PLAQUETE-JG Merquior - 70 Anos de Nascimento-PARA INTERNET

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MESA-REDONDA EM HOMENAGEM AOS 70 ANOS DE JOS GUILHERME MERQUIOR14 de abril de 2011 Teatro R. Magalhes Jr.

COORDENAO GERAL ACADMICO MARCOS VINICIOS VILAA

COORDENAO ACADMICO DOMCIO PROENA FILHO

PARTICIPANTES Acadmicos Eduardo Portella Candido Mendes Sergio Paulo Rouanet Alberto da Costa e Silva Celso Lafer

J OS G UILHERME M ERQUIOR Quarto ocupante da Cadeira 36, eleito em 11 de maro de 1982, na sucesso de Paulo Carneiro e recebido pelo Acadmico Josu Montello em 11 de maro de 1983. Jos Guilherme Merquior nasceu na cidade do Rio de Janeiro, a 22 de abril de 1941 e faleceu no mesmo local em 7 de janeiro de 1991.

Apresentao*Marc o s Vi ni c i o s Vi l a a

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aros amigos e amigas da Academia Brasileira de Letras, com uma palavra especial aos familiares e colegas de Jos Guilherme Merquior. Comeamos a semana reverenciando Jos Lins do Rego; hoje a conclumos, honrando a memria e agradecendo a contribuio de Jos Guilherme Merquior. Ambos acadmicos, ambos to distintos na forma com que cuidaram do processo de criao. Desejo destacar amigos fraternos de Jos Guilherme Merquior e ouso no ser preciso esse destaque. O Ministro Paulo Renato Santos e o escritor e editor Jos Mario Pereira so guras emblemticas; um e outro, amigos verdadeiros do homenageado. Jos Mrio, alis, foi um grande animador desta reunio de hoje. Convivi com Jos Guilherme no Brasil e no exterior e guardo dele a sensao de que era uma enciclopdia. No existia o Google, e ele era um Google ambulante. Mas no cava s nisso. Era tambm um homem inclinado s amizades. Quem conviveu com ele apenas nos livros no tem a precisa ideia do que era como pessoa, afvel, bem-humorado, contador e ouvinte de piadas.

* Palavras do Presidente na abertura da sesso em honra de Jos Guilherme Merquior, em 14 de abril de 2011.

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A impresso que tenho, ao reetir sobre a trajetria infelizmente to rpida de Merquior, que seu relgio interior lhe cobrava pressa. Comeou suas atividades ensasticas com cerca de 18 anos. Aos 23, publicava o primeiro livro. Formado em Direito, ingressou no Itamaraty, onde cumpriu carreira velocssima e admirada por todos os seus colegas. Era to admirado que, naquela forma algo cruel, algo graciosa do Itamaraty em apelidar, o chamavam de Tesouro da Juventude. Merquior procurou aprimorar os seus conhecimentos no apenas no Brasil: frequentou a London School, onde foi admirado a partir do diretor Darendoff, que disse, ao comentar a frequncia com que Merquior buscava cursos de Ps-Graduao: No sei por que essa aio. Custei mais a ensinar do que a aprender. Meu espao exguo. Devo ced-lo o mais breve possvel aos debatedores e aos expositores de hoje, mas no posso omitir a alegria de recordar o momento em que Merquior, no alto das escadas da Biblioteca Nacional, fez, sem leitura, um discurso impressionante de anlise crtica da vida e obra de Carlos Drummond de Andrade, no momento em que comemorvamos os 80 anos do poeta. Eu era, poca, Secretrio Federal de Cultura, trilhando os caminhos inovadores que Eduardo Portella havia deixado no Ministrio. Lembro disso com a mesma emoo com que me recordo de Raymond Aron sobre Merquior: Esse menino j leu tudo. Eu diria mais: o menino leu tudo, buscava tudo, tinha ideias crticas, e no apenas de assentimento, por isso ele foi um vigoroso e fogoso polemista. Mas a ele no interessava discutir pessoas, mas ideias, como fez nos embates com Sergio Paulo Rouanet, Mrio Vieira de Melo, Paulo Nlson Coutinho, Francisco de Oliveira, Artur Giannotti, na discusso da psicanlise. Escritor de forma elegante, foi o primeiro, salvo engano, a trazer para o leitor brasileiro, em portugus, a obra da Escola de Frankfurt, num livro editado pela Tempo Brasileiro, grande editora que eu sempre sigo com especial ateno e carinho, porque se ela acolheu Merquior, tambm deixou espao para pequenos autores, como eu.

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Roberto Campos, quando da partida de Jos Guilherme Merquior aos 49 anos, no apogeu da sua produtividade, chegou a dizer que aquilo era um cruel desperdcio, completando: Deus faz dessas coisas: fabrica gnios e depois quebra o molde. s vezes d vontade de a gente, como no poema de Murilo Mendes, intimar o Criador a no repetir a piada da criao. Esse o caso de Merquior. No posso, por vrias razes mais objetivamente voltadas para questo do processo de criao , deixar de mencionar que Gilberto Freyre, meu saudoso amigo, por quem tenho, como sabido de todos, uma verdadeira venerao, era um entusiasta do saber e do modo do saber de Jos Guilherme Merquior. Muitas vezes me falou dele; muitas vezes o louvou na sua forma mais castia. Prometi no me alongar e no cumpri a promessa... Em tempo, porm, convido todos a escutar o que meus confrades tm a dizer e aano que no ser pouco.

Saudades de Jos Guilherme MerquiorE d u a r d o P o r tel l a

ompletaria agora 70 anos o ensasta maior que nos foi absurdamente sequestrado pelo destino h exatamente 20 anos. O seu nome legenda, lio , j se pode supor, Jos Guilherme Merquior. Quando relemos, quando retomamos a sua interlocuo, as datas se apagam para dar lugar luminosidade da reflexo. Ele pensou antes, antes que os homens e as coisas adquirissem os seus contornos mais imprecisos, sob os auspcios do soft power. Pensou, munido do esclarecimento exemplar e desde aquele lugar onde se erguem as manifestaes simblicas. Por isso, quando retornamos a ele, samos refortalecidos criticamente. Jos Guilherme Merquior foi um crtico de ideias e de literatura. Ou, se preferirem, de literatura e de ideias, tanto faz. Nele, no seu texto vertical, pensamento e linguagem se implicam constitutivamente. A lngua deixa de ser um mero instrumento de que se serve o argumento para se expressar, porque se amplia no conluio procriativo da palavra instada pela imaginao. Jos Guilherme Merquior conviveu de igual para igual com as grandes correntes do pensamento contemporneo. Fez e refez caminhos, atravs do magistrio, cotidiano, sbio e ntegro. Decolou com o poema em uma mo e a razo na outra. Ainda sentimos falta dessa racionalidade aberta, to mitigada

