e metodologiacientífica. Hoje ele vem falar de saques e pilhagens com os temíveishomens do mar: os piratas. Com mistério e um bom toque sobrenatural,Gian nos conduz pelas ondas do medo e descreve tão bem as cenas, queé possível enxergar o rosto de pavor daqueles pobres (?) homens queacompanham seu capitão.

Mas não pense que o que você irá ler seja apenas uma história sobrepiratas. Gian insere reflexões ao longo do seu texto e o final mostra atéonde a ganância poderá nos levar.

Uma ótima história que poderia até tornar-se em umromance.

Aventure-se pelos sete mares ao lado destes homens maltrapilhos edurões, mas tenha cuidado e permaneça sempre alerta.

Ademir PascaleAtivista cultural, organizador e autor de diversos livros do gênero

fantástico

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OMERCADORDEOLHOS

Era um mercador de olhos. Andava pelos sonhos, percorrendo as praias do inconsciente ebarganhando olhos para que os cegos pudessem ver enquanto dormiam. A quem lhecedesse a visão, ele poderia dar qualquer coisa...

Um homem gordo trocou toda uma semana de visão por um voo. Percorreu a cidade porcima dos prédio, sobrevoou as montanhas, divertiu-se como jamais havia se divertido emtoda a sua vida.

Uma moça loira trocou os olhos por um ombro em que pudesse chorar.

Um garotinho ganhou uma dezena de doces, com os quais se empanturrou. Um velhinhochato, mas extremamente solitário, cheirou candidamente um flor e ofereceu-a à esposa, jámorta. Na verdade, ninguém se lembrava ao certo da permuta. Esqueciam as várias horasconversando com o mercador e barganhando o melhor preço, procurando um desejo maissecreto... Passavam um dia, uma semana, um mês, conforme o combinado, sonhando semimagens e acordavam jurando que havia sido uma noite sem sonhos.O que ninguém sabia, ou desconfiava, é que o mercador também era cego. Estavam tãoenvolvidos na dura tarefa de escolher um desejo não realizado que nem davam pela coisa.

Nenhuma única vez o mercador se aproveitou de sua posição para conseguir um olho parasi. Minto. Uma única vez ele o fez. Surrupiou as retinas de um rapaz sardento e seescondeu à sombra de uma árvore que crescia como musgo no telhado de uma casa.

Estava arfante, nervoso. Segurou as duas bolinhas entre as mãos e colocou-as uma a umanos buracos dos olhos.

O mercador fechou momentaneamente as pálpebras e abriu-as novamente. Pela primeiravez ele pode observar o mundo. Era tudo lindo e maravilhoso!Viu doces meninas cantando canções ao luar. Viu riachos límpidos, prateados, correndopara cima, em direção a uma cachoeira... Viu pássaros de quatro asas que oscilavam emseu vôo e faziam cuco. Achou que na terra dos sonhos tudo era beleza e perfeição.O mercador andou até encontrar uma fonte. Permaneceu um bom tempo absorto,observando os raios solares brilhando nas pequenas ondas em círculo. Chegou mais pertoe olhou para o fundo. Foi quando viu.

Apavorado, recuou, mas a curiosidade fez com que olhasse de novo. Era um monstro. Uma

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figura pavorosa, de olhos fundos, grandes marcas no rosto, cabelos espetados e um narizenorme, deformado.

O monstro era ele!

Pela primeira vez o mercador percebeu o quanto era feio e nojento. Sentiu-se mesquinho eladrão. O que lhe dera o direito de roubar os olhos que dariam a visão a um cego? Suaatitude era desprezível!

Aterrorizado, ele correu sem destino, gritando com todo o ar de seus pulmões earrancando os olhos de suas órbitas.

Desde então voltou à rotina: recebia os recém-chegados e lhes oferecia o seu desejo maisíntimo em troca dos olhos. Depois, religiosamente, guardava-os e esperava o próximocego, que se maravilharia, então, por uma noite ou mais... Entretanto, quando acordavam,os cegos se lembravam de muito pouco. Geralmente tudo que ficava era a imagem de umhomem extraordinariamente belo que lhes oferecia a chance de ver. A bondade daquelemercador ficava gravada para sempre em seus corações.

