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PLLATTÃÃOO a((442277--334477 a..CC..)) · Ao Deus de Jesus Cristo, pelo dom da vida. A Arquidiocese de Maringá, ... Apesar de todos terem como ponto de partida a ... papel e o

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3

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CAPA: Raffaello Sanzio, La Scuola di Atene, Platão, 1511.

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Edivaldo ROSSI GONÇALVES

PPLLAATTÃÃOO ((442277--334477 aa..CC..))

AA MMeettááffoorraa ddaa SSeegguunnddaa NNaavveeggaaççããoo ee aa

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Humanitas Vivens Ltda

Uma Instituição a serviço da Vida!

Sarandi (PR) 2009

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Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda

EDITOR:

Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS

CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA

Prof. Ms. Fábio Inácio PEREIRA

Prof. Ms. Leomar Antônio MONTAGNA

REVISÃO GERAL:

André Luis Sena dos SANTOS

Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS

Paulo Cezar FERREIRA

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Agnaldo Jorge MARTINS

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Gonçalves, Edivaldo Rossi

G635p Platão (427-347a.C.): a metáfora da

segunda navegação e a descoberta do supra-

sensível [recurso eletrônico]

/Edivaldo Rossi Gonçalves. -- Sarandi, Pr

: Humanitas Vivens, 2009.

ISBN: 978-85-61837-07-5

Modo de acesso:

<www.humanitasvivens.com.br>. 1. Platão. 2. Segunda navegação. 3.

Platão - Ideias e princípios. 4. Filosofia.. 5.

Demiurgo.

CDD 21. ed. 100

Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de

responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de

vista da Editora, seus representantes e editores. Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por

qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou

banco de dados sem permissão escrita do Autor e da

Editora Humanitas Vivens Ltda.

Praça Ipiranga, 255 B, CEP: 87111-005, Sarandi - PR

www.humanitasvivens.com.br – [email protected]

Fone: (44) 3042-2233

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Aos meus pais: Reinaldo Gonçalves Gilabel (in memoriam)

e a minha mãe Helena Rossi Gonçalves.

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus de Jesus Cristo, pelo dom da vida.

A Arquidiocese de Maringá, por ter confiado em mim

nestes últimos quatro anos.

A comunidade paroquial do Sagrado Coração de

Jesus de Nova Esperança – PR que sempre me ajudou nos

momentos em que mais precisava.

Aos bibliotecários e às bibliotecárias do Centro de

Ciências Aplicadas e da Saúde, pela excelência no

atendimento às inúmeras solicitações.

Ao meu orientador, o Professor Mestre Luiz Antonio

Belini, pela disponibilidade, apoio e paciência em todas as

etapas de elaboração dessa pesquisa.

Aos amigos, Paulo Henrique de Alencar –

companheiro das aulas de Italiano – Sueli Theobaldo,

Adriano Ferreira Melo e Rodrigo de Karvalho, pelo

estímulo e também pelos momentos de partilha.

A minha família, fonte de ternura e porto seguro nos

momentos de dificuldade.

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Parecia-me que ele se portava como um homem que

dissesse que Sócrates faz tudo o que faz porque age com o

seu espírito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as

causas de tudo o que faço, dissesse que me acho sentado

aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões, e os

ossos são sólidos e separados uns dos outros por

articulações, e os tendões contraem e distendem os

membros, e os músculos circundam os ossos com a carne, e

a pele a tudo envolve!

Platão, Fédon, 98 C.

Queres que te exponha, ó Cebes, a segunda

navegação que empreendi para ir em busca dessa causa [i.é. – a verdadeira causa]?

É impossível que alguém o deseje mais do que eu, respondeu.

Platão, Fédon, 99 D.

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Sumário

1 INTRODUÇÃO ...............................................................................

2 PREMISSA HISTÓRICA .................................................................

2.1 A GRÉCIA E SUA HISTÓRIA ....................................................

2.1.1 A Grécia Clássica .................................................................

2.2 PLATÃO ......................................................................................

2.2.1 A Questão Platônica ..............................................................

2.2.1.1 A autenticidade ............................................................

2.2.1.2 A cronologia ................................................................

2.2.1.3 As Doutrinas não-escritas ..........................................

2.3 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA ARCHÉ .....................

2.3.1 Os Jônicos .............................................................................

2.3.2 Os Pitagóricos ........................................................................

2.3.3 Os Eleatas ..............................................................................

2.3.4 Os Físicos Pluralistas ............................................................

3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E

A DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL ..................................

3.1 A MAGNA CHARTA DA

METAFÍSICA OCIDENTAL ........................................................

3.1.1 O encontro com os físicos .....................................................

3.1.2 A segunda navegação ..........................................................

3.2 A TEORIA DAS IDÉIAS .............................................................

3.2.1 As características metafísico-ontológicas .............................

3.2.1.1 A inteligibilidade e a incorporeidade ...........................

3.2.1.2 O ser em sentido pleno .................................................

3.2.1.3 A imutabilidade e a perseidade .....................................

3.2.1.4 A unidade .....................................................................

3.2.2 O “dualismo” platônico .........................................................

3.3 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS

PRIMEIROS E SUPREMOS ..........................................................

3.3.1 A duplicidade de nível de fundação metafísica .....................

3.3.2 O sistema metafísico bipolar .................................................

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3.3.2.1 O Bem como Uno e como suprema medida ..................

3.3.2.2 O ser como síntese dos Princípios supremos .................

4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E

O SIGNIFICADO E ALCANCE DA

METAFÍSICA DE PLATÃO .............................................................

4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO .................................................

4.1.1 Cosmo sensível: uma emanação necessária? .......................

4.1.2 A conexão estrutural entre a

Inteligência Ordenadora e o Bem ............................................

4.1.3 O Demiurgo e a criação do cosmo físico ..............................

4.1.3.1 O princípio material ......................................................

4.1.3.2 A atividade ordenadora e os entes matemáticos ............

4.1.4 O cosmo físico: beleza e perfeição ...................................

4.2 PAPEL E ALCANCE DA METAFÍSICA DE PLATÃO ...............

4.2.1 O caráter imprescindível da filosofia de Platão ......................

4.2.2 A segunda navegação e a rejeição do materialismo ..............

4.2.3 A teoria das Ideias ..................................................................

4.2.4 A doutrina dos Princípios .......................................................

4.2.5 A doutrina do Demiurgo ........................................................

4.2.5.1 A concepção de Deus em Platão ...................................

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................

REFERÊNCIAS .....................................................................................

APÊNDICES ..........................................................................................

APENDICE A – SÍNTESE: ...................................................................

PLATÃO, A METÁFORA DA SEGUNDA NAVEGAÇÃO E A

DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL ............................................

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................

2 PREMISSA HISTÓRICA ...................................................................

2.1 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA ARCHÉ ..........................

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3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E

A DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL ....................................

3.1 A TEORIA DAS IDEIAS ................................................................

3.2 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS

PRIMEIROS E SUPREMOS .............................................................

4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E

O SIGNIFICADO E ALCANCE DA

METAFÍSICA DE PLATÃO .............................................................

4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO ...................................................

4.2 PAPEL E ALCANCE DA

METAFÍSICA DE PLATÃO .............................................................

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................

REFERÊNCIAS ...................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

A origem da filosofia está ligada à busca pelo

princípio de todas as coisas. Para o grego antigo, podemos

afirmar que conhecemos algo quando conhecemos sua

causa, isto é, aquilo pelo qual algo existe. Nessa mesma

perspectiva, os primeiros filósofos afirmam que explicar é

unificar, ou seja, quem se propõe a explicar algo deve estar

apto a reduzir a multiplicidade a um princípio originário

único causador de todas as coisas – a arché.

Com efeito, ao buscar pelo princípio de todas as

coisas, a filosofia antiga tem em vista a totalidade do ser e

do real. De Tales de Mileto a Platão esta busca esteve

relacionada a questões metafísicas ligadas à causa da

geração, da corrupção e do ser das coisas. A problemática

de fundo apresentava-se da seguinte forma: Por que as

coisas se geram? Por que se corrompem? Por que existem?

Inicialmente, acreditava-se que a arché poderia ser

encontrada no âmbito da própria physis, na realidade

empírica. Com esse intuito, os primeiros filósofos

mobilizaram suas forças e direcionaram toda a sua atenção

para uma investigação incansável da natureza. O que, por

sua vez, justifica o fato de serem denominados físicos ou

naturalistas.

Apesar de todos terem como ponto de partida a

pergunta – Qual é o princípio de todas as coisas? – suas

conclusões mostraram-se divergentes e, até mesmo,

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contraditórias. A metodologia adotada pelos naturalistas,

longe de esclarecer a causa da geração, da corrupção e do

ser das coisas, tornava-a ainda mais confusa e de difícil

compreensão.

Platão lê os naturalistas e constata que não

conseguiram alcançar uma resposta satisfatória ao problema

da arché, porque restringiram sua investigação ao âmbito da

physis. O problema dos naturalistas estava no método que

haviam empregado – ficaram presos aos sentidos. Ele

conclui que, somente ao adotar uma nova metodologia e ao

redirecionar a pesquisa, poderia chegar a uma resposta

satisfatória para a causa da geração, da corrupção e do ser

das coisas.

É diante deste contexto que Platão empreende a

guinada metodológica que ele mesmo denominou de

segunda navegação e que tem como resultado a descoberta

da dimensão metafísica do ser. Com efeito, a primeira

navegação é aquela feita com as velas ao vento e

corresponde à investigação realizada pelo impulso da

filosofia da physis. A segunda navegação é aquela feita com

os remos e refere-se ao novo método proposto por Platão

fundado sobre os raciocínios e os postulados racionais que

conduzem à descoberta de uma nova dimensão do ser.

A metáfora da segunda navegação constitui o

símbolo de acesso à dimensão supra-sensível e, como tal,

apresenta os três domínios fundamentais da teorização

metafísica de Platão: a teoria das Ideias; a doutrina dos

Princípios primeiros e supremos; a doutrina do Demiurgo.

Apesar de distintos, estes três âmbitos da metafísica

platônica estão em estreita conexão.

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Somente se considerarmos a estreita conexão

existente entre teoria das Ideias, doutrina dos Princípios e

doutrina do Demiurgo, as questões ligadas à causa da

geração, da corrupção e do ser das coisas encontram uma

resposta satisfatória em Platão. Fora dessa visão de

conjunto, as respostas apresentam-se parciais e lacunares.

As linhas que se seguem propõem o estudo desses três

domínios da metafísica de Platão.

No primeiro capítulo, apresentamos as questões que

julgamos necessárias para reconstruir, ainda que

parcialmente, o horizonte histórico contemplado por Platão.

Particular atenção foi dispensada ao período Clássico da

história da Grécia, à vida de Platão e à problemática

filosófica que envolveu os naturalistas na busca pela arché.

No segundo capítulo, dedicamo-nos à discussão sobre

a segunda navegação platônica e a descoberta do ser supra-

sensível. Por sua vez, abordamos as questões referentes à

teoria da Ideias, que possibilitou, a Platão, explicar as coisas

não mais por elas mesmas, mas em função de realidades

inteligíveis; e também à doutrina dos Princípios que são o

fundamento da própria teoria das Ideias e constituem a

esfera suprema e primeira em sentido absoluto.

A abordagem da doutrina do Demiurgo, por pressupor

tanto a teoria das Ideias quanto a doutrina dos Princípios, foi

reservada para o terceiro capítulo. Neste último capítulo,

procuramos discorrer, ainda que sinteticamente, sobre o

papel e o alcance da metafísica de Platão, numa tentativa de

demonstrar o seu legado para a filosofia ocidental.

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2 PREMISSA HISTÓRICA

Diante da novidade apresentada pela filosofia de

Platão, julgamos necessário dedicar maior atenção a seu

contexto. Além das informações de cunho mais geral,

buscamos apresentar o itinerário que Platão percorreu em

seus 80 anos de vida e lembramos que é frente à

problemática levantada pelos naturalistas, em sua incansável

busca pela arché, que podemos vislumbrar “a principal

novidade da filosofia platônica”1: a descoberta da dimensão

metafísica do ser.

2.1 A GRÉCIA E SUA HISTÓRIA

A história da Grécia Antiga pode ser dividida em

quatro grandes períodos: o período Pré-homérico, o período

Homérico, o período Arcaico e o período Clássico. O

período Pré-homérico compreende um arco de tempo que

vai desde os primórdios da ocupação humana na Grécia até

o século XII a.C. Este período é marcado por quatro grandes

invasões dos povos indo-europeus2 que, paulatinamente,

1 REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. 2. ed. São Paulo:

Paulus, 2004, p. 137. 2 GIORDANI, M. C. História da Grécia. 7. ed. Petrópolis: Vozes,

2001, p. 88, afirma que a expressão indo-europeu possui mais um

sentido linguístico que propriamente racial.

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deram origem ao povo grego: os aqueus, os jônios, os eólios

e os dórios.

O período Homérico compreende do século XII ao

século VIII a.C. As principais fontes desse período são as

obras atribuídas a Homero, ou seja, a Ilíada e a Odisséia.

Este período é marcado por evoluções: político-social –

passagem dos genos à pólis, de um regime patriarcal para

um regime oligárquico; evolução econômica – da passagem

do pastoreio para a agricultura; evolução religiosa –

concretizada no processo de humanização e maior

conhecimento das divindades até então distantes,

misteriosas e desconhecidas.

No período Arcaico, que se estende do século VIII ao

século V a.C., temos a consolidação da polis grega, isto é,

da cidade-Estado, organização típica da Grécia antiga: o

centro da sociedade grega. Werner Jaeger afirma que “a

polis é o centro principal a partir do qual se organiza

historicamente o período mais importante da evolução

grega. Situa-se, por isso, no centro de todas as

considerações históricas”3. Dentre as várias cidades-Estado

que se consolidaram nesse período, Atenas e Esparta

destacam-se como as mais importantes.

Por fim, o período Clássico compreende os séculos V

e IV a.C. Um período agitado e de profundas

transformações. Em virtude de sua relevância, deter-nos-

emos um pouco mais em algumas de suas características

significativas.

3 JAEGER, W. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.

106.

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2.1.1 A Grécia Clássica

O início do período Clássico foi marcado pelas

guerras entre os gregos e os persas: as Guerras Médicas.

Essas Guerras assinalaram profundamente os gregos.

Tucídides, ao escrever a História da Guerra do Peloponeso

e ao passar em revista a história da Grécia, chega afirmar

que “o acontecimento mais importante dos tempos passados

foi a guerra com os persas, e todavia ela foi prontamente

decidida em dois combates navais e duas batalhas

terrestres”4.

Os combates navais a que Tucídides se refere são os

de Artemísion e Salamina, dos quais sobressai o nome de

Temístocles e sua habilidade tática. As batalhas terrestres

são as de Termópilas, com destaque especial para os

trezentos soldados espartanos liderados pelo general

Leônidas que lutaram bravamente até a morte, e Platéias

com a aniquilação do exército persa pelos hoplitas

espartanos e atenienses liderados pelo general-chefe

Pausânias.

Mario Curtis Giordani, referindo-se às guerras entre

gregos e persas afirma:

A luta entre Gregos e Persas é um desses episódios

decisivos da História da Humanidade. Mais que as

4 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 3. ed. Brasília:

UnB, 1987, I, 23, p. 28.

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forças armadas, chocam-se duas culturas opostas: de

um lado, um império absoluto, heterogêneo,

obedecendo como um autômato a um senhor

despótico; de outro lado, pequenas cidades

orgulhosas de sua independência, unidas por uma

língua e por inúmeras tradições comuns, conscientes

do papel que desempenharam na luta feroz contra o

invasor da pátria5.

As Guerras Médicas mudaram os rumos da história da

Grécia. Por ocasião da primeira ofensiva persa, que chegou

ao fim com a batalha de Maratona, em 490 a.C., temos a

reorientação política e econômica de Atenas para o mar:

primeiro com a aquisição do Pireu, depois com a construção

de uma frota que a transformou na maior potência marítima

da Grécia.

Por conseguinte, mesmo após a derrota em Platéias,

os persas impunham certo medo às cidades gregas e ainda

mantinham algumas cidades sob seu domínio. Era preciso

tomar alguma providência. Nasce então a Liga de Delos

que, liderada por Atenas, tinha um duplo objetivo: proteger

as cidades gregas de novos ataques persas e libertar aquelas

cidades que ainda estavam sob domínio inimigo.

A sede da Liga estava situada na pequena ilha de

Delos, onde existia um importante santuário dedicado a

Apolo. Nesta mesma ilha, era guardado o tesouro da Liga,

fruto dos tributos e da contribuição dos aliados, destinado à

manutenção da frota e dos exércitos. A paz entre gregos e

persas foi selada apenas em 448 a.C., com o Tratado de

Susa ou Paz de Cálias. Esse tratado possibilitou o

5 GIORDANI, M. C. Op. cit., p. 118.

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florescimento do comércio entre Atenas e o Oriente. Agora,

o inimigo já não era mais o império persa, mas uma outra

cidade-Estado grega: Esparta.

Ao final da guerra com os persas, Atenas era a cidade

mais poderosa da Grécia. Por sinal, com o desaparecimento

da ameaça persa, a Liga já não tinha mais razão para existir.

Porém, ao contrário do esperado, Atenas manteve a Liga e a

cobrança de tributos. A antiga associação defensiva assumia

agora as dimensões de um poderoso império: o Império

Ateniense. De fato, em 450 a.C., o tesouro da Liga já tinha

sido transferido de Delos para Atenas. Quanto ao destino do

tesouro, Jean-Joël Duhot apresenta-nos claramente:

Por ocasião de sua invasão, os persas tinham

destruído a Acrópole. Péricles a faz reconstruir, sob

a direção de Fídias, nos anos 440, mas as despesas

da construção vieram rapidamente a exceder os

recursos financeiros da cidade. É então que decide

utilizar o tesouro dos aliados para acabar o

Partenon. A oposição aristocrática se indigna, mas o

dirigente democrata responde que, como Atenas

garante a segurança de seus aliados, não tem de dar conta da utilização que faz da contribuição à liga6.

Com Péricles, Atenas atinge seu período áureo. Os

anos de 446 a 431 a.C. entraram para a história como os

anos de apogeu da civilização grega. O florescimento de

Atenas manifesta-se nos mais diversos aspectos: na

arquitetura, com Ictino; na escultura, com Fídias, o

responsável pela reconstrução do Partenon, templo onde

6 DUHOT, J.-J. Sócrates ou o Despertar da Consciência. São Paulo:

Loyola, 2004, p. 28.

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esculpiu uma estátua da deusa Atena em ouro e marfim; no

teatro, com Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes; na

pesquisa histórica, com Heródoto e Tucídides; na filosofia,

com os Sofistas e com Sócrates; na política, com o

fortalecimento da democracia.

O próprio Péricles, em sua célebre oração fúnebre,

apresenta o perfil de Atenas e dos atenienses do século V:

Vivemos sob uma forma de governo que não se

baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao

contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de

imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de

poucos mas da maioria, é democracia. [...]

Instituímos muitos entretenimentos para o alívio da

mente fatigada; temos concursos, temos festas

religiosas regulares ao longo de todo o ano [...].

Nossa cidade é tão importante que os produtos de

todas as terras fluem para nós [...]. Somos amantes

da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia

sem indolência. [...] Decidimos as questões públicas

por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos para

compreendê-las claramente, na crença de que não é o

debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se

estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora

da ação. [...] Em suma, digo que nossa cidade, em

seu conjunto, é a escola de toda a Hélade e que,

segundo me parece, cada homem entre nós poderia,

por sua personalidade própria, mostrar-se auto-

suficiente nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade7.

7 TUCÍDIDES. Op. cit, II, 37-46, p. 98 et seq.

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Mas Atenas florescia a custa do dinheiro das outras

cidades da Liga. O descontentamento crescia e a rivalidade

e o contraste entre Atenas e Esparta também. A oposição

entre as duas cidades manifestava-se desde a concepção de

vida até o regime político e econômico – Esparta, protetora

natural das aristocracias; Atenas, que obrigava seus aliados

a adotarem o regime democrático.

As cidades-Estado descontentes com o jugo imposto

por Atenas foram buscar auxílio em Esparta. De fato, há

muito tempo, ela estava descontente com os rumos tomados

por Atenas. As rivalidades recíprocas as conduziriam a um

dos conflitos mais longos e mais sangrentos de toda a

história da Grécia – a Guerra do Peloponeso. Tucídides –

testemunha ocular do conflito – afirma que:

A guerra do Peloponeso estendeu-se por longo

tempo, e no seu curso a Hélade sofreu desastres como

jamais houvera num lapso de tempo comparável.

Nunca tantas cidades foram capturadas e devastadas,

algumas pelos bárbaros, outras pelos próprios

helenos combatendo uns contra os outros, enquanto

algumas, após a captura, sofreram uma mudança

total de habitantes. Nunca tanta gente foi exilada ou

massacrada, quer no curso da própria guerra, quer em decorrência de dissensões civis8.

De fato, foram 27 anos de guerra, de 431 a 404 a.C.

Durante o conflito, as cidades-Estado se polarizaram na

Liga de Delos, liderada por Atenas, e na Liga do

Peloponeso, liderada por Esparta, tendo como principais

aliados Corinto e Mégara.

8 Ibidem, I, 23, p. 28 et seq.

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Enquanto Atenas detinha a hegemonia marítima,

Esparta detinha o domínio terrestre. Já nos primeiros anos

da Guerra, Atenas sofre um duplo golpe: a peste que arrasou

sua população e a morte de Péricles. Em 421, Atenas e

Esparta assinaram a Paz de Nícias e chegaram, até mesmo, a

celebrar uma aliança: atenienses e espartanos seriam aliados

por cinquenta anos9. Porém, nem todos os aliados de Esparta

ficaram satisfeitos; a paz não poderia ser duradoura.

Neste ínterim, o fantasma persa levantava-se

novamente no Oriente. Por terra, Esparta era imbatível; a

vitória ateniense seria alcançada apenas com o controle

absoluto do mar. Porém, o poderio de Siracusa, na Sicília,

era obstáculo para a concretização dos objetivos atenienses.

Assim, de 415 a 413 a.C., Atenas empreendeu a

campanha da Sicília sob o comando dos estrategos Nícias,

Lâmaco e Alcibíades – autor e líder da expedição, pupilo de

Péricles e discípulo de Sócrates. Os três estrategos se

desentenderam. Alcibíades, acusado de sacrilégio, foi

chamado a Atenas para justificar-se, entretanto foge e, ao

tomar conhecimento de sua condenação, alia-se aos

espartanos e trai Atenas. Siracusa pede auxílio à Esparta e

Atenas sofre a maior derrota de sua História – perderam

toda a frota, os mortos não foram sepultados e os feridos

foram abandonados. Vejamos o relato de Tucídides:

Aquela era, com efeito, a maior reviravolta jamais

ocorrida com uma expedição helênica, pois ela, que

viera para escravizar outros povos, voltava com o

temor de ter seus componentes reduzidos à

escravidão, e em vez de preces e hinos, ao som dos

9 Cf. TUCÍDIDES. Op. cit., V, 22 – 24, p. 253 et seq.

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quais havia partido na vinda, estava agora

regressando sob imprecações inteiramente diferentes;

finalmente, seus homens iam como soldados de

infantaria em vez de marinheiros, e dependendo de hoplitas em vez de contar com uma frota10.

A derrota ateniense foi completa. Grande parte do

contingente foi exterminada e os sobreviventes

escravizados. Até mesmo Nícias foi executado. Não

bastasse a derrota na Sicília, os espartanos ainda invadiram

a Ática e se fortificaram na Decélia, cerca de vinte

quilômetros de Atenas. A situação ateniense se agravaria

ainda mais com a aliança dos espartanos com os persas.

Entretanto, Alcibíades afasta-se dos espartanos e, mesmo no

exílio, acena para a possibilidade de uma aliança entre

atenienses e persas, desde que a democracia fosse abolida.

Após o desastre siciliano, a oligarquia ateniense –

desejosa pelo fim da guerra – assume o poder, em 411 a.C.,

e suprime as antigas magistraturas, estabelecendo o

Conselho dos Quatrocentos11. No entanto, o partido

democrata restaurou a democracia em 407 a.C. e adotou

como lema uma luta até o fim12. As negociações com os

persas haviam fracassado. Alcibíades é reintegrado, assume

10 Ibidem, VII, 75, p. 377. 11 A tomada do poder pelos oligarcas, em 411, ao menos no que diz

respeito à crueldade, parece antecipar o governo dos Trinta Tiranos de

404 a 403. Tucídides fala do assassinato de um certo Androcles – líder

popular e exímio defensor do exílio de Alcibíades – e de várias outras

pessoas que lhes faziam oposição e que pareciam-lhes inconvenientes.

Verdadeiramente, com o relato de Tucídides salta a nossos olhos uma

cega e estúpida chacina comandada pelos oligarcas. Cf., TUCÍDIDES.

Op. cit., VIII, 65, 70 e 74. 12 Cf. ROSTOVTZEFF, M. Op. cit., p. 170.

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o comando das tropas atenienses em Cízico e tem seu

retorno garantido a Atenas, onde é aclamado como general

chefe. Contudo, ao ser responsabilizado e condenado pelo

fracasso ateniense em Nócio, nas proximidades de Éfeso,

foge para a Ásia Menor de onde passou a observar o

desenrolar da guerra.

Os espartanos, sob o comando do general Lisandro,

aliaram-se novamente aos persas que, sob o comando de

Ciro – o Jovem – passaram a subsidiar a frota espartana.

Atenas ainda infligiria uma última derrota a sua rival na

batalha naval em Arginusas, no Helesponto, no ano de 406

a.C. Jean-Joël Duhot assim apresenta o episódio e seus

desdobramentos:

Atenas tinha reunido suas últimas forças, chegando a

oferecer a liberdade e a cidadania aos escravos para

mobilizá-los. O sobressalto teve êxito, mas a

tempestade se levanta logo depois da batalha e

impede os vencedores de socorrer os náufragos dos

25 navios gregos perdidos. Dos oito estrategos em

causa, dois preferem pôr-se ao abrigo e não

regressam. Os seis outros encontram-se acusados. O

processo se desenrola em um lamentável apelo à

emoção popular, associado a uma manipulação

processual que termina com a condenação à morte

dos estrategos, aos quais Atenas devia sua salvação –

entre eles o último filho sobrevivente de Péricles com

Aspásia (os dois outros tinham morrido de peste)13.

Por ocasião do julgamento, Sócrates tinha assento na

Assembleia, tentou reconduzir à legalidade e à razão a

13 DUHOT, J.-J. Op. cit., p. 54 et seq.

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multidão ensandecida, mas seus esforços de nada

adiantaram. A democracia ateniense deixava transparecer

cada vez mais sua fragilidade. Atenas vivia um período de

descontrole e desequilíbrio emocional. Sócrates estava

decepcionado com a democracia, mas “talvez a experiência

tenha sido mais traumatizante e decisiva para Platão, na

época com 22 anos”14. O restante da frota ateniense foi

exterminada por Lisandro em 405 a.C., na batalha de Argos-

Pótamos. No ano seguinte, ele sitiou o Pireu com uma

poderosa esquadra e o exército peloponésio acampou diante

dos muros de Atenas.

A fome e as divergências políticas levaram Atenas à

rendição, obrigando-a a aceitar os termos de paz: as

muralhas da cidade e do Pireu foram destruídas; a frota, com

exceção de doze navios, também foi destruída; as

possessões foram abandonadas; os exilados políticos

receberam permissão para retornar; e Atenas foi forçada a

unir-se à liga lacedemônia, numa aliança defensiva e

ofensiva com Esparta sob a hegemonia da mesma. Em lugar

do governo democrático, Lisandro instituiu o governo

oligárquico dos Trinta Tiranos com total autoridade sobre a

vida dos cidadãos.

Os oligarcas repetiram o que já haviam feito em 411.

Sem demora, aplicaram-se a eliminar seus inimigos. Agiam

com brutalidade e condenavam à morte sem julgamento

aqueles que lhes faziam oposição. Quanto ao número

daqueles que foram assassinados, as fontes são divergentes e

os números são impressionantes: em oito meses de governo,

14 DUHOT, J.-J. Op. cit., p. 55.

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os Trinta teriam executado de 1.500 a 2.500 atenienses15. Os

Trinta foram derrubados por Trasíbulo, o restaurador da

democracia ateniense.

Com a queda de Atenas, Esparta passou a exercer a

hegemonia na Grécia. Os regimes oligárquicos

multiplicaram-se. Beneficiária da Paz do Rei – de 386 –

Esparta chegou ao mais alto grau de seu poder e governou o

Peloponeso com pulso de ferro. Todavia, Atenas

recuperava-se gradualmente – reconstruiu as muralhas,

organizou um novo exército e uma nova esquadra,

recuperando o domínio do mar.

Contudo, são os tebanos e não os atenienses que

puseram fim à hegemonia espartana em 371 a.C. com a

batalha de Leuctras. As guerras frequentes esgotaram e

enfraqueceram os gregos e, em 360 a.C., nenhuma cidade

estava em condições suficientes para se impor às demais.

Filipe da Macedônia, com sua personalidade forte,

apoiado por um poderoso exército e consciente da profunda

desunião reinante entre os helenos, inicia o processo de

conquista da Grécia que culminaria em, 338 a.C., na batalha

de Queronéia, com a vitória do exército macedônico –

comandado pelo jovem Alexandre – sobre os atenienses e

tebanos. O domínio macedônio sobre a Grécia marca o fim

do período Clássico e o início do período Helenístico.

15 Cf. FERREIRA, J. R. Atenas, uma democracia? In: Línguas e

Literaturas. Revista da Faculdade de Letras do Porto. Porto: FLUP,

1989, p. 183.

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2.2 PLATÃO

Platão nasceu em Atenas no ano 428/27 a.C. Seus

pais, Ariston e Perictione, também chamada Potone,

pertenciam a uma tradicional família aristocrata ateniense16.

O pai era descendente do rei Codro, fundador de Atenas, já

a descendência da mãe remontava a Sólon, o grande

legislador. Platão teve ainda dois irmãos, Adimanto e

Glauco, uma irmã chamada Potone e também um meio

irmão por parte de mãe conhecido pelo nome de Antifonte17.

