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plástico bolha @OPlasticoBolha | jornalplasticobolha.blogspot.com | www.jornalplasticobolha.com.br Distribuição Gratuita Ano 7° - Número 32 envolvendo palavras www.angeloabu.com.br Verão Na calçada, ela e as crianças. Um calor de cozinhar lá dentro, o ventilador parou. O menor todo torto no colo, mosquito pega. Final do ano, ventilador de teto. Teto daquele jeito, vazamento na casa de cima. Os homens consertando. Corta a unha da menina, tesoura de costura. Copinho descartável entre as coxas, água oxigenada e amônia. O vizinho chega, pão e a margarina, foi rápido, de bicicleta. Caneca descasca- da no chão, café com leite, garrafa térmica amarelenta, café bom. Tira a nata que boia. Cheiro bom de café bom. O ma- rido parece até que sente o cheiro de longe, tá molhado de mangueira, bebe café puro, de pé, copo americano. Sempre magro, o marido, ela não entende. O maior solta pipa. Céu colorido, vento bom. Os moleques da rua de trás cortam to- do mundo, o maior xinga sozinho, ela grita ele, ele tem que comer, essa merda custa dinheiro. O maior acena e ela ri, um dente faltando, vai ao dentista qualquer dia, desdentada não consegue emprego, ela é boa de serviço. A espuma branca dentro do copo, ela esfrega na perna. A menina descoloriu o cabelo, faz sucesso, já namora. A gente cria filho pro mundo, a vizinha diz. Ela tem medo, Deus proteja, tanta desgraça. O menor dorme, mamadeira na mão, suco de groselha, pinga no peito. É grande pra mamadeira, não larga, vai ficar bicudo. Baixa o sol, a cigarra grita, hora dos cupins, corre pra fechar a janela. Suor. Escorre na frente da orelha, salpica o buço, mela o sovaco, molha até o cóccix. Cheiro de café, cheiro de suor. Final do ano, ventilador de teto. Bruna Mitrano DESTAQUES ENTREVISTA COM O ESCRITOR PAULO SCOTT, POR CAMILA JUSTINO MIRIAM SUTTER APRESENTA UM PRECIOSO ORáCULO DA DESPEDIDA MAURO FERREIRA E O NOVO CD DE TULIPA RUIZ NAS NOTAS NO PLáSTICO DOBRADINHAS POÉTICAS ENTRE ALICE SANT’ANNA E VALESKA DE AGUIRRE ILUSTRAçõES DE INGRID BITTAR, RAïSSA DEGOES, ÂNGELO ABU E HEINZ LANGER TEXTOS EXCLUSIVOS DE MARINA V. MEDEIROS, ROSáLIA MILSZTAJN E BRUNA MITRANO POEMAS DE JOãO INADA, IDJAHURE KADIWEL, LUIZ DA FRANCA, LARISSA ANDRIOLI, FERNANDO PAIVA, MARCEL FERNANDES, PEDRO ROCHA E NICOLAS BEHR CADERNO ESPECIAL EM HOMENAGEM A SANTUZA CABRAIA NAVES POR PAULO HENRIQUES BRITTO, LAURA ERBER, ALUYSIO ATHAYDE, JONAS SOARES LANA, LU MENEZES, GABRIEL IMPROTA, SARAH SILVA TELLES, AUGUSTO GUIMARAENS CAVALCANTI, ISABEL MENDES DE ALMEIDA, EDUARDO LACERDA MOURãO, VICTOR MORETTO, JúLIO DINIZ, CLARA LUGãO, FRED COELHO E LUCAS VIRIATO

plástico bolha · Baixa o sol, a cigarra grita, hora dos cupins, corre pra fechar a janela. Suor. Escorre na frente da orelha, salpica o buço, mela o sovaco, molha até o cóccix

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envolvendo palavras

www.angeloabu.com.br

Verão

Na calçada, ela e as crianças. Um calor de cozinhar lá dentro, o ventilador parou. O menor todo torto no colo, mosquito pega. Final do ano, ventilador de teto. Teto daquele jeito, vazamento na casa de cima. Os homens consertando. Corta a unha da menina, tesoura de costura. Copinho descartável entre as coxas, água oxigenada e amônia. O vizinho chega, pão e a margarina, foi rápido, de bicicleta. Caneca descasca-da no chão, café com leite, garrafa térmica amarelenta, café bom. Tira a nata que boia. Cheiro bom de café bom. O ma-rido parece até que sente o cheiro de longe, tá molhado de mangueira, bebe café puro, de pé, copo americano. Sempre magro, o marido, ela não entende. O maior solta pipa. Céu colorido, vento bom. Os moleques da rua de trás cortam to-do mundo, o maior xinga sozinho, ela grita ele, ele tem que comer, essa merda custa dinheiro. O maior acena e ela ri, um dente faltando, vai ao dentista qualquer dia, desdentada não consegue emprego, ela é boa de serviço. A espuma branca dentro do copo, ela esfrega na perna. A menina descoloriu o cabelo, faz sucesso, já namora. A gente cria filho pro mundo, a vizinha diz. Ela tem medo, Deus proteja, tanta desgraça. O menor dorme, mamadeira na mão, suco de groselha, pinga no peito. É grande pra mamadeira, não larga, vai ficar bicudo. Baixa o sol, a cigarra grita, hora dos cupins, corre pra fechar a janela. Suor. Escorre na frente da orelha, salpica o buço, mela o sovaco, molha até o cóccix. Cheiro de café, cheiro de suor. Final do ano, ventilador de teto.

Bruna Mitrano

DESTAQUESENTrEviSTA COm O ESCriTOr PAUlO ScOTT, pOr cAmilA JUSTiNO

miriAm SUTTEr AprESENTA Um prECiOSO OrácUlO DA DESpEDiDA

mAUrO FErrEirA E O NOvO CD DE TULipA rUiz NAS NOTAS NO PláSTicO

DOBrADiNhAS pOÉTiCAS ENTrE AlicE SANT’ANNA E VAlESkA DE AgUirrE

ilUSTrAçõES DE iNgriD BiTTAr, rAïSSA DEgOES, ÂNgElO ABU E hEiNz lANgEr

TExTOS ExCLUSivOS DE mAriNA V. mEDEirOS, rOSáliA milSzTAJN E BrUNA miTrANO

POEmAS DE JOãO iNADA, iDJAhUrE kADiwEl, lUiz DA FrANcA, lAriSSA ANDriOli, FErNANDO PAiVA, mArcEl FErNANDES, PEDrO rOchA E NicOlAS BEhr

CADErNO ESpECiAL Em HOmENAGEm A SANTUzA cABrAiA NAVES pOr PAUlO hENriQUES BriTTO, lAUrA ErBEr, AlUySiO AThAyDE, JONAS SOArES lANA, lU mENEzES, gABriEl imPrOTA, SArAh SilVA TEllES, AUgUSTO gUimArAENS cAVAlcANTi, iSABEl mENDES DE AlmEiDA, EDUArDO lAcErDA mOUrãO, VicTOr mOrETTO, JúliO DiNiz, clArA lUgãO, FrED cOElhO E lUcAS ViriATO

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Apoiadores do plástico Bolha – campanha do site CatarseEste ano, o plástico Bolha entrou em uma nova fase. Entre diversas ações de expansão e aprimoramento, fomos buscar meios alterna-tivos para ajudar a financiar as edições. Assim, decidimos fazer uma campanha para arreca-dar fundos no site Catarse.