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MANUSCRITOENCONTRADOEMUMAGARRAFA

Não costumo visitar praias. Por isso é estranho que justamente eu tenha encontradoa garrafa. O mundo, entretanto, apresenta simetria estranha. Não acredito em destino.Creio, antes, que nossa vida se assemelha a um fractal. O destino é uma linha dividida emduas, que por sua vez se dividem cada uma em duas, até o infinito. Constantemente temosde decidir entre uma situação e outra e, quando fazemos isso, estamos reconstruindonosso destino. Se, naquela tarde eu não tivesse consentido em acompanhar minha irmã eseu marido à praia, talvez não tivesse encontrado a garrafa. E talvez ninguém descobertoseu conteúdo, uma narrativa estranha, como que escrita por um louco. Dela não mudeinada e reproduzo exatamente como a encontrei. Espero que alguém encontre este papel que tive a louca ideia de enfiar numa garrafae lançar ao mar. Talvez assim eu consiga superar a barreira que me separa do mundo.

Já conto um mês que estou aqui. Tenho andado de um lado para o outro e, emborapareça estar num continente, ou numa ilha enorme, jamais encontrei viva alma. Tambémnão encontrei nenhum vestígio humano. Como é possível que, em pleno século XX haja umlugar onde o homem nunca tenha colocado os pés?

Não. Isso não é possível A única explicação lógica que encontro é esta: estou emoutra dimensão. Por alguma razão, fui transportado a um lugar no qual a noção de espaçoé totalmente diversa daquela que conhecemos.

E, no entanto, os eventos que me trouxeram a este local foram tão estranhos quanto asituação em que atualmente me encontro.

Eu era jornalista de um famosos periódico e fui enviado para realizar uma reportagema respeito das ilha litorâneas do Estado de.... Íamos num barco pequeno, de motor depopa. Junto comigo ia o fotógrafo e um nativo da região, que manobrava o barco.

Percorremos várias ilhas, parando aqui e ali. Então, quase no fim da tarde,encostamos o barco em uma tribo indígena. Conversamos com alguns índios, tiramos fotose eles nos trataram muito bem. Entretanto, quando informamos que pretendíamos voltarainda naquele dia para o continente, eles pareceram preocupados.

O cacique apontou o céu nublado, ameaçando tempestade e nos aconselhou a nãopartir. “Além de tudo”, ele disse “essas não águas seguras para se viajar à noite...”.

Certamente ele não conhecia a pressa característica dos jornalistas: decidimos voltarimediatamente, antes que a tormenta se formasse.

Fomos pegos no meio do mar. O que começara com um simples chuvisco tornou-seuma borrasca infernal. A chuva assemelhava-se a milhares de agulhas perfurando nossapele. O mar agitava-se em ondas que alcançavam até três metros. Eu e o fotógrafo,

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instalados na proa para equilibrar o barco, mal conseguíamos nos segurar. O barco subiaaté a crista da onda e depois despencava com enorme estrondo.

De repente anoiteceu. A tempestade continuou ainda por algum tempo. No fim, já nãosabíamos mais onde estávamos e para onde o barco se dirigia. Devíamos estar em altomar quando a tormenta amainou. O marinheiro nos informou que nossa única chance eraencontrar uma ilha onde pudéssemos passar a noite.

Foi quando ouvimos ou pressentimos algo. Olhamos à volta e o que vimos nosalegrou a princípio: era um navio! Entretanto, à medida em que ele se aproximava meus sentimentos com relação a elemudava. Era, de fato, um navio. Mas não se parecia com nenhum navio que eu já haviavisto. Parecia Ter, pelo menos dois séculos de existência. Havia alguns grandes mastros,que sustentavam velas rasgadas. O Casco de Madeira parecia escurecido pelo tempo.

O monstro de madeira singrava calmamente as águas turbulentas... em nossadireção! Eu jurava ouvir vozes vindas do tombadilho. Uma voz mais grave pareciacomandar as manobras e outras respondiam às suas ordens. Mas é possível queestivesse delirando, pois quando o navio se aproximou, percebemos que não havia ninguéma bordo.

O marinheiro precisou ser hábil para desviar, pois a embarcação ameaçava nosdespedaçar com sua quilha.

Entretanto, a onda que se levantou à sua passagem quase fez com quesoçobrássemos. Preocupados em nos agarrar e impedir que o barco afundasse, perdemoso navio de vista. Quando demos por nós ele havia desaparecido... como um fantasma!

Navegamos ainda durante algum tempo, de nós. Como ele fizera a volta em tãopouco tempo era algo que nenhum de nós conseguia imaginar. Dessa vez omarinheiro não foi tão rápido. O navio atingiu nossa proa e fui jogado ao mar. meioperturbados pela estranha aparição. Súbito o navio ressurgiu a menos de 50 metros Nada mais sei. Devo ter desmaiado e, quando acordei, estava neste lugar. Desdeentão tenho andado à procura de pessoas, mas minha busca tem se revelado infrutífera.