A tradição familiar certamente exerceu forte

influência na vida de Platão, principalmente no que se refere

às questões políticas. De fato, na Carta VII, encontramos

uma declaração pontual a esse respeito: “quando moço,

aconteceu comigo o que se dá com todos: firmei o

16 Quanto à filiação de Platão, ver, sobretudo, o doxógrafo do início

do século III, LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos

Ilustres. 2. ed. Brasília: UnB, 1987, III, 1 et seq. p. 85. Conferir

também REALE, G; ANTÍSERI, D. Op. cit., p. 132; ABBAGNANO,

N. História da Filosofia. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p.

93; CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia. 2. ed. São Paulo:

Cia. das Letras, 2007, p. 212; e a introdução de PESSANHA, J. A. M.

ao volume PLATÃO. Diálogos. O Banquete, Fédon, Sofista, Político.

2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. IX. 17 Cf. PLATÃO. Parmênides. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,

1974, 126 B. Ao que tudo indica, Antifonte é filho do segundo

casamento de Perictione com Pirilampo.

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propósito, tão logo me tornasse independente, de ingressar

na política”18.

Seu verdadeiro nome era Aristocles, Platão era apenas

um apelido. Diógenes Laércio apresenta duas versões para a

origem da alcunha:

[Segundo o doxógrafo, nosso autor] praticou

ginástica com Aríston, o lutador argivo, de quem

recebeu o nome de Platão por causa de sua

constituição robusta (originalmente seu nome era

Aristoclés, em homenagem ao avô, como diz

Alêxandro na Sucessão dos Filósofos). Outros

autores afirmam que ele recebeu o nome de Platão

por causa da amplitude de seu estilo, ou em decorrência de sua ampla fronte, como diz Neantes19.

Quanto a essas afirmações, Giovanni Reale lembra

que, em grego, πλατος significa amplidão, largura, extensão,

e que desse termo deriva o nome Platão.

Sobre sua educação, pouco se sabe, entretanto, como

sua família pertencia à aristocracia ateniense, acredita-se

que tenha recebido a educação clássica ginástico-musical:

“o ginásio para a formação do guerreiro belo; a música e os

poetas, para a formação do guerreiro bom”20.

18 PLATÃO. Carta VII. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975,

324 B. 19 LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 4. p. 85 et seq. 20 CHAUÍ, M. Op. cit., p. 212.

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Segundo testemunho de Aristóteles21, Platão ainda

jovem teria sido discípulo do heraclitiano Crátilo. O

encontro com Sócrates teria acontecido posteriormente:

Platão teria aproximadamente 20 anos, e Sócrates, cerca de

60 anos. Platão tornou-se seu discípulo mais importante,

frequentando-o por 8 anos, ou seja, até a morte de Sócrates,

em 399 a.C. As motivações que o levaram a frequentar o

círculo socrático, ao menos de início, não eram diferentes

daquelas da maioria dos jovens de seu tempo: não via a

filosofia como tendo um fim em si mesma, mas como um

meio para melhor se preparar para o exercício da vida

política.

Foi durante o governo dos Trinta Tiranos (404 – 403)

que Platão teve seu primeiro contato direto com a política.

Dois deles eram seus parentes: Cármides era irmão de

Perictione, mãe de Platão; e Crítias era tio de Perictione.

Com efeito, a grande chacina promovida pelos Trinta

impressionou muito Platão. A decepção foi tão grande a

ponto de ele declarar na Carta VII:

Imaginava que eles governariam a cidade fazendo-a

passar das vias da injustiça para as da justiça, o que

me despertou a curiosidade de ver como se

comportariam em semelhante conjuntura. Ora, o que

eu vi foi que em pouquíssimo tempo esses homens

deixaram parecida a antiga ordem de coisas com a

verdadeira idade de ouro. Como exemplo de suas

arbitrariedades, bastará notar o que fizeram com o

meu velho amigo Sócrates, que eu não vacilo em

proclamar o varão mais justo do seu tempo;

21 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2005, A, 987 a,

p. 35.

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incumbiram-no de, com outros, trazer a força um

cidadão para ser executado, o que era meio de obrigá-los a apoiar sua política22.

Platão refere-se aqui à tentativa frustrada dos Trinta

em envolver Sócrates na condenação de Leon de Salamina,

cujos bens tinham o interesse de confiscar. Com a queda dos

Trinta, ele acabou se envolvendo politicamente na

restauração da democracia em Atenas, porém, com menos

entusiasmo23.

A grande decepção de Platão com a política ainda

estava por vir: o julgamento e a condenação de Sócrates à

morte. Tal fato o fez refletir sobre as condições da vida

política e sobre a constituição do Estado. Finalmente,

chegou a seguinte conclusão: “não cessarão os males para o

gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos

verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem

seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes

das cidades”24.

Após a morte de Sócrates, “Platão retirou-se para

Mégara com outros discípulos de Sócrates, indo juntar-se a

Euclides”25 que havia fundado uma escola, vinculando o

socratismo e o eleatismo. Segundo consta, sua permanência

em Mégara não foi longa: cerca de três anos. Diógenes

22 Carta VII, 324 D – 325 A. 23 Ibidem, 325 B. 24 Carta VII, 326 B. 25 LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 6, p. 86. REALE, G, História da

Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994, p. 8, interpreta este fato

como a maneira encontrada por Platão de evitar possíveis

perseguições, pois era de se esperar que, com a morte de Sócrates,

seus discípulos também fossem perseguidos.

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Laércio apresenta o restante do itinerário percorrido por

Platão, afirmando que:

[De Mégara, ele] prosseguiu para Cirene em visita

ao matemático Teôdoros, e de lá foi para a Itália a

fim de encontrar-se com os pitagóricos Filôlaos e

Êuritos; da Itália viajou para o Egito em visita aos

profetas, segundo dizem, acompanhado por Eurípides

[...]. Platão pretendia ainda encontrar-se com os

Magos, porém foi impedido de fazê-lo pela guerra da

Ásia26.

No início da Carta VII27 Platão fornece uma

informação valiosa: “por ocasião de minha primeira viagem

a Siracusa, eu poderia ter quarenta anos”. Esta viagem teria

acontecido por volta de 388 a.C. e Platão teria ido a Siracusa

- na Sicília - a convite do tirano Dionísio I, cunhado de

Díon. Todavia, seus autotestemunhos confirmam apenas as

viagens à Itália28.

26 Ibidem, III, 6 et seq., p. 86. 27 Carta VII, 234 A. 28 Quanto às viagens a Cirene e ao Egito, a Carta VII não fala

absolutamente nada. REALE, G. Op. cit., p. 8, diz apenas que, delas,

“não temos confirmação”. Encontramos uma postura mais

conciliadora em REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. 2.

ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 133, eles afirmam que, “se esteve

também no Egito e em Cirene, como se conta, tais viagens devem ter

acontecido antes de 388 a.C.”. ABBAGNANO, N. Op. cit,. p. 94,

admite que elas “não são, contudo, inverossímeis, e a viagem ao Egito

pode ser considerada provável devido às inúmeras referências

freqüentes, nos diálogos, à cultura egípcia”. DUMONT, J.-P.

Elementos de História da Filosofia Antiga. Brasília: UnB, 2004, p.

264, também afirma que ele foi ao Egito e, “a exemplo dos gregos de

sua época, Platão ficou fascinado pelo Egito”. CHAUÍ, M. Op. cit., p.

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Platão acreditava ter encontrado a oportunidade de

colocar em prática seu ideário político do rei-filósofo.

Contudo, não foi bem isso que aconteceu. Em Siracusa,

estabeleceu fortes laços de amizade com Díon, mas logo se

desentendeu com Dionísio I. Em represália, foi vendido

como escravo no mercado de Egina, mas Anicérides de

Cirene o resgatou e o mandou para Atenas.

Ao retornar a Atenas, Platão fundou a Academia, num

ginásio situado no jardim dedicado ao herói Academos. “A

Academia foi o primeiro instituto de investigação filosófica

do Ocidente”29. Ela formou os mais importantes

matemáticos, astrônomos e futuros políticos da Grécia

Clássica e filósofos, como Espeusipo – sobrinho e sucessor

de Platão na direção da Academia; Xenócrates, sucessor de

Espeusipo na direção da Academia; Heráclides do Ponto e,

sobretudo, Aristóteles – “o maior discípulo do Platão”30.

A segunda viagem de Platão à Sicília data de 367 a.C.

Dionísio I falecera e seu filho, Dionísio II, o sucedeu.

Persuadido por Díon, acreditou ter chegado a oportunidade

de pôr em prática seus projetos de legislação e de governo31.

214, omite a passagem de Platão por Mégara e apresenta a viagem a

Cirene e ao Egito, sem ao menos discutir a questão de sua veracidade

ou não. PESSANHA, J. A. M. Op. cit., p. XI, afirma que, da ida de

Platão ao Egito, “quase nada se sabe com segurança. Certo é que, em

Cirene, inteirou-se das pesquisas matemáticas desenvolvidas por

Teodoro”. Segundo Luc Brisson, é impossível saber se Platão visitou

o Egito. Seu texto: O Egito de Platão é muito esclarecedor quanto a

essa questão: BRISSON, L. Leituras de Platão. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 2003. 29 CHAUÍ, M. Op. cit., p. 226. 30 LAÊRTIOS, D. Op. cit., V, 1, p. 129. 31 Cf. Carta VII, 328 C.

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Como estava enganado: em poucos meses Díon foi exilado e

ele foi mantido quase como prisioneiro! Vejamos o relato de

Platão acerca da segunda viagem a Siracusa:

Ao chegar – precisarei resumir – só encontrei

discórdias na corte de Dionísio, e Díon caluniado

junto do tirano. Defendi-o mais que pude, mas podia

muito pouco; porém, passados cerca de quatro meses

Dionísio acusou Díon de conspirar contra a tirania,

meteu-o numa pequena embarcação e o baniu

ignominiosamente. Depois desse fato, todos os

amigos de Díon ficamos receosos de algum de nós ser

acusado e castigado como participante das

maquinações de Díon. A meu respeito, correu o boato

de que Dionísio me mandara matar, como principal

responsável por tudo o que se dera. Porém ele,

vendo-nos naquele estado e receando que nosso medo

tivesse conseqüências graves, tratou-nos com

bondade; a mim, particularmente, encorajou-me,

concitando-me a ter confiança nele e, de toda

maneira, a não partir, pois minha fuga não lhe

ensejaria nada bom, o que se daria se eu ficasse. [...]

Como sua intenção fosse impedir minha partida, fez-

me conduzir e alojar na Acrópole, de onde nenhum

capitão de barco me teria retirado, a não ser com a

apresentação de uma ordem expressa de Dionísio,

para não formularmos a hipótese de que o fizesse contra sua vontade32.

Como a Sicília estava em guerra, Platão recebeu

autorização para retornar a Atenas, mas Dionísio II disse

que o chamaria de volta assim que seu poder estivesse um 32 Ibidem, 329 C – E.

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pouco mais consolidado. Platão estava desiludido.

Chegando a Atenas, reencontrou Díon que passou a

frequentar a Academia.

Seis anos depois, ou seja, em 361 a.C., Platão

empreendeu uma terceira viagem à Sicília. Díon o

convencera a retornar a Siracusa na esperança de que

também lhe fosse permitido retornar à pátria. Ademais, da

Sicília, “chegavam notícias insistentes de que Dionísio

passara a revelar gosto extraordinário para a filosofia”33.

A terceira viagem de Platão a Siracusa proporcionou-

lhe mais decepções. O resultado foi desastroso. Dionísio

mostrou-se intransigente em tudo. Platão não conseguiu

exercer nenhuma influência em relação a ele. Dionísio não

resistiu às provas do seu ensino e, mais uma vez, manteve

Platão quase como um prisioneiro.

O relacionamento entre o tirano e o filósofo estava

cada dia mais conflituoso. Contudo, Dionísio procurava

manter as aparências a todo custo, a ponto de toda a Sicília

pensar que eram grandes amigos34. De fato, Platão

conseguiu livrar-se dele somente com a ajuda de Arquitas e

outros amigos de Tarento que, sob o pretexto do envio de

uma embaixada oficial, intercedeu por ele junto ao tirano,

que concordou imediatamente com sua partida35.

Platão retornou a Atenas em 360 a.C., permanecendo

na direção da Academia até o ano de sua morte, em 347

33 Carta VII, 338 B. 34 Cf. Carta VII, 348 A. 35 Ibidem, 350 B.

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41

a.C., com cerca de 80 anos de idade. Nicola Abbagnano36,

referindo-se a um papiro descoberto recentemente em

Herculano, apresenta-nos a descrição das últimas horas do

filósofo:

A última visita que recebeu foi a de um caldeu. Uma

mulher trácia tocava e errou o compasso: Platão, já

com febre, fez ao hospede um sinal com o dedo. O

caldeu observou cortesmente que não havia como os

Gregos para perceber de medicina e de ritmo. Na

noite seguinte a febre agravou-se e, talvez nessa mesma noite, Platão morreu37.

Segundo Diógenes Laércio, Platão foi sepultado na

Academia e todos os seus discípulos estavam presentes no

cortejo fúnebre38. Will Durant afirma que “toda Atenas o

acompanhou à sepultura”39.

A Atenas que Platão viu ao nascer não era a mesma

que ele deixou ao morrer: Platão nasceu na Atenas do século

de Péricles, no auge da democracia, do florescimento da

arquitetura, das artes, das ciências e da filosofia – de

Sócrates.

36 ABBAGNANO, N. Op. cit., p. 95. 37 CHAUÍ, M. Op. cit., p. 219, ao tratar das circunstâncias da morte de

Platão, também faz referência ao papiro descoberto em Herculano. Os

outros autores a que tivemos acesso apenas indicam o ano de sua

morte. LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 2, p. 85, citando Hêrmipos, diz

que Platão morreu enquanto participava de um banquete nupcial. 38 Cf. LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 41, p. 95. 39 DURANT, W. A História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural,

1996, p. 68.

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Com efeito, Platão nasceu no ano seguinte ao da

morte de Péricles. Sua juventude e maturidade coincidem

com os anos da Guerra do Peloponeso, com as cidades

dividindo-se em duas grandes frentes: a Liga de Delos e a

Liga do Peloponeso. Enfim, a Atenas em que ele nasceu, viu

surgir em poucas décadas os cânones estéticos, intelectuais e

políticos que ainda hoje influenciam nossa civilização e que

o fundador da Academia, com sua obra, ajudou a

imortalizar.

A Atenas que Platão deixou ao morrer estava exausta

e decadente. Expressão de uma Grécia mergulhada em

muitos conflitos e numa desunião tão grande que, em 338

a.C., na batalha de Queronéia, seria conquistada por Filipe

da Macedônia.

2.2.1 A Questão Platônica

Três grandes problemas constituem a chamada

Questão Platônica. O primeiro versa sobre a autenticidade

dos escritos de Platão, o segundo refere-se à cronologia

desses escritos e o terceiro trata das questões referentes às

Doutrinas não-escritas. Vejamos exame sintético dessas

questões.

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43

2.2.1.1 A autenticidade

Os escritos de Platão chegaram até nós em sua

totalidade – trinta e seis trabalhos ao todo: uma Apologia de

Sócrates, trinta e quatro diálogos e treze cartas. A tradição

conservou a ordem adotada e difundida pelo gramático

Trásilo40, que dividiu os trinta e seis escritos em nove

tetralogias. O critério adotado por ele foi o de afinidade

temática e não o cronológico. Eis as nove tetralogias41:

I Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e

Fédon;

II Crátilo, Teeteto, Sofista e Político;

III Parmênides, Filebo, Banquete e Fédro;

IV Alcibíades I, Alcibíades II, Hiparco e

Amantes;

V Taeges, Cármides, Laques e Lisis;

VI Eutidemo, Protágoras, Górgias e

Mênon;

VII Hípias Menor, Hípias Maior; Íon e

Menexeno;

VIII Clitofon, A República, Timeu e Crítias;

IX Mino, As Leis, Epínomes e Cartas.

Entre os primeiros editores da Antiguidade que se

colocaram o problema da autenticidade desses escritos,

40 Cf. LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 56 et seq., p. 98. Trásilo foi

contemporâneo do imperador Tibério, século I d.C. 41 Cf. LAÊRTIOS, D. Op. cit., bidem, III, 58-61, p. 98 et seq.

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encontramos o próprio Trásilo e também Aristófanes de

Bizâncio42, século III. A partir do século XIX, a crítica

textual dos escritos platônicos atingiu seu mais alto grau de

intensidade, chegando a duvidar da autenticidade de quase

todos os diálogos.

Esse quadro começou a ser revertido pelo historiador

Eduard Meyer que, levando em conta o grande valor

histórico das Cartas, defendia sua autenticidade. Em pouco

tempo, seu exemplo foi seguido pelos filólogos.

Wilamowitz, em sua biografia de Platão, confirmou a

autenticidade das cartas sexta, sétima e oitava43. A atitude

de Wilamowitz influenciou muitos outros filólogos. O

próprio Edward Zeller que, “a princípio, considerava

apócrifa a obra das Leis, por achá-la muito divergente das

obras fundamentais do autor, já se vê obrigado na sua

Philosophei der Gruiechen a reconhecer-lhe a

autenticidade”44.

Grosso modo, são cinco os critérios adotados para se

julgar a autenticidade dos escritos platônicos45:

42 Ibidem, III, 61 et seq., p. 99. 43 Cf. JAEGER, W. Op. cit., p. 587. 44 Ibidem, p. 602. 45 Dentre os vários autores que consultamos, apenas ABBAGNANO,

N. Op. cit., p. 96 et seq., apresenta os cinco critérios adotados para se

julgar a autenticidade dos escritos platônicos. A partir de sua

aplicação, declara como apócrifos o Alcibíades II, o Hiparco, o

Amantes, o Teages e o Mino, mas ressalta que ainda restam dúvidas

quanto ao Alcibíades I, o Hípias Maior, o Íon, o Clitofonte e o

Epínomis. REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 134, abordam

rapidamente a questão da autenticidade. MARCONDES, D. Iniciação

à História da Filosofia. 11. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 55,

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1 a tradição: se os autores antigos julgaram o escrito

autentico ou não;

2 os testemunhos antigos: as críticas, comentários e

citações das obras de Platão pelos autores antigos.

3 o conteúdo doutrinal: refere-se à presença de

elementos doutrinais que pertencem a escolas

posteriores e também a contradições grosseiras;

4 o valor artístico: ressalta o valor artístico do

diálogo de Platão que é, ao mesmo tempo, obra de

pensamento e de poesia;

5 a forma linguística: o uso ou emprego de

expressões particulares, palavras etc., pertencentes

apresenta os “diálogos de autenticidade discutível” e afirma que está

baseando-se no estudo clássico de D. Ross, Plato`s Theors of Ideas,

Oxford: Clarendon Press, 1951 e em Karl Bormann, Platon, Verlag

Karl Alber, Freiburg/Munique, 1973 – entretanto, não discute a

questão. Entre os tais “diálogos de autenticidade discutível”,

apresenta: Alcibíades I e II, Hiparco, Anterestai, Teages, Clitofon,

Mino, O Filósofo e as Cartas – exceto a III a VII e a VIII. DUMONT,

J.-P. Op. cit., p. 266, aborda a questão, apresentando as conclusões de

Frederico Ast – que negou a autenticidade da Apologia, do Críton, do

Hípias Maior e do Hípias Menor, do Íon, do Menexeno do Menôn e,

até mesmo, das Leis. Dumont afirma, ainda, que Socher, um discípulo

de Ast, negou a autenticidade do Parmênides, do Sofista e do Crítias.

Por fim, seguindo Leonard Brandowood, editor do Word-Index to

Plato – famoso pelo uso do computador na execução de uma análise

literária e linguística dos escritos de Platão – Dumont apresenta os

seguintes escritos como apócrifos: o Alcibíades I e II, o Axíoco, o

Clitofon, as Definições, o Demódoco, a Erixia, o Hiparco, o Da

justiça, o Mino, Os Rivais, o Sísifo, o Taeges e o Da Virtude. CHAUÍ,

M. Op. cit., p. 227, apresenta quatro dos principais critérios para se

estabelecer a autenticidade dos escritos: a tradição, o testemunho, a

doutrina e o estilo. Quanto aos diálogos apócrifos, apenas fala de sua

existência, mas não chega a identificá-los.

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ou não à época, que compuseram os diálogos

platônicos.

Contudo, tais critérios não podem ser aplicados

separadamente, pelo contrário, eles devem se controlar

mutuamente, senão pode-se cair em graves equívocos. O

fato é que, frente aos extremismos hipercríticos da crítica

moderna, o problema da autenticidade aos poucos foi

perdendo a importância e, como declaram Giovanni Reale e

Dario Antiseri, atualmente “a tendência é considerar

autênticos quase todos os diálogos ou até mesmo todos”46.

2.2.1.2 A cronologia

As questões referentes à cronologia dos diálogos

platônicos não expressam apenas uma questão de erudição,

mas referem-se à questão da evolução do pensamento

platônico. Neste caso, contrariamente ao problema da

autenticidade, as conclusões oferecem ao menos uma

resposta parcial para o problema.

Entre os críticos, há aqueles que afirmam ser possível

estabelecer determinados períodos, mas não a sucessão

lógica e cronológica dos diálogos desses períodos47. A

adoção do critério estilométrico está, em parte, na gênese do

estabelecimento das quatro fases ou períodos de divisão dos

diálogos platônicos. O escrito tomado como ponto de

46 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 134. 47 Cf. ABBAGNANO, N. Op. cit., p. 99.

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partida para o estudo científico das características estilísticas

das diversas obras de Platão é As Leis – considerado como o

último escrito do filósofo. A partir do seu estudo, chegou-se

ao seguinte quadro48:

a) escritos de juventude: Apologia de Sócrates,

Cármides, Críton, Eutifron, Íon, Laquês, Lísis;

b) período de transição: Crátilo, Eutidemos,

Górgias, Hípias Menor, Hípias Maior, Menexeno,

Mênon, e Protágoras;

c) escritos de maturidade: Fédon, Banquete, A

República e Fédro;

d) período final: Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e As Leis.

Desse modo, os escritos de juventude seriam

imediatamente posteriores à morte de Sócrates e, portanto,

em suas discussões, predomina a temática socrática. Os

escritos de transição marcam o período de amadurecimento

da filosofia platônica; estão situados entre o período

imediatamente anterior à primeira viagem a Sicília e

imediatamente posterior à segunda viagem. Já os escritos de

maturidade pertencem à fase central da produção platônica:

são os chamados diálogos metafísicos. Por fim, os escritos

da fase final representam os últimos escritos de Platão –

dois incompletos: Timeu e Crítias – são os chamados

diálogos dialéticos.

48 Quanto aos escritos de maturidade e da fase final, REALE, G.;

ANTISERI, D. Op. cit., p 134, afirmam que esta é a sua “ordem”

cronológica. Quanto aos escritos de juventude e de transição, somos

forçados a nos contentar com a ordem alfabética.

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2.2.1.3 As Doutrinas não-escritas

O debate acerca das Doutrinas não-escritas49

constitui o terceiro problema da questão platônica50. Se,

anteriormente, tal questão foi ignorada e considerada sem

importância, hoje, as perspectivas já não são as mesmas e

“muitos estudiosos consideram que da solução desse

problema depende a compreensão correta do pensamento

platônico em geral e da própria história do platonismo na

antiguidade”51.

É evidente que, assumindo a existência das Doutrinas

não-escritas, estamos declarando que os diálogos platônicos

não encerram em si mesmos a totalidade da filosofia de

Platão. Por sua vez, entramos em consonância com a crítica

à escrita contida nas páginas finais do Fédro, com os

autotestemunhos da Carta VII, e também, com os

testemunhos de seus discípulos e da tradição indireta52.

49 αγραφα δογματα (agrapha dogmata), ágrafos – ágrafo: não-escrito;

dogmatos – dogmato: doutrina. 50 É no mínimo intrigante o caso de alguns autores admitirem a

existência das Doutrinas não-escritas, mas não discuti-las em suas

obras. É o que constatamos em ABBAGNANO, N. Op. cit., em

CHAUÍ, M. Op. cit., e em MARCONDES, D. Op. cit., que nem ao

menos acenam para a questão. 51 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 135. 52 SZLEZÁK, T. A. Ler Platão. São Paulo: Loyola, 2005, apresenta

uma série de elementos característicos dos diálogos platônicos, cujo

objetivo é proporcionar uma interpretação dos escritos filosóficos de

Platão que resista à sua crítica da escrita elaborada no Fédro.

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Transcrevemos abaixo o mito53 do deus egípcio

Thoth, introduzido por Platão em sua crítica à escrita:

Sócrates – Ouvi dizer que havia nos arredores de

Náucratis, no Egito, uma dessas velhas divindades a

quem os naturais da terra consagravam o pássaro

denominado íbis. Esse demônio era conhecido com o

nome de Thoth. Foi ele o primeiro a descobrir os

números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o

jogo do gamão e dos dados, e também os caracteres

da escrita. Nesse tempo, Thamus reinava em todo o

Egito, com residência na grande cidade da região

alta que os helenos denominavam Tebas Egípcia, e

davam à divindade o nome de Amon. Esse rei foi

procurado por Thoth, que lhe apresentou suas artes,

com a sugestão de serem ensinadas aos egípcios. O

rei perguntou para que serviam; e, conforme Thoth

as explicava, ele criticava ou elogiava. Dizem que

Thamus fez muitas observações a favor e contra cada

53 Em Platão, o mito não possui caráter pré-filosófico, mas sim pós-

filosófico. Ele é empregado como auxilio ao logos, pois quando a

razão chega aos limites extremos de suas possibilidades, o mito,

intuitivamente, através de suas imagens e alegorias, supera tais

limites. Desse modo, “ o mito busca clarificar o logos e o logos busca

complementação no mito” REALE, G.; ANTISERI, D. História da

Filosofia. Op. cit., p. 136. Segundo SZLEZÁK, T. A. Op. cit., p. 159,

em Platão, “o mito aparece como uma segunda via de acesso à

realidade, que certamente, quanto ao conteúdo, não pode ser

independente do logos mas oferece, em comparação com ele, um plus

que não pode ser substituído por nada”. Giovanni Reale nos lembra

ainda que para Platão, “falar por mitos [...] é um exprimir-se por

imagens, o que permanece válido em vários níveis, na medida em que

pensamos não só por conceitos, mas também por imagens” REALE,

G. História da Filosofia Antiga. Op. cit., p. 44.

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uma das artes, que fora longo enumerar. Porém,

quando chegou aos caracteres da escrita, aqui está,

majestade, lhe disse Thoth, uma disciplina capaz de

deixar os egípcios mais sábios e com melhor

memória. Está descoberto o remédio para o

esquecimento e a ignorância. Ele a falar, e o rei a

responder: Engenhosíssimo Thoth, uma coisa é

inventar as artes, e outra muito diferente, discorrer

sobre a utilidade ou desvantagem para quem delas

tiver de fazer uso. Tal é o seu caso, como pai da

escrita: dada a afeição que lhe dedicas, atribuis-lhe

ação exatamente oposta à que lhe é própria, pois é

bastante idônea para levar o esquecimento à alma de

quem aprende, pelo fato de não obrigá-lo ao

exercício da memória. Confiante na escrita, será por

meios externos, com a ajuda de caracteres estranhos,

não no seu próprio íntimo e graças a eles mesmos,

que passarão a despertar suas reminiscências. Não

descobristes o remédio para a memória, mas apenas

para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é

simples aparência do saber, não a própria realidade.

Depois de ouvirem um mundo de coisas, sem nada

terem aprendido, considerar-se-ão ultra-sábios,

quando, na grande maioria, não passam de

ignorantões, pseudo-sábios, simplesmente, não sábios de verdade54.

E agora o veredicto sobre os livros:

54 PLATÃO. Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 274 C

– 275 B. Alteramos os nomes da tradução de Carlos Alberto Numes

para adotarmos os nomes mais comuns: Teute = Thoth; Tamuz =

Thamus; Amão = Amon.

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Sócrates – [...] a escrita, Fédro, é muito perigosa e,

nesse, ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta

em verdade, apresenta seus produtos como vivos;

mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia

de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És

inclinado a pensar que conversas com seres

inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os

interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só

respondem de um único modo e sempre a mesma

coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita,

rolam daqui dali os discursos, sem o menor discrime,

tanto por entre os conhecedores da matéria como os

que nada tem que ver com o assunto de que tratam,

sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não.

E no caso de serem agredidos ou menoscabados

injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna,

pois por si mesmos são tão incapazes de se

defenderem como de socorrer alguém55.

E finalmente a confissão emblemática na Carta VII:

O que estou em condições de afirmar de quantos

escreveram e ainda virão a escrever com a pretensão

de conhecer as questões com que me ocupo, quer as

tenham ouvido de mim mesmo ou de outras pessoas,

que a descobrissem por esforço próprio, é que no

meu modo de pensar, eles não entendem nada de

nada de todas essas questões. De mim, pelo menos,

nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre

semelhante matéria. Não é possível encontrar a

expressão adequada para problemas dessa natureza,

como acontece com outros conhecimentos. Como 55 Fédro, 275 D – E.

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conseqüência de um comércio prolongado e de uma

existência dedicada à meditação de tais problemas é

que a verdade brota na alma como a luz nascida de

uma faísca instantânea, para depois crescer sozinha.

Melhor do que ninguém, tenho consciência de que

somente eu poderia expor minhas idéias, de viva voz

ou por escrito, como também sou eu quem mais viria

a sofrer, se a redação me saísse defeituosa56.

