Planejamento em Saúde - Mário Testa

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  • 7/29/2019 Planejamento em Sade - Mrio Testa

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    Ministrio da SadeFundao Oswaldo CruzEscola Nacional de Sade Pblica

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM

    SADE: UMA DISCUSSO DA ABORDAGEM DE MARIO TESTA

    Mestranda: Lgia Giovanella.

    Orientador: Adolfo Horcio Chorny

    Dissertao apresentada Escola

    Nacional de Sade Pblica para obteno

    do ttulo de Mestre em Sade Pblica.

    Rio de Janeiro, 1989

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    O produto deste meu trabalho dedico

    mama Josefina pela coragem, ao papai

    Eletto pela delicadeza e persistncia.

    O esforo do meu trabalho dedico s

    pessoas que tentam por em ao o

    desejo de transformar e transformar-me.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Arouca que um dia disse a mim e ao Padilha: "Por que vocs nofazem o mestrado?" Dando-me coragem.

    Ao Sergio Koifmann, meu primeiro "mestre" na ENSP.

    Ao Chorny, orientador democrtico, acompanhador deste meu esforo.

    A Jeni Vaitsman, Slvia Gerschman, Eliana Labra, Javier Uribe e Geraldo

    Lucchesi, amigos e companheiros de trabalho, pelas discusso de alguns

    contedos e pela solidariedade.

    Aos professores e pesquisadores do DAPS - ENSP pela possibilidade da

    minha maior dedicao realizao desta dissertao.

    A Sonia, Graa, Dalva, Terezinha, Monireh, Nilton e Marcelo, apoio na

    datilografia e xerox.

    A Ismenia e Marisa pelo esmero na datilografia da ltima verso.

    A Bia pelo auxlio na correo.

    A R, G, Slvia, Neca o Ula; famlia alternativa, amigos persistentes,

    pelo afeto.

    A Em, analista.

    Ao Roberto.

    Lgia

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    Sumrio

    Agradecimentos ....................................................................................................................................................iv

    Resumo.................................................................................................................................................................vii

    INTRODUO INFORMAL A UM TRABALHO FORMAL ....................................................................... ix

    INTRODUO.....................................................................................................................................................1

    Pressupostos da proposta de Planejamento de Mario Testa ................................................................................ 4

    A proposta de planejamento em sade. ............................................................................................................... 5

    I. O PLANEJAMENTO DE SAUDE NA AMRICA LATINA ..................................................................... 15

    II. FUNDAMENTOS DA PROPOSTA DE MARIO TESTA PARA O PLANEJAMENTO EM SADE .45

    1. O planejamento como prtica histrica.........................................................................................................502. O postulado de coerncia .............................................................................................................................. 53

    2.1. Os componentes do postulado ............................................................................................................... 54

    2.2. As relaes entre os componentes do postulado .................................................................................... 55

    3 - Os problemas de sade enquanto problemas sociais....................................................................................59

    3.1. - 0 processo sade-doena ..................................................................................................................... 59

    3.2. - A alocao de recursos para a sade ...................................................................................................61

    4. - O Poder.......................................................................................................................................................69

    4.1. Os resultados do exerccio do poder: .....................................................................................................74

    4.2. Os tipos de poder"31..............................................................................................................................75

    4.3. Recursos de poder..................................................................................................................................81

    4.4. Os prazos e os tempos do poder.............................................................................................................81

    4.5. As formas organizativas do poder41......................................................................................................83

    4.6. Impacto das formas organizativas do Poder .......................................................................................... 85

    4.7. A Constituio dos atores sociais e dos atores de sade ........................................................................ 89

    4.8. Os atores em cena .................................................................................................................................. 92

    III. A PROPOSTA DE MARIO TESTA PARA O PLANEJAMENTO EM SADE.................................105

    1. Diagnstico de sade .................................................................................................................................. 1071.1. - Diagnstico administrativo................................................................................................................110

    1.2. Diagnstico Estratgico.......................................................................................................................118

    1.3. - Diagnstico Ideolgico......................................................................................................................127

    1.4. - Sntese Diagnstica ...........................................................................................................................130

    2. As Propostas programtico-estratgicas...................................................................................................... 136

    2.1. - As propostas programtico-estratgicas enquanto processos. ...........................................................137

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    2.2. - Os programas.....................................................................................................................................140

    2.3. - As estratgias.....................................................................................................................................148

    IV. COMENTRIO PROPOSTA E ELEIO DAS CATEGORIAS........................................................... 159

    V. CONHECENDO O PODER........................................................................................................................... 169

    VI. IDEOLOGIA................................................................................................................................................. 231

    VII. CONCLUSO ............................................................................................................................................. 283

    BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................................. 295

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    RESUMO

    Entendendo-se os enfoques estratgicos de planejamento em sadecomo formulaes que rompem com a normatividade de um "deve ser" que se

    impe sobre a realidade, nas quais os processos de planejamento propostosobjetivam alcanar o mximo de liberdade de ao a cada ao realizada e,aonde considera-se o problema do poder e admite-se o conflito entre forassociais com diferentes interesses e com uma viso particular sobre a situao-problema na qual se planeja, fazendo parte do processo de planejamento aanlise e a construo da viabilidade, postulada a existncia de trsvertentes desse enfoque, elaboradas por autores latino-americanos. Dessasvertentes, escolhida a proposio de Mario Testa para discusso. A partir deum estudo da produo terica recente desse autor (1983-6) so ordenados eapresentados os fundamentos e os contedos da sua proposta atual para oplanejamento em sade de juntar o clculo tradicional (o diagnstico e a

    proposta administrativa) com as anlises da estrutura de poder setorial e dasrepercusses das aes planejadas sobre essa estrutura. Essa caracterizaono leva conformao de um mtodo de planejamento. Testa faz umaproposta acerca do planejamento em sade mas no prope um mtodo deplanejamento em sade: prope um modo de entender os problemas de sadee os processos de planejamento. Ao compreender os problemas de sade tantona situao de sade como na organizao setorial como socialmentedeterminados e, portanto, o setor como inseparvel da totalidade social, Testainteressa-se pelo comportamento dos atores sociais e pe nfase na anlisedas relaes de Poder e na considerao das prticas de sade enquantoprticas ideolgicas, conformadoras de seus sujeitos. Testa avana de umaproposta de planejamento estratgico em sade para um pensamento

    estratgico, um pensar a ao poltica em sade. Suas compreenses de Podere Ideologia fundamentam esse pensar a poltica em sade, sendo, ento, essascategorias escolhidas como principais para a anlise de sua proposta. realizado, ento, um estudo sobre o Poder: o que , como se exerce e quaissuas determinaes, discutindo a compreenso de Testa. Discute-se, ento, oconceito, de Ideologia em Testa e tenta-se analisar a validade de suasproposies de novas formas organizativas para as prticas em sade comoconstrutoras de uma nova concepo de mundo e de uma tica desolidariedade e transparncia atravs de breve estudo sobre a conformao deconcepes de mundo e de quais prticas sociais, filsofos marxistas tmconsiderado como tendo essa potencialidade transformadora. Atravs desse

    estudar o Poder e a ideologia ao mesmo tempo que so discutidas ascompreenses de Testa descobre-se parte do referencial terico quefundamenta sua proposta. Conclue-se que as prticas sade enquanto prticassociais afetam as concepes de mundo de seus sujeitos sendo difcil, porm,garantir a direcionalidade dessa mudana. E, argumenta-se favoravelmente aocontedo transformador da proposta de Testa para o planejamento em sadepor desvendar os contedos de Poder nas aes em sade no escamoteandoas bases reais da dominao e, por ser transparente nos deslocamentos dePoder que objetiva.

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    Um departamento de

    planejamento para fazer o pensamento

    dos homens.

    Frederick W. Taylor

    Planejamento: mediao entre o

    pensamento e a ao.

    Carlos Matus Romo

    Para acabar com a distncia entre

    o pensamento e a ao.

    Mario Testa

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    INTRODUO INFORMAL A UM TRABALHO FORMAL

    Uma histria pode ser contada de vrias maneiras. Uma "tese" pode ser

    justificada de inmeras formas. "Assim se lhe parece", diz o texto de

    Pirandello. Olhando agora o resultado final do meu trabalho, a escolha do

    tema, o jeito como se conformou a discusso, as categorias que escolhi, vejo

    que esta minha dissertao tem talvez um sentido principal: a reflexo e

    fundamentao, por tortuosos caminhos, do meu prprio trabalho.

    Motivada pela necessidade de fazer, pelo desejo de transformar, atirei-

    me de ponta cabea na prtica. mpeto saudvel, mas ingnuo, pois tinha umaconscincia da realidade que, caricaturando um pouco, Bourdieu denominaria

    de "quase sistematizao afetiva", um "ser contra os maus e os opressores"

    pouco fundamentado.

    Sabendo da necessidade da ao coletiva para uma possvel

    transformao social, mas imaginando-me como potente impulsionadora dessa

    transformao e agindo de forma muito imediatista no tendo uma viso

    histrica, as dificuldades no trabalho e retrocessos polticos levaram a que

    ficasse triste. Era preciso ento pensar, refletir, compreender melhor.

    Recuperar a alegria. Mudei de cidade. Fiz o curso de Sade Pblica na Escola

    Nacional de Sade Pblica. Entrei para o mestrado ainda cheia de dvidas.

    Quando participei da seleo para o ingresso no ms trado escrevi um

    relato sobre minha experincia de trabalho no Programa de Sade Comunitria

    da Prefeitura de Lages. Nas concluses dessa descrio eu dizia: contradiescomo participar do Poder e ao mesmo tempo querer transform-lo podem ser

    constatadas na prtica, mas no resolvidas nem compreendidas se no

    conhece o que este Poder. No meu trabalho em Lages propunha

    participao e democratizao: distribuio do Poder e transformao da

    conscincia atravs de uma prtica participativa e educativa em sade. E c

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    estou eu, guisa de discutir uma proposta de planejamento estratgico,

    discutindo o que? Poder e Ideologia, democratizao e participao.