Tudo de humano que tenho comigo são minhas roupas e esta garrafa na qual omarinheiro trouxera um pouco de aguardente com o qual nos esquentávamos durante atormenta. É essa garrafa que levará minha mensagem. Talvez ela consiga alcançar aquelaoutra dimensão da qual fui exilado. Que alguém a encontre, leia sua mensagem e acrediteem mim já é sinal de que estou vivo. E isso já me basta.

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PIRARAS-OTESOURODODIABO O capitão Black olhou à volta, meio entorpecido pela proximidade da morte e os gritosestridentes da multidão. Homens, mulheres, velhos e crianças amontavam-se em frente aopalanque, suas bocas desdentadas cuspindo imprecações. Alguém jogou um tomate, queexplodiu em seu rosto sujo, escorrendo pegajoso e ácido por seu único olho são.

Ao seu lado, enfileirados e humilhados, os integrantes de sua tripulação. Homens quehaviam aterrorizado os sete mares, homens que enfrentavam o perigo de peito aberto,brandindo suas espadas curvas, misturando o prazer do sangue e da batalha com aantecipação estridente dos estupros. Sim, sempre havia uma mulher a bordo e, após abatalha, sujos de suor e sangue alheios, fedorentos como porcos, eles não distinguiamentre bonitas e feias, jovens e velhas, e tentavam beijá-las com seu hálito de cachaça, ouroe carne putrefata.

Todos aqueles homens valentes, cuja simples menção de seus nomes deixava de joelhosoldados e mercenários, todos eles estavam lá, quietos, presos e humilhados comocordeiros à espera do abate.

O carrasco empurrou-o escada acima e o capitão soltou um grunhido, enquanto apopulação delirava.

Alguém disse alguma coisa, talvez a sentença, mas era impossível ouvi-lo em meio àalgazarra. O capitão ia ser morto. Era a grande atração do dia.

O carrasco tentou colocar sobre o seu rosto o capuz negro, mas o capitão recusou comum gesto brusco. Queria ver a morte de frente. Ao menos isso.

A corda grossa foi amarrada ao redor de seu pescoço e ajustada. A população silenciou,curiosa. Podia-se ouvir a respiração de cada um deles na praça imensa. Um dos piratascomeçou a cantar uma velha canção do mar, mas um soco o silenciou.

De repente o mundo pareceu desaparecer sob os pés do velho pirata e a corda fez seutrabalho. Ele sentiu a garganta estrangulando e seu único olho ganhou uma tonalidadevítrea. A multidão exultou pensando que ele estava morto, mas não estava. Ele ainda podialembrar e sua vida se resumia a isso: a lembranças. Especialmente daquele dia fatídico emque tudo começou.

O grande navio singrava rápido as águas escuras em meio ao nevoeiro baixo. O capitãoaspirava o ar como um cão de caça farejando sua presa enquanto anunciava:

- Estão se aproximando!

De fato, um navio logo surgiu algumas léguas à frente. Era um galeão grande e sonolento,arrastando-se lentamente pelo mar, as ondas açoitando seu casco.

- Preparar para abordar.

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Os ganchos foram preparados e usados. Quando os dois navios se encontraram, ospiratas pularam de um convés a outro em meio a gritos de guerra, seus dentes eramadagas e suas mãos pistolas prontas a atirar.

Mas não havia ninguém no convés. Nem vivo, nem morto.

- É um navio fantasma. – gemeu um dos piratas.

- Quieto! – irritou-se o capitão. Talvez esteja escondidos. Procurem nas cobertasinferiores.

Os homens se entreolharam em silêncio, incapazes de se mexer.

- Vamos, andem, bando de palermas!

O grito do capitão pareceu tirá-los do entorpecimento. Mesmo assim o medo corria emsuas veias. Foram andando lentamente pelo convés e descendo para os níveis inferioresdo navio.

- Isso tudo é muito estranho. É bruxaria. – sussurrou um dos marujos.

- Não há ninguém aqui, em todo o navio. Nem um sinal de luta, nada.

De fato, tudo estava em seus lugares, como se a tripulação tivesse desaparecido de ummomento a outro. Em alguns locais as redes em que algum dia marujos haviam dormidoainda balançavam suavemente com o jogo da nave. Em um dos gabinetes encontraramuma garrafa de vinho pela metade e um pedaço de queijo ainda mordido. Nenhum rato seaproximara do queijo. Aparentemente, não havia nem mesmo ratos no navio.

- Senhor, vamos embora, eu lhe imploro! – pediu um pirata.

O capitão enervou-se, suas veias vermelhas saltando na têmpora:

- Como o quê? Agora todos os meus homens viraram covardes?

- Senhor, um navio que não tem nem ratos... isso não é normal.

- É um navio encantado, senhor. – atalhou outro.

- Besteiras! – continuem procurando. O primeiro que tentar sair deste galeão leva um tiro!

Logo descobriram a cabine do capitão.