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nos dias atuais, quando os arroubos retricos se esforam desinibidamente para substituir a compreenso crtica dos valores. De Jos Guilherme Merquior, as Edies Tempo Brasileiro publicaram Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, A esttica de Lvi-Strauss e Estruturalismo dos pobres, bem como duas obras coletivas, uma Teoria literria, por mim coordenada e o volume O homem e o discurso, memorvel entrevista realizada com o pensador Michel Foucault por ele e pelo nosso querido Sergio Paulo Rouanet. A revista Tempo Brasileiro sempre foi e uma tribuna sua. Agora mesmo, no recente nmero 184, rendemos a nossa homenagem ao admirvel colega. Alis, do seu dilogo crtico com o estruturalismo francs vale lembrar o volume referencial Michel Foucault ou o niilismo de ctedra. Mas no cou a, porque ele percorreu todo o trajeto De Praga a Paris. J em Londres se fortalecer a sua opo liberal, em fecunda articulao com Popper, Berling e Gellner. quando se edita o seu lcido O marxismo ocidental. Os idelogos de planto, a servio da esquerda predatria, no lhe perdoaram. At porque no h nada to parecido com a direita quanto essa esquerda. Ambas preferiram substituir a razo pela exacerbao. Temos de respeitar o liberalismo ntegro de Merquior. Disse isto recentemente a propsito de outro amigo, to prximo do Brasil, o narrador Mario Vargas Llosa. Jos Guilherme Merquior sempre foi o pensador antenado das ideias e das formas. A sua racionalidade sabia controlar o impulso repressivo, para se projetar como instncia iluminadora. Tinha ele rme conscincia de que a autocrtica pr-requisito da crtica. E que, em caso contrrio, a crtica no passar de emanaes desarticuladas da subjetividade desequilibrada. Sabia, portanto, que a intuio sem habilitao termina sendo um mero salto no escuro. Merquior, embora polmico, era um intelectual generoso e convivencial. Competente nessa difcil arte de viver com, porque conviver no seno viver com, ele s no se comps com o sectarismo. E tambm com a psicanlise, gostando de repetir, acompanhado do seu bom humor habitual, e em aluso direta a Jacques Lacan, que estamos diante de uma lacanagem.

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Jos Guilherme foi igualmente o ensasta severo e sagaz, portador de um trao estilstico, para quem linguagem nunca seria um simples meio. E mais: que no se pode escrever literatura de fora da literatura. Com essa acuidade potica que vibra no Verso e universo de Drummond, ele escreveu a interpretao que continua sendo a mais importante obra j escrita sobre o poeta itabirano. A nossa interlocuo se estende pelo mundo afora. Em um longnquo dia em Paris, em encontro promovido pelo mestre Adonias Filho, combinamos de escrever juntos uma histria da literatura brasileira. Ele se encarregaria da primeira parte, de Anchieta a Euclides, e a mim caberia a segunda, dali at os contemporneos. Ao regressar, revendo as minhas anotaes, percebi que a minha viso do perodo era, quela altura, muito desfavorvel. Precisava de tempo. Felizmente vim a renunciar a minha participao no projeto, o que se agravou com a progressiva intolerncia que foi tomando conta de mim diante dos vcios do historicismo. Limitei-me ento a estimular Merquior a publicar a sua parte autnoma, que resultou no belo volume De Anchieta a Euclides, com algumas releituras inovadoras, entre as quais se destaca a de Machado de Assis. Muita gente fala de Machado de Assis nesse pas, e sobretudo nesta Casa, mas pouca gente teve o que dizer de novo sobre Machado de Assis. Jos Guilherme teve e disse. Foi quando, ainda navegando contra a correnteza, e revendo as apologias de Slvio Romero e Jos Verssimo, armou enfaticamente: Os nossos dois maiores crticos oitocentistas se chamam, na realidade, so Machado de Assis e Araripe Jnior. Hoje, na esperana de que possa me escutar, diria eu: os dois maiores crticos do sculo XX, no que venho designando de circuito crtico do Rio de Janeiro, atendem pelo nome de Alceu Amoroso Lima e Jos Guilherme Merquior. No Mxico, convidou-me para a palestra inaugural do Setor Literatura, da Ctedra Guimares Rosa, por ele criada na Universidade Autnoma do Mxico. Sobre a Escola de Frankfurt, nos entendemos e nos desentendemos. O seu livro sobre esses pensadores, talvez antes marxianos do que marxistas, foi pioneiro.

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Com o passar do tempo, o sotaque heideggeriano comeou a incomodlo. No foi a primeira vez a ocorrer essa desolao previsvel. Ele me chamou, entre fraterno e polido, como costumava ser, para me dizer que j no participava do meu compromisso hermenutico. Respondi-lhe, dentro da mesma civilidade que caracterizava a nossa interlocuo, que entendia, porm considerava mais difcil compreender Frankfurt sem passar por Heidegger. Sem ancorar ou se reabastecer no pensador da Floresta Negra, a dialtica negativa ou a crtica da razo instrumental, ou ainda a crtica da ideologia dominante, caria mais distante. O prprio Herbert Marcuse, o guru de 68, fez o doutorado com o pensador de O ser e o tempo, sobre a Ontologia de Hegel, vindo a ser seu assistente na ctedra. Voltamos a nos encontrar assiduamente no Rio de Janeiro, em Braslia e em Paris. Mantivemos correspondncia ininterrupta. Em Paris, em misso da Unesco, pude v-lo de perto no exerccio do cargo de Embaixador do Brasil. Assisti at os seus ltimos dias a representao superlativa de algum que conhecia, por dentro, os campos operacionais daquela instituio das Naes Unidas: educao, cincia e cultura. Certa vez, movido por um intervalo ldico, Jos Guilherme escreveu um livro muito do meu agrado intitulado Saudades do carnaval. Agora, s nos cabe, nesta reunio quase familiar, homologada por Hilda e Julinha, manifestar, com razo e emoo, saudades de Jos Guilherme Merquior.

