473

Platão - A Idéia de Justiça de Platão a Rawls

Embed Size (px)

Citation preview

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

Organizao

de

Sebastiano Maffettone Salvatore Veca

Traduo KARINA JANNINI Reviso da traduo DENISE AGOSTINETT1

Todos as citaes foram traduzidas a partir do texto em iffaaiio fornecido pelos organizadores.

Martins FontesSo Paulo 2005

Esta obra foi publicada originalmente L'IDEA Dl GIUSTIZIA Copyright Copyright DA PLATONE

em italiano com o ttulo por Gius. Laterza, Roma-Bari. Lida., Roma.

A RAWLS,

1997 by Gius. Laterza & Figli Spa, 2005, Livraria Martins So Paulo, para a presente edio.

Fontes Editora

1- edio julho de 2005

Traduo Karina Jatmini

Reviso da traduo Denise Agostinetti editorial Acompanhamento

Luzia Aparecida dos Santo* Revises grficas Solange Martins Cazarim da Silva Ivani Aparecida Martins Dinarte Zorzanelli Geraldo

Produo grfica Alves Editorial Paginao/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) A Idia de justia de Plato a Rawls / Sebastiano Maffetone, Salvatore Veca ; traduo Karina Jannini ; reviso da traduo Denise Agostinetti. - So Paulo : Martins Fontes, 2005. - (Justia e direito) Ttulo original: L'idea di giustizia da Platone a Rawls. Bibliografia. [SBN 85-336-2165-5 l . Eqidade (Direito) 2. Filosofia poltica 3. Justia (Filosofia) - Histria - Fontes I. Maffetone, Sebastiano. II. Veca, Salvatore. 05-4873 1. Justia : Fontes histricas : Direito CDU-340.114(09) ndices para catlogo sistemtico: 340.114(09)

Todos os direitos desta edio para a lngua portuguesa reservados Livraria Rua Martins Fontes Editora Ltda. SP Brasil Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 Tel. (11) 32413677 e-tnail: [email protected] So Paulo

Fax (11) 3101.1042 http:iizviviv.martinsfontes.com.br

a Norberto Bobbio

ndice

Introduo de Sebastiano Maffettone e Salvatore VecaPRIMEIRA PARTE

XI

A JUSTIA DOS A N T I G O S 1.1. A natureza do problema e as questes fundamentais [por Plato, A Repblica]Primeiro livro, p. 7 - Segundo livro, p. 31

7

1.2. O s modos e os objetos da justia [por Aristteles, tica a Nicmaco]SEGUNDA PARTE

47

A JUSTIA DOS M O D E R N O S 2.1. Estado natural e contrato social [por Hobbes, Leviat]A "condio natural" da humanidade em relao sua felicidade e sua misria, p. 93 - A primeira e a segunda " l e i natural" e os "contratos", p. 99 - As outras leis naturais, p. 111

93

2.2. U m a teoria do ttulo vlido [por Locke, Tratado sobre o governo]A propriedade, p. 129

129

2.3. A s circunstncias de justia [por Hume, Tratado sobre a natureza humana]A justia uma virtude natural ou artificial?, p. 149 Origem da justia e da propriedade, p. 157

149

2.4. U m a histria conjectural das desigualdades [por Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens] 2.5. Liberdade jurdica [por Kant, A metafsica dos costumes]Introduo doutrina do direito, p. 211

177

211

2.6. Autonomia moral [por Kant, Fundamentao da metafsica dos costumes]

217

TERCEIRA PARTE

JUSTIA E QUESTO SOCIAL 3.1. O princpio de utilidade [por Bentham, Introduo aos princpios da moral e da legislao] 3.2. Utilidade e justia [por M i l l , O utilitarismo]Relaes entre justia e utilidade, p. 239

231 239

3.3. Alm da justia [por Marx, Crtica ao programa de Gotha]Glosas marginais ao programa do Partido Operrio A l e mo, p. 267

267

QUARTA PARTE

A JUSTIA DOS CONTEMPORNEOS 4.1. U m reexame do conceito de justia [por Sidgwick, Os mtodos da tica]

297

4 .2. A cincia pura da justia [por Juvalta, Os limites do racionalismo tico] A exigncia justificativa, p. 3 3 7 - O mtodo da economia pura na tica, p. 339 4 .3. A justia entre moral e direito [por Hart, O conceito de direito] 1 . Princpios de justia, p. 3 5 2 4 . 4 . A miragem da justia social [por Hayek, Lei, legislao e liberdade] JUSTIA "SOCIAL" OU DISTRIBUTIVA: O conceito de "justia social", p. 3 6 7 - A conquista da imaginao pblica por meio da "justia social", p . 3 7 1 - A inaplicabilidade do conceito de justia aos resultados de u m processo espontneo, p. 3 7 6 - O fundamento do jogo econmico, em que pode ser justa apenas a conduta dos j o gadores, mas no o resultado, p. 3 7 9 4 .5. Justia e eqidade [por Rawls, Uma teoria da justia] 1 . O papel da justia, p. 3 8 5 - 2. O objeto da justia, p. 3 9 0 - 3. A idia principal da teoria da justia, p. 395 - 4. Posio originria e justificao, p. 402 - 5. O u t i l i tarismo clssico, p. 408 - 6. Alguns contrastes em conexo, p. 4 1 3 - 7. O intuicionismo, p. 420 - 8. O problema da prioridade, p. 428 - 9. Algumas observaes sobre a teoria moral, p. 4 3 4 Bibliografia445

337

349

367

385

Introduode Sebastiano Maffettone e Salvatore Veca

Nos ltimos decnios, foi-se consolidando progressivamente u m verdadeiro paradigma no mbito da filosofia poltica, entendida como teoria poltica normativa. Trata-se do paradigma das teorias da justia. Sabe-se que a obra, que, por u m lado, contribuiu para o revival da filosofia poltica na segunda metade do sculo e, por outro, deu incio a u m programa de pesquisa, destinado a tornar-se cannico, Uma teoria da justia, do filsofo americano John Rawls (publicada em edio original em 1971, aps uma complexa elaborao que remonta pelo menos metade dos anos 50). Existe uma ampla e variada controvrsia sobre a natureza das solues propostas por Rawls s questes de justia, que diz respeito coerncia, plausibilidade ou validade da teoria da justia como eqidade. Em contrapartida, no existe controvrsia significativa sobre a relevncia da obra de Rawls, afirmada at por seus crticos mais radicais. Embora nascida dentro de uma tradio filosfica especfica, que poderamos definir, em sentido lato, como "analtica", a teoria de Rawls constituiu nesses anos u m ponto de referncia obrigatrio para a discusso filosfica, mesmo em relao a tradies de pesquisa em filosofia social e poltica originariament diferentes, a comear por aquelas que costumam ser chamadas de "continentais". Particularmente significativa a esse respeito parece ser o confronto empenhado e obstinado sobre o conjunto das perspectivas tericas de Rawls, que, a partir da metade dos anos 90, envolveu o prprio Rawls e Jrgen Habermas.

XII

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

Todavia, a fora do paradigma da teoria da justia ao modo de Rawls visvel no apenas dentro da discusso em filosofia poltica e social, mas tambm numa vasta gama de mbitos de pesquisa, que vo da teoria jurdica econmica, da psicologia cincia poltica, da sociologia ao urbanismo, da tica mdica s teorias ecolgicas. A relevncia filosfica e a fecundidade heurstica do paradigma tambm geraram na comunidade cientfica italiana uma tradio de estudo e ensino coerentes com a base de perspectiva da teoria da justia. A partir da segunda metade dos anos 70, na Itlia, alguns filsofos, economistas, cientistas sociais e juristas comearam a trabalhar com esse quadro, deparando com tradies alternativas mais consolidadas e poca amplamente majoritrias na cultura acadmica e cientfica do pas. Se, no momento da inovao e do confronto inicial com as alternativas tericas, acabou prevalecendo inevitavelmente u m interesse voltado, de modo marcado, s perspectivas de pesquisa inauguradas pela obra de Rawls, parece-nos que hoje til adotar uma perspectiva, por assim dizer, mais acolhedora. U m a perspectiva que integre os aspectos mais propriamente inovadores de uma pesquisa em curso com uma reflexo mais explicitamente voltada ao vasto pano de fundo histrico e terico das recorrentes questes de justia. A idia deste livro nasceu dessa convico, convico essa que se foi reforando ao longo do tempo, na prtica do ensino e no cumprimento das vrias tarefas d i dticas nas universidades italianas. A construo deste livro - dedicado idia de justia de Plato a Rawls - reflete, de maneira peculiar, essa exigncia de manter unidas as diversas verses clssicas da idia de justia e os desenvolvimentos do paradigma contemporneo. A hiptese terica de base, desenvolvida por essa f u n o, parcimoniosa e, em certo sentido, mnima. Refere-se ao seguinte: questes de justia so, na verdade, questes de justificao. A partir desse ponto de vista, encontramo-nos diante de uma variedade de modos de justificao ao longo do tempo. Falamos aqui de justificao no sentido genuina-

INTRODUO

XIII

mente normativo; sendo assim, as razes para escolher e agir de certas maneiras dependem dos melhores argumentos disponveis, e estes ltimos, por sua vez, assumem u m sentido determinado no mbito de teorias de fundo mais amplas. So estas ltimas que geram os critrios do julgamento sobre a ordem poltica ou, de modo mais geral, sobre a sociedade bem-ordenada. Assim, encontramos as questes normativas familiares que discorrem sobre instituies, prticas sociais, escolhas coletivas e normas, que, numa variedade essencial de contextos, constituem o objeto das d i ferentes teorias da justia. Estamos convencidos de que essa proposta de reconstruo racional pode justificar a importncia de outra proposta, a respeito dos modos de entender a filosofia poltica, apresentada nos primrdios dos anos 70 pelo mais respeitado filsofo poltico italiano, Norberto Bobbio. Ele sugeria pelo menos quatro modos para entender a filosofia poltica: o primeiro refere-se ao modelo da "tima repblica"; o segundo tem a ver com a recorrente questo da obrigao poltica; o terceiro, com o critrio do poltico; o quarto tem carter metaterico e concerne filosofia da cincia poltica. Interessa-nos ressaltar que pelo menos os dois primeiros podem ser reformulados na tica da justificao que propomos aqui. A partir desse ponto de vista, obviamente no por acaso que este livro inicia justamente com a clssica resposta de Plato questo sobre a tima repblica. O livro articula-se em quatro partes. "A justia dos antigos" a p r i meira. Ela inclui textos clebres de Plato e Aristteles. A segunda parte dedicada "justia dos modernos" e inclui textos igualmente conhecidos, de Hobbes, Locke, Hume, Rousseau e Kant. "Justia e questo social" o ttulo que demos terceira parte, em que so propostos textos de Bentham, J. S. M i l l e Marx. P o r f i m , a quarta e ltima parte, "A justia dos contemporneos", constituda por textos de Sidgwick, Juvalta, Hart, Hayek e conclui-se com Rawls. A n tes de cada parte apresenta-se uma breve nota introdutria,

xrv

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

que visa a isolar alguns argumentos tericos que exemplificam tipos de problemas relevantes no mbito das teorias da justia, sejam eles quais forem. O volume concludo por uma bibliografia seletiva, organizada por Giampaolo Ferranti, em condies de indicar ao leitor os textos importantes e acessveis que se referem aos desenvolvimentos da pesquisa contempornea. A distino de natureza histrica em quatro partes certamente tem sua utilidade e sua simplicidade. Todavia, inevitavelmente, ela tem u m carter arbitrrio de u m ponto de vista intelectual. De fato, embora parea totalmente natural distinguir as verses clssicas da idia de justia daquelas modernas e contemporneas, fica em aberto o problema de uma reconstruo racional das diferentes perspectivas sobre a justia. difcil negar que cada verso de teoria da justia constitui uma resposta a desafios histricos e intelectuais, prprios do seu contexto, mas sem dvida uma soluo p u ramente contextual no lana luz alguma sobre a questo mais importante do ponto de vista de uma reconstruo racional. Mencionamos o fato de que a teoria da justia como eqidade de Rawls pode, de certa maneira, oferecer-nos u m fio condutor, que nos permite reconstruir algumas das razes subjacentes a diferentes verses da justia ao longo do tempo. De todo modo, trata-se de uma chave de leitura que no consegue justificar exaustivamente a variada tenso entre histria e teoria. E, em todo caso, parece de todo natural ter prudncia ao desconfiar dos imperialismos, mesmo das melhores interpretaes da justia, bem como, de resto, em muitos outros casos. Parece-nos que a principal razo da dificuldade consiste no fato de que os vrios teoremas de justia, propostos nos textos dos autores antologiados, no constituem tentativas de soluo para os mesmos dilemas ao longo do tempo. Assim, torna-se natural reconhecer que continuidade e descontinuidade entre autores, repetio ou mudana de estratgias argumentativas dependem, de maneira substancial, da identidade ou no das questes de justia que, nos dife-

