PNUD_Curso_a_distancia_Assentamentos precários

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c ur s o a dis t nc i a

aes integradas de urbanizao de assentamentos precrios 2010 - 2a edio

coordenao da 1 edio do cursoministrio das cidades Ins Magalhes, Secretria Nacional de Habitao Jnia Santa Rosa, Diretora DICT/SNH Ana Lcia Ancona, Consultora Rosana Denaldi, Consultora escola politcnica da usp - Fdte Alem Abiko, Professor titular Luiz Reiterado A. Cardoso, Professor doutor Eduardo Toledo Santos, Professor doutor aliana das cidades Giorgio Romano, Coordenador-Geral Brasil Mariana Kara Jos, Consultora

coordenao da 2 edio do cursoministrio das cidades Jnia Santa Rosa, Diretora DICT/SNH Rosana Denaldi, Consultora

coordenao executiva da 2 edio do cursoJlia Lins Bittencourt, DICT/SNH Rodrigo Morais Lima Delgado, DICT/SNH

apoioaliana das cidades Anaclaudia Rossbach, Coordenadora-Geral Brasil Mariana Kara Jos, Consultora

organizao da publicao Rosana DenaldiDesign grfico e diagramao Maria Helena Werneck Bomeny edio e reviso ortogrfica Publisher Brasil Editora Carlos Rizzo Edma Garcia Neiva

aes integradas de urbanizao de assentamentos precrios braslia/ so paulo: ministrio das cidades/aliana de cidades primeira impresso: janeiro de 2009. 348 p. 1. Habitao brasil. 2. poltica Habitacional brasil. 3. poltica urbana brasil. i. ttulo cdu: 333.32 (81) isbn: 978-85-7958-006-2

apresentao - ministrio das cidades

Este livro rene as apostilas da 2 edio do Curso a Distncia: Aes Integradas de Urbanizao de Assentamentos Precrios promovido pela Secretaria Nacional de Habitao do Ministrio das Cidades em parceria com a Aliana de Cidades e o Instituto do Banco Mundial (WBI). A promoo deste curso faz parte de um conjunto de aes de desenvolvimento institucional voltadas capacitao de agentes pblicos e sociais para o desenvolvimento de projetos e programas de urbanizao de assentamentos precrios, de acordo com as diretrizes da nova Poltica Nacional Habitacional. O curso tem como objetivo principal a capacitao de tcnicos municipais para o desenvolvimento e melhor qualificao de projetos de investimentos em assentamentos precrios previstos no Programa de Acelerao do Crescimento (PAC). Vale ressaltar que o PAC prev o investimento de R$ 18,4 bilhes em recursos no onerosos na rea habitacional entre 2007 e 2010, voltados para aes integradas de urbanizao, melhorias habitacionais e saneamento ambiental em assentamentos precrios. O sucesso da 1 edio do curso adistncia demonstrou o carter bem-sucedido da parceria entre o Governo Federal e a Aliana das Cidades, na qual o Ministrio das Cidades e a Caixa Econmica Federal so membros ativos desde 2003. O sucesso do curso tambm foi garantido pelo excelente corpo dos professores convidados, constitudo por especialistas de diversas instituies de ensino e pesquisa com grande experincia acumulada na rea de habitao e urbanizao de assentamentos precrios. Mantendo o formato da 1 edio, este curso foi organizado em trs mdulos, abordando aspectos conceituais e metodolgicos pertinentes anlise da questo habitacional e urbana no Brasil, alm de todos os aspectos relacionados operacionalizao das intervenes em assentamentos precrios, incluindo: o planejamento municipal, a participao social, a regularizao fundiria e as obras de urbanizao, nas fases de definio de diretrizes, projeto, execuo, avaliao e monitoramento.

A riqueza dos assuntos abordados no curso e que reunimos neste livro, com as apostilas que o subsidiaram, expressa a relevncia do tema abordado e o sucesso de sua realizao. A partir dessa primeira experincia, foi possvel Secretaria Nacional de Habitao aprofundar seus conhecimentos sobre a realidade urbana da regio Nordeste, primeira regio do pas a ser capacitada nesse curso distncia. Assim sendo, considerado o xito da primeira experincia, explicitada principalmente no envolvimento e dedicao dos participantes, ampliamos a aplicao do curso para as demais regies do pas, replicando os aspectos de sucesso da iniciativa. Reforamos nosso entendimento de que o grande desafio para o desenvolvimento urbano do Brasil est na formao de cidades mais justas e menos desiguais. Para enfrentar este desafio, temos a convico da necessidade de superar a implementao de aes isoladas, buscando promover a articulao entre investimentos pontuais e o planejamento habitacional e urbano. Aes como a realizao do curso a distncia trazem esse princpio, que fundamento da nova Poltica Nacional de Habitao, em implementao desde 2003. Em nome da Secretaria Nacional de Habitao, sado a todos os participantes - alunos, professores, equipe de apoio, membros da coordenao e instituies parceiras e desejo sucesso no aprendizado.

ins magalhes Secretria Nacional de Habitao Ministrio das Cidade

apresentao - aliana de cidadesao4aprendizado4ao

A Aliana de Cidades foi lanada em 1999 em Berlim por seus cofundadores, a ONU-Habitat e o Banco Mundial. Seus objetivos so melhorar a coerncia e a articulao dos esforos entre doadores internacionais e parceiros para o desenvolvimento, e reforar a luta dos pases em desenvolvimento para enfrentar dois grandes desafios: o crescimento das favelas e a sustentabilidade das cidades no longo prazo. A primeira ao da Aliana de Cidades foi elaborar o Plano de Ao City without Slums. Lanado por seu patrono, o presidente Nelson Mandela, o Plano foi subsequentemente incorporado aos Objetivos de Desenvolvimento do Milnio da ONU, reconhecendo-se, de forma indita, o desafio de abordar a realidade das favelas como uma prioridade para o desenvolvimento global. Por meio de seus 26 membros a Aliana de Cidades estabelece parcerias com centenas de cidades ao redor do mundo. Com base nesse acmulo de experincias vem construindo um entendimento cada vez mais claro sobre o que constitui estratgias efetivas para intervir em assentamentos precrios. O termo City without Slums, inspirador para muitos ou criticado e, algumas vezes, mal interpretado por outros est agora associado Aliana de Cidades e aos seus membros. Gradativamente, governos locais e nacionais esto-se afastando do discurso de erradicao de favelas e da transferncia do problema para outras reas por meio de despejos forados. Comea a prevalecer a convico de que a chave para a urbanizao de favelas , de fato, garantir uma cidade inclusiva para todos os seus moradores. Urbanizao de favela bem-sucedida provoca, ao longo do tempo, trs impactos simultneos:

4o morador conquista a sua cidadania 4o barraco transformado em uma casa 4a favela vira um bairro

Muitas vezes, a busca por uma soluo rpida e padronizada ofusca a necessidade de se tomar decises estruturantes e qualificadas como, por exemplo, a oferta de terra urbanizada com a garantia da proviso de servios pblicos ou a focalizao das prioridades incluindo previso oramentria correspondente ao longo do tempo. Estratgias bem-sucedidas de urbanizao de favela, feitas de forma sustentada e em uma escala que abranja toda a cidade, exigem muitos esforos. Porm no h mgica. Uma viso clara, polticas pblicas comprometidas de longo prazo e a participao efetiva das comunidades envolvidas so alguns dos principais elementos. O Brasil tem desempenhado um papel cada vez mais importante desde que se tornou o primeiro pas em desenvolvimento a aderir, em 2003, Aliana de Cidades como membro pleno. A Aliana tem acompanhado com grande interesse os investimentos, sem precedentes, em urbanizao de favelas disponibilizados no mbito do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC). Como uma rede de conhecimento, apreciamos a oportunidade de colaborar com o Ministrio das Cidades na elaborao e implementao do Curso a Distncia de Urbanizao de Assentamentos Precrios. Com a utilizao de novas tecnologias, o treinamento a distncia tem o potencial de atingir um pblico mais amplo, envolvido diretamente na execuo de programas de urbanizao de favelas, ao mesmo tempo em que propicia uma plataforma para que diferentes cidades e instituies troquem experincias entre si. Por fim, a Aliana de Cidades gostaria de agradecer o apoio da Universidade de So Paulo, na concepo e implementao original do curso, bem como do Instituto do Banco Mundial (WBI), com sua vasta experincia em aprendizado a distncia. Esperamos que essa iniciativa baseada nesta parceria multi-institucional contribua com os esforos para melhorar a vida da populao mais pobre.

William cobbett Diretor-Geral Aliana de Cidades

sumrio

apresentao - ministrio das cidades apresentao - aliana de cidades

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mdulo 1:

poltica urbana e Habitacional no brasil

1

o processo de urbanizao brasileiro e a funo social da propriedade urbanaJoo sette Whitaker Ferreira

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2

poltica e sistema nacional de Habitao, plano nacional de Habitaonabil bonduki rossella rossetto Flvio Henrique ghilardi

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mdulo 2:

eixos da ao integrada em assentamentos precrios

3

necessidades habitacionais no brasiladauto lcio cardoso rosane lopes de arajo Flvio Henrique ghilardi

63

4 5mdulo 3:

assentamentos precrios: identificao, caracterizao e tipologias de interveno 93rosana denaldi

regularizao fundiriacelso santos carvalho

129

operacionalizao das intervenes integradas em assentamentos precrios

6

definio das diretrizes de intervenoricardo moretti Francisco comaru patricia samora

161

7 8

trabalho social e participaotassia de menezes regino

194

normas especficas e metodologia para projetos e obras de urbanizao e recuperao ambiental de assentamentos precrioslaura machado mello bueno eleusina lavr Holanda de Freitas

241

9

planejamento, gerenciamento e controle de obrasluiz reynaldo de azevedo cardoso

279

Bibliografia complementar Monitoramento e avaliao de programas de ao integrada em assentamentos precriosFrancesco notarbartolo di villarosa autores

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Poltica urbana e habitacional no Brasilaul a 1

Mdulo 1

o processo de urbanizao brasileiro e a funo social da propriedade urbana

Joo Sette Whitaker Ferreira

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aula 1: o proceSSo de urbanizao braSileiro e a Funo Social da propriedade urbana

Mdulo 1

o proceSSo de urbanizao braSileiro e a Funo Social da propriedade urbana

aula 1

introduo1

O primeiro mdulo Poltica urbana e habitacional no Brasil apresenta uma viso geral dos problemas urbanos e habitacionais do pas, trata da evoluo da ao governamental e destaca, no perodo recente, a Poltica Nacional de Habitao (PNH) e o Sistema Nacional de Habitao (SNH). Trata do contexto no qual se insere a discusso do Plano Local de Habitao de Interesse Social (PLHIS). O mdulo se organiza em duas aulas: O processo de urbanizao brasileiro e a funo social da propriedade urbana e Poltica e Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social, Plano Nacional de Habitao. Esta aula apresenta um breve relato da trajetria da poltica habitacional e urbana no Brasil e destaca a questo fundiria. Trata do papel dos movimentos populares pela reforma urbana na aprovao do Estatuto da Cidade e tambm da aplicao dos instrumentos previstos para fazer cumprir a funo social da terra e enfrentar as desigualdades socioespaciais.