Jos Guilherme Merquior 70 anosCndi d o M end es d e A l mei d a

ma das marcas da maturidade de uma cultura o pudor ou a resistncia em reconhecer-se a genialidade de um pensador. Entendo que esta responde, com todos os seus predicamentais, ao perl de Jos Guilherme Merquior. Valry dizia que o gnio quem sabe redescobrir a verdade dentro do bvio. Queria, entre tantas, salientar trs conotaes pelas quais Merquior congurou a nossa vida do esprito. E, de sada, a marcar este thos da conscincia amadurecida, a dar-nos o cnone da nossa prpria temporalidade interior, superando as dialticas fceis entre o moderno e, de fato, o psmoderno. E co feliz de que Celso Lafer j tenha ressaltado outros desses momentos-limite da reexo de Merquior. Regis Debray ainda nos lembrava, h pouco tempo, que uma cultura maior, ou decantada, a que se apossa de exemplos agonsticos de enfrentamento da morte. Na devoluo ao concreto desse seu ser no mundo, devemos a Jos Guilherme a ruptura com o nosso simulacro de seriedade em que, via de regra, nos desligamos do referencial de citaes, nos acomodamos a uma conveno sonmbula de ditos annimos do pseudo dilogo brasileiro, na tradio de uma subcultura consentida.

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Merquior na ida s fontes, na conferncia da alegoria, eliminou o ninho quente das ditas intuies geniais, no solipsismo empertigado da nossa conversao. Seu aluvio crtico percorria o dito grande pensamento da modernidade, nas formas canhestras em que acolhemos o marxismo e, mais ainda, o psestruturalismo. Ouvir do prprio Lvi-Strauss, a que reconheceria o pensador brasileiro, talvez, como seu crtico mais profundo. E no mesmo bordo que denunciou a nossa psicanlise, reclamando por uma fenomenologia do nosso inconsciente coletivo. Mas, sobretudo, h que atentar sobredeterminao do pensamento de Jos Guilherme, ao abrir caminho, alm da razo crtica, para o thos do caminho intelectual e, nele, contumaz e benfazeja pedagogia da intolerncia. Quem se esquecer da palavra-vergaste com que estigmatizava a burrice pretensiosa. Ia ao ingls, na fora das suas tnicas, para estigmatizar o insuportvel como o rubbish, na lacerao de todo seu exclamativo. Delineava-se, de vez, por a, e com toda nfase, uma distncia irremovvel com todas as retricas das ditas ps-modernidades. Este o Jos Guilherme da linha de ponta de Ernest Gellner, que traz o discurso e o seu logos escala do processo histrico e, nele, expresso heideggeriana, da dialtica do real concreto. O salto, de vez, da modernidade para a ps-modernidade impunha pelo cnone epistemolgico da desconstruo. Mas, no claro passo adiante do pensador brasileiro, no vis--vis com Foucault, Marcuse ou Derrida, Jos Guilherme antecipa Giorgio Agamben, no contrapor todo facilitrio desta metodologia ao autoesclarecimento, que irrompe no seio da obra, e que alvssara do seu sentido. Desde A razo do poema, nosso pensador vai a este veio, continuado em outro de seus livros seminais, que O vu e a mscara, para encontrar e voltamos a Heidegger da facticidade do texto e, por a, do seu conhecer. Devemos, por a, pioneiramente a Jos Guilherme a capacidade de sair da crtica da ideologia para a teoria da cultura. Nem por outro caminho vai hermenutica e ainda ao Heidegger dos Caminhos do bosque para o alerta da razo aberta, a fugir a todo jogo dogmtico, em bem de uma histria em processo.

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Na luta contra a morte, exatamente vivida na exemplaridade de uma situao-limite, Merquior emprestou-lhe um thos e uma assuno, a mesma que no quadro clssico da nossa genialidade literria, foi sano dos suicdios, de Raul Pompeia ou o de Pedro Nava, neste cnon da liberdade, extremado na sua lucidez. exatamente o oposto o caminho de Jos Guilherme, na operacionalidade fabril e atltica, no viver a nitude do instante, quase ciclpica, no agendamento do dia seguinte. Foi o que vi em Bordeaux como em Florena, no cdigo de todos os amigos, de no lhe pedir jamais notcias da sade nem, sobretudo, repetir-lhes as tranquilidades ingnuas dos votos de melhora. A partilha entre o silncio e a azfama desses dias era a do recado nal: o de no dar morte qualquer desguardo de viglia e, sim, no cotidiano de alertas e de redescobertas, plantar uma contemplao j ncada na eternidade.

Jos Guilherme MerquiorSerg i o P a u l o Ro u a net

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m 4 de outubro 2001, a Academia realizou, sob a presidncia de Tarcsio Padilha, uma mesa-redonda sobre Jos Guilherme Merquior. Participaram Antonio Gomes Penna (uma espcie de pai espiritual de Merquior), o escritor Leandro Konder, seu amigo dileto, e o editor Jos Mario Pereira, um dos seus admiradores mais incondicionais. Participaram tambm duas pessoas que esto novamente presentes no encontro de hoje: Eduardo Portella, gura to universal quanto Jos Guilherme, e eu prprio. Nesse homem que foi tantas coisas, qual o lado de Jos Guilherme que deve ser destacado, dez anos depois? O amigo? Talvez. Eu estava nos Estados Unidos quando Jos Guilherme comeou a publicar artigos no suplemento literrio do Jornal do Brasil, na ocasio dirigido pelo Reynaldo Jardim. Escrevia coisas sapientssimas, que eu achava que deviam ser de um sujeito pelo menos da minha idade eu estaria no nal dos meus 20 anos. Quando fui visit-lo, no Rio, a porta foi aberta por um garoto, que eu achei que era o lho de Merquior, mas era o prprio Merquior. A partir desse momento nasceu uma amizade, absolutamente no perturbada por nada, inclusive no perturbada pelos nossos frequentes desacordos, em conversas e por escrito.

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As vicissitudes de nossa carreira diplomtica impediam que nos vssemos com a frequncia desejada, mas cada vez que nos encontrvamos era como se s tivssemos nos separado na vspera. E retomvamos nossa interminvel conversa, sobre pessoas e ideias. Quando um de ns descobria um livro ou um autor novo, comunicava na mesma hora essa descoberta ao outro, com a animao de colegiais. Mas em geral era Jos Guilherme que fazia esse papel de desbravador. Lembro-me at hoje da excitao com que ele me recomendou a leitura do livro de Lucien Sebag, Estruturalismo e marxismo. Eu tambm quei fascinado pelo livro de Sebag (se no me engano, genro de Lacan), e foi por intermdio dele que entramos no novo paradigma que parecia estar se abrindo, o estruturalista. Merquior levou muito mais longe esse encantamento, pois escreveu sobre a lingustica ps-saussuriana e sobre a antropologia estrutural. Foi autor de um admirvel ensaio sobre a esttica de Lvi-Strauss, lido e elogiado pelo mestre em pessoa. poca inocente, essa em que tomvamos partido, aos berros, em bistrs parisienses, a favor da diacronia, como Sartre, ou da sincronia, como Lvi-Strauss, com a mesma paixo com que jansenistas e molinistas discutiam, sculos antes, no caf Procope, sobre a graa e a predestinao! E Walter Benjamin, sobre quem ele e eu escrevemos nos anos subsequentes, quem, se no Jos Guilherme, foi quem primeiro me chamou ateno para a importncia desse pensador? Fiel a seu papel de descobridor de novidades, Jos Guilherme telefonou-me uma vez (eu estava em Genebra e ele em Bonn) para me falar sobre um certo Jrgen Habermas, que, apesar de filiar-se chamada Escola de Frankfurt, estava trabalhando numa teoria audaciosamente ps-marxista. O diabo que esse jovem filsofo s escrevia em alemo e na poca no tinha sido traduzido nem em francs nem em ingls, as duas lnguas cannicas do intelectual brasileiro. Felizmente o problema no era insolvel: j existiam excelentes tradues italianas. Foi assim que pude tomar conhecimento das primeiras obras de Habermas. Depois aprendi alemo, graas a Barbara Freitag, a melhor intrprete entre ns da teoria da ao comunicativa. Mas confesso que at hoje, lendo Habermas