Diante dessas e de outras conclusões semelhantes

sobre o escrito, Platão está convicto de que é na oralidade

que a essência do filósofo manifesta-se e atua. Deste modo,

é à oralidade que ele confia o que tem de mais precioso:

Sócrates – Já nos detivemos bastante a conversar a

respeito da eloqüência. Agora procura Lísias e lhe

dize que nós dois descemos até o córrego das Ninfas

e seu santuário, onde ouvimos discursos que nos

incumbiram de comunicar a Lísias e a quem mais

compuser discursos, a Homero e a quantos

escreveram poesias simples ou musicadas, e

finalmente a Sólon e a todos os autores de discursos

políticos que, sob o nome de leis, redigiram seus

escritos, para comunicar-lhes, dizia, que se

ocuparam de tudo isso cientes do que seja a verdade,

e se forem capazes de sair em defesa de seus escritos,

quando chamados, e se, como oradores, com seus

argumentos deixarem o autor dos escritos em posição

secundária: um indivíduo nessas condições não

deverá ser designado por nenhum dos nomes

correntes entre nós, mas apenas pelo que se

56 Carta VII, 341 C – E.

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relaciona com o objeto a que ele se dedicou tão

desinteressadamente.

Fédro – Que denominação lhe dás?

Sócrates – O nome de sábio, Fédro, me parece

excessivo; só vai bem com referência a Deus;

o de amigo da sabedoria, ou outra

designação equivalente, sobre ser mais modesto, conviria melhor.

Fédro – E não seria fora de propósito.

Sócrates – Em compensação, quem nada pode

apresentar de mais precioso do que o que ele

mesmo rabiscou ou ajeitou de cima a baixo

com um trabalhão enorme, acrescentando

aqui, cortando acolá, poderás com toda a

justiça denominar poeta, ou fazedor de

discursos ou redator de leis.

Fédro – Sem dúvida57.

Ora, admitindo a existência das Doutrinas não-

escritas entramos em evidente oposição com o paradigma

romântico da exegese de Platão fundado e difundido por

Friedrich Schleiermacher58. Este paradigma atribuía aos

57 Fédro, 278 B – E. 58 Um estudo detalhado do paradigma schleiermacheriano e de seus

limites é encontrado na obra de REALE, G. Para uma nova

Interpretação de Platão. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 39 a 50.

SZLEZÁK, T. A. Ler Platão. Op. cit., apesar de apresentar uma série

de elementos que visam proporcionar uma interpretação dos escritos

de Platão que resista à sua crítica da escrita elaborada no Fédro não

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escritos platônicos uma indissociável síntese de forma e

conteúdo e afirmava que a compreensão dos diálogos

coincide com a totalidade da compreensão da filosofia de

Platão. Como tal, teriam um valor autônomo total e,

portanto, autárquico.

Frente a toda essa discussão, os estudiosos

introduziram o termo esotérico (do grego εσω – que quer

dizer dentro) para designar as Doutrinas não-escritas, isto é,

o ensinamento oral de Platão – aquele reservado somente

aos alunos no interior, dentro da Academia. Ao mesmo

tempo, com o termo exotérico (do grego εξω – que quer

dizer fora), passaram a designar o pensamento que Platão

confiou à escrita e, portanto, àqueles que também estavam

fora da Academia. Deste modo, passou-se a distinguir um

Platão esotérico de um exotérico.

Seguindo o estado atual da pesquisa59, também

adotamos como pano de fundo para leitura e interpretação

entra numa confrontação detalhada com o paradigma

schleiermacheriano. 59 A partir da nota de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Um novo

Platão?, o paradigma de leitura e interpretação de Platão que

propunha a existência das Doutrinas não-escritas ficou conhecido

como o paradigma da Escola de Tübingen-Milão. A composição

justifica-se, pois, com a publicação de REALE, G. Para uma nova

Interpretação de Platão. Op. cit. Ele - nas palavras do próprio Lima

Vaz -“propõe-se um alvo grandioso e extremamente ambicioso: levar

a cabo, através de rigorosa análise textual dos Diálogos, e situando-se

na perspectiva de uma hermenêutica fundamental do espírito grego, a

demonstração definitiva da tese formulada, desde fins da década de

50, pela chamada ‘escola de Tübingen’ (cujos representantes

principais são H.-J. Krämer e Konrad Gaiser) e segundo a qual é

necessário pôr as chamadas ‘doutrinas não-escritas’ (ágrapha

dógmata) no centro da exegese filosófica da obra escrita de Platão

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dos escritos de Platão a existência das Doutrinas não-

escritas conservadas pela tradição indireta60.

2.3 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA

ARCHÉ

A filosofia nasce querendo explicar a totalidade do

real, servindo-se de um discurso fundado em bases

puramente racionais. “Uma convicção basilar, que serve de

eixo para toda a filosofia anterior à de Platão, consiste na

convicção segundo a qual explicar significa unificar”61.

Deste modo, a busca pela arché, ou seja, pelo princípio

originário, único, fundamental e causador de todas as coisas,

constitui-se grande esforço de unificar a multiplicidade das

coisas, reduzindo-as a um princípio ou, mesmo, a alguns

princípios.

para que, desses textos, possa emergir em toda a sua grandeza a

primeira e mais audaz construção metafísica da filosofia ocidental” In:

Síntese Nova Fase. Belo Horizonte: Centro de Estudos Superiores –

SJ, 1990, n. 50, p. 101. 60 O leitor que desejar acercar-se de uma bibliografia que nega a

validade do novo paradigma hermenêutico encontrará ao menos duas

obras traduzidas nos últimos anos para o português: BRISSON, L.

Leituras de Platão. Op. cit., que se recusa a admitir a hipótese da

existência de uma doutrina platônica distinta daquela que se encontra

nos textos atribuídos a Platão; e TRABATTONI, F. Oralidade e

Escrita em Platão. São Paulo: Discurso Editorial; Ilhéus: Editus,

2003. 61 REALE, G. Para uma nova interpretação de Platão.Op. cit., p. 157.

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Os filósofos pré-socráticos62 foram os primeiros a

afirmar a existência da arché. Giovanni Reale e Dario

Antiseri definem esse princípio originário como “aquilo do

qual provêm, aquilo no qual se concluem e aquilo pelo qual

existem e subsistem todas as coisas”63. Não se sabe ao certo

quem por primeiro passou a designar esse princípio com o

termo physis, ou seja, natureza. O certo é que “a palavra

grega physis, em sua origem, significa ao mesmo tempo o

início, o desenvolvimento e o resultado do processo pelo

qual uma coisa se constitui”64. O que justifica o fato de os

pré-socráticos serem também chamados de físicos ou

naturalistas.

2.3.1 Os Jônicos

O primeiro a se dedicar à busca do princípio de todas

as coisas foi Tales65. De fato, Aristóteles afirma que ele é o

iniciador da filosofia da physis, identificando a arché com a

água66. O Estagirita diz que esta convicção resulta da

62 BARNES, J. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes,

2003, p. 10, afirma que “o epíteto [i.é, a expressão pré-socráticos]

peca por imprecisão, uma vez que Sócrates nasceu em 470 a.C. e

morreu em 399, de modo que muitos dos filósofos ‘pré-socráticos’

foram, em verdade, contemporâneos de Sócrates. No entanto o rótulo

está profundamente arraigado e seria inútil tentar rejeitá-lo”. 63 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 18. 64 HADOT, P. O que é Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 2004, p.

29. 65 Mileto, 624/25 – 546/45 a.C. 66 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 983 b, p 17.

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“constatação de que o alimento de todas as coisas é úmido, e

da constatação de que até o calor se gera do úmido e vive no

úmido”67.

Tales de Mileto teve a intuição de que as coisas vivas

têm umidade, à medida que a secura total é sinônimo de

morte. Com efeito, a umidade está para a vida, assim como

a secura está para a morte. E se a vida está relacionada à

presença de umidade e a umidade pressupõe a água, a

conclusão se apresenta como evidente: a água está na

gênese, na manutenção e na corrupção de todas as coisas.

Anaximandro68, concidadão e contemporâneo de

Tales, aprofundou ainda mais a problemática da busca da

arché. Em seu tratado Sobre a natureza, ele afirma que o

princípio não pode ser determinado por algo derivado, ou

seja, pela água, pelo ar ou qualquer outro elemento. O

princípio é o infinito: o á-peiron.

O á-peiron está privado de limites tanto externos

(quantitativos) quanto internos (qualitativos) e é justamente

esta característica que faz com que ele seja a origem de

todas as coisas. Como tal, o princípio não é imanente ao

mundo, mas transcendente. A arché, portanto, é ilimitada,

incorruptível e imortal.

Anaximandro foi o primeiro a se debruçar sobre a

questão de como e por que todas as coisas derivam do

princípio e qual seria o motivo de sua corrupção. Ao

responder a essas questões, introduziu o conceito de

dinamismo universal. As coisas derivariam da arché por

67 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 983 b, p 17. 68 Mileto, 610/09 – 547/46 a.C.

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meio do processo de separação: “a substância infinita é

animada por um eterno movimento, em virtude do qual se

separam dela os contrários: quente e frio, seco e úmido,

etc.”69.

Anaxímenes70 procurou fazer uma síntese entre Tales

e Anaximandro. Como Tales, identificou o princípio com

uma matéria determinada – o ar – mas, seguindo

Anaximandro, atribuiu ao princípio a infinitude e o

movimento eterno. A transformação das coisas seria

provocada por um duplo processo: a rarefação e a

condensação: “rarefazendo-se, torna-se fogo; condensando-

se, vento, depois nuvem, e ainda mais, água, depois terra,

depois pedras, e as demais coisas (provêm) destas”71.

Heráclito72 levou o discurso filosófico dos três

milesianos a posições “decididamente mais avançadas e em

grande parte novas”73. Dada a dificuldade de compreensão

de seu pensamento e de seus escritos, foi cognominado O

69 ABBAGNANO, N. Op. cit., p. 30. 70 Mileto, 546/45 – 528/25 a.C. 71 ANAXÍMENES In: VVAA. Os Pré-Socráticos. São Paulo: Nova

Cultural, 2000, A 1, p. 56. Ao abordarmos os filósofos naturalistas,

enfrentamos um sério problema: a qualidade e a inteligibilidade das

traduções dos fragmentos. Diante desse desafio, tivemos que recorrer

a várias traduções. Sendo assim, procuramos citar aquela que pareceu

a melhor. 72 Éfeso, cerca de 540 – 470 a.C. Apesar de apresentarmos Heráclito

junto aos três milesianos, sabemos que ele não faz parte da Escola

Jônica. Agrupamo-lo aqui tendo em vista a geografia filosófica e não

o caráter conceitual. Em geral, os historiadores da filosofia abordam-

no em separado. 73 REALE, G. História da Filosofia Antiga. 2. ed. São Paulo: Loyola,

1993, p. 63.

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Obscuro e O Enigmático74. Ele aprofundou o dinamismo

universal, chegando a um completo mobilismo, expresso,

sobretudo, na sentença: “Tudo escorre” – panta rhei.

Para Heráclito, o devir é o próprio princípio e não

uma característica do princípio, como queriam

Anaximandro e Anaxímenes. Em seu fragmento mais

célebre, lemos: “não se pode descer duas vezes no mesmo

rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no

mesmo estado, mas, por causa da impetuosidade e da

velocidade da mudança se espalha e se reúne, vem e vai”75.

O devir heraclitiano caracteriza-se por uma constante

e harmoniosa passagem de um contrário ao outro. Os

fragmentos são emblemáticos: “o que é oposição se concilia

e das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia, e tudo é

gerado por via de contraste”76. E também: “a mesma coisa é

o vivo e o morto, o desperto e o adormecido, o jovem e o

velho, porque tais coisas, pela mutação, são aquelas e

aquelas, por sua vez, pela mutação, são estas”77.

74 “Heráclito foi chamado desde cedo – por Sócrates e depois por

Aristóteles – de o Obscuro. E isso por duas razões: inicialmente por

sua recusa à pontuação; em seguida por inventar um estilo feito de

versos que imitam o movimento da contradição e exprimem a tensão

própria da harmonia”, DUMONT, J.-P. Op. cit., p. 62. 75 HERÁCILTO. In: REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., fr. 91 Diels-

Kranz, p. 52. Platão faz referência explícita à doutrina do mobilismo

universal no Crátilo: “Heráclito afirma que tudo passa e nada

permanece, e compara o que existe à corrente de um rio, para concluir

que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas”, PLATÃO.

Crátilo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1973, 402 A. 76 Ibidem, fr. 8 Diels-Kranz, p. 52. 77 Ibidem, fr. 88 Diels-Kranz, p. 53.

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Heráclito identificou o fogo como a arché: “todas as

coisas são troca do fogo, e o fogo uma troca de todas as

coisas, assim como as mercadorias são troca de ouro e o

ouro uma troca de mercadorias”78. De fato, o fogo melhor

expressa as características de contínua mudança, do

contraste e da harmonia: "ele está continuamente em

movimento, é vida que vive da morte do combustível, é

contínua transformação deste em cinzas, fumaça e vapores,

é perene ‘necessidade e saciedade’”79.

Com Heráclito, a arché ganha um novo atributo – a

racionalidade. Com efeito, enquanto governa tudo, o devir é

inteligência e esta inteligência não é caótica, mas racional –

é logos. Vejamos alguns fragmentos que expressam essa

tese: “o uno, único sábio, não quer e quer também ser

chamado de Zeus”80. E talvez o que melhor a expresse:

“existe uma só sabedoria: reconhecer a inteligência

(gnomem) que governa todas as coisas através de todas as

coisas”81.

2.3.2 Os Pitagóricos

Pouco se sabe sobre a figura de Pitágoras82 em sua

historicidade. Xenófanes e Heródoto atribuem a ele a

78 Ibidem, fr. 90 Diels-Kranz, p. 53. 79 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 23. 80 HERÁCILTO. In: REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., fr. 32 Diels-

Kranz, p. 53. 81 Ibidem, fr. 41 Diels-Kranz, p. 53. 82 Samos – cerca de 571/70 a 497/96 a.C.

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doutrina da metempsicose83. Aécio diz que “foi Pitágoras o

primeiro a dar o nome de cosmos ao invólucro do universo,

em razão da organização que nele se vê”84. Todavia, não é

possível falar de seu pensamento individualmente, mas dos

Pitagóricos como um todo.

Em linhas gerais, eles herdaram dos jônios a

problemática do princípio, mas a deslocaram para uma

realidade mais elevada: identificaram a arché não com um

elemento material da realidade, mas sim com o número. A

esse respeito, o testemunho de Aristóteles é pontual:

Eles por primeiro se aplicaram às matemáticas,

fazendo-as progredir e, nutridos por elas,

acreditaram que os princípios delas eram os

princípios de todos os seres. E dado que nas

matemáticas os números são, por sua natureza, os

primeiros princípios, e dado que justamente nos

números, mais do que no fogo e na terra, eles

achavam que viam muitas semelhanças com as coisas

que são e que se geram [...]; e além disso, por verem

que as notas e os acordes musicais consistiam em

números; e, finalmente, porque todas as outras coisas

em toda a realidade lhes pareciam feitas à imagem

dos números e porque os números tinham a primazia

83 Cf. BARNES, J. Op. cit., p. 101. 84 AÉCIO, Opiniões, II, I, 1 apud DUMONT, J.-P. Op. cit., p. 95.

Também Platão faz referência aos Pitagóricos quando evoca a

concepção de mundo como cosmos: “Afirmam os sábios, Cálicles,

que o céu e a terra, os deuses e os homens são mantidos em harmonia

pela amizade, o decoro, a temperança e a justiça, motivo por que,

camarada, o universo é denominado cosmo, ou ordem, não desordem

nem intemperança”, PLATÃO. Górgias. In: Diálogos de Platão.

Belém: UFP, 1980, 507 E – 508 A.

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na totalidade da realidade, pensaram que os

elementos dos números eram elementos de todas as

coisas, e que a totalidade do céu era harmonia e número85.

Os Pitagóricos foram também os responsáveis por

introduzirem um elemento novo no Orfismo86 – o conceito

do reto agir humano no itinerário de purificação da alma e

de aproximação de Deus.

85 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 985 b – 986 a, p 27. 86 A tradição atribui ao poeta trácio Orfeu o mérito de ter fundado o

Orfismo. Ele está inserido no contexto da religião dos mistérios. Com

efeito, os mistérios orficos foram os que exerceram maior influencia

na filosofia grega. Enquanto para Homero a morte punha fim a

existência humana, o Orfismo proclamava a imoralidade da alma e

concebia o homem a partir de um esquema dualista, contrapondo o

corpo è alma. Segundo REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 9, o

núcleo das crenças órficas pode ser resumido em 4 pontos

fundamentais:

a) no homem hospeda-se um princípio divino, um demônio, (alma)

que caiu em um corpo por causa de um culpa originária;

b) esse demônio não apenas preexiste ao corpo, mas também não

morre com o corpo, pois está destinado a reencarnar-se em corpos

sucessivos, a fim de expiar aquela culpa originária;

c) com seus ritos e práticas, a ‘vida órfica’ é a única em grau de pôr

fim ao ciclo das reencarnações e de, assim, libertar a alma do

corpo;

d) para quem se purificou (os iniciados nos mistérios órficos) há

um prêmio no além (da mesma forma que há punições para os não

iniciados).

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63

2.3.3 Os Eleatas

Coube aos eleatas fundar a problemática acerca da

arché sob a perspectiva ontológica. De fato, eles são os

descobridores do ser. Com a escola eleática, saímos da

cosmologia e adentramos nos domínios da ontologia. Nicola

Abbagnano afirma:

Pela primeira vez, com a escola eleática, a

substância, se torna por si mesma princípio

metafísico: pela primeira vez, é ela definida não

como elemento corpóreo ou como número, mas tão só

como substância, como permanência e necessidade de ser enquanto ser87.

O grande fundador do eleatismo é Parmênides88. Com

ele, a questão do ser se torna primordial. Com efeito, o que

há de mais básico é o ser: a água é, o fogo é, a terra é, todos

as coisas são. Parmênides estabelece uma perfeita

correlação entre ser e pensar: “o mesmo é pensar e ser”89,

diz ele. E, em outro fragmento, lemos o seguinte:

O mesmo é pensar e em vista de que é pensamento.

Pois não sem o que é, no qual é revelado em palavra,

acharás o pensar; pois nem era ou é ou será 87 ABBAGNANO, N. Op. cit., p.43. 88 Eléia – sécs. VI-V a.C. 89 PARMÊNIDES. In: Os Pensadores Originários. 4. ed. Bragança

Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005, fr. 3 Diels-Kranz,

p. 45.

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64

outro fora do que é [...]90.

De certa forma, esses fragmentos apresentam a

primeira formulação do princípio de não-contradição que,

com Aristóteles, recebeu sua mais célebre formulação e

defesa. Giovanni Reale e Dario Antiseri apresentam do

seguinte modo a chave para a compreensão do pensamento

de Parmênides: “o ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser de modo nenhum”91.

Como podemos perceber, nessa perspectiva, tudo o

que pensamos e falamos é. O nada é impensável, pois a

partir do momento que nos propomos a pensá-lo ele já é

algo. Assim, o ser em Parmênides apresenta alguns atributos

fundamentais:

a) é não-gerado e incorruptível: não tem um passado,

nem um futuro – é um eterno presente. Sua

geração implicaria sua vinda do não-ser e sua

corrupção implicaria na passagem do ser ao não-

ser, o que é absurdo;

b) é imutável e absolutamente imóvel: permanece em

si mesmo idêntico no idêntico, pois qualquer

mudança pressupõe um não-ser para o qual deveria

mover-se ou no qual deveria transformar-se;

c) é indivisível: finito, completo e esferiforme, pois o

infinito é inexplicável e, portanto, sinônimo de

imperfeição;

d) é uno: um contínuo todo igual, já que qualquer

diferença implicaria o não-ser.

90 PARMÊNIDES. In: VVAA. Os Pré-Socráticos. Op. cit., B 8, p.

124. 91 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 33.

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Ora, se Heráclito perdeu o ser ao absolutizar o devir,

isto é, perdeu o ser em meio aos fenômenos, com

Parmênides acontece o contrário. Parmênides salva o ser,

mas perde os fenômenos. Consequentemente, o ser de

Parmênides não admite diferenciações quantitativas nem

qualitativas – os fenômenos, enquanto assumidos no ser, ou

seja, enquanto incluídos na unidade superior do ser,

encontram-se ao mesmo tempo igualizados e imobilizados,

como que petrificados na fixidez do ser.

Os outros eleatas aprofundarão ainda mais o princípio

de Parmênides, procurando demonstrar, com argumentos

bem evidentes, que o movimento e a multiplicidade não

existem. Tornou-se célebre a demonstração por absurdo

descoberta por Zenão e aplicada para negar a existência do

movimento, principalmente com os argumentos da

dicotomia, de Aquiles e da flecha. Notável é também seu

esforço para negar a multiplicidade dos fenômenos. No

entanto, a sistematização do eleatismo coube a Melisso,

culminando na afirmação de um Ser eterno, infinito, uno,

igual, imutável, imóvel e incorpóreo.

2.3.4 Os Físicos Pluralistas

Apesar do eleatismo ter declarado ilusório o mundo

do devir e ter relegado o conhecimento sensível que dele

procede como ilusório, a investigação naturalista

prosseguiu. Contudo, as conclusões dos eleatas não podiam

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66

mais ser ignoradas. Empédocles92 foi o primeiro a tentar

resolver a aporia eleática. Como Parmênides, admite a

impossibilidade do nascer e do perecer como um derivar do

ser a partir do não-ser. Todavia, contrariamente a ele,

propõe-se a explicar a aparência do nascimento e da morte.

Não obstante, admitiu uma multiplicidade de princípios,

denominados raízes de todas as coisas: a água, o ar, a terra

e o fogo.

Com efeito, Empédocles afirmou que nascer e morrer

não se configuram na passagem do não-ser ao vir a ser ou

do ser ao não-ser, como queria Parmênides, mas do

misturar e do dissolver-se das raízes de todas as coisas.

Segundo ele, estas raízes possuem total inalterabilidade

qualitativa e intransformabilidade.

As forças motrizes dos processos do misturar-se e do

dissolver-se são o Amor e o Ódio. Por sua vez, a amizade

está para o misturar-se, ou seja, para a geração, assim como

o Ódio está para o dissolver-se, isto é, para a corrupção.

Anaxágoras93 também aceitou o princípio da

substancial imutabilidade do ser. Ele afirmou que o nascer

deve ser compreendido como compor-se e o morrer como

dividir-se. Como Empédocles, admitiu que as coisas são

compostas por elementos diversos. Contudo, afirmou que os

elementos dos quais derivam as coisas, - as sementes –

devem ser tantas quantas são as inumeráveis quantidades

das coisas.

92 Agrigento, 484/11 – 424/21 a.C. 93 Clazómenas, 449/48 – 428/27 a.C.

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Segundo Anaxágoras, essas sementes podem se

dividir em partes sempre menores, entretanto, suas

qualidades permaneceriam inalteradas. Justamente por isso,

elas foram chamadas também de homeomerias – que quer

dizer partes semelhantes. Sua grande novidade está na

introdução de uma Inteligência Ordenadora, responsável

pelo movimento inicial que deu origem a uma mistura bem

ordenada da qual surgiram todas as coisas.

Com ele, chegamos ao limiar da descoberta do supra-

sensível. Entretanto, esse feito será concretizado apenas com

Platão e sua segunda navegação. O fato é que Anaxágoras,

mesmo com a descoberta da Inteligência Ordenadora,

permaneceu no plano físico, dando muita importância às

homeomerias no processo de explicação das coisas.

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69

3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E A

DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL

No capítulo anterior buscamos contextualizar Platão e

apresentar a problemática levantada pelos naturalistas na

busca pela arché. Agora, apresentamos a “principal

novidade da filosofia platônica”94, ou seja, a segunda

navegação, a descoberta da dimensão metafísica do ser.

Desse modo, neste capítulo, abordamos a filosofia de Platão

em dois dos seus três pontos focais95: a teoria das Ideias

(primeira fase da segunda navegação); e a doutrina dos

Princípios primeiros e supremos96 (segunda fase da segunda

navegação). A doutrina do Demiurgo, que pressupõe tanto a

teoria das Ideias quanto a doutrina dos Princípios, será

objeto de estudo do capítulo seguinte.

94 REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. 2. ed. São Paulo:

Paulus, 2004, p. 137. 95 Cf. REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola,

1994, p. 58. 96 A doutrina dos Princípios refere-se ao ensinamento oral de Platão,

conservado pela tradição indireta, e transmitido sob o nome de

Doutrinas não-escritas.

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3.1 A MAGNA CHARTA DA METAFÍSICA

OCIDENTAL

A passagem central do Fédon, 96 A – 102 A, é

considerada “uma das passagens mais célebres e mais

grandiosas”97 dos escritos de Platão, constituindo “a

primeira demonstração da existência de um ser meta-

empírico, supra-sensível e transcendente”98: a “magna

charta da metafísica ocidental”99.

Em poucos parágrafos, Platão descreve a trajetória

ideal que a mente humana deve percorrer quando busca a

verdade. Este trajeto é composto por duas fases essenciais:

a) a fase física, seguindo o método dos naturalistas, é

escalonada em dois momentos: o primeiro

inspirado na doutrina dos físicos em geral; o

segundo inspirado em Anaxágoras;

b) a fase metafísica, seguindo um novo método e

identificada metaforicamente com a expressão

segunda navegação, também escalonada em dois

momentos: o primeiro, com a teoria das Ideias; o

97 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. 2. ed. São

Paulo: Loyola, 2004, p.100. 98 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Terza

edizione. Milano: Rizzoli, 1998, p. 145: “la prima dimostrazione

dell’esistenza di un essere metempirico, soprasensibile e

transcendente”. 99 REALE, G. O Saber dos Antigos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.

221.

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71

segundo, com a doutrina dos Princípios primeiros

e supremos.

Fédon, 96 A – 102 A, apresenta o mapa do projeto

metafísico de Platão, ora explicitamente, como no caso da

teoria das Ideias, ora implicitamente e de modo alusivo,

como no caso da doutrina dos Princípios e do Demiurgo.

Neste momento, faremos uma releitura deste mapa.

3.1.1 O encontro com os físicos

As questões metafísicas que direcionaram o itinerário

platônico pela busca da verdade estão ligadas à causa da

geração, da corrupção e do ser das coisas. Destarte, a

problemática de fundo pode ser formulada da seguinte

forma: “Por que as coisas se geram?”; “Por que se

corrompem?”; “Por que existem?”. Nas palavras do próprio

filósofo:

Escuta [...] o que vou contar: em minha mocidade

senti-me apaixonado por esse gênero de estudos a

que dão o nome de “exame da natureza”; parecia-me

admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo,

saber por que tudo vem à existência, por que perece e por que existe100.

100 PLATÃO. Fédon. In: Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,

1979, 96 A. Todas as citações do Fédon serão feitas a partir desta

edição.

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72

Na primeira parte da fase física, Platão aproxima-se

dos físicos em geral e adota seu método de investigação. Por

sua vez, toma conhecimento das múltiplas respostas

apresentadas ao problema da causa da geração, da corrupção

e do ser das coisas, chegando a um resultado nada animador:

Havia coisas acerca das quais eu antes possuía um

conhecimento certo, ao menos na minha opinião, e na

dos outros. Pois bem, essa espécie de estudo chegou

a produzir em mim uma tal cegueira que desaprendi

até aquelas coisas que antes imaginava saber101.

Platão constata a fragilidade da metodologia adotada

pelos físicos em geral e percebe que, ao invés de esclarecer

a causa da geração, da corrupção e do ser das coisas, ela

acaba por torná-la ainda mais confusa e de difícil

compreensão. De fato, ele apresenta três argumentos que

desvelam toda a sua impotência e incapacidade de explicar

as coisas.

O primeiro refere-se às causas do crescimento – na

opinião comum, o crescimento do homem deve-se ao fato

de ele comer e beber: “adicionando carne à carne e ossos

aos ossos, e em geral substância semelhante à substância

semelhante”102. Assim, o volume do corpo, antes pequeno,

passa a muito, e o homem de pequeno torna-se grande. O

processo de crescimento é explicado por um reunir-se e

acrescentar-se de parte a parte. Entretanto, essas partes são

pequenas por si! Resta a interrogação: como o pequeno pode

gerar o grande?

101 Ibidem, 96 C. 102 Fédon, 96 D.

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O segundo argumento refere-se à causa do ser maior

– Platão percebe que, ao colocarmos um homem grande ao

lado de um pequeno, aquele geralmente se mostrará maior

por uma cabeça, e o mesmo constatamos com um cavalo.

Mas como pode um homem ser maior que o outro por uma

cabeça que é, de fato, pequena por si? Também o dez

aparenta ser maior que o oito pelo fato de ser acrescido de

duas unidades. Como o dez pode ser maior que o oito por

causa do dois, se ele é em si menor? Da mesma forma, a

medida de dois côvados que parece ser maior que a de um

côvado pelo fato de este ser a metade daquele103.

O terceiro argumento refere-se à tentativa de explicar

o dois e o um – segundo os naturalistas, há duas maneiras

para explicar a causa do dois: a primeira aproximando e

acrescentando uma unidade à outra; a segunda separando-

as. Ora, os procedimentos do somar, ou seja, aproximar e

acrescentar, não são contrários ao do dividir, isto é, afastar,

separar? Eles não são categoricamente opostos? Deste

modo, seguindo os naturalistas, Platão não consegue nem

mesmo explicar o um104.

Diante desse quadro de incertezas, Platão manifesta

toda sua frustração: “enfim, e para dizer tudo, não sei

103 Cf. Ibidem, 96 D – E. 104 Cf. Ibidem, 97 A – B. Segundo REALE, G. Para uma nova

Interpretação de Platão. Op. cit., p. 105 et seq. “O ‘grande’ e o

‘pequeno’ e, sobretudo, o ‘dois’ e o ‘um’, dos quais ele [Platão]

sempre fala, não tem de modo algum um valor limitado de caráter

geométrico e matemático, mas tem um valor ontológico e metafísico

preciso, com o vértice na geração do um (έ´υ)”. Desse modo, são

referências à doutrina dos Princípios. De fato, “nos três casos, Platão

evoca precisamente aquela categoria da unidade que constituirá a base

da metafísica” REALE, G. O saber dos Antigos. Op. cit., p. 224.