A resposta nos surpreendeu! O carinho dos nossos leitores foi tamanho que, na metade do tempo, já havíamos atingido todo valor proposto. Foram 105 doações de colabora-dores e amigos dos quatro cantos do país e do mundo! Agradecemos a todos que se dis-ponibilizaram a ajudar o jornal, que apoiam a literatura e, acima de tudo, que torcem por um mundo com mais poesia.

Conforme prometemos, segue abaixo a lista daqueles que ganharam o título de Apoiado-res do plástico Bolha devido à generosa doa-ção! vale lembrar que tem muita gente que doou de maneira anônima ou que dispensou a recompensa. A todos vocês, nosso mUiTO OBriGADO!

piti ToméLuiza vilela

Domingos Guimaraenspaula paiva

Fabio BastosThiago Bento Ferreira

Flora BonfantiBeatriz Junqueira pedrasmariana Lopes peixoto

ramon melloSilvio Fraga Neto

Luiz LianzaBreno Coelho

Bráulio CoelhoAdriano Ferreira Ennes

Olivia ByingtonTheófilo rodrigues

Karen portugal Barbosa CordeiroLuiza machadoA Bolha Editora

maria Helena pacheco da SilvaClaudia roquette-pinto

Cacá DieguesSimone Kaplan

marcel Fernandes

BOlhETim

Editorialploct! Como prometemos, voltamos, abençoados pelos santos juninos que nos acompanharam na feitura desta edição. poesia em doses trimestrais, semeando palavras na emergência de reinventar a vida, seja com suavidade ou secura. E essa imensa plantação permite colheita farta. respiramos literatura, e vamos muito bem, obrigado. Ganhando as ruas, o Plástico Bolha é boa pedida para seu descanso, enquanto você conhece ou reconhece nossos autores, desbrava novas ideias e escritos. Nesta edição nossa equipe está desfalcada, a música em silêncio. Bolha. Bolha. Bolha. Sem melancolia, mas cheio de poesia, este Plástico Bolha está com saudades de Santuza.

EDiçÃO Lucas viriato | isabella pacheco

CONSELHO EDiTOriAL Alice Sant’Anna | Camila Justino | marilena moraes | maria de Lourdes Souza

DiAGrAmAçÃO mariana Castro Dias

rEviSÃO marilena moraes | isabella pacheco

EqUipE maria de Lourdes Souza | piti Tomé | mariana Salim | Camila Justino

wEBDESiGN Henrique Silveira

Edição financiada pelos amigos e leitores do Plástico Bolha

EDiçÃO Julho de 2012 / Setembro de 2012DiSTriBUiçÃO rio de Janeiro, minas Gerais, São paulo, Espírito Santo, Bahia, Distrito Federal, mato Grosso, paraná, Santa Catarina e rio Grande do Sul TirAGEm 13.000 | imprESSO na zm Notícias

ENviE SEUS TExTOS pArA [email protected]

Heinz Langer

Amantes plásticos

ANUNCiE NO PLÁSTICO BOLHA [email protected]

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Coração

Era a primeira vez que estava ali. Não sabia que não mais voltaria lá, ao menos fisicamente. Aquela imagem de vê-lo rodando ininterruptamente não saiu de minha cabeça por uma semana. Enquanto eu subia ou descia escadas, comia, tomava banho, escovava os dentes, na hora de deitar, quando acordava, — ele estava lá, girando e girando sem parar, sem cansar, sem comer, sem dormir, sem escovar os dentes, — e me sentia mal. Eu fazia tantas coisas nos meus dias, e ele só rodava. Entre um gole e outro de café, ele continuava a vir no meu pensamento como um coração que vive e bate sem interrupção e de repente se presta atenção aos seus batimentos. Eu prestava atenção a esse coração em minha cabeça, volta e meia e toda hora. Como que eu podia fazer tanta coisa em minha vida enquanto ele só rodava? Descobri que me importava com ele, que pensava num desconhecido e no que fazia, ou melhor, não fazia, paralelamente à vida que eu vivia. E como isso me revelava que estamos uns para os outros neste mundo, naquele pátio do hospital psiquiátrico, numa rua qualquer, numa cidade ou país. Compartilhamos todos.

Rosália Milsztajn

Solidão

Acordo com um derradeiro soluço do pranto sonhado. E uma última lágrima desliza por minha face como a carícia de um beijo vindo do bem-amado. Estou sozinha nesta estrada longa da qual não vejo fim, com seus alvores amadurecendo em escuridões neste meu tenebroso destino. O perfume da saudade me embriaga, dando a certeza latente e angustiante de que o que foi não o será uma vez mais.

Marina V. Medeiros

Aquela menina

Ela é cheia de si e vazia de mim.

As pessoas novas

A felicidade se faz com pessoas novas, que descem do céu, sobem da terra, saem de dentro de uma máquina de caça-níqueis.

país dos mágicos

“Se todos os livros forem escritos com tinta invisível, o índice de analfabetismo será nulo”, disse um deputado federal do país dos mágicos.

Crime e castigo

in crime we trust.please, darling, give me more of those stomach pills.

Coração japonês

— Tem vaga no seu coração?— Tem. mas o estacionamento custa r$ 15 a hora, bonitão.

Fernando Paiva

Ingrid Bittar

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Toda última quinta do mês às 20h

http://cep.zip.netTeatro Sérgio Porto, Humaitá, Rio de Janeiro

Só indo. Só vendo. Ouvindo. Vivendo.

pÃES ANTEpASTOS mASSAS mOLHOSpizzAS SALGADOS DOCES TOrTAS

Av. Armando Lombardi, 800 - lojas C/D/E Condado de Cascais, Barra da Tijuca - rJ Tel.: 2493-5611 / 2493-8939rua Conde Bernadotte 26 - loja 110 Leblon - rJ Tel.: 2512-2226 / 2540-0036

www.ettore.com.br | @EttorecucinaiT | www.facebook.com/ettorecucinaitaliana

Caminho

Nós duas dirigimos

(ainda sem chegar)

E mandamos postais

E escrevemos cartas

Enquanto rasgamos livros

E arranhamos discos

E estilhaçamos corpos

Enquanto isso —

É melhor acreditar

voltar pra casa

Não importa

Nenhuma estrada supera

A extensão das memórias

Larissa Andrioli

mareamos

você oscila: marola!E a gente se ama sobre as tuas ondasNo meu mar de descontentamento

E me brinca:— pra que águas remotas?Todo encanto sucede uma incerteza!

Ao léu dessas falsetasvivo imersoNo esforço apneicode profundezas.

Hoje aprendi a te amar:Ora escafandrista,Ora teu surfistaE sigo com a boca carregada do teu sal.

Rodolpho Saraiva

quantas faces tem a palavra

tem formiga, fumaça, lua, lontra, loa, elefoa, platibanda,helicóptero, falácia, uêpa, peba, jumento. tem rampa, escada,laguinho e tobogã.palavra é lesma, letra que se lacee depois de tanto bater a palavra na teclaela oferece a outra face

Pedro Rocha

vozes do cerrado

brasília, brasília,onde estásque não respondes?!

em que bloco,em que superquadratu te escondes?!

Nicolas Behr

O Plástico Bolha entrou no Labirinto poético! realiza-

do pela Secretaria municipal de Cultura do rio, com

curadoria de Lucas viriato, o evento acontece todo

último sábado do mês no Centro de Artes Calouste

Gulbenkian, no centro. O evento conta com a partici-

pação de mais de 25 artistas por edição, entre poetas,

músicos e artistas plásticos. Ao longo dos shows e lei-

turas de poesia, uma enorme tela em branco é pintada,

enquanto uma feira de publicação expõe as últimas

novidades. venha se perder conosco!

