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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação PEDRO RIGOLO FILHO POBREZA E PATRIMÔNIO Problemas sociais reconvertidos em apostolado por religiosas franciscanas CAMPINAS 2019

POBREZA E PATRIMÔNIO Problemas sociais reconvertidos em …€¦ · Problemas sociais reconvertidos em apostolado por religiosas franciscanas Tese de Doutorado apresentada ao Programa

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

PEDRO RIGOLO FILHO

POBREZA E PATRIMÔNIO Problemas sociais reconvertidos em apostolado por

religiosas franciscanas

CAMPINAS

2019

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PEDRO RIGOLO FILHO

POBREZA E PATRIMÔNIO Problemas sociais reconvertidos em apostolado por

religiosas franciscanas

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Educação da Faculdade de

Educação da Universidade Estadual

de Campinas como parte dos

requisitos exigidos para a obtenção

do título de Doutor em Educação, na

área de concentração de Educação.

Orientadora: AGUEDA BERNARDETE BITTENCOURT

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE

DEFENDIDA PELO ALUNO PEDRO RIGOLO FILHO E ORIENTADA

PELA PROFA. DRA. AGUEDA BITTENCOURT

CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

POBREZA E PATRIMÔNIO Problemas sociais reconvertidos em apostolado por

religiosas franciscanas

Autor: PEDRO RIGOLO FILHO

COMISSÃO JULGADORA:

Profª Doutora Agueda Bernardete Bittencourt

Prof. Doutor Afonso Tadeu Murad

Prof. Doutor Evaldo Amaro Vieira

Prof. Doutor Luiz Roberto Benedetti

Profª Doutora Maria do Carmo Martins

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2019

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AGRADECIMENTOS

Ao finalizar este trabalho, manifesto minha gratidão a todos aqueles que me foram

próximos neste período de estudos.

Aos funcionários e professores da pós-graduação da Faculdade de Educação, que tive

o prazer de conhecer durante o curso de doutorado. Especialmente aos professores e

amigos do Grupo Focus, pelo compartilhamento de saberes ocorrido nos vários

encontros e, especialmente, pelos debates sobre o projeto de pesquisa desta tese, e,

igualmente, aos colegas orientandos que leram partes dela.

À professora Agueda Bernardete Bittencourt, pelos ensinamentos e pela orientação da

tese, pela amizade e afeto ao longo desses anos.

A Luís Roberto Benedetti e Maria do Carmo Martins, professores integrantes da banca

de qualificação, pelas preciosas orientações e pelo incentivo acadêmico.

Aos amigos e amigas do Projeto Temático: Congregações Católicas, Educação e

Estado Nacional, especialmente aos assessores, professores Leticia B. Canêdo e

Ernesto Seidl, que leram e comentaram o primeiro esboço desta tese.

Às amigas Maria Aparecida Custódio, Paula Leonardi, Angela Xavier de Brito e Alzira

Colombo, que comigo compartilharam seus livros, frutos de suas pesquisas, os quais

muito enriqueceram esta tese. Também aos amigos Domingos Barbosa e Rafael

Capelato, que me enviaram, da Europa, livros indisponíveis no Brasil.

À Conferência dos Religiosos do Brasil, especialmente à Irmã Maria Inês Ribeiro e ao

Irmão Lauro Darós, pelas orientações sobre congregações religiosas e pelo

compartilhamento do acervo digital da Revista Convergência, quando ainda estava em

fase de implantação.

À Irmã Mercedes Darós, conhecedora e especialista do Direito dos Religiosos, pelas

pontuais orientações para a compreensão do processo de institucionalização das

congregações brasileiras.

Aos frades Menores Capuchinhos da Província da Imaculada Conceição, que me

autorizaram a acessar livros e fontes franciscanas alusivas ao período estudado,

conservadas no Centro de Espiritualidade Franciscana, na cidade de Piracicaba.

Especialmente à bibliotecária Araci Lopes, pela sua disponibilidade e acolhida, todas

as vezes em que solicitei seu apoio.