1. Os itens de 1 a 4 foram extrados da primeira edio da apostila Poltica urbana produzida por Joo Sette Whitaker Ferreira e Margareth Uemura para o curso a distncia Aes integradas de urbanizao de assentamentos precrios promovido pelo Ministrio das Cidades, em parceria com a Aliana de Cidades. O item 5 Funo social da propriedade urbana no Estatuto da Cidade, Planos Diretores e Poltica Habitacional foi baseado na apostila Acesso moradia, produzida por Claudia Virgnia de Souza, Jnia Santa Rosa e Rosana Denaldi, para o curso a distncia Acesso terra urbanizada: regularizao fundiria e implementao de planos diretores, promovido pelo Ministrio das Cidades e Universidade Federal de Santa Catarina, e na apostila Poltica Urbana, produzida por Joo S. W. Ferreira e Margareth Uemura, para a primeria edio do curso a distncia Aes integradas de urbanizao de assentamentos precrios, tambm promovido pelo Ministrio das Cidades.

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Mdulo 1: POltiCA URbAnA e hAbitACiOnAl nO bRASil

1. crescimento urbano: segregao e excluso socioespacialO Brasil tem hoje cerca de 80% da populao vivendo nas cidades. Este crescimento da populao foi acompanhado do agravamento dos problemas ambientais e das desigualdades socioespaciais. Nos principais centros metropolitanos de 20% a 40% da populao total reside em favelas2. bastante comum ouvirmos que a dramtica situao em que esto as cidades brasileiras uma decorrncia natural do crescimento acelerado de suas metrpoles. como se o caos urbano, as favelas, o transporte precrio, a falta de saneamento, a violncia, fossem caractersticas intrnsecas s cidades grandes, justificando a enorme dificuldade do poder pblico em resolver esses problemas e gerir a dinmica de produo urbana. Essa , entretanto, uma viso ingnua. Ao contrrio dos pases industrializados, o grave desequilbrio social que assola as cidades brasileiras assim como outras metrpoles da periferia do capitalismo mundial resultante no da natureza da aglomerao urbana por si s, mas sim da nossa condio de subdesenvolvimento. Em outras palavras, as cidades brasileiras refletem, espacialmente e territorialmente, os graves desajustes histricos e estruturais da nossa sociedade que, como muitos autores j ressaltaram, esto diretamente vinculados s formas peculiares da formao nacional dependente e do subdesenvolvimento. A desigualdade social das cidades brasileiras tem, portanto, suas causas nas formas com que se organizou nossa sociedade, na maneira com que se construiu um Estado patrimonialista em que se confundem o interesse pblico e o privado , nas dinmicas de explorao do trabalho impostas pelas elites dominantes desde a colnia e, principalmente, no controle absoluto dessas elites sobre o processo de acesso terra, tanto rural quanto urbana, como veremos adiante. Assim, j no sculo XIX, no auge da economia cafeeira agroexportadora, nossas cidades apresentavam forte segregao socioespacial, decorrentes da herana colonial e escravocrata. A industrializao incipiente, especialmente em So Paulo e no Rio de Janeiro no incio do sculo XX, iria aprofundar essa lgica, relegando a populao operria, geralmente composta de imigrantes e ex-escravos, e ainda pouco numerosa, para bairros insalubres e precrios de periferia. Como veremos no prximo tpico, contrastando com os bairros ricos do centro, objetos constantes de planos urbansticos de embelezamento, proliferavam os cortios, as habitaes coletivas de aluguel e as favelas, muitas vezes por iniciativa de fazendeiros, profissionais liberais e comerciantes que viam nessa atividade imobiliria uma boa forma de aumentar sua renda (BONDUKI, 1998). Mas se podemos dizer que essa primeira urbanizao se deu sobre uma matriz j marcada pela segregao social e a excluso desde a poca da colnia, foi de fato a forte industrializao da segunda metade do sculo XX, com a migrao rural-urbana do Nordeste em direo aos polos industriais do Sudeste, que iria exacerbar a tragdia urbana brasileira (KOWARICK,122. lAbhAb FAUUSP, citado por MARiCAtO (2001, p.38)

aula 1: o proceSSo de urbanizao braSileiro e a Funo Social da propriedade urbana

1993). Tal fenmeno no foi exclusivamente brasileiro: de fato, a oferta de mo de obra barata nos pases do Sul (da periferia do capitalismo, ver MARICATO, 1996) alavancou em muitos deles uma rpida industrializao promovida pelo deslocamento, para essas regies, das grandes multinacionais dos pases centrais, a partir da dcada de 1950. No Brasil, como em outros pases da periferia do capitalismo mundial, a atratividade exercida pelos polos industriais sobre a massa de mo de obra disponvel no campo provocou, a partir da dcada de 1960, uma significativa exploso urbana. Entretanto, esse crescimento econmico tinha justamente como condio a manuteno do baixo valor da mo de obra, razo da nossa insero na expanso do capitalismo internacional, sendo portanto um crescimento estruturalmente concentrador da renda, baseado em baixos salrios. A famosa frase supostamente atribuda ao Ministro da Fazenda entre 1969 e 1974, de que antes era preciso fazer crescer o bolo, para depois distribu-lo, explicita bem um processo que autores como Roberto Schwarz ou Francisco de Oliveira chamaram de industrializao com baixos salrios. Hoje, o Brasil ainda apresenta (dados do IPEA de 15 de maio de 2008) um cenrio em que os 10% mais ricos da populao se apropriam de 75% das riquezas do pas. Assim, fcil entender que o milagre econmico, se por um lado garantiu um crescimento significativo, levando o pas ao oitavo posto da economia mundial, por outro lado o fez s custas da estagnao do desenvolvimento (a saber, a justa distribuio do crescimento econmico para o conjunto da populao, formando um mercado de consumo amplo), e da manuteno da misria. Ao contrrio do que ocorrera nos EUA aps a depresso de 1930 e o lanamento do New Deal, e na Europa, no ps-guerra, onde a expanso industrial se deu em um processo de incluso social capitaneado pelo Estado do Bem-Estar Social, com vistas estruturao de um mercado de consumo de massa, elevando os nveis de renda da populao, por aqui se estruturou um sistema oposto, de deixe-estar social, em que a populao pobre era relegada ao abandono, mantendo os baixos preos da mo de obra, enquanto o Estado-empresarial agia em total harmonia com os interesses das empresas que sustentavam nossa industrializao. De certa forma, o Estado brasileiro, marcado pelo patrimonialismo (FAORO, 1958), aperfeioou-se como um instrumento sob o controle das elites: suas aes portanto no foram pensadas, ao longo da nossa histria, com o mesmo sentido de pblico do Estado do Bem-Estar Social, em que este designava em essncia, toda a sociedade. No Brasil, o pblico sempre se restringiu a uma parcela minoritria da populao. Aquela que compe nosso limitado mercado de consumo (hoje em expanso), e comum ainda hoje ver polticas urbanas destinadas s melhorias da cidade formal privilegiada, enquanto que obras essenciais e urgentes nas periferias pobres so preteridas. Assim, um retrospecto da ao do Estado, em todos os nveis e em todo o Pas, no campo urbanstico, mostra um conjunto de polticas que muitas vezes excluem em vez de incluir, desintegram em vez de integrar, dificultam em vez de facilitar, em especial quando se trata de atender as demandas das classes sociais mais baixas.13

Mdulo 1: POltiCA URbAnA e hAbitACiOnAl nO bRASil

Isso mostra as dificuldades que tm hoje as prefeituras e demais rgos pblicos quando se interessam em implementar polticas que invertam essa lgica perversa, atendendo prioritariamente as camadas mais pobres da populao: engrenagens seculares ancoradas em anos de burocracia e clientelismo, em que a poltica do favor imperava e tornava-se a regra, criam um emaranhado jurdico-institucional, burocrticoadministrativo, muitas vezes de difcil soluo. Ainda assim, acredita-se que os avanos obtidos graas mobilizao dos setores sociais implicados com a chamada reforma urbana, sobre os quais falaremos adiante, e que culminaram na aprovao do Estatuto da Cidade, em 2001, possam abrir novas possibilidades para uma ao pblica socialmente mais justa e includente. Do ponto de vista urbano, portanto, a ausncia de suporte pblico ao processo de crescimento decorrente da industrializao da segunda metade do sculo XX levou ao que Ermnia Maricato chamou similarmente ao processo econmico, de urbanizao com baixos salrios. Por princpio, o sistema implantado restringia a possibilidade de se oferecer habitaes, infraestrutura e equipamentos urbanos que garantissem qualidade de vida aos trabalhadores. A melhor poltica habitacional e urbana era a da no ao, deixando as cidades brasileiras conformarem suas enormes periferias sob o signo da informalidade urbanstica e da autoconstruo como nica soluo habitacional. No perodo militar, as pssimas condies de vida da populao mais pobre levaram o governo a estruturar uma poltica habitacional um pouco mais significativa, em torno do Sistema Financeiro de Habitao (SFH). Entretanto, o recorte economicista e privatista, voltado mais aos interesses do crescimento econmico e ao favorecimento das grandes empreiteiras, fez com que o perodo do SFH/Banco Nacional da Habitao (BNH), embora tenha produzido mais de quatro milhes de unidades, tenha sido marcado pela pssima qualidade das construes, a generalizao do favor e das trocas eleitorais como regra para o atendimento populao, e a reproduo de um padro urbano altamente oneroso para o poder pblico pelo qual, invariavelmente, os conjuntos habitacionais eram produzidos em reas distantes e sem infraestrutura. Incentivava-se assim a especulao nas reas intermedirias, o custoso (mas interessante para os grandes contratos de obras pblicas) espraiamento da infraestrutura urbana, a reteno da terra urbanizada mais central (e valorizada) para os setores dominantes de maior poder aquisitivo, a formao de grandes conjuntos monofuncionais nas periferias e, portanto, a formao de cidades cada vez mais desiguais e marcadas pela segregao socioespacial. Sobretudo, a poltica habitacional beneficiava apenas a populao com renda superior a trs salrios mnimos. O resultado desse processo foi a exploso urbana nas grandes cidades brasileiras, que expressam hoje a calamidade social de um pas cujo desenvolvimento combina o atraso com o moderno. Se, em 1940, a populao urbana no Brasil era de apenas 26,34% do total, em 1980 ela j era de 68,86%, para chegar em 81,20% em 2000. Em dez anos, de 1970 a 1980, as cidades com mais de um milho de habitantes14