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no original, sinto saudades da poca em que o rido filsofo alemo se exprimia no mais suave e mais puro dialeto florentino. Em seu papel de amigo, Merquior ignorava barreiras polticas ou ideolgicas. Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho eram seus amigos fraternos, e em nenhum momento ele deixou de v-los e ser visto com eles, seja no Brasil, seja na Alemanha, na Frana ou na Inglaterra, apesar de sua condio de diplomata, e isso no auge da represso. Participei de um almoo, em Londres, em que Jos Guilherme recebia em sua residncia o ento arqui-inimigo do regime, o jornalista Hermano Alves. Ou quem sabe se o lado a ser destacado seria o do erudito? Uma resposta positiva no seria descabida. Se eu no tivesse receio de ser desmoralizado pelo esprito de Merquior com uma gargalhada devastadora, eu arriscaria a armao acaciana de que em seu saber enciclopdico ele era um dos derradeiros homens da Renascena. Ele escrevia superiormente sobre tudo, da losoa literatura, da teoria poltica de Locke ao falsicacionismo de Popper. Eu explorava essa erudio, sem nenhum complexo. Uma vez tentei localizar sem sucesso uma citao de Diderot feita por Machado de Assis e fui obrigado a consultar Merquior, j muito doente. Ele deu uma risada e respondeu: uma citao do Salon de 1767. E para completar minha humilhao, concluiu: claro! Mas, pesando tudo, creio que foi como polemista que Merquior se tornou mais conhecido. Certamente ele cometeu injustias, como todos os batalhadores de ideias. Foi um profeta bblico, da mesma linhagem que Voltaire, Victor Hugo e Leon Bloy, e seus raios nem sempre fulminavam as pessoas certas. Indulgente e generoso com as pessoas, era intransigente na defesa da verdade, em que acreditava profundamente. Pois esse liberal era tudo, menos um relativista. Era justamente por crer na verdade que ele era liberal, pois para ele s o jogo cruzado de argumentos e contraargumentos poderia aproximar da verdade os interlocutores, e por isso ele podia fazer suas as palavras atribudas a Voltaire: no concordo com uma s palavra do que dizeis, mas defenderei at a morte vosso direito de diz-las.

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Sim, sob o signo da polmica que o pensamento de Merquior pode ser mais bem compreendido. Ele polemizou com Marilena Chau, com Paulo Francis, com Meira Pena. Eu prprio fui uma vtima do talento combativo de Jos Guilherme, a propsito de Michel Foucault. Passados muitos anos, estou hoje convencido de que eu estava completamente errado e que Jos Guilherme estava inteiramente certo nas opinies sobre Foucault. Realmente, para me preparar para nossa mesa-redonda, fui reler um pouco o que ns escrevemos sobre Foucault e cheguei concluso de que hoje em dia eu concordaria em quase tudo com Jos Guilherme. Na poca, a questo era saber em que medida Foucault poderia ser considerado um lsofo irracionalista, na linha de Nietzsche, de Heidegger, de Derrida, de Deleuze, do chamado ps-estruturalismo francs. Eu contestava essa designao de Foucault como lsofo irracionalista. Eu dizia, ao contrrio, que Foucault era um lsofo iluminista, s que de um Iluminismo bastante especial. Uma das caractersticas do Iluminismo a de crtica permanente. Como Foucault permanentemente crtico, ergo, Foucault deve ser considerado um lsofo iluminista. E Merquior, com toda razo, achou de um simplismo absolutamente assustador esse tipo de equao de pensamento crtico com o Iluminismo. Hoje ns sabemos que existem vrias crticas, que existem crticas niilistas e crticas construtivas, que existem crticas de direita e crticas de esquerda. E certamente o tipo de crtica feito por Foucault no poderia ser considerada uma crtica iluminista, nesse sentido de f na razo, no progresso, na liberao, uma crtica emancipatria. Entre os ltimos artigos que escrevi no curso dessa polmica, h um com um fecho de ouro de que eu me orgulhava muito. Era uma citao de Ernst Bloch, em que ele dizia que o marxismo tem duas correntes: uma quente e outra fria. A corrente quente dedicada ao desvendamento dos possveis embutidos no presente, aquele marxismo que tenta desprender virtualidades emancipatrias contidas na realidade repressiva, ao passo que a corrente fria era aquela corrente glacial, objetiva, mas que presta a funo necessria de desmisticar as iluses e de tentar, sobre os destroos de iluses destrudas, construir caminhos que levem a Humanidade sua utopia. Eu achava que

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tinha terminado de uma maneira fulgurante essa minha contribuio. Para meu desapontamento, a resposta de Jos Guilherme foi devastadora. Depois de me ter demolido, com bastante competncia, durante vrios pargrafos, ele termina com esse gran nale: Quanto a essa questo de corrente fria do marxismo e corrente quente do marxismo, eu sempre achei que isso era um marxismo de torneira. Eu tinha me esquecido desta frase. Eu esqueci porque o meu ego no cou exatamente afagado com esse ataque do Jos Guilherme. Mas agora li e reli muito e achei que ele tinha razo. Realmente, essa conversa de corrente fria e de corrente quente marxismo de torneira. Eu gostaria de poder dizer isso a ele, mas sua ausncia torna a comunicao impossvel. Mas Jos Guilherme era um polemista to incorrigvel, que talvez, s para continuar a polmica, ele mudasse de posio quanto a essa verso, digamos assim, hidrulica, do marxismo. Despersonalizando um pouco o tema, exatamente contra o qu Merquior polemizava? Numa passagem de As ideias e as formas, ele se pergunta: possvel atacar o marxismo, a psicanlise e a arte de vanguarda sem ser reacionrio em poltica, cincias humanas e esttica? A resposta de Merquior evidentemente armativa, dizendo que o pensamento dele era estruturado por uma reexo, primeiro, sobre a poltica, segundo, sobre o homem, e terceiro, sobre a arte. Nessa reexo o autor tomava partido pelo progresso e pela modernidade e nessa tomada de partido rejeitava o marxismo, o freudismo e o formalismo esttico. Ele conduzia, portanto, uma trplice polmica: um ataque dirigido ao marxismo e apontando como soluo o liberalismo; outro dirigido psicanlise e apontando como soluo uma psicologia mais cientca; e outro dirigido aos vanguardismos formalistas, aos modismos galo-estruturalistas, como dizia Merquior, referindo-se potica contempornea que partia de Mallarm e que chegava a Barthes e outros papas da nova esttica europeia. O que Merquior tentou fazer foi sustentar essa trplice polmica em nome de uma viso progressista, no engessada por uma rigidez ideolgica qualquer, e no no sentido reacionrio, a servio do tradicionalismo.