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Aos responsáveis pelo Arquivo Arquidiocesano de Campinas, pelo acesso aos

documentos relativos ao objeto desta tese, especialmente à senhora Maria Abadia C.

de Melo, sua arquivista.

À Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, nas pessoas das duas

últimas superioras gerais, Irmãs Irmã Madalena Calgarôto e Salete Bozzan, que me

permitiram aceder aos documentos do Arquivo das casas de Piracicaba e do Governo

Geral em Campinas, e, especialmente, à Irmã Maria Alice da Silva, secretária geral e

responsável pelo Arquivo da Congregação, pelo acolhimento e amizade a mim

dispensados nesses anos.

Ao amigo professor Antônio Euler Lopes Camargo, pelo apoio, interesse e incentivo ao

desenvolvimento desta tese.

Aos amigos e amigas que se dispuseram a ler o texto, sugerindo e modificações

correções que o enriqueceram.

Guardo com carinho a viva lembrança da amiga, que tanto me incentivou a fazer o

doutorado, Rita Cundari, cuja a enorme distância que nos separava e o agravamento

de sua doença, nos privaram do último abraço.

Aos meus familiares, pelo apoio e compreensão incondicionais, principalmente nos

momentos em que não pude estar com eles. Especialmente, à minha esposa Maria

Aparecida, companheira querida e sempre presente nesta caminhada acadêmica. A

vocês dedico esta tese!

Por fim, agradeço, especialmente, a FAEPEX – Pró-Reitoria de Pesquisa da

UNICAMP pelo parcial apoio concedido na finalização da tese.

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Para agradar melhor a Deus, devem dedicar-se à

caridade, acolhendo e dedicando-se a órfãs e crianças

desvalidas. Desse modo, também o povo as ajudará de

boa vontade. (PEDROSO, 1996, p. 15)

Longe de serem escritores, (...), os leitores são

viajantes; circulam nas terras alheias, nômades

caçando por conta própria, através dos campos que não

escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-

los. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo

estabelecimento de um lugar, e multiplica a sua

produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura

não tem garantias contra os desgastes do tempo (a

gente se esquece e esquece), ela não conserva ou

conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por

onde ela passa é repetição do paraíso perdido.

(CERTEAU, 1990, p. 269-270)

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RESUMO

Esta pesquisa aborda o processo de institucionalização e a constituição do patrimônio de uma associação leiga e feminina, ligada à Ordem Terceira de São Francisco, na cidade de Piracicaba, que foi transformada na Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, uma das primeiras fundações brasileiras. Como nas congregações imigradas, obteve sucesso apresentando-se como pobre e servidora dos pobres e colocando-se a serviço da sociedade e dos projetos eclesiásticos, o que obrigou as freiras a se clericalizarem e a ressignificarem seus projetos. Ao se engajar no projeto romanizado, construiu sua visibilidade por meio de empreendimentos escolares, hospitalares e para o cuidado de vulneráveis, o que lhes possibilitou constituir significativo patrimônio econômico-financeiro, expressão do reconhecimento civil, o qual deve ser visto como representação dos patrimônios sociocultural e espiritual, derivantes um do outro. A tese destaca a trajetória de Irmã Cecília do Coração de Maria que, por haver mantido consigo sua filha primogênita e que lhe inspirava cuidados, viu-se obrigada a afastar-se de suas funções e a viver em prédio contíguo ao convento, sem, no entanto, perder seu status religioso. Ali viveu sua consagração e exerceu a maternidade até 1947, quando, já doente, foi reintegrada na comunidade religiosa, falecendo três anos depois, aos 98 anos. Após sua morte, e com o avanço da secularização e da laicização no Brasil, a organização buscou adequar-se às exigências legais, principalmente aquelas relativas à qualificação dos profissionais atuantes nas escolas e nos hospitais. Coincidiram com esse movimento as orientações do Decreto Perfecatae Caritatis, do Vaticano II, que propunham a atualização das organizações religiosas para enfrentarem os desafios da modernidade. Nesse processo de releitura, a Congregação reinventou o seu modo de ser missionária e reconstruiu o lugar de Irmã Cecília como fundadora, freira e mãe espiritual das religiosas, encaminhando à Santa Sé o pedido de sua canonização, um de seus mais significativos investimentos. Esta tese elege como fontes: os documentos da Congregação, especialmente uma série de Relatórios sexenais, revistas comemorativas, estatísticas e relatos históricos; documentos eclesiásticos; documentos civis: escrituras, registros de imóveis, entre outros, e a biografia oficial da fundadora. As análises e as demonstrações tiveram por referência teórica conceitos criados ou operados por Max Weber e Pierre Bourdieu, Michel de Certeau, Jacques Le Goff, Jacques Lagroye, Claude Langlois e Ana Yetano Laguna. Palavras-chave: Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria. Congregações religiosas - Brasil. Igreja e Estado - Brasil. Secularização e Laicização. Irmã Cecília do Coração de Maria.