aula 1: o proceSSo de urbanizao braSileiro e a Funo Social da propriedade urbana

dobraram, passando de cinco para dez (MARICATO, 1996). Ao mesmo tempo, as 11 regies metropolitanas do pas apresentam taxas que giram em torno de 40% da sua populao vivendo na informalidade urbana em assentamentos precrios3 seja em favelas, loteamentos clandestinos ou cortios (BUENO, 2000). Corroborando tais nmeros, o Censo Demogrfico mostra que esto nesta condio aproximadamente 40,5% do total de domiclios urbanos brasileiros, ou 16 milhes de famlias, das quais 12 milhes so famlias de baixa renda, que auferem renda familiar mensal abaixo de cinco salrios mnimos (ROLNIK, 2008)4. Do ponto de vista da produo de seu espao, nossas cidades sofrem o problema da sociedade subdesenvolvida: a subordinao absoluta lgica dos negcios. Flvio Villaa (2001) mostrou como, na maior parte das capitais do pas, verifica-se recorrentemente um eixo de desenvolvimento produzido pelas elites em seus deslocamentos em busca das reas mais privilegiadas para se viver. Em uma clara inverso de prioridades, os governos municipais investem quase que exclusivamente nessas pores privilegiadas da cidade, em detrimento das demandas urgentes da periferia. O resultado disso visvel para todos: ilhas de riqueza e modernidade nas quais se acotovelam manses, edifcios de ltima gerao e shoppings centers, e que canalizam a quase totalidade dos recursos pblicos, geralmente em obras urbansticas de grande efeito visual, porm de pouca utilidade social. Para alm desses bairros privilegiados, temos um mar de pobreza, cuja marca a carncia absoluta de investimentos e equipamentos pblicos. Se considerarmos que a dinmica de mercado imobilirio e dos investimentos em infraestrutura acontecem apenas na cidade formal (embora exista at nas favelas um mercado imobilirio informal bastante ativo) temos que 50% ou mais do territrio se reproduzem sem nenhum controle ou regulao, e esse um problema estrutural central de nossa realidade urbana.

3. Se tomarmos a definio da OnU do que um assentamento precrio trata-se de um assentamento contguo, caracterizado pelas condies inadequadas de habitao e/ou servios bsicos. Um assentamento precrio frequentemente no reconhecido/considerado pelo poder pblico como parte integral da cidade. So cinco componentes que refletem as condies que caracterizam os assentamentos precrios: status residencial inseguro; acesso inadequado gua potvel; acesso inadequado a saneamento e infraestrutura em geral; baixa qualidade estrutural dos domiclios; e adensamento excessivo. em um assentamento precrio, os domiclios devem atender pelo menos uma das cinco condies acima. 4. ROlniK, Raquel. Marco regulatrio e acesso ao solo urbano limites e possibilidades. Aula do curso a distncia Implementao dos planos diretores e regularizao fundiria promovido pelo Ministrio das Cidades.

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Mdulo 1: POltiCA URbAnA e hAbitACiOnAl nO bRASil

Alm disso, o atual quadro urbano continua mostrando um exagerado ritmo de crescimento das periferias pobres em relao aos centros urbanizados metropolitanos, que paradoxalmente esto se esvaziando, evidenciando a ineficcia das polticas urbanas, ou talvez sua eficcia em aprofundar um sistema que interessa s elites. Enquanto a taxa mdia de crescimento anual das cidades brasileiras de 1,93%, o crescimento na periferia de So Paulo, por exemplo, em algumas regies chega a taxas superiores a 6% ao ano. Em compensao, o centro da cidade apresenta taxas de crescimento negativo, em torno de 1,2%. A populao pobre invariavelmente relegada s periferias distantes, geralmente sem urbanizao nem saneamento. Por cima disso, e como era tpico do Estado patrimonialista de que comentamos acima, as polticas de transporte sempre privilegiaram o transporte individual e elitizado caracterizado pelo automvel, investindo exclusivamente em obras virias em detrimento de sistemas de transporte pblico de massa. Por isso, a populao mais pobre perde horas de seu dia apertada em nibus e trens, precrios e insuficientes. Os pobres so bem aceitos na cidade formal, desde que seja para trabalhar, onde servem para o funcionamento da cidade e da economia dos mais ricos. Para morar, entretanto, devem retirar-se aos seus bairros afastados, como em um apartheid espacial velado, porm muito significativo. preciso, por fim, ressaltar um fenmeno mais recente: a sobreposio do drama urbano a uma verdadeira tragdia ambiental. Enquanto tais formas de urbanizao espraiada ocorriam por sobre territrios urbanizveis, as cidades simplesmente viam crescer mais e mais loteamentos de periferia, mesmo que irregulares e/ou clandestinos, havendo terras disponveis para esse fim. medida que estas reas vo sendo ocupadas, que a terra se torna escassa, avana sobre ela o mercado imobilirio, sempre expulsando para um pouco mais longe os que no conseguem arcar com a valorizao decorrente. A partir da dcada de 1990, quando a escassez de reas para assentamento dos mais pobres se tornou dramtica, s restou a essas faixas da populao instalarem-se no sem o apoio muitas vezes irresponsvel dos prprios polticos nas nicas reas onde, por lei, nem o Estado nem o mercado imobilirio podem atuar: as reas de proteo ambiental, beiras de crregos, mananciais, encostas de florestas protegidas foram pouco a pouco sendo ocupadas, sob a benevolncia do Estado e de toda a sociedade. Hoje, em decorrncia, a questo ambiental torna-se um dos pontos mais sensveis da questo urbana, pois reas supostamente de proteo permanente viraram verdadeiras cidades, ilegais perante a lei, e em tal grau de consolidao que a soluo para o problema se tornou de grande complexidade. Tal cenrio evidencia o desafio de reverter o quadro de excluso e segregao socioespacial que expe uma fratura social do pas, e exige total inverso dos investimentos pblicos, de tal forma que estes passem a atender16

aula 1: o proceSSo de urbanizao braSileiro e a Funo Social da propriedade urbana

a populao de mais baixa renda, introduzindo mecanismos permanentes que lhe garantam o acesso terra legal em reas providas de infraestrutura e equipamentos. Trata-se de promover aes do poder pblico, em qualquer nvel, que rompam com a tradio patrimonialista do nosso Estado, e atendam preferencialmente os excludos, at mesmo como forma de promover a real expanso da base econmica, que no tem como suportar a lgica da restrio e da exclusividade. O sistema capitalista, por princpio, precisa de processos de expanso constante, ampliando o mercado, o consumo, gerando trabalho e renda. De certa forma, a lgica do capitalismo subdesenvolvido brasileiro uma contralgica capitalista (que levou o socilogo Florestan Fernandes a cunhar a expresso de uma contrarrevoluo burguesa, de sinal invertido em relao tradicional revoluo burguesa capitalista europeia), que gera, a persistir, deseconomias urbanas e estagna o desenvolvimento, criando, o que pior, uma bomba social a retardamento, que cada vez mais parece prestes a explodir. Os planos diretores e os instrumentos urbansticos do Estatuto da Cidade podem vir a ser ferramentas importantes nesse processo de transformao, embora no sejam por si s garantia de mudanas mais estruturais. A questo urbana est intrinsecamente associada, evidentemente, s polticas econmicas. Cidades mais justas s sero possveis se tivermos no Brasil uma redistribuio efetiva da renda, em uma poltica macroeconmica inclusiva. Tanto a questo econmica quanto a possibilidade de aplicao de instrumentos urbansticos democrticos dependem antes de tudo de posicionamentos polticos efetivamente em defesa da populao excluda. Porm, tal desafio est hoje colocado aos municpios brasileiros que devem implementar o Estatuto da Cidade em seus planos diretores. Antes de apresentar tais instrumentos, entretanto, importante compreender como se delineou a questo fundiria brasileira ao longo da histria, concomitantemente aos processos urbanos acima descritos, para melhor enfrentar o desafio que o poder pblico tem na gesto do territrio. sobre isso que trataremos no prximo tpico.

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Mdulo 1: POltiCA URbAnA e hAbitACiOnAl nO bRASil

2. Questo fundiria no brasil e as polticas para atendimento habitacional no brasil at a criao do bnHComo j foi colocado, o problema habitacional no Brasil remonta do perodo da colonizao e no pode ser separado da questo do acesso propriedade da terra. At meados do sculo XIX, a terra no Brasil era concedida pela Coroa as sesmarias , ou simplesmente ocupada, enquanto que nas cidades o Rocio era a terra municipal onde estavam as casas e pequenas produes agrcolas para o subsdio local. A terra at ento no tinha valor comercial. A promulgao da Lei de Terras, em setembro de 1850, mudou esse cenrio, ao instituir a propriedade fundiria no pas, tanto rural quanto urbana: foi legitimada a propriedade de quem j detinha cartas de sesmaria ou provas de ocupao pacfica e sem contestao. O resto, de propriedade da Coroa, passou a ser leiloado. Para ter terra, a partir de ento, era necessrio pagar por ela. Para Jos de Souza Martins (1978), a lei teve como claro objetivo bloquear o acesso propriedade por parte dos trabalhadores livres, ex-escravos e agora tambm imigrantes, de modo que eles compulsoriamente se tornassem fora de trabalho das grandes fazendas. Na prtica, a substituio do trabalho escravo pelo assalariado deu-se no Brasil ao mesmo tempo em que a terra livre se tornou privada. Nas dcadas anteriores promulgao da lei, o latifndio havia se consolidado com uma ampla e indiscriminada ocupao das terras, que expulsara os pequenos posseiros. Naquele momento os grandes latifndios consolidaram seu poder, que nunca seria perdido no cenrio poltico nacional, apesar da perda de hegemonia a partir das ltimas dcadas do sculo XIX, com o incio da industrializao e o fortalecimento das foras liberais. Na prtica, a Lei de Terras praticamente antecipou-se s grandes transformaes que viriam a ocorrer no fim do sculo, com o fim da escravido e o incio da industrializao, garantindo a propriedade da terra rural e urbana aos poderosos, antes da possibilidade de uma economia mais aberta mo de obra no escrava, e, portanto, consumidora5. As legislaes posteriores, em especial no perodo republicano, continuaram bastante vagas na definio da propriedade, ou exageradas demais nos detalhamentos para a sua venda, ou ainda imprecisas na sua demarcao, tornando assim a questo da regularizao especialmente complexa, e sujeita a fraudes e falsificaes, tornando a posse ilegal um procedimento generalizado de apropriao da terra pelos mais poderosos. No sculo XIX, quando o Rio de Janeiro ganharia uma nova dimenso urbana com a vinda da famlia real, e quando So Paulo, j no fim sculo XIX, se desenvolveria em decorrncia da prosperidade cafeeira, esta matriz fundiria rural evidentemente se transferiu sem muitas alteraes para as cidades, onde a posse da terra urbanizada iria seguir os mesmos princpios. Entretanto, as demandas sociais por habitao e infraestrutura urbana j eram significativas, e no foram contempladas, deixando imigrantes, mulatos e descendentes de escravos abandonados prpria sorte. Em 1888, ano da abolio, o Rio de Janeiro5. Ver a respeito, MARiCAtO, ermnia. Habitao e Cidade, So Paulo: Atual editora, 1997 e MARtinS, Jos de

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Souza. O Cativeiro da Terra!, So Paulo. livraria editora de Cincias humanas, 1978.