Todo último sábado do mês, a partir das 19h.Evento aberto e gratuitocalouste gulbenkianrua Benedito hipólito, 125 – rJ (próximo ao metrô Praça xi)

www.facebook.com/[email protected]

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plástico bolha@ O Pl a s t i c o B o l h a | j o r n a l p l a s t i c o b o l h a . b l o g s p o t . c o m | w w w. j o r n a l p l a s t i c o b o l h a . c o m . b r D is tr ibuição Gratuita Ano 7 ° - E ncar te espe cial

Para Santuza

Envoi

O tempo, que a tudo distorce,às vezes alisa, conserta,e a golpes cegos acerta:

em seu tosco código morsede instantes sem rumo e roteiroentão dá forma a algo de inteiro.

Não um verso, que em folha esquivaa gente retoca e remendaaté ser coisa que se entenda,

mas algo que na carne vivase esboça, se traça, se inscrevebem mais a fundo, ainda que breve —

pois todo poema é murmúriofrente ao amor e sua fúria.

Paulo Henriques BrittoIngrid Bittar

No início de abril, junto com o lançamento de nossa última edição, fo-mos pegos de surpresa pela partida inesperada da professora Santuza Cambraia Naves, nossa amiga e colaboradora. Sua primeira publicação conosco foi na coluna “Aos alunos com carinho”, da edição #13. Em seguida, elaboramos juntos um projeto que levaria aos leitores do plástico Bolha suas pesquisas e pensamentos acerca da antropologia da música. Surgia, assim, a coluna “Por dentro do tom”, que, desde a edição #17, trazia textos seus e de convidados, parceiros e orientandos. Ao longo desse tempo, San-tuza nos apresentou pessoas, abriu portas, aceitou e fez diversos convites, sempre incentivando imensamente todos do jornal. Para o plástico Bolha, sua ausência é irreparável. No entanto, como tudo em Santuza era solar, resolvemos juntar os amigos e parceiros para esta homenagem, este breve encarte especial feito de depoimentos, lembranças e saudades.

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“O passado é sempre um país exótico”, este foi o jogo verbal (boutade) de Santuza Cambraia Naves que mais ficou circunavegando em minha cabe-ça até hoje... Como escapar dos exotismos mais diversos e sedutores? Como sempre ressaltava Santuza, é difícil, ou mesmo impossível, discorrer sobre configurações da cultura brasileira adotando uma perspectiva dicotômica, como se tentássemos congelar e reproduzir aqui a vivência de certos modernismos europeus. Ou até pior seriam as abordagens históricas frias que, ou buscassem sínteses redutoras, ou reduzissem certos pensamentos críticos a meros jogos asseptizados. Se a categoria Arte é uma criação europeia, de início eurocêntrico, foi a partir do iluminista século xviii que o conceito de belas artes se institucionalizou. O pensamento evolucionista queria historicizar gradativamente as culturas, do selvagem ao civilizado. O século xix elabora estruturas para tratar da evolução da humanidade: é a época da criação da etnografia e dos museus etnográficos. Organiza-se aí a noção de “objeto etnográfico” que passa a ser visto como um documento do processo de civilização europeu, cor-respondente ao ápice da sofisticação técnica atingida por uma sociedade. Já no início do século xx, na Europa, se começa a questionar efetiva-mente a diferenciação entre artístico e utilitário através do diálogo artístico com a antropologia. São obras estas que valorizam potencialmente o elemento primitivo, como é o caso do Manifesto canibal (1920), de Francis picabia, texto que contagiou positivamente o Manifesto antropófago (1928), de Oswald de Andrade. Estes são dois textos exploradores do pensamento do bricoleur, impregnados de pensamento selvagem. Foi principalmente Lévi-Strauss, em La pensée sauvage, que mostrou que a mentalidade primitiva não é menos racional do que a nossa. Nesta obra capital, Strauss elabora o pensamento selvagem do bricoleur, caracterizado como aquele que trabalha com a colagem de tradições já existentes. Em sua oposição está o engenheiro que, tal qual um demiurgo, procura inovações para erguer novas ideias em prol de um marco zero. Enquanto o engenheiro lida com conceitos, o bricoleur aposta no processo e opera com signos não subordinados a um projeto. Ao contrário do engenheiro que, para efetuar seu trabalho, precisa de matérias-primas e projetos pré-determinados, o bricoleur atua com os materiais residuais de sua cultura, recriando representações e produzindo novos significados. Em nossos dias estamos cada vez mais próximos do pensamento do bricoleur, aquele que, ao encontro do intempestivo, trabalha com meios e limites heteróclitos sem se deixar subsumir. O instrumental do bricoleur não se fecha, é uma reconstante colagem e bricolagem... O cientista cria fatos através de estruturas, e o bricoleur cria estruturas através de fatos. A arte se in-sere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico. O artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: seu pensamento selvagem pode transformar o passado em um elemento menos exótico, mais possível de compor um possível objeto de conhecimento. para todos que conviveram com a Santuza fica aqui a lembrança de alguém profundamente interessada na larga abordagem entre o “fino” e o “grosso”, o popular e o erudito imbricados em um pensamento crítico nutrido pelo estranhamento antropológico. quando em diálogo, a antropologia e a arte podem potencializar o contemporâneo com suas intertextualidades. Se o passado é sempre um país exótico, de-vemos questionar quaisquer exotismos que não se permitam problematizar. Artistas e antropólogos podem desestabilizar fronteiras guarnecidas e modificar suas culturas. Esta é uma pequena homenagem à Santuza Naves, espírito inquieto em busca de bricolagens.

Augusto Guimaraens Cavalcanti

O sorriso inesquecível de Santuza Naves trazia a mensagem “seja bem-vindo”. Esse gesto traduzia uma enorme generosidade, desdobrada em várias outras qualidades, como a disposição para ouvir e a estimável solicitude. Santuza repartia-se em mil para atender com igual atenção aos mais variados pedidos de familiares, amigos, colegas e alunos. Como orientadora, deixava seus mestrandos e doutorandos livres para fazerem suas próprias escolhas, sem jamais furtar-se ao rigor teórico e metodológico. Sua orientação soava como música, graças à maestria com que essa intelectual brilhante guiava seus discípulos. Seu estilo despojado e colaborativo não combinava com o perfil centralizador do condutor de orquestra. por isto, ela preferia convidar seus orientandos para tocarem piano a quatro mãos. A Santuza se foi, mas suas ideias continuarão ressoando no pensamento dos profissionais que ela ajudou a formar e que tanto a estimavam.

Jonas Soares Lana

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Excesso e contenção. Erudição e simplicidade. O simples e o complexo. O mo-numental e o franciscano, sempre tão singularmente orquestrados por Santuza em seus desmanches e reinvenções de um modernismo musical que ela tanto palmilhou e recriou. E além dele, o percurso suave e intimista pela bossa nova, às suas nada “desavisadas” afinidades eletivas com a Tropicália, até o contemporâneo fervilhar periférico do hip-hop de Capão redondo e da antológica entrevista por ela realizada com BNegão, do planet Hemp. Ela fez muito. Conquistou muito. E deixou muita gente sem chão: família, alunos, amigos, uma legião de conhecidos e fãs, todos irradiados por sua simplicidade e exuberância arrebatadoras...

Com elegância, capricho e afeto tão seus, construiu uma trajetória acadêmica particularmente banhada pela vida, em sintonia fina e solar com o outro. No mais impetuoso do seu: ame-o ou deixe-o.

A conversa cotidiana com Santuza, além de atravessar o mero repertório dos fatos e acontecimentos, deixava-se conduzir, sobretudo, pela busca paulatina do afeto sempre de “plantão”, jamais rarefeito ou descuidado.