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ABSTRACT

POVERTY AND PATRIMONY Social problems reconverted in apostolate by franciscan nuns

The aim of this thesis is to present the process of institutionalization and the constitution of the patrimony of a lay and feminine association, linked to the Third Order of Saint Francis, in the city of Piracicaba, which was transformed into the Congregation of the Franciscan Sisters of the Heart of Mary, one of the first brazilian foundations. As in the case of congregations which were migrated to Brazil, it was successful at presenting itself as poor and servant of the poor, in serving society and ecclesiastical projects, which forced the nuns to resignify their projects, making them clerical. By engaging in the romanized project, it built their visibility through educators, hospitals and care of the vulnerables, which allowed to constitute a significant economic and financial patrimony, an expression of civil recognition. This can be considered as a representation of the socio-cultural and spiritual patrimony, which derive from each other. This thesis highlights the trajectory of Sister Cecília of the Heart of Mary, who by having kept her firstborn daughter and caring for her, found herself obliged to leave her duties and to live in a building adjacent to the convent, without, however, losing their religious status. There she lived her consecration and practiced motherhood, until 1947, when already being sick, she was reintegrated into the religious community, dying three years later, at the age of 98. After her death and with the advancement of secularization and laicization in Brazil, the organization sought to adapt to the legal requirements, especially those related to the qualification of professionals working in schools and hospitals. It coincided with this movement, the guidelines of Vatican II's Decree Perfecatae Caritatis, which proposed updating religious organizations to face the challenges of modernity. In this process of rereading, the Congregation reinvented their way of being a missionary and rebuilt the place of Sister Cecília as foundress, religious and spiritual mother of the nuns, sending the Holy See request for her canonization, one of its their most significant investments. This thesis chooses as sources: the documents of the Congregation, especially a series of sexennial reports, commemorative magazines, statistics and historical reports; ecclesiastical documents; civil documents: scriptures, real estate records, among others and the official biography of the founder foundress. Meanwhile, the analyzes and demonstrations had the theoretical reference by concepts created or operated by Max Weber and Pierre Bourdieu, Michel de Certeau, Jacques Le Goff, Jacques Lagroye, Claude Langlois and Ana Yetano Laguna.

Keywords: Congregation of Franciscan Sisters of the Heart of Mary. Religious Congregations – Brazil. Church and State – Brazil, Secularization and Laicization. Sister Cecília of the Heart of Mary.