    Atravs de voltas e desvios encontro as bases tericas daquele trabalho

    e discuto aquela minha prtica, que realizei meio idealista e intuitivamente,

    sem uma compreenso mais ampla da realidade que desejava transformar.

    Lendo a prova que fiz para ingresso no curso bsico onde eu afirmava

    categoricamente: comprovado que o nvel de sade da populao se eleva

    com a melhoria das condies de vida e no com um maior nmero de servios

    de sade ou com a utilizao de tcnicas mais sofisticadas para diagnstico e

    tratamento; ou lembrando o curta-documentrio Lages: a Fora do Povo

    onde afirmo que o problema da "sade da populao no uma questo

    tcnica, uma questo poltica", percebo elementos que orientaram a escolha

    do meu tema de dissertao.

    Encantei-me com Mrio Testa porque na discusso do planejamento da

    ateno sade, referia-se claramente questo poltica, juntava a poltica

    com a ateno sade.

    Se posso, agora, traduzir a relao condio de vida/sade pela

    determinao social do processo sade-enfermidade e no excluir a ateno

    sade de boa qualidade - com tecnologia apropriada com toda a sofisticao

    necessria correspondente complexidade de cada caso como possibilidade de

    alterao dos nveis de sade, essas so decorrncias do meu aprendizado.

    Mas se insisto na poltica e na determinao social do processo

    sade/enfermidade porque, como Berlinguer, acredito que na Reforma

    Sanitria o revolucionrio a sade. E sade vida. Mudar a sade mudar a

    vida: sempre buscar melhores formas de trabalho e de relaes entre as

    pessoas.

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    Por quais caminhos to estranhos andam os nossos desejos!

    Penso ainda em todo o desenvolvimento deste meu trabalho, o incio do

    estudo, a discusso do poder, os livros de Gramsci, Foucault e Poulantzas h

    muito comprados e nunca lidos, as dificuldades a incerteza/insegurana, as

    tardes de olhar pela janela no vazio sem poder ler ou escrever, o calor, as

    conversas com o Chorny, as reclamaes pros amigos e amigas, a impotncia

    e eu a tratar do poder. As grandes dvidas sobre a minha participao poltica,

    o descrdito nas organizaes existentes, as grandes dvidas sobre a situao

    do pas, a falta de expectativa sobre o futuro e eu a falar sobre "apenas a

    transformao do mundo".

    A no tinha santo que me fizesse andar com este trabalho! Sentava-me

    na cadeira o obrigava-me; mas obrigada eu no fao e a emperrava, o

    trabalho no andava, empacava. Mas mesmo empacada na ao, de algum

    modo nesses momentos sempre ocorria uma metabolizao inconsciente do

    que eu havia lido que possibilitava o desenvolvimento da dissertao.

    Nesses tempos de fazer a tese muito pensei sobre a sade do

    trabalhador intelectual. Desde as dores nas costas pela falta de boas condiesde trabalho uma cadeira ergonometricamente perfeita que possibilite uma

    boa postura - at a alienao em seu trabalho. Se o trabalhador manual vende

    a sua fora, o trabalhador mental vende/aluga o seu pensamento. No trabalho

    manual controla-se principalmente o corpo mas ao proceder o seu trabalho

    repetitivo e mecnico o trabalhador pode deixar voar seu pensamento e

    continuar o trabalho (correndo o risco da mo decepada, sem dvida). O

    trabalhador intelectual s exerce o seu trabalho pensando, se desvia o

    pensamento no produz e a o namorado, a anlise, as questes da existncia

    privada interferem na produo. Para desenvolver o seu trabalho fica, ento,

    obrigado a no pensar nisso, alienado de sua prpria vida.

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    Penso tambm na tentativa de tornar o escrito de Mrio Testa mais

    acessvel pelo seu ordenamento e sntese. No que o tenha conseguido de todo

    porque para ser simples sem simplificaes, necessrio um profundo

    conhecimento do que se deseja tratar. Fundamental tambm conhecer a

    linguagem do outro que eu interpelo. Sem isso a comunicao no ocorre, no

    h interpelao. Ou melhor, h outro tipo de interpelao, outro discurso

    chegou antes ao meu possvel interpelado impedindo a minha comunicao. A

    linguagem do outro imaginava-me mais ou menos conhecedora porque eu

    havia sido um outro que queria agora interpelar. At pouco tempo no tinha a

    compreenso da realidade que tenho agora e o meu outro era um igual a mim

    antes dessa compreenso o meu pblico o meu imaginvel leitor eram os

    alunos dos cursos de especializao em Sade Pblica.

    No alcancei o intento de ser simples sem grandes simplificaes

    certo, mas talvez algumas vezes eu tenha conseguido e isto me alegra. Outras

    vezes, nem fui simples, nem simplista. Devido complexidade do tema e

    tendo clareza da distoro que produziria ao tentar transformar para uma

    linguagem mais simples misturei-me linguagem do meu interpelador - o

    autor do livro - o que resultou num texto meu apresentando matizes das

    linguagens dos diferentes autores e termos utilizados destoaram do conjunto,resultando num contedo por vezes complexo (tomara que inteligvel pelo

    menos para os iniciados).

    Esta introduo to eu para contrabalanar este trabalho to os

    outros, to o que eles dizem, to a verdade j reconhecida. Estatuto da

    verdade dado pelo reconhecimento do mundo acadmico.

    certo tambm que toda esta discusso da minha dissertao mesmo

    sendo formal anlise da realidade. Tem substrato material, concreto

    pensado. Outra parte de desejo, vontade de transformar. Outra parte, ainda,

    de acreditar na possibilidade de construir e compartilhar uma tica moral

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    diferente da instituda: uma tica onde o que vale a solidariedade e no a

    estratgia.

    Sinto-me como um pintor iniciante cujo estilo ainda no est bem

    definido, falta muito, mas j tenho as tintas. Divirta-se em mistur-las mais

    um pouco. No desista!

    Que esse trabalho contribua em algo. Teve esforo e muito aprendi. Se

    no tanto, como no fazer uma tese, certo aprendi, e isto j bastante.

    Lgia

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    INTRODUO

    Para a realizao da minha monografia de concluso do mestrado,

    inicialmente elaborei um projeto de dissertao no qual propunha-me a analisar

    comparativamente os aspectos tericos e metodolgicos de dois enfoques de

    planejamento estratgico em sade: o enfoque representado pela produo

    terica de Mario Testa nos ltimos anos e o enfoque elaborado por Juan Jos

    Barrenechea e Emiro Trujillo Uribe.1 Considerando o enfoque de Mario Testa como

    elaboraes mais gerais acerca do planejamento de sade e a maior

    instrumentalizao apresentada por Barrenechea e Trujillo, o problema que

    buscava resolver, a partir da caracterizao e anlise de cada um dos enfoques ede sua comparao, era se os procedimentos elaborados no segundo enfoque

    poderiam ou no complementar a proposta de Mario Testa. Entendia, que se isso

    fosse possvel ao final do trabalho chegaria bem prximo a um mtodo de

    planejamento de sade.

    Quando da apresentao e discusso pblica do projeto foi sugerido que ao

    invs de uma anlise comparada eu aprofundasse a discusso de uma dessas

    vertentes o que me permitiria uma melhor anlise considerando o prazodisponvel para a realizao de meu trabalho. Aceitei a sugesto e passei a

    estudar os trabalhos de Mario Testa, autor que realmente me interessava

    discutir, objetivando ordenar sua proposta para o planejamento de sade.

    Eu havia elaborado o projeto inicial a partir do que tinha estudado durante

    o mestrado e que significava apenas parte da obra de Testa. O que havia lido

    eram textos preliminares, por vezes reescritos pelo autor, e na sua maioria

    atualmente compilados em PENSAR EN SALUD.

    Dispus-me ento leitura sistemtica (no sistema de cabo a rabo) da obra

    de Mario Testa. Ler, apreender e fichar o Pensar en Salud e Pensamiento

    Estratgico. Lgica de Programacin. Essa foi a primeira tarefa que me coloquei.

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    Ligia Giovanella2

    A partir dessa leitura e apreenso geral da obra de Testa propus-me, num

    primeiro momento, a caracterizar e ordenar a proposta de planejamento emsade que eu considerava estar a contida. Elaborei ento um roteiro para essa

    caracterizao. 0 roteiro tinha por base um ordenamento do prprio Testa

    apresentado em 2 artigos seqenciais publicados nos Cuadernos Mdico-Sociales

    n. 38 e n. 39 em Rosrio, na Argentina, em 1986 sob o ttulo "Estratgia,

    Coherencia y Poder en las Propuestas de Salud", parte I e II e, o ordenamento do

    texto "Estratgia y Programacin . 0 primeiro artigo dos "Cuadernos" juno

    de partes do contedo de Tendncias en Planificacin, captulo do "Pensar en

    Salud", e do "Pensamiento Estratgico" e o segundo parte do "Estratgia y

    Programacin".

    Nos artigos acima referidos dos Cuadernos Mdico-Sociales Testa

    apresenta o seguinte ordenamento:

    1. Pensamento estratgico

    O estratgico histrico

    Poltica e estratgia

    2. Postulado de coerncia

    3. Poder

    Poder tcnico Poder administrativo. Poder poltico Poder e mudana social

    ENSP/FIOCRUZ

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    Introduo 3

    4. Propostas

    tempos tcnicos e tempos polticos Programas de abertura, avano e consolidao Formas organizativas internas e externas.

    Em Estratgia y Programacin o ordenamento de Testa o seguinte:

    1. Coerncia entre estratgia e lgica.

    2. Diagnsticos de sade

    diagnstico administrativo diagnstico estratgico diagnstico ideolgico sntese diagnstica

    3. Indicadores

    tradicionais

    estratgicos

    4. Propostas (com o mesmo contedo do artigo anterior).

    Estes textos, assim ordenados, fazem parte da produo recente de Testa:

    1986. E nessa produo recente que baseio o meu estudo sobre sua proposta

    de planejamento estratgico para o setor sade: 1983-6.

