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¹ Acadêmica do curso de Psicologia na Universidade de Santa Cruz do Sul [email protected]. ² Acadêmica do curso de Psicologia na Universidade de Santa Cruz do Sul [email protected] PIXAÇÕES EM SANTA CRUZ DO SUL: DISCURSOS EM SPRAY Amanda Cappellari Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)¹ Yanaê Meinhardt - Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)² APROXIMAÇÕES COM A TEMÁTICA As pixações nos muros das cidades são constantemente encontradas e já fazem parte da arqueologia urbana, do habitat humano e da identidade de cada município. Antes de qualquer aprofundamento ou explanação, esclarecemos nossa escolha ao usar a palavra pixação com ‘x’, amparadas em: A grafia oficial da palavra em português é "pichação". No entanto, seus praticantes e as pessoas associadas à arte de rua em geral a empregam com x, em vez de ch. Adoto aqui essa grafia, e também pixador, pois estou me referindo a essa prática específica, e não a outras formas de inscrições gráficas em paredes (CALDEIRA, 2012). Ainda que utilizem as mesmas “telas” – muros e paredes do espaço urbano -, e os mesmos materiais tintas sprays -, o grafite e a pixação são práticas diferentes. Conforme nos aponta Gitahy (1999, p. 19), uma dessas diferenças está na origem, já que o grafite é originário das artes plásticas e faz uso de imagens, e a pixação é originária da escrita, privilegiando as palavras. Há de se salientar que escolhemos, para esse estudo, o campo das pixações e não do grafite por entender que o primeiro é marginalizado, podendo mais facilmente se constituir como uma prática de resistência e subversão às normas instituídas na sociedade, enquanto o segundo foi socialmente aceito como um tipo de manifestação artística. Na pixação não há necessidade de gesto estético, é um processo aleatório e anárquico que permite que qualquer pessoa possa se manifestar, desenhar ou rabiscar (RAMOS, 1994, p. 47). Assim, alguns pixadores sofrem preconceito por parte de grafiteiros que os taxam de depredadores’ e ‘selvagens’ por não se preocuparem com o senso estético (NOGUEIRA, 2009, p.3).

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¹ Acadêmica do curso de Psicologia na Universidade de Santa Cruz do Sul

[email protected].

² Acadêmica do curso de Psicologia na Universidade de Santa Cruz do Sul

[email protected]

PIXAÇÕES EM SANTA CRUZ DO SUL: DISCURSOS EM SPRAY

Amanda Cappellari – Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)¹

Yanaê Meinhardt - Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)²

APROXIMAÇÕES COM A TEMÁTICA

As pixações nos muros das cidades são constantemente encontradas e já fazem parte

da arqueologia urbana, do habitat humano e da identidade de cada município. Antes de

qualquer aprofundamento ou explanação, esclarecemos nossa escolha ao usar a palavra

pixação com ‘x’, amparadas em:

A grafia oficial da palavra em português é "pichação". No entanto, seus praticantes e

as pessoas associadas à arte de rua em geral a empregam com x, em vez de ch.

Adoto aqui essa grafia, e também pixador, pois estou me referindo a essa prática

específica, e não a outras formas de inscrições gráficas em paredes (CALDEIRA,

2012).

Ainda que utilizem as mesmas “telas” – muros e paredes do espaço urbano -, e os

mesmos materiais – tintas sprays -, o grafite e a pixação são práticas diferentes. Conforme nos

aponta Gitahy (1999, p. 19), uma dessas diferenças está na origem, já que o grafite é

originário das artes plásticas e faz uso de imagens, e a pixação é originária da escrita,

privilegiando as palavras. Há de se salientar que escolhemos, para esse estudo, o campo das

pixações e não do grafite por entender que o primeiro é marginalizado, podendo mais

facilmente se constituir como uma prática de resistência e subversão às normas instituídas na

sociedade, enquanto o segundo foi socialmente aceito como um tipo de manifestação artística.