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contava com mais de 45 mil pessoas vivendo em cortios (MARICATO, 1997). Como j dito, as cidades mais importantes do pas j produziam uma forte diferenciao socioespacial, expulsando a populao pobre dos centros urbanizados. A insalubridade, as epidemias, a violncia e a alta densidade eram marcas dos bairros populares. Na transio da economia agroexportadora para a da industrializao incipiente, na passagem para o sculo XX, a tomada de hegemonia das foras polticas liberais e industrializantes no alterou a forma com que as cidades produziam a segregao socioespacial desde o perodo anterior. Como j vimos nas ltimas dcadas do sculo XIX, quando a economia e a poltica nacionais ainda eram comandadas pelos bares do caf, as maiores cidades do pas, Rio e So Paulo, eram objeto de planos urbansticos que apenas embelezavam o centro das elites e ignoravam ou mesmo incentivavam fortemente a concentrao da populao pobre nas casas precrias de aluguel, nos cortios e nas favelas que j comeavam a aparecer (BONDUKI, 1998). Assim moravam, j nas periferias urbanas, ex-escravos e imigrantes atuando nos empregos tercirios das atividades menos nobres que as cidades exigiam. Segundo Bonduki (1998), a habitao das classes populares se deu, at os anos 1930, pela da produo privada de vilas operrias ou de moradias de aluguel, que podiam ir de casas com alguma qualidade at moradias de baixo padro e coletivas, de tal forma que nesses casos era difcil diferenciar moradias de aluguel e cortios. A produo das vilas foi incentivada pelo poder pblico por meio de isenes fiscais, pois eram consideradas uma soluo de disciplinamento e higienizao das massas. Mas essas moradias de melhor qualidade, embora populares, s eram acessveis para segmentos da baixa classe mdia, como operrios qualificados, funcionrios pblicos e comerciantes, no sendo viveis para a populao mais pobre. Os cortios, de qualidade ainda pior, eram portanto, a nica forma de acesso moradia pela maioria da populao, alm de se constituir num negcio muito lucrativo para seus proprietrios. Foram fortemente combatidos em nome da sade pblica, mas se proliferaram muito, o que demonstra que a demanda por habitao para grande parte da populao j era importante. Quando os cortios se tornavam obstculos renovao urbana das reas mais nobres da cidade, eram demolidos e a massa sobrante (VILLAA, 2001) deslocada para as regies menos valorizadas pelo mercado. Na era Vargas, a partir de 1930, poca que coincide com a emergncia do Estado de Bem-Estar Social na Europa, o governo iniciou um programa de incentivo industrializao, via subsdios indstria de bens de capital, do ao, do petrleo, construo de rodovias etc. Paralelamente, instituiu no pas um novo clima poltico, com o fortalecimento do Estado e de suas aes, visando a constituio de um forte mercado de consumo interno. Apesar da perda de hegemonia, por parte da burguesia agroexportadora, o Estado populista no interfere de maneira importante em seus interesses, evitando uma reforma agrria e mantendo intacta a base fundiria do pas. No campo da moradia, a experincia dos Institutos de Aposentadorias e Penses, na dcada de 1930, que se tornaram uma referncia qualitativa na histria da arquitetura de habitao social no Brasil, foi pouco19

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significativa numericamente j que produziu, entre 1937 e 1964, apenas 140 mil moradias, a maioria destinada ao aluguel. Alm disso, a Lei do Inquilinato, de 1942, limitava as possibilidades de lucro para os proprietrios de vilas e casas de aluguel, uma vez que congelava os preos e diminua a segurana do negcio para os locadores. Acabou tendo como efeito o estmulo propriedade privada do imvel urbano, no lugar do aluguel, restringindo ainda mais o acesso habitao (MARICATO, 1997). Como j visto, a forte industrializao da segunda metade do sculo XX levou o pas a um acelerado crescimento econmico, porm baseado na necessria manuteno da pobreza e concentrao da renda. Vimos no tpico anterior que a melhor poltica habitacional era a no poltica habitacional, deixando a populao mais pobre que migrava para os grandes polos industriais sem alternativas habitacionais, sem condies de acessar a terra urbanizada, e merc de loteadores clandestinos que disseminaram a ocupao informal e irregular das periferias. Tambm j comentamos que, nesse perodo, a poltica habitacional do regime militar, o BNH6, embora com algum efeito quantitativo, teve um recorte privatista, favorecendo as grandes empreiteiras e o ciclo virtuoso do milagre econmico, sem atingir a populao abaixo dos trs salrios mnimos, justamente a que mais crescia, dada a enorme concentrao da renda. Por outro lado, a submisso da terra urbana ao capital imobilirio fazia com que, enquanto as periferias das grandes cidades expandiam seus limites e abrigavam o enorme contingente populacional de imigrantes, o mercado formal restringiasse a uma parcela da cidade e deixava em seu interior grande quantidade de terrenos vazios. Kowarick e Campanrio (1990) mostram que, em 1976, a terra retida para fins especulativos no municpio de So Paulo atingia 43% da rea disponvel para edificao. Somente em 1980 as reas perifricas ocupadas da cidade aumentaram em 480 km, permanecendo desprovidas dos servios urbanos essenciais reproduo da fora de trabalho.

3. polticas de atendimento habitacional no pas: do bnH criao do Ministrio das cidadesComo indicamos no incio do texto, a trajetria da poltica habitacional no pas tem sido marcada por mudanas na concepo e no modelo de interveno do poder pblico, especialmente no que se refere ao equacionamento do problema da moradia para a populao de baixa renda. A Fundao da Casa Popular, primeira poltica nacional de habitao, criada em 1946, revelou-se ineficaz devido falta de recursos e s regras de financiamento estabelecidas. Isso comprometeu seu desempenho no atendimento da demanda, que ficou restrito a alguns estados da federao e com uma produo pouco significativa de unidades. O modelo de poltica habitacional implementado, a partir de 1964, pelo BNH, baseava-se em um conjunto de caractersticas que deixaram marcas importantes na estrutura institucional e na concepo dominante de poltica habitacional nos anos que se seguiram. Essas caractersticas podem ser identificadas pelos seguintes elementos fundamentais:6. O bnh geria os recursos da poupana compulsria do FGtS (8% do salrio formal) e do Sistema brasileiro de Poupana e emprstimo - SbPe, poupana voluntria.

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primeiro, a criao de um sistema de financiamento que permitiu a captao de recursos especficos e subsidiados, com o Fundo de Garantia do Tempo de Servio (FGTS) e o Sistema brasileiro de poupana e emprstimo (Sbpe), que chegaram a atingir um montante bastante significativo para o investimento habitacional; o segundo elemento foi a criao e operacionalizao de um conjunto de programas que estabeleceram, de forma centralizada, as diretrizes gerais a serem seguidas, de forma descentralizada, pelos rgos executivos; terceiro, a criao de uma agenda de redistribuio dos recursos, que funcionou principalmente no nvel regional, a partir de critrios definidos centralmente; e, por ltimo, a criao de uma rede de agncias, nos estados da federao, responsveis pela operao direta das polticas e fortemente dependentes das diretrizes e dos recursos estabelecidos pelo rgo central.

Desde o incio da atuao do BNH, verificou-se a existncia de problemas no modelo proposto, tendo o Banco, ao longo de sua existncia, efetuado mudanas visando corrigir suas aes. Entretanto, o BNH no foi bem sucedido nessas mudanas e, por no conseguir superar a crise do SFH, acabou extinto. Dentre as crticas feitas ao modelo do BNH, a primeira e central quanto sua atuao, foi a incapacidade em atender populao de mais baixa renda, principal objetivo que justificou sua criao. Outro ponto importante era o modelo institucional adotado, com forte grau de centralizao e uniformizao das solues no territrio nacional. A desarticulao entre as aes dos rgos responsveis pela construo das casas populares e os encarregados dos servios urbanos tambm era apontada como ponto crtico, bem como a construo de grandes conjuntos como forma de baratear o custo das moradias, geralmente feitos em locais distantes e sem infraestrutura. Por fim, destaca-se o modelo financeiro que se revelou inadequado em uma economia com processo inflacionrio.

a crise do Sistema Financeiro de Habitao e a extino do bnH criaram um hiato em relao poltica habitacional no pas, com a desarticulao progressiva da instncia federal, a fragmentao institucional, a perda de capacidade decisria e a reduo significativa dos recursos disponibilizados para investimento na rea.