    Na elaborao do roteiro para minha caracterizao da proposta de Testatentei seguir sua nova proposio acerca do planejamento: "integrar o clculo

    tradicional (o diagnstico; e a proposta administrativa) com a anlise estratgica

    da estrutura de poder setorial e das repercusses sobre a mesma, das aes

    propostas2.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella4

    O meu roteiro era dividido em duas partes uma primeira parte, aonde

    reunia o que considerava como pressupostos da proposta, e uma segunda parte

    constituda pela proposta para o planejamento, propriamente dita.

    Para a primeira parte do roteiro s bases que Testa colocava - itens 1, 2 e

    3 do artigo da revista - agreguei a sua compreenso sobre sade: o conceito de

    sade e o processo sade-doena, contidos em sua obra, e a determinao da

    alocao de recursos para a sade, sntese realizada a partir de "Problemas

    sociales y Questin Nacional", captulo do "Pensar en Salud". No sub-item

    'Poder' alm dos tipos de poder coloquei sua compreenso e discusso sobre

    Poder: contedo do "Pensamiento Estratgico". Tendo esses itens como

    fundamentos ordenei ento a proposta de planejamento, a segunda parte do

    roteiro: os trs diagnsticos, a sntese diagnstica e as propostas programtico-

    estratgicas.

    O roteiro era o seguinte:

    1 PARTE: PRESSUPOSTOS DA PROPOSTA DE PLANEJAMENTO DE MARIO

    TESTA

    1. Introduo (cujo contedo eram os conceitos de estratgia e

    poltica)

    2. O planejamento enquanto prtica histrica (as estratgias de

    transformao)

    3. O postulado de coerncia

    4. Sade

    - O conceito de sade e a determinao do processo sade-doena.

    - A alocao de recursos para a sade

    5. Poder

    ENSP/FIOCRUZ

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    Introduo 5

    2P

    ARTE:A

    PROPOSTA DE PLANEJAMENTO EM SADE.

    1. Os diagnsticos

    - Diagnsticos administrativo

    - Diagnstico estratgico

    - Diagnstico ideolgico

    2. Sntese Diagnstica: identificao e anlise da estrutura de poder

    setorial

    3. As propostas programtico estratgicas enquanto processos: tempos

    tcnicos e tempos polticos.;

    - Os programas

    Programas de avano Programas de abertura Programas de consolidao

    - As estratgias (as formas organizativas internas e externas)

    Democratizao interna Participao

    Elaborado o roteiro em grandes itens e sub-itens, a partir da releitura das

    minhas anotaes a cada sub-item agreguei contedos afins dispersos ao longo

    dos textos. Dei, ento, incio caracterizao da proposta de Testa eu haviaordenado. Os textos que basicamente utilizei para a caracterizao da proposta

    de Mario Testa foram as obras que recm acabara de ler e fichar: "Pensar en

    Salud e Pensamiento Estratgico, Lgica de Programacin, Estratgia y

    Programacin. Recorri a artigos anteriores, preliminares a esses textos, apenas

    com o intuito de buscar uma melhor compreenso do que Testa queria dizer.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella6

    Esses textos principais correspondem produo de Testa entre 1983 e 1986

    significando por vezes reelaboraes de textos anteriores.

    No fiz uma caracterizao e anlise processual da obra de Testa nesseperodo. Processual no sentido de como o seu pensamento evoluiu/transformou-

    se ao longo do tempo. Tomei os textos como se pertencessem a um mesmo

    momento, pois no objetivava uma anlise de toda obra, mas a ordenao de

    seus aportes para o que inicialmente considerava que pudesse vir a conformar-se

    num mtodo de planejamento estratgico em sade.

    Nessa caracterizao, como disse, segui a proposio de Testa de juntar o

    clculo tradicional com a anlise da estrutura de poder setorial e da repercusso

    das aes propostas sobre esta estrutura. Ao diagnstico administrativo, principal

    componente do clculo tradicional da sua proposta, agreguei questes colocadas

    na "lgica de programacin, referentes s diferentes lgicas dos recursos nos

    diversos nveis, que auxiliam nesse clculo. Ao diagnstico administrativo

    seguem-se os diagnsticos estratgico e ideolgico que representam o incio da

    anlise da estrutura de poder setorial, completada com a identificao desta

    estrutura na sntese diagnstica. As propostas programtico-estratgicassignificam proposies de realizao de aes em sade, pensadas desde a sua

    viabilidade (anlise da estrutura de poder) e de seu impacto sobre as relaes de

    poder, setoriais e extra-setoriais. Dessa anlise resultam seqncias de

    programas a viabilidade e essa repercusso. A forma proposta para a realizao

    das aes - as formas organizativas internas democrticas e externas

    participativas do direcionalidade a todas as aes propostas no sentido da

    mudana representada pela criao de uma nova tica de solidariedade e

    transparncia, devido ao impacto que a realizao de prticas mais democrticas menos autoritrias e centralizadoras - causa na conscincia das pessoas.

    Criao de uma nova tica que no entender de Testa resulta em novas prticas

    transformadoras das relaes de poder.

    ENSP/FIOCRUZ

  • 7/29/2019 Planejamento em Sade - Mrio Testa

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    Introduo 7

    Inicialmente tinha como propsito ordenar, sintetizar e apresentar de

    forma clara o que considerei como proposta de Mario Testa para o planejamento

    de sade. O objetivo/tentativa dessa caracterizao e ordenamento era produzir

    um texto-Testa-condensado que facilitasse o acesso das pessoas, que iniciamna Sade Pblica, aos da proposta de planejamento estratgico de Mario Testa.

    Ao mesmo tempo, objetivava o levantamento das principais categorias utilizadas

    na conformao da proposta. A partir desse levantamento, a discusso da

    proposta em grandes linhas e a anlise das categorias eleitas deveriam permitir

    aportes para um mtodo de planejamento e uma reelaborao da proposta cujo

    produto final seria um "Planejamento Estratgico em Mario Testa Modificado.

    Falo em objetivo/tentativa porque tornar mais acessvel a proposta de

    Testa significava no s participar de sua difuso mas tambm escrev-la de

    forma mais simples, sem ser simplrio/simplista, a traduo de complexos

    conceitos em linguagem mais informal e acessvel, s possvel pela profunda

    compreenso de todos os conceitos e relaes a respeito de tudo o que se quer

    falar. Muitas questes tratadas eram bastante complexas e o meu conhecimento

    menor do que imaginava e disso resultou apenas uma tentativa pretensiosa.

    Pretensiosa desde o inicio porque minha formao universitria foi em medicinaaloptica tradicional havendo entrado em contato com o sociologus-politiqus-

    economs somente na ps-graduao o que significou um esforo para

    apreenso das novas categorias. Fora esta dificuldade que produzira o desejo de

    escrever de forma mais compreensvel. 0 resultado positivo dessa tentativa foi,

    se no um texto claro e simples, o meu prprio aprendizado, minha melhor

    compreenso de muitos conceitos.

    Objetivo/tentativa tambm porque no era possvel ordenar a partir dosescritos de Testa um mtodo do planejamento em sade, mas apenas

    pressupostos e elementos de um mtodo de planejamento, pois Mario Testa

    prope mais uma maneira de pensar o planejamento de sade, pensar a atuao

    em sade, do que um mtodo de planejamento. Possvel ordenao de

    fundamentos e elementos de cuja discusso no poderia resultar j num primeiro

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella8

    momento (dentro das minhas limitaes de prazos e conhecimentos) na

    proposio de um mtodo de planejamento.

    O que realizei foi o ordenamento de uma proposta de Mario Testa para oplanejamento de sade e do que considerei como seus fundamentos, de forma

    no muito sinttica. A importncia, sob meu ponto de vista, dos elementos da

    proposta que selecionei, meu desejo de torn-los bem inteligveis, a juno de

    contedos afins oriundos de diferentes textos, e o querer ser fiel a sua obra

    levaram a que o meu resultado final fosse mais uma "traduo ampliada do que

    uma "sntese ordenada".

    Como o objetivo era uma sntese de toda a proposta e um texto acessvel

    que auxiliasse na difuso da obra de Testa, pois eu gostava e concordava no

    geral com as suas proposies, optei por um texto-Testa onde escrevia do lugar

    dele, deixando ento para fazer a discusso e os comentrios a posteriori. Isso

    trouxe-me dificuldades pois acabei por confundir-me com o autor o que

    prejudicou a sntese e por certo perodo impossibilitou o distanciamento mnimo

    necessrio para a discusso. Fez tambm com que eu demorasse mais tempo

    nessa caracterizao.

    Feita a caracterizao da proposta - a minha traduo ampliada - comecei

    a metaboliz-la para a escolha das principais categorias. Metabolizao pode ser

    uma palavra estranha mas pertinente, tem o sentido do perodo em que se

    assimila aquilo que importa e exclue-se (elimina-se) o que no importa. Assim,

    num primeiro momento surgiram Poder, Ideologia e Organizao como categorias

    fundamentais3.

    Durante o meu reescrever do Testa progressivamente fui tomando

    conscincia que ele faz uma proposio para a ao poltica em sade, organiza o

    raciocnio de como pensar a ao poltica em sade. Assim, como disse

    anteriormente da minha proposta inicial, de a partir da leitura e anlise dos

    textos de Testa ordenar de forma sinttica e clara o contedo de um mtodo de

    ENSP/FIOCRUZ

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    Introduo 9

    planejamento em sade - que hipoteticamente supunha que esses textos

    contivessem - tive como resultado no um mtodo ordenado mas elementos de

    um mtodo e mais do que isso orientaes para pensar as questes relacionadas

    sade. E nessas orientaes para o pensar a ao presente e futura em sadetrs grandes categorias esto inter-relacionadas: poder, ideologia e organizao.

    Feita a escolha destas categorias passei leitura em diversos autores de

    conceituaes e discusses acerca desses termos. Durante a leitura e fichamento

    da bibliografia que selecionei para esse estudo, o meu processo de

    "metabolizao" teve continuidade e acabei por excluir a compreenso de

    "Organizao em Mario Testa como categoria que fundamenta a sua proposta,

    como veremos a seguir.