Santuza de Boa Esperança e do Bronx. Da street dance de Diamantina, o abraço sincopado na rua, no ritmo e sedução perfeitos a cada volteio de graça e ele-gância magistrais. Tudo capturado por paulo, câmera na mão.

Conviver tão proximamente dela como convivi era como acrescentar a cada dia um fragmento de intensidade à vida, era torná-la mais e mais um registro do inefável...

Alegria inundada em seu cotidiano de muita prosa e cerveja. Levou da vida tudo. Exaurimento do prazer, da canção e da paixão. Nenhuma sobra.

Isabel Mendes de Almeida

Crepuscular

No ano de 2005, comecei o curso de Ciências Sociais na pUC-rio e conheci Santuza. A partir dessa data, um novo mundo passou a se descortinar na minha vida.

Seu amplo conhecimento e a maneira como tratava as questões me fizeram descobrir a fascinante “philosophy with the people in”, a Antropologia. passamos a trabalhar juntos no ano seguinte. Não me esqueço de quando Santuza me mostrou um catálogo com obras de Clark, pape e Oiticica e me falou sobre esses artistas, marcando minha percepção artística e estética.

Santuza conseguia tratar das mais diferentes temáticas sem rechaçar jamais um dos lados da discussão, juntando opos-tos, não compartimentando ideias e gerando conclusões incríveis. Não tenho dúvidas de que, nas aulas da Santuza, minha descoberta e o amor pela área das Ciências Sociais nasceram (e até hoje permanecem).

A despeito de ser eu profundamente influenciado, do ponto de vista intelectual, por Santuza, sou muito mais que isso, um aprendiz da sua pessoa humana, pessoa “tão solar”.

Hoje, por gratidão e grande admiração, a nós compete não deixar ser esquecida aquela a quem a Academia e todos que com ela conviveram devem tanto.

Finalizo, confessando junto com Bandeira, que hoje “o meu semblante está enxuto/ mas a alma, em gotas mansas/ Chora, abismada no luto”.

Aluysio Athayde

Ela era encantadora, combinação de força e leveza, simpatia e firmeza.

Sentiremos falta da sua voz e dos fluxos do seu pensamento claro e ge-

neroso. Foi tudo muito repentino, e ainda não sabemos bem como dizer

esse vazio. A coisa toda parece um pesadelo, mas é a pura realidade em

sua crueldade multicolorida de onde tigres de saudade saltam, tentando

alcançar esse improvável oásis onde os mortos, como camponeses vigo-

rosos entre alfazemas, cantam, dançam e conversam. qualquer passo em

falso e tudo se dissolve sob belas imagens de consolo, belas palavras de

afeto, e talvez uma homenagem não seja exatamente isso — belas palavras

—, mas medir em silêncio a distância que agora nos separa daquele sorriso.

Laura Erber

Santuza vai estar sempre presente nos trabalhos de todos nós, que temos a música como objeto de estudo e grande amor. Era ao mesmo tempo doce e firme, sábia e aprendiz, atenta e avoada, nas do-ses certas. Não há palavras que possam dar conta. Talvez só mesmo todas as músicas.

Clara Lugão

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Como falar de uma pessoa que marcou minha vida pela presença amiga, fiel, intelectual, profissional, sem deixar de lado muita coisa?

Santuza foi uma amiga desde os anos noventa, quando a conheci na Universidade Candido mendes, e em seguida seguimos juntas na pUC, no então Departamento de Sociologia e política: por quase vinte anos, tive o privilégio de partilhar com ela o empenho e a dedicação na construção de nosso Departamento. Acompanhei o seu processo de entrada no doutorado e sua tranquilidade e empol-gação prazerosa para realizar sua tese sobre o modernismo, jamais estressada com a meta proposta; sua bela defesa de tese, assistida por uma sala repleta de amigos/admiradores; a sua dedicação incansável na preparação dos cursos que ministrava, extremamente feliz por encontrar bons alunos, nos quais identificava o gosto pelo conhecimento e a paixão pela antropologia da arte e da música. Foi uma grande mestra, uma professora adorada e admirada por várias gerações de alunos que por aqui passaram. Alguns não mais a deixaram, tornaram-se seus amigos e colegas de trabalho, até o fim.

Nossa cumplicidade aconteceu desde sempre: embora não trabalhássemos sobre os mesmos temas, sempre manifestei minha admi-ração pela trajetória profissional de Santuza, pelo seu incansável deleite em relação à arte, ao belo, sua enorme sensibilidade artística. muitas vezes ela foi minha consultora preferida para assuntos estéticos. E como não deixar de lembrar sua encantadora performance de cantora nos saraus que organizávamos, nos aniversários de amigos?

Sua doçura e sua serenidade eram marcas do cotidiano profissional. Sempre nos abordava com um doce sorriso, que se desfazia ra-ramente. Tinha um profundo senso de justiça, e esta sua qualidade também me impressionava, neste universo acadêmico que podia eventualmente ser muito ingrato. Sua revolta pelo pouco reconhecimento acadêmico às inúmeras participações em bancas de mestrado e de doutorado, atividade à qual se dedicava com generosidade e acuidade intelectual, era um exemplo do desconforto saudável em relação ao “mundo lattes”, da quantificação de algumas atividades arbitrariamente classificadas como as mais legítimas, em detrimento de outras atividades nobres.

pois bem, no último ano ela obteve dois financiamentos de agências públicas para, finalmente, poder montar um núcleo que seria uma parceria entre a antropologia da arte e da literatura com o Departamento de Letras, o NELim. O mundo acadêmico, através de suas agências de financiamento, começava a reconhecer sua competência e seriedade.

Ela partiu no auge de sua trajetória intelectual, repleta de projetos, felicíssima de finalmente residir quase ao lado da pUC, não mais ter de enfrentar o trânsito infernal que vai minando as energias das pessoas. No último janeiro, quando teve de ficar de repouso forçado, falou pra mim: “Ainda bem que tenho de escrever um livro encomendado pelo Eduardo Jardim!”, o que revelava o lugar apaixonante ocupado pelo conhecimento em sua vida. E para ajudá-la nesta empreitada, de escrever quase deitada, paulo, seu eterno companheiro, havia providenciado um apoio para o laptop, me contou, muito feliz.

vários de nós estamos com uma sensação estranha em relação à sua partida: não é verossímil, ainda iremos encontrá-la, apenas partiu em viagem. pois bem, mesmo que a viagem da Santuza tenha sido a definitiva, ela ainda e sempre permanecerá entre nós: seja nos momentos em que comemoramos nossas conquistas acadêmicas, quando seus alunos realizam trabalhos com dedicação, quando seus temas diletos são por nós abordados, ou quando realizamos saraus, pois nestes momentos estamos reverenciando esta pessoa linda que foi-é nossa Santuza querida.

Sarah Silva Telles

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Sempre que me lembro da Santuza, minha memória se cobre de admiração, e quando falo dela para alguém, deve ser fácil captar a doçura nos meus lábios. Não chegamos a conviver muito, e só vim a conhecê-la pessoalmente no ano de 2010. Antes, apenas através de alguns escritos que havia lido com muito interesse. A crítica cultural e a antropologia são paixões intelectuais em minha vida, e Santuza materializava em seu trabalho uma potente articulação destes saberes. pude confirmar, já como aluno, a competência e a incansável dedicação com que se lançava ao estudo da música, da arte e de questões que marcaram profundamente a história cultural do Brasil no século xx. intelectualmente, a Santuza era brilhante, dona de aguçado olhar multidisciplinar que a dotava de uma grande capacidade de captar sentidos e tecer relações inevidentes à primeira vista. Seus livros O Violão Azul e Da Bossa Nova à Tropicália já são clássicos, e seus vários outros escritos por certo perdurarão como leitura fundamental aos estudiosos não apenas das ciências sociais ou da música, mas das ciências humanas em geral.