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Extinto em agosto de 1986, as atribuies do BNH foram transferidas para a Caixa Econmica Federal, permanecendo a rea de habitao, no entanto, vinculada ao Ministrio do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU), cuja competncia abrangia as polticas habitacional, de saneamento bsico, de desenvolvimento urbano e do meio ambiente, enquanto que a Caixa estava vinculada ao Ministrio da Fazenda. Em maro de 1987, o MDU transformado em Ministrio da Habitao, Urbanismo e Meio Ambiente (MHU), que acumula, alm das competncias do antigo MDU, a gesto das polticas de transportes urbanos e a incorporao da Caixa Econmica Federal. Em setembro de 1988, ocorrem novas alteraes: cria-se o Ministrio da Habitao e do Bem-Estar Social (MBES), no qual permanece a gesto da poltica habitacional. Com a Constituio de 1988 e a reforma do Estado, o processo de descentralizao ganha base para se efetivar. Dentro do processo de descentralizao se estabelece uma redefinio de competncias, passando a ser atribuio dos Estados e municpios a gesto dos programas sociais e, dentre eles, o de habitao, seja por iniciativa prpria, por adeso a algum programa proposto por outro nvel de governo ou por imposio constitucional. Em maro de 1989 extinto o MBES e cria-se a Secretaria Especial de Habitao e Ao Comunitria (SEAC), sob competncia do Ministrio do Interior. As atividades do SFH e a Caixa Econmica Federal (Caixa) passam a ser vinculadas ao Ministrio da Fazenda. O modelo institucional adotado pela SEAC privilegiava a iniciativa de Estados e municpios, deixando de estabelecer prioridades alocativas, o que permitiu maior autonomia dos governos estaduais e municipais, que deixam de ser apenas executores da poltica. No entanto, a utilizao dos recursos do FGTS em quantidade que superava suas reais disponibilidades financeiras afetou as possibilidades de expanso do financiamento habitacional, levando a sua suspenso temporria, sendo que os programas habitacionais ficaram na dependncia de disponibilidades financeiras a fundo perdido de recursos do Governo Federal. Na esteira da oscilao poltica que marcou o perodo, os governos estaduais e municipais tomaram iniciativas no desenvolvimento de aes locais, com elevado grau de autofinanciamento, e baseadas em modelos alternativos, destacando-se entre eles os programas de urbanizao e regularizao de favelas e de loteamentos perifricos. Em 1994, o governo federal colocou como prioridade a concluso das obras iniciadas na gesto anterior e lanou os programas Habitar Brasil e Morar Municpio, com recursos oriundos do Oramento Geral da Unio (OGU) e do Imposto Provisrio sobre Movimentaes Financeiras (IPMF). No entanto, o montante de investimentos realizados ficou aqum das expectativas, como consequncia do contingenciamento de recursos imposto pelo Plano Real. .

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Em 1995 realizada uma reforma no setor da poltica habitacional, com a extino do Ministrio do Bem-Estar Social e a criao da Secretaria de Poltica Urbana (SEPURB) no mbito do Ministrio do Planejamento e Oramento (MPO), esfera que ficaria responsvel pela formulao e implementao da Poltica Nacional de Habitao. Embora tenha mostrado intenes reformadoras, a ao da SEPURB caracterizou-se por uma retrao do setor institucional. Verifica-se, ento, uma contnua reduo dos quadros tcnicos e uma perda de capacidade de formulao, que se vai aprofundando ao longo do tempo. A transformao da SEPURB em Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano (SEDU) no trouxe mudanas significativas nesse processo, persistindo a desarticulao institucional e a perda progressiva de capacidade de interveno. As reas da habitao e do desenvolvimento urbano permanecem sem contar com recursos financeiros expressivos e sem capacidade institucional de gesto, no plano federal. Nesse perodo, foram criadas novas linhas de financiamento, tomando como base projetos de iniciativa dos governos estaduais e municipais, com sua concesso estabelecida aps um conjunto de critrios tcnicos de projeto e, ainda, por sua capacidade de pagamento. No entanto, foi imposta significativa restrio ao financiamento do setor pblico para a realizao de emprstimos habitacionais, seja pela restrio dos aportes de recursos do OGU, seja pelo impedimento da utilizao dos recursos FGTS para esse fim. Isso restringiu principalmente as possibilidades de financiamento federal regularizao e urbanizao de assentamentos precrios, j que os programas de oferta de novas unidades habitacionais puderam ser viabilizados por meio de financiamento do setor privado, como ocorre no mbito do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), ou por meio de emprstimos individuais, como o Programa Carta de Crdito.

de fato, o que ocorreu no setor habitacional foi mais fruto de uma descentralizao por ausncia, sem uma repartio clara e institucionalizada de competncias e responsabilidades, sem que o governo federal definisse incentivos e alocasse recursos significativos para que os governos dos estados e municpios pudessem oferecer programas habitacionais de flego para enfrentar o problema. o Governo Federal manteve um sistema centralizado, com linhas de crdito sob seu controle, sem uma poltica definida para incentivar e articular as aes dos estados e municpios no setor de habitao. o que se observa nesse perodo a desarticulao institucional ou at mesmo a extino de vrias companhias de Habitao (coHabs) estaduais e a dependncia quase completa dos recursos federais pelos governos para o enfrentamento dos problemas habitacionais, verificando-se, inclusive, quase ou nenhuma priorizao por parte de muitos estados questo habitacional.

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O governo do presidente Luiz Incio Lula da Silva, a partir de 2003, comeou a implementar mudanas nesse quadro com a criao do Ministrio das Cidades, que passa a ser o rgo responsvel pela Poltica de Desenvolvimento Urbano e, dentro dela, pela Poltica Setorial de Habitao.

na aula 2 trataremos da poltica e Sistema nacional de Habitao e abordaremos o desenho institucional de controle social e participao popular nas polticas de desenvolvimento urbano.

Seguindo as diretrizes do governo do presidente Lula de promoo da participao e do controle social, junto ao Ministrio das Cidades foi criado o Conselho das Cidades. O Conselho um rgo colegiado de natureza deliberativa e consultiva e tem por finalidade estudar e propor diretrizes para a formulao e implementao das polticas do Ministrio, bem como acompanhar sua execuo. A construo dessa instncia de participao e controle social na poltica urbana faz parte de um conjunto de conquistas que resultado da mobilizao da sociedade em torno da questo da reforma urbana. A seguir, abordaremos como se conformou a luta dos movimentos populares pela reforma urbana no Brasil, desde a dcada de 1980, e destacaremos a mobilizao em torno da aprovao do Estatuto da Cidade.

4. o papel dos movimentos populares pela reforma urbanaFace ao inquietante quadro exposto at aqui, fcil entender que as desigualdades decorrentes dos processos de industrializao e de urbanizao acabaram gerando intensas insatisfaes sociais. J em 1963, o Seminrio Nacional de Habitao e Reforma Urbana juntou especialistas e militantes do setor para tentar refletir parmetros para balizar o crescimento das cidades que comeava a se delinear. A ditadura militar, entretanto, desmontou a mobilizao da sociedade civil em torno das grandes reformas sociais, inclusive a urbana, substituindo-a por um planejamento urbano centralizador e tecnocrtico. Porm a extrema precariedade dos assentamentos perifricos (favelas, loteamentos clandestinos), a absoluta ausncia do Estado na implementao de polticas habitacionais e urbanas durante dcadas, geraram um paulatino, mas consistente movimento de insatisfao e mobilizao da populao excluda. O movimento consegue uma primeira vitria em 1979, com a aprovao da Lei 6.766, regulando o parcelamento do solo e criminalizando o loteador irregular. Na dcada de 1980, no bojo do processo de redemocratizao do pas e marcado por um momento de amadurecimento de um discurso inovador sobre a poltica urbana se organizou o Movimento Nacional pela Reforma Urbana7, articulado em torno dos nascentes movimentos sociais de luta por moradia, reforado pelos movimentos de organizao poltica promovidas pela Igreja Catlica como a Comisso Pastoral da Terra e as Comunidades Eclesiais de Base pelos sindicatos, universidades e pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

7. A coordenao do Frum nacional da Reforma Urbana formada por 15 entidades nacionais que

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atuam em reas diferenciadas do urbano. Ver site www.direitoacidade.org.br.

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os princpios do Movimento nacional pela reforma urbana so os seguintes8:direito cidade e cidadania, entendido como uma nova lgica que universalize o acesso aos equipamentos e servios urbanos, a condies de vida urbana digna e ao usufruto de um espao culturalmente rico e diversificado e, sobretudo, em uma dimenso poltica de participao ampla dos habitantes das cidades na conduo de seus destinos; Gesto democrtica da cidade, entendida como forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades submetidas ao controle e participao social, destacando-se como prioritria a participao popular; Funo Social da cidade e da propriedade, entendida como a prevalncia do interesse comum sobre o direito individual de propriedade, o que implica o uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espao urbano.

A descentralizao administrativa estabelecida ps-constituio de 1988 buscou fortalecer o papel dos municpios, ampliando a autonomia municipal e as possibilidades de gesto de nossas cidades na perspectiva de construir um territrio mais digno para todos, e no apenas para os privilegiados de sempre. Nesse quadro e com a mobilizao popular em torno da defesa de uma cidade socialmente mais justa e politicamente mais democrtica, foi apresentada uma proposta de reformulao da legislao por meio da Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, subscrita por 130.000 eleitores e encaminhada ao Congresso Constituinte, em 1988, pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que resultou no captulo de Poltica Urbana da Constituio (artigos 182 e 183). Os artigos 182 e 183 estabeleciam alguns instrumentos supostamente capazes de dar ao poder pblico melhores condies de regular a produo e apropriao do espao urbano com critrios socialmente mais justos e introduziam o princpio da chamada funo social da propriedade urbana. Ou seja, os imveis vazios situados na chamada cidade formal que geralmente se beneficiam de infraestrutura urbana (esgoto, gua, luz, asfalto etc.) custeados pelo poder pblico e, portanto, por toda a sociedade, representam um alto custo social e, por isso, o proprietrio deve dar uso para cumprir a funo social da propriedade. Tais artigos, no entanto, ainda precisavam ser regulamentados. E apesar do agigantamento dos problemas urbanos brasileiros, foram necessrios 11 anos de espera para que o captulo da Reforma Urbana da nossa Constituio o Estatuto da Cidade fosse definitivamente aprovado.

8. Carta de princpios para a elaborao do Plano Diretor, FnRU, 1989, publicada em: De GRAZiA, Grazia (Org.). Plano Diretor: Instrumento de Reforma Urbana. Rio de Janeiro: FASe, 1990.