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RÉSUMÉ PAUVRETÉ ET PATRIMOINE Problèmes sociaux convertis en apostolat par des religieuses franciscaines Cette recherche traite à la fois du processus d’institutionnalisation et de constitution du patrimoine d’une association laïque féminine reliée au Tiers-Ordre de Saint François dans la ville de Piracicaba, postérieurement transformée en Congrégation des Sœurs Franciscaines du Cœur de Marie, l’une des premières fondations brésiliennes. Comme la plupart des congrégations immigrées, son succès est dû au fait qu’elles se sont présentées comme une congrégation pauvre qui servait les pauvres, en se plaçant au service de la société et des projets ecclésiastiques, ce qui a obligé les sœurs à se cléricaliser et à attribuer une autre signification à leurs projets. Quand elles se sont engagées dans le projet romanisé, elles ont construit leur visibilité à travers d’entreprises scolaires et hospitalières, et également aux soins des personnes vulnérables. Cela leur a permis d’accumuler un patrimoine économico-financier assez significatif, expression de la reconnaissance civile qui doit être vue comme une représentation de leur patrimoine socioculturel et spirituel, deux aspects reliés l’un à l’autre. La thèse met en exergue la trajectoire de Sœur Cécilia du Cœur de Marie, supérieure de la congrégation, laquelle a voulu garder avec elle sa fille aînée, qui lui inspirait des soins. Pour cette raison, elle s’est vue forcée à s’éloigner de ses fonctions et à vivre dans un bâtiment attenant au couvent, sans perdre néanmoins son statut religieux. Elle y a vécu sa consécration tout en exerçant également la maternité jusqu’en 1947, quand, déjà malade, elle a été réintégrée à la communauté religieuse, ayant décédé trois ans plus tard, à 98 ans. Après sa mort, et avec les progrès de la sécularisation et laicization au Brésil, l’organisation a cherché à s’adapter aux exigences légales, principalement celles attachées à la qualification de celles de ses sœurs qui travaillaient en tant que professionnelles dans les écoles et dans les hôpitaux. Ce mouvement a coïncidé avec les orientations du Décret Perfectae Caritate, du Vatican II, qui proposait aux congrégations religieuses de s’actualiser, pour qu’elles puissent faire face aux défis de la modernité.Au long de ce processus de relecture, la congrégation a réinventé sa façon d’être missionnaire et a reconstruit la place de Sœur Cecília en tant que fondatrice, sœur et mère spirituelle des religieuses, acheminant au Saint Siège la demande pour sa canonisation, l’un de ses investissements les plus significatifs. Les principales sources de cette thèse sont: les documents de la Congrégation, spécialement toute une série de rapports réalisés tous les six ans, de revues commémoratives, de statistiques et de récits historiques; de documents ecclésiastiques et de documents civils, tels des écritures et des contrats d’enregistrement d’immeubles, entre autres. La biographie officielle de la fondatrice en a également servi de soubassement. Les analyses et les démonstrations ont été théoriquement fondées sur des concepts créés ou opérés par Max Weber, Pierre Bourdieu, Michel de Certeau, Jacques Le Goff, Jacques Lagroye, Claude Langlois et Ana Yetano Laguna.

Mots-clés: Congrégation des Sœurs Franciscaines du Cœur de Marie. Congrégations religieuses - Brésil. Eglise et Etat. Sécularisation et Laicization. Sœur Cecília du Cœur de Marie.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 13

CAPÍTULO I - O movimento congregacional: das experiências múltiplas à

congregação religiosa ....................................................................................................... 27

1. A construção do espaço eclesial feminino oficioso ................................................... 27

2. As associações femininas oficiosas convertidas em congregação religiosa ............. 38

3. A plástica reinvenção da organização religiosa ........................................................ 43

4. As congregações religiosas imigradas no Brasil ....................................................... 46

5. As congregações imigradas segundo o modelo das associações oficiosas .............. 55

6. O predomínio das congregações francesas e italianas ............................................. 63

7. As congregações brasileiras ..................................................................................... 66

CAPÍTULO II - A institucionalização de uma proposta feminina .................................... 81

1. As transformações decorrentes da romanização ...................................................... 81

2. A criação da diocese de Campinas ......................................................................... 85

3. Os franciscanos em Piracicaba ................................................................................ 88

4. De Associação de mulheres à Congregação, um projeto capuchinho ..................... 92

5. A disputa jurisdicional entre os bispos e os frades sobre a Congregação ............... 102

6. A organização da Congregação: uma rede de casas com diversificados serviços . 111

7. As diferentes frentes da missão.............................................................................. 116

Capítulo III - A ressignificação do trabalho como patrimônio ...................................... 133