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absolutamente como qualquer coisa tem origem, desaparece

ou existe, segundo este procedimento metodológico. Escolhi

então outro método, pois, de qualquer modo, este não me

serve”105. É neste momento que ele toma conhecimento da

teoria da Inteligência Ordenadora de Anaxágoras – veremos

agora a segunda parte da fase física:

Certo dia ouvi alguém que lia um livro de

Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador

e a causa de todas as coisas”. Isso me causou

alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto,

vantagem em considerar o espírito como causa

universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou

espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor

forma. Desse modo, se alguém desejar encontrar a

causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou

existe, deve encontrar, a respeito, qual é a melhor

maneira seja de ela existir, seja de sofrer ou produzir

qualquer ação. E pareceu-me ainda que a única coisa

que o homem deve procurar é aquilo que é melhor e

mais perfeito, porque desde que ele tenha encontrado

isso, necessariamente terá encontrado o que é o pior, visto que são objetos da mesma ciência106.

Grandes eram suas expectativas. Acreditava ter

encontrado, em Anaxágoras e em sua Inteligência

Ordenadora, a causa capaz de explicar tudo o que existe.

Platão estava convicto de que a Inteligência e o Bem são

estruturalmente conexos, pois somente assim ela seria capaz

de ordenar as coisas da melhor forma possível. Portanto,

Anaxágoras deveria explicar o critério do melhor em função

105 Fédon, 97 B. 106 Fédon, 97 B – D.

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do qual a Inteligência opera. Contudo, não foi isso que

aconteceu.

Anaxágoras estava circunscrito ao método de

investigação dos naturalistas e não conseguiu superá-lo.

“Com efeito, Anaxágoras tinha razão ao afirmar que a

Inteligência é causa de tudo, mas não conseguiu dar a tal

afirmação um fundamento adequado e uma consistência

necessária”107: seu método não permitia. Mais uma vez a

decepção se fez presente: “nunca supus que depois de ele

haver dito que o Espírito os havia ordenado, ele pudesse

dar-me outra causa além dessa que é a melhor e que é a que

serve a cada uma em particular assim como ao conjunto”108.

O equívoco de Anaxágoras foi confundir a verdadeira

causa com a concausa material. O depoimento de Platão é

esclarecedor a esse respeito:

À medida que avançava e ia estudando mais e mais,

notava que esse homem não fazia nenhum uso do

espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na

ordem do universo, indo procurar tal causalidade no

éter, no ar, na água em muitas outras coisas

absurdas!109

A fragilidade é exposta em proporções ainda maiores

quando Platão apresenta o famoso argumento de Sócrates.

Confunde-se a verdadeira causa com a concausa material e

107 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

106. Ver também REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza

Segreta. Op. cit., p. 147 et. seq. 108 Fédon, 98 A – B. 109 Ibidem, 98 B – C.

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instrumental quando se afirma que Sócrates faz tudo o que

faz com a Inteligência e, no entanto, ao buscar explicar a

causa de seu agir, afirma-se que ele está no cárcere por

causa de seus órgãos locomotores, suas carnes, seus nervos,

seus ossos etc., negligenciando a verdadeira causa, ou seja,

a escolha do justo e do melhor, isto é, do Bem, feita com a

Inteligência110.

Com efeito, apesar de ter descoberto a Inteligência

Ordenadora, Anaxágoras permaneceu circunscrito à physis,

continuou a atribuir grande importância aos elementos

físicos na explicação das causas das coisas. Todavia, o

método físico não dá conta de explicar a totalidade do real:

seu erro é estrutural. Era imprescindível descobrir um novo

método:

– Isso [articular a Inteligência com os elementos

físicos e não com o melhor] importaria, nada mais

nada menos, em não distinguir duas coisas bem

distintas, e em vão ver que uma coisa é a verdadeira

causa e outra aquilo sem o que a causa nunca seria

causa. Todavia, é a isso que aqueles que erram nas

trevas, segundo me parece, dão o nome de causa,

usando impropriamente o termo. O resultado é que

um deles, tendo envolvido a terra num turbilhão,

pretende que seja o céu o que a mantém em

equilíbrio, ao passo que para outro ela não passa

duma espécie de gamela, à qual o ar serve de base e

de suporte. Mas quanto à força, que a dispôs para

que essa fosse a melhor posição, essa força, ninguém

a procura; e nem pensam que ela deva ser uma

potência divina. Acreditam, ao contrário, haver 110 Cf., Fédon, 98 C – 99 A.

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descoberto um Atlas mais forte, mais imortal e mais

garantidor da existência do universo do que esse

espírito; recusam-se a aceitar que efetivamente o

bom e o conveniente formem e conservem todas as

coisas. Ardentemente desejaria eu encontrar alguém

que me ensinasse o que é tal causa! Não me foi

possível, porém adquirir esse conhecimento então,

pois nem eu mesmo o encontrei, nem o recebi de

pessoa alguma. Mas querias, estimado Cebes, que

descrevesse a segunda excursão111 que realizei em

busca dessa causalidade?

111 Para sermos fiéis à intenção de Platão, a expressão δευτερος πλους

– deuteros plous – deve ser traduzida por segunda navegação, do

contrário, não se preserva a conotação que o fundador da Academia

queria dar. Infelizmente, nossos tradutores nem sempre levaram isso

em conta. Além da tradução que estamos seguindo, podemos constatar

o mesmo erro em Jaime Bruna: “Queres, Cebes – perguntou – que te

narre as canseiras que me deu a rota de emergência em busca da

causa?” In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 189.

Mesmo publicações recentes negligenciam a metáfora platônica,

operando uma tradução literal: “Mas, uma vez que esta me falhou e

não pude, por minha parte, descobri-la ou achar quem ma explicasse,

tive de tentar uma segunda via para lançar na sua busca... Desejas,

pois, Cebes, que te conte a história dessas tentativas?” In: PLATÃO.

Fédon. Brasília: UnB, 2000. Carlos Alberto Nunes é quem mais se

aproximou da intenção de Platão: “Queres que te faça uma descrição

completa, Cebes, de como empreendi o segundo roteiro de navegação

para a investigação da causa?” In: PLATÃO. Diálogos. Belém: UFP,

1980.

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– É impossível que alguém o deseje mais do que eu –

respondeu Cebes112.

3.1.2 A segunda navegação

A segunda navegação constitui a grande novidade e o

ponto fundamental da filosofia platônica. Ao que tudo

indica, a expressão é de origem marinhesca. É Giovanni

Reale que, recuperando uma antiga tradição, apresenta seu

verdadeiro significado:

“Segunda navegação” é uma metáfora tirada da

linguagem dos marinheiros, e o seu significado mais

óbvio parece ser o que é oferecido por Eustáquio,

que, referindo-se a Pausânias, explica: “Chama-se

‘segunda navegação’ aquela que alguém empreende

quando, ao ficar sem ventos, navega com os remos”.

E essa explicação, como há tempo os estudiosos

observaram, encontra confirmação até mesmo em

Cícero, que contrapõe o método do pandere vela

112 Fédon, 99 B – D. Acreditamos ser oportuno reproduzir a

interpolação de REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão.

Op. cit., p. 107.

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orationis o método que consiste em dialecticorum

remis113.

A primeira navegação, isto é, aquela feita com as

velas ao vento, corresponde à investigação realizada sob o

impulso da filosofia da physis, isto é, seguindo método dos

naturalistas. Neste tipo de investigação, o filósofo está

circunscrito às velas dos sentidos e das sensações. Deste

modo, busca explicar o sensível por meio do próprio

sensível.

A segunda navegação, isto é, aquela feita com os

remos – muito mais trabalhosa e comprometedora –, refere-

se ao novo método proposto por Platão que conduz à

descoberta de uma nova dimensão do ser. Este novo modo

de filosofar é impulsionado pelos remos dos raciocínios e

dos postulados racionais, levando à conquista da dimensão

supra-sensível, ou seja, metafísica do ser. Transcrevemos

abaixo o texto que, em Platão, apresenta a segunda

navegação:

– Então – prosseguiu Sócrates – minha esperança de

chegar a conhecer os seres começava a esvair-se.

Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de não vir a

ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam

um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem

estragam os olhos por não tomarem a precaução de

observar a imagem do sol refletida na água ou em

matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que

minha alma viesse a ficar completamente cega se eu

113 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

108. Cf. REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op.

cit., p. 146.

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continuasse a olhar com os olhos para os objetos e

tentasse compreendê-los através de cada um de meus

sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas idéias e

procurar nelas a verdade das coisas. É possível,

todavia, que esta comparação não seja perfeitamente

exata, pois nem eu mesmo aceito sem reservas que a

observação ideal dos objetos – que é uma observação

por imagens – seja melhor do que aquela que deriva

de uma experiência dos fenômenos. Entretanto, será

sempre para o lado daquela que me inclinarei. Assim,

depois de haver tomado como base, em cada caso, a

idéia, que é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo

que lhe seja consoante eu o considero como sendo

verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra

qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro114.

Como podemos observar, Platão tenta libertar-se

radicalmente dos sentidos e do sensível empreendendo uma

guinada metodológica que o conduz para o plano do

raciocínio puro e para aquilo que é apreendido somente com

o intelecto.

A segunda navegação platônica traz consigo uma tese

que será reiteradamente retomada e amplamente discutida

na história da filosofia Ocidental, ou seja, “a afirmação de

que a apreensão verdadeira da realidade se faz através de

conceitos e idéias115, que captam o ser mesmo de tudo, a

114 Fédon, 99 D – 100 A. 115 Nós, modernos, entendemos por ideia apenas um conceito, um

pensamento ou uma representação mental. Mais uma vez é a tradução

que nos conduz a um engodo, pois não é nessa acepção que Platão

emprega o termo Ideia. Com efeito, “o termo ‘Idéia’ não é uma

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realidade como ela é em si mesma, em suas notas

essenciais”116. Platão está ciente da complexidade intrínseca

à novidade apresentada pela segunda navegação e,

justamente por isso, procura fornecer ulteriores explicações

ao seu interlocutor:

Vou, porém, explicar com mais clareza o que estou a dizer, pois me parece que não o compreendeste bem.

– Por Zeus, com efeito, que não o entendo bem! –

confirmou Cebes.

tradução, mas uma simples transliteração do original grego. A

tradução exata seria ‘Forma’ [...]. Os termos Idea e Eidos derivam do

verbo grego idein, que significa ver. No significado pré-filosófico,

estes termos indicavam a forma visível das coisas, a imagem sensível.

A partir de Platão, com algumas antecipações fragmentárias e parciais

em Anaxágoras e Demócrito, passou a significar a ‘forma interior’, ou

seja, a natureza específica ou a essência da coisa, o verdadeiro ser da

coisa. Mas só com Platão, e propriamente através do salto qualitativo

operado por ele com a ‘segunda navegação’, estas condições são

possíveis”. REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta.

Op. cit., p. 150 et seq.: “Il termine ‘Idea” non è una tradizione, ma la

semplice translitterazione dell’originário grego. La traduzione esata

sarebbe quella di ‘Forma’. [...] I termini Idea e Eidos in grego

derivano dal verbo idein, che significa ‘vedere’. Nel significato

profilosofico questi termini indicavano la forma visibile delle cose, il

veduto sensibile. A partire da Platone, con alcuni parziali e

frammentari anticipi in Anassagora e Democrito, essi vengono a

significare la ‘forma interiore’, ossia la natura specifica o essenza

delle cose, il vero esse delle cose. Ma solo con Platone, e proprio

mediante el salto qualitativo da lui operato con la sua ‘seconda

navigazione’, questo è stato possibile”. 116 OLIVEIRA, M. A. Filosofia: lógica e metafísica. In: IMAGUIRE,

G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. (orgs). Metafísica

Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 161.

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– Quero dizer o seguinte – volveu Sócrates – e não

estou a enunciar nenhuma novidade, mas apenas a

repetir o que, em outras ocasiões como na pesquisa

passada, tenho me fatigado de dizer. Tentarei

mostrar-te a espécie de causa que descobri. Volto a

uma teoria que já muitas vezes discuti e por ela

começo: suponho que há um belo, um bom, e um

grande em si, e do mesmo modo as demais coisas. Se

concordas comigo também admites que isso existe,

tenho muita esperança de, por esse modo, explicar-

lhe a causa mencionada e chegar a provar que a alma é imortal.

– Naturalmente admito que isso existe – confirmou Cebes; – e, agora, faze depressa o que dizes.

– Examina, pois, com cuidado, se estás de acordo,

como eu, com o que se deduz dessa teoria! Para mim

é evidente: quando, além do belo em si, existe outro

belo, este é belo porque participa daquele apenas por

isso e por nenhuma outra causa. O mesmo afirmo a

propósito de tudo o mais. Reconheces isto como causa?

– Reconheço.

– Logo – prosseguiu Sócrates – não compreendo nem

posso admitir aquelas outras causas científicas. Se

alguém me diz por que razão um objeto é belo, e

afirma que é porque tem cor ou forma, ou devido a

qualquer coisa desse gênero – afasto-me sem discutir,

pois todos esses argumentos me causam unicamente

perturbação. Quanto a mim, estou firmemente

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convencido, de um modo simples e natural, e talvez

até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a

existência daquele belo em si, de qualquer modo que

se faça a sua comunicação com este. O modo por que

essa participação se efetua, não o examino neste

momento; afirmo, apenas, que tudo o que é belo é

belo em virtude do Belo em si. Acho que é muitíssimo

acertado, para mim e para os demais, resolver assim

o problema, e creio não errar adotando esta

convicção. Por isso digo convictamente, a mim

mesmo e aos demais, que o que é belo é belo por

meio do Belo. Acaso não é esta também a tua opinião?

– É.

– E o que é grande é grande por meio da Grandeza; e

o que é maior pelo Maior; e o que é menor é Menor por meio da Pequenez?

– Indubitavelmente117.

Como afirmamos anteriormente, a descoberta da

teoria das Ideias constitui a primeira etapa da segunda

navegação. Esta descoberta colocou à disposição de Platão

um grande instrumental teórico. Ela possibilitou ao filósofo

explicar as coisas não mais por elas mesmas, mas em função

das realidades inteligíveis (o belo em si, o bom em si, o

grande em si etc.). O sensível já não é mais tomado como

verdadeira causa, mas como meio para a realização dessa

verdadeira causa.

117 Fédon, 100 A – E.

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Ao contrário do que muitos pensaram, a teoria das

Ideias não constitui o vértice metafísico da filosofia de

Platão, pois, acima delas, estão os Princípios primeiros e

supremos que constituem verdadeiramente a etapa final da

segunda navegação. Entretanto, esta não é uma postura

aceita de modo unívoco e com tranquilidade entre os

historiadores de filosofia em geral e pelos platonistas.

O fato é que sua aceitação está estruturalmente ligada

à admissão das Doutrinas não-escritas, pois a principal

fonte que temos da doutrina dos Princípios é a tradição

indireta. Contudo, se, nos escritos de Platão, a doutrina dos

Princípios não aparece de forma tão explicita como a teoria

da Ideias, não se pode negar que há muitas remissões

implícitas e de caráter alusivo. O texto que transcrevemos

abaixo é um exemplo bem claro disso:

E se alguém se apresentasse censurando essa tese

[isto é, a teoria das Idéias], porventura não o

deixarias em paz e sem resposta, até o momento em

que houvesse examinado as conseqüências extraídas

e verificado se ela concorda consigo mesma ou se

contradiz? E depois, quando viesse a ocasião de dar

as razões desta tese em si mesma, não o farias da

mesma forma, tomando desta vez por base uma outra

tese, aquela em que encontrasse maior valor, até

atingires um resultado satisfatório? E não é claro que

tu, desejando uma doutrina do ser verdadeiro, te

absterias de tagarelices e mais discussões a propósito

do princípio e das suas conseqüências, assim como

fazem os que polemizam profissionalmente? Nada

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daquilo, com efeito, figura nas pesquisas e

preocupações de tais homens: dão-se por

superiormente satisfeitos com a sabedoria que

possuem, embora confundam tudo. Tu, porém, se na

verdade és filósofo, tenho a certeza de que farás o que digo!118

Com efeito, a doutrina dos Princípios “outra tese” que

fundamenta a teoria das Ideias. A tese de “maior valor” que

garante um resultado satisfatório frente aos limites da teoria

das Ideias. Uma vez alcançados tais Princípios, não é

necessário procurar mais nada.

3.2 A TEORIA DAS IDEIAS

A teoria das Ideias compreende a primeira fase da

segunda navegação e configura-se num dos eixos de

sustentação dos escritos platônicos. Lembremos que nosso

autor chegou à teoria das Ideias mediante a introdução de

“postulados”, com o intuito de superar a filosofia da physis,

solucionando definitivamente as questões referentes à

geração, à corrupção e ao ser das coisas. Por meio da teoria

das Ideias, ele pretende fundar uma verdadeira metafísica e

uma nova epistemologia.

118 Fédon, 101 D – 102 A.

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Platão opera, ao mesmo tempo, uma distinção e uma

síntese. A distinção é expressa na sua concepção de

realidade, que é formada por dois planos de ser - o sensível

e o inteligível. A síntese é elaborada a partir das conclusões

de Heráclito e Parmênides, com a atribuição, por um lado,

das características do ser heraclitiano à esfera sensível da

realidade, e, por outro, das características do ser

parmenídico às realidades inteligíveis. Dessa forma, salvou-

se o movimento e garantiu-se a possibilidade da ciência.

3.2.1 As características metafísico-ontológicas

As realidades inteligíveis sobre a qual falávamos

anteriormente, isto é, as Ideias, possuem alguns traços

fundamentais e algumas características metafísico-

ontológicas que podem ser agrupados em seis pontos:

inteligibilidade; incorporeidade; ser em sentido pleno;

imutabilidade; perseidade e unidade. Examinemos,

sinteticamente, cada um desses pontos.

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3.2.1.1 A inteligibilidade e a incorporeidade

A inteligibilidade é a primeira característica que

expressa o caráter metafísico das Ideias. Intimamente ligada

a ela está também o conceito de incorporeidade. De fato, a

afirmação do caráter inteligível das Ideias fundamenta-se,

justamente, em elas serem captáveis apenas com os

raciocínios – elas são o objeto do intelecto. Por sua vez, a

inteligibilidade e a incorporeidade, ao mesmo tempo em que

implicam uma distinção entre sensível e inteligível, elevam

as Ideias a um âmbito subsistente acima do próprio sensível,

situando-as numa dimensão inteiramente diferente do

mundo corpóreo sensível. Vejamos um trecho do Fédon, em

que Platão expressa essa radical distinção entre sensível e

inteligível:

– Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não

de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser?

– Sim.

– E, sem dúvida alguma, ela raciocina melhor

precisamente quando nenhum empeço lhe advém de

nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista, nem

dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer – mas

sim quando se isola o mais que pode em si mesma,

abandonado o corpo à sua sorte, quando, rompendo

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tanto quanto lhe é possível qualquer união, qualquer

contato com ele, anseia pelo real?

– É bem isso!

– E não é, ademais, nessa ocasião que a alma do

filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o

corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma?

– Evidentemente!

– Mas que poderemos dizer, Símias, do seguinte:

afirmaremos a existência do “justo em si mesmo”, ou a negaremos?

– Certamente que a afirmaremos, por Zeus!

– E também a do “belo em si” e a do “bom em si”,

não é verdade?

– Como não?

– Ora, é certo que jamais viste qualquer ser desse gênero com teus olhos?

– Jamais.

– Mas então é porque os aprendeste por qualquer

outro sentimento que não por aqueles de que o corpo

é instrumento? Ora, o que eu disse há pouco é para

todos os seres, tanto para a “grandeza”, a “saúde”,

a “força”, como para os demais – é, numa só palavra

e sem exceção –, a sua realidade: aquilo,

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precisamente, que cada uma dessas coisas é. E será,

então, por intermédio do corpo que o que nelas há de

mais verdadeiro poderá ser observado? Ou quem

sabe se, pelo contrário, aquele dentre nós que se tiver

o mais cuidadosamente e no mais alto ponto

preparado para pensar em si mesma cada uma dessas

realidades, que considera e toma por objeto – quem

sabe se não é esse quem mais deve aproximar-se do conhecimento de cada uma delas?

– Isso é absolutamente certo.

– E quem haveria de obter em sua maior pureza esse

resultado, senão aquele que usasse no mais alto grau,

para aproximar-se de cada um desses seres,

unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de

pensar nem a vista, nem a um outro sentido, sem

levar nenhum deles em companhia do raciocínio;

quem, senão aquele que, utilizando-se do pensamento

em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se

lançasse à caça das realidades verdadeiras, também

em si mesmas, por si mesmas e sem mistura? e isto só

depois de se ter desembaraçado o mais possível de

sua vista, de seu ouvido, e, numa palavra, de todo o

seu corpo, já que é este quem agita a alma e a impede

de adquirir a verdade e exercer o pensamento, todas

as vezes que está em contato com ela? Não será este

o homem, Símias, se a alguém é dado fazê-lo neste

mundo, que atingirá o real verdadeiro?

– Impossível, Sócrates, falar com mais verdade!119

119 Fédon, 65 C – 66 A.

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Também no Político, a inteligibilidade aparece

intimamente ligada à incorporeidade: “As realidades

imateriais, as maiores e mais belas, só podem ser claramente

reveladas por meio da razão”120. Portanto, as Ideias

enquanto realidades inteligíveis e naturalmente

incorpóreas/imateriais, são preendidas apenas pela

razão/intelecto, graças a sua capacidade de transcender a

dimensão física dos sentidos, do corpóreo.

3.2.1.2 O ser em sentido pleno

Afirmar que as Ideias são o puro ser é o mesmo que

dizer que elas são o ser que verdadeiramente é. Com efeito,

elas são apresentadas e qualificadas por Platão “como o

verdadeiro ser, ser em si, ser estável e eterno”121. Indicam,

assim, um ser que “não nasce, não perece, não cresce nem

diminui, não muda nem advém de alguma maneira”122.

Alguns textos são particularmente significativos e

apresentam o conceito de Ideia como puro ser como o

centro de gravitação das outras características. Comecemos

pelo Banquete:

120 PLATÃO. Político. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980,

286 A. 121 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

126. 122 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. cit.,

p. 152: “non nasce, non perisce, non cresce né diminuisce, non muta

né diviene in alcuna maniera”.

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– Quem tiver sido levado até esse ponto pelo caminho

do Amor, após a contemplação gradativa e regular

das coisas belas, já próximo da meta final do

conhecimento amatório, perceberá de súbito uma

beleza de natureza maravilhosa, precisamente,

Sócrates, a que construíra a razão de ser de seus

esforços anteriores: para começar é sempiterna, não

conhece nascimento nem morte, não aumenta nem

diminui; ao depois, não é bela de um jeito e feia de

outro, ou bela num determinado momento para

deixar de sê-lo pouco adiante, nem bela sob tal

aspecto e feia noutras condições, ou aqui sim e ali

não, ou bela para algumas pessoas porém feias para

outras; beleza que não se lhe apresentará sob

nenhuma forma concreta, como fora o caso de um

belo rosto ou de belas mãos ou de qualquer outra

parte do corpo, nem sob o aspecto de um discurso ou

conhecimento, nem como algo existente em qualquer

parte, num animal por exemplo, na terra, no céu ou

seja no que for, mas que existe em si e por si mesma e

é eternamente una consigo mesma, da qual todas as

coisas belas participam, porém de tal modo, que o

nascimento e a morte delas todas em nada a diminui ou lhe acrescenta nem causa o menor dano123.

No Fédon, Platão caracteriza as Ideias como puro ser

ainda mais claramente:

Aquela idéia ou essência a que em nossas perguntas e

respostas atribuímos a verdadeira existência,

conserva-se sempre a mesma e de igual modo, ou ora

123 PLATÃO. O Banquete. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980,

210 E – 211 B, grifo nosso.

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é de uma forma, ora de outra? O igual em si, o belo

em si, todas as coisas em sim mesmas, o ser, admitem

qualquer alteração? Ou cada uma dessas realidades,

uniformes e existentes por si mesmas, não se

comportará sempre da mesma forma, sem jamais

admitir de nenhum jeito a menor alteração?

Forçosamente, Sócrates, falou Cebes, sempre

permanecerá a mesma e do mesmo jeito.

E com relação à multiplicidade das coisas belas:

homens, cavalos, vestes e tudo o mais da mesma

natureza, que ou são iguais ou belas e recebem a

própria designação daquelas realidades: conservam-se

sempre idênticas ou, diferentemente das essências,

não são jamais idênticas, nem com relação às outras

nem, por assim dizer, consigo mesmas?

Isso, justamente, Sócrates, é o que se observa,

respondeu Cebes; nunca se conservam as mesmas.

E não é certo também que todas essas coisas se

podem ver e tocar ou perceber por intermédio de

qualquer outro sentido, ao passo que as essências, que

se conservam sempre iguais a si mesmas, só podem

ser apreendidas pelo raciocínio, por serem todas elas

invisíveis e estarem fora do alcance da visão?

O que dizes, observou, é a pura verdade.

Achas, então, perguntou, que podemos admitir duas

espécies de coisas [seres]: umas visíveis e outras

invisíveis?

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Podemos, respondeu.

Sendo que as invisíveis são sempre idênticas a si

mesmas, e as visíveis, o contrário disso?

Podemos, respondeu.

Sendo que as invisíveis são sempre idênticas a si

mesmas, e as visíveis, o contrário disso?

Admitamos também esse ponto, respondeu124.

Como podemos perceber, a característica de Ideia

como ser em sentido pleno e absoluto está em perfeita

sintonia com as outras duas características apresentadas

anteriormente. Por sua vez, ela mantém ainda uma relação

essencial com os conceitos de imutabilidade e perseidade

que veremos logo à frente.

A temática das Ideias como o verdadeiro ser é

também retomada no Fédro, quando Platão descreve o

Hiperurânio125, isto é, o mundo das Ideias. Na República126,

ela recebe ampliações numa perspectiva gnosiológica,

124PLATÃO. Fédon. In: Diálogos de Platão. Tradução de Carlos

Alberto Nunes. Belém: UFP, 1980, 78 D – 79 A, grifo nosso. 125 Hiperurânio = supraceleste, “lugar acima do céu”. Indica um lugar

que não é absolutamente um lugar no sentido físico, mas um lugar

metafísico, ou seja, a dimensão do supra-sensível. Cf. PLATÃO.

Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 247 C – E. 126 Cf. PLATÃO. A República. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,

1976, 476 E et seq.

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culminando na afirmação de que somente o verdadeiro ser é

verdadeiramente cognoscível.

3.2.1.3 A imutabilidade e a perseidade

A imutabilidade e a perseidade são verdadeiramente

explicitações e determinações da característica abordada

anteriormente, isto é, de puro ser. É por essas duas

características, particularmente a de perseidade, que

surgiram grandes críticas a Platão, seguindo principalmente

a esteira aberta por Aristóteles.

Não temos o intuito de abordar essa questão

detalhadamente aqui. Todavia, lembramos que, ao referir-se

às Ideias como realidades em si e por si – belo em si, bem

em si etc. – Platão queria expressar o caráter de imobilidade

que a Ideia possui. Deste modo, como lembra Giovanni

Reale, essa característica das Ideias “foi entendida

freqüentemente em sentido hipostático, como se ela

revelasse claramente que a Idéia não é mais que a

ontologização do conceito ou a entificação do abstrato, ou

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seja, a hipostatização do universal”127. Por hora, reiteramos

que a critica de Aristóteles é infundada.

Ao acentuar a imobilidade e a objetividade das Ideias,

Platão visa combater duas formas de relativismo: de um

lado, o relativismo heraclitiano que afirmava o perene fluxo

e a radical mobilidade de todas as coisas – culminando

numa total incognoscibilidade e ininteligibilidade do mundo

sensível; de outro, o relativismo sofístico-protagoriano que

negava a objetividade da realidade externa e dos valores –

instituindo o indivíduo como medida e critério último de

verdade.

Vejamos como a característica da imutabilidade das

Ideias emerge na polêmica contra o heraclitismo,

apresentada no Crátilo:

Sócrates – Detenhamo-nos mais particularmente

noutro aspecto do problema, para não nos

deixarmos enganar pela multidão de

palavras de igual orientação. Parece, de

fato, que os instituidores dos nomes os

formaram partindo do pressuposto de que

todas as coisas passam e se encontram num

fluxo perpétuo. É a idéia que eu faço de sua

maneira de pensar. Mas pode muito bem

acontecer que a explicação seja outra: eles

é que, tendo caído numa espécie de

redemoinho, ficaram atordoados e nos

arrastam na mesma direção. Reflete, meu

admirável Crátilo, no que tenho sonhado

127 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

130.

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tantas vezes: se é licito afirmar que existe o

belo e o bom em si, e, nas mesmas

condições, qualquer coisa particular, ou não?

Crátilo – Parece-me que sim, Sócrates.

Sócrates – Então examinemos esse ponto [aquele em

si mesmo], sem procurarmos saber se é belo

este ou aquele rosto, ou o que quer que seja,

e se tudo parece encontrar-se num fluxo

perpétuo, e perguntemos se o belo em si não é sempre igual a si mesmo?

Crátilo – Necessariamente.

Sócrates – Se a todo momento o belo nos escapa,

poderemos com propriedade afirmar dele,

primeiro, que é aquilo mesmo que dissemos,

e depois, que é de determinada natureza, ou

será forçoso que no instante em que falamos

ele se modifique e desapareça, deixando de ser o que era?

Crátilo – Necessariamente.

Sócrates – De que modo, então, o que nunca se

encontra no mesmo estado poderá ser

alguma coisa? Se num determinado

momento ele se conservasse igual, é

evidente que durante esse tempo não

passaria por nenhuma transformação. Por

outro lado, se permanecesse sempre igual e

fosse sempre o mesmo, como poderia

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transformar-se e movimentar-se, se nunca

chegasse a perder a forma inicial?

Crátilo – De nenhum jeito fora possível.

Sócrates – E mais: nunca poderia ser conhecido por

ninguém; pois no instante preciso em que o

observador se aproximasse dele para

conhecê-lo, ele se transformaria noutra

coisa diferente, de forma que não se

poderia conhecer a sua natureza ou o seu

estado. Não há conhecimento que conheça o

objeto do conhecimento que não se

encontra em nenhum estado.

Crátilo – É assim mesmo como dizes128.