INTRODUO

XV

rentes contextos, formulam-se para a teoria. Em outras palavras, quem tentar ler aleatoriamente os textos deste livro, pulando e voltando pginas, sublinhando as passagens mais importantes - geralmente famosas - dos diferentes autores, provavelmente perceber u m fato surpreendente apenas primeira vista: por certo, todos falam de questes de justia, mas, ao mesmo tempo, referem-se a coisas diferentes entre si. Poderamos ter a sensao de estar presos n u m emaranhado semntico, que nos levaria a pensar que o termo "justia" tem vrios significados incompatveis entre si. E, por f i m , poderamos considerar que quem estiver em busca de u m percurso unitrio e razoavelmente coerente poderia simplesmente ser vtima de uma iluso verbal. Enganados pela identidade da palavra, iramos, assim, procurar por conceitos que, ao contrrio da palavra, no possuem identidade entre si. Todavia, esse ceticismo radical no parece u m resultado inevitvel, exatamente como no caso da interpretao meramente contextual. Por outro lado, consideramos que haja disposio uma alternativa intelectual praticvel, que apia-se na complexidade intrnseca ao conceito de justia. Referindo-nos a uma clebre formulao de Rawls, podemos distinguir entre u m conceito de justia e diferentes concepes dela. A complexidade da teoria normativa dependeria, nesse caso, da tentativa - que realizamos aproximando os diversos autores - de reunificar as diferentes concepes dentro do conceito nico de justia. Buscamos, ento, esclarecer em que sentido suficientemente preciso pode-se falar da complexidade das questes de justia, que focalizamos graas distino entre conceito e concepes. Dissemos que os vrios autores respondem a perguntas diferentes sobre questes que so todas de justia. Vejamos em que sentido eles fazem algo do gnero. Considere-se, por exemplo, o caso da justia dos modernos. Em que sentido podemos encontrar uma semelhana entre as concepes de justia de Hobbes e Locke? Pode-se sustentar que esses autores tm em comum mais ou menos a

XVI

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

mesma preocupao terica e tentam responder a uma pergunta central relativa, como diramos hoje, s instituies de base de uma sociedade. O clebre argumento com o qual Hobbes justifica a sada do estado natural e, desse modo, a instituio da autoridade poltica, tende a construir u m m o delo de ordem social em que a poltica capaz de responder s circunstncias do conflito e da incerteza significativa. Como se sabe, o argumento reformula de modo original e radicalmente inovador a resposta questo da estabilidade de uma sociedade no tempo, mais ou menos no ponto em que a haviam deixado os escritores clssicos, a comear por Plato e Aristteles. Sabemos, por certo, que a soluo hobbesiana totalmente diferente, pois sua verso da justia das instituies no pode pressupor ordem e estabilidade. Essas devem, por sua vez, depender da aceitao individual e, portanto, da plausibilidade do argumento oferecido para sua sustentao. Locke, mesmo com as bvias diferenas, retoma nesse sentido o modelo de Hobbes, pois sua preocupao principal tambm discorre sobre a justificao das instituies de base, e, igualmente no caso de Locke, sua concepo da justia exemplificada por u m propsito que tem como objetivo ltimo no a descrio de uma ordem j dada de forma independente, mas a sua construo graas s razes que motivam os indivduos conceitualizados como agentes racionais e razoveis. Anlogo o problema da ordem poltica, conforme apresentado por David H u m e , por diversa que possa parecer a resposta fornecida por ele. Tal resposta mostra-se centrada na idia de evoluo ou surgimento das normas, como garantia da estabilidade, mais do que na construo de instituies. A posio de H u m e , que implica u m modo de justificao interno s prticas e sua evoluo ao longo do tempo, fornece u m modelo normativo seminal, destinado a ter importantes e persistentes'desenvolvimentos no futuro. Consideremos agora o caso de Rousseau. Por u m lado, como se sabe, Rousseau conserva a organizao estrutural do contrato social, seguindo, portanto, Hobbes e Locke. To-

INTRODUO

XVII

davia, por outro lado, sua principal preocupao parece ser diferente. Como vemos claramente mesmo a partir do texto antologiado, Rousseau visa a uma espcie de histria conjectural que reconstrua a gnese e os mecanismos que deram lugar ordem tal como ela . Se esse o primeiro passo, o segundo aquele dos critrios para avaliar criticamente o impacto moral e social sobre os cidados de uma c o m u n i dade poltica modelada pela justia. Sendo assim, nessa perspectiva, as questes de justia no podem ser tratadas - segundo Rousseau - com vistas apenas busca da estabilidade das instituies, mas pressupem a prioridade de u m critrio normativo independente, que permite avaliar criticamente a justia da ordem social dada, e m tenso com aquela ideal (o que superaria o teste de justificao da teoria da sociedade bem-ordenada). Certamente mais difcil caracterizar com esse pano de fundo a complexa contribuio de Kant. Isso decorre do fato de parecer - pelo menos primeira vista - mais rduo especificar qual o interesse terico central de Kant ou, em outros termos, a qual pergunta relevante a argumentao kantiana sobre a justia pretende responder. Em primeiro lugar, Kant parece fazer uma tentativa mais consciente de construo categorial do sentido de justia e da prioridade da razo prtica em seu interior. Em segundo, embora estejamos apenas nos referindo aos dois trechos antologiados, fcil ver que a reconstruo de Kant caracterizada se no por uma ruptura, por uma oscilao muito intensa entre uma perspectiva de teoria moral e outra mais explicitamente de teoria jurdica. Sendo assim, na Fundamentao da metafsica dos costumes, de 1785, as questes de justia parecem ser tratadas de modo diferente em relao ao que ocorre na Metafsica dos costumes, de cerca de doze anos mais tarde. Sabemos que a razo prtica de Kant caracterizada em ambos os casos pela distino entre u m aspecto formal, baseado, por sua vez, em caractersticas como universalidade e coerncia, e u m aspecto material, que requer, no sentido especfico da perspectiva kantiana, uma espcie de realizao

XVIII

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RA WLS

progressiva da razo na histria. Pode-se sustentar que o aspecto formal privilegiado e m relao quele material, e o modo em que a metafsica da moral apresentada na Fundamentao reflete diretamente essa distino. O primado do imperativo categrico - que desempenha aqui u m papel central - implica o formalismo da lei moral, que, por sua vez, se realiza na clebre prova negativa, que impe o controle de qualquer mxima da ao luz de u m critrio de universalizao. Nos textos posteriores de Kant, a comear pela Metafsica, o imperativo categrico parece no desempenhar mais u m papel igualmente central. Pode-se considerar que o eventual redimensionamento seja devido, ao menos em parte, separao dos deveres que passam a depender de duas fontes distintas, a virtude e a justia. Mas o ponto que parece central o modo em que so concebidos os deveres de justia. Eles funcionam como limites ou vnculos externos ao dos indivduos, para evitar colises entre suas liberdades. por isso que, na teoria da justia de Kant, formulada na Metafsica, o respeito por essas obrigaes assume uma natureza essencialmente jurdica e concerne ao foro externo, em que no so relevantes as motivaes propriamente m o rais dos agentes. Considere-se, no entanto, que justamente em torno destas ltimas girava o argumento da Fundamentao, com o primado do imperativo categrico que mencionamos. Desse modo, poderamos sustentar que Kant formula duas verses da justia, independentes entre si, ou, se preferirmos forar o texto, primeira vista em contradio recproca. Houve inmeras tentativas de unificar esses dois p o n tos de vista kantianos sobre a justia. Por u m lado, pode-se fazer com que a possibilidade de comportar-se coerentemente com os ditames do imperativo categrico dependa da presena de uma proteo ou tutela jurdica, como aquela dos deveres de justia da Metafsica. Por outro, pode-se buscar uma derivao dos deveres de justia do imperativo categrico, graas prioridade da liberdade civil e poltica. No po-

INTRODUO

XIX

demos aqui tratar desses complicados problemas interpretativos: o que nos interessa afirmar que Kant nos sugere ao menos dois tipos de questes para uma teoria da justia. Uma teoria kantiana deve concentrar-se no sistema das instituies (coerente com os deveres de justia) e, de modo distinto e mais ou menos unificado, deve visar justificao moral. Sendo assim, ela se u n i u idia de autonomia (coerente com a tese sobre o imperativo categrico). Em todo caso, o que ainda importante para a nossa perspectiva o fato de que, com a obra de Kant, o problema da justificao adquire uma fisionomia completa e distinta, culminando por constituir ao longo do tempo a base para uma alternativa terica padro posio de H u m e . Esta ltima observao poderia sugerir u m percurso privilegiado na leitura dos textos. Os tericos da justia estariam ento, cada u m a seu modo, em busca de uma concepo coerente, que especificasse o critrio da justificao em relao estrutura de fundo das instituies. Conforme j dissemos, Hobbes, Locke, H u m e , Rousseau e Kant tm, no sentido indicado, concepes diferentes da justia, mas isso decorre precisamente do fato de que diferente tambm a exigncia de justificao coerente com a teoria geral da tica e da poltica de cada u m deles. Por outro lado, mesmo as teses clssicas de Plato e Aristteles, se levarmos em conta a natureza peculiar dos vnculos de que resulta sua teoria da sociedade justa ou bem-ordenada, podem ser proficuamente examinadas luz do critrio da justificao. Essa proposta de leitura, que sugerimos sem a pretenso de sacrificar a especificidade histrica dos contextos e dos percursos de pesquisa sobre a justia, tambm pode ser apresentada a respeito dos autores e dos textos que aparecem na terceira parte do volume, a nica que individuada no apenas por u m critrio temporal, mas tambm por u m mbito temtico (aquele da questo social). Em nossa perspectiva, Bentham, M i l l e Marx, mesmo na bvia diversidade das abordagens e dos resultados, estendem o paradigma da justificao do mbito das instituies para o mbito da so-