Como professora, a marca que me ficou, sem dúvida, foi a de sua generosidade. Tão logo comentei com ela sobre meu trabalho de mestrado, já demonstrou interesse, me indicou referências, e pouco tempo depois me convidava pra escrever aquele que foi meu primeiro artigo acadêmico publicado em jornal, por sinal, em sua coluna “por dentro do tom”, neste mesmo Plástico Bolha ao qual retorno para lhe prestar meus agradeci-mentos públicos e enternecidos. Não é de espantar que tanta gente boa tenha se aproximado de Santuza, que tantos alunos tenham procurado se embeber de seus conhecimentos, que tantos colegas tenham obtido abrigo intelectual em seus projetos, livros, conferências, orientações, núcleos de estudos, aulas, organização de seminários… ih, a lista é extensa! Santuza tinha esse dom gregário e cativava pela simplicidade. Dizem que também cantava bem, disso não cheguei a ter o prazer de desfrutar. mas com certeza espero encontrá-la um dia ainda para podermos — como se diz na gíria dos chegados em música — “levar um som”. minha gratidão, respeito e admiração eternos pela Santuza Cambraia Naves!

Eduardo Lacerda Mourão

Acalanto

Noite após noite, exaustos, lado a lado,

digerindo o dia, além das palavras

e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,

fartos de voz e verticalidade,

contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho

na morte corriqueira e provisória

de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,

a cotidiana e mínima vitória:

mais uma noite a dois, um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos

ao aconchego de um outro corpo morno.

Paulo Henriques Britto

De lugar nenhum

viveria em terras distantes, de paisagens inconscientes, frutas exóticas e almas excêntricasAlimentaria meu delírio, contra os quentes trópicos, de tristes tendências e felizes coincidênciasFicaria sóbrio, inebriado de virtudes à filosofia alemãSoaria sádico, numa poesia pagã

mas no planeta meu mundo é hoje

Na terra em que for, seremos um paístórridoantropofágicopós-utópico

De dia, almoçaremos tranquilospra noite voltarmos cantandono barro onde veio o limonum mundo encaetanado de Oswaldsmarios, Octaviose paz

Victor Moretto

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Conheci Santuza quando ainda era adolescente e gostava de fazer canções com seu filho mais velho, o querido Felipe, colega de saraus CEAT/São vicente. Cueca (este era o apelido de Felipe) era muito inteligente e foi poeta de destaque entre nós. Foi também o primeiro letrista com quem dialoguei. Nunca me esqueço de sua poesia O homem-ovo, um grande sucesso no jornalzinho escolar. Na mesma época, pichamos jovialmente no muro do São vicente: “Coltrane é deus!”, em uma referência ao genial saxofonista John Coltrane.

Santuza e Felipe me receberam algumas vezes em seu apartamento em Laranjeiras e me abriram um mundo de novidades de amor à arte e aos livros. “Amor” pode soar cafona, mas é uma palavra que me ocorre muito quando penso em Santuza em casa com a família, ou mesmo em qualquer lugar, com todos. No tom caloroso da sua voz sempre ouvi o som de uma generosidade só dela, que é para mim um sinal de inteligência maior. Ou de “amor”.

pois bem, ia ao apê de Santuza, onde conheci Júlio, seu filho mais novo, e paulo, sua cara-metade de múltiplas habilidades, poeta e matemático. paulo nos aplicava o que havia de melhor em música, que ele colecionava em fundadoras fitas K7. Ouvíamos de Anton webern a Charles min-gus, passando por mil coisas de que já me esqueci, ou nem tanto. Daniel Caetano, um amigo nosso muito antenado, tinha grande admiração por paulo e só ouvia o jazz de primeira que ele aplicava na gente, copiado das tais K7. Desculpem se me desvio muito, neste tom informal, mas tudo isso para mim é Santuza; e é minha vida também.

Alguns anos depois, fui fazer mestrado em composição musical na UNiriO, sobre a música do maestro pernambucano moacir Santos e suas Coisas. moacir era um negro erudito, compositor de Nanã, que foi professor de Baden powell, Nara Leão e muita gente boa da bossa nova. Ele dizia compor “música negra”— e estava dado o problema antropológico. pedi ajuda a Santuza, que foi generosa como sempre, e fez parte também da minha banca final no mestrado. Acho que ela gostou disso tudo, porque me presenteou com o seu maravilhoso Da Bossa Nova à Tropicália com a dedicatória simples e bonita: “vamos trabalhar juntos?” (hoje guardo isto como preciosa relí-quia!). E trabalhamos em um artigo para a Ciência hoje sobre bossa nova, onde escrevi um box sobre João Gilberto. Ela, generosamente de novo, citou este pequeno escrito no seu valoroso A canção popular no Brasil. Então entrei para o doutorado com ela na pUC e confesso, meio en-vergonhado, que fui um orientando um pouco rebelde, em alguns momentos. mas me orgulho porque soubemos driblar as diferenças de gosto, ou de geração, sei lá. E estava tudo indo bem, até que aconteceu o pior, e... ela partiu de repente!

restaram de Santuza, para mim, além da lembrança de sua generosidade superior e do seu be-líssimo amor à vida e aos vivos, seus escritos e uma forte vontade de chorar, de vez em quando. E sua voz, que ainda me diz muito, e acho que sempre dirá.

por fim, tocando violão na sua missa de sétimo dia, ainda aprendi com Santuza a música “Desde que o samba é samba” e me espantei: mesmo depois de sua partida, ela ainda me ensinou a gostar de uma canção, com sua generosidade imensa! Foi bom tocar para ela esta última vez, mesmo nestas condições. Enquanto me preparava para tocar na missa, imaginei para Santuza um grande enterro africano, festivo, com Gil e Caetano arquitetando rocks tropicalistas, poetas recitando poesias fantásticas, e todos comendo e bebendo em homenagem a ela, que diria naquele tom de voz caloroso, do qual nunca me esquecerei: “que maravilha, meus queridos!”.

Gabriel Improta

Nós nos conhecemos ainda na década de 1980, trabalhando no Arquivo Nacional como pes-quisadoras. Ela fazia o mestrado em Antropolo-gia, no museu Nacional, eu em Semiologia, na ECO. Embora o fabuloso acervo me fascinasse, não me sentia à vontade no AN. Santuza, que andava em grupo por lá, também não. mas tinha o dom de gostar das pessoas. E era fácil gostar dela. Ambas acabamos pedindo demis-são, coisa rara em tal meio. Santa possuía uma das mais belas vozes femininas que jamais ouvi. Entretanto, com toda a felicidade metonímica possível, tinha passado de promessa artística a estudiosa e ensaísta de primeira linha da mpB. pontuava sua fala de modo inesquecível, jogando o cabelo para o lado quando o ardor do pensamento ganhava a cumplicidade de todo o seu ser. Foi sempre admirável e encan-tadoramente generosa. Lembrar-me dela dá tanta saudade quanto prazer.

Lu Menezes

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mas quando você vai embora...