    Poder categoria que fundamenta e orienta o pensamento de Mario Testa

    sobre planejamento, tanto na sua anlise sobre a sade como em suas

    proposies para a ao em sade. Grande parte dos trabalhos de Testa tratam

    da discusso do Poder: o que , como se exerce, suas relaes, impactos, como

    qualific-lo e quantific-lo, como alterar a distribuio do Poder, acumular Poder,

    transformar as relaes de Poder. Faz toda uma anlise desde o Poder enquantocapacidade at o Poder de Estado.

    Na perspectiva da sua proposio de transformao da distribuio e das

    relaes de poder, ideologia e organizao so categorias dele inseparveis.

    Organizao categoria fundamental no pensamento de Mario Testa sob

    dois aspectos: a organizao enquanto instituio - agrupamento de pessoas com

    interesses comuns estabelecido e permanente - pela sua capacidade estruturantee de consolidao e, organizao enquanto as formas organizativas das prticas,

    quer dizer, enquanto o jeito como esto organizadas as organizaes: suas

    relaes internas e suas relaes externas.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella10

    A importncia para Mario Testa da organizao enquanto instituio pode

    ser bem apreendida partir do Postulado de Coerncia: relao necessria

    entre os propsitos, mtodos utilizados e organizao encarregada de alcanar

    esses propsitos. Nesse postulado, num segundo nvel, determinada pelahistria e condicionalmente da histria. Segundo Testa a principal caracterstica

    na forma de funcionamento do postulado para pases capitalistas

    subdesenvolvidos e dependentes a labilidade organizativa. Essa caracterstica

    faz com que a organizao seja o componente, seja o componente do postulado

    mais determinado e, explica o diferente modo de funcionamento do postulado

    nesses pases, em relao aos capitalistas desenvolvidos

    A transformao que se deseja, diz Testa, que a organizao passe a ter

    uma relao biunvoca coma histria que significa dizer, ao mesmo tempo ser

    determinada pela histria e determinar a histria.

    A organizao tem assim capacidade estruturante estrutura estruturante

    que determina a histria e o que deseja Testa a construo da histria no

    sentido da. transformao das relaes de Poder. As organizaes que tm sido

    consideradas por filsofos e cientistas polticos como tendo esta capacidade emsociedades cujo modo de produo hegemnico o capitalismo - so

    organizaes partidrias de classe e este significado que Testa sugere para

    organizao no Postulado de Coerncia. Organizao enquanto partido de classe

    mais do que como uma categoria de anlise do pensamento de Testa

    instrumento de transformao, determinante da transformao das relaes de

    poder na sociedade. Organizao com esta potencialidade de transformao da

    sociedade objetivo a ser alcanado em Mario Testa e no categoria que utiliza

    no desenvolvimento de seu pensamento e por isso a exclui como categoria bsicade anlise de suas proposies.

    Testa faz um caminho na sua reflexo sobre o Poder que do pensar,

    inicialmente, a constituio da classe operria enquanto partido revolucionrio

    como nica possibilidade de transformao social, avana para uma compreenso

    ENSP/FIOCRUZ

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    Introduo 11

    que se poderia chamar foucaultiana do Poder. Nessa compreenso o exerccio

    do Poder esta presente em todas as prticas sociais e se contra o Poder que se

    luta, esta pode ocorrer em cada prtica cotidiana. E a, da prioridade dada

    organizao partidria de classe do proletariado, no postulado de coerncia,avana para uma nfase nas formas organizativas das prticas: as formas como

    exercem-se as relaes de Poder.

    Enquanto formas organizativas das prticas, organizao tem o significado

    das relaes que se estabelecem entre as pessoas e/ou grupos sociais para a

    tomada de decises, a forma como se decide o que fazer cada dia, a forma como

    se exerce a relao do Poder. Testa entende que a forma organizativa das

    prticas constre a conscincia das pessoas, faz com que adquiram uma

    concepo de mundo e uma postura de vida, uma forma de atuao social. As

    formas organizativas das prticas so para Testa as formas de exerccio do Poder

    e o exerccio do Poder causa impacto sobre a conscincia das pessoas: constri a

    conscincia das pessoas. Essas relaes internas s organizaes - formas das

    prticas no processo produtivo - externalizam-se pois a conscincia a formada

    reproduz nas prticas sociais reprodutivas a relao de poder contida nesta

    prtica.

    Essa relao das formas organizativas das prticas com a criao da

    conscincia o contedo de seu conceito de Ideologia. Ideologia entendida por

    Testa enquanto um saber e uma prtica: um saber que uma concepo de

    mundo e uma prtica que constri os seus sujeitos, cria uma conscincia em seus

    sujeitos. O entendimento de Testa ideologia engloba ento as formas

    organizativas das prticas, pois Testa entende Ideologia como um saber e uma

    prtica cuja forma organizativa auto-constri seus sujeitos e em conseqnciaconsolida esta prtica: prtica que resulta na consolidao de uma tica.

    Para Testa, ento, atravs de um processo de ideologizao que

    produzem-se sujeitos sociais conscientes impulsionadores de novas prticas

    sociais por sua vez ideologizantes. Sujeitos sociais individuais ou coletivos

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella12

    conscientes que participam do Estado ampliado constituindo-se em atores sociais

    e disputando poder na sociedade.

    O Poder Social, segundo Testa, mantm-se no apenas pela coero mastambm pelo consenso. Consenso determinado pela considerao das propostas

    dominantes como legtimas conforme alguma tica. Trata-se, ento, da

    conformao de uma nova tica que consolide uma vontade coletiva pela

    transformao das relaes de Poder.

    Ideologia , assim, categoria fundamental para a anlise do pensamento

    de Testa pela considerao do Poder enquanto tal. Por compreender Ideologia

    como concepo de mundo e prtica construtora de sujeitos esse conceito base

    de suas proposies de novas formas organizativas para as prticas de sade,

    Testa prope novas formas organizativas das prticas pela sua potencialidade de

    transformao das relaes de poder na sociedade ao transformar a conscincia

    dos sujeitos dessas prticas e ao promover a criao de organizaes

    correspondentes a esse novo nvel de conscincia.

    nessa interrelao de Poder e Ideologia que baseiam-se as proposiesde Mario Testa para a atuao em sade. E, por isso, a discusso de sua

    compreenso acerca dessas categorias fundamental para o entendimento de

    sua obra e anlise de suas propostas.

    A partir do estudo da bibliografia selecionada fiz uma discusso da

    categoria Poder em Mario Testa, cujo contedo j havia agrupado como um dos

    fundamentos de suas proposies. Revi, ento, como apresenta Ideologia

    em seus vrios textos e a partir da realizei uma discusso sobre o conceito deIdeologia em Testa e sobre a formao das concepes de mundo.

    Foi nesse processo de leitura, reflexo, anlise e discusso comigo mesma

    e principalmente com Chorny, meu orientador, mas tambm com Jeni Vaissman,

    Slvia Gerschmarn, Eliana Labra, Geraldo Lucchesi, amigos e companheiros de

    ENSP/FIOCRUZ

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    Introduo 13

    trabalho, que conformou-se o conjunto de perguntas que orientam a minha

    dissertao e que apresento ao final do captulo I.45

    Os resultados desse processo o que apresento a seguir inicialmente situoas proposies de Mario Testa no contexto do planejamento em geral e do

    planejamento de sade na Amrica Latina, em particular. Seguem-se os

    fundamentos da proposta; a proposta de Mario Testa para o Planejamento de

    Sade, a discusso dessa proposta e escolha das categorias para anlise, a

    discusso das categorias escolhidas e as concluses.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella14

    NOTAS - INTRODUO

    1. Apresentarei o que considero como vertentes do planejamento estratgico desade, elaboradas Ror autores e latino-americanos rio captulo I. Fao entouma breve anlise da proposta de "Medellin" elaborada por Barrenechea eTrujillo.

    2. Mario TESTA, Estratgia, Coherencia y Poder en las Propuestas de Salud -Parte I, p. 24.

    3. Metabolizao plgio de uma fala de Eleonor Conill.

    4. Isso um agradecimento, no uma co-responsabilizao.

    5. 0 processo de realizao do trabalho tambm no foi s esse. Teve maisvoltas. 0 captulo I com o breve histrico do planejamento de sade naAmrica Latina e a delimitao do objeto, por exemplo, foi escrito aps adiscusso das categorias. A elaborao de cada captulo teve idas e voltas.

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    I. O PLANEJAMENTO DE SAUDE NA AMRICA LATINA

    A noo mais simples de planejamento a de no improvisao. Uma

    ao planejada uma ao no improvisada e nesse sentido fazer planos

    coisa conhecida do homem desde que ele se descobriu com capacidade de

    pensar antes de agir, estando relacionado a todo processo de trabalho, e

    consequentemente a toda vida humana, pois o trabalho condio inerente

    vida humana.

    De forma mais abrangente enquanto clculo de futuro - agir tendo como

    objetivo alcanar um fim determinado previamente - podemos considerar oplanejamento como decorrncia da calculabilidade e previsibilidade integrantes

    da racionalidade concernente sociedade capitalista moderna1 2. Pensar o

    futuro e calcular a ao presente e futura para atingir uma finalidade

    genericamente a maximizao do rendimento em dinheiro o ethos da

    sociedade moderna. Calculabilidade e previsibilidade integram o sistema de

    disposies em relao ao mundo e ao tempo concernente a nova

    racionalidade instituda com o desenvolvimento da sociedade industrial

    passando a fazer parte da conduta razovel correspondente razo capitalista.

    Calculabilidade e previsibilidade presentes no cotidiano de todos: no interior da

    casa nos clculos de economia domstica e no pensar o futuro dos filhos, na

    indstria, no comrcio, na especulao financeira.

    Na sociedade tradicional - pr-capitalista - o que impera a previdncia:

    pre-vidncia, antevidncia, um ver de antemo determinado pela tradio do

    sempre foi assim e assim ser, como ciclos naturais que se repetem sempre damesma forma. Nessa sociedade, a riqueza vem da natureza, a terra produz o

    valor. 0 trabalho vale em si e no pelo valor que produz: Um homem digno

    um homem sempre ocupado. O resultado do trabalho campons, expressado

    na colheita, depende da natureza e no do prprio trabalho, da ao pensada,

    pois o futuro a Deus pertence. Pela tradio conserva-se o que , a mudana

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    Ligia Giovanella16

    no cogitada. Previdncia na sociedade tradicional tem o significado de um

    futuro imposto como o nico possvel.