XX

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

ciedade. Se para Hobbes a incerteza, a escassez e o conflito geram a resposta em termos de prioridade da poltica, para Bentham, M i l l e Marx, incerteza, escassez e conflito concentram-se no mbito das interaes e das relaes propriamente sociais. Desse modo, a sociedade que assume prioridade sobre a poltica. A questo da justificao atinge, ento, os modelos de distribuio de custos e benefcios da cooperao social e as relaes sociais de produo. Assim, a justia reinterpreta-se propriamente como justia social (prescindindo aqui da conhecida e controversa questo que concerne oportunidade ou no de ler Marx em termos de teoria normativa). A relao entre justia poltica (instituies de base) e justia social constitui u m pano de fundo apropriado para justificar os desenvolvimentos e as controvrsias que caracterizaram neste sculo a noo de justia distributiva como noo central da teoria poltica normativa. Na quarta parte, dedicada justia dos contemporneos, os textos de autores como Sidgwick, Juvalta, Hayek, Hart e Rawls apresentam diferentes respostas para a pergunta sobre a justificao das instituies, vistas na perspectiva da distribuio de vantagens e desvantagens, custos e benefcios, direitos e oportunidades. Nesses autores, no difcil encontrar a presena de dois grandes modelos de justificao (parcial ou totalmente divergentes entre si). Esses modelos podem ser i n terpretados luz de diferentes dimenses tericas: teorias kantianas o u humianas, vises baseadas na imparcialidade ou na vantagem recproca, posies construtivistas ou evolucionistas. Com a iniciativa de Rawls, essa articulada discusso terica recebe indiscutivelmente uma sistematizao, e, desse modo, produz-se aquele paradigma terico de que partimos. Assim, este livro pode ser concebido como uma oferta filosfica que prope ao leitor u m percurso que permite chegar at esse ponto. Como se sabe, aps Rawls, o paradigma das teorias da justia conheceu u m verdadeiro florescimento de teses e perspectivas alternativas entre si. Basta pensarmos na teoria

INTRODUO

XXI

libertria de Robert Nozick, nas reformulaes do utilitarismo de John Harsanyi e R. M . Hare, no contratualismo de David Gauthier, na teoria conversacional de Bruce Ackermann, nas teses dos direitos de Ronald D w o r k i n , na abordagem pluralista de Michael Walzer, nas posies comunitaristas segundo Maclntyre, Taylor e Sandel, naquelas republicanas segundo Skinner ou Michelmann e na abordagem da democracia deliberativa de Habermas. O mesmo paradigma, dos anos 70 at a reinterpretao da teoria da justia como eqidade, devida ao prprio Rawls em Liberalismo poltico (1993), tambm influenciou de modo decisivo os desenvolvimentos recentes do feminismo terico, do marxismo analtico, da tica aplicada. Essa discusso filosfica de grande importncia no apresentada neste volume. Todavia, estamos convencidos de que os textos antologiados oferecem ao leitor o conjunto dos instrumentos necessrios para que ele se aprofunde no debate contemporneo e avalie os desafios de valor poltico que parecem relevantes neste f i m de sculo. De fato, esta obra parece dizer que a idia de justia e permanece crucial para nos orientarmos na discusso pblica sobre os valores polticos fundamentais e sobre os m o delos alternativos de sociedade bem-ordenada. Dentro do panorama liberal, pelo menos na nossa parte do mundo, o conflito poltico incide, grosso modo, sobre a tenso entre uma perspectiva libertria e outra igualitria, ambas desafiadas por alguma forma de comunitarismo. Se hoje isso est na ordem do dia, na vertente interna das comunidades polticas, a agenda de u m futuro, talvez muito prximo, abriga uma ampla gama de questes que, a ttulo variado, atravessam as fronteiras de cada comunidade. E, se isso for verdade, o problema da justia requerer para a sua soluo a extenso do paradigma e dos critrios da justificao para a arena das relaes internacionais, a meio caminho entre a histria de Hobbes e o projeto de Kant. Para a filosofia poltica, entendida como teoria normativa, esse o desafio em jogo: to difcil quanto inevitvel.

PRIMEIRA PARTE

ustia dos antigos

Nesta primeira parte, "A justia dos antigos", so apresentados dois textos clssicos da filosofia poltica. Trata-se de algumas passagens do primeiro e do segundo livro da Repblica, de Plato, e do captulo V da tica a Nicmaco, de Aristteles. N o texto de Plato, o foco se d sobre a natureza do problema, e formulam-se indagaes que, doravante, destinam-se a permanecer fundamentais e recorrentes para a pesquisa sobre a idia de justia. O ambiente do dilogo platnico clebre. A discusso trata da definio do justo e da justia e se desenvolve como uma longa e complexa confutao da tese de Trasmaco, segundo a qual a justia consiste na vantagem do mais forte. N o decorrer do dilogo, toma forma uma segunda indagao, distinta, mas no independente da primeira, que concerne racionalidade da justia: se e por que devemos ser justos. A questo sobre a coerncia entre interesse pessoal e prtica da justia impe uma terceira indagao, que se refere natureza da justia como bem: que tipo de bem ela constitui e as razes que a tornam desejvel. Pode-se dizer que a resposta a essas indagaes, com a soluo do problema, consiste na construo do modelo da "tima repblica", a que a obra inteira dedicada. Como se sabe, tal soluo baseia-se na correspondncia entre a d i menso pessoal e a interpessoal, entre equilbrio da psique e equilbrio da polis.

4

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

A leitura do texto pode sugerir a relevncia, para uma teoria da justia, da conexo entre a estabilidade da vida coletiva e o senso de justia dos indivduos. U m a sociedade bem-ordenada, em que respeitado e preservado no tempo o equilbrio entre as classes sociais, pressupe indivduos que vivem harmoniosamente e vice-versa. N o livro V da tica a Nicmaco, Aristteles apresenta a clebre classificao dos tipos de justia e dos diferentes mbitos a que eles se aplicam. Como se sabe, essa classificao exerceu uma influncia permanente nas teorias da justia a partir de ento. Encontramos aqui, entre outras coisas, a distino entre a justia entendida como respeito lei e a justia entendida como eqidade. Esta ltima, por sua vez, analisada nas diferentes esferas da distribuio, da retificao ou regulao, e da troca o u comutao. A leitura do texto de Aristteles pode sugerir, em primeiro lugar, a relevncia, para uma teoria da justia, da variedade de problemas que podem ser discutidos sob o mesmo rtulo. A justia na distribuio de honras e nus, de renda e status, diferente da justia como retificao jurdica nos casos em que esto em jogo o dano e a vantagem. De resto, a m bos diferem da justia que governa as transaes econmicas entre indivduos livres (por sua vez, diferente, para Aristteles, da justia domstica e desptica do pai e do patro). Se aceitarmos esse tipo de classificao, podemos ser induzidos a supor uma correspondncia justamente entre os modos e os objetos da justia ou, em outros termos, entre os diversos critrios que podemos aplicar nos diferentes mbitos. Isso, naturalmente, no apenas tem a ver com as distines entre justia distributiva, reguladora e comutativa, mas tambm concerne complexa relao entre a estrutura da justia e a virtude tica a ela correspondente. Para dar apenas u m exemplo, para Aristteles, h correspondncia entre a mdia da proporo geomtrica, em que se d a justia distributiva, e o justo meio como disposio moral tpica. Nos termos do filsofo, a pesquisa sobre a justia deve determinar "qual justo meio constitui a justia e de que extremos o justo o meio".

A JUSTIA DOS ANTIGOS

5

Fontes 1.1. Plato, La Rcpubblica, I, 336-54; II, 355-67, in Opere complete, VI, Laterza, Roma-Bari, 1993", pp. 39-61; pp. 63-75. Traduo italiana de Franco Sartori. 1.2. Aristteles, tica Nicomachea, V (E), 1, 1129a-ll, 1138b, in Opere, VII, Laterza, Roma-Bari, 1988 , pp. 105-38. Traduo italiana de Armando Plebe.1

1.1. A natureza do problema e as questes fundamentais[por Plato, A Republicai

Primeiro livro [b] X. Durante todo o tempo de nossa discusso, Trasmaco tentara vrias vezes intervir para fazer suas crticas, mas aqueles que estavam sentados a seu lado o impediram, pois queriam ouvir nossas palavras at o f i m . Porm, to logo nos concedemos uma breve pausa m i n h a concluso, no pde mais manter-se quieto, e sim, aninhado em si mesmo como u m animal selvagem, lanou-se sobre ns como se quisesse devorar-nos. Eu e Polemarco ficamos extremamente assustados, e ele se ps a gritar em meio a todos: "Que palavreado [c] esse, Scrates, no qual vos demorais? E e m que parvoce vos perdeis com essa srie de cortesias recprocas? Se queres saber realmente o que o justo, no te limites a interrogar e no te vanglories da tua capacidade de confutar quem te der uma resposta (sabes muito bem que mais fcil interrogar do que responder), mas que sejas t u prprio a responder e a dar a tua definio do que o justo. E no me venhas dizer que [d] consiste no que obrigatrio, ou no que benfico, ou vantajoso, ou l u crativo, ou til, mas diz-me com clareza e exatido a tua definio, seja ela qual for: pois no me darei por satisfeito se continuares com semelhantes patranhas." A o ouvi-lo falar assim, fiquei atnito e, ao observ-lo, sentia-me tomado por uma sensao de medo. Alis, estou convencido de que se eu no o tivesse visto antes que ele a m i m , eu teria ficado

81

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

sem palavras . Porm, quando, por efeito de nosso discurso, ele comeara a enfurecer-se, observei-o [e] primeiro, encontrando-me, assim, em condio de responder-lhe e, quase tremendo, disse: "Trasmaco, no sejas to duro conosco. Se, ao analisar os nossos problemas, eu e este aqui cometemos alguns erros, deves saber que os cometemos sem querer. Tu mesmo sabes, por certo, que se estivssemos atrs de ouro nunca iramos nos permitir, de espontnea vontade, trocar cortesias durante a busca, correndo o risco de comprometer sua descoberta; no creias, portanto, que, buscando a justia, objeto mais precioso do que u m lingote de ouro, sejamos to tolos a ponto de ceder a passagem u m ao outro e no nos empenhar para descobri-lo. Podes acreditar, meu caro! O fato, penso eu, que [a] no somos capazes de tanto: m u i to mais natural , talvez, que vs, os competentes, tenhais piedade de ns em vez de nos arrasar." XI. E ele, ao ouvir-me, irrompeu numa grande risada provocatria e disse: "Por Hracles, eis a famosa e habitual ironia de Scrates! E, eu bem que sabia, alis, j o dissera a estes aqui que tu no apenas no irias querer responder, mas farias ironia e tentarias de tudo antes de responder s perguntas que te fossem feitas." " O fato, Trasmaco", respondi, " que s sbio. Bem sabias que se eu tivesse perguntado a algum de quais fatores produto o nmero doze e, ao pergunt-lo, lhe dissesse antes: [b] 'Porm, amigo, no deveras responder-me que o doze eqivale a duas vezes o seis, ou a trs vezes o quatro, ou a seis vezes o dois, ou a quatro vezes o trs, pois no te darei ouvidos se disseres semelhantes estultices', j devias ter bem claro em mente, em minha opinio, que ningum teria respondido a perguntas como essa. Supe, porm, que ele te tivesse dito: ' O que queres dizer, Trasmaco? Que no devo dar nenhuma das respostas1. Plato recorda uma antiga crena: o homem que fosse visto por u m lobo perderia a palavra, a menos que visse o lobo primeiro. claro que aqui Plato est zombando gentilmente de Trasmaco.