1. As condições sociais propícias ao desenvolvimento das congregações ................. 133

2. A formação para a missão ...................................................................................... 135

3. A ressignificação do trabalho como nova clausura e como forma de pregação ...... 139

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4. O franciscanismo, a pobreza e o trabalho .............................................................. 146

5. A espiritualidade da pobreza e a gestão racionalizada das obras ........................... 150

6. O “sacrifício” imposto às casas com obras conveniadas ........................................ 157

7. A expansão ao Sul: uma nova frente missionária .................................................. 164

8. O trabalho como dote religioso ............................................................................... 175

CAPÍTULO IV - A Urupuca da Cabocla – Releituras ...................................................... 189

1. Os impactos da secularização e da laicização na Congregação............................. 191

2. O franciscanismo como facilitador das necessárias rupturas .................................. 198

3. A intervenção pontifícia como resposta a resistência às mudanças ....................... 202

4. As releituras sobre a Congregação ........................................................................ 208

5. As releituras sobre Irmã Cecília .............................................................................. 222

7. A Congregação religiosa, herdeira de Mamãe Cecília ............................................ 236

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 239

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 245

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INTRODUÇÃO

Esta tese versa sobre o processo de formação e a posterior reconversão de um

grupo da Terceira Ordem Franciscana em uma das seis primeiras congregações

brasileiras: a Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria1 ocorrido

no início século XX. Essa reconversão se insere no movimento de reorganização da

Igreja brasileira, segundo os ditames da romanização, quando as congregações,

imigradas e nacionais avaliaram que colocar seus efetivos e estruturas a serviço do

projeto eclesiástico de reaproximação do Estado brasileiro lhes possibilitaria

expandir suas casas e obras, ampliando assim o seu patrimônio sociocultural.

Ela foi inspirada no projeto “Congregações Católicas, Educação e Estado Nacional

no Brasil (1840-1950)”, da Faculdade de Educação da Unicamp, o qual integramos

até a sua conclusão, no ano de 2017, projeto coordenado por Agueda B.

Bittencourt2. Seu objetivo não visava a história religiosa, mas compreender a

contribuição de organizações católicas e femininas na construção da sociedade

brasileira, especialmente na educação, na saúde e no atendimento aos vulneráveis,

indicando o forte envolvimento o político da Igreja Católica e de suas organizações3

1 No contato com os vários documentos pesquisados encontramos diferentes títulos dessa organização, os quais podem ser justificados pelas muitas mudanças canônicas e também porque nem todos foram escolhas das religiosas. Ao longo dos quase 120 anos 20 nomes diferentes existiram até a efetivação do seu nome atual. (MARCON, 1992, IV, 113-114).

Na transcrição dos excertos dos documentos atualizamos, em toda a tese, os textos para o português moderno. 2 O projeto teve como objetivo mapear as congregações religiosas imigradas e brasileiras desde a segunda metade do século XIX, as quais se envolveram com o projeto da Igreja Católica para o Brasil, em pleno período da romanização, quando colaboraram especialmente nos campos da educação e da saúde através de parcerias com o Estado e setores da elite, o qual resultou no Banco de Dados.. Ao final do projeto foi publicado o texto “A era das congregações - pensamento social, educação e catolicismo”, de Agueda B. Bittencourt, Revista Pro-Posições, v. 28, n. 3, p. 29-59, fev. 2018.

O Banco de Dados está ddisponível no site do Grupo Focus - UNICAMP em: https://www.focus.fe.unicamp.br/projetos-tematicos/congregacoes-catolicas-educacao-e-estado-nacional. Acesso em: 28 nov. 2017.