Como podemos observar, declarando a imutabilidade

das Ideias, Platão afirma que “a verdadeira causa que

explica o que muda não pode, ela mesma, mudar, caso

contrário não seria a ‘verdadeira causa’, ou seja, não seria a

razão última”129. Observemos agora como Platão apresenta a

perseidade, enquanto objetividade absoluta das Ideias frente

ao relativismo sofístico-protagoriano:

Sócrates – Então, vejamos agora, Hermógenes, se és

também de parecer que com os seres se dá o

mesmo, possuindo cada um sua existência

particular, como dizia Protágoras, quando

128 PLATÃO. Crátilo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1973, 439

B – 440 A. 129 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit. p.

133.

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afirmou que o homem é a medida de todas

as coisas, e que, por isso, conforme me

parecem as coisas, tais serão elas,

realmente, para mim, como o serão para ti

conforme te parecem. Ou és de opinião que

sua essência seja, de algum modo, permanente?

Hermógenes – Já me aconteceu, Sócrates, algumas

vezes, em minha perplexidade, ser levado a

adotar a opinião de Protágoras. Contudo, não me parece que seja muito certa.

Sócrates – Como assim? Em algum tempo já chegaste

a admitir que não existe em absoluto homem ruim?

Hermógenes – Não, por Zeus. Já me tem acontecido

muitas vezes aceitar que há homens ruins, e

até mesmo em grande número.

Sócrates – E então? E homens inteiramente bons, nunca chegastes a encontrar?

Hermógenes – Pouquíssimos.

Sócrates – Porém já os encontraste?

Hermógenes – Sim, já encontrei.

Sócrates – E de que modo pensas? Não te parece que

sejam judiciosos os indivíduos bons de todo,

e insensatos os inteiramente maus?

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Hermógenes – É isso, justamente, o que penso.

Sócrates – Como poderá dar-se, então, no caso de

estar Protágoras com a razão, e ser, de

fato, verdade que as coisas são como

parecem ser a cada um, que entre nós uns sejam judiciosos, e outros insensatos?

Hermógenes – Não é possível.

Sócrates – Por outro lado, no caso de haver diferença

entre a razão e a sem-razão, hás de admitir

também, sem vacilações, que dificilmente

estará certa a proposição de Protágoras.

Pois, em verdade, ninguém poderia ser mais

judicioso do que o outro, se a verdade fosse

o que parece a cada pessoa.

Hermógenes – É muito certo.

Sócrates – Mas também não admitirás com Eutidemo,

quero crer, que todas as coisas são

semelhantes simultaneamente e sempre

para todo o mundo. Desse jeito, umas

pessoas não poderão ser boas, e outras

más, se a virtude e o vício ocorrerem

sempre juntos e ao mesmo tempo em todos os indivíduos.

Hermógenes – É certo o que dizes.

Sócrates – Ora, se as coisas não são semelhantes ao

mesmo tempo, e sempre, para todo o

mundo, nem relativas a cada pessoa em

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particular, é claro que devem ser em si

mesmas de essência permanente; não estão

em relação conosco, nem na nossa

dependência, nem podem ser deslocadas em

todos os sentidos por nossa fantasia, porém

existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural.

Hermógenes – Parece-me que é assim mesmo, Sócrates130.

Mesmo no Parmênides, a objetividade das Ideias é

reafirmada:

Tudo isso, Sócrates, voltou Parmênides a falar, e

muito mais ainda está implícito nas idéias, no caso de

terem estas existência própria e concebê-las alguém

como algo independente. Quem ouve tal coisa fica

perplexo, sendo levado a contestar sua existência ou,

na hipótese de admiti-las, será obrigado a declarar

que por força terão de ser desconhecidas da natureza

humana. Quem assim se manifesta sabe o que diz e,

conforme observamos a pouco, não será fácil

demovê-lo de suas convicções. Só um indivíduo de

dotes extraordinários será capaz de compreender que

para cada coisa há um gênero à parte com existência

independente, e alguém mais bem dotado, ainda, para

descobrir tudo isso e ensiná-lo devidamente aos outros, por meio de uma análise exaustiva.

130 Crátilo, 385 E – 386 E.

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Declaro-me de acordo contigo, Parmênides,

observou Sócrates, pois quando disseste concerta plenamente com minha maneira de pensar131.

A perseidade, isto é, a objetividade das Ideias, é

atestada pela permanência, pela estabilidade de sua essência.

Assim, possuem uma completa independência em relação ao

indivíduo, ao sujeito. A própria experiência comprova isso.

Portanto, o reconhecimento dessa total objetividade se

impõe e exige nosso reconhecimento.

3.2.1.4 A unidade

O caráter unitário metafísico das Ideias deve ser

compreendido numa dupla perspectiva, intimamente ligadas

entre si: a multiplicidade de coisas sensíveis que delas

participam; a concepção platônica de filósofo. De fato,

como lembra Giovanni Reale, “cada Idéia é uma ‘unidade’

e, como tal, explica as coisas sensíveis que dela participam,

constituindo desse modo uma multiplicidade uni-ficada”132.

E acrescenta: “o conhecimento dialético consiste em saber

uni-ficar a multiplicidade das coisas numa visão sinótica,

131 PLATÃO. Parmênides. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1974,

134 E – 135 B. 132 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

136.

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reunindo a multiplicidade sensível na unidade da Idéia da

qual as coisas dependem”133.

Vejamos agora o texto da República em que a

natureza do filósofo é apresentada em sintonia com a

unidade metafísica das Ideias:

E para ti, perguntou, quais são os verdadeiros filósofos?

Os que se comprazem, disse, na contemplação da verdade.

É muito certo, objetou; mas, como explicas semelhante fato?

Não me fora fácil explicar, lhe disse, se estivesse a

tratar com outra pessoa. Mas tenho a certeza de que vais concordar com o seguinte.

Que é?

Uma vez que o belo é o oposto do feio, trata-se de

dois conceitos.

Como não?

Se são dois, cada um constitui uma unidade.

133 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. cit.,

p.154: “la conoscenza dialettica consiste nel saper uni-ficare la

molteplicità delle cose in una visione sinottica, raggruppando la

molteplicità sensoriale nell’unità dell’Idea dalla quale le cose

dipendono”.

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Isso também.

O mesmo é válido para os conceitos do justo e do

injusto, do bem e do mal, e para todos, isoladamente

considerados: constituem unidades; mas, como cada

um deles só nos surge em combinação com outro, com corpos e ações, por isso nos parece múltiplo.

É justo o que dizes, observou134.

O filósofo é aquele capaz de unificar a multiplicidade

do sensível na Ideia. Os não-filósofos se perdem na

multiplicidade135, o dialético, ao contrário, vê o conjunto136.

3.2.2 O “dualismo” platônico

Diante do que foi dito, é possível entender que Platão

teria formulado uma concepção dualista da realidade. Como

afirmamos anteriormente, com a segunda navegação, temos

a descoberta de um novo plano de ser. Com a teoria das

Ideias, a distinção entre sensível e supra-sensível fica ainda

mais evidente. Entretanto, se, na antropologia platônica, a

interpretação dualista do homem é facilmente admissível e

sustentável, o mesmo não ocorre em sua metafísica.

Na metafísica platônica, encontramos uma distinção

entre dois planos de ser, e não uma simples oposição. 134 A República, 475 E – 476 A. 135 Cf. A República, 484 B. 136 Cf. A República, 537 C.

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Segundo Giovanni Reale137, o dualismo não se justifica nem

mesmo na separação das Ideias das realidades sensíveis,

isto é, na sua transcendência. Não obstante, as Ideias são

tanto imanentes quanto transcendentes138. Sua imanência

indica aquilo que permanece tornando as coisas

cognoscíveis. Sua transcendência eleva-as ao patamar de

causa do sensível. É na transcendência das Ideias que

encontramos o fundamento de sua imanência.

Lembramos que, como o sensível não explica a si

mesmo, é preciso recorrer a uma causa que o transcenda.

Assim, o sensível é explicado pelo supra-sensível, o móvel

pelo imóvel, o múltiplo pelo uno e assim por diante. É

justamente a transcendência das Ideias que qualifica a

função de causa verdadeira que elas cumprem.

Como sabemos, Platão manteve-se convicto sobre a

existência de dois diferentes planos de ser. Seus últimos

diálogos são prova disso. Para Giovanni Reale, o erro que

conduz à afirmação do dualismo consiste em confundir a

distinção dos dois planos de ser em sua diferença estrutural

de natureza com sua separação, considerando, em certo

sentido, as Ideias como “’supercoisas’ fisicamente e não

metafisicamente separadas das coisas, como se elas não

137 Cf. REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit.,

p. 139. 138 Quanto à afirmação da imanência e da transcendência das Ideias,

vale a pena conferir o esquema de David Ross reproduzido por

REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p. 140

et seq. Nele, são enumeradas as expressões que Platão usou para

indicar tanto a imanência quanto a transcendência das Ideias.

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fossem mais do que o sensível mistificado e, como tal,

contraposto ao sensível”139.

A segunda navegação afirma a transcendência do

mundo inteligível não como simples separação do mundo

sensível, mas como sua causa metaempírica, sua razão de

ser. Assim, o “dualismo” platônico se configura, nada mais

nada menos, no “dualismo de quem admite a existência de

uma causa supra-sensível como razão de ser do próprio

sensível, convencido de que o sensível, por sua

autocontraditoriedade, não possui uma razão de ser total de

si mesmo”140.

O grande símbolo da transcendência das Ideias foi

apresentado por Platão no Fédro, com o mito do

Hiperurânio. Vejamos o texto abaixo:

139 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

143. Quem também defende a unidade do mundo em Platão,

recusando a interpretação dualista, é Jean-Paul Dumont. Para sustentar

tal posição, ele serve-se das imagens apresentadas pelo próprio Platão

no final do livro VI e no começo do livro VII da República: a célebre

comparação da linha e a alegoria da caverna. Eis a passagem:

“Contrariamente ao que se ouve dizer (e pelo que se deixam levar

certos tradutores de A República), não existem para Platão dois

mundos, onde um seria inteligível e outro sensível. Há apenas um

mundo, proporcionalmente, analogicamente e geometricamente

dividido ou segmentado em lugares e colocado sobre o império do

Bem (A República), do Um (Parmênides), do Um-Bem (ensinamento

não-escrito) que está situado além da ousia, da realidade – mesmo

inteligível – e da existência”. DUMONT, J-P. Elementos de História

da Filosofia Antiga. Brasília: UnB, 2004, p. 301. 140 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

143.

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A região supraceleste [i.é, o Hiperurânio] nunca foi

cantada por nenhum poeta cá de baixo, nem nunca

poderá ser bastantemente enaltecida. O que há é o

seguinte, pois é preciso coragem para dizer a

verdade. A essência que realmente existe e é sem

corpo e sem forma, impalpável e só pode ser

percebida pelo guia da alma, o intelecto, sobre ser o

objeto do verdadeiro conhecimento, tem aqui a sua

sede. Ora, o pensamento de Deus, nutrido

exclusivamente de inteligência e de conhecimento

puro, tal como se dá, aliás, com toda alma que se

preocupa com receber o conhecimento que lhe

convém, alegra-se quando chega o tempo de voltar a

perceber a realidade, e se nutre com delícias na

contemplação da verdade, até que o movimento

circular a traga de novo para o ponto de partida. No

decurso dessa revolução contempla a justiça em si

mesma, contempla a temperança, o conhecimento,

não o conhecimento passível de crescimento que

difere de acordo com o objeto com que se relaciona e

a que em nossa curta existência damos a

denominação de seres, mas o conhecimento do que

verdadeiramente existe. Depois de haver

contemplado as outras realidades verdadeiras e delas

se alimentado, mergulha a alma de novo no interior

do céu e retorna para sua morada. Lá chegando, o

cocheiro leva os cavalos para a mangedoura, lança-lhes ambrósia e depois dá-lhes a beber néctar141.

Lembramos ainda que o mundo ideal, ou seja, o

Hiperurânio, possui uma estrutura hierarquicamente 141 PLATÃO. Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 247

C – E.

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organizada em que as Ideias inferiores implicam as

superiores, numa ascensão ininterrupta, até chegar às Ideias

que ocupam o vértice da hierarquia, em que está a Ideia que

condiciona as outras e não é condicionada por nenhuma

delas. Este princípio absoluto e incondicionado Platão

identificou com a Ideia do Bem142.

3.3 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS

PRIMEIROS E SUPREMOS

Enquanto a teoria das Ideias compreende a primeira

fase da segunda navegação, a doutrina dos Princípios,

também denominada como Protologia143, constitui sua etapa

final. Quando falamos em doutrina dos Princípios, estamos

falando daquela outra tese, aquela de maior valor144, capaz

de garantir um resultado satisfatório frente às limitações da

teoria das Ideias. O ensinamento mais precioso145 que foi

confiado à oralidade dialética. Estes Princípios supremos

são o Uno e a Díade do grande e do pequeno:

142 Na República – 507 A – 509 C, Platão referiu-se expressamente,

porém de modo incompleto, sobre esse princípio incondicionado e

absoluto. O restante do que sabemos sobre esse princípio do qual

derivam todas as Ideias foi transmitido pela tradição indireta. 143 Discurso sobre os Princípios primeiros. 144 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 47. 145 Cf., supra, Capítulo primeiro, p. 29.

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O Uno não é, evidentemente, o número um, mas um

princípio formal, que é fonte de determinação em

relação ao princípio material; a Díade, que não é o

número dois, mas uma multiplicidade ideal

indeterminada que serve de substrato para a ação

delimitante do Uno que a República compara ao Bem146.

3.3.1 A duplicidade de nível de fundação

metafísica

Jean-Paul Dumont lembra que uma de nossas

principais fontes sobre o ensinamento oral de Platão, ou

seja, sobre as Doutrinas não-escritas, e, portanto, sobre a

doutrina dos Princípios, são os “testemunhos relativos a

uma conferência Sobre o Bem, que Platão teria feito

justamente após a fundação da Academia e que, em seguida,

ele teria várias vezes retomado”147. Ao ouvi-la, alguns de

seus discípulos teriam tomado nota, dentre eles, Aristóteles,

Heráclides do Ponto, Hestíaios e Xenócrates.

146 BRISSON, L. Leituras de Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003,

p. 60. 147 DUMONT, J-P. Op. cit., p. 287.

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De fato, a conferência ou o ciclo de conferências

Sobre o Bem parece configurar-se numa tentativa frustrada,

empreendida por Platão, visando levar sua doutrina para

fora da Academia. Vejamos o testemunho de Aristóxeno de

Tarento148 sobre estes acontecimentos:

Como Aristóteles não se cansava de contar, é o que

experimentavam a maioria daqueles que foram os

ouvintes da lição de Platão Sobre o Bem. Cada qual,

relatava Aristóteles, anuía, supondo que aprenderia

algo sobre o que tradicionalmente se considera como

bens para o homem: riqueza, saúde, força física ou

qualquer outra maravilhosa felicidade em geral. Mas,

em se averiguando que preleções de Platão versavam

sobre as matemáticas, os números, a geometria e a

astronomia, concluindo que o Bem é um, imagino

então que isso pareceu-lhes algo totalmente estranho.

Por isso, alguns experimentaram uma sensação de

desprezo pelo que acabavam de ouvir e outros

manifestaram sua reprovação149.

Dumont afirma também que algumas obras ditas

perdidas de Aristóteles, conhecidas somente por citações ou

comentários, conteriam os testemunhos sobre o ensinamento

oral de Platão. As obras a que ele se refere são os livros

Sobre o bem, Sobre as idéias, Sobre os pitagóricos, Sobre a

filosofia e o Protrético150.

148 Discípulo de Aristóteles e um notório antiplatônico. 149 ARISTÓXENO. Elementos de harmonia. II, p. 39-40, Da Rios

apud BRISSON, L. Op. Cit., p. 111. 150 DUMONT, J-P. Op. Cit., p. 284.

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110

Com efeito, admitir a Protologia é sinônimo de

admitir um duplo nível de fundação da metafísica platônica.

Para uma melhor compreensão dessa tese, lembremos

daquela convicção basilar que norteia o modo de pensar dos

gregos: “dizemos conhecer algo quando pensamos conhecer

a causa primeira” 151. Em outras palavras, conhecer é reduzir

a multiplicidade do sensível a sua causa última, ou seja,

conhecer é unificar.

Platão explica a pluralidade do sensível reduzindo-o à

unidade da Ideia. Não obstante, com a introdução da teoria

das Ideias, surge um ulterior problema: há tanto Ideias de

realidades substanciais, ou seja, homens, animais, vegetais

etc., quanto das qualidades e aspectos redutíveis à unidade,

isto é, belo, grande, duplo etc. Como resolver o problema da

pluralidade das Ideias?

Na verdade, estamos diante de um paradoxo: a

multiplicidade do sensível é explicada pelas Ideias que são

uma unidade, no entanto, cria-se uma multiplicidade

inteligível! Pois bem, em conformidade com a máxima que

rege o pensamento grego, Platão sente a necessidade de

subir a um segundo nível de fundação metafísica. Giovanni

Reale apresenta claramente como o raciocínio se articula:

O esquema de raciocínio que sustenta a duplicidade

de níveis de fundação metafísica é o seguinte. Como a

esfera do múltiplo sensível depende da esfera das

Idéias, assim, analogamente, a esfera da

multiplicidade das Idéias depende de uma ulterior

esfera de realidade, da qual derivam as próprias

151 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2005, A 983 a, p.

15.

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Idéias, e esta é a esfera suprema e primeira em

sentido absoluto152.

A esfera suprema e primeira em sentido absoluto é

constituída, justamente, pelos Princípios primeiros e

supremos. É sobre eles que versam as Doutrinas não-

escritas. É o discurso protológico que poderá explicar quais

são os princípios e como eles se relacionam com as Ideias,

fornecendo uma explicação da totalidade do real.

A tradição indireta conservou vários documentos

sobre a duplicidade de nível de fundamentação metafísica

operada por Platão. Contentamos-nos em apresentar dois

breves textos. Comecemos com Aristóteles:

Portanto, posto que as Formas são causas das outras

coisas [primeiro nível], Platão considerou os

elementos constitutivos das Formas como os

elementos de todos os seres. Como elemento material

das Formas ele punha o grande e o pequeno, e como causa formal o Um [segundo nível]153.

E agora um testemunho de Sexto Empírico154:

Fica claro [...] que os princípios dos corpos

captáveis só com o pensamento devem ser

incorpóreos. Se, portanto, existem entes incorpóreos

que preexistem aos corpos, nem por isso eles são sem

mais, necessariamente, elementos das coisas que

152 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

159. 153 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A 987 B, p. 37. 154 Médico e filosofo cético do século II.

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112

existem e princípios primeiros. Consideremos, por

exemplo, como as Idéias, que segundo Platão são

incorpóreas, preexistam aos corpos, e como qualquer

coisa que se gera gera-se com base nas relações com

elas [primeiro nível]. Ora, não obstante isso, elas

não são os princípios primeiros das coisas, uma vez

que cada Idéia considerada individualmente é dita

uma, mas considerada junto com outra ou outras é

dita duas, três, quatro, de modo que deve existir algo

que está acima da sua realidade, ou seja, em cuja

participação o um, o dois, o três ou um número maior se predica delas.

[...] Os princípios dos seres são dois, a primeira

unidade, em cuja participação todas as unidades que

contam são concebidas justamente como unidades, e

a dualidade indeterminada, em cuja participação

todas as dualidades determinadas são, justamente, dualidades [segundo nível]155.

155 SEXTO EMPÍRICO. Contro i matematici apud KRÄMER, H.

Platone e i Fondamenti della Metafísica. Terza edizione. Milano: Vita

e Pensiero, 1989, p. 391 et seq.: “Risulta dunque chiaro [...], che i

principi dei corpi coglibili con solo pensiero debbono esse incorporei.

Se, pertanto, ci sono enti incorporei che esistono anteriormente ai

corpi, non per questo essi sono senz’altro necessariamente elementi

delle cose che esistono e principi primi. Consideriamo, ad esempio,

como le Idee, che secondo Platone sono incorporee, preesistano ai

corpi, e come ciascuna cose che si genera si generi sulla base di

rapporto con esse. Orbene, ciononostante, esse non risultano principi

delle cose, dal momento che ciascuna Idee considerata singolarmente

si dice che è una, mentre considerata insieme ad un’altra o a più altre,

è detta dua, tre, quatro, cosieché deve esistire qualcosa che è ancora al

di sopra della loro realità, ossia il numero, per participazione al quale

l’uno, il due, il tre, o un numero maggiore si predica di esse.

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Como podemos observar, os Princípios estão no

vértice do sistema metafísico platônico. Resta nos

esforçarmos para compreender o que Platão entendia

quando falava do Uno e da Dualidade indeterminada como

Princípios primeiros e supremos e porque ele admite dois

Princípios originários e não apenas um.

3.3.2 O sistema metafísico bipolar

O que, nos escritos, Platão identifica com Ideia que

condiciona todas as outras ideias e não é condicionada por

nenhuma delas, ou seja, o princípio absoluto e

incondicionado – o Bem – no ensinamento oral, conservado

e transmitido pela tradição indireta, ele identifica com o

Uno e a Díade indefinida do Grande e do Pequeno. Sendo

assim, podemos propor o seguinte questionamento: Por que

Platão admite como originários dois Princípios e não se

refere a um único Princípio?

Lembremos que “o problema metafísico por

excelência é, para os gregos, o seguinte: ‘Por que existem os

[...] I principi degli esseri sono dunque due, la prima unità, per

partecipazione a quela quale tutte le unità che si contano sono

concepite appunto come unità, e la dialità indeterminata per

partecipazione alla quale tutte le dualità determinate sono appunto

dualità”.

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muitos?’, ou: ‘Por que e como, do Uno, derivam os

muitos?’”156 Como sabemos, essa questão foi elevada ao

primeiro plano pelos eleatas que apregoavam a total

impossibilidade do não-ser, culminando na negação da

multiplicidade e incorrendo num monismo radical.

Ora, ao estabelecer a Dualidade indeterminada como

um dos Princípios, Platão busca justificar a multiplicidade

dos seres num Princípio que seja a própria raiz da

multiplicidade. Acerca disso, Alexandre de Afrodísia157

apresenta um testemunho muito esclarecedor:

Além disso, convencido de ter demonstrado que o

igual e o desigual são princípios de todas as coisas,

seja das coisas que são por si seja das coisas que são

seu oposto (de fato, ele tentava reduzir todas as

coisas a estas, como as mais simples), atribuiu o

igual à unidade e o desigual ao excesso e ao defeito:

de fato, a desigualdade está em duas coisas, ou seja,

no grande e no pequeno, que são, respectivamente, o

que é por excesso e o que é por defeito. Por isso

[Platão] chamou-a também de dualidade

indeterminada, porque nem um nem outro, isto é, nem

o que excede nem o que é excedido, enquanto tal, é determinado, mas indeterminado e infinito158.

156 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

162. 157 Comentador de Aristóteles do final do século II e início do século

III. 158 ALEXANDRE DE AFRODÍSIA. Commentario alla Metafisica di

Aristotele apud KRÄMER, H. Op. cit., p. 383: “Inoltre, convinto di

aver dimostrato che l’uguale e l’ineguale sono principi di tutte le cose,

sia delle cose che sono per sé sia delle cose che sono fra loro opposte

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Num texto de Simplício159, a Díade é apresentada

como uma espécie de matéria inteligível, uma

multiplicidade in-determinada, fonte tanto da pluralidade

horizontal quanto da gradação hierárquica:

Visto que muitas vezes Aristóteles afirma que Platão

diz que a matéria é o grande e o pequeno, deve-se

saber que Porfírio atesta que Dercílides, no livro XI

da sua Filosofia de Platão, no qual trata dessa

questão, cita um texto de Hermodoro, amigo de

Platão, extraído do tratado dedicado por ele a

Platão, do qual fica claro que Platão pôs a matéria

no âmbito do indefinido e do indeterminado e a

explicou partindo das coisas que admitem o mais e o

menos, em cujo grupo entram também o grande e o pequeno160.

(infati egli cercava di ricondurre tutte le cose a queste como alle più

semplici), attribuì l’uguale all’unità e il desiguale all’eccesso e al

difetto: infatti l’ineguaglianza sta in due cose, ossia nel grande e nel

piccolo, che sono, rispettivamente, ciò che è per eccesso e ciò che è

per difetto. Perciò [Platone] la chiamò anche dualità indeterminata,

perché né l’uno né l’altro, ossia né ciò che eccede né ciò che è

ecceduto, in quanto tale, è determinato, ma indeterminato ed infinito”. 159 Comentador neoplatônico do fim do século IV. 160 SIMPLÍCIO. Commentario alla Fisica di Aristotele apud

KRÄMER, H. Op. cit., p. 401: “Poiché più volte Aristotele afferma

che Platone dice che la materia è il grande e piccolo, si deve sapere

che Porfirio attesta che Dercillide nel libro XI della sua Filosofia di

Platone, in cui viene svolta una tratazione della materia, cita un texto

di Ermodoro, amico di Platone, desunto dal trattato di questi dedicato

a Platone dal quale risulta manifesto che Platone ha posto la materia

nell’ambito dell’indefinito e dell’indeterminato e l’ha chiarita

partendo da quelle cose che ammettono il più e il meno, nel novero

delle quali rientrano anche il grande e il piccolo”.

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Então, Uno e Díade são Princípios complementares,

isto é, exigem-se estruturalmente, pois a pluralidade e a

gradação dos seres nascem da ação do Uno na Díade, ou

seja, da determinação da multiplicidade indeterminada da

Díade.

3.3.2.1 O Bem como Uno e como suprema medida

A função essencial do Bem e o que dela deriva, tal

qual é exposta na República161, por analogia com o Sol,

pode ser apresentada da seguinte forma:

a) a Ideia do Bem dá às coisas conhecidas a verdade e

a quem as conhece a faculdade de conhecer sua

verdade;

b) assim como a vista e o visto são afins ao Sol,

também o conhecimento e a verdade são afins ao

Bem;

c) como o Sol está acima da vista e do visto, o Bem

também está acima do conhecimento e da verdade;

d) assim como o Sol causa a geração, o crescimento e

a nutrição das coisas, ainda que ele próprio não

esteja implicado na geração, analogamente o Bem

causa o ser e a sua essência, mesmo não sendo o

ser ou a essência, mas superior por dignidade e

por potência.

161 Cf., A República, 506 D – 509 C.

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Platão define o Bem como princípio absoluto e

incondicionado, ou seja, a Ideia que condiciona todas as

outras e não é condicionada por nenhuma delas. O Bem está

acima do ser e, como tal, é causa do ser e de sua essência, é

causa da faculdade de conhecer do intelecto e é também

causa de cognoscibilidade das coisas conhecidas.

Sabemos que, na República, o Bem não é definido

como Uno, entretanto, há precisas indicações neste sentido.

Dois testemunhos de Aristóteles são muito esclarecedores:

“Platão, ademais, atribui a causa do bem ao primeiro de seus

elementos e a causa do mal ao outro, como já tinham

tentado fazer – como dissemos – alguns filósofos anteriores,

por exemplo, Empédocles e Anaxágoras”162. Ainda na

Metafísica, o Estagirita afirma: “entre os que afirmam a

existência de substâncias imóveis, alguns dizem que o Um é

o Bem-em-si; eles pensavam que sua essência era,

justamente, o Um”163.

Ademais, vários outros testemunhos da tradição

indireta também confirmam que a essência do Bem é, com

efeito, o Uno. Todavia, o que se apresenta como a prova

decisiva e fundamental a respeito disso são as inúmeras

alusões fornecidas pelo próprio Platão.

Lembremo-nos que, logo depois de ter afirmado que o

Bem produz o ser e que é superior ao ser por dignidade e

poder, Platão põe, na boca de Glauco, o termo mais

emblemático possível, o nome do deus que simbolizava para

os pitagóricos o Uno: “Apolo! Quanta superioridade!”164

162 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A 988 a, p. 39. 163 Ibidem, N 1091 b, p. 683. 164 A República, 509 C.

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Como lembra Giovanni Reale, “do ponto de vista

etimológico, note-se, A-polo pode ser, com efeito, entendido

como ‘privação do múltiplo’, e justamente jogando com o α

privativo e com πολλόυ = muito”165.

E se Platão encerra sua exposição Sobre o Bem

deixando entrever que a essência do Bem é, justamente, o

Uno. É de singular importância atentar para o fato de ele ter

iniciado a exposição acenando justamente para o conceito

de medida exatíssima, isto é, “de medida suprema de toda a

forma de multiplicidade, que, como sabemos, é a

característica do Uno”166. Por sua vez, esse conceito será

novamente retomado no Político, no qual é apresentado

como “padrão ideal”167 e “justa medida”168, ou seja, o meio

entre os extremos do muito e do pouco.

Como podemos perceber, nestes termos, a noção de

justa medida configura-se numa delimitação e, como tal, é

unidade-na-multiplicidade. Por sua vez, o discurso da justa

medida e do justo meio refere-se ao Uno entendido como

165 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

258. Acreditamos ser oportuno reproduzir aqui o testemunho de

Plotino (fundador do neoplatonismo no século III) a respeito do texto

em questão: “O nome Uno só indica negação quanto à multiplicidade;

daí os pitagóricos o designarem entre si, simbolicamente, com o nome

de Apolo, como negação dos muitos”. PLOTINO. Enéadas. Vols. V-

VI. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, 1998, p. 33: “El nombre Uno

sólo indica negación con respecto a la multiplicidad; de ahí que los

pitagóricos lo designasen entre ellos, simbólicamente, con el nombre

de Apolo, como negación que es de la pluralidad”. 166 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

259. 167 Político, 283 E. 168 Político, 284 A.

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medida exatíssima. De fato, nos fragmentos de um diálogo

de Aristóteles, homônimo ao diálogo platônico em questão,

encontramos a seguinte afirmação: “[...] o Bem é a medida

perfeitíssima de todas as coisas”169. Portanto, o Bem é o

Uno, e o Uno é a medida suprema de todas as coisas.