A JUSTIA DOS ANTIGOS

9

por t i antes enumeradas? E talvez, admirvel amigo, t a m pouco se entre elas se encontrar por acaso a correta? E terei, [c] ao contrrio, de afirmar uma coisa diferente do que verdadeiro? O u o que queres dizer?' O que lhe terias respondido?" " O r a , vamos!", replicou, " C o m o se fosse possvel dizer que ambos os casos so semelhantes!" "Para dizer a verdade, nada o impede", respondi. "Mas, se no so semelhantes e ainda parecem como tais ao interrogado, crs que ele possa sentir alguma dificuldade em responder conforme seu parecer, tendo ou no o nosso veto?" "E ento", disse ele, "fars o mesmo? Dars uma das respostas por m i m descartadas?" "Eu no me espantaria", respondi, "contanto que as coisas me parecessem assim aps u m exame atento." "E como ficaramos", retomou, [d] "se eu conseguir dar-te sobre a justia uma resposta diferente de todas as anteriores e melhor do que elas? Que pena achas que merecers?" " Q u a l outra", respondi, "seno aquela que deve suportar quem no sabe? O u seja, a de ter de aprender com quem sabe. Essa , portanto, a pena que eu tambm creio merecer." " C o m o s generoso!", disse ele. "Mas, alm de aprender, podes passar o dinheiro." "Sim, claro, quando o tiver", respondi. "Dinheiro h!", exclamou Glucon. "Se a questo dinheiro, podes falar, Trasmaco: a Scrates daremos todos a nossa contribuio." [e] "Claro!", disse ele, "para que Scrates faa seu jogo habitual de no responder diretamente e prenda-se resposta dada por outro, confutando-a." "Mas como poder responder, meu timo a m i go", rebati, "algum que em primeiro lugar no sabe, ou melhor, afirma no saber e, depois, mesmo que tenha uma opinio prpria, for proibido, por parte de u m h o m e m nem u m pouco medocre, de exprimir seu pensamento sobre tais questes? mais natural, ao contrrio, que [a] a falar sejas justamente tu, pois s t u quem diz saber e ter algo a2

2. Considero a frase interrogativa. Se a considerarmos afirmativa, podemos traduzi-la da seguinte forma: "De modo um pouco diferente", disse ele, "fars o mesmo."

10

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

dizer. Portanto, no recuses, mas faze-me o favor de responder. E no prives Glucon e os outros aqui presentes do teu ensinamento." XII. A essas minhas palavras, Glucon e os outros pediram-lhe que no recusasse. E via-se claramente que Trasmaco ardia de vontade de falar para passar uma boa i m presso, convencido de ter uma esplndida resposta. Mas, fingia insistir para que fosse eu a responder. A o final, porm [b], concordou e disse: "Eis a sabedoria de Scrates: ele no quer ensinar, mas sim passear aqui e acol, aprender com os outros e nem agradecer por isso." "Se dizes que aprendo com os outros", respondi, "tens razo, Trasmaco. Mas se dizes que no pago minhas dvidas, dizes uma m e n tira. Pago como posso, mas no tenho dinheiro e posso apenas elogiar. E com quanto entusiasmo o fao se algum me parece falar bem, no deixars de saber, e logo, to logo responderes: pois creio que falars bem [c]." "Ento ouve-me", disse ele. "Afirmo que a justia no nada alm da vantagem do mais forte. Pois bem... por que no elogias? Mas claro, no te permitirs faz-lo." "Certo que o farei, contanto que antes eu consiga compreender o que queres dizer: ainda no o sei. A vantagem do mais forte, como dizes, algo justo. E, com isso, Trasmaco, o que pretendes dizer? Certamente no querers sustentar, creio, u m absurdo como esse, de que se o pancrcio Poldamas mais forte do que ns e para seu organismo so teis as carnes bovinas, tal alimento seja til e, ao mesmo tempo, justo [d] tambm para ns, que somos mais fracos do que ele." "s mesmo revoltante, Scrates!", exclamou, "e interpretas do modo que mais te permite alte3

3. [Em italiano,) Pulidamante (forma dialetal para Polidamante) de Scotussa, na Tesslia, foi u m atleta famoso por sua estatura. Clebre pancrcio, combateu na Prsia, na corte de Artaserse Oco, contra lees, que conseguiu matar, e nu, contra homens armados. Reconquistou a vitria nas competies olmpicas de 408 a.C. e recebeu como homenagem uma esttua feita por Lisipo. A competio do pancrcio consistia em luta e pugilato.

A JUSTIA DOS ANTIGOS

11

rar o discurso." "Absolutamente no, prezado amigo", respondi, "mas explica-te com mais clareza." " N o sabes", retomou, "que alguns Estados so governados por tirania, outros, por democracia, outros ainda, por aristocracia?" " C o m o queres que eu no saiba?" "Pois bem, em cada Estado, o governo que detm a fora, n o ? " "Sem [e] dvida." "Mas cada governo legifera em favor da prpria vantagem, a democracia com leis democrticas, a tirania com leis tirnicas, e os outros governos do mesmo m o d o . E, depois de elaborar as leis, proclamam que o justo para os sditos identifica-se com o que, ao contrrio, til para os prprios governos; e quem se afastar de tal regra punido como transgressor tanto da lei quanto da justia. Portanto, nisso [a] consiste, meu excelente amigo, aquilo que, igualmente em todos os Estados, defino como justo: a vantagem do poder constitudo. Mas, se no me engano, esse poder detm a fora: assim, para quem sabe raciocinar, tem-se como resultado que, em todos os casos, o justo sempre a mesma coisa, a vantagem do mais forte." "Agora sim compreendi", respondi, " o que queres dizer! Se verdade ou no, tentarei descobrir mais tarde. Tu tambm, Trasmaco, respondeste que o justo consiste na vantagem (no entanto, proibiras-me de dar essa resposta!). S que tuas palavras contm, alm disso, aquela expresso 'do mais forte'... [b]" " U m acrscimo", respondeu, "talvez sem importncia!" "Ainda no est nem u m pouco claro se importante. Por outro lado, est claro que se deve examinar se tuas afirmaes so verdadeiras. Pois eu tambm estou de acordo que o justo algo vantajoso, mas fazes u m acrscimo e o defines como a vantagem do mais forte, fato que ignoro, ento ser preciso examinar a questo." "Ento, examina-a", respondeu. XIII. "Imediatamente", respondi. " D i z - m e uma coisa: no afirmas que tambm justo obedecer aos governantes?" "Sim." "E nos [c] vrios Estados so infalveis os governantes? O u ser que tambm podem cometer erros?" "Certamente", admitiu, "podem comet-los." "Ora, quando

12

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

comeam a elaborar as leis, elaboram algumas corretamente e outras no?" "Creio que s i m . " "E elabor-las corretamente no significa trabalhar em vantagem prpria? E no elabor-las corretamente, trabalhar contra a prpria vantagem? O u , como preferes dizer?" "Assim mesmo." "E, seja qual for a disposio tomada pelos governantes, os sditos so obrigados a segui-la: isso tambm no justo? [d]" "Claro que s i m ! " "Mas, ento, se nos ativermos a teu discurso, o justo no quer dizer apenas proporcionar a vantagem do mais forte, mas tambm o seu oposto, o que no lhe vantajoso." " O que queres dizer?", perguntou. " O mesmo que dizes, ao menos o que me parece; mas, vejamos melhor. No concordamos que quem governa, quando ordena aos sditos que faam certas coisas, s vezes no consegue obter o que para ele melhor? E que, seja qual for a ordem dada por quem governa, justo para os sditos segui-la? No estamos de acordo a esse respeito?" "Creio que s i m " , respondeu. "Mas, com [e] isso", retomei, "admitiste, sem mais, que agir contra a vantagem de quem governa e mais forte tambm coisa justa, quando os governantes ordenam, sem querer, coisas nocivas para eles prprios e, conforme afirmas, justo para os sditos obedecer s suas ordens. E ento, meu to sbio Trasmaco, no se dever necessariamente deduzir que o justo significa fazer o oposto do que dizes? Pois aos mais fracos se impe que faam justamente o que no se torna vantagem para o mais forte." "Sim, por Zeus! [a] Scrates", disse Polemarco, "no h dvida alguma." "Obviamente, se o confirmas com o teu testemunho!", rebateu Clitofonte. "E que necessidade tem Scrates de u m testemunho?", indagou. " O prprio Trasmaco admite que os governantes ordenam por vezes coisas que lhes so nocivas e que para os sditos justo obedecer a essas ordens." "Sim, Polemarco, porque Trasmaco estabeleceu o princpio de que justo seguir os comandos de quem est no governo." "Certo, Clitofonte, mas ele tambm estabeleceu outro: o de que justo aquilo que vantajoso para o mais [b] forte. E, aps ter estabelecido esses dois princpios, reconheceu, de resto, que s vezes os mais fortes ordenam aos mais fra-

A JUSTIA DOS ANTIGOS

13

cos e aos sditos que faam coisas que no so vantajosas para eles prprios. Admitindo-se esses dois pontos, tem-se como resultado que a vantagem do mais forte no absolutamente mais justa do que aquilo que no lhe vantajoso." "Mas", acrescentou Clitofonte, "por vantagem do mais forte ele entendia aquilo que o mais forte estima como tal para si. E afirmava que isso o que deve fazer o mais fraco e que nisso consiste a justia." "Porm", rebateu Polemarco, "[c] no foi assim que se expressou!" "No importa, Polemarco", intervim; "mas se agora essa a definio de Trasmaco, aceitemo-la assim." XIV. " D i z - m e , Trasmaco, era assim que querias definir a justia, como aquilo que o mais forte julga vantajoso para si prprio, sendo-lhe ou no vantajoso? Devemos dizer que essa a tua definio?" "Absolutamente no", respondeu. "Pensas que eu chame de mais forte quem se engana, justamente quando se engana?" "Quanto a m i m " , repliquei, "pensei que entendesses isso quando admitias que os governantes no so infalveis, [d] mas sujeitos a cometer erros." "Es u m belo sicofanta , Scrates, quando discutes!", disse. "Assim, chamas de mdico quem se engana sobre os doentes, justamente por esse seu erro? O u chamas de matemtico quem se engana n u m clculo, no momento em que erra e por causa desse erro? Pelo que sei, ns, ao contrrio, usamos uma expresso deste tipo: enganou-se o mdico, enganou-se o matemtico, o escrivo. Cada u m deles, [e] uma vez que aquilo que definimos, na minha opinio n u n ca erra: sendo assim, em termos rigorosos, pois tu tambm queres ser exato, ningum que seja especialista numa arte erra. Q u e m incorre em erro o faz por falta de cincia, caso em que deixa de ser um artista: desse modo, nenhum artista, ou nenhum sbio, ou nenhum homem de governo, quando4

4. Em Atenas, chamava-se de sicofanta o pblico que geralmente era pago para sustentar acusaes falsas. Originanamente, assim eram chamados os que denunciavam os contrabandistas de figos ou os ladres de figos sagrados.