O velho Black abriu caminho com suas mãos poderosas e olhou à volta, farejando comoum cão perdigueiro.

- Ouro. – sentenciou ele.

De fato, havia um baú no centro do quarto, tão pesado que dificilmente poderia sercarregado por menos de três homens.

Black abaixou-se e acariciou a madeira, como um apaixonado acaricia uma donzela.

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- Ouro...

O capitão andou à volta do baú, em busca do fecho. Ao encontrá-lo, tentou forçá-lo, masnão sedia.

- Maldição!

Um golpe da espada resolveu o problema. A fechadura abriu-se como uma flor sangradade ferrugem.

- Senhor, não abra. – pediu um marujo, mas foi empurrado.

- Ora, saia daqui! Hoje não terá direito ao motim!

A tampa se abriu e os deixou cego. Era ouro, puro ouro, reluzindo à luz da lanterna.

Um dos bucaneiros gaguejou:

- Senhor, isso é ouro maldito...

Despertos por essa observação, todos os outros começaram a cochichar entre sim numamiríade de vozes amedrontadas:

- Este é o barco do diabo!

- É o ouro do demônio!

- Quem tocar no ouro será amaldiçoado!

O capitão se levantou, bufando, espuma saindo de sua boca:

- Ser for o ouro do diabo, ele ficará pobre. Vamos levar esse tesouro! Você e você!Peguem o baú!

Os marinheiros deram um passo para trás, o medo espelhado em seus rostos. O capitãoos empurrou com socos até que se aproximassem do baú.

- Peguem isso ou serão mortos agora mesmo!

Os dois foram incapazes de levar a peça de madeira repleta de ouro. O peso se juntavaao medo e foi necessário que mais dois os ajudassem.

O ouro foi levado para o brigue e por dois dias não aconteceu nada. No terceiro dia,aportaram em uma praia e um bote saiu em busca de água e frutas. Eram três homensfortes, valentes e de confiança. Nenhum deles voltou. Esperaram por horas, soltaram tirosde canhão e nada. Nenhuma resposta, nenhum sinal. Pareciam ter desaparecido.

O capitão selecionou mais três homens para seguirem em um bote até a ilha. Osescolhidos se negaram, mas foram descidos à força. Remaram lentamente até a praia,indecisos. Uma vez lá, tentaram não entrar na floresta, mas Jack atirou neles com ocanhão, obrigando-os a se internarem no meio da mata em busca dos desaparecidos.Esses também não voltaram. Esperaram, esperaram e esperaram. Nada. Haviam

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desaparecido junto com os outros.

O Capitão Black tentou escolher mais três para descerem no bote, mas mudou de ideiaquando percebeu que a tripulação se revoltaria.

- Vão morrer de sede, covardes! – sentenciou.

O navio levantou velas e seguiu viagem. A água era pouca e para comer só restaura osbiscoitos. O aguardente ia escasseando dia a dia. A ração fora aumentada para evitar ummotim.

Por três dias navegaram sem encontrar onde aportar. Como piratas, sabiam que nãopodiam navegar perto da costa sem o risco de serem abordados por navios da coroaespanhola.

A esperança era encontrar um navio mercante que pudesse ser assaltado e que estivesserepleto de água e viveres. Mas tudo que acharam foi uma tempestade monstruosa que osaçoitou por dias e dias a fio, sem um único momento de descanso. Parecia que o infernose abrira para eles e o diabo brincava com o navio antes de afundá-lo. E muitos homens selembraram do tesouro do navio perdido. O capitão Black roubara o tesouro do diabo eagora todos pagavam por isso.

Uma semana depois o sol apareceu. O mar ficou calmo e um marujo, no alto da torreavistou uma ilha. Achavam que estavam salvos e isso foi o mais terrível. Não era uma ilha.Era uma baía, repleta de navios de guerra.

Exaustos, os bucaneiros tentaram em vão içar velas e escapar, mas já era tarde demais.Os navios inimigos eram muitos e já vomitavam balas de ferros sobre o convés.

- Lutem, lutem, desgraçados! – gritava o Capitão, quando foram abordados.

Mas a maioria se jogou de joelhos, implorando perdão. Os poucos que resistiram tiverammorte rápida, seu sangue manchando as tábuas do convés.

O capitão deu um último engasgo e fechou os olhos. Até as lembranças iam sedesvanecendo se transformando em brumas escuras. “De fato”, pensou o capitão, pelaprimeira e última vez: “Eu não devia ter mexido naquele tesouro”. O diabo tinha cobra seupreço e era muito alto.