    Na sociedade moderna (capitalista a previso) resultado de um clculo

    e pressupe um outro futuro possvel. O futuro no est predestinados j, no

    pertence a Deus, mas resulta da ao de homens e mulheres sobre a natureza.

    O valor - a riqueza - produto do trabalho e o esprito de clculo objetivando

    maior produtividade e maiores ganhos so exigncias da prpria economia

    capitalista.

    Com a industrializao os processos de trabalho complexizam-se

    fragmentam-se, especializam-se e sua organizao, racional impe-se. Cada

    indstria precisa tornar-se uma mquina bem azeitada e cada vez mais os

    processos vo sendo organizados. assim que as primeiras elaboraes

    tericas mais sistematizadas sobre planejamento referem-se a organizao da

    produo cientfica, quando em primrdios da administrao cientfica

    quando em 1916 Henry Fayol ao editar o seu livro "Administrao industrial e

    Geral coloca a PREVISAO como um dos elementos da administrao- Previso

    entendida a enquanto projeo, clculo de futuro e a Programao objetiva

    facilitar a utilizao de recursos e a escolha dos melhores meios a empregarpara atingir o objetivo desejado de mxima eficincia, mximo lucro.

    enquanto funo administrativa que o planejamento tem o seu

    desenvolvimento, e mtodos e tcnicas so elaborados. no interior da

    empresa o seu locus. Inicialmente de maneira fechada e cada vez mais

    levando em considerao as flutuaes do meio ambiente. Progressivamente

    complexizam-se seus procedimentos chegando at a tcnicas de projeo de

    diferentes cenrios. Quanto mais complexo o que se planeja - o objeto do

    planejamento - maior o nmero de variveis a serem consideradas para o

    clculo de futuro. impossvel conhecer e controlar todas as variveis e ainda

    que conhecidas todas as variveis difcil estabelecer todas as relaes causais.

    Impossvel esmiuar completamente o presente e antecipar o futuro e o

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 17

    planejamento empresarial atual prope-se ento a diminuir esta variabilidade e

    pensar probabilidades de atingir-se os resultados desejados.

    Calculabilidade e previsibilidade so parte tambm da ao consciente

    na construo da histria futura. E, se j a prpria revoluo sovitica resulta

    de um processo onde o clculo e a previso esto presentes - a possibilidade

    de um futuro diferente afirmada - aps a revoluo. o planejamento vem dar

    racionalidade s transformaes revolucionrias almejadas para toda a

    sociedade. E a primeira proposta de planejamento social surge na forma de um

    plano setorial na Unio das Repblicas Socialistas Soviticas quando em 1918

    elaborado o primeiro Plano Nacional de Eletrificao. Porm, somente aps

    uma dcada de governo socialista elaborado o primeiro plano global: I Plano

    Qinqenal (1928 a 1932). Na sociedade socialista com a instituio da

    propriedade social dos meios de produo o plano vem pra substituir o

    mercado como instrumento de alocao de recursos e distribuio de produtos

    e estabelecer justas propores entre produo e consumo, oferta e demanda

    e entre os vrios ramos da economia, com o propsito de satisfao das

    necessidades de todos os membros dessas sociedades.33

    Nas sociedades capitalistas baseadas nas livres leis de mercado noLaissez faire, o planejamento econmico e social s admitido ps crise

    econmica mundial dos anos 30 - profunda e prolongada depresso. Por essa

    poca John M. Keynes, economista ingls, prope uma maior interveno do

    Estado na economia com o intuito de diminuir a importncia e freqncia das

    crises. Para Keynes preciso dotar o Estado de instrumentos efetivos de

    poltica econmica que lhe permitam regular a taxa de juros, aumentar o

    consumo e expandir a inverso visando o pleno emprego. Keynes prope maior

    dirigismo e racionalidade: prope planejamento estatal.4

    Suas formulaes so assumidas na Europa principalmente aps o final

    da segunda Guerra Mundial. Os primeiros planos so feitos em 1948 pelas

    naes europias participantes do Programa de Recuperao Europia ou Plano

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella18

    Marshall. Nessa ocasio foram elaborados planos integrais para 4 anos com o

    intuito de ordenar a produo e resolver a situao econmica e poltica nas

    zonas devastadas. Resolver a situao poltica e econmica era tambm a

    forma mais eficaz de contrapor-se ao avano do mundo socialista emergente e

    presente no continente europeu aps a partilha da segunda guerra.5

    Na Amrica Latina o planejamento introduzido a partir da dcada de

    40 por influncia da ONU e de um pensamento prprio que entende ser

    necessrio superar as diferenas econmicas com os pases capitalistas

    centrais. o planejamento entendido enquanto instrumento para o

    desenvolvimento, e desenvolvimento significa crescimento do produto

    nacional, acelerao do ritmo deste crescimento. Desenvolvimento significa

    industrializao, modernizao e a racionalidade do clculo econmico e do

    planejamento acompanha-as.

    principalmente atravs da Comisso Econmica para a Amrica Latina

    - CEPAL - organismo internacional ligado a ONU, que difunde-se a noo do

    planejamento enquanto necessidade para alcanar o desenvolvimento. Esta

    noo baseada numa teoria que explica o subdesenvolvimento pela tendncia

    deteriorao dos termos de troca entre os pases capitalistas centrais -economias industrializadas com produo diversificada e tecnicamente

    homognea - e os pases perifricos - economias exportadoras de alimentos e

    matrias-primas aos pases centrais com produo muito especializada e

    tecnicamente heterognea.66 Na noo difundida considerava-se que atravs

    do planejamento poder-se-ia romper com essa tendncia, promover a

    industrializao, e atravs dela alcanar o desenvolvimento.

    O planejamento , ento, introduzido na Amrica Latina enquanto

    mtodo de seleo de alternativas que otimiza a relao entre objetivos e

    instrumentos com o propsito de crescimento, pois dentro das teorias

    desenvolvimentistas entende-se ser o crescimento a soluo para o

    subdesenvolvimento. Somente a acelerao do crescimento pode diminuir a

    ENSP/FIOCRUZ

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 19

    distncia com os pases desenvolvidos: esta a compreenso que caracteriza o

    planejamento da dcada de 50.7

    As propostas de planejamento na Amrica Latina foram inicialmente

    elaboradas para a economia, mas progressivamente o campo de atuao para

    o planejamento ampliado sendo introduzido tambm nos setores sociais. Na

    sade os primeiros programas surgem como decorrncia da carta de Punta del

    Este. Em 1961 os EUA atravs da organizao dos Estados Americanos - OEA

    promove uma reunio de Ministros da Interior dos pases das Amricas em

    Punta del Este no Uruguai aonde lanado o Programa Aliana para o

    Progresso. Este programa parte da poltica norte-americana do perodo

    Kennedy que colocava nfase nos obstculos internos ao desenvolvimento.8

    Considerava os problemas sociais e polticos como obstculos ao

    desenvolvimento e entendia o subdesenvolvimento pelos seus ingentes

    problemas sociais, como campo frtil para proliferao de idias aliengenas

    socializantes. Com a Aliana para o Progresso, atravs do financiamento de

    projetos sociais, pretendia-se contrapor expanso dessas idias, cujo exemplo

    de Cuba no se queria deixar reproduzir. A Aliana para o Progresso surge

    portanto como aliana para o desenvolvimento e contra o socialismo, com

    clara inteno de controle social,

    pois com essa inteno que na reunio de Punta del Este toma-se a

    deciso de incorporar os setores sociais planificao do desenvolvimento.

    Metas sociais so acordadas entre os pases participantes e o Banco

    Internacional de Desenvolvimento e o Banco Mundial - Banco Internacional de

    Reconstruo e Desenvolvimento sob a gide do FMI so encarregados de

    financiar os projetos para o alcance dessas metas.

    Para a rea da sade, a Carta estabelece objetivos, e, por vezes,

    quantifica metas para o decnio prximo em relao a taxas de mortalidade

    para certas idades e doenas previnveis, ao saneamento e alimentao,

    organizao dos servios de sade e ao planejamento de sade.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella20

    Comprometem-se os pases signatrios da Carta a: reduzir mortalidade de

    menores de 5 anos de idade; erradicar a malria e a varola; intensificar o

    controle da tuberculose e doenas entricas; melhorar a alimentao e a

    nutrio aumentando a Ingesto de protenas; abastecer de gua potvel e

    servios de esgoto pelo menos 70% da populao rural; melhorar a

    organizao dos servios de sade e aumentar o seu rendimento procurando

    que se atenda cada vez melhor um numero maior de enfermos com atividades

    de preveno e cura; ampliar a formao de profissionais e auxiliares em

    sade; criar nos ministrios de Sade unidades de planejamento integradas

    aos organismos de planejamento do desenvolvimento econmico e social;

    melhorar as estatsticas vitais e sanitrias; elaborar planos decenais nacionais

    de sade; ter como meta geral o aumento de cinco anos na esperana de vida

    ao nascer de cada pessoa.9

    A Organizao Pan-Americana de Sade - OPAS fica encarregada de

    avaliar os projetos elaborados objetivando o alcance dessas metas, e de ser a

    fiadora destes frente s agncias financiadoras. Cabia ainda OPAS a funo

    de assessorar os pases na elaborao de seus planos e de promover a

    formulao de procedimentos Para o planejamento de sade, pois faltava um

    mtodo para a elaborao dos planos.

    At ento, na OPAS, trabalhava-se por projetos isolados e seus tcnicos

    quase que desconheciam o planejamento no havendo um mtodo que

    permitisse formular planos globais de sade e por isso Abraham Horwitz,

    diretor da OPAS na poca, logo aps a reunio de Punta del Este dirige se a

    Caracas para contatos com Jorge Ahumada diretor do Centro de Estudos do

    Desenvolvimento da Universidade Central da Venezuela - CENDES-UCV.