Na pixação não há necessidade de gesto estético, é um processo aleatório e anárquico

que permite que qualquer pessoa possa se manifestar, desenhar ou rabiscar (RAMOS, 1994, p.

47). Assim, alguns pixadores sofrem preconceito por parte de grafiteiros que os taxam de

‘depredadores’ e ‘selvagens’ por não se preocuparem com o senso estético (NOGUEIRA,

2009, p.3).

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O lugar de vandalismo ocupado pelos pixadores pode ser observado, por exemplo, em

Goiânia. Após a cidade ser tomada por pixações, que foram realizadas, em sua grande

maioria, por dois grupos que possuem rivalidade entre si – no sentido de quem pixa o prédio

mais alto, de quem possui mais assinaturas nas paredes da cidade – a solução proposta para

minimizar a prática é investir em arte: o grafite (CASSIANO, 2013). Apropriar o espaço com

grafite foi a estratégia encontrada para a “inibição do vandalismo”, já que onde existe o

grafite, a pixação não é feita. Portanto, salientamos as diferentes representações entre pixação

e grafite: o caráter de depredação do patrimônio público ocupado pela pixação e o senso

artístico agregado ao grafite.

Cruz e Costa (2008) nos lembram que em nosso país as pixações surgiram com frases

de protesto e humor. Essa forma de expressão entrou em decadência durante a ditadura militar

devido à forte repressão da censura e do autoritarismo. Considerada uma prática ilegal e

subversiva, as pixações precisavam ser feitas durante a noite e com muita rapidez. Visto de

modo pejorativo, “pichar implica em maledicência. Pichação associar-se-ia, nesse sentido, à

poluição visual urbana” (RAMOS, 1994, p. 19).

Com sua popularização, novas maneiras de usar a pixação foram criadas, não mais

seguindo um caráter unicamente político e de protesto. Entre as ‘inovações’ estão as

assinaturas de nomes próprios, a utilização de símbolos e frases de amor. As assinaturas são

modos de apropriação visual do espaço urbano (SILVA, 2010). Ao assinar seu nome, apelido

ou símbolo, o pixador se apropria de determinado espaço e o identifica. No caso específico

do símbolo, ele normalmente pode ser visto em muros e prédios nos mais diversos lugares das

cidades. Os pixadores encontram nos muros uma boa tela para declarações de amor ou para

ensaiar frases de motivação pessoal. Todas essas manifestações representam as visões de

mundo do pixador, demonstrando sua maneira de pensar e de viver.

É possível considerar as pixações como manifestações de categorias pouco

visibilizadas. Há questões constantemente em evidência sem necessidade de procurar em

muros e tapumes a possibilidade de voz, espaço e reconhecimento, pois já os tem. Podemos

pensar que aquele que pixa na rua conhece este espaço e, ao pixar, faz dele o seu espaço e

dispõe de um planejamento, mesmo breve, para tal. Apesar da pixação ser passível de

punição, de acordo com o art. 65 da Lei nº 9.605 (BRASIL, 1988), na prática ela não veta o

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ato de liberdade de expressão daqueles que o fazem, enfatizando o caráter público das ruas.

Dessa forma, consideramos as pixações como manifestações1, pois esta expressa o caráter

constituinte de manifestação, desde a compreensão mais simples às compreensões mais

complexas.

Há uma conexão entre os grafismos urbanos e a produção da identidade: o pixo é uma

das maneiras de visibilizar os jovens socialmente, superando a sensação de despertencimento

ao meio em que vivem. Normalmente, o pixo está associado ao vandalismo e à diversão, sem

ser considerado como um ato de comunicação (MACHADO, 2014, p. 15) e a maioria dos

estudos o compreendem como um ato de transgressão à regra. Transgressão, esta, à regra

estética do “limpo”, da moral, do juridicamente correto, do acordo com as imobiliárias...