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LEVIATÃ Durante longo tempo nossa vila foi assolada por uma criatura desconhecida, mas hediondae maligna. Pessoas de bem eram encontradas à beira da praia, seus corpos estraçalhadose maculados. Não havia dúvida: o mal os tocara, deixando neles sua inevitável nódoa.

Com o tempo o medo tomou conta do povoado. Era mister destruir a fera antes terrornos destruísse a todos. Tratava-se, evidentemente, de um monstro do mar. Assim, decidiu-se pela organização de uma equipe que daria caça ao bicho. De todos, Américo era o maisentusiasmado. Não admira, portanto que coubesse a ele a chefia da embarcação.

Sim, havia um velho navio que serviria para o combate. Estranho. Lembro-me quequando entrei nele pela primeira vez, tive a impressão de que penetrava no próprio covil dodemônio. Talvez, pensei, essa impressão fosse causada pelo aspecto da embarcação. E,de fato, a madeira estava velha e rangia como um gigante resmuguento. O convés estavarepleto de limo e as velas pareciam ter a intenção de se esfarraparem ao primeiro vento.Uma assustadora carranca adornava a proa.

Embarcamos. Fomos nos afastando na costa na direção do mar, esperando encontrara fera. Vigiávamos em turnos e aqueles que eram dispensados podiam se recolher aosrudes quartos improvisados sob o convés. Fiquei de sentinela um longo tempo e fuisubstituído por Américo, que colocou a mão sobre meu obro e disse:

- Vá descansar. Deixe que cuidamos da fera.

Desci e deitei, mas não conseguia dormir. Em certo instante em que fechei os olhos,parecia ouvir arrastar de correntes e gemidos, misturados ao sussurro do mar. Dei-meconta de que já começava a dormir. Estava naquele estado em que nem dormimos, nemestamos acordados... e uma estranha premonição tomava conta de mim... Como se algoestivesse errado.

Então houve como que um estrondo. O navio balançou, rangendo sua estrutura. Subiao convés, temendo que o costado não resistisse. Uma tempestade tremenda se......Ondas de seis metros lambiam o convés. Um vento forte fazia com que o naviobalançasse como um velho bêbado.

- Onde está? Onde está o monstro? – perguntei.

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- Não adivinha? – respondeu Américo, levantando o rosto para mim.

Só então pude ver seus olhos que brilhavam como chamas, em assombrosocontraste com o resto da face, dominada por trevas.

Procurei os outros, em socorro, mas estavam todos no convés, olhando-me domesmo jeito. Embora o navio balançasse muito, permaneciam simplesmente em pé, osbraços ao longo do corpo, os olhos fixos em mim.

- Não adivinha onde está o mal? – trovejou Américo.

- Não advinha onde está o mal? – repetiram os outros.

Corri deles, descendo as escadas, atrapalhado pela fúria dos elementos, que sacudiaimplacavelmente o navio. Percorri todos os lugares, procurando um lugar onde meesconder. Assustadora compreensão me dominava. Eram eles o monstro. Eles, o leviatã.

O mal, encarnado neles, dera cabo de todos os homens bons da vila. Só restara eu.Eles me trouxeram, então, para o navio, a fim de me fazer sucumbir depois de prolongadastorturas.

Estou aqui, agora, trancado nesse cubículo apertado. Ratos e baratas passeiam pelomeu corpo, esperando pelo momento em que estarei fraco demais para resistir ao seuapetite devorador. Lá de cima me vem o som de correntes e o sussurro dos mortos. Pensoem Américo, em esgar de ódio, ansiando pela morte de seu melhor amigo.

Passos. Estão se aproximando. Logo vão me encontrar. Se não o fizerem, morrereide sede, de fome, ou devorado pelos ratos.

Dentro em breve... eu verei a face do Leviatã...

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ASENHORADASAGUAS

Américo tragou profundamente seu cigarro e deixou que a fumaça saísse lentamente deseu nariz.

- Também tenho um história. - disse.

Os outros olharam para ele, a luz da fogueira bruxuleando em seus rostos. Lá longe, noseio da floresta, algo se mexeu, quebrando um ou dois galhos.

- Sempre fui guia. Embora eu não tenha nascido neste lugar, logo que vim para cá, percebique a floresta não era de todo impenetrável, e nem mesmo guardava mistérios. Jamais tivedificuldades, jamais me perdi. Exceto por uma vez. Eu estava guiando um grupo deempresários decididos a passar um final de semana embrenhados no meio da mata. Eramuns frouxos. Bastaram algumas horas para que ficassem prostrados no chão, bebendo docantil como se toda água do mundo fosse acabar na próxima hora. Eu não saberia dizerporque, mas eu os deixei lá, parados e resolvi reconhecer o terreno. Eu não conheciacompletamente aquela região, mas não sentia medo de me perder, pois isso nunca haviaacontecido antes. Depois de 15 minutos comecei a ouvir passos atrás de mim. Achei queum dos empresários havia me seguido e dei um grito. Ninguém respondeu. Nem dessa nemdas outras vezes. Os passos, no entanto, continuavam atrás de mim, e só paravam quandoeu parava. À certa altura tentei voltar e percebi, envergonhado, que estava perdido!