    Economista e professor de planejamento econmico, Jorge Ahumada, dispe-

    se a participar da elaborao de um mtodo de planejamento de sade e

    sugere que para tal seja tomado como base um trabalho realizado por Mario

    Testa, quando aluno do mestrado de planejamento econmico no CENDES.

    Ahumada estivera interessado em se o mtodo de planificao econmica

    ENSP/FIOCRUZ

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 21

    podia ser aplicado a uma rea social e por isso solicitara a Mario Testa, que era

    mdico, realizar um trabalho nesse sentido. O diretor da OPAS aceita a

    sugesto sendo ento formada uma equipe de trabalho para a elaborao de

    um mtodo de planejamento de sade. Dessa equipe Participaram o prprio

    Ahumada e Maria Testa pelo CENDES, Alfredo Arreaza Guzmn, mdico

    sanitarista venezuelano da Escuela de Salud Pblica, Mario Pizzi, mdica

    chileno dedicado estatstica de sade e integrante do Ministrio de Sanidad y

    Asistencia Social, e pela OPAS, Eduardo Saru tambm dedicado estatstica

    mdica e Hernn Durn, sanitarista.10

    Tomando como base o trabalho inicial de Testa e o modelo de

    planejamento econmico esta equipe elaborou o mtodo de planejamento em

    sade que ficou conhecido como mtodo CENDES/OPAS. Este mtodo foi

    editado pela OPAS EM 1965 na sua publicao Cientfica nmero 111 sob o

    ttulo Problemas Conceptuales y Metodolgicos de la Programacin de la

    Salud.

    Para a elaborao do mtodo CENDES/OPAS realizada uma

    transposio rgida do planejamento econmico normativo, de linha cepalina,

    para a sade, resultando num mtodo de planejamento de sade onde arealidade deve funcionar como norma e cujo objetivo otimizar os ganhos

    econmicos obtidos com sade e/ou diminuir os custos da ateno sendo a

    escolha de prioridades feita a partir relao custo/beneficio. Nesse mtodo a

    formulao do plano iniciada com a realizao de um diagnstico: dos danos

    e de seus condicionantes, dos recursos com sua forma de organizao

    (instrumentao) e rendimento correspondente e, da alocao dos recursos

    aos danos. A partir desse diagnstico feita uma seleo de prioridades e

    proposta uma nova organizao de recursos relacionando-se ento os

    instrumentos normalizados aos danos priorizados, com o intuito de alcanar

    maior eficcia e eficincia nas aes de sade.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella22

    Esta uma proposta tecnocrtica onde o planejador baseado em seus

    conhecimentos tcnicos "neutros" faz o plano e estabelece prioridades. um

    mtodo normativo e economicista onde a norma - o deve ser - tem como

    fundamento principal a relao custo-benefcio.

    No texto de apresentao do mtodo CENDES/OPAS inicialmente

    prope-se a elaborao de um mtodo baseado nos anos de "capacidade

    produtiva perdida". Idia que os autores dizem ser abandonada pelas

    dificuldades de clculo e falta de dados disponveis. Prope-se pensar a

    capacidade potencial produtiva - o nmero de anos/pessoa que dispe uma

    comunidade, utilizvel em qualquer tipo de atividade - a partir da

    determinao da esperana de vida para cada idade. A idia era verificar

    quantos anos/meses de capacidade produtiva eram perdidos quando uma

    pessoa ficava doente ou morria em tal ou qual idade. No esquecendo-se,

    lgico, de verificar os recursos gastos pela sociedade na formao da pessoa.

    Nessa concepo, se uma pessoa morreu, por exemplo, aos dezoito anos tem-

    se uma perda maior do que com uma que morra aos 5 anos de idade, pois a

    quantidade perdida de anos de capacidade produtiva potencial quase igual,

    mas os recursos sociais investidos no. No jovem, a sociedade investiu por 18

    anos recursos para a sua formao e ele mal comeou a produzir. Essa idia deanos de capacidade produtiva perdidos orienta o mtodo porm no so

    apresentados procedimentos para esses clculos pela

    dificuldade/impossibilidade que representam.

    A norma geral para determinar a alocao de recursos nesse mtodo a

    obteno de mxima produtividade, mxima eficincia: um mximo de produto

    por unidade de recurso empregado e o problema na programao em sade

    consiste ento em como melhor empregar os recursos ano por ano para

    combater os distintos danos de forma mais eficiente.11 Para isso o

    procedimento mais importante a determinao de quanto se gasta no total

    no ataque a cada um dos danos e qual o custo por morte evitada e por caso

    reparado. Anlise que, por ser complexa, deve ser feita apenas pra os danos

    ENSP/FIOCRUZ

  • 7/29/2019 Planejamento em Sade - Mrio Testa

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 23

    principais selecionados a partir dos critrios de magnitude, transcendncia,

    e vulnerabilidade aplicados s causas de morte.12

    Para o clculo do custo unitrio do ataque a cada dano realiza-se

    inicialmente um inventrio dos recursos disponveis e das aes realizadas. Os

    recursos inventariados so relacionados aos seus usos atravs da sua

    agrupao em instrumentos, tarefas e tcnicas. 13

    Analisada a composio dos instrumentos e seu rendimento esses so

    comparados com uma norma para a composio, grau de utilizao e

    rendimento identificando-se possveis deficincias de instrumentalizao, baixo

    rendimento etc.14 Desse modo so normalizados instrumentos e tarefas e so

    estabelecidas metas de rendimento tendo-se um modelo normalizado da

    organizao dos recursos.

    Conhecendo-se a composio do instrumento em termos de recursos, o

    custo da unidade dos recursos, e o tipo e nmero de tarefas e tcnicas

    utilizadas pode-se calcular quanto custa o ataque a cada dano, qual o custo

    por morte evitada.

    Conclue-se a eleio de prioridades pela ordenao dos danos,

    analisados segundo os custos, de forma crescente, sendo considerado

    prioritrio o dano cujo custo para evitar uma morte o menor. Alocam-se

    ento os recursos (instrumentos e tcnicas normalizados) ao dano prioritrio

    at alcanar-se a mortalidade que permita essa tcnica mais eficiente,

    passando-se subseqentemente para os danos de menor prioridade. Como

    existem doenas no-redutveis cuja vulnerabilidade zero as exclue das

    prioridades sugere-se separar-se recursos para sua ateno pois considera-se

    esta demanda uma exigncia da comunidade.

    Esses so, em sntese, os contedos principais do mtodo

    CENDES/OPAS. Para a divulgao do mtodo, j antes de sua publicao, a

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella24

    OPAS promoveu em conjunto com o ILPES (Instituto Latino Americano de

    Planificao Econmica e Social) a capacitao de funcionrios de rgos de

    sade na utilizao do novo mtodo atravs da realizao de cursos em vrios

    pases como Venezuela, Chile, Colmbia, Argentina e j a partir de 1963

    sistemas de planejamento em sade comearam a funcionar. Em 1968 foi

    criado Centro Pan-Americano de Planificao de Sade que passou a funcionar

    junto ao ILPES em Santiago. Esse centro, que funcionou at 1975, intensificou

    a capacitao de funcionrios de alto nvel e divulgou amplamente o mtodo.

    A idia de que a formulao de planos nacionais era um pr-requisito

    para obteno de financiamentos perdeu fora medida que a expectativa de

    cooperao externa atravs da "Aliana para o Progresso" tambm se dilura15.

    Mas a idia do planejamento vingou e muitos pases passaram ento a fazer

    planos de sade utilizando em sua estrutura bsica, o mtodo CENDES/OPAS.

    Cada pas apresentando, porm, peculiaridades nos seus sistemas de

    planejamento e na aplicao do mtodo.

    Quando os pases comearam a fazer planos, comearam tambm a

    aparecer problemas que o mtodo no resolvia, o que levou incorporao de

    algumas modificaes ao mtodo. Uma delas foi a incluso do diagnsticoinstitucional passando-se a considerar diferentes instituies prestadoras de

    servios pois no mtodo inicial isto no ocorria. Propunham-se apenas divises

    por regies e reas como se existisse um sistema nico de sade. Outra

    incorporao foi a da Poltica como um fator interferente para a realizao

    dos planos passando-se a considerar a de aumentar o apoio s propostas

    governamentais.

    Por vrios anos o mtodo foi desse modo aplicado ainda que sofrendo

    crticas. No incio dos anos 70 h descontentamentos dos planejadores com o

    mtodo pelas dificuldades para a sua aplicao, porque polticos e

    administradores no seguiam os planos elaborados. No mtodo CENDES/OPAS

    por ser um mtodo normativo - mesmo aps a incorporao da poltica

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 25

    enquanto um fator - considera-se que apenas um ator planeja com plenos

    poderes supondo sempre o consenso ou quase-consenso. Desconsideram-se

    conflitos e diferentes interesses. Desconsidera-se a existncia de interesses

    contraditrios quanto a sade e sua ateno, como se houvesse uma deciso

    poltica, a priori, favorvel ao emprego mais racional dos recursos visando

    maior eficincia. Estando, ento, o tcnico-planejador encarregado de

    implementar esta deciso. 0 planejador entendido como um tcnico a servio

    do poltico. Acontece, porm, que essa deciso no existe a priori. A realidade

    no se limita ao deve ser da norma. A situao de conflito e disputa pelo

    poder e no de consenso e a poltica implantada o resultado de todo um

    conjunto de disputas e acordos.

    Os planos elaborados pelo mtodo CENDES/OPAS, cujo suposto objetivo

    seria operacionalizar a deciso governamental de maior racionalidade numa

    situao de consenso, no so executados pois no existe essa deciso e a

    situao no de consenso. Ao no considerarem a variabilidade e

    complexidade da realidade, os conflitos e os diferentes interesses, no do

    conta dessa realidade tornando-se pouco teis para a interveno. Tornam-se,

    apenas, livros-planos adormecidos no interior das gavetas. 0 mtodo cai,

    ento, em descrdito e j em 1973 a prpria OPAS em sua PublicaoCientfica n. 272 assume o fracasso do mtodo.