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A aprovao da Lei 10.257 deu-se em 10 de julho de 2001 e representa uma vitria significativa para o Movimento de Reforma Urbana. Para dar a todos o direito cidade o Estatuto da Cidade regulamenta instrumentos de controle do uso e ocupao do solo e de regularizao fundiria que podem dar aos poderes pblicos municipais nova possibilidade de resgatar para a sociedade a valorizao provocada por seus prprios investimentos em infraestrutura urbana, e de induzir a utilizao de imveis vazios em reas urbanas retidas para especulao. Por definio expressa no artigo 41 do Estatuto, os municpios com mais de 20.000 habitantes; integrantes de regies metropolitanas e aglomeraes urbanas; integrantes de reas de especial interesse turstico; inseridos na rea de influncia de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de mbito regional ou nacional devem elaborar o Plano Diretor para a utilizao dos instrumentos. Desta forma, coube aos municpios a tarefa de aplicar os instrumentos urbansticos transformando-os na pea bsica da poltica urbana local. O Estatuto ainda determinou o prazo de cinco anos para as cidades que ainda no tivessem plano o fizessem. Este prazo venceu em 2006 e foi prorrogado at 28 de fevereiro de 2008. Delegar gesto municipal a implementao dos instrumentos tem consequncias positivas e negativas. Positivas porque joga para a esfera local a mediao do conflito entre o direito privado e o interesse pblico, permitindo as necessrias diferenciaes entre realidades municipais completamente diversas no pas e garantindo que a discusso da questo urbana no nvel municipal se torne mais prxima do cidado, podendo ser eficientemente participativa. O aspecto negativo que, ao jogar a regulamentao dos instrumentos para uma negociao posterior no mbito dos Planos Diretores, estabelece-se uma nova disputa, como j dito essencialmente poltica, no nvel municipal, e conforme os rumos que ela tome, esses instrumentos podem ser mais ou menos efetivados. Portanto o essencial que os municpios no releguem para uma etapa posterior a regulamentao dos instrumentos urbansticos para que no se estenda alm do razovel o prazo de implementao e efetivao da poltica urbana municipal. Seno, arrisca-se cair na infeliz evidncia de que as leis de democratizao da cidade podem no sair do papel e tornarem-se apenas um conjunto de boas intenes sem muita efetividade, o que no falta, alis, no arcabouo jurdico-institucional brasileiro. Porm, se bem formulados e discutidos, os Planos Diretores e os demais instrumentos que nele se abrigam podem ser ferramentas eficazes para inverter a injusta lgica das nossas cidades, em especial nos municpios de mdio porte, ainda no to atingidos pela fratura social urbana. E para isso, devem ser instrumentos construdos por meio de processos participativos que definam pactos, reconhecendo e incorporando em sua elaborao todas as disputas e conflitos que existem nas cidades, com especial nfase, evidentemente, quelas historicamente excludas desses processos. S assim, construdo por um amplo e demorado processo participativo, que inverta as prioridades de investimentos pelo parmetro da urgncia e da necessidade social, e que no fique sujeito apressada agenda poltico-eleitoral dos governantes de turno, o Plano Diretor pode se tornar um ponto de partida institucional para que se expressem todas as foras que efetivamente constroem a cidade. Se toda a populao inclusive as classes menos favorecidas apreender o significado transformador do plano, cobrar sua aprovao e fiscalizar sua aplicao, transformando-o em uma oportunidade para conhecer melhor seu territrio e disputar legitimamente seus espaos.26

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Cabe insistir, mais uma vez, que a efetividade dos instrumentos do Estatuto da Cidade depender de forte disputa poltica municipal, no momento de sua regulamentao. Ser ento possvel verificar se o estrutural (des)equilbrio de foras da nossa sociedade permitir que os instrumentos ganhem o peso necessrio para promover alguma mudana na trgica desigualdade urbana das nossas cidades. No item 5, retomaremos a discusso, abordando os obstculos a serem vencidos para a implementao do Plano Diretor e de seus instrumentos.

5. a funo social da propriedade urbana no estatuto da cidade, planos diretores e poltica HabitacionalVoc, que trabalha na rea de habitao e urbanizao, sabe que para frear o crescimento dos assentamentos precrios e da produo ilegal da cidade necessrio ampliar o acesso da populao de menor renda ao mercado formal de habitao. E para produzir habitao social indispensvel ampliar o acesso terra urbanizada, isto , atendida por infraestrutura e servios urbanos. Porm, como vimos nesta aula, a terra retida para fins especulativos. As associaes de moradia e cooperativas habitacionais, quase sempre, no conseguem adquirir reas adequadas para a construo de habitaes e os municpios, principalmente nas regies metropolitanas, tambm encontram muita dificuldade para disponibilizar terra para a produo de moradia voltada populao de baixa renda. Enquanto faltam reas para a produo de habitao social, sobram terrenos vazios e subutilizados no interior do permetro urbano. Portanto, como mencionado anteriormente, a ampliao do acesso da populao de menor renda ao mercado residencial legal impe a necessidade de mudar o rumo da poltica urbana na direo de incorporar, na prtica, a funo social da propriedade.

para ampliar o acesso da populao de menor renda ao mercado residencial legal precisamos colocar em prtica uma poltica urbana, no mbito municipal, voltada para fazer cumprir a funo social da propriedade urbana e para ampliar o acesso terra.As inovaes do Estatuto da Cidade esto em regulamentar uma srie de instrumentos de natureza jurdica e urbanstica voltados a induzir as formas de uso e ocupao do solo; de possibilitar a regularizao de posses urbanas de reas ocupadas para fins de moradia no tituladas da cidade e de instituir as formas de controle e participao direta do cidado na elaborao dos Planos Diretores. O Estatuto da Cidade estabelece que o Plano Diretor o instrumento para regulamentar como a funo social da terra deve ser cumprida em cada cidade. O Plano Diretor, por exemplo, deve estabelecer mecanismos para ampliar a oferta de terra urbanizada, inibir a reteno de solo urbano, incidir sobre a formao do preo da terra e reservar reas para habitao social.27

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lembrem que mais do que um documento tcnico, os planos diretores devem resultar de processos participativos que definam pactos.

Tanto quanto possvel, o Plano Diretor deve ser autoaplicvel, ou seja, no deve depender de regulamentao posterior para ser aplicado. Quando isso no acontece no se consegue aprimorar ou mudar o rumo da poltica habitacional e urbana local e, eventualmente, submeter a proposta a novos perodos de exame e negociao no mbito do poder legislativo. Portanto, recomenda-se que o plano contenha as disposies necessrias ao emprego dos instrumentos urbansticos indicados, em especial quelas pertinentes delimitao das Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) e ao Parcelamento, Edificao ou Utilizao Compulsrios (PEUC). A escolha dos instrumentos adequados a cada municpio e situao vai depender da leitura da cidade tanto a tcnica quanto a comunitria , assim como do projeto de cidade pactuado. A seguir destacamos alguns instrumentos previstos no Estatuto da Cidade que, se aplicados, podem contribuir para ampliar o acesso terra urbanizada. Para promover a regularizao fundiria temos a concesso de direito real de uso, cuja utilizao no recente, e instrumentos como a usucapio especial de imvel urbano, previsto no artigo 183 da Constituio Federal e trazido pelo Estatuto da Cidade, a concesso de uso especial para fins de moradia (CUEM) e o direito de superfcie. Todos podem ser previstos no Plano Diretor, embora no dependam disso para sua aplicao. reas vazias e ocupadas podem ser delimitadas como ZEIS. Recomenda-se que os assentamentos precrios do tipo favelas, loteamentos irregulares e cortios, sejam delimitados como ZEIS para promover sua regularizao fundiria. A delimitao destes assentamentos como ZEIS permite adotar padres urbansticos especiais e procedimentos especficos de licenciamento alm de contribuir para o reconhecimento da posse de seus ocupantes. O Plano Diretor pode delimitar e regular as ZEIS ou pode indicar a necessidade de elaborao de uma lei especfica com essa finalidade. No entanto, recomenda-se que reas vazias sejam delimitadas como ZEIS no corpo do Plano Diretor. Embora o Estatuto da Cidade no remeta sua definio aos planos diretores, defendemos que assim deve ser feito, j que a ZEIS um zoneamento especial, que se sobrepe ao zoneamento definido no Plano Diretor e com ele deve dialogar. Alm do mais, as ZEIS em terrenos vazios ganham um carter mais estratgico se forem delimitadas no corpo do plano, podendo contribuir com a formao de estoque de terras para a proviso habitacional e para conter a especulao fundiria, facilitando o acesso das famlias de28

baixa renda habitao.

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As ZEIS podem ser combinadas a outros instrumentos, como o PEUC, para que a terra que se encontra em estoque e espera de valorizao seja utilizada ao menos em parte, onde seu preo no inviabilize a produo para habitao social. Observe-se que nas ZEIS vazias nem todo o terreno precisa ser reservado para habitao de interesse social; parte da rea pode receber habitao de mercado e usos no residenciais diversos, o que deve funcionar como um estmulo produo de interesse social. Os vazios urbanos e os terrenos subutilizados que no esto cumprindo a funo social da propriedade podem estar sujeitos notificao para (PEUC) e aos instrumentos sucessrios, desde que haja previso no Plano Diretor9. reas vazias notificadas para parcelamento ou edificao compulsrios, se gravadas como ZEIS, devero ser, integralmente ou parcialmente, destinadas habitao de interesse social10.

o seu municpio delimitou zeiS? para regularizao ou para proviso habitacional? as reas delimitadas como zeiS so adequadas?

Outro instrumento que pode ser combinado com as ZEIS e com a produo de habitao de interesse social a outorga onerosa do direito de construir e de alterao de uso que, quando empregado pelo municpio, deve dirigir os recursos auferidos para a execuo de programas habitacionais, constituio de reserva fundiria, regularizao fundiria ou, ainda, para dotar reas perifricas com infraestrutura e equipamentos. importante garantir o controle social desses recursos, destinando-os ao fundo municipal de habitao ou ao fundo de desenvolvimento urbano, geridos por conselhos democrticos. O direito de preempo e o consrcio imobilirio so outros instrumentos que atuam facilitando o acesso terra, como j foi visto na aula anterior. No cabe, nesta aula, aprofundar a discusso sobre a aplicao dos instrumentos. Aqui basta assinalar a importncia do Plano Diretor no sentido da definio de instrumentos e estratgias que contribuam para o acesso terra urbanizada e moradia. Descrever esses instrumentos no corpo do Plano Diretor, por si s no garante sua aplicao. A aplicao desses instrumentos requer vontade poltica, depende da construo coletiva de um pacto social e tambm da capacidade administrativa do governo municipal.

9. O iPtU progressivo no tempo e desapropriao com pagamento em ttulos da dvida pblica so os instrumentos que sucedem o PeUC caso no seja dada funo social ao imvel. essa sucesso de instrumentos incisivos foi prevista no artigo 182 da Constituio Federal, regulamentado pelo estatuto da Cidade. Observe-se que esses trs instrumentos sucessivos so os nicos que foram alados ao texto constitucional, o que nos leva a concluir sobre sua primazia para fazer cumprir a funo social da propriedade. 10. Observe-se que nas ZeiS vazias nem todo o terreno precisa ser reservado para habitao de interesse social; parte da rea pode receber habitao de mercado e usos no residenciais diversos, o que deve funcionar como um estmulo produo de interesse social.