Para Campos (2009, p. 37),

a expressão no espaço coletivo toma sentido a partir da lógica da alteridade, segundo

a qual a manifestação do indivíduo se relaciona com uma ação que mira o outro ou a

percepção de uma coletividade externa a ele. As paredes, portanto, dialogam com os

sujeitos e criam possibilidades novas de diálogo entre eles.

O fato de tantas vezes as pixações estarem relacionadas à marginalidade provém de

um sistema que abarca a negação e a exclusão do que não se enquadra nos padrões de beleza

e/ou comportamento, dando ênfase negativa ao que não é considerado belo pelos moldes

normatizadores. Esta realidade tenta e efetiva o fato de esconder os sujeitos maquiando (ou

pintando por cima) seus atos e movimentos.

As pixações devem ser vistas além de manifestações por carência de um espaço

específico onde a expressão de um grupo tome seu espaço em comunidade. Mais do que

expressar e reforçar suas ideias identitárias para o público que já faz parte do movimento, as

pixações buscam trazer mais seguidores para seus pensamentos e lutas, buscam o aumento do

grupo, buscam a atenção do cidadão. Russi-Duarte (2009) diz:

A mensagem disposta e projetada no suporte reúne as atividades do leitor e aquele

que escreve, diante desse conjunto, destaco a existência de uma interação que

permite entender o muro como meio de comunicação. Um jornal, rádio ou TV,

1 Ma.ni.fes.ta.ção s.f. 1. Ação ou efeito de manifestar(-se). 2. Expressão coletiva e pública de intenções, ideias, pontos de vista, etc.

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executam seu papel na presença do leitor, i.e., qualquer um desses dispositivos

sozinhos em uma sala não seriam mais do que isso, componentes físicos e

mecânicos. O mesmo não pode ser entendido com relação ao suporte da pichação?

Seguindo por esse pensamento, propomos compreender o muro como um espaço que

os grupos encontram de não apenas chamar a atenção da comunidade, mas também de desviar

o olhar do outro e tentar desmanchar certos modos de pensar tão automatizados pela rotina e

pelo social.

Após estas considerações e aproximações com a temática, o artigo segue com a

explicação do processo metodológico, embasado nos estudos culturais e no método da

bricolagem. O próximo tópico consiste em uma discussão sobre as pixações encontradas na

cidade de Santa Cruz do Sul, guiados pelos marcadores “resistência política”, “visibilidade

das minorias” e “combate ao preconceito”. Por último, temos as considerações finais.

SOBRE O PERCURSO METODOLÓGICO

Entendemos que o ato de pixar é, assim como aponta Hall (1997), uma prática

cultural, já que a cultura não é unicamente um conjunto de coisas, mas sim um processo, um

aglomerado de práticas. Para o autor (1997, p. 291) “os significados moldam o que fazemos,

assim nossas ações podem estar constantemente sofrendo múltiplas (re)significações”.

Portanto, darmos ênfase às práticas culturais é de grande importância, já que somos nós que

atribuímos sentidos às coisas através dos modos que às utilizamos.

Santa Cruz do Sul é uma cidade de médio porte localizada no interior do Rio Grande

do Sul. A busca e as fotografias das pixações foram realizadas nos bairros centrais,

considerando que nessa localidade elas possuem maior visibilidade devido ao grande número

de circulação de pessoas. Ao fotografarmos essas pixações, entendemos, assim como Zanella

(2011) que a fotografia não está apenas representando uma realidade, mas também a

instituindo.

Diferente do que mostram outras pesquisas referentes à temática (SILVA, 2010;

OLEGÁRIO, 2011.), nessa cidade não encontramos um número significativo de assinaturas e

símbolos. Entendemos que essa prática pode não se aplicar e Santa Cruz do Sul por não ter

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efetivamente grupos de pixadores, o que não incentiva a rivalidade ou a necessidade de se

apropriar dos espaços e demarcá-los.