    Pode-se dizer que atualmente o CENDES/OPAS enquanto um mtodo de

    programao como um todo no mais utilizado, porm, como resultado da

    sua ampla divulgao alguns de seus componentes ainda permanecem e, se

    no so aplicados, pelo menos ainda continuam sendo ensinados em variados

    cursos. Um exemplo do que ficou a eleio de prioridades baseada nos

    critrios de magnitude, transcendncia e vulnerabilidade, assumindo-se assim

    ainda uma viso tecnocrtica da programao de sade. Tecnocrtico tem aqui

    o sentido literal do termo: o poder da tcnica na definio de prioridades. Quer

    dizer, a partir de um conhecimento tcnico e da avaliao que feita, tambm

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella26

    pelo tcnico, da importncia de um determinado grupo social so definidas

    prioridades.

    Por outro lado, tambm considero que alguns aspectos do mtodo

    continuam atuais para a programao de sade pela sua adequao enquanto

    procedimentos para uma anlise e clculo de recursos. o caso da definio

    do instrumento e anlise de sua composio (a organizao dos heterogneos

    recursos necessrios realizao de uma tarefa), da anlise do rendimento e

    grau de utilizao dos instrumentos, da quantificao de tarefas realizadas, da

    comparao desse observado com algum parmetro normativo.

    O descrdito do mtodo CENDES/OPAS no advm apenas de problemas

    internos ao mtodo - no est em questo apenas um mtodo de

    planejamento de sade - o que est em discusso so as prprias teorias

    desenvolvimentistas orientadoras das propostas de planejamento como

    instrumento para a superao do subdesenvolvimento. Para o planejamento

    econmico, j na metade dos anos 60, questionamentos comeam a ser feitos

    pois verifica-se que um maior ritmo de desenvolvimento alcanado num pas

    no fazia esse menos dependente nem levava soluo dos problemas

    diagnosticados, como por exemplo, a concentrao de renda e o desemprego.Perguntas como: Qual a direo do desenvolvimento? Acelerao at onde?

    so realizadas. Pensar na direo significava mudar os processos em curso.

    Mudar os processos significa pensar no poltico, pensar uma estrutura de

    relaes de poder, um sistema de decises, um padro de relaes com o

    exterior, uma definio das relaes sociais de produo que caracteriza a

    sociedade que se pretende construir.16 0 poltico precisa ento ser incorporado

    ao planejamento no mais como um fator mas. como objeto do planejamento.

    Comeam a as for formulaes de planejamento estratgico.

    Carlos Matus poca diretor do Servio de Assessoria do Instituto

    Latino-Americano de Planificao Econmica e Social - ILPES - partilha desses

    questionamentos escrevendo em 1968 "Estratgia y Plan" texto publicado em

    ENSP/FIOCRUZ

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 27

    1972. Neste trabalho Matus assume que a direcionalidade do desenvolvimento

    deve ser a mudana de estruturas e, sugere um rumo para a abordagem dos

    grandes problemas enfrentados pelo planejamento, propondo a formulao de

    estratgias de desenvolvimento que apresentem a coerncia necessria entre

    eficcia econmica e eficcia poltica.

    Matus diferencia entre procedimentos normativos e procedimentos

    estratgicos. Pelo procedimento normativo define-se um conjunto de aes

    necessrias para cumprir um objetivo fixado a priori, impondo-se sobre a

    realidade uma norma de conduta coerente com os objetivos. Nesse

    procedimento a trajetria entre a situao inicial e o objetivo uma trajetria

    eficaz que deve substituir o comportamento real. 0 procedimento estratgico

    pressupe respostas do sistema s aes para sua alterao, e a norma o

    ponto para o qual se quer encaminhar o funcionamento do sistema. A

    trajetria flexvel sujeita a revises de acordo com as circunstncias, e a

    busca da modificao do sistema baseia-se no conhecimento da realidade e

    no numa imposio sobre a realidade.17

    A norma, fundamento do procedimento normativo, diz Matus, uma

    categoria do necessrio e a estratgia uma categoria do possvel em funodo necessrio.18 Na estratgia a conduo do processo no est dissociada de

    sua orientao.19

    A estratgia, para Matus, uma anlise e um propsito para o futuro

    onde integra-se o econmico e o poltico social. O necessrio conflitivo , diz

    ele, e a considerao do conflito, contradies, oposies, acordos - a anlise

    de viabilidade poltica diferencia entre o procedimento estratgico e o

    normativo. Prope a construo de um modelo que funcione como a realidade,

    reagindo e dando respostas a simulaes/ensaios de fatos e perturbaes. Um

    modelo que possa permitir a deduo de uma poltica vivel capaz de

    aproximar-se dos objetivos perseguidos.20

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella28

    Essa discusso com alguma defasagem de tempo atinge tambm a rea

    da sade. As crticas s teorias desenvolvimentistas e ao planejamento

    econmico, decorrentes da situao poltico-econmica dos pases latino-

    americanos, somadas problemas internos ao mtodo CENDES/OPAS produzem

    descrdito desse mtodo.

    Contribue tambm para esse descrdito as propostas de extenso de

    cobertura dos servios de sade surgidas no incio dos anos 70. Na terceira

    Reunio Especial de Ministros de Sade das Amricas, realizada em 1972,

    prope-se a extenso dos servios de sade para populaes urbanas e rurais

    at ento desassistidas.21 0 mtodo CENDES/OPAS no tem resposta a essa

    proposta pois a anlise da capacidade instalada, sua expanso e tecnologia

    no so suficientemente elaboradas para tal.

    Em 1973 escrito pelo Centro Panamericano de Planficicin de la Salud

    o documento Formulacin de Polticas de Salud. Neste documento as relaes

    entre as foras sociais, os conflitos e a viabilidade do planejado so abordados.

    A anlise de viabilidade parte integrante do processo de planejamento.

    entendida enquanto possibilidade poltica do plano ser executado sendo, ento,

    considerados possveis aliados e oponentes. Para a anlise de viabilidade soestudadas quais oposies surgiro ao plano e as formas de reagir frente a

    estas e, quais acordos sero necessrios para alcanar a execuo do plano.

    Neste documento estratgia tem o sentido da seleo de meios,

    intensidade e oportunidades de ao e dissuaso, que exige a dialtica das

    vontades enfrentadas22 0 planejamento situado no campo das decises

    polticas. A anlise da poltica - dos processos que conduzem tomada e

    execuo de decises - considerada fundamental para o planejamento.

    Para Uribe o documento apresenta uma contradio bsica: o conflito

    assumido no marco interpretativo do processo poltico desaparece no esquema

    apresentado para a formulao de polticas " ... de maneira que este processo

    ENSP/FIOCRUZ

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 29

    reduz-se a uma seqncia de etapas em que se afirma a vontade da

    autoridade poltica (qualquer uma). 0 conflito s reaparece na anlise de

    viabilidade (elaborao da estratgia) quando trata-se, no de modificar

    substancialmente as proposies polticas j assumidas, mas de orden-las e

    dos-las em conformidade com o estudo das reaes sociais...23

    A principal contribuio do documento a proposio da anlise de

    viabilidade, introduzindo a questo da estratgia no planejamento de sade.

    Ainda que seja uma crtica ao planejamento de sade realizado at ento, o

    documento apresenta uma viso funcionalista do que acontece na realidade.

    Nesse documento prope-se certa normatividade da poltica, uma

    operacionalizao tecnocrtica da problemtica da poltica. Sugere-se uma

    srie de passos para a operacionalizao do poltico estabelecendo um deve

    ser da poltica ao nvel das funes, onde o conflito advm da posse desigual

    de bens pelos diferentes grupos sociais, no discutindo-se as determinaes

    dessa posse desigual e vo sendo colocadas as contradies e interesses

    antagnicos fundadores da sociedade de classes que o capitalismo.

    O documento Formulacin de Polticas de Salud publicado em 1975

    pelo Centro Panamericano de Planificacin de la Salud mas tem suadistribuio restringida/proibida pela OPAS que no assume o seu contedo

    mais Poltico. Essa poca em que o avano significativo do movimento

    popular em vrios pases da Amrica Latina foi sufocado por golpes militares

    com a imposio de ditaduras, com o apoio norte americano, em todo o cone

    sul.24

    Com a derrota dos movimentos populares e a implantao das ditaduras

    militares muitos dos profissionais e tericos do planejamento so afastados

    dos nveis de interveno e vo reinserir-se em outros pases, geralmente em

    instncias acadmicas, aonde dedicam-se a uma reflexo sobre as suas

    atuaes e sobre o fracasso dos movimentos dos quais participaram.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella30

    Carlos Matus, ex-ministro do governo socialista de Allende no Chile, faz

    essa reflexo inicialmente nos crceres de Pinochet e depois em seu exlio na

    Venezuela como assessor das Naes Unidas (UPES e PNUD) e do CENDES.

    Mario Testa que ap6s trabalhar no CENDES, desenvolvendo o mtodo CENDES-

    OPAS e na diviso de pesquisa do CPPS, deslocara seus interesses para os

    movimentos populares que ocorriam na Argentina atuando no movimento

    peronista, faz essa reflexo no exlio. A temtica de Testa e Matus a mesma.

    Motivados pelo fracasso dos movimentos populares ambos discutem a questo

    do poder.

    Matus aprofunda a sua discusso iniciada no Estratgia y Plan fazendo

    uma anlise globalizante do planejamento na economia. Inicialmente, enfatiza

    a discusso sobre o poder e tenta desenvolver um rigoroso mtodo de

    planejamento. Atualmente, porm, est mais preocupado com a

    construo/elaborao de instrumentos de conduo que aumentem a

    governabilidade de um sistema poltico.