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A aplicao dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade depende tambm da clara inteno de enfrentar os privilgios das classes dominantes, de novo modo de olhar a cidade combinando/integrando as dinmicas pblicas e privadas, e, utilizando o Plano Diretor de fato, como instrumento de planejamento. Segundo FERNANDES (2008) necessrio: coragem na tomada de decises; tempo de execuo; investimento significativo; continuidade de aes; participao popular em todas as suas etapas; a devida integrao entre seus objetivos e os instrumentos adotados, bem como entre os programas e as leis existentes e especialmente aprovadas. Sem isso, a incluso dos instrumentos urbansticos no Plano Diretor pode servir apenas como uma maquiagem demaggica, sem muito poder para mudar o quadro urbano brasileiro. As reflexes apresentadas neste texto mostram um longo caminho a percorrer, que depende de um processo paulatino de consolidao de uma cultura poltica que veja o Estado como o legtimo controlador da funo social das propriedades urbanas e indutor do crescimento das cidades segundo o interesse pblico. Depende ainda, que o governo federal tenha a capacidade de organizar o funcionamento dos Sistemas Nacionais propostos garantindo recursos para os municpios viabilizarem a poltica urbana. E, como j mencionado, que as estruturas municipais se preparem tcnica e administrativamente para este desafio. Nesse processo, o papel dos grupos organizados da sociedade civil sempre ser central e imprescindvel para que a histria do Estatuto da Cidade continue em seu difcil, mas at agora efetivo, caminho para garantir a reverso da extrema desigualdade e excluso socioespaciais apresentadas pelas cidades brasileiras.

referncias bibliogrficasBONDUKI, N. G., Origens da Habitao Social do Brasil. Arquitetura Moderna, Lei de Inquilinato e difuso da casa prpria. So Paulo: Estao Liberdade, FAPESP, 1998. BRASIL. Ministrio das Cidades. Poltica Nacional de Desenvolvimento Urbano. Cadernos MCidades n 1, Braslia, 2004. BRASIL. Ministrio das Cidades. Poltica Nacional de Habitao. Cadernos MCidades n 4, Braslia,2005. BRASIL. Ministrio das Cidades. Conselho das Cidades: um exerccio de gesto democrtica, 2005. BRASIL. Ministrio das Cidades/Universidade Federal de Santa Catarina. Acesso terra urbanizada: implementao de planos diretores e regularizao fundiria plena/PINHEIRO, O. M.(et al.). Florianpolis - UFSC, Braslia: Ministrio das Cidades, 2008. BRASIL. Ministrio das Cidades. Relatrio final da 3 Conferncia das Cidades, 2008. BRASIL. Ministrio das Cidades/Aliana de Cidades/DENALDI R. (org.) Aes integradas de urbanizao de assentamentos precrios. Braslia, 2009. BUENO, L. M. de M. Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanizao de favela. 2000. Tese de Doutorado FAUUSP, So Paulo, 2000. DENALDI, R.; ROSA J.S.; SOUZA C.V. Acesso moradia In: BRASIL. Ministrio das Cidades/Universidade Federal de Santa Catarina. Acesso terra urbanizada: implementao de planos diretores e regularizao fundiria plena/PINHEIRO, O. M. (et al.). Florianpolis - UFSC; Braslia: Ministrio das Cidades, 2008. 30

aula 1: o proceSSo de urbanizao braSileiro e a Funo Social da propriedade urbana

FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. Porto Alegre: Editora Globo, 1958. FERNANDES, E. Regularizao de assentamentos informais: o grande desafio dos governos e da sociedade. In: BRASIL. Ministrio das Cidades/Universidade Federal de Santa Catarina. Acesso terra urbanizada: implementao de planos diretores e regularizao fundiria plena/ PINHEIRO, O. M. (et al.). Florianpolis UFSC; Braslia. Ministrio das Cidades, 2008. FERREIRA, J. S. W. A cidade para poucos: breve histria da propriedade urbana no Brasil, anais do Simpsio Interfaces das representaes urbanas em tempos de globalizao, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005. . O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produo do espao urbano, Petrpolis: Vozes, 2007; especificamente captulo 1 (cpia do trecho fornecida pelo autor). . Alcances e limitaes dos instrumentos urbansticos na construo de cidades democrticas e socialmente justas. Texto de apoio s discusses da Mesa 1 Plano diretor e instrumentos tributrios e de induo do desenvolvimento, V Conferncia das Cidades - Cmara Federal/CDUI e Ministrio das Cidades, dezembro de 2003. FERREIRA J. S. W.; UEMURA, M. Poltica Urbana. In: Ministrio das Cidades/Aliana de Cidades/DENALDI, R. (org.) Aes integradas de urbanizao de assentamentos precrios. Braslia: Ministrio das Cidades, 2009. FURTADO, C.; Brasil: a construo interrompida, Paz e Terra: Rio de Janeiro/So Paulo, 1992. KOWARICK, A espoliao urbana, So Paulo: Paz e Terra, 1993. KOWARICK, Lcio & CAMPANRIO, Milton; So Paulo, Metrpole do subdesenvolvimento industrializado: consequncias sociais do crescimento e da crise econmica, CEDEC, 1984 citado in SANTOS, M., Metrpole corporativa fragmentada: o caso de So Paulo. So Paulo: Nobel/Secretaria de Estado da Cultura, 1990. MARICATO, E. Metrpole na periferia do capitalismo. So Paulo: Hucitec, 1996. . Habitao e Cidade, So Paulo: Atual Editora, 1997. . Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana, Petrpolis: Vozes, 2001. . Planejamento urbano no Brasil: as ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In ARANTES, Otlia B., MARICATO, Ermnia e VAINER, Carlos. A cidade do pensamento nico: desmanchando consensos, Petrpolis: Ed. Vozes, Coleo Zero Esquerda, 2000. MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra!, So Paulo: Livraria Editora de Cincias Humanas, 1978. OLIVEIRA, F. de Acumulao monopolista, Estado e urbanizao: a nova qualidade do conflito de classes. In Contradies urbanas e movimentos sociais. So Paulo: CEDEC, 1977. OLIVEIRA, F. O ornitorrinco, So Paulo: Bontempo Editorial: 2003. PINHEIRO, O. M., PEREIRA, J. A. Gesto urbana integrada e participativa e a implementao dos Planos Diretores. In: BRASIL. Ministrio das Cidades/Universidade de Santa Catarina. Acesso a terra urbanizada: implementao de planos diretores e regularizao fundiria plena/PINHEIRO, O. M. (et al.). Florianpolis UFSC; Braslia: Ministrio das Cidades 2008. ROLNIK, R., SAULE JR., N. Instituto Plis; Estatuto da Cidade novas perspectivas para a Reforma Urbana, caderno 4, Instituto Plis, 2001.

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Mdulo 1: POltiCA URbAnA e hAbitACiOnAl nO bRASil

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Poltica urbana e habitacional no BrasilAul A 2

Mdulo 1

Poltica e Sistema Nacional de Habitao, Plano Nacional de Habitao

Nabil Bonduki Rossella Rossetto Flvio Henrique Ghilardi

AulA 2: Poltica e SiStema NacioNal de Habitao, PlaNo NacioNal de Habitao

Mdulo 1

PolticA e SiSteMA NAcioNAl de HABitAo, PlANo NAcioNAl de HABitAo

AulA 2

introduoNesta disciplina trataremos da Poltica Nacional de Habitao (PNH), do Sistema Nacional de Habitao (SNH) e de suas importncias para o planejamento e a implementao de uma poltica de Estado, que visa a articulao de todos os agentes afetos questo habitacional. Tambm apresentaremos um resumo dos principais aspectos do Plano Nacional de Habitao (PlanHab).

1. diretrizes e objetivos da nova Poltica Nacional de HabitaoDo ponto de vista da poltica de habitao, o governo de Luiz Incio Lula da Silva iniciou-se com aes estratgicas em vrias frentes, destacando-se um novo desenho institucional. O Ministrio das Cidades, criado em 2003, tornou-se o rgo coordenador, gestor e formulador da Poltica Nacional de Desenvolvimento Urbano e que inclui a Poltica Nacional de Habitao (PNH), foi estabelecido novo modelo de organizao institucional, baseado em um sistema de habitao, que ser detalhado no item 3 deste texto. Outros elementos estruturais dessa poltica sero detalhados nos itens 4 a 6, a seguir.

1.1 A nova Poltica Nacional de HabitaoEm 2004, foi aprovada pelo Conselho das Cidades a Poltica Nacional de Habitao (PNH), principal instrumento de orientao das estratgias e das aes a serem implementadas pelo governo federal. Segundo o prprio documento (Ministrio das Cidades: 2004: 29), a PNH oerente com a Constituio Federal, que considera a habitao um direito do cidado, com o Estatuto da Cidade, que estabelece a funo social da propriedade e com as diretrizes do atual governo, que preconiza a incluso social, a gesto participativa e democrtica. Nesse sentido, visa promover as condies de acesso moradia digna a todos os segmentos da populao, especialmente o de baixa renda, contribuindo, assim, para a incluso social. A formulao e a implementao da nova PNH dependem fundamentalmente de trs eixos: poltica fundiria, poltica financeira e estrutura institucional. Os aspectos relacionados construo civil estariam dependentes dessa matriz formada por fatores determinantes.

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Mdulo 1: Poltica urbaNa e HabitacioNal

Em relao Poltica Fundiria, a PNH (Ministrio das Cidades, op.cit) destaca seu papel estratgico para a implantao da Poltica Nacional de Habitao, especialmente nos aspectos relcionados aos insumos para a realizao de programas habitacionais nos municpios. Para que se viabilize elemento bsico dessa poltica a implementao de instrumentos como os Planos Diretores Municipais que garantam a funo social da propriedade urbana , os de regularizao fundiria que ampliem o acesso da populao de menor renda terra urbanizada , bem como a reviso da legislao urbanstica e edilcia, tendo em vista a ampliao do mercado formal de proviso habitacional (idem p. 29). Ainda em relao poltica fundiria, o Ministrio das Cidades lanou, em 2005, a Campanha do Plano Diretor Participativo legislao que permitir, no mbito do municpio: definir instrumentos para combater a propriedade subutilizada ou no utilizada, indicar reas especficas para habitao de interesse social, criar mecanismos para obteno de recursos a serem aplicados em moradia e infraestrutura urbana e assegurar a gesto democrtica das cidades. O tema da regularizao fundiria mereceu a criao de um programa especfico e inovador no mbito do governo federal, em que pese, alm de outros motivos, a significativa dimenso dessa questo nos municpios brasileiros e do patrimnio fundirio e imobilirio da Unio que em todo o pas apresenta irregularidades em sua ocupao. Os outros eixos importantes na formulao e implementao da PNH financiamento habitao e modelo institucional sero objeto de detalhamento a seguir. Em sntese, a PNH estabelece o arcabouo conceitual, estrutura as aes no campo da habitao e, como consequncia, relaciona os agentes que atuaro na implementao da poltica; por fim, indica os componentes que estruturam a poltica e a complementam. As proposies nela contida podem ser agrupadas em: I - princpios norteadores e diretrizes para as aes em poltica habitacional, a serem perseguidos pelo governo federal e por todos os agentes que se relacionam com o mbito federal (por meio de recursos, programas, parcerias, convnios etc.) e que integram o Sistema Nacional de Habitao; II - definio da estruturao institucional do setor de habitao e de instrumentos de implementao da PNH. Dentre eles destacam-se o Sistema Nacional de Habitao e o Plano Nacional de Habitao, detalhados a seguir; III - estabelecimento das principais linhas de ao que direcionam os recursos e os financiamentos na rea habitacional, isto : Integrao Urbana de Assentamentos Precrios (urbanizao, regularizao fundiria e insero de assentamentos precrios na cidade), a proviso da habitao e a integrao da poltica de habitao poltica de desenvolvimento urbano, que definem as linhas mestras de sua atuao. Detalhamos a seguir os principais contedos da PNH.