14

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RA WLS

est no governo, erra, por mais que algum venha dizer-lhe que o mdico e o h o m e m de governo erraram. Portanto, imagina que agora eu tambm te d uma resposta desse gnero: mas talvez a mais exata seja a de que o governante, enquanto tal, no [a] erra e, por no errar, estabelece aquilo que para ele o melhor; e isso o que deve fazer o sdito. Desse modo, para m i m , a justia aquilo que eu dizia desde o princpio, proporcionar a vantagem do mais forte." XV. "Ora, Trasmaco!", exclamei, "achas mesmo que meu comportamento de u m sicofanta?" "Sem dvida", respondeu. "Acreditas que te fiz aquelas perguntas com o insidioso propsito de prender-te numa armadilha ao longo da discusso?" "Estou convencido disso", respondeu. "E no obters vantagem nenhuma com isso: no poders prender-me sem que eu [b] perceba e, quando perceber, no poders vencer-me fora com discusses." "Eu tampouco o tentaria, bendito h o m e m " , respondi. "Mas, para que no nos ocorra algo do gnero, define em que sentido entendes o homem de governo e o mais forte: se entendes quem o por modo de dizer, ou quem o em sentido restrito, como dizias h pouco, aquele cuja vantagem, como no caso de uma pessoa mais forte, dever, por justia, ser feita pelo mais fraco." "Entendo", respondeu, "o homem de governo no sentido mais restrito da palavra. Se puderes, ope-te a essa minha opinio com armadilhas e atos de sicofanta; no te peo nenhuma considerao. Mas no h risco de [c] que venhas a conseguir." "Acreditas mesmo", repliquei, "que eu seria louco a ponto de fazer a barba de u m leo e agir como sicofanta com Trasmaco?" " S i m " , respondeu, "acabaste de faz-lo, mas no conseguiste." "Chega dessas questes!", exclamei. "Vamos, diz-me: o mdico, no verdadeiro sentido da palavra, de que falavas h pouco, u m homem de negcios ou algum que cura doentes? Deves falar de quem realmente mdico." "Algum que cura doentes", respondeu. "E o timoneiro? O verdadeiro timoneiro quem governa os marinheiros ou u m marinheiro?" " Q u e m governa os marinheiros. [d\" "Creio que no importante que

A JUSTIA DOS ANTIGOS

15

ele se encontre a bordo da nave; no 'por isso' que deve ser chamado de marinheiro: pois no porque navega que o chamamos de timoneiro, mas por sua arte e porque governa os marinheiros." " verdade", respondeu. "Ora, para cada u m deles, no existe uma vantagem?" "Sem dvida." "E a arte", retomei, "no , por natureza, voltada a buscar e a procurar aquilo que vantajoso para cada u m ? " "Sim, esse seu f i m " , respondeu. "E para cada arte existe outra vantagem que no seja a sua [e] maior perfeio?" " O que queres dizer com essa pergunta?" " O seguinte", respondi: "Se me perguntasses se a u m corpo basta ser corpo e se ele precisa de mais alguma coisa, eu te responderia: 'Claro que precisa. Alis, a arte mdica foi inventada justamente porque o corpo tem falhas e no lhe basta ser corpo. Tal arte constituiu-se para fornecer-lhe aquilo que lhe til.' Achas que eu estaria certo ou no ao falar assim?" "Certo", disse. "E ainda: a [a] medicina tambm tem suas falhas? E, do mesmo modo, outras artes tm necessidade de algumas virtudes que as completem, assim como os olhos precisam da vista e as orelhas do ouvido, tanto que, alm desses rgos, necessria uma arte capaz de buscar e procurar aquilo que lhes til? H, portanto, na prpria arte algum defeito? E cada arte precisa de outra que seja capaz de proporcionarlhe o que lhe til? E, a esta ltima, que busca, por sua vez, outra [b] semelhante? E assim ao infinito? O u buscar sozinha aquilo que lhe til? O u no tem necessidade nem de si mesma, n e m de outra para huscar aquilo que lhe til para sanar o prprio defeito? E isso porque no existe em arte alguma nem defeito, nem erro, e no lhe adianta buscar a vantagem de outra coisa que no seja seu prprio objeto? E, por sua vez, se essa arte for autntica, permanece intacta e pura enquanto toda arte verdadeira puder permanecer tal como , em sua integridade plena? E agora, com aquele estreito rigor terminolgico de que se falava, conduz o teu exame: a questo essa ou outra?" " essa", respondeu, "evidentemente." "Ento", [c] retomei, "a medicina no visa ao que til para a medicina, mas ao que til para o corpo." "Sim", admitiu. " N e m a hpica visa ao que til para a hpi-

16

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

ca, mas ao que til para os cavalos; nem outra arte ao que til a ela prpria (no tem necessidade disso), mas ao que til ao prprio objeto." "Evidentemente assim", disse ele. "Por outro lado, Trasmaco, as artes exercem u m governo e u m domnio sobre aquilo que o seu objeto." Trasmaco concordou, mas com muita relutncia. "Portanto, no h cincia que tenha em vista e prescreva a vantagem do mais forte, mas sim aquela de quem mais fraco e que por ela [d] governado." Tambm acabou por admitir tal fato, mas comeava a question-lo. Quando consentiu, retomei: "No verdade que nenhum mdico, enquanto mdico, tem em vista e prescreve o que til para o mdico, mas o que til para o paciente? Concordamos que o verdadeiro mdico algum que governa os corpos, mas no u m homem de negcios. O u ? " Trasmaco consentiu. "E no concordamos tambm que o verdadeiro timoneiro aquele que governa os marinheiros, sem ser marinheiro?" "Sim, [e] concordamos." "Ento, u m semelhante timoneiro e comandante no tentar nem prescrever o que til ao timoneiro, mas aquilo que til ao marinheiro, que seu subordinado." Consentiu relutante. "Por isso, Trasmaco", retomei, "no h ningum, em nenhuma forma de governo, que, enquanto homem de governo, tenha em vista e prescreva a prpria vantagem em vez daquela de seu sdito e para o qual exerce sua funo. Todas as suas palavras e aes tm esse objetivo e se do em funo da utilidade e da convenincia do sdito." [a] X V I . A essa altura da discusso, todos viam claramente que a definio da justia havia-se invertido por completo. E Trasmaco, em vez de responder, disse: " D i z - m e , Scrates, tens uma ama-de-leite?" " O que isso tem a ver?", perguntei. " N o era melhor responder do que fazer esse tipo de pergunta?" "A razo", respondeu, " que ficas com muco no nariz e no o assoas quando necessrio. E, graas5

5. Pelo esclio que se refere a essa passagem, aprende-se que, para os gregos, "ter as narinas cheias de muco" significava "ser estpido".

A JUSTIA DOS ANTIGOS

17

a isso, no sabes distinguir as ovelhas do pastor." "[b] Por qu?", perguntei. "Porque acreditas que os pastores ou os vaqueiros visam ao bem das ovelhas ou dos bois e os engordam e cuidam deles com u m objetivo diferente do bem dos patres e deles prprios. E, assim, pensas que tambm os governantes dos Estados, entendo os governantes no verdadeiro sentido da palavra, tm em relao aos sditos u m estado de esprito bem diferente daquele que se pode ter em relao s ovelhas; e que noite e dia visam a tudo, menos ao que poder comportar [c] seu benefcio. E, sobre os conceitos de justo e justia, de injusto e injustia, ests to fora do caminho que ignoras que a justia e o justo so, na realidade, u m bem alheio, uma vantagem de quem mais forte e governa, mas u m dano para quem obedece e serve; que a injustia o oposto e comanda aqueles autnticos ingnuos que so os justos; e que os sditos do vantagem a quem mais forte e o tornam feliz ao servi-lo, [d] enquanto no conseguem absolutamente tornar felizes eles prprios. Alm disso, deves ter em mente o seguinte, estulto Scrates: seja como for, u m homem justo sai perdendo em relao a u m injusto. Isso vale, antes de mais nada, nos contratos de negcios: sempre que u m justo e u m injusto se associam, n u n ca vers, quando a sociedade se desfaz, u m justo ganhar mais do que o injusto, mas o contrrio. Depois, nas relaes com o Estado: quando houver tributos a pagar, o justo, em igualdade de condies, paga mais, e o outro, menos; e quando [e] for para receber, u m no ganha nada, e o outro, muito. Q u a n d o u m e outro ocupam u m cargo pblico i m portante, o justo - ainda que no lhe aconteam outras desgraas - acaba tendo cada vez mais problemas nos prprios negcios, sem conseguir resolv-los nem tirar da coisa pblica qualquer benefcio por causa de sua justia; alm disso, passa a ser odiado pelos familiares e amigos se deixa de favorec-los para respeitar a justia. Com o injusto ocorre o oposto. Refiro-me, [a] neste ltimo caso, a quem sabe i m por-se habilmente aos outros. E este que deves considerar, se mesmo verdade que queres julgar quo maior vantagem ele obtm tanto da injustia quanto da justia. Irs com-

18

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

preender tal fato sem dificuldade se avanares at perceber a injustia absoluta, que torna sumamente feliz quem a comete e sumamente infeliz quem a sofre e evita comet-la. Falo da tirania, que com engano e violncia leva embora os bens alheios, sagrados e profanos, privados e pblicos, no u m pouco [b] por vez, mas todos de u m s golpe: e quando, em cada u m desses mbitos, algum surpreendido cometendo u m ato contra a justia, no apenas punido, mas tambm recebe os ttulos mais desonrosos. Aqueles que, cada qual em seu prprio mbito, tornam-se culpados de tais delitos contra a justia d-se o nome de sacrlegos, escravistas, arrombadores, assaltantes, ladres. Mas quando algum, alm de se apoderar dos bens dos concidados, apodera-se das suas pessoas e serve-se delas como se fossem escravas, em vez de receber [c] torpes ttulos, chamado de feliz e bem-aventurado no apenas pelos concidados, mas tambm por aqueles que ficam sabendo que cometeu a i n justia absoluta. Quem critica a injustia o faz no porque teme cometer aes injustas, mas porque teme sofr-las. E, assim, Scrates, sempre que praticada em medida adequada, a injustia mais forte e mais digna de u m homem livre e de u m senhor do que a justia; e, como eu dizia desde o princpio, a justia consiste na vantagem do mais forte, e a injustia, naquilo que comporta vantagem e convenincia pessoal." [d] XVII. Com isso, Trasmaco pretendia ir embora, depois de verter em nossas orelhas, como u m salva-vidas, u m dilvio de palavras. Mas os presentes no o deixaram fazlo e at o obrigaram a permanecer e a justificar aquilo que havia dito. Eu mesmo lhe pedi muito e disse: " M e u divino Trasmaco, despejaste em ns esse discurso e pretendes ir embora antes de nos explicar exaustivamente ou de perceber se as coisas so de fato assim ou de outra forma? Crs que podes definir uma questo insignificante em vez de6

6. Como a maioria dos editores, prefiro a lio XKov dos cdigos A D M lio Xov do cdigo F, adotada por Burnet.

A JUSTIA DOS ANTIGOS

19

uma regra de vida que cada u m de ns deve observar para poder transcorrer sua existncia com maiores vantagens?" "Por acaso meu pensamento diferente?", respondeu Trasmaco. "Aparentemente s i m " , repliquei; " o u , pelo menos, parece que no te interessas por nada de ns e que no te preocupas absolutamente se viveremos pior ou melhor, i g norando aquilo que afirmas saber. Vamos, meu b o m amigo, tem a bondade de deixar que ns tambm conheamos teu pensamento [a]. Certamente no ser to r u i m para ti, seja qual for o prazer que sentirs com a nossa numerosa companhia. N o que me diz respeito, declaro-te no estar convencido e no acreditar que a injustia traga ganho maior do que a justia, nem mesmo se a deixarmos agir como deseja, sem interpor-lhe obstculos. Tomemos como exemplo, meu bom amigo, o caso de u m indivduo injusto, que possa, de modo oculto ou com enrgica luta, agir contra a justia: todavia, no me convence o fato de a injustia lhe oferecer u m ganho maior do que a justia. Talvez assim tambm pense algum [b] entre ns, e no apenas eu. Portanto, deve-nos convencer totalmente, bendito homem, de que no correta a nossa resoluo de considerar que a justia vale mais do que a injustia." "E como poderei convencer-te?", perguntou. "Se os argumentos que enunciei h pouco no te convenceram, o que mais poderei fazer? Devo pegar meu discurso e enfi-lo em tua cabea?" "No, no, por Zeus!", respondi. "No faas isso! Porm, em primeiro lugar, sejam quais forem as tuas asseres, mantm-nas; ou, se as m u dares, muda-as de modo claro, sem tentar nos enganar. Agora, Trasmaco, para retomar o discurso de [c] antes, vs que anteriormente deste a definio do verdadeiro mdico, mas que depois deixaste de acreditar na necessidade de manter o mesmo rigor de definio para o verdadeiro pastor. Crs que, enquanto pastor, ele engorde as ovelhas no para lhes dar o melhor, mas para alimentar-se bem, como qualquer comensal que se prepara para a refeio ou para vender, como u m homem de negcios, mas no como [d] u m pastor. Em vez disso, o pastoreio s se preocupa em proporcionar o melhor ao seu objeto especfico, visto que, no