A partir deste momento, nos referiremos a este Banco com a expressão “Banco de dados”. 3 Usamos a nomenclatura organizações e organismos para nos referir às congregações religiosas como parte integrante da instituição Igreja Católica Apostólica Romana. Instituição e organização não são conceitos fáceis de serem definidos, pois há diferentes vertentes interpretativas que identificam

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na formação da Nação brasileira. Ao assimilarmos o escopo do projeto e ao nos

apropriarmos das referências bibliográficas, tomamos consciência de que as

congregações, ao exercerem as suas devidas ações, segundo o roteiro predefinido

pelo clero, com claras instruções e protocolos a serem seguidos, se constituíam

produtoras de sentido. Possuidoras de cultura própria e feminina, elas indicavam

outras possibilidades de ver e compreender a Igreja, a sociedade e o mundo.

Compreendemos isso ao tomar conhecimento da proposta metodológica presente

na obra Le catholicisme au feminin. Les congrégations françaises à supérieure

générale au XIXe siècle, de Claude Langlois, publicada em 1984, na qual o projeto

se inspirou e cujo autor foi um dos assessores do grupo de pesquisa. Nessa obra,

ele analisou minuciosamente o movimento congregacional francês do século XIX,

concluindo que, pelo fato de ter sido eminentemente constituído por mulheres, teria

dado importante contribuição para a feminização da Igreja e da sociedade francesa.

Isso teria sido possível por três razões: a primeira porque o Estado liberal, ao

descurar de inúmeros desafios sociais, acabou por e reconhecer os grupos de

mulheres leigas associadas por sentimentos religiosos com práticas caritativas

ligadas ao campo da educação, à saúde e aos cuidados de vulneráveis; a segunda

razão diz respeito ao anticlericalismo galicano, desejoso da erradicação dos

ultramontanistas e redução o catolicismo à dimensão privada e pessoal; a terceira

razão vincula-se à capacidade organizativa de um governo central forte, mas, ao

mesmo tempo, participativo e democrático, conduzido por mulheres.

um como sinônimo do outro. Entendemos Instituição como mecanismo de objetivação fundado e/ou instituído pelos sucessivos pactos sociais e construídos na longa duração e, por isso, transcendem a vontade subjetiva dos indivíduos. As instituições são apresentadas como se preexistissem desde sempre e pertencessem a ordem natural. A reprodução sistemática de sua cultura institucional, como conjunto de práticas sociais e discursivas produzidas pelas suas organizações, legitimam e consolidam o modo de ser instituído ao mesmo tempo que as relançam, as reinventam e as renovam. Por fim, elas possuem a função social objetiva de regular o comportamento da comunidade social através de suas organizações e assim construir a socialização. Por sua vez, as organizações são consideradas inventadas, criadas, por grupos de indivíduos vinculados a um propósito que materializa as propostas e ou ideologias das instituições; portanto, são circunstanciadas no tempo e no espaço. Quanto mais sólida for a organização, mais ela é aceita e identificada com a instituição. Paróquias, congregações, ordens religiosas, associações constituídas são organizações da Igreja, pois através das práticas sociais e discursivas, elas constroem a visibilidade da Igreja (LAGROYE; OFFERLÉ, 2011).

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Em função da superioridade numérica, as freiras eram as pessoas que, de fato,

alimentavam o catolicismo e, portanto, assumiam as funções sociais da Igreja, até

então reservadas ao clero. Para o autor francês as congregações, apesar das

limitações impostas pelos eclesiásticos, se constituíam como um dos únicos espaços

permitidos para a prática feminina na sociedade francesa daquele período, ainda

fortemente marcada pela dominação masculina. Resulta daí a importância de

demonstrar quão conservadora e fechada era a sociedade francesa do século XIX, a

ponto de uma organização religiosa, pouco considerada naquela sociedade, indicar

outras possibilidades de interpretação da realidade.