    Prope um mtodo de planejamento situacional onde o ator que planifica

    est dentro da realidade e coexiste com outros atores que tambm planificam,

    diferente do mtodo normativo onde o planejador um sujeito separado darealidade colocando-se fora dela e pretendendo control-la como se fosse seu

    objeto. Situao o lugar aonde esto os atores e suas aes. a explicao

    da realidade que realiza uma fora social em funo de sua ao e luta com

    outras foras sociais.25

    Nessa concepo a contradio e o conflito so assumidos e a

    planificao situacional, diz Matus, necessariamente poltica pois um dos

    recursos escassos que restringem o desenvolvimento de aes que promovam

    mudanas so os recursos de poder. 26

    Planejamento situacional um mtodo de planejamento constitudo por

    quatro momentos no seqenciais, simultneos e em constante processo. Um

    ENSP/FIOCRUZ

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 31

    momento explicativo equivalente ao diagnstico aonde so selecionados

    problemas e discutidas suas causas ao nvel dos fenmenos (fenoestrutura) e

    das estruturas sociais bsicas (genoestrutura). Um momento normativo: o

    desenho do deve-ser. Um momento estratgico de anlise e construo da

    viabilidade poltica: a discusso do poder. Um momento ttico- operacional de

    tomada de deciso e de realizao da ao concreta . 27

    Por refletir sua pr6pria experincia, o ator privilegiado, o governo.

    Planejar, para Matus, conduzir o processo. tentar submeter vontade

    humana o curso encadeado dos acontecimentos cotidianos fixando uma direo

    e dando uma velocidade mudana que inevitavelmente acontece. mtodo

    de conduo do governo para o alcance de seus objetivos.28 Planeja quem

    governa: quem tem a capacidade de decidir e a responsabilidade de

    conduzir.29

    0 fracasso do planejamento tambm fracasso da conduo. Uma das

    razes que Matus detecta para esse fracasso a falta de instrumentos,

    procedimentos e tcnicas de conduo e por isso coloca a sua nfase,

    desenvolvendo instrumentos para que quem tenha responsabilidade da

    conduo consiga exerc-la. Preocupa-se ento em dotar o governo comelementos tcnicos que aumentem a governabilidade do sistema

    (procedimentos para lidar com a incerteza, sala de situaes ...).

    0 planejamento situacional uma evoluo do pensamento crtico dos

    anos sessenta em relao ao planejamento econmico. Pode ser considerado

    como uma vertente do planejamento estratgico de sade pois o pensamento

    de Matus, pelo seu freqente trabalho como assessor da OPAS, tem sofrido

    adaptaes para a sade. Essas, mesmo nem sempre bem sucedidas, tm

    influenciado atuaes de planejamento em sade. 30

    Mario Testa em sua reflexo e autocrtica, por sua participao na

    poltica, pensa o problema do Poder como problema central do planejamento

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

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    Ligia Giovanella32

    de sade. Sua reflexo e como participante de um movimento social desde

    fora do governo. Seu ator privilegiado ento a classe/grupo fora

    social/movimento, e no, como em Matus, o governo. Refere toda a sua

    proposta luta pelo poder: a como produzir deslocamentos de poder em favor

    das classes/grupos subordinados/dominados.

    Ao considerar a determinao social do processo sade-enfermidade

    identifica os problemas de sade como integrantes da totalidade social,

    fazendo a ligao sade-totalidade social atravs das relaes de poder.

    Prope um diagnstico da situao cuja sntese a identificao do setor

    enquanto a estrutura do poder: relaes entre foras sociais com interesses

    em sade e as tenses decorrentes do debate em sade. Sntese realizada a

    partir da considerao do clculo administrativo tradicional (diagnstico

    administrativo), das relaes de poder e suas determinaes na sociedade

    (diagnstico estratgico) e das formas de conscincia social e sanitria (o

    diagnstico ideolgico).

    Baseado na sntese diagnstica, aonde foi identificada a estrutura de

    poder setorial, formula propostas programtico-estratgicas que consideram a

    anlise das repercusses das aes propostas sobre essa estrutura de poder.Na seqncia de programas sugerida, Testa considera a criao e a

    manuteno da viabilidade poltica que garanta a realizao e consolidao das

    mudanas propostas. Programas cujo contedo estratgico so suas formas

    organizativas democrticas e participativas pois segundo Testa estas

    estabelecem diferentes formas de relaes de poder dando direcionalidade s

    suas proposies.

    Mario Testa apresenta um quadro de anlise para pensar-se as questes

    do planejamento. Suas proposies setoriais so acompanhadas de toda uma

    discusso do Poder na sociedade, suas determinaes e possibilidades de

    transformao. A preocupao de Testa com o setor subsidiria sua

    ENSP/FIOCRUZ

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    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 33

    preocupao com o Poder como um todo, configurando sua produo um

    quadro de anlise/um corpo de teoria a partir do qual pensar o planejamento.

    Uma terceira linha do planejamento estratgico de sade desenvolve-se

    a partir de uma reflexo promovida no interior dos prprios organismos

    internacionais (OPS/OMS) dando uma certa continuidade a questes colocadas

    no documento Formulacin de Polticas. Essa vertente apresentada

    inicialmente nas Notas sobre las Implicaciones de la Meta SPT/2000, la

    Estratgia de Atencin Primaria y los Objetivos Regionales Acordados para la

    Planificacin y Administracin de los Sistemas de Servicios de Salud, um

    documento borrador da OPAS de circulao restrita elaborado a partir de

    debates em seminrios internacionais com especialistas em planejamento -

    Medellin, Mrida e Rio de Janeiro - e de um curso realizado na Facultad

    Nacional de Salud Pblica de Medellin. Em 1987, esse documento editado

    como Salud para Todos en el Ao 2000: Implicaciones para Ia Planificacin y

    Administracin de los Sistemas de Salud tendo como autores Emiro Trujillo

    Uribe e Juan Jos Barrenechea. Trujillo, inicialmente aluno e depois consultor

    do Centro Panamericano de Planificacin de La Salud at sua extino em

    1975, foi diretor e professor de Planejamento na Escola de Sade Pblica em

    Medellin na Colmbia at 1988 quando foi assassinado. Barrenechea foiparticipante de Cursos de Planejamento e Desenvolvimento Econmico na

    CEPAL e ILPES e trabalhou em planejamento na OPAS de 1966 at 1980.

    0 texto de Trujillo e Barrenechea mantm-se enquanto notas sobre

    planejamento e administrao de sistemas de sade, no pretendendo-se, os

    autores, a proposio de um mtodo de planejamento. Por suas origens, nas

    discusses dos seminrios, o texto tem contribuies de vrios autores: Matus

    e Testa, por exemplo, fazem parte de sua bibliografia de referncia. Mesmo

    assim, apresenta uma especificidade em sua orientao. Sua racionalidade

    basicamente sustenta proposies do planejamento estratgico empresarial e

    por isso o considero uma terceira vertente.

    IDEOLOGIA E PODER NO PLANEJAMENTO ESTRATGICO EM SADE

  • 7/29/2019 Planejamento em Sade - Mrio Testa

    47/315

    Ligia Giovanella34

    O planejamento estratgico e depois a administrao estratgica,

    desenvolvidos para as grandes empresas desde de o final dos anos 60, diferem

    do Planejamento normativo tradicional. Admitem a turbulncia do ambiente

    externo e tratam de como as empresas devem orientar-se no processo de

    adaptao ao ambiente. 0 comportamento estratgico considerado como um

    Processo de interao com o ambiente acompanhado de um Processo de

    promoo da modificao de aspectos dinmicos internos onde a turbulncia

    externa e o poder configuram-se como influncias bsicas.31 Essas concepes

    permeiam o texto de Barrenechea e Trujillo que estou considerando como uma

    terceira vertente do Planejamento estratgico de sade.

    O interesse desses autores o setor sade e sua preocupao principal

    a instrumentalizao: como fornecer instrumentos, que auxiliem tcnicos

    atuantes na linha de execuo, que rompam com o normativo e contribuam na

    implementao das Estratgias SPT2000. Propem uma metodologia de

    planejamento para ser utilizada por qualquer fora social que assuma a meta

    SPT2000 e a estratgia de ateno primria.

    Nesse enfoque o planejamento entendido como um Processo social

    complexo que trata de influenciar as caractersticas de uma mudana social apartir da perspectiva de urna determinada fora social. Pressupe-se que,

    para pensar a ao futura necessrio conhecer-se uma teoria poltica mas

    esta teoria no explicitada nem discutida. Assim a existncia de interesses

    conflitivos reconhecida, porm a determinao desses conflitos no

    colocada. Diferenas entre grupos sociais quanto ao acesso aos servios e aos

    riscos de agravo sade so constatados sem tambm explicitar-se a

    determinao dessas desigualdades. Evidenciadas as diferenas, os

    instrumentos elaborados para a interveno no setor sade direcionam-se aos

    grupos sociais chamados de postergados objetivando diminuir essas

    desigualdades.

    ENSP/FIOCRUZ

  • 7/29/2019 Planejamento em Sade - Mrio Testa

    48/315

    I. O planejamento de sade na Amrica Latina 35

    Barrenechea e Trujillo admitem: a complexidade do sistema de sade

    como parte integrante do social pois o ambiente social turbulento e pouco

    previsvel; a fragmentao - o desenvolvimento dos processos sociais de forma

    brusca e no linear a dependncia do sistema de variveis fora de seu domnio,

    fora de seu espao de controle; e a incerteza no tratar com o futuro. 32

    Admitem a existncia de foras em oposio, a necessidade da negociao e

    de procedimentos para tal, e colocam o plano como algo em permanente

    elaborao e execuo quebrando em diversos nveis a base do planejamento

    normativo tradicional.

    Postulamos, assim, a existncia de trs vertentes de planejamento

    estratgico em sade atualmente na Amrica Latina: o planejamento

    situacional de Matus aplicado a sade, as propostas de Mario Testa e o enfoque

    de Barrenechea e Trujillo.

    Cabe, em primeiro lugar, um esclarecimento sobre o sentido aqui

    empregado para ESTRATGIA pois esse um termo amplamente utilizado,

    apresentando mltiplos significados. Estratgia arte de explorar condies

    favorveis com o fim de alcanar objetivos especficos.33 meio para alcanar

    um objetivo. proposio para futuro: o enunciado de diretrizes para o longoprazo (significado que aparece por exemplo em documentos das Naes