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Primeiro, o antimarxismo de Merquior no era isento de um grande respeito intelectual pelo prprio Marx. Era do chamado marxismo ocidental que ele no gostava. Apesar de ter se encantado, na juventude, por autores como Walter Benjamin e os adeptos da Escola de Frankfurt Adorno, Horkheimer e Marcuse , medida que ia amadurecendo, ele ia se distanciando cada vez mais dessa corrente de pensamento. O marxismo clssico pelo menos tinha o mrito de ter respeitado o progresso, a cincia e a razo, ao passo que o marxismo ocidental procurava, ao contrrio, desacreditar a razo, demolir a cincia e substituir a crtica da cultura marxista clssica, que de alguma maneira estava atrelada a uma certa viso de futuro, por uma crtica obscurantista, irracionalista, cuja funo era desmoralizar a cincia e desacreditar a razo. Isto Merquior no suportava. Ele achava, portanto, que o marxismo ocidental no era outra coisa seno um captulo dessa longa e interminvel patologia da razo ocidental, chamada irracionalismo. O antdoto para esse desastre seria o liberalismo. Mas preciso entender que o liberalismo de Jos Guilherme Merquior no era o liberalismo dos neoliberais, era o liberalismo clssico, o liberalismo do sculo XIX. Portanto, no era sinnimo de economia de mercado. Merquior achava que a economia de mercado era necessria, mas sabia que o verdadeiro liberalismo tinha um componente poltico, o respeito democracia e aos direitos humanos, e que seria uma falsicao reduzi-lo defesa da economia de mercado, como aconteceu no Chile de Pinochet e no Brasil do tempo da ditadura militar. A viso do liberalismo de Merquior era completamente diferente. Seu liberalismo era inseparvel de uma viso de igualdade e de justia social. Ele achava que o liberalismo no podia se reduzir liberdade, mas deveria tambm incluir um componente igualitrio. Esta uma ideia que se encontra tambm em Celso Lafer, que diz: Se hoje a linguagem do neoliberalismo o liberalismo da economia de mercado, o liberalismo a isso no se reduz. Ele arma isso comentando o livro de Jos Guilherme Merquior sobre o liberalismo. Segundo, Merquior era um adversrio ferrenho da psicanlise, e nisso ns tnhamos posies diferentes. Seu antifreudismo partia de uma defesa intransigente da Razo e do Iluminismo. Ele achava que o freudismo de alguma

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maneira era solidrio de uma viso irracionalista, que ele e eu combatamos. S que para mim o freudismo no era um irracionalismo, mas o contrrio, porque era um herdeiro direto do pensamento iluminista do sculo XVIII. Merquior achava que o freudismo tentava colocar em questo o primado da inteligncia, a conquista mais alta da Razo ocidental. A razo para ele era o mais alto atributo do homem. Ela podia e devia ser usada para varrer a noite, como faz Sarastro na Flauta mgica, e no ela prpria vulnervel s investidas da obscuridade. A ideia de uma razo possessa, que, parecendo lcida, est a servio do delrio, era profundamente alheia a Merquior. Por isso ele evitava usar o conceito marxista de ideologia, falsa razo a servio do poder, e rejeitava com todas as suas foras o conceito de racionalizao, pela qual o sujeito mente sem saber que est mentindo. A grandeza e a dignidade do homem esto em sua conscincia, e a hiptese de que grande parte da vida psquica do indivduo se desse no inconsciente era, para Merquior, um escndalo intolervel. Era isto que estava na raiz do seu visceral antifreudismo. Nunca chegamos a um acordo sobre isso. Limito-me a dizer aqui que foi justamente por delidade ao ideal iluminista da razo que Freud tentou ajudar o homem a chegar maturidade intelectual, no sentido de Kant, a superar seu infantilismo, que o submete a tutelas heternomas, e que a esse tlos, o tlos da conquista da razo, que tende todo o projeto freudiano: Wo es war, soll ich werden, isto , onde havia o irracional, que passe a prevalecer o racional. O terceiro bloco dessa ofensiva dirigida por Merquior contra os inimigos do esprito, os inimigos da Razo, seria o formalismo esttico. Diz ele: A vanguarda uma forma extrema de arte pela arte, e nisso herdeira do Romantismo. Mas ao passo que romnticos como Shelley, Lamartine e Hugo acreditavam no progresso, os modernistas so socialmente reacionrios. o caso de Yeats, Eliot e Pound. Merquior parte do paradoxo de que o Modernismo na verdade antimoderno. O Modernismo est num polo e a Modernidade est no outro, as caractersticas do Modernismo esttico esto numa relao antittica com a Modernidade. um movimento que, chamando-se embora modernista, est numa relao antagnica com a Modernidade. dessa relao antinmica de Modernismo e Modernidade que