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AulA 2: Poltica e SiStema NacioNal de Habitao, PlaNo NacioNal de Habitao

1.2 Princpios da Poltica Nacional de HabitaoA Poltica Nacional de Habitao regida pelos seguintes princpios: direito moradia, como um direito individual e coletivo, previsto na Declarao Universal dos Direitos Humanos e na Constituio Brasileira de 1988. O direito moradia deve ter destaque na elaborao dos planos, programas e aes; moradia digna como direito e vetor de incluso social garantindo padro mnimo de habitabilidade, infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade, transporte coletivo, equipamentos, servios urbanos e sociais; funo social da propriedade urbana buscando implementar instrumentos de reforma urbana que possibilitem melhor ordenamento e maior controle do uso do solo, de forma a combater a reteno especulativa e garantir acesso terra urbanizada; questo habitacional como uma poltica de Estado, uma vez que o poder pblico agente indispensvel na regulao urbana e na regulao do mercado imobilirio, na proviso da moradia e na regularizao de assentamentos precrios, devendo ser, ainda, uma poltica pactuada com a sociedade e que extrapole mais de um governo; gesto democrtica com participao dos diferentes segmentos da sociedade, possibilitando controle social e transparncia nas decises e procedimentos; e articulao das aes de habitao poltica urbana de modo integrado com as demais polticas sociais e ambientais.

1.3 diretrizes da Poltica Nacional de HabitaoSo diretrizes da Poltica Nacional de Habitao: garantia do princpio da funo social da propriedade estabelecido na Constituio e no Estatuto da Cidade, respeitando-se o direito da populao a permanecer nas reas ocupadas por assentamentos precrios ou em reas prximas, que estejam adequadas do ponto de vista socioambiental, preservando seus vnculos sociais com o territrio, o entorno e sua insero na estrutura urbana, considerando a viabilidade econmico-financeira das intervenes; promoo do atendimento populao de baixa renda, aproximando-o ao perfil do dficit qualitativo e quantitativo e com prioridade para a populao com renda de at trs salrios mnimos;

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Mdulo 1: Poltica urbaNa e HabitacioNal

promoo e apoio s intervenes urbanas articuladas territorialmente, especialmente programas habitacionais, de infraestrutura urbana e saneamento ambiental, de mobilidade e de transporte, integrando programas e aes das diferentes polticas, visando garantir o acesso moradia adequada e o direito cidade; estmulo aos processos participativos locais que envolvam a populao beneficiria, especialmente nas intervenes de integrao urbana e regularizao fundiria; atuao coordenada e articulada dos entes federativos por meio de polticas que apresentem tanto carter corretivo, baseadas em aes de regularizao fundiria, urbanizao e insero social dos assentamentos precrios; quanto preventivo, com aes voltadas para a ampliao e universalizao do acesso terra urbanizada e a novas unidades habitacionais adequadas; atuao integrada com as demais polticas pblicas ambientais e sociais para garantir a adequao urbanstica e socioambiental das intervenes no enfrentamento da precariedade urbana e da segregao espacial que caracterizam esses assentamentos; definio de parmetros tcnicos e operacionais mnimos de interveno urbana de forma a orientar os programas e polticas federais, estaduais e municipais, levando-se em conta as dimenses fundiria, urbanstica e edilcia, a dimenso da precariedade fsica (risco, acessibilidade, infraestrutura e nvel de habitabilidade) e a dimenso da vulnerabilidade social, compatveis com a salubridade, a segurana e o bem-estar da populao, respeitando-se as diferenas regionais e a viabilidade econmico-financeira das intervenes; estmulo ao desenvolvimento de alternativas regionais, levando em considerao as caractersticas da populao local, suas manifestaes culturais, suas formas de organizao e suas condies econmicas e urbanas, evitando-se solues padronizadas e flexibilizando as normas, de maneira a atender s diferentes realidades do pas; Para que essas diretrizes se concretizem, a PNH enumera uma srie de objetivos especficos (op.cit. p. 39), dentre os quais salientamos: garantir linhas de financiamento e subsdio, no mbito do Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social (FNHIS); apoiar e incentivar os estados, o Distrito Federal(DF) e os municpios na elaborao de programas, planos e no desenho das intervenes em assentamentos precrios; promover e apoiar aes de desenvolvimento institucional; estabelecer critrios e parmetros tcnicos de orientao para as intervenes urbanas.38

AulA 2: Poltica e SiStema NacioNal de Habitao, PlaNo NacioNal de Habitao

2. Sistema Nacional de Habitao: a articulao e competncia dos entes federativosA PNH prev a organizao de um Sistema Nacional de Habitao (SNH) como um instrumento de organizao dos agentes que atuam na rea de habitao e como meio para reunir os esforos dos governos (Unio, Estados e municpios) e do mercado privado, alm de cooperativas e associaes populares, para combater o dficit habitacional. A proposta do SNH est baseada na integrao das aes dos agentes que o compem, na possibilidade de viabilizar programas e projetos habitacionais a partir de fontes de recursos onerosos e no onerosos, na adoo de regras nicas por aqueles que integram o sistema e na descentralizao de recursos e das aes, que devero, paulatinamente, ser implementadas de forma prioritria pela instncia local. Os principais agentes pblicos do Sistema Nacional de Habitao so relacionados a seguir. Ministrio das cidades o rgo responsvel pelas diretrizes, prioridades, estratgias e instrumentos da Poltica Nacional de Habitao. Est tambm sob a sua responsabilidade a compatibilizao da PNH com as demais polticas setoriais. responsvel pela formulao do Plano Nacional de Habitao e pela coordenao das aes e da implementao do Sistema, que inclui os oramentos destinados moradia, estmulo adeso ao Sistema por parte dos estados e municpios, bem como firmar a adeso e coordenar sua operacionalizao. conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitao de interesse Social tem a competncia especfica de estabelecer diretrizes e critrios de alocao dos recursos do FNHIS, uma das principais fontes de recursos do sistema, de modo compatvel com as orientaes da Poltica e do Plano Nacional de Habitao. conselho das cidades rgo colegiado de natureza deliberativa e consultiva (ser melhor detalhado no prximo item). Em relao Poltica Nacional de Habitao, tem algumas atribuies centrais especialmente no que tange s prioridades, estratgias, instrumentos e normas da poltica; alm de fornecer subsdios para a elaborao do Plano Nacional de Habitao, acompanhar e avaliar sua implementao, recomendando providncias necessrias ao cumprimento dos objetivos da poltica. caixa econmica Federal como agente operador do sistema o responsvel pela operao dos programas habitacionais promovidos com recursos do FGTS e do FNHIS. tambm quem intermedeia o repasse de recursos do FNHIS para os beneficirios dos programas e , ainda, o agente que operar os repasses fundo a fundo previstos no Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social (SNHIS). Como operador, perfaz tambm a funo de analista da capacidade aquisitiva dos beneficirios nos casos dos programas do FGTS e avalia o cumprimento das etapas para liberao de recursos de outras fontes. rgos descentralizados constitudos pelos estados, DF e municpios, conselhos estaduais, distrital e municipais, com atribuies especficas de habitao no mbito local. Agentes promotores tais como associaes, sindicatos, cooperativas e outras entidades que desempenhem atividades na rea habitacional. Agentes financeiros autorizados pelo Conselho Monetrio Nacional (CMN).39

Mdulo 1: Poltica urbaNa e HabitacioNal

O Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Servio (CCFGTS), mesmo no integrando diretamente a composio do SNHIS, definida pela Lei Federal 11.124/05, tem papel fundamental na implementao do Sistema, na medida em que delibera sobre os recursos do FGTS e, portanto, da principal fonte estvel de recursos voltada para habitao, e de parte substancial dos programas da PNH. Estes programas, por sua vez, vm sendo adequados para responder s diretrizes da Poltica Nacional de Habitao por meio de resolues do CCFGTS, resguardada a sustentabilidade do Fundo. O SNH est subdividido em dois subsistemas que, de forma complementar, estabelecem mecanismos para a proviso de moradias em todos os segmentos sociais. So eles: o SNHIS e o Sistema Nacional de Habitao de Mercado (SNHM), o primeiro voltado para o atendimento da populao de baixa renda e o segundo voltado para as famlias de maior renda que podem ser atendidas pelo mercado. Neles, diferenciam-se as fontes de recursos, as formas e condies de financiamento e a distribuio dos subsdios que se direcionam para o SNHIS e, dentro deste, para as faixas de menor renda.

3. Sistema Nacional de Habitao de interesse SocialO Sistema Nacional de Habitao Interesse Social (SNHIS) foi regulamentado pela Lei Federal n 11.124 de junho de 2005 e est direcionado populao de baixa renda, especialmente a que se encontra limitada a rendimentos de at trs salrios mnimos e que compe a quase totalidade do dficit habitacional do Pas. O SNHIS organizado a partir da montagem de uma estrutura institucional, composta por uma instncia central de coordenao, gesto e controle, representada pelo Ministrio das Cidades, alm do Conselho Gestor do FNHIS, por agentes financeiros e por rgos e agentes descentralizados. Essa estrutura dever funcionar de forma articulada e com funes complementares em que cada um desses agentes de representao nacional, institudos por legislao e competncias especficas, que passam a responder PNH e devem balizar seus programas e suas aes pelos princpios e diretrizes por ela estabelecidos. J os agentes descentralizados, para participar do Sistema e ter acesso aos programas destinados habitao de interesse social, devem realizar a adeso ao SNHIS. A adeso ao SNHIS voluntria e se d a partir da assinatura do termo de adeso, por meio do qual estados, municpios e Distrito Federal se comprometem a constituir, no seu mbito de gesto, um fundo local de natureza contbil especfico para habitao de interesse social gerido por um conselho gestor com representao dos segmentos da sociedade ligados rea de habitao, garantindo o princpio democrtico de escolha de seus membros; e compromete-se, ainda, a elaborar um plano local (estadual, distrital ou municipal) de habitao. No termo de adeso, ainda estaro assinalados os compromissos comuns, objetivos, deveres e responsabilidades das partes.40

AulA 2: Poltica e SiStema NacioNa