20

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

que concerne s suas qualidades peculiares, nas quais se tornou perfeito, tem o suficiente enquanto nada lhe faltar para ser pastoreio. Assim, de minha parte, h pouco eu acreditava que devssemos convir que todo governo, enquanto governo, s busca o melhor para os outros enquanto estes forem seus sditos, no mbito poltico e no [e] privado. Talvez acredites que os governantes dos Estados, os governantes no verdadeiro sentido da palavra, governam voluntariamente?" "No que eu acredite, por Zeus!", respondeu; "tenho certeza!" XVIII. "Alm do mais, Trasmaco", continuei, "no vs que ningum est disposto a exercer espontaneamente os outros cargos pblicos e que todos exigem uma recompensa porque o governo no se traduz em vantagens para eles, mas para [a] os sditos? Responde-me apenas o seguinte: no afirmamos, em toda circunstncia, que cada arte diferente das outras porque diferente o seu poder? Porm, bendito h o m e m , no me venhas com uma resposta paradoxal, do contrrio no chegaremos a nenhum resultado." " S i m " , respondeu, "a diversidade consiste nisso." "Ora, cada uma delas no nos proporciona uma vantagem que lhes seja particular e incomum? Por exemplo, a arte mdica proporciona sade, a arte do timoneiro, uma navegao segura, e assim por diante." "Sem dvida, [b]" "E a arte do mercenrio no proporciona recompensa? De fato, nisso consiste seu poder. O u ser que queres identificar a arte mdica com a arte do timoneiro? O u , sempre que quiseres ser exato nas tuas definies, conforme o princpio j estabelecido por ti, se algum que trabalha de timoneiro adquire sade, porque navegar no mar lhe faz bem, pssaras a cham-lo de mdico?" "No, claro", respondeu. "Creio que tampouco chamars assim a arte do mercenrio, se algum que trabalha por recompensa goza de boa sade." "Certamente no." "E ainda: chamars de mercenria a arte mdica se u m mdico receber [c] recompensa?" No respondeu. "Ora, no reconhecemos que cada arte tem sua vantagem

A JUSTIA DOS ANTIGOS

21

particular?" " A d m i t o " , disse. "Ento, seja qual for a vantagem comum a todos os artesos, claro que a tiram de u m certo elemento idntico, do qual se valem em comum, alm da sua arte." "Pode ser", respondeu. "E afirmamos que a vantagem de que gozam esses artesos quando recebem recompensa deve-se ao fato de que, alm da prpria arte, valem-se daquela mercenria." [d] Consentiu relutante. " E n to, no da prpria arte que cada u m tira essa vantagem, ou seja, o recebimento da recompensa; mas, se considerarmos atentamente esse fato, a arte mdica proporciona sade, e a mercenria, recompensa, e a arte de construir, uma casa, e aquela mercenria, que est ligada anterior, recompensa. E, assim, para todas as outras artes, cada uma cumpre sua obra e traz vantagem para aquele que seu objeto especfico. Mas, se no acrescentarmos a recompensa, pode o arteso tirar alguma vantagem da sua arte?" "[e] Parece que no", respondeu. "Mas, quando trabalha de graa, talvez nem assim sua obra seja vantajosa?" "Creio que sim." "Portanto, est claro, Trasmaco, que nenhuma arte e nenhum governo proporciona a prpria vantagem. Como se dizia h tempos, ele proporciona e prescreve a vantagem do sdito e visa ao benefcio deste, que mais fraco, e no ao do mais forte. Justamente por isso, caro Trasmaco, eu dizia h pouco que ningum, voluntariamente, aceita governar os problemas alheios e ocupar-se deles para [a] resolv-los, mas sim exige uma recompensa; pois quem pretende exercer bem a prpria arte nunca faz nem prescreve o que o melhor para si prprio, se as suas prescries estiverem em conformidade com essa arte; ele faz e prescreve o que melhor para seu sdito. E por isso, ao que me parece, que quem aceita governar deve receber uma recompensa: ou dinheiro, ou honras, ou ainda u m castigo, se deixar de governar. XLX. " O que queres dizer, Scrates, com estas palavras?", perguntou Glucon. "Conheo as duas recompensas, mas no entendi em que consiste o castigo de que falas e que consideraste recompensa." "Ento no entendes", respondi,

22

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

"em que consiste a recompensa das melhores pessoas, aquela [b] pela qual os mais honestos governam, quando aceitam governar. No sabes que a ambio de honras e de dinheiro considerada e , de fato, uma vergonha?" "Sei muito bem", respondeu. "Por isso", retomei, no por dinheiro nem por honras que os bons aceitam governar. No querem nem ser taxados de mercenrios, exigindo abertamente uma recompensa pela sua atividade de governo, nem de ladres que a tiram clandestinamente do cargo que exercem. E, de resto, no o fazem por honras porque no a ambicionam. E preciso [c] que sobre eles ainda ajam os estmulos da necessidade e do castigo, se aceitam governar: eis talvez a razo para o surgimento do hbito de considerar r u i m dirigir-se v o luntariamente ao governo sem esperar a necessidade para faz-lo. E o castigo supremo, se algum no aceita governar, consiste e m ser governado por outro que lhe seja inferior: por temor a esse castigo, a meu ver, governam, quando governam, os homens de bem. E dirigem-se ao governo no porque o julgam u m bem para si prprios ou porque pensam encontrar nele algum prazer, mas porque o consideram necessrio e no dispem de u m meio para confi-lo a [d] pessoas melhores do que eles, tampouco semelhantes. Pois, caso existisse u m Estado de pessoas de bem, talvez se fizesse de tudo para no governar, como hoje se faz de tudo para chegar ao governo, e, como resultado, seria evidente que, na realidade, u m verdadeiro h o m e m de governo, por sua natureza, no visa prpria vantagem, mas quela do sdito: de modo que toda pessoa prudente preferiria receber vantagens de outra a preocupar-se em obt-las por si s. Portanto, no concordo absolutamente com [e] Trasmaco sobre o fato de que a justia consiste na vantagem do mais forte. Mas v o l taremos a examinar esse ponto mais adiante. M u i t o mais importante parece-me a presente afirmao de Trasmaco de que a vida do injusto prefervel quela do justo. E tu, Glucon", perguntei, " q u a l das duas escolhes? E qual te parece a assero mais verdica?" " E m minha opinio", respondeu, "comporta maior proveito a vida do justo." "[a]

A JUSTIA DOS ANTIGOS

23

Ouviste", retomei, "a srie de bens que Trasmaco acabou de atribuir vida do injusto?" " O u v i " , respondeu, "mas no estou convencido." "Queres que o convenamos, se pudermos encontrar u m meio, de que suas palavras no correspondem verdade?" " C o m o posso no quer-lo?", indagou. " E n to", disse eu, "se opondo argumento a argumento lhe dissermos quantos bens oferece, por sua vez, a essncia do justo, e ele objetar e ns replicarmos com outro argumento, teremos de enumerar quantos bens apresentamos [b] em nossas respectivas argumentaes e avali-los. Portanto, precisaremos de alguns juizes para decidir. N o entanto, como ocorreu h pouco, se conduzirmos nosso exame entrando em acordo, seremos ns mesmos, simultaneamente, juizes e advogados." "Sem dvida", respondeu. "Eu gostaria ento de saber", retomei, "qual dos dois mtodos preferes." "Este ltimo", disse. XX. "Vamos, Trasmaco", exortei, "retomemos do p r i n cpio e responde-nos. Achas que a absoluta injustia mais vantajosa do que a absoluta justia?" "Sem dvida que [c] sim", respondeu, "e j disse os motivos." "Pois bem, por acaso esse teu modo de defini-las? Entre as duas, chamas uma de virtude e outra de vcio?" "Como n o ? " "Virtude a justia, e vcio, a injustia?" "E natural, carssimo amigo", respondeu; "pois tambm sustento que a injustia mais vantajosa, e a justia, no." "E ento, o que queres dizer?" " O oposto", respondeu. "Que a justia u m vcio?" "No, mas uma nobre simplicidade de carter." "[d] Ento chamas a injustia de malcia?" "No, mas de perspiccia", respondeu. "E os injustos, Trasmaco, parecem-te inteligentes e bons?" " S i m " , disse, "pelo menos aqueles que so capazes de realizar a injustia absoluta e que conseguem subjugar Estados e naes. Talvez penses que estou falando dos afanadores. Expedientes semelhantes, bem verdade, tambm comportam suas vantagens", continuou, "contanto que no sejam descobertos, mas no merecem ser tratados; em contrapartida, merecem os assuntos que eu estava dizendo

24

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

h pouco." "No [e] que eu no saiba o que queres dizer", respondi; "mas espantou-me o fato de considerares a injustia como virtude e sabedoria, e a justia como o oposto." "Mas justamente assim que as considero!" " M e u caro amigo", retomei, "essa tua assero mais complicada, e no ser to fcil encontrar argumentos para justific-la. Se t i vesses sustentado que a injustia comporta vantagens, mas admitido, como alguns outros, que vcio ou torpeza, p o deramos ter tentado alguma objeo, falando de u m ponto de vista geral. N o entanto, est claro que a definirs como bela e forte e lhe acrescentars todos aqueles [a] outros atributos que acrescentamos ao conceito de justo, visto que tambm tiveste a coragem de classific-la como virtude e sabedoria." "Adivinhaste perfeitamente." "De todo m o d o " , continuei, "no se deve renunciar a prosseguir a investigao discutindo, enquanto eu no puder considerar que tuas palavras correspondem a teu pensamento. Parece-me, Trasmaco, que no ests brincando neste momento, mas exprimindo a tua sincera opinio." "E o que te importa", perguntou, "se ou no a minha opinio? E por que, em vez disso, no confutas o meu discurso?" "Nada me importa", respondi. "Mas, [b] tenta responder-me, aps os pontos anteriores, a mais este: acreditas que u m justo pode superar outro em alguma coisa?" "Absolutamente no", respondeu; "no seria to civilizado como , nem simples de carter." "E ento? A ao justa?" "Tampouco a ao justa", respondeu. "Pretender, porm, superar o injusto e estimar justo faz-lo, ou no?" "Estimar e pretender poder faz-lo", respondeu, "mas no ser capaz." "No essa a minha pergunta", disse eu, "mas a seguinte: no verdade que o [c] justo no pretende e no quer superar outro justo, mas sim o injusto?" " S i m " , respondeu, " assim." "E o injusto? No pretende superar o justo e a ao justa?" "E como n o " , disse, "ele que pretende superar todos?" "E ento o injusto no superar outro injusto e uma ao injusta? E no lutar para obter, entre todos, o mximo possvel?" "Isso mesmo."