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Merquior parte para montar seu libelo contra as vanguardas formalistas e, por extenso, contra os intelectuais fabricantes de modismos estticos: O que esses profetas do Apocalipse desejam exercer a ditadura das ideias, uma grafocracia antimoderna da qual a seita vanguardista a manifestao mais acabada. A unidade da obra de Merquior, uma vez feitas essas pinceladas extremamente velozes sobre os trs grandes blocos da sua crtica, aparece agora com muita clareza. Cada um dos trs blocos temticos um grande plaidoyer a favor da Razo e da Modernidade: o marxismo retrgrado, porque tenta destruir o mundo moderno por uma utopia do sculo XIX, e antirracional, porque se ossicou num dogma; o freudismo retrgrado porque deslegitima a sociedade moderna, dizendo que ela se funda na represso, e antirracional, porque sabota o primado da vida consciente; o vanguardismo esttico, o crtico e o losco so retrgrados, porque contestam a Modernidade industrial e cientca, e antirracionais, porque colocam a sensibilidade, a paixo e a intuio num plano superior inteligncia. A ttulo de concluso, gostaria de fazer o que os escolsticos chamavam experimentum mentis uma experincia mental. Como veria Merquior, se estivesse vivo hoje, a paisagem cultural contempornea? A resposta parece fcil. Seus trs inimigos esto derrotados. A Histria sepultou o marxismo sob os escombros de um muro. O behaviorismo skinneriano e as neurocincias refutaram, ao que parece, a psicanlise. E o Ps-Modernismo decretou o m das vanguardas estticas. La guerre est nie. A guerra terminou, e Merquior est no campo dos vencedores. Ele estaria feliz se ressuscitasse. Ou no estaria? Talvez no. O que ele no aceitava no marxismo era o dogmatismo. Mas no o liberalismo, agora, que dogmtico, com a sua armao arrogante de que no h mais alternativas ao capitalismo global? O que ele detestava na psicanlise era a sua pretenso de ver em toda a parte conitos infantis inconscientes. Mas estaria ele disposto a aceitar o biologismo contemporneo, que substitui o determinismo psquico pelo determinismo do genoma e que em vez de atribuir a genialidade de Leonardo da Vinci a uma fantasia de infncia

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prefere atribu-la a uma protena? Merquior se distanciava das vanguardas, mas no sentiria saudades delas se viesse a se defrontar, hoje, com a literatura ps-colonial, ou com certos gender studies? Estaria ele feliz com as interminveis desconstrues empreendidas pelos Departamentos de Ingls das universidades americanas, com os cultural studies que destronam os cnones hegemnicos apenas para colocar em seu lugar um enxame de mediocridades politicamente corretas? Acho que no. Merquior no se arrependeria, hoje, de ter criticado o marxismo, a psicanlise e a vanguarda. No defenderia hoje, de uma maneira incondicional, nem Marx, nem Freud e nem Joyce. Mas, graas sua verve, sua cultura e sua combatividade, teria contribudo para que no sentssemos tanta falta desses trs grandes artces daquela modernidade que ele tanto admirava.

Jos Guilherme MerquiorAlberto d a C o s ta e Si l va

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uem abriu a porta a Sergio Paulo Rouanet naquele dia, num Rio de Janeiro que j vai longe, foi um menino que eu tambm conheci, um menino com 20 e poucos anos de idade, ou, melhor, um adolescente um adolescente liricamente adolescente, inquieto, impetuoso, desabusado, mas liricamente adolescente. E aquele homem de quem me despedi para sempre, quando ele tinha apenas 49 anos, e que chegou a usar um passa-piolho, uma barbicha para parecer mais velho, e cou parecendo ainda mais jovem, continuava a ser um adolescente, continuava a ter cara e jeito de criana, do mesmo modo que continuava a compreender o exerccio da inteligncia como dilogo, controvrsia e debate. Era um racionalista, desde os primeiros artigos que escreveu na imprensa carioca. Inimigo do indizvel que ento frequentava a nossa poesia e a nossa crtica, desconado das transcendncias, adversrio do esteticismo, sem jamais render-se, nas palavras dele, ao ininteligvel por declarar inefvel a essncia de toda realidade. Era no incio o que foi no m, com uma coerncia extraordinria de vida e pensamento, apesar das mudanas nas nuances de seu percurso pessoal. No Jos Guilherme do m da vida j estava o Jos Guilherme do seu primeiro livro, conrmando a minha impresso de que todo

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primeiro livro como o impulso do corredor quando ouve o tiro da partida. A essncia do que ele iria produzir est nesse impulso inicial, de que depende a velocidade da corrida. Merquior comeava a sua carreira como leitor de poesia, um leitor de poesia extraordinrio, porque ia buscar nos poemas o que outras pessoas no percebiam. Aqui j se falou do Poema do l, que o seu belo e instigante ensaio sobre a Cano do exlio, de Gonalves Dias. Quero lembrar um outro texto, aquele onde, que eu saiba, pela primeira vez, se chama a ateno para a sensualidade extrema, para o eroticismo que h na poesia de Joo Cabral de Melo Neto, sobretudo na poesia de Quaderna. J se disse aqui que Jos Guilherme era um leitor voraz, que parecia ter lido tudo. Era sobretudo um leitor veloz. Nunca vi ningum ler to depressa. Ele percorria cinco pginas, enquanto ns no tnhamos terminado a primeira, e tinha uma memria incomum. Ele lia lembrando leituras anteriores, e o que lia cava para sempre em seu esprito. Sua curiosidade no se esgotava. Quando ele vivia em Londres, eu costumava encomendar-lhe livros sobre histria da frica l publicados. Ele me mandava esses livros, geralmente com um bilhetinho, quando no escrevia na prpria guarda do livro uma pequena carta, em que dizia assim: Olha, estou te mandando este livro com atraso, porque quis l-lo antes de te enviar. Um exemplo: em Technology, Tradition and the State in Africa, de Jack Goody, que um livro fundamental dos estudos sociolgicos sobre a frica; ele escreveu, em 1975, que tinha tardado para me remeter o volume, porque passara o m de semana a l-lo. E acrescentava: Este livro suscita problemas do maior realce at mesmo em termos de pura teoria sociolgica, minha cachaa nestes ltimos, e pelos prximos 50 anos. Como se v, ele nos prometia, ou pelo menos me prometia, 50 anos de pensamento e criao, que caram reduzidos, para nosso prejuzo, a apenas 16, ou a um tero da promessa, de tal modo que ainda hoje guardo a impresso de que ele me faltou com a palavra dada. Tinha preparado vrias coisas para dizer sobre obras como Western Marxism, O vu e a mscara, O Liberalismo: antigo e moderno, mas sobre tudo isso j se falou, e com propriedade, clareza, preciso e brilho. Vou referir-me, ento, a um Jos Guilherme at agora esquecido: o crtico de arte, o estudioso da pintura