Andei pela floresta tentando encontrar um rio, ou algo que pudesse me servir de ponto dereferência. Durante todo esse período, dava gritos altíssimos, mas ninguém, ninguémrespondia. Foi chegando a noite e pela primeira vez eu me apavorei. Eu não havia trazidofósforos, ou comida, e não tinha muito mais que uma faca. Eu não conseguia imaginar oque havia me levado a sair assim, completamente desprovido de tudo. Mas o que eu nãoconseguia entender era como, como eu havia me perdido! Continuei andando até queminhas pernas já não aguentassem mais.

Já era muito mais de meia-noite quando avistei uma claridade. Talvez fosse uma casa, ouuma fogueira. As pernas, cansadas, custavam a andar. De longe eu parecia ouvir umcanto, um murmúrio de riacho em voz de mulher...

O caminho levava a uma clareira, onde aflorava um olho d’água. Devia medir aproximadamente 10 metros de cumprimento e não parecia ser mais fundo que dois

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metros.

Exatamente no meio flutuava uma mulher! Meu Deus, como ela havia ido parar ali, no meioda mata? E era muito, muito bonita. Trazia sobre o corpo um longo vestido branco, queesvoaçava com o vento. Era linda! Provavelmente a coisa mais linda que meus olhos játiveram oportunidade de vislumbrar

Tudo aquilo era muito estranho, aquela mulher ali, no meio do olho d’água, brilhandocomo se tivesse luz própria. E, o mais estranho, embora não mexesse os lábios, cantava.Eu podia ouvir perfeitamente a canção que parecia não vir de lugar algum. Era uma músicadoce e inebriante como o vinho. Não sei dizer o que ela cantava, mas sei que era umavelha música, perdida no tempo. Falava de riquezas e glórias. Prometia um amor eterno einesgotável. Prometia a beijo de seus lábios ao homem corajoso o bastante para desposá-la.

Sua voz era como harpas, como violinos, como flautas tocando doces cantigas deenamorados. Contava a história de uma princesa enfeitiçada para guardar as riquezas dopai. Falava de um índio que morrera em busca de sua amada.

Naquele momento eu pensava que não poderia haver destino mais sublime: morrer poramor. Um único toque daqueles lábios valiam uma vida. E, uma vez morto, minha alma seuniria à dela, no fundo do rio.

A voz continuava, flutuando no ar como aroma de flores.

Eu fui me aproximando até que seus pés tocassem a água. Meus olhos mantinham-sefixos na beleza de longos cabelos negros. Ela cantava ainda e, sem mover os lábios,estendeu os braços, chamando-me.

Eu continuou. Dei um passo à frente, afundando até o joelho.

A mulher renovou as promessas, em melodias irresistíveis.

Outro passo. Agora a água já chegava quase à cintura.

E canção continuava... noites de amor, guerras vencidas e perdidas, princesassolitárias, em choro eterno como uma prisão...

Outro passo. Agora a água até a cintura.

Faria tudo por ela. Até mesmo morrer.

A mulher cantava e seu canto era como murmúrio dos riachos após a chuva... suave ehipnotizante. Os braços se estendiam para o mim, chamando-me para uma felicidadeeterna.

Outro passo. Foi quando ouvi uma voz atrás de mim. Não conseguia distinguir aspalavras, mas adivinhava que era alguém me chamando.

A mulher cerrou as sobrancelhas, contrariada, e seu canto se tornou desafinado por

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um único segundo.

Voltaram a me chamar e olhei por cima do ombro. Havia alguém na margem... mas aimagem parecia difusa. A canção em minha cabeça... chamando... prometendo amores...uma sensual promessa de coito entre águas.

- Américo. – chamaram.

Eu virei a cabeça e olhei, tentando descobrir o que via. Eram homens, os empresários dosquais eu havia me perdido. De alguma maneira eles me encontraram. Foi como seacordasse de um sonho. Ouvi um urro. Olhei para o lago e vislumbrei, no lugar da mulher,uma imensa cobra serpenteando sobre a água. A víbora olhou para mim com seus olhosde fogo e mergulhou na água com grande estrondo.

Nunca mais a vi. E nunca, jamais encontrei algo como aquilo.

Em certas noite acordo pensando ouvir o seu canto melodioso e irresistível. Mas não hánada. Só o silêncio das noites solitárias...