Desde o falecimento de Santuza que eu participo de homenagens ou escrevo textos dedicados a ela. prova inconteste de sua presença luminosa

entre nós. Em todos, tive que dar conta da figura, digamos, oficial, falar da grande professora, mestra, orientadora e intelectual que foi Santuza

Cambraia Naves. Aqui, neste breve texto para o Plástico Bolha, vou me dar o direito de falar da amiga. Claro que uma coisa não se separou da

outra — nunca — na minha relação profissional e pessoal de dez anos ao lado da Santuza. Dentre esse período, aliás, muitos anos de convivência

quase que diária. Falo da amiga, pois foi como amiga que ganhei suas maiores lições. Foi da amiga que recebi carinho em horas difíceis da minha

vida pessoal e que recebi a confiança necessária para conquistar meu caminho profissional. por causa dela é que vim parar na pós-graduação

de Literatura na pUC. por causa dela conheci pessoas que publicaram livros meus; por causa dela, aliás, publiquei meu primeiro artigo em uma

revista acadêmica. E Santuza não ajudava os outros como favor ou como forma de compadrio, tão corrente por aí no meio acadêmico. Santuza

me ajudava porque confiava no meu trabalho — e de todos que ela convidava para trabalharem com ela. Nunca deixou de apontar para mim

o que ela considerava equivocado no meu pensamento, nunca se furtou de criticar minhas ideias que não eram confluentes com as dela. Aliás,

discutíamos muito (e nem sempre de forma amena) sobre os assuntos que nos interessavam — música principalmente, mas também literatura,

cinema, teoria social, relações intelectuais, família, amores, tristezas, visões de mundo...

Não sei quando vou compreender de vez que não a tenho mais por perto. Como disse logo após a morte dela, não há uma linha sequer que eu

escreva ou uma palavra que fale em sala de aula que não traga Santuza colada, costurada. Sua presença em minha vida ocorre na articulação

perfeita entre o intelectual e o sensível, entre a razão e a emoção. Fazer bem feito, mas sempre com o coração. Sua coluna aqui no jornal, por

exemplo, era algo que ela curtia, um exercício para convidar pessoas que ela admirava ou com quem trocava ideias. Escrevi uma vez a pedido

dela, assim como muitos outros. Foram, aliás, muitos artigos, livros, seminários e entrevistas que fizemos juntos (com Tatiana Bacal, Thais medeiros,

micaela Neiva, Juliana Jabor e muitos outros que Santuza agregava em seus processos criativos). Já tínhamos um jeito próprio de escrevermos

a quatro mãos, e gostávamos disso. Eu gostava muito. Creio que ela também.

Enfim, como disse no começo, não sei muito como me colocar sobre a Santuza sem ser a partir do ponto de vista formal. pois, quando entro no

registro pessoal, tudo fica confuso. Às vezes forço minha mente para me lembrar de passagens peculiares, momentos marcantes, mas sempre

percebo que vivemos tudo em um grande bloco de afeto. Um bloco maciço, coeso, pleno, permanente. Não há memórias sobre a Santuza por-

que não há um passado dela. Santuza será, sempre, presente. Fazer o luto é fundamental, mas a morte do corpo, no caso dos pensadores, é só o

começo da estrada para suas ideias. que os livros e as lições de Santuza sigam entre nós, com cada vez mais força. O que fica é o amor. Sempre.

E se existe algo que eu guardo dela é isso: o amor sincero e sorridente pela vida, mesmo no âmago da maior adversidade.

quando eu chorava pela sua perda, no auge da tristeza, lembrava os versos de waly Salomão, musicados por Jards macalé (dois que adorávamos

em comum, e que tive o prazer de conhecer pessoalmente por causa dela), versos de “Hotel das estrelas”, os quais ela sempre gostava de lem-

brar e cantar: “Não choro. meu segredo é que sou rapaz esforçado”. Já chorei demais; então, que eu continue, por ela, a ser um rapaz esforçado.

Santuza, um beijo para você.Fred Coelho

ANTrOpOFAGiA TrANSCENDENTALapós a mortea alma da gentese transfere pra almade quem gosta da gente

Lucas Viriato

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www.boamusicaricardinho.com

Este site oferece vasto material sobre a história da música sertaneja de raíz e sua evolução. Traz bio-grafias de mais de 200 duplas, compositores, intér-pretes e instrumentistas renomados, com vídeos de programas de rádio e Tv sobre o tema. preo-cupado com a preservação da memória musical brasileira com ênfase especial à nossa música cai-pira de raíz, o idealizador do site ganhou o prêmio rozini de Excelência da viola Caipira. quem gosta de uma boa moda de viola vai gostar; quem não conhece vai se surpreender.

www.lusohiphop.net

Enfatizando a produção de música hip-hop em países de língua portuguesa, este blog tem o foco na troca de informações e de material fotográfico e videofônico. Aqui é possível ouvir diversos rappers lusófonos, ler entrevistas e outros materiais escritos sobre o tema. Um espaço para contato com o que vem sendo produzido por mCs como projota, ready Neutro e Amigos, Emicida e rolex conectando mCs de Angola, Lisboa, Brasil e outros países que falam português.

www.terruapara.com.br

Terruá pará é um projeto de divulgação da música da Amazônia, especialmente do pará. O evento, apresentado inicialmente em Santarém, já teve du-as edições em São paulo e, em 2012, chega também ao rio de Janeiro. ritmos como carimbó, guitarrada, tecnobrega, e artistas como mestre Solano, Sebas-tião Tapajós, Dona Onete, Aldo Sena e Orquestra de violoncelistas da Amazônia participam do Terruá pará numa fina sintonia entre mestres tradicionais e jovens músicos. No site pode-se ouvir diversos artistas e conhecer o ritmo paraense que vem ganhando o Brasil.

www.sul21.com.br/blogs/pqpbach

Blog muito bem pensado, com um grande leque de informações sobre a música clássica, de Bach a Ca-nhoto da paraíba, de Debussy a Jerônimo de Souza, passando por bandas, instrumentistas, histórias da música e a cena contemporânea. E mais, download de CDs completos. É só clicar e curtir. Ou pegar o Trenzinho caipira com Heitor villa Lobos e viajar.

Vale o clique!

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Nunca conhecei alguém que se chamasse Santuza, além dela. Era uma marca de originalidade, de singularidade que envolvia a minha amiga a partir do seu lugar de nomeação e existência. Ser Santuza era por si só uma invenção.

Conhecemo-nos em meados dos anos noventa. Foram quase vinte anos de convivência próxima, almoços frequentes, papos intermináveis, debates acalorados, viagens, olhares, cumplicidade. Aprendi desde cedo a entender aquela mineira do interior com ares cosmopolitas, aquela perso-nagem das Geraes que sabia como ninguém transitar pelos caminhos do mundo. Ser Santuza era por si só uma transcriação.

Era uma mulher elegante, vaidosa, bela. Flanava pelos pilotis da pUC com ares de Tigresa e sorriso cor de mel. Envolvia os amigos, colegas de trabalho e alunos com aquele carisma que só as criaturas brilhantes possuem. Dividimos quatro cursos de pós-graduação no Departamento de Letras. Foi uma experiência única: dois professores de áreas diferentes, com algumas posições distintas, discu-tindo as relações entre literatura, música popular e antropologia. Foi uma experiência inesquecível para nós dois. Foi a consolidação da nossa parceria acadêmica. Santuza era por si só provocação.

quando estávamos concluindo uma etapa importante do nosso projeto comum, ela se foi. Foi-se na inquietude e no estado de beleza que eram suas marcas no trato com a vida. Deixou-nos uma obra importante, um conjunto de textos significativos e principalmente um vazio na ordem dos afetos. quero sempre me lembrar dela como uma mulher forte, interessante, interessada e nobre. minha amiga era por si só paixão.

Júlio Diniz

por miriAm SUTTEr

Nada é repetível, tudo é repetente? Assim, não mais que de repente, o fio das miçangas se rompe de imprevisto, e perdemos — assim de repente! — uma de suas mais que preciosas pedras. Diante de extremos como este, só a linguagem mítica dá conta dos sentimentos.