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que escreveu algumas pginas fulgurantes e talvez denitivas sobre Poussin e sobre o Classicismo francs, sobre a importncia do desenho em Poussin, sobre a importncia do azul em Poussin, um azul que animava o enredo de suas telas. Para Jos Guilherme, no se podia apreciar intimamente uma pintura do sculo XVIII, ou do sculo XVI, ou do sculo XV, ou do sculo XIV, sem entender o seu enredo, sem se procurar saber o que o quadro ou o afresco procuraram contar e dizer. Armava Merquior: No h obra de arte, verdadeiramente obra de arte, que no diga alguma coisa. obra de arte no bastava ser: ela tinha de signicar. Lembro bem do seu fascnio, dele e meu, por Erwin Panofsky, e pelos estudos de iconologia. E de como eles eram importantes para Jos Guilherme, para, digamos assim, desqualicar o formalismo enquanto formalismo. Recordo tambm um ensaio seu precioso, intitulado Kitsch e antikitisch, uma das melhores anlises que conheo do que representa o kitsch na cultura moderna e da tentao para responder ao kitsch com o kitsch. Jos Guilherme Merquior tinha para a pintura o olhar de poeta, o olhar de leitor de poesia. E foi com esse olhar que ele se deu a tudo, s teorias das ideias e at mesmo s tentaes da poltica. Ele lia o mundo como lia poesia e, muitas vezes, falou-me de uma grande obra para a qual se preparava. Sua ambio era escrever uma teoria sociolgica da criao, em que se tornassem mais compreensveis as relaes entre o ato criador e o poder, entre a poltica e a arte, entre o ser e o dever ser. Ficou a dever-nos a obra com que sonhava, porque a vida lhe foi pouca, mas dele guardo, mais que a lembrana, a saudade da inteligncia mais fulgurante que conheci na vida.

Recordando MerquiorC el s o L a fer

raas amizade os ausentes so presentes e os mortos vivem: vivem na honra, na memria, na dor dos amigos. Foi o que apontou Ccero escrevendo sobre a especificidade da grande experincia humana da amizade. E o que me vem mente ao recordar o percurso do meu querido amigo Jos Guilherme Merquior, neste ano de 2011, que assinala, com esta mesa-redonda na ABL, da qual foi um membro eminente, o 20.o aniversrio do seu prematuro falecimento, na antevspera de completar 50 anos. Jos Guilherme foi a mais completa personalidade intelectual da minha gerao. Integrou com brio e enorme talento a Repblica das Letras, nacional e internacional, tendo-se destacado por uma bem-sucedida, criativa e instigante mediao entre a crtica literria e a crtica das ideias. Sabia ler e interpretar, com nura analtica e imaginao crtica, poesia e co. Na sua doxa literria tinha a clara percepo de que a autonomia da arte no pode perder-se na autarquia do esttico. O seu ensaio de 1964 sobre a Cano do Exlio, de Gonalves Dias deu, desde logo, a medida da larga bitola de sua vocao de crtico literrio. Mostrou que este famoso poema da saudade escrito em Coimbra foi bem sucedido esteticamente por ser, sem adjetivos e graas tonalidade do texto e das palavras, uma grande expresso do valor da terra natal.

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O Brasil, na Cano do Exlio, no isso nem aquilo, o Brasil sempre mais, observou Merquior. Nos versos simples desse sentimento popular captado pelo engenho do romantismo de Gonalves Dias, projetou Jos Guilherme, com a orteguiana sensibilidade compartilhada da nossa gerao, o amor-vontade da construo de um Brasil amvel tema que se tornou uma das facetas do seu percurso. Jos Guiherme, movido e animado pelo potencial de entendimento oferecido pela razo, sabia expor, discutir e propor ideias sobre sociedade, poltica e cultura. No uso pblico da razo teve presente no horizonte de suas preocupaes os desaos do Brasil, um Outro Ocidente a ser aprimorado e completado por obra do amor-vontade que projetou na sua anlise de Gonalves Dias. Aplicava, no estudo da vida do cotidiano, o preceito socrtico de que uma existncia no examinada no vale a pena ser vivida. Na modulao e encaminhamento dos problemas da modernidade no Brasil e no mundo estava mais vontade com a ma de Newton, que leva ao conhecimento, do que com o simbolismo milenarista da ma de Ado no paraso. Entendia que Nenhuma crtica do poder possui o direito de absolutizar o poder da crtica. Do contrrio se marcha em linha reta para a supresso da liberdade em nome da libertao. No plano da razo vital, Jos Guilherme integrava a famlia dos grandes carnvoros. A sua curiosidade intelectual era inndvel. Estava, para recorrer a uma analogia de Swift de que se valeu, mais prximo das abelhas que iam buscar o mel do conhecimento na multiplicidade da natureza das obras, do que das aranhas, que tecem a sua escolstica a partir de suas prprias barrigas. Metabolizou e desvendou, deste modo, o alcance da genuna pluralidade de seus interesses com o poder de uma inteligncia superiormente abrangente, que foi, desde muito jovem, aparelhada para uma erudio excepcional que o tempo sedimentou e continuamente ampliou com o rigor e a disciplina do mais alto padro universitrio. Jos Guilherme escrevia aqum do jargo e alm do chavo, mesclando uma arte e um conhecimento que exprimia no seu texto a virtuosidade da vivacidade do seu esprito esprito ao qual no faltava nem o tempero da

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mordacidade travessa, que o gosto da polmica podia tornar contundente, nem, paradoxalmente, a serenidade do liberal neoiluminista da sua madura viso quarentona. A crtica das ideias pode levar leitura de obras, autores e perodos que ora so mais a favor, ora so mais contra. No percurso de Jos Guilherme a dimenso do contracrtico prepondera, por exemplo, nos livros em que tratou de Michel Foucault, do marxismo ocidental e do estruturalismo. O Liberalismo antigo e moderno, cujas provas ele reviu, mas que foi publicado postumamente, , no meu entender, no campo da crtica das ideias, a obra mais equilibrada e madura da sua fecunda e instigante trajetria intelectual. No pluralismo um tanto centrfugo da doutrina liberal e nas vrias vertentes da liberdade que contempla, encontrou Jos Guilherme uma viso das coisas e do mundo que se ajustava multiplicidade das suas curiosidades intelectuais e da sua personalidade. Fez, assim, no seu livro, uma leitura a favor, mas crtica, pois existem liberalismos de harmonia e de dissonncias, liberalismos conservadores e de inovao. Por isso cabe falar em liberalismos no plural e no no singular, como mostrou com excepcional acuidade analtica, explicando como uma s etiqueta uniformizadora no cobre adequadamente o que, no mbito da famlia liberal, nas suas dimenses econmicas, polticas e jurdicas, une e diferencia os seus pensadores. Por exemplo, Kant e Adam Smith, Humboldt e Tocqueville, Benjamin Constant e Stuart Mill, Sarmiento e Mazzini, Herzen e Ortega y Gasset, Einaudi e Croce, Raymond Aron e Hayek, Bobbio e Karl Popper, John Rawls e Isaiah Berlin. Neste livro sobre liberalismo, antigo e moderno, virtu e fortuna encontraram-se, dando a Jos Guilherme a oportunidade de, em funo do tema, harmonizar os seus mltiplos talentos e, com alto senso de proporo, combinar a sua fulgurante capacidade de sntese e a sua arguta competncia analtica. Destaco, neste campo, a importncia que deu obra de Bobbio e ao nexo que esta estabeleceu entre liberalismo e democracia, quando o empenho de igualdade est associado ao sentido do papel das instituies de liberdade.