Com a finalidade de estudarmos a dimensão cultural contemporânea das pixações

presentes em Santa Cruz do Sul e analisarmos os discursos que as compõem, valemo-nos dos

Estudos Culturais. Esses devem ser entendidos “como campos de diferentes saberes para se

produzir conhecimento útil sobre a cultura humana” (GUARESCHI, MEDEIROS E

BRUSCHI, 2003, p. 33), sendo importante salientar que a cultura, aqui, não é vista com uma

ideia de reprodução, mas sim de ação social. Afasta-se a noção de neutralidade do

pesquisador e a busca por “uma verdade”, temos em mente que novas leituras são sempre

possíveis, portanto, não pretendemos esgotar nosso objeto de pesquisa.

Guiados pelo método da bricolagem, que entende que “cada pesquisa é única e o seu

método deve ser construído pelo pesquisador, conforme as características singulares do seu

trabalho” (Idem, 2003, p. 36), este estudo não tem a pretensão de ser uma metodologia de

pesquisa fechada em si mesmo, mas que dá espaço para a invenção e criatividade dos

pesquisadores.

A produção de dados para este trabalho ocorreu de novembro de 2014 à fevereiro de

2015, se constituindo, assim, como uma análise preliminar da pesquisa “Pixações em Santa

Cruz do Sul: discursos em spray”. Como a pixação está inserida num espaço público e

urbano, a interferência de meios externos (outros pixadores, limpeza) é inevitável. Portanto,

aceitamos como pixação para a nossa pesquisa, qualquer tipo de manifestação gráfica

encontrada na cidade de Santa Cruz do Sul, salvo os grafites e as assinaturas.

Optamos, nesse trabalho, por analisar e discutir as frases presentes nas fotografias das

pixações. Não articularemos seu senso estético por não termos apropriação e conhecimento

sobre os conceitos necessários para realizar uma boa análise gráfica. Nesse sentido,

pretendemos produzir com as imagens, e não sobre elas (TITTONI, 2011). Compreendemos,

dentro de uma perspectiva pós-moderna,

que as imagens que o mundo, principalmente social, apresenta, a rigor, ele não

apresenta isentamente, isto é, é o olhar que botamos sobre as coisas que, de certa

maneira, as constitui. São os olhares que colocamos sobre as coisas que criam os

problemas do mundo (VEIGA-NETO, 2002, p. 30).

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DISCUTINDO AS PIXAÇÕES DA CIDADE

As pixações compõem os espaços urbanos, se constituem enquanto diálogos nos

devires urbanos, compreendidas como a transformação das ruas na extensão das

individualidades, criando identidades e participação na cidade. Para discutir a produção de

dados, consideramos necessário agrupar as imagens em três grandes categorias, em seguida,

selecionamos uma imagem para cada uma das três divisões, na respectiva ordem à seguir:

“resistência política”, “visibilidade das minorias” e “combate ao preconceito”.

Apesar de tais categorias estarem dispostas enquanto filtros para as imagens, elas não

se opõem umas às outras, do contrário, estão entrelaçadas complementando-se, tornando

difícil a compreensão das pixações separadas por categorias. Vejamos, as minorias sofrem

preconceito, marcadas pela diferença de opor-se ou não incluir-se em padrões homogêneos,

logo constituem-se enquanto resistência, porém, o que nos tornou possível categorizar as

pixações, apesar dos marcadores estarem entrelaçados, foi aquilo que conduziu a leitura de

cada imagem nesta teia de significados.

Resistência política

Nesta categoria, problematizamos as pixações enquanto resistência política.

A palavra “resistência” tem sofrido diferentes interpretações ao longo dos anos, como

também sobreviveu às mesmas, uma destas interpretações ocorreu e ainda ocorre na analogia

de resistência enquanto “ir contra”, “opor-se”, “revolução”, “emancipação”. Porém, na

atualidade a palavra resistência faz mais sentido como uma virtude de estar em estado de “em

luta contra” em relação ao(s) poder(es) vigente(s) (GUZZO; SPINK, 2015, p.10).