A JUSTIA DOS ANTIGOS

25

XXI. "Podemos ento concluir assim", disse eu: "o justo no supera seu semelhante, mas seu dessemelhante; [d] o injusto, por sua vez, supera tanto o seu semelhante quanto o seu dessemelhante, no isso?" "Disseste muito bem", admitiu. "E o injusto", retomei, " inteligente e bom, enquanto o justo no nem u m , nem outro?" "Isso tambm est certo", respondeu. " O injusto", continuei, "talvez se parea com quem inteligente e bom, e o justo no?" "Certo", respondeu; " q u e m possui uma determinada natureza deve, necessariamente, parecer-se com aqueles que tambm a possuem; e quem diferente, no." " M u i t o bem. Ento o justo e o injusto tm a mesma natureza daqueles aos quais se assemelham?" "Poderia ser diferente?", perguntou. "Pois bem, Trasmaco, no dizes que [e] u m versado em msica, e outro, n o ? " "Sim, digo." " Q u a l deles defines como inteligente e qual n o ? " " O versado, no h dvida, inteligente, e o que no versado, no." "E no dizes que u m bom naquele campo em que o consideras inteligente e ruim naquele em que lhe negas inteligncia?" " S i m . " "E no assim tambm para o mdico?" " . " "Acreditas ento, meu timo amigo, que u m msico, afinando sua harpa, queira vencer ou pretenda superar outro msico esticando ou afrouxando as cordas?" "No, no acredito." "Mas vencer ou superar algum no versado em [a] msica?" "Necessariamente." "E u m mdico? A o impor uma dieta de alimentos e bebidas, crs que est querendo superar em algo outro mdico ou preceito de medicina?" "Certamente no." "Mas estar querendo superar quem no mdico?" " S i m . " "E, assim, para cada espcie de cincia e de ignorncia, v se, em tua opinio, u m cientista qualquer decidir fazer ou dizer mais do que faria ou diria outro cientista; ou se, na mesma ao, no querer fazer e dizer as mesmas coisas que faria ou diria quem lhe semelhante." "Provavelmente", disse ele, "nesse caso necessariamente assim." "E o ignorante? No querer superar [b] igualmente o cientista e o ignorante?" " provvel." "E o cientista sbio?" "Sim, admito." "E o sbio bom?" "Sim, admito." "Ento, quem bom e sbio

26

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

no querer superar seu semelhante, mas seu dessemelhante, ou melhor, seu oposto." "Parece que s i m " , respondeu. "E quem r u i m e inculto querer superar tanto seu semelhante quanto seu oposto." "E evidente." "Ento, Trasmaco", retomei, "no nos parece que o injusto supera tanto seu dessemelhante quanto seu semelhante? No foi isso que disseste?" "Foi", respondeu. "E o justo no superar [c] seu semelhante, mas seu dessemelhante, no?" "Sim." " E n to", disse eu, "o justo assemelha-se ao sbio e bom, e o injusto, ao ruim e inculto." "Pode ser." " N o entanto, concordamos que cada u m dos dois tal qual aquele com quem se assemelha." "Sim, concordamos." "Eis ento que o justo nos resulta b o m e sbio, e o injusto, inculto e r u i m . " XXII. A esse respeito, Trasmaco acabou cedendo, no to [d] facilmente como estou contando agora, mas relutante, resistindo. E estava todo suado (incrvel como suava!), at porque fazia calor. E, pela primeira vez, vi Trasmaco corar... Como ento concordamos que a justia virtude e sabedoria, e a injustia, vcio e ignorncia, eu lhe disse: "Pois bem, admitamos tambm que, a esse respeito, as coisas estejam assim. Dissemos, porm, que a injustia igualmente forte. No te lembras, Trasmaco?" "Sim, lembro-me", respondeu, "mas no me agrada nem u m pouco o que ests dizendo, e sobre esse argumento tenho objees a fazer. E verdade que, se me pusesse a falar, [e] sei muito bem que dirias que fao arengas. Portanto, ou me deixas dizer tudo o que quero, ou, se quiseres fazer-me perguntas, faze-as; e eu, como s velhinhas que narram fbulas, dir-te-ei 'est bem' e te farei sinal de sim e de no com a cabea." "Porm, no o faas se no ests convencido", respondi. "E s para te agradar", disse ele, "j que no me deixas falar. O que mais queres?" "Nada, por Zeus!", repliquei. "Mas, se quiseres faz-lo, faze-o; e eu te farei perguntas." "Ento, vamos!" "Pois bem, para esmiuar com mtodo [a] a questo, repito a pergunta que te fiz h pouco: o que a justia em relao injustia? De certo modo, foi dito que a injustia mais

A JUSTIA DOS ANTIGOS

27

potente e forte do que a justia. Agora, porm", continuei, "se verdade que a justia sabedoria e virtude, tambm ter-se- facilmente como resultado, em minha opinio, que ela mais forte do que a injustia, visto que a injustia i g norncia: ningum poderia desconhecer tal fato. Eu, pcrm, Trasmaco, no tenho vontade alguma de conduzir a investigao de maneira to simples, mas sim desse outro modo. [b] Admites que existe u m Estado injusto? E que ele tente tornar-se servo e que tenha subjugado outros Estados, violando a justia? E que, depois de subjug-los, mantenha muitos sob seu domnio?" "Como no?", respondeu. "Alis, assim que se comportar o Estado melhor e absolutamente injusto." "Compreendo", respondi; "esta era a tua teoria. Mas, sobre ela, fao uma reflexo, que a seguinte: o Estado que se torna mais forte do que outro exercer seu poder prescindindo da justia ou ser obrigado a recorrer a ela?" "Se as coisas so como dizias h pouco [c]", replicou, " o u seja, se a justia sabedoria, exercer seu poder com justia; se forem como eu dizia, com injustia." "Fico feliz, Trasmaco", disse eu, "que no te limites a fazer sinal de sim e no, mas que tambm respondas, e muito bem." "Quero ser corts contigo", respondeu. XXIII. "Fazes muito bem. Mas, agora, continua a ser corts e diz-me: em tua opinio, u m Estado, ou u m exrcito, ou u m bando de saqueadores ou de ladres, ou qualquer outro grupo de pessoas associadas para uma empreitada i n justa, conseguiriam fazer alguma coisa se seus componentes fossem [d] injustos uns com os outros?" "Certamente no", respondeu. "E se no fossem? No se sairiam melhor?" "Sem dvida." "Talvez, Trasmaco, isso se d porque a injustia provoca revolta, dio e lutas recprocas, e a justia, concrdia e amizade: no verdade?" "Que seja!", admitiu, "no quero dissentir de t i . . . " "E fazes bem, meu excelente amigo. Diz-me agora: se a funo da injustia a de produzir o dio onde quer que se encontre, quando nascer entre homens livres e escravos, no far tambm com que

28

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

passem a odiar-se reciprocamente, a divergir e a ser incapazes de agir juntos e [e] em concordncia?" "Sem dvida." "E o que acontecer se surgir entre duas pessoas? No dissentiro, no se odiaro e no sero inimigas entre si, como o sero dos justos?" "Sero inimigas", respondeu. "E se, meu admirvel amigo, surgir no ntimo de u m nico indivduo, perder ele o seu poder ou o conservar igualmente?" "Admitamos que o conserve igualmente", respondeu. "Por acaso no evidente que qualquer que seja o sujeito em que nasa, Estado, ou nao, ou exrcito, ou outra comunidade civilizada, o poder [a] por ela possudo tal que, antes, torna esse sujeito incapaz de agir de acordo consigo mesmo, suscitando nele divergncias e dissensos? E depois tambm o reduz a inimigo de si mesmo e de todos que lhe forem opostos, ou seja, de quem for justo? No assim?" "Sem dvida." "E se encontrar-se n u m nico indivduo, provocar, creio, todos aqueles efeitos que a sua natureza faz com que produza: inicialmente, torna-lo- incapaz de agir, devido s divergncias e discrdias que estaro nele; depois, inimigo de si mesmo e dos justos. No verdade?" "Sim." "Mas, meu caro, justos no so tambm os deuses?" "Que seja! [b]", admitiu. "Por isso, Trasmaco, o injusto tambm ser inimigo dos deuses, e o justo, seu amigo." "Sacia-te com as tuas palavras", respondeu, "e no percas a disposio. De minha parte, no te farei oposio, para no parecer antiptico aos presentes." "Vamos!", disse eu, "completa m e u banquete e continua a responder-me como agora. Foi dito que os justos parecem mais sbios, melhores e mais capazes de agir, e que os injustos no conseguem fazer ao alguma em acordo recproco, [c] Alis, mesmo quando falamos de pessoas que, embora sejam injustas, por vezes chegaram a praticar alguma ao concreta em comum e recproco acordo, eis que no dizemos a verdade: pois, se tivessem sido totalmente injustas, no se teriam poupado reciprocamente. E claro que devia haver nelas u m pouco de justia e que esta impedia que se fossem injustas umas com as outras, mesmo que o fossem contemporaneamente com os adversrios: por essa justia que agiram como agiram. E, quando

A JUSTIA DOS ANTIGOS

29

a injustia as levou s suas aes injustas, eram perversas apenas pela metade: pois, quem perverso da cabea aos ps e absolutamente injusto tambm absolutamente incapaz de agir. A questo est, portanto, nesses termos, por [d] aquilo que compreendo dela, e no como t u a estabelecias em princpio. Devemos, ento, examinar se os justos vivem melhor e se so mais felizes do que os injustos, o que nos havamos proposto a analisar n u m segundo momento. Ora, em meu juzo, a partir do que j foi dito, tal questo j me parece resolvida. N o entanto, deve ser mais bem examinada. No se trata de uma coisa sem importncia, mas da norma de vida que se precisa adotar." "Pois bem, ento examina", respondeu. " o que estou fazendo", respondi. "Diz-me: em tua opinio, existe uma [e] funo prpria do cavalo?" " E m minha opinio, existe." "Ora, como funo de u m cavalo ou de outro ser ou objeto qualquer , no definirs aquilo que se pode fazer exclusivamente ou melhor do que tudo por meio dele?" "No compreendo", respondeu. "Digamos de o u tro modo: conseguirias enxergar com outros rgos que no fossem os olhos?" "Por certo que no." "E ouvir com rgos diferentes dos ouvidos?" "Realmente no." "No seria, ento, justo dizer que essas so as funes de tais rgos?" "Sem dvida, [a]" "E poderias podar u m sarmento com uma faca, ou com u m trinchete, ou com vrios outros instrumentos?" " C o m o n o ? " "Porm, creio que com n e n h u m podarias to bem quanto com a podadeira, que fabricada justamente para isso." " verdade." "Sendo assim, no deveremos considerar essa a funo da podadeira?" "Sim."7 8

XXTV. "Agora, em minha opinio, poders compreender melhor a pergunta feita h pouco, quando eu tentava saber

7. No achei correto traduzir, como a maioria, simplesmente "de outro ser qualquer", mas ampliei para "de outro ser ou objeto qualquer", porque Plato no fala apenas dos seres vivos e de seus rgos, mas tambm de coisas. 8. Creio que esteja certa a correo qxxTuEv, aceita por boa parte dos editores modernos, exceto por Burnet.