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A travessia, que no foi excludente, da crtica literria crtica das ideias no percurso de Jos Guilherme se deu de maneira congruente pelos seus estudos sobre a legitimidade. Esta , como dizia Guglielmo Ferrero, uma espcie de ponte entre o poder e o medo. Esta ponte resulta de uma construo da cultura e dos valores. Provm dos jogos e dos signos de cada poca histrica, dos seus vus e das suas mscaras e se articula por meio da vigncia sociocultural dos cdigos de conduta. Nos modos histricos de assero da legitimidade, Jos Guilherme chamou a ateno para a novidade do modo tpico, que coloca em questo a concepo arquitetnica da ordem sociopoltica. O mago do novo esprito de legitimao centrfugo. D nfase validez dos direitos e valores reivindicados pelos localismos de situaes especcas. Na fragmentao do mundo contemporneo a percepo do modo tpico, explicitado por Jos Guilherme, uma contribuio heurstica para o entendimento de como politicamente necessrio, no plano interno e internacional, mediar a diversidade cultural e o conito dos valores. No livro dedicado ao tema da legitimidade em Rousseau e Weber, apontou Jos Guilherme que uma concepo subjetivista e fiduciria de legitimidade, baseada na crena dos governados e na credibilidade de uma reserva de poder dos governantes, prevalece nos paradigmas de Max Weber. Em contraposio, identificou em Rousseau uma concepo objetivista de legitimidade, cuja tnica encontra-se na autonomia do consentimento, como base da obrigao poltica. Uma concepo objetivista de legitimidade favorece a perspectiva ex parte populi e encontra espao nas situaes de poder nas quais a assimetria entre governantes e governados no acentuada e existe margem de manobra. Deste dilogo criativo com Weber e Rousseau extraiu Jos Guilherme consequncias importantes para a ao diplomtica brasileira que retm plena atualidade. Com efeito, para o Brasil, que tem um interesse geral e real em participar na elaborao e na aplicao das regras formais e informais estruturadoras da ordem internacional, o relevante na agenda da discusso da legitimidade o questionamento do soft power imobilizador da reserva de

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poder dos grandes e a nfase a ser dada ao consentimento dos muitos. No mundo contemporneo aberto multipolaridade existe espao e margem de manobra diplomtica para esta linha de atuao que tem sua matriz conceitual em Rousseau. Concluo lembrando que Jos Guilherme enfrentou a Indesejada das Gentes de que fala o poema de Manuel Bandeira, com destemor. Com a coragem, que resulta do sentimento de suas prprias foras, no se valeu das asas da prudncia para enfrentar o medo da morte e o medo do depois da morte articulado na poesia de Drummond, que ele estudou com tanta qualidade, como acaba de realar o confrade Eduardo Portella com a sua autoridade de grande crtico. Jos Guilherme mostrou, ao lidar com a doena que o levou pouco antes de completar 50 anos, para evocar Montaigne, que a rmeza na morte , sem dvida, a ao mais notvel da vida.

Petit Trianon Doado pelo governo francs em 1923. Sede da Academia Brasileira de Letras, Av. Presidente Wilson, 203 Castelo Rio de Janeiro RJ

PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS(Fundada em 20 de julho de 1897) As sesses preparatrias para a criao da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redao da Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direo de Jos Verssimo. Na primeira sesso, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sesses realizaram-se na redao da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sesso plenria da Instituio realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897. Cadei ra 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 Patronos Adelino Fontoura lvares de Azevedo Artur de Oliveira Baslio da Gama Bernardo Guimares Casimiro de Abreu Castro Alves Cludio Manuel da Costa Domingos Gonalves de Magalhes Evaristo da Veiga Fagundes Varela Frana Jnior Francisco Otaviano Franklin Tvora Gonalves Dias Gregrio de Matos Hiplito da Costa Joo Francisco Lisboa Joaquim Caetano Joaquim Manuel de Macedo Joaquim Serra Jos Bonifcio, o Moo Jos de Alencar Jlio Ribeiro Junqueira Freire Laurindo R abelo Maciel Monteiro Manuel Antnio de Almeida Martins Pena Pardal Mallet Pedro Lus Arajo Porto-Alegre Raul Pompia Sousa Caldas Tavares Bastos Telo Dias Toms Antnio Gonzaga Tobias Barreto F.A. de Varnhagen Visconde do Rio Branco Fu ndad o re s Lus Murat Coelho Neto Filinto de Almeida Alusio Azevedo Raimundo Correia Teixeira de Melo Valentim Magalhes Alberto de Oliveira Magalhes de Azeredo Rui Barbosa Lcio de Mendona Urbano Duarte Visconde de Taunay Clvis Bevilqua Olavo Bilac Araripe Jnior Slvio Romero Jos Verssimo Alcindo Guanabara Salvador de Mendona Jos do Patrocnio Medeiros e Albuquerque Machado de Assis Garcia Redondo Baro de Loreto Guimares Passos Joaquim Nabuco Ingls de Sousa Artur Azevedo Pedro Rabelo Lus Guimares Jnior Carlos de Laet Domcio da Gama J.M. Pereira da Silva Rodrigo Octavio Afonso Celso Silva Ramos Graa Aranha Oliveira Lima Eduardo Prado M e m b ro s Ef et ivo s Ana Maria Machado Tarcsio Padilha Carlos Heitor Cony Carlos Nejar Jos Murilo de Carvalho Ccero Sandroni Nelson Pereira dos Santos Cleonice Sera da Motta Berardinelli Alberto da Costa e Silva Ldo Ivo Helio Jaguaribe Alfredo Bosi Sergio Paulo Rouanet Celso Lafer Marco Lucchesi Lygia Fagundes Telles Affonso Arinos de Mello Franco Arnaldo Niskier Antonio Carlos Secchin Murilo Melo Filho Paulo Coelho Ivo Pitanguy Luiz Paulo Horta Sbato Magaldi Alberto Venancio Filho Marcos Vinicios Vilaa Eduardo Portella Domcio Proena Filho Geraldo Holanda Cavalcanti Nlida Pion Merval Pereira Ariano Suassuna Evanildo Bechara Joo Ubaldo Ribeiro Candido Mendes de Almeida Joo de Scantimburgo Ivan Junqueira Jos Sarney Marco Maciel Evaristo de Moraes Filho

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