É possível identificar nas pixações que encontramos, o seu caráter político, o qual

resiste à hegemonia urbana, social e cultural de padrões limitadores e excludentes em que os

autores dessas pixações não se encaixam.

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A política é a arte de organizar as relações, os coletivos, as circulações. É também

estética. Assim como a arte, a política é uma maneira de fazer que concirna às forças

que dividem e organizam o mundo social. Muitas vezes ela atua com ideias, teorias e

tratados sobre a realidade, estruturando a condição de vida das cidades, da

população, do mundo (GUZZO; SPINK, 2015, p.4).

Fonte: arquivo pessoal.

A política organiza as relações, assim como o mundo social de maneira vertical,

reforçando impositivamente padrões de funcionamento instituídos e saberes cronificados, que

produzem o não-pertencimento de segmentos sociais. Sem dúvida, os homens brancos

heterossexuais de classe média não serão encontrados na lista dos inadequados, a resistência

política, no caso das pixações, fica reservada para as consideradas minorias. As pixações

quando visibilizadas, não são para o reconhecimento de suas demandas e escrachos, mas são

visibilizadas para os autores receberem uma marca identitária, marcar para melhor excluir.

Todos aqueles que pixam, instantaneamente, tornam-se vândalos a importunar a ordem social.

A identidade que os autores e grupos proclamam enquanto instrumento de resistência, não é a

mesma que lhes é atribuída socialmente.

O aspecto central, assim nos parece, reside em fazer da identidade a mola propulsora

para lutas estratégicas, sem, contudo, tornar-se presa das armadilhas identitárias que

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substancializam o ser dos sujeitos e, não raramente, reproduzem mecanismos de

hierarquização e desvalorização de sujeitos com base em procedimentos sociais de

normalização e pacificação das diferenças (CÉSAR; DUARTE, 2014, p. 413).

Portanto, a política relaciona-se de maneira direta, porém sutil, com as formas de

economia, com os sistemas jurídicos e com as instituições que individualmente regulam e

normatizam as pessoas e as coisas (GUZZO; SPINK, 2015). Enganam-se aqueles que

ingenuamente acreditam ser as pixações um ato criminoso, enredado pelo discurso higienista,

que aponta os vândalos pixadores e os grafiteiros artistas. Como a economia, os discursos

produzidos acerca das pixações também são administrados nesta rede de forças políticas,

tornando mais nítida a necessidade de resistência.

Os processos de resistência significam não apenas oposição a uma dada situação,

mas criação - portanto, afirmação – de práticas sociais diversas e polifônicas,

capazes de tecer outras formas de vida que ajam em vez de apenas re-agir. Estas

fabricações implicam mutações dos modos de existência, dos modos de organização

e sentido da participação política, dos modos de uso da cidade, das formas de

organização do trabalho, da produção do conhecimento e das diversas redes de

sociabilidade. Os exercícios de resistência são cantos que atraem e inquietam,

afastam-nos das ordens e concepções naturalizadas (HECKERT, 2014, p. 477).

Visibilidade das minorias

Uma minoria não precisa ser um grupo tradicional com uma longa

história de identificação. Ela pode surgir como resultado de

definições sociais que se transformam através de um processo de

diferenciação política ou econômica. (ROSE, 1972, APUD SCOTT,

2004, p. 18).

O que pode ser mais inconveniente nas rotas urbanas centrais, circuladas por uma

população heterogênea, inscritas em um padrão homogêneo de sociabilidade, o escracho do

que é escasso a alguns e fartura para outros? Estas são as pixações enquanto visibilidade das

minorias.

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Está certo que a pobreza constitui minoria. Há casos de minorias que não

necessariamente são minorias quantitativas, mas se constituem enquanto minorias devido à

invisibilidade, negligência e inferiorização da existência de alguns sujeitos.

Fonte: arquivo pessoal.