Vivia outrora no (en)cantante vale do reino de Orfeu uma encantadora socióloga. Santuza era seu nome. Em seu cantar, ela se dedicava a entender a alma brasileira manifesta na mais antiga das artes: a música. Dos braços que nos embalam ao som de canções de ninar, a música, vida afora, nos aquieta as ansiedades e nos ajuda a entender a nós mesmos na comunhão com os outros. Santuza sempre foi uma voz preciosa na composição desta delicada e polifônica partitura. Agora — qual Orfeus num vale mergulhado em súbito silêncio —, nos resta de reconfortante consolo revisitar a voz de Santuza em seus inteligentes e vivos textos.

Foi por meio dos elogios, da admiração, do grato e sincero deslumbramento de seus alunos que conheci Santuza. E se in voce populi vox dei est, o caráter por assim dizer oracular deste encontro me autoriza a certeza de que ela continua e continuará a incentivar vidas por meio das vidas que tocou com seu saber e encantador modo de ser na vida. Só um preito à vida pode ser um tributo à Santuza!

vale, Santuzam!

OrácUlODe vida, sobrevivida vida e regida partitura...

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Tudo Tanto, segundo álbum de Tulipa

Nas lojas a partir de julho de 2012, em edição independente, o segundo álbum de Tulipa ruiz, Tudo Tanto, expõe na capa uma foto da cantora e compositora paulista no Brooklyn, distrito de Nova York (EUA). A foto é de autoria de Jorge Bispo. produzido por Gustavo ruiz, Tudo Tanto foi gravado com as participações de Lulu San-tos (na faixa “Dois Cafés”), do músico Kassin, do grupo Sp Underground, e do cantor rafael Cas-tro. O rapper Criolo — com quem Tulipa já vem cantando em shows “Só Sei Dançar Com você”, música de seu primeiro álbum, Efêmera (2010)

— é parceiro e convidado de Tulipa numa das inéditas autorais de Tudo Tanto.

O jornalista e crítico musical mauro Ferreira trabalha no jornal O Dia e mantém há quase 7 anos o blog Notas Musicais, onde publica diariamente críticas, resenhas e notícias fonográficas. Desde a edição #22 mantemos uma parceria que traz aos leitores do Plástico Bolha algumas pitadas de suas análises do mundo musical.

DESAFiO POÉTicONesta edição, excepcionalmente,

não publicaremos esta coluna. O

desafio de escrever um poema

sobre o tema futebol continua

valendo para o plástico Bolha #33.

de repente, talvez do altode baixo, simplesmente talvezdo nada:veio o silêncio;vem, pairae pousasobre nossa conversa

— abro a bocamas ele inda está láentre eu, você,talvez dentro, nóstenhamos já percebidoa fragilidade das palavras

nos beijamos

Idjahure KadiwelEGO-ECO

num canto qualquerda mesma praça sujagrito em meio às avesdigo pássarosmelhor, pombosninguém me ouvenem há revoada

Marcel Fernandes

www.barracoaching.com.br

NOTAS NO PláSTicO por mAUrO FErrEirA

Deus protege os bêbados

Ato pueril do rapazBeber de tudo e um pouco maisAndar nas ruasGritar a despeito da noiteEnveredar nas trevasvomitar no mais belo roseiralCair na mais suja sarjetaproteção divina que se ajeita

Luiz da Franca

Confira mais Notas musicais em blognotasmusicais.blogspot.com.br

Ingrid Bittar

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O barco fora d’águagira ligeiramentena língua do pescadorque diz e não dizà lisa lâmina sob seus péspara que serve um casco à vistapara que serve a geometria tridimensionalnuma avenida sem ruas

diz e não dizà brancura que encobre a sua vista qual roupagem se despequando num pasto glacialadora-se uma mulherposso mirar crustáceos ao redor dela

já ele se vaijá o mar se foiresta o ardor do salna fala sóbrianas unhas do pescador

ainda fora d’águao casco trincadoo quarto refeitoaguardapor marés que saibam pouco sobre elae animais que só digamonomatopeias.

Valeska de Aguirre

me acompanharam até o táxionde deixei os olhos repousaremno fio dos postes, a ladeira que subia em direção à paulistaos dois continuaram caminhandomuito mais lentosaté onde moram, logo aliem frente a um carro brancoele com o braço atravessava as costas deladuas cabeças baixas, amorosasdeviam pensar na lista do mercadoou que na quarta seria feriadopoderiam...não sei bem que vida levamnão sei que vida é possível sob esses viadutos e prédios silenciososesperei o elevador chegar para alcançar o décimo nonode onde fico mais tranquila ao ver a antena que muda de cor fosforescente e as poucas pessoas que cruzam a avenidaa essa hora da noiteelas não são reais, sei que não sãonesse quarto qualquer especulação é falsadaqui não se comunica coisa algumaa cidade cenográfica dorme num quarto de hotelcom edredom recém-passado

Alice Sant’Anna

DOBrADiNhASpor ALiCE SANT’ANNA & vALESKA DE AGUirrE

Raïssa Degoes

profecia ii

No tempo da grande secaOnde o louco gargalhaquando o papel silenciaCom estrondo de fogo e balaNa fuga do grande pássaroque pairava no firmamentoHá de chegar pela estradaO homem livre primeiroCom esperança guardada no bolsoE nos sapatos os caminhos do céu

Danilo Maia

www.leonardodavinci.com.brAv. rio Branco, 185 – Subsolo – Ed. marquês do Herval

Centro – rio de Janeiro/rJ Tel.: (21) 2533-2237

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Você diria que os personagens acabam “ganhan-do vida” ao longo da narrativa? Até que ponto vai a autonomia dos personagens e do escritor?

Sim. O próprio narrador em terceira pessoa, a existência necessária desse narrador e de qualquer narrador (já que não se confundem com o autor), implicará esse tipo de consequência. Há etapas distintas: aquelas em que é necessário criar e as que obrigam o escritor a um enquadramento teleológico daquilo que foi produzido e de maneira a servir de base ao que virá a seguir; nos momentos mais críticos se acaba por resumir o processo a um buscar de solução (por certo, uma boa solução, a melhor que você puder encontrar). Nas narrativas longas isso fica mais evidente. É indisfarçável o estado de esquizofrenia. Alguém já disse que ser escritor é ter coragem de aceitar essa esquizofrenia. Não sei se consigo elucubrar a respeito, acho que já passei da fase de me preocupar com as irregularidades do meu estado mental enquanto crio. À propósito, o olhar re-visor nunca será o mesmo da criação. O fundamental, prefiro pensar, é se manter crítico, não se deixar levar pela paixão quase inevitável que o sujeito tende a de-senvolver em relação à própria obra. isso é armadilha, uma das piores.

No seu livro, o absurdo chega a proporções extre-mas, quase sempre dolorosas. Você acredita na potência do excesso?