30

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

se a funo de cada coisa consiste naquilo que somente ela pode cumprir, ou, de todo m o d o , cumprir melhor do que qualquer outra." "Claro que o compreendo", respondeu, "e, a meu ver, a [b] funo de cada objeto consiste nisso." " M u i to bem", retomei. "E no achas que para cada coisa que tenha uma funo especfica haja tambm uma virtude? Voltemos aos exemplos anteriores: h, digamos, uma funo especfica para os olhos?" "Sim." "E eles no possuem tambm uma virtude?" "Sim, tambm a possuem." "E h uma funo especfica para os ouvidos?" "Sim." "E, portanto, tambm uma virtude?" "Sim, tambm." "E no assim para todas as outras coisas? [c]" " assim." "Pois bem, poderiam os olhos cumprir adequadamente sua funo se, no lugar de sua virtude especfica, tivessem u m vcio?" "E como poderiam?", respondeu. "Provavelmente falas da cegueira no l u gar da viso." "Seja qual for sua virtude", disse eu, "no importa. Ainda no isso que estou te perguntando: quero saber, isso sim, se os sujeitos que desempenham uma certa funo a desempenharo bem com sua virtude e mal com seu vcio." "E verdade o que dizes", admitiu. "E mesmo os ouvidos, privados de sua virtude, no cumpriro mal sua funo?" "[d] Sem dvida." "E, para todas as outras coisas, consideramos vlido o mesmo discurso?" "Parece-me que sim." "Agora, analisa mais este ponto: no h uma funo da alma que no poderias cumprir com nenhuma outra coisa entre aquelas que existem? Esta, por exemplo: dominar, governar, deliberar e todas as atividades congneres. H mais algum a quem poderamos confi-las que no fosse nossa prpria alma? E poderamos dizer que tais atividades no lhe so prprias?" "No, no h ningum." "E viver? Por acaso no funo prpria da alma?" "Sim, de modo particular", respondeu. "Ento, podemos dizer que tambm h uma virtude da alma?" "Podemos." "Ora, [e] Trasmaco, ser que a alma nunca poder cumprir bem suas funes se for privada da virtude que lhe prpria? O u impossvel?" "Impossvel." " U m a alma r u i m deve, necessariamente, governar e dominar mal, e uma alma boa, cumprir bem tudo

A JUSTIA DOS ANTIGOS

31

isso." "Necessariamente." "Ora, no concordamos que a virtude da alma a justia e que seu vcio a injustia?" "Sim, concordamos." "Por isso, a alma justa e o h o m e m justo v i vero bem, e o injusto, mal." "E evidente", disse ele, "com base no teu discurso, [a]" "Por outro lado, quem vive bem bem-aventurado e feliz, e quem no vive bem, o oposto." "Como n o ? " "Portanto, o justo feliz, e o injusto, infeliz." "Admitamos", respondeu. "Porm, no h vantagem em ser infeliz, enquanto h em ser feliz." "Como n o ? " "Portanto, bendito Trasmaco, nunca a injustia mais vantajosa do que a justia." "Pois bem, Scrates", disse ele, "que seja este o teu banquete para as festas Benddias." " O mrito teu, Trasmaco", respondi; "pois te acalmaste e deixaste de maltratar-me. [b] Todavia, no foi u m bom banquete: por culpa minha, no tua! A g i como aqueles glutes que arrancam e provam os pratos medida que so servidos, antes de saborear bem o anterior. Assim, em minha opinio, antes mesmo de encontrar a soluo para o problema daquilo que a justia, deixei-o de lado e tambm me pus a analisar se vcio e ignorncia ou sabedoria e virtude. Quando ento se terminou por dizer que a injustia oferece maior vantagem do que a justia, no soube impedir-me de passar daquele argumento para este. E, assim, depois de toda [c] a nossa grande discusso, no consigo extrair nada dela; e se no sei o que a justia, menos ainda saberei se ou no uma virtude e se quem a tem em si ou no feliz.

Segundo livro [a] I . C o m isso, eu acreditava ter terminado de falar, mas, ao que parecia, estvamos apenas no preldio. Pois Glucon, sempre corajoso como com qualquer u m , tambm dessa vez no aprovou a renncia de Trasmaco e disse: "Scrates, contentas-te em ter-nos aparentemente persuadido? O u preferes [b] persuadir-nos realmente de que o justo sempre melhor do que o injusto?" " o que eu gostaria

32

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

de fazer, se pudesse", respondi. "Porm, no o fazes", redargiu. " D i z - m e : em tua opinio, existe u m bem que ficaramos felizes em possuir por ter valor para ns, e no porque desejamos intensamente as vantagens que dele resultam, como a alegria e todos aqueles prazeres incuos que, no f u turo, proporcionam apenas a alegria de experiment-los?" "Sim", respondi, "em minha opinio, existe bem semelhante." "E mais: existe algum bem que amamos por aquilo que ele representa [c] e pelas suas vantagens, como ter inteligncia, viso e sade? Esses bens, a meu ver, so preciosos por ambas as razes." " S i m " , respondi. "E no vs", redargiu, "que existe uma terceira espcie de bens, como fazer ginstica, ser curado em caso de doena, exercer a medicina e praticar as outras atividades voltadas a ganhar dinheiro? Tudo isso, devemos dizer, custa-nos esforo, mas tambm nos til; e ficamos satisfeitos em possu-lo no por aquilo que ele representa, [d] mas pelas recompensas e por suas outras vantagens." "De fato", admiti, "tambm existe essa terceira espcie de bens. Mas aonde queres chegar?" "E em qual delas colocas a justia?", perguntou. " N a [a] melhor, creio", respondi; "naquela em que quem aspira felicidade deve amar por aquilo que ela e pelas vantagens que comporta." "Certamente no assim que pensam as pessoas comuns", respondeu. "Colocam-na na espcie de bens que custam esforo, daqueles bens que devem ser praticados para proporcionar recompensa e boa reputao, mas que, por si prprios, devem ser evitados como molestos." II. "Sei que pensam assim", redargi; "alis, faz tempo que Trasmaco critica a justia por essa razo, enquanto exalta a injustia. Mas eu, como sabes, sou lento para compreender, [b]" "Ora, vamos!", respondeu, "oua-me para ver se tua opinio coincide com a minha. A meu ver, Trasmaco, como uma serpente, deixou-se encantar por t i rpido demais, enquanto eu ainda no me sinto satisfeito nem com uma, nem com outra demonstrao. Tenho muita vontade de saber o que so o justo e o injusto, e que poder tm por si

A JUSTIA DOS ANTIGOS

33

prprios quando se encontram dentro da alma. Mas, deixemos de lado as recompensas e vantagens externas. Portanto, procederei da seguinte forma, se estiveres de acordo: retomarei desde o princpio o discurso de [c] Trasmaco e direi, inicialmente, o que a justia e qual a sua origem segundo a opinio comum; em seguida, que todos aqueles que a praticam o fazem contra a prpria vontade, pois so obrigados, e no porque acreditem que ela seja u m bem; por fim, que essa sua conduta natural porque, segundo eles, bem melhor o m o d o de vida do injusto do que aquele do justo. claro, Scrates, que no penso assim; no entanto, tenho minhas dvidas, pois sinto-me aturdido com as palavras de Trasmaco e com inmeras outras, enquanto ainda no ouvi ningum [d] falar, como eu gostaria, que a justia melhor do que a injustia. E agora eu gostaria justamente de ouvir o elogio justia por si prpria e tenho plena confiana de poder ouvi-lo de ti. Portanto, esforar-me-ei para exaltar os mritos da vida injusta e, assim, indicar-te-ei de que maneira, por m i n h a vez, quero ouvir de t i a crtica injustia e o louvor justia. Vs se te agrada o que digo." "Perfeitamente", respondi; "Que outro assunto alm deste uma pessoa sensata preferiria tratar com mais freqncia em sua [c] conversa?" "Tens toda razo", disse ele. "Agora ouve o p r i meiro argumento, sobre o que a justia e qual a sua origem. Dizem que cometer uma injustia , por natureza, u m bem, e sofr-la, u m mal; e que pior sofr-la do que comet-la. Sendo assim, quando os homens so injustos uns com os outros e provam o mal e o bem, aqueles [a] que no so capazes de evitar u m e de obter o outro consideram vantajoso entrar n u m acordo, no sendo injustos uns com os o u tros. E, assim, comearam a impor leis e a fazer pactos entre si; e deram os nomes de legtimo e justo quilo que estabelecido pela lei. Para eles, essa , portanto, a origem da justia, a sua essncia; e encontra-se a meio caminho entre o melhor (que consiste em cometer a injustia sem ser castigado) e o pior (que consiste em sofrer a injustia sem poder vingar-se). Por isso, estando em meio a esses dois extremos,

34

A IDIA DE JUSTIA DE PLATO A RAWLS

os homens no amam a justia [b] como bem, mas a estim a m porque lhes falta a fora para cometer uma injustia. Pois, quem pudesse comet-la e fosse u m h o m e m autntico certamente nunca consentiria com o pacto de cometer e sofrer uma injustia. Seria louco se agisse assim. Portanto, Scrates, assim feita a natureza da justia, e tal sua origem, ao menos conforme se narra. III. Porm, mesmo aqueles que praticam a justia o fazem de m vontade e somente porque so incapazes de cometer uma injustia. Perceberamos tal fato perfeitamente se [c] imaginssemos u m caso como este: concedemos a a m bos, ao justo e ao injusto, fazer o que quiserem, depois os seguimos e observamos em qual circunstncia cada u m atrado por seu desejo. Surpreenderemos o justo no ato de dirigir-se para a mesma metade do injusto, levado pela v o n tade de superar o outro, coisa que todos, por natureza, buscam como u m bem e da qual se abstm apenas porque a lei os obriga a respeitar a igualdade. A faculdade de que falo esta, a de dispor do poder que, pelo que dizem, [d] outrora foi o de Giges, o antepassado de Ldio *. Giges era pastor subordinado ao prncipe, que, na poca, governava a Ldia . Pois bem, aps uma tempestade e u m tremor telrico, a terra se fendeu n u m determinado trecho, produzindo u m abismo no local onde ele apascentava o rebanho. Diante desse cenrio, completamente estupefato, desceu no abismo e, alm das maravilhas que narra a fbula, descobriu u m cavalo de bronze, oco, provido de aberturas. Aproximou-se e1 10

9. Segundo o que ensinam os cdices (na verso aceita por Burnet), seria preciso traduzir "o antepassado do ldio Giges" ou "o antepassado de G i ges, o Ldio". Mas o anel de Giges (e no de um antepassado) lembrado pelo prprio Plato mais adiante (Resp. X, 612 b). A questo deu lugar a uma ampla controvrsia de estudiosos. Talvez por "Ldio" deva-se entender Creso, o ltimo rei da Ldia, derrotado em 548 a.C. por Ciro, o Grande, rei da Prsia, e muito conhecido por suas enormes riquezas. 10. Deveria tratar-se de Candaules, ltimo rei da Ldia, pertencente d i nastia dos Heraclidas (Giges fundou, por sua vez, a dinastia dos Mermnades).

A JUSTIA DOS ANTIGOS

35

viu dentro dele u m cadver de propores aparentemente sobre-humanas, sem nada a cobri-lo alm de u m ureo [e] anel na mo. Pegou-o e saiu . Quando, como de costume, fez-se a reunio de pastores para enviar ao rei o relato m e n sal sobre os rebanhos, Giges apresentou-se com o anel. E eis que, sentado junto aos outros, girou por acaso o engaste do anel para si, para a parte interna da prpria [a] mo, e tornou-se invisvel para os que estavam sentados ao seu lado e que passaram a falar dele como se ele tivesse ido embora. Ficou maravilhado e continuou a entreter-se com o anel at que girou o engaste para a parte externa e voltou a ser visvel. Considerando o caso, repetiu a tentativa para verificar esse poder, e sempre lhe ocorria de tornar-se invisvel se girava o engaste para dentro, e visvel se o girava para fora. To logo percebeu o mecanismo, fez de tudo para ser u m dos mensageiros a ser [b] enviado ao rei e, quando chegou a ele, seduziu sua mulher e, com sua