3.3.2.2 O ser como síntese dos Princípios supremos

Como afirmamos anteriormente, o Uno e a Díade são

Princípios complementares. A ação do Uno sobre a Díade

manifesta-se como uma espécie de “de-terminação e de-

finição do ilimitado, do indeterminado, do indefinido”170,

num processo de igualização do desigual. Os seres,

enquanto frutos da ação do Uno na Díade, manifestam-se

como uma unidade-na-multiplicidade. Com efeito,

Alexandre de Afrodísia declara que “cada coisa é una,

enquanto é algo definido e determinado”171. Todo ser é uno

por essência e é justamente sua unidade que lhe garante

certa determinação ou identidade, distinguindo-o dos outros

seres.

Quanto ao núcleo da doutrina dos Princípios,

podemos caracterizá-lo da seguinte forma: “o ser é produto

169 ARISTÓTELES. Político. Fr. 2 Ross apud REALE, G. Para uma

nova Interpretação de Platão. Op. cit., p. 314. 170 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

165 171 ALEXANDRE DE AFRODÍSIA. Commentario alla Metafisica di

Aristotele apud KRÄMER, H. Op. cit., p. 385: “Ciascuna cosa è infatti

una, in quanto à qualcosa di definido e di determinato”.

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de dois princípios originários e é, portanto, uma síntese, um

misto de unidade e de multiplicidade, de determinante e

indeterminado, de limitante e ilimitado”172. Neste misto de

unidade e multiplicidade, identidade e diferença se

implicam reciprocamente, no sentido de que tudo aquilo que

é é, ao mesmo tempo, idêntico e também diverso: idêntico a

si mesmo e diverso dos outros.

Enquanto princípios originários e constitutivos de

todo o ser, o Uno e a Díade não são ser, pois são anteriores a

ele. Por sua vez, “a unidade como princípio de determinação

está acima do ser, o princípio material indeterminado [i.é., a

Díade] como não-ser está abaixo do ser”173.

A temática referente à geração do ser por dois

princípios originários será retomada por Platão no Filebo.

Neste diálogo, as relações do Uno e dos Muitos são

concebidas como uma “dádiva dos deuses” conservada e

transmitida pelos antigos, que afirmam que tudo que existe

provém do Uno e do Múltiplo e traz consigo o finito e o

infinito174.

172 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

165 173 KRÄMER, H. Op. cit., p. 156: “L’unità come principio di

determinazione è al di sopra dell’essere, il principio materiale

indeterminato como non-essere à piuttosto al di sotto dell’essere”. 174 Cf. PLATÃO. Filebo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1974,

15 D – 17 A.

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4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E O

SIGNIFICADO E ALCANCE DA METAFÍSICA

DE PLATÃO

Para este capítulo, temos um duplo objetivo: em

primeiro lugar, queremos abordar as questões referentes à

figura teorética do Demiurgo – o grande mediador entre os

planos inteligível e sensível – que, como sabemos, foi

confiada por Platão a seus escritos e não somente à

oralidade dialética; em segundo lugar, pretendemos, ainda

que sinteticamente, vislumbrar o significado e o alcance da

metafísica de Platão.

4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO

A doutrina do Demiurgo não é fruto de uma

elaboração tardia de Platão. No Fédon, ela já está presente.

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E, embora seja retomada nos diálogos subsequentes, é

apenas ao tardio Timeu que Platão lhe dedica uma extensa

exposição. Com efeito, é no contexto da segunda navegação

que Platão fala pela primeira vez da Inteligência cósmica175.

E é tendo em vista esse grande mapa do projeto metafísico

de Platão que a doutrina do Demiurgo pode ser

compreendida adequadamente.

4.1.1 Cosmo sensível: uma emanação necessária?

A teoria das Ideias e a Protologia fornecem o

fundamento do cosmo sensível, mas não explicam porque e

como ele passou a existir. Não fosse pelo papel

desempenhado pela Inteligência Demiúrgica, Platão teria

deixado uma enorme lacuna em sua filosofia. Desejamos,

agora, abordar as questões referentes à geração do cosmo

físico operada pelo Divino Artífice, pois, como veremos, o

plano inteligível é apenas causa formal e necessária, mas

não eficiente do plano sensível.

Com a segunda navegação, Platão aporta num outro

plano de ser, um ”mundo” supra-sensível, hierarquicamente

organizado, que é causa formal do mundo sensível, também

hierarquicamente organizado: os Princípios primeiros e

supremos ocupam o vértice do mundo inteligível; logo

abaixo, está o plano das Ideias que é seguido pelo plano

175 Cf., PLATÃO. Fédon. In: Diálogos. São Paulo: Abril Cultural,

1979, 96 A 102 A, supra, Capítulo segundo, passim.

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intermediário dos entes matemáticos; por fim, encontramos

o plano do mundo sensível.

Entre esses planos, há uma relação de dependência

ontológica. Quando mal interpretada, essa relação pode

levar a redução da metafísica platônica a um sistema

rigorosamente dedutivo; a um emanacionismo. Quanto a

isso, as palavras de Hans Krämer são esclarecedoras:

Em geral, trata-se de uma relação ontológica de

derivação na qual o grau mais alto possui sempre um

prius ôntico com relação ao mais baixo (πρότερου –‛ύστερου φύσει) e no qual, para usar uma fórmula

platônica, o primeiro pode ser pensado sem o segundo,

mas não vice-verça, o segundo sem o primeiro

(συναναιρεĩν χα`ι μ`ŋ συναναιρεĩσθαι). Tem-se uma

relação de dependência unilateral não reversível, na

qual, todavia, o plano mais alto oferece somente

condições necessárias, mas não também suficientes

para o plano sucessivo. Com efeito, a Díade de grande-

e-pequeno desempenha um papel de fundamento em

todos os planos como princípio material, mas sem que

a sua diferenciação seja ulteriormente fundada; o

novum categorial permanece, portanto, sem explicação176.

176 KRÄMER, H. Platone e i Fondamenti della Metafísica. Terza

edizione. Milano: Vita e Pensiero, 1989, p. 164: “In generale, si tratta

di un rapporto ontologico di derivazione nel quale il gradino più alto

possiede sempre un prius ontico rispetto a quello più basso (πρότερου

–‛ύστερου φύσει) e in ciu, per dirla con formula platonica, il primo piò

essere o essere pensato senza il secondo, ma non, viceversa, il secondo

senza il primo (συναναιρεĩν χα`ι μ`ŋ συναναιρεĩσθαι). Si ha, dunque, un

rapporto di dipendenza unilaterale non rovesciabile, in ciu, tuttavia, il

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Segundo Krämer, o cosmo físico não é fruto de uma

simples dedução. A metafísica platônica não pode ser

compreendida como um sistema dedutivo. Quanto ao tipo de

sistema constituído pela filosofia platônica, Krämer afirma

que ele pode ser definido de uma maneira precisa:

Trata-se de uma forma de sistema que desenvolve

estruturas fundadoras e últimas diferenciadas e

graduadas hierarquicamente, e que, por isso, serve-se

de um metaforismo gerador. Todavia, não se pode

falar de um método dedutivo ou derivativo em sentido

estrito (particularmente, não se pode falar de uma

“emanação”). Isso depende do fato que a relação de

geração não é concebida de maneira radical que, para

tanto, seria necessária, e, em vez de fornecer as

condições necessárias e suficientes, limita-se a fornecer somente as condições necessárias177.

Ora, se o mundo inteligível não possui as condições

necessárias e suficientes para a dedução do mundo sensível,

e se o cosmo físico não é fruto de uma emanação, onde

piano più alto offre solamente condizioni necessarie, ma non anche

sufficienti per il piano successivo. Infatti, la diade di grande-e-piccolo

gioca un ruolo di fondamento in tutti i piani come principio materiale,

però senza che la sua differenziazone venga ulteriormente fondata: il

novum categoriale rimane, quindi, non spiegato”. 177 Ibidem, p. 177: “Si tratta di una forma di sistema che sviluppa

strutture fondative e ultimative differenziate e graduate

gerarchicamente, e che, per questo, si serve di un metaforismo

generativo. Di un metodo deduttivo o derivativo, a questo riguardo,

non si può tuttavia parlare in senso stretto (in particolare non si può

parlare di una ‘emanazione’). Questo dipende dal fatto che il rapporto

di principiazione non e sufficienti, si limita a fornire solamente le

condizione necessarie”.

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125

podemos encontrar a causa eficiente das coisas? No

Demiurgo. É ele que exerce o papel de causa eficiente na

produção/criação178 do mundo sensível. Configurando-se,

assim, no grande mediador entre mundo inteligível e mundo

sensível. Este Artífice possui uma existência pessoal. Pensa

e quer. É um ser capaz de consciência e vontade.

A esta altura, podemos propor alguns

questionamentos: A Inteligência Ordenadora é absoluta ou

está conexa a outro princípio? O que o Demiurgo tem em

vista ao exercer a função mediadora entre mundo inteligível

e mundo sensível? O que significa afirmar que o divino

Artífice produziu/criou o cosmo sensível? Qual a sua

relação com a Protologia?

4.1.2 A conexão estrutural entre a Inteligência

Ordenadora e o Bem

Recordemos que as questões metafísicas que

direcionaram o itinerário platônico pela busca da verdade

estão ligadas à causa da geração, da corrupção e do ser das

coisas179. Apesar de a tese da Inteligência Ordenadora

178 Podemos usar o termo criação como sinônimo de produção em

Platão, desde que não nos reportemos à doutrina bíblica da criação ex

nihilo. A criação do Deus bíblico é absoluta, pois não pressupõe nada.

No entanto, a atividade criadora do Demiurgo platônico pressupõe a

existência de duas realidades com um nexo metafísico bipolar

intrínseco: a realidade eterna e imutável e o princípio material

sensível. 179 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 40.

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remontar a Anaxágoras, coube a Platão, à luz da segunda

navegação, redirecioná-la e dar-lhe uma fundamentação

adequada, tornando-a, assim, capaz de explicar a causa de

tudo o que existe.

Contrariamente a Anaxágoras, Platão atribui à

Inteligência Ordenadora uma explicação de caráter

metafísico, ligando-a estreitamente e de maneira estrutural a

uma outra tese: “a Inteligência age e opera em função do

Bem, dispondo e ordenando cada coisa do melhor modo, em

sentido global e particular”180. E, para Platão, o

conhecimento do Bem comporta o conhecimento de seu

contrário. Portanto, a Inteligência só adquire pleno

significado se estiver estruturalmente conexa ao Bem181.

Nas palavras do próprio Platão:

Certo dia ouvi alguém que lia um livro de

Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador

e a causa de todas as coisas”. Isso me causou grande

alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto,

vantagem em considerar o espírito como causa

universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou

espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor

forma. Desse modo, se alguém desejar encontrar a

causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou

existe, deve encontrar, a respeito, qual é a melhor

180 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. 2. ed. São

Paulo: Loyola, 2004, p.100. 181 A Inteligência opera conexa com os dois Princípios das Doutrinas

não-escritas, pois, como diz Platão, ao encontrarmos o melhor,

encontramos necessariamente o que é pior, pois eles são objetos da

mesma ciência. Por sua vez, o Bem, o Melhor, está para o Uno, assim

como o Pior está para a Díade.

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maneira seja de ela existir, seja de sofrer ou de

produzir qualquer ação. E pareceu-me ainda que a

única coisa que o homem deve procurar é aquilo que

é melhor e mais perfeito, porque desde que ele tenha

encontrado isso, necessariamente terá encontrado o que é pior, visto que são objetos da mesma ciência182.

A conexão estrutural com o Bem deve ser o fio

condutor dos ulteriores desenvolvimentos da doutrina da

Inteligência. Visto que o Bem é comum a todas as coisas e o

melhor caracteriza a cada uma delas, serão os

desdobramentos do Bem e o critério do melhor que devem

explicar a razão de tudo. É precisamente isso que Platão

declara no Fédon:

Pensando dessa forma, exultei acreditando haver

encontrado em Anaxágoras o explicador da causa,

inteligível para mim, de tudo que existe. Esperava

que ele iria dizer-me, primeiro, se a terra é plana ou

redonda, e, depois de o ter dito, que à explicação

acrescentasse a causa e a necessidade desse fato,

mostrando-me ainda como é ela a melhor. Esperava

também que ele, dizendo-me que a terra se encontra

no centro do universo, ajuntasse que, se assim é, é

porque é melhor para ela estar no centro. Se me

explicasse tudo isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer

desejaria tomar conhecimento de outra espécie de

causas [...]. Nunca supus que depois de ele haver dito

que o Espírito [i.é. a Inteligência] os havia ordenado,

ele pudesse dar-me outra causa além dessa que é a

182 Fédon, 97 B – D.

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melhor e que é a que serve a cada uma em particular

assim como ao conjunto183.

Como sabemos, Anaxágoras não percebeu este nexo

estrutural como causa da ordem do universo184 e continuou a

dar muita importância aos elementos físicos. Escapou-lhe a

distinção entre causa e aquilo pelo qual a causa atua – a

distinção entre causa e concausa185, pois é o Bem em suas

várias manifestações que liga e mantém unidas todas as

coisas186. E é tendo-o em vista que a Inteligência opera.

Esta distinção da dupla ordem de causas será

retomada de forma esclarecedora por Platão no Timeu, ao

referir-se às causas secundárias de que Deus se serve para

efetivar o melhor. Platão fala de causas que pertencem à

natureza inteligente e causas que pertencem às coisas

movidas por outras. Eis o texto:

Tudo isso se inclui entre as causas secundárias de

que Deus se serve para realizar, tanto quanto

possível, a idéia do melhor. Mas a maioria dos

homens não as considera secundárias, senão causas

primárias de tudo [...]. Mas tais causas são incapazes

de atuar com razão e inteligência [...]. O amante da

inteligência e do conhecimento deve necessariamente

procurar primeiro as causas que pertencem à

natureza inteligente, e somente em segundo lugar as

que pertencem às coisas movidas por outras e que,

por sua vez, põem necessariamente outras em

183 Idem, 97 D – 98 B. 184 Cf., Idem 98 C. 185 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 42. 186 Cf., Fédon, 99 C.

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movimento. É como também devemos proceder.

Precisamos falar de duas espécies de causas, mas

tratar com particular interesse das que atuam com a

inteligência e produzem efeitos bons e belos, para

distingui-las das que, privadas de razão, atuam sempre ao acaso e sem ordem187.

Resumidamente, estas são as considerações que

Platão apresentou no Fédon sobre a doutrina da Inteligência Ordenadora em três pontos188:

a) os físicos também chegaram à descoberta da

Inteligência como causa das coisas;

b) o papel da causalidade da Inteligência se esvazia

totalmente de qualquer eficácia ficando no plano

puramente sensível;

c) a Inteligência pode adquirir o seu significado e a

sua consistência ontológica somente com o

estabelecimento da pirâmide metafísica e do seu

vértice – o Bem.

4.1.3 O Demiurgo e a criação do cosmo físico

O Demiurgo é caracterizado, inicialmente, na

República, como o artífice dos sentidos189. Mais adiante,

187 PLATÃO. Timeu. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1977, 46 C

– E. 188 Cf., REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit.,

p. 385.

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recebe maior destaque ao ser denominado divino artesão,

como aquele que “fabricara o céu e o que nele se contém da

maneira mais condigna e perfeita”190. Por fim, ao retomar a

problemática da arte e do seu papel ético-político e

educativo, Platão caracteriza-o como o criador das coisas na

sua natureza essencial, na sua unidade. Numa palavra: o

criador da Ideia191. “O verdadeiro criador do verdadeiro”192.

Ulteriores indicações sobre o Demiurgo são

apresentadas por Platão no final do Sofista193, ao estabelecer

a diferença entre arte produtiva humana e arte produtiva

divina194. Segundo ele, a arte produtiva divina, manifestação

da criação demiúrgica, é caracterizada como um levar do

não-ser ao ser, um trazer para a existência o que antes não existia195, conferindo-lhe um estatuto ontológico.

Embora tenha sido em grande parte antecipada no

Político, a doutrina do Demiurgo encontra sua forma mais

bem acabada no Timeu. Platão qualifica a exposição do

pitagórico Timeu sobre a origem do universo e do homem

como “mito verossímil”196, porque, quanto a isso, podemos

alcançar somente o provável e o verossímil e, graças ao

189 PLATÃO. A República. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,

1976, 507 C. 190 Ibidem, 530 A. 191 Ibidem, 597 B. 192 Ibidem, 597 D. 193 Cf., PLATÃO. Sofista. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980,

265 A – 268 D. 194 Ibidem, 265 B. 195 Ibidem 219 B e 265 B. 196 Timeu, 29 D.

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“método da verossimilhança”197, que “concilia a

necessidade com a probabilidade”198.

O “prelúdio”199, de caráter puramente teorético, que

precede o discurso cosmológico do Timeu, apresenta quatro

premissas que norteiam todo o desenvolvimento da

exposição:

A meu parecer, será preciso, de início, distinguir o

seguinte. [1] Em que consiste o que existiu e nunca

teve princípio? [2] e em que consiste o que devém e

nunca é? O primeiro é apreendido pelo entendimento

com a ajuda da razão, por ser sempre igual a si

mesmo, enquanto o outro o é pela opinião, secundada

pela sensação carecente de razão, porque a todo

instante nasce e perece, sem nunca ser

verdadeiramente. E agora: [3] tudo o que nasce ou

devém procede necessariamente de uma causa,

porque nada pode originar-se sem causa. [4] Quando

o artista trabalha em sua obra, [com] a vista dirigida

para o que sempre se conserva igual a si mesmo, e

lhe transmite a forma e a virtude desse modelo, é

natural que seja belo tudo o que ele realiza. Porém se

ele se fixa no que devém e toma como modelo algo sujeito ao nascimento, nada de belo poderá criar200.

Os dois primeiros axiomas referem-se à diferença

estrutural entre o ser que é sempre e o devir. Os dois

197 Ibidem, 59 C. 198 Ibidem, 53 D. 199 Ibidem, 29 D. 200 Ibidem, 27 D – 28 B.

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últimos referem-se à Inteligência Demiúrgica e a tudo

aquilo que se encontra estruturalmente ligado a ela.

Conforme o fundador da Academia, é necessário

saber, primeiramente, se o cosmos é um ser do tipo “que

sempre existiu e nunca teve princípio”, ou se está sujeito ao

devir numa contínua mudança. Se for sujeito ao devir, é

necessário identificar sua causa, porque tudo o que nasce,

procede de uma causa que produza a geração. Para Platão:

Quanto ao céu em universal – ou mundo, ou, se

preferirem outro nome mais apropriado, confiramos-

lhe esse mesmo – no que diz respeito, antes de mais

nada devemos considerar o que importa levar em

conta no início de qualquer estudo: se sempre existiu

e nunca teve princípio de nascimento, ou nasceu

nalgum momento e teve começo? Nasceu, pois é

visível, tocável e dotado de corpo, coisas sensíveis

todas elas. Ora, conforme já vimos, tudo o que é

sensível e pode ser apreendido pela opinião com a

ajuda da sensação, está sujeito ao devir e ao

nascimento. Afirmamos, ainda, que tudo o que devém

só nasce por efeito de alguma causa. Mas quanto ao

autor e pai deste universo é tarefa difícil encontrá-lo

e, uma vez encontrado, impossível indicar o que seja201.

Ora, ele conclui que o cosmo sensível foi gerado

nalgum momento e está sujeito ao devir. E, porque o

universo está em movimento, tem uma causa. Todavia, esta

causa é muito difícil de ser encontrada e, mesmo que fosse

encontrada, seria impossível torná-la conhecida a todos os

201 Timeu, 28 B – C.

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homens. Resta, ainda, saber qual era o modelo que o “Autor

e Pai deste universo” tinha em vista quando construiu este

mundo:

Outro pondo que precisamos deixar claro é saber

qual dos dois modelos tinha em vista o arquiteto

quando o construiu: o imutável e sempre igual a si

mesmo ou o que está sujeito as nascimento? Ora, se

este mundo é belo e for bom seu construtor, sem

dúvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno;

e se for o que nem se poderá mencionar, no modelo

sujeito ao nascimento. Mas, para todos nós é mais do

que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno;

entre todas as coisas nascidas não há o que seja mais

belo do que o mundo, sendo seu autor a melhor das

causas. Logo, se foi produzido dessa maneira, terá de

ser apreendido pela razão e a inteligência e segundo

o modelo sempre idêntico a si mesmo. Nessas

condições, necessariamente o mundo terá de ser a

imagem de alguma coisa202.

Tudo indica que o Arquiteto deste mundo tinha em

vista o modelo imutável e sempre igual a si mesmo – as

Ideias. Isso é atestado pela beleza, pela harmonia e pela

ordem desse mundo que o caracterizam como “a mais bela

entre todas as coisas nascidas”. E como seu fundamento é

inteligível, ele pode ser apreendido pela razão e pelo

intelecto. De fato, o cosmo físico é cópia do cosmo

inteligível. Platão reafirma a distinção entre o mundo das

Ideias eternas e detentoras do ser e o mundo das coisas

sensíveis, imagem do mundo inteligível e sujeitas ao devir.

202 Ibidem, 28 C – 29 B.

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Com efeito, para Platão, toda a realidade é constituída

segundo uma estrutura bipolar – um elemento material e um

elemento formal. As realidades inteligíveis são eternas e não

necessitam de uma causa que as produzam; o cosmo físico,

ao contrário, enquanto sujeito ao devir, tem necessidade de

uma causa eficiente que produza aquela mescla de dois

princípios, imprimindo a forma sobre o princípio material

informe, fazendo–o ser propriamente um cosmo203.

4.1.3.1 O princípio material

A atividade criadora do Demiurgo não é absoluta.

Somente os dois princípios enunciados anteriormente204 não

dão conta de explicar a ação da Inteligência Demiúrgica em

sua totalidade. Não basta apenas admitir o modelo inteligível

sempre igual a si mesmo e a cópia desse modelo sujeita ao

nascimento. Platão admite também um princípio material

eterno preexistente ao cosmo, denominado como “causa

errante”, o “receptáculo” de todas as coisas que nascem e a

“matriz de tudo o que devém”205. Eis o texto em que Platão

apresenta-o:

Por enquanto bastará admitir três gêneros: o que

devém, aquilo em que isso devém, e o modelo à cuja

semelhança se originou o que nasceu. Ademais,

203 Cf., REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta.

Terza edizione. Milano: Rizzoli, 1998, p. 234. 204 Um modelo inteligível e a sua cópia 205 Timeu, 49 A.

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podemos comparar o receptáculo com a mãe; o

modelo, ao pai; e a natureza intermediária entre os

dois ao filho. Devemos observar, ainda, que se a

marca a ser cunhada tiver de apresentar todas as

variedades de figuras, o receptáculo em que essas

impressões vão processar-se seria inadequado a

semelhante fim, se não carecesse de todas as formas

que terá de receber. De fato: se se parecesse com as

coisas que entram nêle, sempre que chegassem coisas

de natureza oposta ou totalmente diferente, ele as

representaria mal, porque seus próprios traços

deformariam a imagem. Por isso mesmo, o que tiver

de receber todas as espécies, não deve possuir

caráter especial206.

Este princípio não pertence nem ao mundo sensível

nem ao mundo inteligível, sendo caracterizado por Platão

como uma “espécie difícil e obscura”207 que carece de

ordem. Ele é “manifestação da Necessidade, que é fator de

produção do universo tanto quanto a Razão [...], o

receptáculo é precisamente aquilo pelo que as coisas

diferem do modelo”208. É necessidade, enquanto desordem

oposta à inteligência, carência total de finalismo.

Entretanto, a necessidade não é absoluta causalidade e

pura irracionalidade, já que, por sua natureza, “ela se deixa

dominar e persuadir pela Inteligência, e portanto, em boa

206 Ibidem, 50 C – E. 207 Timeu, 49 A. 208 BITAR, H. Introdução ao Timeu In: Diálogos de Platão. Belém:

Universidade Federal do Pará, 1977, p. 16.

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medida se deixa convencer pela Inteligência”209. Ela é capaz

de receber a ordem. Verdadeiramente, a atuação do

Demiurgo na gênese do universo manifesta-se como a

vitória, pela persuasão, da sabedoria sobre a necessidade,

combinando necessidade e inteligência. Escreve Platão:

Com poucas exceções, tudo o que expusemos até

agora só diz respeito às operações da inteligência.

Mas ao lado delas precisamos tratar também do que

se processa por efeito da necessidade. Porque a

gênese do universo é o resultado da ação combinada

da necessidade e da inteligência. Dominando a

necessidade, convenceu-a a inteligência a dirigir

para o bem a maior parte das coisas que nascem. A

esse modo e por tal princípio foi que nosso universo

se formou, com a vitória, pela persuasão, da

sabedoria sobre a necessidade. Mas se tivermos de

explicar como ele chegou a formar-se de acordo com

esse princípio, precisaremos apelar para a causa

errante e mostrar como faz parte de sua natureza produzir movimento210.

Assim como um artista modela/plasma no ouro uma

série de figuras e, continuamente, transforma cada uma

delas em outras, também o Demiurgo modela/plasma o

receptáculo. Este, “por natureza, é matriz de todas as coisas;

movimenta-se e diversifica-se pelo que entra nela, razão de

parecer diferente, conforme as circunstâncias”211.

209 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

453. 210 Timeu, 47 E – 48 A. 211 Ibidem, 50 C.

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Enquanto matriz de todas as coisas, “o receptáculo

deve ser amorfo, indeterminado, de uma plasticidade

indefinida”212. Enfim, é privado de uma estrutura formal

própria e, enquanto plasmável, permanece uma realidade

sempre idêntica. É justamente seu caráter informe que o

torna “obscuro, difícil de compreender e de captar, porque a

compreensibilidade implica estruturalmente a determinação

formal”213. Consequentemente, por não possuir

determinação formal, ou seja, por sua estrutura informal, é

também “invisível”214, pois aquilo que é objeto da visão é,

de um modo ou de outro, determinado e formado.

O receptáculo, enquanto natureza que recebe os

corpos, adquire caráter de substrato material. Não pertence

ao mundo inteligível nem ao mundo sensível. Constitui,

assim, um outro tipo de realidade, que Platão denomina de

espaço/espacialidade, também chamado de chora. É a

chora que fornece o lugar, a base de apoio ou a sede a todas

as realidades que nascem e perecerem. É precisamente isso

que Platão declara no texto abaixo:

Se for assim, teremos de admitir que há, primeiro, a

idéia imutável [modelo inteligível], que não nasce

nem perecerá, nada recebe em si mesma do exterior

nem entra em nada, não é visível nem perceptível de

qualquer jeito, e só pode ser apreendida pelo

pensamento. A outra espécie [cópia do modelo

inteligível] tem o mesmo nome da primeira e com ela

se parece, porém cai na esfera dos sentidos; é

212 BITAR, H. Op. cit., p. 16. 213 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

458. 214 Timeu, 51 A.

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engendrada, está sempre em movimento, devém num

determinado local, para logo desaparecer daí, e é

apreendida pela opinião com a ajuda da sensação.

Por último, há um terceiro gênero, o espaço [i.é, a

chora]: por ser eterno, não admite destruição, enseja

lugar para tudo o que nasce e em si mesmo não é

apreendido pelos sentidos, mas apenas por uma

espécie de raciocínio bastardo. Dificilmente pode-se

acreditar nele. É o que contemplamos como em

sonhos, quando dizemos que tudo o que existe deve

necessariamente estar nalgum lugar e ocupar

determinado espaço, e o que não se encontra nem na terra nem em qualquer parte do céu, é nada215.

Desse modo, a chora apresenta-se como condição

necessária para que qualquer coisa que se gera possa ser.

Em sua ausência, ficaria excluída toda e qualquer forma de

geração. Apesar de não ser perceptível pelos sentidos, é

aquilo que é necessário para que a forma se realize

sensivelmente.

Ao concluir o discurso sobre o princípio material,

Platão aproveita para apresentar “o resumo da doutrina” que

acabou de expor e também para explicitar algumas de suas

características essenciais. Especial atenção merece a noção

de movimento caótico:

A matriz do devir, tornando-se úmida e inflamada, e

recebendo as formas da terra e do ar, e passando por

todas as modificações que se lhes seguem,

apresentava-se sob os mais variados aspectos; e por

estar cheia de forças que nem eram iguais nem

215 Ibidem, 51 E – 52 B.

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contrabalançadas, não mostrava equilíbrio em

nenhuma de suas partes; oscilando irregularmente

em todos os sentidos, era sacudida por essas forças e,

posta em movimento, por sua vez as agitava.

Movimentando-se desse modo, sem pausa,

separavam-se as coisas e dispersavam-se em várias

direções, à maneira de grãos agitados e joeirados

com crivos e outros instrumentos próprios para

limpar o trigo, do que resulta ser jogado para um

lado o que for denso e pesado, enquanto vão para

outro as partículas finas e mais leves, onde se

acumulam. O mesmo, então, acontece com os quatro

gêneros agitados pelo receptáculo que se movimenta

a maneira de um crivo e joeirava e afastava para

longe uns dos outros os dissemelhantes, reunindo o

mais possível no mesmo modo os que se

assemelhavam entre si, de forma que as diferentes

espécies vieram a ocupar lugares diferentes, antes

mesmo de haver sido formado o todo que elas viriam

a constituir. Até esse momento tudo carecia de

proporção e medida. Quando o universo começou a

ser posto em ordem, a princípio o fogo a água a terra

e o ar revelavam traços de sua própria natureza, mas

se encontravam no estado em que é de esperar que esteja o que carece da presença de Deus216.

É interessante perceber que, antes mesmo de o

universo começar a ser ordenado, o princípio material já

portava algumas características rudimentares de fogo, água,

terra e ar, ainda que privadas de “proporção e medida”.

Note-se que o movimento caótico está na gênese do

216 Timeu, 52 D – 53 B.

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processo de “separação” dos elementos da chora, jogando,

de um lado, o “denso e pesado”, e, de outro, as partículas

“finas e mais leves”.

4.1.3.2 A atividade ordenadora e os entes

matemáticos

Como acabamos de ver, o princípio material porta em

si mesmo algumas características rudimentares dos quatro

elementos, porém, tudo nele carece de proporção e medida.

Por sua vez, o Demiurgo, enquanto mediador entre mundo

sensível e mundo inteligível, exerce papel de causa

eficiente, porque o mundo inteligível não possui as

condições necessárias e suficientes para a dedução do

mundo sensível.