Os eventos que determinam que minorias são minorias o fazem através da atribuição

do status de minoria a algumas qualidades inerentes ao grupo minoritário, como se

essas qualidades fossem a razão e também a racionalização de um tratamento

desigual. Por exemplo, a maternidade foi frequentemente oferecida como a

explicação para a exclusão das mulheres da política, a raça como a razão da

escravização e/ou sujeição dos negros, quando de fato a relação de causalidade se dá

ao inverso: processos de diferenciação social produzem exclusões e escravizações

que são então justificadas em termos de biologia ou de raça (SCOTT, 2004, p. 19).

A visibilidade das minorias nas pixações é necessária e legítima, porém é preciso um

cuidado para não cair no equívoco de, ao identificar minorias, não essencializar os modos de

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ser destas minorias. Não é incomum perceber nos discursos sobre minorias as limitações das

mesmas.

César e Duarte (2014) nos recordam que, Michel Foucault sugere para pensarmos as

lutas estratégicas para a conquista de direitos para segmentos minoritários de nossas

sociedades, que tais movimentos deveriam dar um passo adiante e decisivo na direção do

questionamento das formas hegemônicas do viver em comum e nos mostra que somente

poderemos desarmar as estruturas sociais que promovem a violência e a discriminação contra

as minorias se promovermos novas formas de vida e novas relações de amizade entre os

diferentes.

Combate ao preconceito

Enquanto combate ao preconceito, as pixações estão legitimando a necessidade de

movimentos que propõem transformações na sociedade. Por exemplo, neste conjunto de

pixações há a denúncia “HOMOFOBIA MATA”, tamanha invisibilidade da homofobia e a

violência que produz, o alto índice de vítimas homossexuais de homicídio e a impunidade dos

autores destes crimes, tendo em vista a agilidade para a resolução de outros homicídios.

Segundo Oltramari (2010) a homossexualidade é omitida nas relações públicas,

enfraquecendo seu reconhecimento, tal identidade acaba se fragilizando, pois instituições

sociais formam estratégias de “controle da sexualidade”, que causam uma invisibilidade da

homossexualidade, onde o preconceito está baseado em uma naturalização das diferenças

sexuais.

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Fonte: arquivo pessoal.

A importância das pixações no combate ao preconceito é inclusive a de apoio,

pois “o preconceito nos impede de identificar os limites de nossa própria percepção da

realidade” (PRADO & MACHADO, 2008, citado por OLTRAMARI, 2010, p. 610),

acreditando que o preconceito possa não passar de um episódio isolado, em que o melhor a

fazer é tratá-lo com indiferença, na lógica da naturalização do preconceito e a violência que

promove o sofrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pixação é um artefato cultural. Ela é criada pelo homem e diz de sua cultura, afirma

modos de pensar, atravessa e é atravessada pelos discursos que circulam no social.

Entendemos, no decorrer do processo do pesquisar, que a pixação se firma também como uma

prática de significação, que constitui o sujeito e forja identidades. Essas práticas poderão

produzir sujeitos que agirão de determinadas maneiras ou se identificarão com determinadas

posições (GUARESCHI, 2008).

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As pixações espalhadas pelas ruas afetam a cidade na medida em que provocam

deslocamentos no olhar daqueles que por ali caminham, no instante em que fazem vibrar um

possível estranhamento e modificam o espaço urbano. As frases que mais incomodam logo

são cobertas por nova camada de tinta e, não raro, voltam a aparecer pela cidade.

Não entendemos a prática da pixação como um ato de vandalismo, muito antes,

olhamos para ela como uma ação que possibilita a expressão e (des)contrói o que está dado. É

uma prática também de resistência, de se posicionar contra determinadas condutas e afirmar

outras... de existir diferente. Gritar, através do spray, outras possibilidades de usar a palavra,

de usar a cidade, de resistir, de lutar, de instituir ou desnaturalizar verdades.

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