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Boto

Foram dar numa grande casa de madeira sobre um trapiche. era noite e os lampiõesiluminavam parcamente o local. Sem dúvida teriam contato com seres humanos normais e,diante dos últimos acontecimentos, Paulo tinha suas dúvidas se poderia incluir-se entreeles. Uma questão comichava em sua cabeça: o curupira se apresentaria assim, com seuscabelos de fogo, com seus pés para trás? Será que a gente do interior estava tãoacostumada a figuras surreais que nem repararia nele? Pensando nisso, Paulo olhou parao lado e tomou um susto: viu um homem com roupas normais e até mesmo sapatos! Claroestá que a figura não era exatamente de um gentlman. A barba estava por fazer e acamisa listrada apresentava um furo ou outro na gola e no peito. Entretanto, era sempremuito diverso do Curupira que estivera acostumado a ver.

- O que foi? Nunca viu um homem bem vestido? - disse o Curupira, a guiza deexplicação. E riu menos do que faria normalmente. Talvez porque já estivessem bempróximos da casa.

Ao se aproximarem mais, o Elemental deu um grito. A mesma mistura de U e O que ovira utilizando quando se encontraram com o velho contador de histórias. Alguém assomouem uma das muitas janelas da casa e emitiu um grito idêntico.

- Somos de paz. - garantiu o Curupira, aproximando-se.

- Então entrem que hoje tem festa! - responderam.

Lá dentro uma mulher gorda, de seios fartos, os esperava.

- Querem pinga?

O curupira aceitou:

- E fumo.

Paulo pensou em recusar, mas vendo que não havia qualquer outra para beber,acabou aceitando.

- Meu nome é Raimunda. Como é o seu, maninho?

Paulo titubeou. Não sabia se, dizendo seu nome, satisfaria a curiosidade da matrona.

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E se ela perguntasse quem era, de onde vinha? O que estava fazendo ali?

- Paulo. - disse. Meu nome é Paulo.

Ao contrário dos temores do jornalista, ela se deu por satisfeita. Virou-se para oCurupira e repetiu a pergunta.

- E você, qual é o seu nome?

- Que nome você me dá?

- Ah, maninho, aqui a gente não dá nada. Até a pinga eu tenho mesmo é de vender.Quer carne assada?

Paulo aceitou e estendeu-lhe algumas notas, o que muito a alegrou. Tornou-se maisfalante. Disse que esperavam chegar mais gente para começar a música.

Enquanto isso, foram trocando prosa. Alguém comentou o avançado da hora e,virando-se para Paulo, advertiu-o:

- Isso é hora de Curupira, de Mãe do Mato, de Matinta Pereira... tu ouviu algumassovio no meio da mata?

- Matinta Pereira é bicho perigoso. - atalhou outro. Olha, gente velha vira, vira MatintaPereira mesmo. Juro que vira. Principalmente com 70, 80 anos. E sabe por quê? Porquetem gente que é acostumado a ler livros de São Cipriano. Então a pessoa, às vezes, ficacom vontade de virar. Quero! Quero! Quero! E acaba virando Matinta Pereira.

- Quando é meia noite, a pessoa vira pássaro e bate a asa. Voa igualzinho umpássaro e dá assovios fortes. Depois grita: “Matinta Pereira!”. Quem não conhece, morrede medo. Pra saber quem é que vira Matinta pereira, é só dizer: “Passa de manhã e vembuscar o fumo”. Dito e feito. No dia seguinte, é só aparecer com o fumo que a pessoa serevela. Às vezes a pessoa vira porco. Lá perto de minha casa tinha um homem que viravaporco...

- E boto? É em noite como esta que aparece boto. - lembrou outro. Ele vem vestidode branco, todo muito bonito, muito elegante. Até o sapato é branco. E ele é sempre muitobonito, porque toda moça se apaixona por ele.

- E usa também um chapéu branco na cabeça, que nunca tira, que é para não mostraro buraco no alto da cabeça... - explicou Dona Raimunda.

(entram outras histórias de boto e de outros seres)

Deram-se conta de que a casa já estava cheia de gente que, ou se juntava ao grandegrupo, ou formaa outros pequenos grupos. Dona Raimunda, sabedora de que o exercíciofísico estimula a sede e, portanto, a venda de bebidas - e, além disso, preocupada que ademora da música pudesse espantar os fregueses - colocou os músicos para tocar.

Bastou isso para que os casais surgissem de todos os cantos e envolvessem o salão

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com seus requebros.