Não obstante, a atividade demiúrgica, enquanto

manifestação da causa eficiente que é, caracteriza-se como

uma espécie de atividade ordenadora. O Demiurgo,

enquanto plasma o princípio material, ordena-o, impõe-lhe

forma, fazendo, do caos, cosmo. Os frutos dessa primeira

intervenção do Demiurgo são os quatro elementos da

natureza:

Até esse momento, tudo isso carecia de proporção e

medida. Quando o universo começou a ser posto em

ordem, a princípio o fogo a água a terra e o ar

revelavam traços de sua própria natureza, mas se

encontravam no estado em que é de esperar que

esteja o que carece da presença de Deus. Constituído

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naturalmente dessa maneira, começou a divindade a

dar-lhe uma configuração distinta por meio de

formas e de números. Que Deus os coordenou da

maneira mais perfeita possível, o que antes não

acontecia, é uma assertiva a que nos atemos em todo o decurso de nossa exposição217.

Porque o Demiurgo age em função do Bem, ele foi

capaz de ordenar o fogo, a água, a terra e o ar da melhor

forma possível. Mas, concentremos nossa atenção em outro

ponto do texto. Platão afirma que, na obra de produção dos

quatro elementos da natureza, o divino Artífice serviu-se de

formas e de números, realizando uma “mediação sintética

entre o Princípio informe e a forma geométrica”218. Eis

outro texto em que Platão reafirma o papel dos entes

matemáticos na formação do cosmo:

Tudo estava em desordem quando a divindade

introduziu proporção nas coisas, tanto nelas como em

suas relações recíprocas, na medida e da maneira

que admitiram proporções de simetria. Pois no

começo nenhuma coisa participava da proporção, a

não ser por acaso, não havendo nenhuma que

merecesse ser chamada pelos nomes que hoje lhes

aplicamos: fogo, água e o restante. [Deus] pôs tudo

em ordem, e com tais elementos formou este

universo219.

217 Timeu, 53 A – B. 218 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

478. 219 Timeu, 69 B – C.

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De acordo com Platão, os instrumentos dos quais o

Autor e Pai deste universo serviu-se para construir o cosmo

físico são os entes matemáticos. A matéria informe

indeterminada e caótica foi modelada com formas

geométricas e números. Consequentemente, “a

racionalidade dos corpos sensíveis e do mundo corpóreo

sensível em geral depende exatamente da sua estrutura

geométrica e matemática, que torna possível a ‘imitação’ do

modelo inteligível”220.

O Demiurgo plasma o Princípio material combinando

necessidade e inteligência, de modo que o corpóreo físico-

sensível passe a refletir a estrutura do corpóreo inteligível –

geométrico. Quanto a essa complexa relação sintética,

ficamos com as palavras de Giovanni Reale:

Números, ponto, linha, superfície, estrutura

tridimensional e corpos geométricos, no plano dos

entes matemáticos são puramente inteligíveis;

sinteticamente combinados e sintetizados com o

Princípio material sensível, dão origem aos corpos

que vemos e tocamos, mediante uma penetração

capilar que “ordena” o Princípio material sensível,

por si caótico, até os mínimos pormenores, segundo

uma estrutura atomística com base nos sólidos geométricos regulares221.

220 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. Cit.,

p. 238: “La razionalità dei corpi sensibili e del mondo corporeo

sensibili in generale dipende esattamente dalla struttura geometrica e

matematica, che rende possibile l’imitazione dei modelli intelligibili”. 221 Idem: “Numeri, punto, línea, superfície, struttura tridimensionale e

corpi geometrici, sul piano degli enti matematici sono puramente

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Lembramos que os entes matemáticos e as formas

geométricas derivam dos Princípios primeiros e supremos,

em cujo vértice encontra-se o Uno. Portanto, o divino

Artífice pauta toda sua atividade pelo Uno e, como vimos222,

Uno e Bem coincidem, pois a essência do Bem é,

precisamente, o Uno, enquanto medida suprema de todas as coisas.

4.1.4 O cosmo físico: beleza e perfeição

Imediatamente após a conclusão do “prelúdio”, ao

explicar a razão da origem do universo e de tudo o que está

sujeito ao movimento, Platão afirma que, por ser bom, o

Demiurgo “quis que, na medida do possível, todas as coisas

fossem semelhantes a ele”. Ao prosseguir sua narrativa,

assegura que o Divino Artífice, ao tomar o conjunto das

coisas visíveis, até então imerso num movimento caótico, o

fez passar da “desordem para a ordem, por estar convencido

de que esta em tudo é superior àquela”. Com efeito, por ser

o “bom” em mais alto grau, o “melhor” e por atualizar o

Bem no seu ato criador, ele seria incapaz de levar a cabo

uma obra que não fosse a “mais bela de todas”. Platão faz

estas afirmações no texto abaixo:

intelligibili; sinteticamente combinati e sintetizzati com la realtà

materiale sensibile, danno origine ai corpi che vediamo e tocchiamo,

mediante una penatrazione capillare che ordina il principio materiale

sensibile, di per sé caotico, fin nei minimi particolari, secondo una

struttura atomistica sulla base dei solidi geometrici regolare”. 222 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 61 et seq.

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Ele [o Demiurgo] era bom; ora, no que é bom jamais

poderá entrar inveja seja do que for. Estreme, assim,

de inveja, quis que, na medida do possível, todas as

coisas fossem semelhantes a ele [...]. Desejando a

divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto

possível, estreme de defeitos, tomou o conjunto das

coisas visíveis – nunca em repouso, mas

movimentando-se discordante e desordenadamente –

e fê-lo passar da desordem para a ordem, por estar

convencido de que esta em tudo é superior àquela.

Não era nem nunca foi possível que o melhor pudesse

fazer uma coisa que não fosse a mais bela de todas.

Depois de madura reflexão, concluiu que das coisas

visíveis por natureza jamais poderia sair um todo

privado de inteligência mais belo do que um todo

inteligente, e também: que em nenhum ser pode haver

inteligência sem alma. Com base nesse raciocínio,

pôs a inteligência na alma e a alma no corpo, e

construiu o universo segundo tal critério, com o

propósito de levar a cabo uma obra que fosse, por

natureza, a mais bela e perfeita que se poderia imaginar223.

Por “providência divina”224, o cosmo físico foi gerado

à imagem do ser inteligível que inclui em si a totalidade dos

seres inteligíveis. A divindade deu-lhe a mais completa

semelhança com o modelo inteligível, de modo que, em sua

unidade e singularidade, dotado de vida e inteligência,

abarque em si a totalidade dos seres sensíveis, imagens dos

seres inteligíveis.

223 Timeu, 29 E – 30 B. 224 Ibidem, 30 C.

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E, ao contrário do que muitos pensam, o cosmo é

único. Nisso reside sua perfeição: o mundo é perfeito,

porque é uno. Não há mundos infinitos. O universo é uno e

único, criado segundo o modelo supremo uno e único. Nas

palavras do próprio Platão: “para que o mundo, na sua

unicidade, se assemelhasse ao ser vivo e perfeito, seu autor

não fez nem dois nem um número infinito de mundos; este

céu é um só e único; assim foi feito e assim sempre será”225.

E querendo realizar perfeitamente o modelo de

inteligência no sensível, tornando-o mais semelhante ao

modelo inteligível e, portanto, mais belo, o Demiurgo criou

e infundiu-lhe uma alma universal, de modo a torná-lo um

“animal dotado de alma e de razão”226, e a conservar a vida

do mundo, sem a necessidade de sua intervenção contínua.

Para aqueles que não acreditam na existência do

Demiurgo, do Divino, Platão declara que basta olhar à sua

volta, pois estamos cercados de provas verdadeiras de sua

existência: “temos a terra, o sol, os astros e o mundo

universal, e a bela seqüência das estações, distribuídas em

meses e anos”227. Recordemos aquela declaração

emblemática de Platão no Timeu: “quanto ao autor e pai

deste universo é tarefa difícil encontrá-lo e, uma vez

encontrado, impossível indicar o que seja”228.

Não obstante, a dificuldade de encontrá-lo e a

impossibilidade de indicar o que seja, não nos autoriza a

concluir sua não-existência, pois, como vimos, as criaturas

225 Timeu, 31 B. 226 Ibidem, 30 C. 227 PLATÃO. Leis. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980, 886 A. 228 Timeu, 28 C.

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portam em si as marcas do seu criador. Tais afirmações nos

reportam, de imediato, à doutrina medieval da analogia

entre Deus e as criaturas.

Esta doutrina afirma que não há total identidade entre

Deus e as criaturas, mas também não há diferença absoluta

entre eles, pois a imagem de Deus está refletida no mundo.

E, por analogia, aquilo que se predica das criaturas pode se

predicar de Deus, ainda que não do mesmo modo e com a

mesma intensidade.

Não é exatamente esta relação análoga que

constatamos em Platão ao afirmar que o Demiurgo, por ser o

“bom” em mais alto grau, o “melhor”, e por atualizar o Bem

no seu ato criador, seria incapaz de levar a cabo uma obra

que não fosse a “mais bela de todas”? Também não seria um

discurso análogo aquele apresentado como prova da

existência do Demiurgo, pautado na beleza e na ordem da

terra, do sol, dos astros e na harmonia das estações,

distribuídas em meses e anos?

4.2 PAPEL E ALCANCE DA METAFÍSICA DE

PLATÃO

Após termos nos dedicado com afinco ao estudo da

principal novidade da filosofia platônica – a descoberta da

dimensão metafísica do ser – e dos três pontos focais da

filosofia de Platão – a teoria das Ideias, a doutrina dos

Princípios primeiros e supremos, e a doutrina do Demiurgo

– chegou o momento de apresentarmos, ainda que

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sinteticamente, o papel e o alcance da metafísica platônica.

Não temos o intuito de fazer uma história da metafísica de

Platão, seria muita pretensão de nossa parte, mas apresentar

o significado e a atualidade de sua filosofia.

4.2.1 O caráter imprescindível da filosofia de

Platão

Platão está situado no vértice do pensamento antigo e,

permanecendo no âmbito do pensamento antigo, podemos

afirmar que sua filosofia constitui o eixo de sustentação

mais significativo do modo de pensar dos gregos229. Com

efeito, desde a antiguidade, Platão tem-se constituído num

verdadeiro manancial para o pensamento ocidental.

Outrora, o estudo e a pesquisa dos mestres do

Ocidente230 sempre esteve associada à vanguarda da

especulação filosófica, hoje, o quadro se inverteu. Dada a

pretensa morte da metafísica e o consequente

estabelecimento do niilismo231, marcado por uma

229 Cf., REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola,

1994, p. 7 et seq. 230 À primeira vista, parece haver um erro aqui, mas, contrariamente

ao que aparenta, esta construção é proposital, pois visa ampliar o arco

referencial, estendendo-o também a Aristóteles. 231 Grosso modo, podemos caracterizar o niilismo, ao menos da forma

como é concebido por Nietzsche (Röcken, Alemanha 1844 – 1900), e

também na acepção que empregamos neste texto, como a

desvalorização dos valores absolutos. A falta de valor, a perca do fim,

do sentido último da existência.

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racionalidade eclipsada e fragmentária, o exercício de

retornar ao fundador da Academia é qualificado, não poucas

vezes, como algo retrógrado e dogmático, a contramão da

via filosófica contemporânea.

Não obstante, para o infortúnio dos que pensam

assim, contrariando os esforços empreendidos para

demonstrar a caducidade e o caráter obsoleto da filosofia

platônica, o discípulo de Sócrates permanece firme e, como

Werner Jaeger lembra:

Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em

que Platão ocupava o centro do universo espiritual

da Grécia e em que todos os olhares convergiam

para a sua Academia, e ainda hoje se continua a

definir o caráter de uma filosofia, seja ela qual for, pela sua relação com aquele filósofo232.

Com esta afirmação de Jaeger, podemos concluir que

Platão ocupa um lugar privilegiado na história da filosofia

ocidental, servindo como ponto de referência e paradigma

tanto para as formulações filosóficas elaboradas antes dele

quanto para aquelas que viriam à luz a partir ou depois dele.

A descoberta da dimensão metafísica do ser

configura-se como o ponto fundamental da obra do

fundador da Academia, constituindo uma conquista que, em

certo sentido, assinala “a etapa mais importante da história

232 JAEGER, W. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.

581.

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do pensamento ocidental, e inaugura a metafísica no sentido

mais elevado e mais completo”233.

É inegável que, dentre a vastidão de sua obra, o que

confere o estatuto de paradigma à filosofia de Platão,

impulsionando as demais neste movimento de convergência

ou de divergência à filosofia platônica, é a segunda navegação e seu núcleo teorético234:

Todo o pensamento ocidental será condicionado, de

modo decisivo e irreversível, pela distinção platônica,

seja se e enquanto a aceitar, seja enquanto e na

medida em que não a aceitar. De fato, neste último

caso, deverá polemicamente justificar sua não-aceitação e ficará condicionado por esta polêmica235.

Declarações como essas podem ser encontradas

também em autores muito próximos de nós. É o caso de

Henrique Cláudio de Lima Vaz, ao afirmar que “um

encontro ou reencontro” com Platão é o “gesto inaugural de

toda a decisão autêntica de filosofar”. Segundo ele:

A história de quase dois milênios e meio da

pragmateia filosófica no Ocidente, a começar pelos

discípulos imediatos de Platão e pelo maior deles,

Aristóteles, nos mostra que o gesto inaugural de toda

233 REALE, G. O Saber dos Antigos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002,

p. 231. 234 Referimo-nos aqui àquela passagem do ser sensível ao ser supra-

sensível e a consequente introdução de uma causa metafísica com o

objetivo de explicar o ser físico e livrá-lo das contradições em que

cairia se fosse abandonado a si mesmo, tal como haviam feito os pré-

socráticos. Cf., supra, Capítulo primeiro, p. 29 et seq. 235 REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 231.

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a decisão autêntica de filosofar dentro da nossa

tradição é um encontro ou um reencontro com

Platão. Platão é o gênio tutelar da cidade dos

filósofos e seu pensamento é o pórtico por onde se

entra nessa cidade que cresceu até tornar-se a

megalópólis de idéias e sistemas por onde hoje andamos e muitas vezes nos perdemos236.

Assim, Platão configura-se no grande ponto de

referência da Filosofia Ocidental. De uma forma ou de

outra, acabamos sempre por nos encontrar ou reencontrar

com ele, assumindo ou rejeitando sua filosofia,

desenvolvendo ou combatendo seus fundamentos, confiando

intrepidamente no poder arquitetônico da Razão ou

enveredando numa racionalidade eclipsada e fragmentária.

4.2.2 A segunda navegação e a rejeição do

materialismo

A segunda navegação, enquanto primeira

demonstração racional da existência de um ser supra-

sensível e transcendente que dá sentido ao ente sensível em

todas as suas manifestações, configura-se na rejeição de

toda e qualquer forma de materialismo.

236 VAZ, H. C. L. Platão Revisitado. Ética e Metafísica nas Origens

Platônicas. In: Síntese Nova Fase. Belo Horizonte: Centro de Estudos

Superiores – SJ, 1993, n. 61, p. 182.

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Mesmo o materialismo em sua versão físico-

ontológica, claramente formulado a partir do século XII e,

tendo em Hobbes237 um dos seus primeiros teóricos, afirma

que tudo “aquilo que existe é a realidade física ou

epifenêmeno desta e, portanto, o ser em todas as suas

manifestações possíveis é reduzido à dimensão do físico”238.

Hobbes nega filosoficamente o espaço ontológico do ser

supra-sensível e, consequentemente, tudo o que é essência

espiritual ou que, de algum modo, não é corpóreo é excluído

da filosofia. Abre-se, assim, um horizonte corporeísta em

que não há espaço nem mesmo para o bem objetivo e,

portanto, para os valores morais autênticos.

Inclusive, o materialismo histórico-dialético de

Marx239 e de Engels240 que afirma ser os homens

dependentes inteiramente de suas condições materiais.

Coincidindo, pois, tanto com aquilo que produzem quanto

como produzem, relegando a simples emanação direta, fruto

do comportamento material humano, a atividade espiritual

nas suas mais variadas manifestações (a linguagem política,

as leis, a moral, a religião, a metafísica etc.) encontra

dificuldades frente à verdade irrevogável da segunda navegação.

Também não se aceita o niilismo, cujo fundamento

também é o devir da matéria. Ele encerra em si a

incredulidade num mundo metafísico, afirmando que este

suposto mundo verdadeiro teria sido fabricado apenas com

base em necessidades psicológicas infundadas e

237 Inglaterra, 1588 – 1679. 238 REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 213. 239 Trevis – Alemanha, 1818 – 1883. 240 Wuppertal – Alemanha, 1820 – 1895.

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equivocadas e que, portanto, deve ser suprimido, para que,

uma vez proclamada a morte de Deus, possa estabelecer-se

o super-homem241, resultado da vontade de potência

exercida, um paradigma da virilidade.

Apesar de o arco de tempo que separa a elaboração

metafísica platônica dessas teorizações ser relativamente

grande e por elas serem cronologicamente posteriores a

Platão, isso não nos autoriza a concluir que superem o

fundador da Academia. Com efeito, reservadas as devidas

proporções, o erro que esses filósofos cometeram não difere,

ao menos substancialmente, daquele cometido pelos

naturalistas.

No entanto, se o ponto de chegada é o mesmo – a

realidade sensível na sua contingência e a absolutização do

devir em toda a sua contraditoriedade – o ponto de partida é

diverso. Enquanto os naturalistas estavam circunscritos aos

limites de seu método e de seu tempo e por mais que

tentassem, não conseguiram atingir uma resposta satisfatória

aos problemas da geração, da corrupção e do ser das coisas.

Como nos atesta a multiplicidade de respostas que

encontraram para esses problemas.

Os materialistas, ao contrário, negligenciaram a

totalidade do real, tomando como pressuposto fundamental

241 Evidentemente, não nos referimos ao personagem das histórias em

quadrinhos que ganhou a tela dos cinemas, mas sim àquele apregoado

por Nietzsche (Alemanha, 1844 – 1900). Com efeito, o super-homem

de Nietzsche é explosão de força e poder. Ele é capaz de negar e

superar a mentalidade cristã do Ocidente para impor-se a si mesmo

como valor. Em última instância, ao propor o super-homem, ele está

propondo uma autonomia absoluta.

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apenas um de seus aspectos, elevando-o a um patamar que

é, ao mesmo tempo, reducionista e totalizante. O discurso é

reducionista, pois considera válido apenas um dos aspectos

do real. É ao mesmo tempo totalizante, pois, tomando um

aspecto do real como válido, assenta sobre ele seu discurso

sobre todo o restante.

4.2.3 A teoria das Ideias

Verdadeiramente, “as Idéias representam a figura

especulativa do pensamento de Platão que teve maior

sucesso”242, com uma série de repensamentos e

influenciando grandes pensadores em pontos fundamentais

de sua filosofia. Grosso modo, “podemos afirmar que uma

história da interpretação da teoria das Idéias cobriria grande

parte da história da filosofia ocidental, justamente num dos

seus pontos capitais”243.

Aristóteles foi o primeiro a interpretar a teoria das

Ideias de Platão e, igualmente, o pioneiro na série de críticas

que lhe seriam propostas244. Ele interpreta as Ideias como

hipóstases dos universais, dando-lhes um caráter físico e,

242 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

117. 243 Ibidem, p. 118. 244 A bem da verdade, as críticas elaboradas posteriormente a

Aristóteles dependem, substancialmente, daquelas formuladas pelo

Estagirita.

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consequentemente, duplicando as coisas245. Sua crítica foi

largamente assumida pela tradição, culminando na acalorada

disputa medieval acerca dos universais246, caracterizando a

metafísica de Platão como realismo exagerado247.

Os médio-platônicos identificaram as Ideias com os

pensamentos de Deus e, buscando refutar a crítica

aristotélica, inseriram a distinção entre inteligíveis primeiros

(Ideias transcendentes – pensamento divino) e inteligíveis

segundos (formas imanentes). A tese de que as Ideias são os

pensamentos de Deus receberá sua fundamentação

metafísica apenas com o neoplatonismo, sobretudo, graças

aos esforços de Plotino, pondo as Ideias no âmbito da

hipóstase do Nous248. A Patrística e a Escolástica, salvo o

desenvolvimento de alguns de seus aspectos em conexão

245 Quanto à interpretação aristotélica das Ideias, Giovanni Reale

afirma que “ele as apresenta numa dimensão e com conotações bem

diferentes relativamente às que são próprias das Idéias como

‘verdadeira causa’ metafísica, de que Platão fala expressamente no

Fédon”. In: ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio Introdutório, texto

grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. São Paulo:

Loyola, 2005, p. 213. 246 O problema dos universais refere-se à determinação do

fundamento e do valor dos conceitos e termos universais aplicáveis a

uma multiplicidade de indivíduos. Como diz respeito ao problema da

relação entre as palavras e as coisas, o pensamento e o ser, ele envolve

o fundamento e a validade do conhecimento. 247 O realismo exagerado constitui a postura que afirma serem os

universais entes reais, subsistentes em si, Ideias eternas e

transcendentes, exercendo função de arquétipo e paradigma em

relação aos indivíduos concretos. Portanto, conferindo estatuto

ontológico aos universais. 248 O termo é comumente traduzido por intelecto, mente, inteligência

ou pensamento. Entretanto, em Plotino, o mais correto seria traduzir

por Espírito.

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com a doutrina da criação, seguindo esteira aberta por Fílon

de Alexandria249, apenas reafirmaram a tese de que as Ideias

são os pensamentos de Deus.

No mundo moderno, a retomada da teoria da Ideias

está relacionada às questões acerca do conhecimento, no

contexto do interminável debate entre racionalismo e

empirismo. É também nesse contexto que elas passam a ser

identificadas com a matéria do pensamento, ou seja, com os

conceitos e conteúdos do pensamento – uma simples

representação mental.

Immanuel Kant250 e George Wilhelm Hegel251 são os

exemplos mais significativos da influência exercida pelas

Ideias no período moderno. Kant interpretou as Ideias como

as formas supremas da Razão, entretanto, negou-lhes

qualquer valor cognoscitivo. Todavia, atribuiu um uso

regulativo estrutural de grande importância às Ideias de

alma, mundo e Deus.

Para Hegel, a realidade é a Ideia: o real é racional e o

racional é real. De fato, ele reconheceu na teoria das Ideias

a verdadeira grandeza especulativa de Platão, declarando-a

como pedra miliar na história da filosofia e até mesmo da

história universal.

249 Rabino de Alexandria e contemporâneo de Cristo. Fundador do

método alegórico de exegese e interpretação bíblica e filosófica. 250 Königsberg, Prússia (1724 – 1804). 251 Stuttgard, Alemanha (1770 – 1831), um dos maiores expoentes do

Idealismo Alemão.

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4.2.4 A doutrina dos Princípios

Os Princípios primeiros e supremos, por estarem

acima das Ideias, constituem a esfera primeira e absoluta da

fundação metafísica platônica. Conforme Platão, eles

constituem um sistema bipolar em que do Uno deriva-se o

Bem e da Díade indefinida do grande e do pequeno derivam

a multiplicidade, a desordem e o mal. Há um filósofo

contemporâneo a nós que, apesar de ser antimetafísico,

retomou a grande tese platônica da estrutura bipolar dos

Princípios: Edgar Morin252.

De fato, a dinâmica relacional e dialética de ordem e

desordem com seus consequentes resultados positivos é uma

característica fundamental da sabedoria grega. Morin a

assume, concluindo que desordem e ordem cooperam e que

tudo o que existe nasce dessa cooperação. É justamente no

processo de desorganização que o universo se organiza: “é,

pois, possível explorar a idéia de um universo que constitui

sua ordem e sua organização na turbulência, na

instabilidade, no desvio, na improbabilidade, na dissipação

energética”253.

Ele é capaz de ler, nos mesmos processos de

desintegração, a gênese. Ligando, portanto, a criação a uma

ruptura e afirmando que a ruptura e a desintegração de uma

252 Cf., REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 233. Edgar

Morin, (1921) é um dos maiores expoentes da cultura francesa do

século XX. 253 MORIN, E. Il Método. Ordine disordine organizzazione apud

REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 235.

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velha forma é, ao mesmo tempo, o processo constitutivo de

uma nova forma. Por fim, declara que a organização e a

ordem do mundo se edificam no desequilíbrio e na

instabilidade e por seu intermédio.

É interessante perceber que, mesmo adotando uma

postura antimetafísica e estando envolvido com as ciências

empíricas, Edgar Morin oferece excelentes observações de

profundidade ontológica e metafísica.

4.2.5 A doutrina do Demiurgo

Como vimos, a atividade que o Demiurgo exerce ao

criar não é absoluta, pois ele não cria do nada. Ele cria

contemplando um modelo inteligível e plasmando-o num

princípio material informe. Sua atividade é,

verdadeiramente, uma atividade ordenadora, pois faz do

caos cosmo, leva da desordem à ordem.

No entanto, se a doutrina do Demiurgo não é uma

doutrina criacionista propriamente dita (não ao menos como

o criacionismo bíblico), ela é o que podemos chamar de

sem-criacionismo – “a mais alta forma de criacionismo

alcançada pelo pensamento helênico”254.

Platão entende o ser em todos os níveis como um

misto, como “algo in-determinado que é determinado, um

254 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

521.

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excesso comedido, um mais-e-menos-hamonizado”255. O

não-ser, por sua vez, é caracterizado como “o Princípio

material do excesso, do mais-e-menos, da desordem”256.

O Demiurgo é a causa inteligente – eficiente – que

explica qualquer misto, pois é ele que faz passar do não-ser

ao ser, de uma realidade informe a uma estruturação desta

em função do modelo que sempre é, por meio da mediação

entre o ser eterno e a realidade sensível, servindo-se de uma

complexa articulação geométrica.

Com efeito, o Deus platônico criou o universo, o

tempo, os animais, os vegetais, os minerais e todas as coisas

das quais derivam as coisas que são geradas – os quatro

elementos da natureza: água, ar, fogo e terra. E como o

Demiurgo é um Deus pessoal, portanto distinto das

criaturas, sua atividade não é um simples agir da

Inteligência em função do inteligível (do Bem), mas é um

querer a realização desse inteligível257.

255 Idem. 256 Idem. 257 Há duas características que marcam a concepção grega de Deus. A

primeira, afirma que Deus tem – do ponto de vista hierárquico – uma

regra acima de si, à qual deve referir-se e deve cumprir. Lembremos

que, acima do Demiurgo, está a Idéia do Bem que pauta todo o seu

agir e que ele deve atualizar em todos os níveis de ser. A segunda, que

a inteligência é possível somente se tem o ser como seu fundamento e

se ela se exprime no ser e por meio dele. Nem mesmo a Inteligência

suprema está livre dessa regra, pois encontra no Bem seu fundamento.

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159

4.2.5.1 A concepção de Deus em Platão

Com efeito, Platão distingue o Demiurgo dos outros

Deuses – as Ideias, o Bem, a alma, o mundo, os astros etc.

Nisso, sua posição se diferencia daquela partilhada pelos

seus contemporâneos. Eles acreditam que tudo o que está

acima do céu é Divino, pois a divindade está relacionada à

eternidade e à incorruptibilidade. Assim, é compreensível o

fato de conceberem realidades sensíveis como divinas: o sol,

a lua, os astros etc.

Quando falamos que Platão distingue Deus do

Divino, estamos afirmando que ele não pode ser confundido

com o Princípio primeiro, com a regra que tem acima de si,

do ponto de vista hierárquico, à qual deve referir-se e deve

cumprir – o Bem. Também não deve ser confundido com

todo o ser. O Demiurgo é um Deus capaz de pensar e de

querer, capaz de consciência e de vontade, portanto, é

concebido por Platão numa dimensão pessoal. Sua atividade

não é um simples agir da Inteligência em função do

inteligível (do Bem), mas é um querer a realização desse

inteligível.

Tomando o conceito de criação, mesmo no sentido de

semicriação, percebemos que a causa eficiente do mundo é

o pensamento de um Deus pessoal, esse criador é o único

Deus que pode ser concebido em sentido estrito. Com efeito,

todos os outros Deuses são dependentes dele. Todo o

restante a que Platão chama Deus, seja o mundo ou parte

dele, são criados segundo a vontade do Divino Artífice e,

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mantidas as devidas proporções, o Demiurgo se mostra

distinto deles. Vejamos o texto em que o Demiurgo se refere

aos Deuses criados:

Deuses de deuses, as obras das quais eu sou o

criador e pai, por terem sido geradas por mim, são

indissolúveis sem meu consentimento. Conquanto

tudo o que foi ligado possa ser desligado, somente um

espírito maldoso consentiria em dissolver o que foi

bem ajustado e se encontra em perfeitas condições. A

esse modo, pelo fato de haverdes sido gerados, nem

sois imortais nem absolutamente indissolúveis. Não

obstante, nem sereis desfeitos nunca nem ficareis

sujeitos à morte, por ser minha vontade para todos

vós um elo mais forte e poderoso do que vos ligou ao

nascimento. Escutai, portanto, o que vos anuncio com

este discurso. Ainda estão por nascer três raças

mortais; se não chegarem a formar-se, o céu ficará

incompleto, pois não conterá, como é preciso, todas

as espécies de seres vivos, para ser suficientemente

perfeito. Se eu lhes desse nascimento e vida, tornar-

se-iam iguais aos deuses. Mas, afim de que sejam

mortais e este universo fique realmente completo,

aplicai-vos, na medida de vossa capacidade, a formar

tais seres, imitando nisso meu poder por ocasião de

vosso nascimento. E como convém que algo nele

participe dos imortais, alguma coisa que se chamará

divino e que dentre eles comandará os que se

dispuseres a seguir sempre a justiça e a vós mesmos:

essa parte, como semente e princípio, eu mesmo vo-la

entregarei. O resto vos compete; tecendo o imortal

com o mortal, fabricai seres vivos a que dareis

nascimento permitindo que cresçam por meio da

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alimentação, para os receber de novo, quando se

extinguirem258.