Não de todo. Não há como negar, contudo, que vivemos de excessos e de uma espécie de disciplina intuitiva por não reconhecê-los; sendo esse um caminho mais do que razoável para atravessarmos o cotidiano, para criarmos um cotidiano conveniente. A literatura (e a arte de mo-do geral) funciona sobre a possibilidade de reacender os sentidos, a percepção dessas excepcionalidades, de lidar com o extremo. A pertinência disso que você denomina potência do excesso dependerá da história que se busca narrar. O excesso pode estragar o que se programou de melhor para o livro; sempre há limites a serem observados.

por CAmiLA JUSTiNO ENTrEViSTA

paulo Scott: mecânica do afeto

Desde sua estreia, em 2001, com o livro de poesia His-tórias curtas para domesticar paixões dos anjos e ate-nuar sofrimentos (Editora Sulina), paulo Scott vem se revelando como um dos escritores mais talentosos e prolíferos no cenário da literatura atual. Entre outras obras, é autor do livro de contos Ainda Orangotangos (Editora Bertrand do Brasil), finalista do prêmio Açoi-ranos; a versão para o cinema venceu o 13º Festival de Cinema de milão. paulo Scott é escritor full time. poeta, romancista, contista e disseminador de ideias surpreendentes. Foi idealizador e curador, junto com Fábio zimbres, do projeto Na Tábua, que propunha uma combinação de linguagens, mesclando literatura e ilustração, em cartazes inusitados que foram espa-lhados em bares, centros culturais, carcaças de vans, cinemas etc. Seu mais recente romance, Habitante Ir-real (Editora Alfaguara), tem comprovado a excelência de paulo Scott: a obra acaba de ser indicada como fi-nalista do prêmio portugal Telecom 2012.

Você disse que o processo de escrita do seu livro ha-bitante irreal levou seis anos e muitas versões. Quais motivos o levam a interromper, apagar e reescrever?

Narrar a tragédia de maína, uma indiazinha de catorze anos obrigada a viver num acampamento à beira da Br-116 e suas repercussões demandou esse tempo e essa solução de distanciamento e recomeços. Não foi exatamente fácil ter um livro nas mãos, um livro que seu editor e seus leitores mais próximos aprovam, relê-lo e admitir que a dinâmica das personagens e as situações ali materializadas conduziram a uma história que não era aquela que lhe interessava contar. Numa perspectiva menos casuística, imagino que ter clareza a respeito do lugar aonde você pretende chegar como escritor dependa de exercícios de distanciamento como esse. É complexo, não há roteiro seguro, cada livro desencadeia um histórico único.

Em 2010 você foi contemplado com a Bolsa Petro-brás de Criação Literária. Isso lhe proporcionou uma possibilidade de ser um escritor full time? Como é essa rotina? Sentiu-se pressionado em al-gum momento?

A pressão existe independentemente de cobranças externas. Tento não pensar nos prazos e expectativas alheias. São fatores que paralisam qualquer um quando alimentados em demasia; imagino que, por isso, alguns acadêmicos tenham tanta dificuldade em produzir ficção, suas referências e as de seus colegas podem se revelar bastante opressoras. Da minha parte, o que posso dizer é que se tornar escritor em tempo integral é estabelecer um pacto de convivência com a insanidade da criação, ficam bem reduzidos os lugares para onde se pode fu-gir. você passa a dispor do ócio de maneira diferente. A escrita assume o centro; esse deslocamento não é tão fácil de acomodar no início.

Há na sua escrita uma ponte direta com os leitores jovens? Você escreve para um leitor específico?

Não tenho essa preocupação. Sei que não escrevo para crianças, acho que nem saberia. quanto ao leitor espe-cífico, penso que há um leitor específico, ele está dentro da minha cabeça e é consequência das leituras diárias, das vivências diárias, das conversas com alguns leitores próximos, das minhas inquietações; apesar disso, eu nãosaberia identificá-lo, descrevê-lo.

Você conhece a teoria perspectivista que o antro-pólogo Eduardo Viveiros de Castro identificou no pensamento ameríndio? Caso sim, elas o influen-ciaram de alguma forma?

Sim, a Simone da Costa Carvalho, mestre em Letras na área de linguística, a quem dediquei o livro, por sinal, me falou e passou material sobre essa teoria. Como todo um volume grande de conteúdo pesquisado, li com prazer e interesse e de alguma forma deve ter repercutido na versão final do romance, embora eu não possa apontar onde (e em que altura) isso poderia ter ocorrido; talvez em algumas soluções do quarto capítulo, mas não de forma direta, detectável.

Seus personagens são apaixonantes e sonhado-res, mas parecem ceder à covardia (em especial Paulo, Maína e Luisa). Você quis deixar uma men-sagem para o leitor de habitante irreal?

Não acho que seja covardia, pelo contrário. As três perso-nagens que você menciona apostaram até onde podiam, até o ponto de não conseguir mais, poucos de nós têm essa coragem de apostar até o seu limite. Se tal adjetivação possa ser, eventualmente, atribuída ao paulo e à Luisa (e veja que Luisa, por sua vez, quer a normalidade que ela própria recusou quando mais nova e que, a certa altura, passou a ser intangível), não cabe à maína, porque ela não teve as chances dos outros dois, suas opções são ex-tremamente reduzidas, ela quis um futuro para seu filho. A história gira em torno dessa vontade de que houvesse um futuro, o mínimo de dignidade que lhe foi negado.

Você diz em seu blog que durante a escrita de ha-bitante irreal priorizou mais a narrativa em si do que a experimentação com a linguagem. Você po-deria falar um pouco mais sobre isso?

mais enxuta e simples, a linguagem do Habitante irreal não se coloca como atração principal, é como avalio. A história em si é que se desdobrará em mecânica e direções mais trabalhadas, exigindo envolvimento do leitor. Optar por uma linguagem mais objetiva, menos barroca, em certa perspectiva e sem querer aqui teorizar a respeito, parece uma consequência natural da carreira de escritor que se proponha a dizer mais se valendo de menos.

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Gramática de la distancia

Para Maria

Hay personas que deberían estar prohibidas de apartarse.O mejor: que no pueden apartarse.que están para nosotros como la piel está para el pelo,permaneciendo siempre cerca independiente de los abismos más oscuros,de las brechas dilatadas del tiempo,del nada oceánico por donde uno siempre vaga.

personas que por donde pasandejan manchas,que cuanto más se intenta sacarlas,más profundamente se edifican en los vestidos, corbatas y pañuelos de algodón.

Son personas que viajan con nosotrosmientras están lejos e inaudibles.Espíritus omnipresentes que habitan las regiones más remotasde nuestros recuerdos,pero que hacen su hogar en el pan de cada día;y de las migas presas en nuestra barba,fabrican sabores familiares,empujando con un simple soploel aire frío de la soledad.

El reloj, mientras tictactea insaciable, da cuerda en estas personas,produciendo sonidos palpables y precisos,cardíacos y circulares; hermanando nuestras pulsionessin vacilar ni por un instante.

Estas personas (al menos creo yo)están en constantes batallas con las distancias.Enfrentan sin miedo(aunque no sepan)esto que los gobernantes llaman fronterasy que los matemáticos denominan kilómetros.

Los calendarios, para estas personas,son meras creaciones vulgares,hechas por un par de locose impuestas por ciertos dictadoresque creen poder separar el día de la nochecomo el aceite del agua.

Con complejos números y cuadraditos organizadosen orden de 30 o 31,buscan eludirnos separando cosas inseparables.Como si fuera posible separar el azul del cielo,el olor de pan frescodel pan fresco,el gris de la nube que flota disimulada.

Y cuando intentan separar estas personas de nosotros(lo peor es que lo intentan sin ningún pudor)fracasan terriblemente.pues es en ese exacto instanteque estas personas se acercan más,que laten más.

No te engañes con mentiras fabulares.por más que se esfuercen para separarnos de ellas,estas personas son como la carne para la uña,como las manos para una oración,como una boca seca para un beso húmedo y carnal.

independiente de todo,son personas que estarán siempre guardadas en nuestros pechossiendo amores en nuestros brazos,abrazos en nuestros labios;como un miembro amputadoque mismo amputado sigue presente.

No podrán nunca apartar estas personas de mi.Nunca.Ni con feni nada.

pues para estos abismosyo construí montañas.Y estas montañas no son hechasde cimiento, piedragranito o mármol.Son hechas de un materialmucho más precioso e invencible:Saudade.

João Inada