Foi quando aconteceu. Ela surgiu do outro lado do salão e começou a andar em suadireção como se vivesse num outro mundo, mais lento. Ela passava pelos casais comoquem desvia dos pingos da chuva. Vinha descalça e trazia um vestido branco, quetremulava com seu passo leve. A pele era de um moreno jambo, os lábios grossos e osolhos grandes e negros. Olhos juvenis e sorridentes, destacados pelos cílios longos. Oscabelos eram lisos, negros como a noite e curtos, mas não podia vê-los todos, pois umchapéu de palha encobria todo o alto da cabeça.

Paulo não conseguia nem mesmo piscar. Era como se o salão, os lampiões, a músicae os casais pertencessem a um outro mundo.

Ela estancou à sua frente e estendeu-lhe a mão.

- Dança?

Não, Rodrigo não dançava. Mas pareceu esquecer-se disso. Segurou sua mão,envolveu-a no braço livre e puxou-a junto a si - e nisso sentiu o calor de seus seios contraseu peito.

Rodrigo, que nunca dançara. de repente aprendeu. Seus pés deslizavam pelo salãoem harmonia com os dela. Sendo muito mais baixa que ele, a moça, de quando em quandolevantava a cabeça e esfregava o seu nariz no dele, gemendo baixinho.

Rodrigo não saberia dizer quanto tempo dançaram, pois se esquecera do tempo.Esquecera igualmente do Curupira, da gente que o rodeava, e até mesmo de quem era.

Nem mesmo quando ela parou e cochichou em seu ouvido ele pareceu acordar.Simplesmente segui-a, como se a acompanhasse pelo olfato. A moça tinha o aroma do rio.Tinha o cheiro dos barcos, que cortavam as águas sob o impulso dos remos; tinha o cheirodas folhas à deriva sobre as águas; o cheiro das escamas dos peixes brilhando ao sol...não, não saberia definir o seu cheiro, embora o soubesse agradável.

A moça parou e olhou para ele. Embora estivesse relativamente escuro, a luz da luacheia refletia em seus olhos, fazendo-os brilhar.

- Aqui deve estar bom. - disse e beijou-o.

Seu beijo tinha gosto de jambo. A moça explorava com língua e trabalhava em duelocom a dele.

Ela beijou-lhe todo o rosto e pescoço enquanto lhe retirava a camisa.

Rodrigo, que era virgem, não saberia descrever as sensações que experimentava.Talvez dissesse que seu cabelo - que ele envolvia com os dedos - eram como penas de umpássaro e sua pele macia como os pêlos de uma onça. Talvez comparasse os movimentosda moça sobre ele com o vagar da água na enchente. E seus gemidos com o canto doboto.

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Seus seios, agora descobertos, ofereciam-se aos toques do rapaz. Eram morenos etinham os bicos escuros. Rodrigo envolvia-os com as mãos. Se fosse mais experiente, diriaque eram seios de moça nova, ainda não maculados pelo tempo. Mas, como não tinha como que comparar, é possível que só os tenha achado firmes e deliciosos de se acariciar ebeijar.

O fato é que rolaram pelo chão e trocaram outros beijos, ouvindo o murmurar do rio. Amoça, como sempre, falava pouco, mas sorria muito e junto com os lábios sorriam os olhosde pupilas muito grandes. Entretanto, jamais se descuidava do chapéu, que tratava semprede trazer bem fincado no alto da cabeça.

Depois de algum tempo deitaram-se lado a lado, exaustos e satisfeitos. Só entãoRodrigo despertou para o fato de estarem deitados no chão e que havia folhas e galhossecos sob seu corpo nu. Tentou esquecer isso e estendeu a mão para acariciar-lhe orosto.

Foi quando ouviu passos e gritos. Levantou a cabeça e viu luzes. Alguém, no meio dapequena multidão que avançava na direção deles gritou alto:

- Boto!

A moça, ouvindo, levantou-se num instante e saiu correndo na direção do rio.Conforme andava sua pele ia se transformando, tornando-se lisa. No trote, acaboudeixando cair o chapéu - o que revelou um buraco no alto de sua cabeça. Também a bocae o nariz foram se estreitando num bico. Quando, chegando à margem, mergulhou no rio,já era um peixe. Um peixe sem escamas.

- Boto! Boto!

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SobreoAutor

Gian Danton (pseudônimo do professor universitário Ivan CarloAndrade de Oliveira) é roteirista de quadrinhos desde 1989, tendoganhado diversos prêmios na área. É autor de livros técnicos e sobrequadrinhos, como Grafipar, a editora que saiu do eixo (Kalaco). Temparticipado de diversas antologias, como Rumo à fantasia (Devir), Livrodo Medo (Orago) e Erótica Steampunk (Ornitorrinco). Ainda este anopublicará seu primeiro romance, a fantasia histórica Galeão, pela editora9Bravos. Mantém o blog ivancarlo.blogspot.com.