É inegável que, no âmbito do politeísmo grego, a

concepção platônica de Deus constitui um grande avanço e

uma revolução. Ainda que de forma longínqua, quanto à

exigência conceitual, o fato de os outros Deuses

dependerem do Demiurgo prepara o caminho para uma

concepção monoteísta de Deus.

258 Timeu, 41 A – D.

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163

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O problema referente à causa da geração, da

corrupção e do ser das coisas não encontra uma resposta

satisfatória quando permanecemos circunscritos ao âmbito

da physis. Com efeito, as respostas dos naturalistas

revelaram-se, ao mesmo tempo, divergentes e insuficientes.

Tales de Mileto identificou a arché com a água,

Anaximandro, com o á-peiron, Anaxímenes, com o ar, e os

Pitagóricos, com o número. Empédocles chegou a admitir

uma multiplicidade de princípios, e Anaxágoras que, apesar

de ter sido o primeiro a formular a tese da Inteligência

Cósmica, permaneceu concedendo muita importância às

homeomerias no processo de explicação do real.

Não obstante, quando circunscritas à physis, as

respostas podem revelar-se, até mesmo, contraditórias e

excludentes, como no caso de Heráclito e Parmênides.

Enquanto o primeiro absolutizou o devir e o fez princípio do

ser; o segundo, ao estabelecer uma perfeita correlação entre

pensar e ser, afirmou sua total imobilidade, negando

completamente o movimento e também a multiplicidade.

Respostas como essas são prova de que a arché não

pode ser encontrada no interior da própria physis. Elas não

contribuem para a compreensão da geração, da corrupção e

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164

do ser das coisas, pelo contrário, confundem e dificultam

ainda mais sua explicação. O sensível não é capaz de

explicar-se por si mesmo, por isso, é preciso recorrer a uma

causa de natureza não-física, supra-sensível e inteligível que

seja a razão do seu ser.

É somente com a segunda navegação, com a

descoberta do novo método de investigação fundado sobre

os raciocínios e os postulados racionais, que Platão

consegue descobrir a causa de natureza não-física, supra-

sensível e inteligível, capaz de explicar o sensível de modo

satisfatório. De fato, a segunda navegação conduziu Platão

à descoberta de uma nova dimensão do ser, uma dimensão

metaempírica e transcendente.

Na segunda navegação, estão presentes os três

domínios fundamentais da metafísica de Platão: a teoria das

Ideias; a doutrina dos Princípios primeiros e supremos e a

doutrina do Demiurgo. Apesar de distintos, eles estão em

estreita conexão. É somente numa visão de conjunto que a

metafísica de Platão pode oferecer uma resposta satisfatória

ao problema da geração, da corrupção e do ser das coisas.

Com a teoria das Ideias, Platão distingue dois âmbitos

da realidade – um sensível e outro inteligível. Por sua vez,

atribui ao primeiro as características do ser heraclitiano e, ao

segundo, os atributos do ser parmenídico. A transcendência

das Ideias as eleva ao patamar de causa do sensível. E é

justamente essa transcendência que as qualifica na função

de causa verdadeira do sensível.

Suas características metafísico-ontológicas

(inteligibilidade; incorporeidade; ser em sentido pleno;

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165

imutabilidade; perseidade e unidade), além de lhes

conceder uma existência em si e por si, permitem também

reduzir a multiplicidade do sensível a sua causa última,

àquela Ideia da qual participam ou imitam. Explica-se a

pluralidade do sensível ao reduzi-la à unidade da Ideia.

Mas há tanto Ideias de realidades substanciais, ou

seja, homens, animais, vegetais etc., quanto de qualidades e

aspectos redutíveis à unidade, isto é, belo, grande, duplo etc.

No fim das contas, a multiplicidade sensível foi reduzida a

uma unidade inteligível que acabou por se converter a uma

multiplicidade inteligível. Como resolver esse problema?

Se a teoria das Ideias ocupasse o vértice da metafísica

platônica, este seria um problema insolúvel. Entretanto,

como ele é ocupado pela doutrina dos Princípios primeiros

e supremos, conservada e transmitida pela tradição indireta,

o problema se dissipa sem grandes dificuldades. Assim

como a multiplicidade sensível depende da multiplicidade

das Ideias, por analogia, conclui-se que a multiplicidade das

Ideias seja reduzida a uma esfera ulterior da realidade, da

qual elas mesmas dependam.

Com efeito, Platão concebe o mundo inteligível

hierarquicamente organizado. As Ideias inferiores implicam

as superiores, numa ascensão ininterrupta, até chegar às

Ideias que ocupam o vértice da hierarquia, no qual está a

Idéia que condiciona as outras e não é condicionada por

nenhuma delas. Este princípio absoluto e incondicionado é

identificado nos escritos com a Ideia do Bem. Porém, nas

Doutrinas não-escritas, ele é identificado com o Uno,

medida exatíssima e suprema de todas as coisas.

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166

Oposto ao Uno, encontra-se outro princípio, a Díade.

Eles são complementares, e a ação do Uno sobre a Díade

manifesta-se como uma espécie de determinação e definição

do ilimitado, num processo de igualização do desigual.

Enquanto princípios originários e constitutivos de todo o

ser, eles não são ser, pois são anteriores a ele.

Mas somente a teoria das Ideias e a doutrina dos

Princípios não dão conta de explicar a totalidade do real.

Apesar de constituírem o fundamento do cosmo sensível,

não explicam porque e como ele passou a existir. É

exatamente nesse ponto que entra em cena a figura teorética

do Demiurgo que, ao explicar como e porque o mundo

passou a existir, salva a metafísica platônica de um sistema

dedutivo e emanacionista. Ele, ao contemplar o modelo

inteligível, plasma o princípio material e cria livremente,

num gesto de bondade e amor, o cosmo sensível, fazendo-o

passar da desordem à ordem, do caos ao cosmo.

Como podemos perceber, ao problema referente à

causa da geração, da corrupção e do ser das coisas Platão

apresenta uma única resposta – só pode ser explicado

recorrendo-se a uma causa não-física, supra-sensível e

inteligível – articulada em três âmbitos que, apesar de

distintos, são estruturalmente conexos. Abrir mão de um de

seus componentes é aceitar uma explicação parcial do

problema em questão.

É também perceptível que Platão antecipou as quatro

causas que Aristóteles apresenta em sua Metafísica: as

Ideias desempenham a função de causa formal; a chora

exerce a função de causa material; o Demiurgo é a causa

eficiente; e o Bem-Uno, enquanto orienta a ação do

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167

Demiurgo, é a causa final. No entanto, reserva-se a

Aristóteles o mérito de tê-las sistematizado.

Por fim, é inegável que Platão constitui verdadeiro

manancial para o pensamento ocidental. A segunda

navegação confere o estatuto de paradigma à filosofia de

Platão e impulsiona as demais num movimento de

convergência ou de divergência à filosofia platônica.

Gostem ou não, desde a antiguidade e ainda hoje, o caráter

de uma filosofia é definido pela relação que ela mantém

com a filosofia de Platão.

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APÊNDICES

APENDICE A – SÍNTESE

PLATÃO, A METÁFORA DA SEGUNDA

NAVEGAÇÃO E A DESCOBERTA DO SUPRA-

SENSÍVEL

1 INTRODUÇÃO

A origem da filosofia está ligada à busca pelo

princípio de todas as coisas. Para o grego antigo conhecer

algo significa conhecer sua causa. Desse modo, os primeiros

filósofos afirmaram que explicar é unificar, ou seja, quem se

propõe a explicar algo deve estar apto a reduzir a

multiplicidade sensível a um princípio originário único

causador de todas as coisas – a arché.

Em sua busca pela arché, a filosofia antiga tem em

vista a totalidade do ser e do real. De Tales de Mileto a

Platão, ela esteve relacionada a questões metafísicas ligadas

à causa da geração, da corrupção e do ser das coisas. A

problemática de fundo apresentava-se da seguinte forma:

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Por que as coisas se geram? Por que se corrompem? Por que

existem?

Inicialmente, acreditava-se que a arché poderia ser

encontrada no interior da própria physis. Sendo assim, os

primeiros filósofos mobilizaram suas forças e direcionaram

sua atenção para uma investigação incansável da natureza.

Ao ler os naturalistas, Platão constata que eles não

conseguiram alcançar uma resposta satisfatória ao problema

da arché, porque restringiram sua investigação ao interior da

physis. O empecilho estava no método que haviam

empregado – ficaram presos aos sentidos. Platão conclui,

que somente adotando uma nova metodologia e

redirecionando a pesquisa, poderia chegar a uma resposta

satisfatória para o problema.

É nesse contexto que ele empreendeu aquela guinada

metodológica que, metaforicamente, denominou de segunda

navegação, tendo como resultado a descoberta da dimensão

metafísica do ser. Nela estão presentes os três domínios

fundamentais da metafísica de Platão: a teoria das Ideias; a

doutrina dos Princípios; a doutrina do Demiurgo.

Diante disso, nosso objetivo é pesquisar a segunda

navegação de Platão e a descoberta do supra-sensível. Com

o intuito de levar a bom termo essa tarefa, dividimos nosso

texto em três capítulos: no primeiro apresentamos as

questões ligadas ao horizonte histórico de Platão; no

segundo estudamos a teoria das Ideias e a doutrina dos

Princípios; no terceiro abordamos a doutrina do Demiurgo e

buscamos vislumbrar o papel e o alcance da metafísica de

Platão.

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2 PREMISSA HISTÓRICA

Platão (428/27 a.C) nasceu na Atenas do século de

Péricles. Filho de uma tradicional e aristocrata família

ateniense, desde cedo manifestou interesse pela política259.

Na juventude foi discípulo de Crátilo260. O encontro com

Sócrates aconteceu posteriormente: Platão estaria com vinte

anos e Sócrates com sessenta. Platão foi seu discípulo mais

importante e freqüentou-o por oito anos.

Após a morte de Sócrates (399 a.C), retirou-se para

Mégara, onde permaneceu cerca de 3 anos. De Mégara

partiu para Cirene e, posteriormente, para a Itália261, onde

foi convidado para visitar a corte do tirano Dionísio I, na

Sicília (388 a.C.). Platão acreditava ter encontrado a

oportunidade de colocar em prática o ideário político do rei-

filósofo. Ao retornar para Atenas fundou a Academia, num

ginásio situado no jardim dedicado ao herói Academos.

Platão viajou outras duas vezes à Sicília (367 e 361

a.C) e, ao retornar à Atenas em 360 a.C. permaneceu na

direção da Academia até o ano de sua morte, em 347 a.C.,

com cerca de 80 anos de idade. Foi sepultado na própria

Academia. Todos os seus discípulos estavam presentes no

259 PLATÃO. Carta VII. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975,

324 B. 260 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2005, A, 987 a. 261 LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2. ed.

Brasília: UnB, 1987, III, 6 et seq.

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cortejo fúnebre262, aliás, “toda Atenas o acompanhou à

sepultura”263.

Seus escritos chegaram até nós em sua totalidade –

trinta e seis trabalhos ao todo: uma Apologia de Sócrates,

trinta e quatro diálogos e treze cartas. A tradição conservou

a ordem adotada e difundida pelo gramático Trásilo264 que,

seguindo o critério da afinidade temática, dividiu-os em

nove tetralogias.

Desde a antiguidade, o problema de sua autenticidade

se fez presente. A crítica moderna chegou a duvidar da

autenticidade de praticamente todos os escritos. Atualmente,

“a tendência é considerar autênticos quase todos os diálogos

ou até mesmo todos”265.

Contrariamente à questão da autenticidade, a

problemática referente à cronologia dos diálogos não

encontra uma resposta satisfatória. Somos forçados a nos

contentar apenas com o estabelecimento de quatro períodos:

escritos de juventude; escritos de transição; escritos de maturidade e escritos de senectude.

Juntamente ao problema da autenticidade e da

cronologia dos escritos, temos ainda a questão da existência

das Doutrinas não-escritas. Elas negam a autarquia dos

262 LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Op. cit.,

III, 41. 263 DURANT, W. A História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural,

1996, p. 68. 264 LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Op. cit.,

III, 56 et seq. Contemporâneo do imperador Tibério, século I d.C. 265 REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. Filosofia pagã

Antiga. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 134.

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diálogos e, afirmam que a compreensão dos escritos de

Platão não coincide com a totalidade da compreensão de sua

filosofia.

Frente a essa discussão, os estudiosos introduziram o

termo esotérico para designar as Doutrinas não-escritas,

isto é, o ensinamento oral de Platão, reservado somente aos

alunos no interior da Academia. E o termo exotérico para

designar o pensamento que Platão confiou à escrita e,

portanto, àqueles que também estavam fora da Academia. A

autenticidade e a cronologia dos escritos, somadas às

Doutrinas não-escritas constituem, hoje, a chamada

Questão Platônica.

2.1 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA

ARCHÉ

Os pré-socráticos foram os primeiros a afirmar a

existência da arché. Tales266 identificou-a com a água267.

Anaximandro268 afirmou que o princípio não pode ser

determinado por algo derivado, mas que ele é o infinito: o á-

266 Mileto, 624/25 – 546/45 a.C. 267 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 983 b. 268 Mileto, 610/09 – 547/46 a.C.

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peiron. Anaxímenes269 apesar de identificá-la com o ar,

atribui-lhe infinitude e movimento eterno.

Heráclito270 aprofundou o dinamismo universal e

chegou a um completo mobilismo. Para ele, o devir é o

próprio princípio e não uma característica do princípio. Não

obstante, Heráclito identificou a arché com o fogo.

Pitágoras271 e os pitagóricos identificaram-na com o

número.

Os Eleatas fundaram a problemática da arché sob a

perspectiva ontológica. Em Parmênides272 a questão do ser

tornou-se primordial. O que há de mais básico é o ser: a

água é, o fogo é, a terra é, todos as coisas são. Por sua vez,

ele estabeleceu uma perfeita correlação entre ser e pensar.

Empédocles273 admitiu uma multiplicidade de

princípios, denominados raízes de todas as coisas. Afirmou

ainda, que estas raízes possuem total inalterabilidade

qualitativa e intransformabilidade.

Anaxágoras274 admitiu a substancial imutabilidade do

ser. Segundo ele, as coisas são compostas por elementos

diversos – as homeomerias – que podem dividir-se em

partes sempre menores sem que suas qualidades sofram

qualquer alteração.

269 Mileto, 546/45 – 528/25 a.C. 270 Éfeso, cerca de 540 – 470 a.C. 271 Samos – cerca de 571/70 a 497/96 a.C. 272 Eléia – sécs. VI-V a.C. 273 Agrigento, 484/11 – 424/21 a.C. 274 Clazómenas, 449/48 – 428/27 a.C.

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A novidade de Anaxágoras é a introdução de uma

Inteligência Ordenadora, responsável pelo movimento

inicial que deu origem a uma mistura bem ordenada da qual

surgiram todas as coisas. Contudo, ele permaneceu no plano

físico e continuou a dar muita importância às homeomerias

no processo de explicação do real.

3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E A

DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL

A passagem central do Fédon, 96 A – 102 A, é

considerada “uma das passagens mais célebres e mais

grandiosas”275 dos escritos de Platão, constituindo “a

primeira demonstração da existência de um ser meta-

empírico, supra-sensível e transcendente”276: a “magna

charta da metafísica ocidental”277. Ela apresenta o mapa do

projeto metafísico de Platão, ora explicitamente, como a

275 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. 2. ed. São

Paulo: Loyola, 2004, p.100. 276 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Terza

edizione. Milano: Rizzoli, 1998, p. 145: “la prima dimostrazione

dell’esistenza di un essere metempirico, soprasensibile e

transcendente”. 277 REALE, G. O Saber dos Antigos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002,

p. 221.

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teoria das Ideias, ora com remissões implícitas e em nível

alusivo, como a doutrina dos Princípios e do Demiurgo.

Em poucos parágrafos, Platão descreve a trajetória

ideal que a mente humana deve percorrer quando busca a

verdade. Este trajeto é composto por duas fases essenciais: a

física e a metafísica. A fase física, seguindo o método dos

naturalistas, é escalonada em dois momentos: o primeiro

inspirado na doutrina dos físicos em geral; o segundo

inspirado em Anaxágoras. A fase metafísica, seguindo um

novo método também é escalonada em dois momentos: o

primeiro, com a teoria das Ideias; o segundo, com a doutrina

dos Princípios.

Ao conhecer a fragilidade e as contradições da

metodologia empregada pelos naturalistas, Platão

empreendeu aquela que, metaforicamente, ele mesmo

denominou de segunda navegação278. Ela constitui a grande

novidade e o ponto fundamental de sua filosofia. Ao que

tudo indica, a expressão é de origem marinhesca.

A primeira navegação é aquela feita com as velas ao

vento. Corresponde à investigação realizada sob o impulso

da filosofia da physis, seguindo método dos filósofos

naturalistas. Nela, o filósofo está circunscrito às velas dos

sentidos e busca explicar o sensível por meio do próprio

sensível.

A segunda navegação é aquela feita com os remos.

Refere-se ao novo método proposto por Platão que é

impulsionado pelos remos dos raciocínios e dos postulados

278 PLATÃO. Fédon. In: Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,

1979, 99 D.

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racionais, levando à conquista da dimensão supra-sensível

do ser.

3.1 A TEORIA DAS IDEIAS

Com a teoria das Ideias Platão opera, ao mesmo

tempo, uma distinção e uma síntese. A distinção é expressa

na sua concepção de realidade formada por dois planos de

ser - o sensível e o inteligível. A síntese é elaborada a partir

das conclusões de Heráclito e Parmênides, atribuindo as

características do primeiro à esfera sensível da realidade e,

as do segundo às realidades inteligíveis.

As Ideias possuem características metafísico-

ontológicas que as elevam a condição de fundamento e

causa do sensível: são inteligíveis e incorpóreas279; são o ser

em sentido pleno280; são imutáveis281; a permanência e

estabilidade de sua essência atestam sua objetividade282; sua

279 Fédon, 65 C – 66 A. 280 Fédon, 78 D – 79 A. 281 PLATÃO. Crátilo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1973, 439

B – 440 A. 282 Ibidem, 385 E – 386 E. Mesmo no Parmênides, a objetividade das

Ideias é reafirmada: PLATÃO. Parmênides. In: Diálogos de Platão.

Belém: UFP, 1974, 134 E – 135 B.

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unidade metafísica reduz a multiplicidade sensível a Idéia

que participam ou imitam283.

Enquanto causa e fundamento do sensível, as Ideias o

transcendem. Com efeito, no mito do Hiperurânio

encontramos o símbolo dessa transcendência284. O pretenso

“dualismo” metafísico que a crítica atribui a Platão, é o

“dualismo de quem admite a existência de uma causa supra-

sensível como razão de ser do próprio sensível, convencido

de que o sensível, por sua autocontraditoriedade, não possui

uma razão de ser total de si mesmo”285.

3.2 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS

PRIMEIROS E SUPREMOS

A doutrina dos Princípios, também denominada

Protologia286, refere-se à outra tese – aquela de maior valor

citada de modo alusivo no Fedon287, o ensinamento mais

283 PLATÃO. A República. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,

1976, 475 E – 476 A. 284 PLATÃO. Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 247

C – E. 285 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

143. 286 Discurso sobre os Princípios primeiros. 287 Fédon, 101 D – 102 A.

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precioso288 que foi confiado à oralidade dialética - capaz de

garantir um resultado satisfatório frente aos limites da

teoria das Ideias. Estes Princípios supremos são o Uno e a

Díade do grande e do pequeno.

Essa doutrina é o fruto de uma conferência intitulada

Sobre o Bem, proferida por Platão após a fundação da

Academia289. Ao ouvi-la, alguns de seus discípulos teriam

tomado nota, dentre eles, Aristóteles e Xenócrates. Porém, o

episódio configurou-se uma tentativa frustrada de levar a

doutrina platônica para fora da Academia290.

A Protologia além de revelar o duplo nível de

fundação metafísica, soluciona o problema da

multiplicidade inteligível. Com efeito, em conformidade

com a máxima que rege o pensamento grego291, Platão sente

a necessidade de subir a um segundo nível de fundação

metafísica:

como a esfera do múltiplo sensível depende da esfera

das Idéias, assim, analogamente, a esfera da

multiplicidade das Idéias depende de uma ulterior

esfera de realidade, da qual derivam as próprias

288 Fédro, 278 B – E. 289 DUMONT, J-P. Elementos de História da Filosofia Antiga.

Brasília: UnB, 2004, p. 287. 290 ARISTÓXENO. Elementos de Harmonia. II, p. 39-40, Da Rios

apud BRISSON, L. Leituras de Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS,

2003, p. 111. 291 Conhecer é unificar.

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Idéias, e esta é a esfera suprema e primeira em

sentido absoluto292.

Nos escritos o princípio absoluto e incondicionado é

identificado com o Bem. No ensinamento oral, Platão

identifica-o com o Uno e a Díade. Eles exigem-se

estruturalmente. A pluralidade e a gradação dos seres

nascem da ação do Uno na Díade, da determinação de sua

multiplicidade indeterminada. Desse modo, os seres

manifestam-se como uma unidade-na-multiplicidade: “cada

coisa é una, enquanto é algo definido e determinado”293.

292 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

159. 293 ALEXANDRE DE AFRODÍSIA. Commentario alla Metafisica di

Aristotele apud KRÄMER, H. Platone e i Fondamenti della

Metafísica. Terza edizione. Milano: Vita e Pensiero, 1989, p. 385:

“Ciascuna cosa è infatti una, in quanto à qualcosa di definido e di

determinato”.

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4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E O

SIGNIFICADO E ALCANCE DA METAFÍSICA

DE PLATÃO

4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO

A doutrina do Demiurgo apesar de estar presente no

Fédon e ter sido retomada nos diálogos subsequentes,

recebeu uma extensa exposição somente no tardio Timeu.

Como vimos, a teoria das Ideias e a Protologia

fornecem o fundamento do cosmo sensível, mas não

explicam porque e como ele passou a existir, pois entre os

planos inteligível e sensível há uma relação de dependência

ontológica unilateral e não reversível, onde o primeiro pode

ser pensado sem o segundo, mas não vice-verça. “O plano

mais alto oferece somente condições necessárias, mas não

também suficientes para o plano sucessivo”294.

É o Demiurgo que exerce esse papel de causa

suficiente. Ele apresenta-se como o mediador entre os dois

planos. Distingue-se do restante do cosmo e possui uma

existência pessoal. É um ser capaz de consciência e vontade. 294 KRÄMER, H. Platone e i Fondamenti della Metafísica. Op. cit., p.

164: “Il piano più alto offre solamente condizioni necessarie, ma non

anche sufficienti per il piano successivo”.

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Sua ação é caracterizada como um levar do não-ser

ao ser, um trazer para a existência o que antes não

existia295, conferindo-lhe um estatuto ontológico. Ele opera

em função do Bem, dispondo e ordenando cada coisa do

melhor modo. Tendo em vista o modelo imutável e sempre

igual a si mesmo – as Ideias – plasma o princípio material

informe – a chora – que é eterno e preexistente ao cosmo,

denominado também como “matriz de tudo o que

devém”296.

O Demiurgo, auxiliado pelos entes matemáticos,

modela a chora de modo que, “a racionalidade dos corpos

sensíveis e do mundo corpóreo sensível em geral depende

exatamente da sua estrutura geométrica e matemática, que

torna possível a ‘imitação’ do modelo inteligível”297.

Platão afirma que o Demiurgo, por ser o “bom” em

mais alto grau e por atualizar o Bem no seu ato criador,

seria incapaz de levar a cabo uma obra que não fosse a

“mais bela de todas”298, por isso, “quis que, na medida do

possível, todas as coisas fossem semelhantes a ele”299.

295 PLATÃO. Sofista. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980, 219

B e 265 B. 296 PLATÃO. Timeu. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1977, 49

A. 297 RELAE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. Cit.,

p. 238: “La razionalità dei corpi sensibili e del mondo corporeo

sensibili in generale dipende esattamente dalla struttura geometrica e

matematica, che rende possibile l’imitazione dei modelli intelligibili”. 298 Timeu, 29 E – 30 B. 299 Idem.

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4.2 PAPEL E ALCANCE DA METAFÍSICA DE

PLATÃO

Platão está situado no vértice do pensamento antigo e,

permanecendo nesse mesmo âmbito, podemos afirmar que

sua filosofia constitui o eixo de sustentação mais

significativo do modo de pensar dos gregos300. Desde a

antiguidade, Platão tem-se constituído num verdadeiro

manancial para o pensamento ocidental:

Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em

que Platão ocupava o centro do universo espiritual da

Grécia e em que todos os olhares convergiam para a

sua Academia, e ainda hoje se continua a definir o

caráter de uma filosofia, seja ela qual for, pela sua

relação com aquele filósofo301.

Henrique Cláudio de Lima Vaz, afirma que “o gesto

inaugural de toda a decisão autêntica de filosofar dentro da

nossa tradição é um encontro ou um reencontro com

Platão”302.

300 REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994,

p. 7 et seq. 301 JAEGER, W. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.

581. 302 VAZ, H. C. L. Platão Revisitado. Ética e Metafísica nas Origens

Platônicas. In: Síntese Nova Fase. Belo Horizonte: Centro de Estudos

Superiores – SJ, 1993, n. 61, p. 182.

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Sua segunda navegação, enquanto primeira

demonstração racional da existência de um ser supra-

sensível e transcendente que dá sentido ao ente sensível em

todas as suas manifestações, configura-se como rejeição de

toda e qualquer forma de materialismo.

“As Idéias representam a figura especulativa do

pensamento de Platão que teve maior sucesso”303, com uma

série de repensamentos e influenciando grandes pensadores

em pontos fundamentais de sua filosofia. Grosso modo,

“uma história da interpretação da teoria das Idéias cobriria

grande parte da história da filosofia ocidental, justamente

num dos seus pontos capitais”304.

Quanto à doutrina dos Princípios, há um filósofo

contemporâneo a nós que, apesar de ser antimetafísico,

retomou a grande tese platônica da estrutura bipolar dos

Princípios. Seu nome: Edgar Morin305. Para ele ordem e

desordem cooperam e tudo o que existe nasce dessa

cooperação.

Já a doutrina do Demiurgo, mesmo não sendo uma

doutrina criacionista propriamente dita (não ao menos em

sentido bíblico), é o que podemos chamar de

semicriacionismo – “a mais alta forma de criacionismo

alcançada pelo pensamento helênico”306.

303 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

117. 304 Ibidem, p. 118. 305 REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 233. Edgar Morin,

(1921) é um dos maiores expoentes da cultura francesa do século XX. 306 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.

521.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como percebemos, quando circunscritas à physis, as

respostas referentes à causa da geração, da corrupção e do

ser das coisas revelam-se insuficientes e até mesmo

contraditórias. O sensível não é capaz de explicar-se por si

mesmo. Desse modo, é preciso recorrer a uma causa de

natureza não-física, supra-sensível e inteligível que seja a

razão do seu ser.

É somente com a segunda navegação, que

conseguimos descobrir essa causa capaz de explicar o

sensível de modo satisfatório. Ela conduziu Platão à

descoberta da dimensão metaempírica e transcendente do

ser. Nela estão presentes os três domínios fundamentais da

metafísica de Platão – a teoria das Ideias, a doutrina dos

Princípios e a doutrina do Demiurgo – que, apesar de

distintos, estão em estreita conexão.

A teoria das Ideias e a doutrina dos Princípios

fornecem o fundamento do ser, mas não esclarecem porque

e como ele passou a existir. Nesse ponto entra em cena a

figura teorética do Demiurgo que, ao explicar como e

porque o mundo passou a existir, salva a metafísica

platônica de um sistema dedutivo e emanacionista. O

Demiurgo, ao contemplar o modelo inteligível, plasma o

princípio material e cria livremente o cosmo sensível num

gesto de bondade e amor, fazendo-o passar da desordem à

ordem, do caos ao cosmo.

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Ao problema referente à causa da geração, da

corrupção e do ser das coisas Platão apresenta uma única

resposta – só pode ser explicado recorrendo-se a uma causa

não-física, supra-sensível e inteligível – porém, articulada

em três âmbitos que, apesar de distintos, são estruturalmente

conexos.

Não obstante, é perceptível que Platão antecipou as

quatro causas apresentadas por Aristóteles na Metafísica: as

Ideias desempenham a função de causa formal; a chora

exerce a função de causa material; o Demiurgo é a causa

eficiente; e o Bem-Uno, enquanto orienta a ação do

Demiurgo, é a causa final. Todavia, reserva-se a Aristóteles

o mérito de tê-las sistematizado.

Por fim, é inegável que Platão constitui verdadeiro

manancial para o pensamento ocidental. A segunda

navegação confere o estatuto de paradigma a filosofia

platônica e impulsiona as demais num movimento de

convergência ou de divergência à ela. Gostem ou não, desde

a antiguidade e ainda hoje, o caráter de uma filosofia é

definido pela relação que ela mantém com a filosofia de

Platão.

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non scrite di Platone con una raccolta dei

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Metafísica nas origens platônicas. In: Síntese

Nova Fase. Revista trimestral da Faculdade de

Filosofia da Companhia de Jesus. Belo

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Horizonte: Centro de Estudos Superiores – SJ,

1993, n. 61.

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Os primeiros filósofos dedicaram um grande esforço na

busca pela arché, o princípio originário único, capaz de

explicar a totalidade do real. Assim como os

naturalistas, Platão também busca a causa do real.

Percebendo que os naturalistas confundiram a

verdadeira causa com a concausa material, concluiu que

deveria buscar um novo método. Ao redirecionar a

busca pela verdadeira causa, empreendeu aquela que,

metaforicamente, denominou de segunda navegação – a

grande novidade e o ponto fundamental de sua filosofia.

Este novo modo de filosofar conduziu-o à descoberta da

dimensão supra-sensível do ser. A teoria das Ideias está

em sua etapa inicial, ao passo que a doutrina dos

Princípios está na etapa final. Coube a Platão

redirecionar a doutrina da Inteligência cósmica e dar-lhe

uma fundamentação adequada, ao elaborar a doutrina do

Demiurgo – o grande mediador entre mundo sensível e

mundo inteligível. Desde a antiguidade, e, ainda hoje, o

caráter de uma filosofia é definido pela relação que

mantém com a filosofia de Platão.