A história das congregações religiosas no Brasil iniciou-se com a imigração de

organizações europeias estimuladas pelo governo imperial e pelos bispos

ultramontanos no final da primeira metade do século XIX e se intensificou com o

processo de reorganização da Igreja Brasileira a partir da proclamação da

República, possibilitando a fundação das congregações brasileiras, formadas a partir

da circulação da cultura congregacionista imigrada. A eleição do nosso objeto de

estudo, justifica-se pelas seguintes razões: o fato de ela possuir as principais

características daquele modelo de vida religiosa; ser brasileira, nascida na cidade de

Piracicaba, interior de São Paulo; ter sido fundada no ano de 1900, em pleno

processo de romanização da Igreja brasileira, sendo, portanto, uma das seis

primeiras congregações fundadas no País; ter sido fundada a partir do encontro de

dois projetos: o primeiro, oficioso, o de um grupo de mulheres leigas, lideradas por

Antônia de Macedo, dispostas a associarem-se e colocarem-se a serviço da Igreja; o

segundo, institucional, idealizado pelos frades capuchinhos italianos, chegados

recentemente na cidade de Piracicaba, os quais precisavam ampliar o número de

agentes para implantar o catolicismo romanizado; e, por fim, ter tido uma forte

atuação no campo educacional e hospitalar durante a primeira metade do século XX.

Em síntese, era possível encontrar nessa organização elementos suficientes para

explicar o sucesso das congregações religiosas como uma força viva da Igreja

Católica que asseguravam a permanência delas na sociedade brasileira. Entretanto,

ao longo da elaboração da pesquisa, uma das principais justificativas elencadas por

Langlois para o sucesso congregacionista na França parecia não se encaixar,

segundo nossa análise, na dinâmica e no sucesso das congregações brasileiras – a

figura da superiora geral como alguém dotado de poder capaz de ditar os rumos da

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organização sob seu comando. Parecia-nos, até então, apesar do título e da sua

autoridade no interior do convento, que a superiora pouco poder possuía. Ocorreu-

nos verificar esses dados em outras congregações e constatamos a recorrência do

forte controle dos bispos diocesanos sobre as congregações, especialmente as

brasileiras (CUSTÓDIO, 2014; GASCHO, 1998).

Todavia, cabe destacar a existência de duas diferenças entre o objeto de estudo de

Langlois e a nossa pesquisa: A primeira, o autor francês se debruça sobre a

emergência e o auge do movimento congregacionista, entre as primeiras décadas

do século XIX até a década de 1860, quando o movimento teria entrado em declínio,

quando nós analisamos as congregações do século XX, já totalmente incorporadas

nas estruturas da Igreja. A segunda é o ambiente social: enquanto Langloisanalisa

congregações francesas, analisamos uma das primeiras congregações brasileiras.

Julgamos, então, ser necessário recorrer à história do movimento congregacionista

para entender o que ocorria no Brasil. Neste sentido, de grande valia foi o texto Las

congregaciones religiosas femeninas en el XIX. El tema de la obtención de su nuevo

estatuto jurídico canónico, y su interés historiográfico (LAGUNA, 2009), no qual a

autora abordou o mesmo argumento de Langlois, buscando, porém, compreender os

impactos causados por aquelas organizações femininas na Igreja do século XIX, e

em sua própria história (LAGUNA, 2009). Este texto ajudou a compreender dois

pontos importantes: 1) as congregações eram as antigas organizações religiosas

oficiosas que solicitaram a sua institucionalização à Igreja; 2) a figura da madre

superiora, tal como a conhecemos, só existia, de forma plena, nas organizações

reconhecidas pelo papado como pontifícias. Assim, sua plena autonomia era uma

consequência da concessão do direito pontifício, o qual, por sua vez, passava a ser

um dos seus principais objetivos da organização. Eis as razões da explosão de

congregações femininas, as quais feminizavam as práticas católicas, na medida em

que se colocavam a serviço do projeto ultramontano.

Entendendo o empenho e a dedicação das congregações brasileiras às suas obras

não tinham como objetivo apenas servir ao Estado, a tese, então, busca

compreender as razões desencadeadoras da conversão das organizações leigas em

congregações religiosas, a se dedicarem exaustivamente às suas obras e daqueles

que as contratavam, com o propósito de serem reconhecidas como organismos

eclesiais e gozarem de legitimidade social.

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Ao buscarmos compreender as condições que teriam levado as congregações

religiosas a se colocarem a serviço da sociedade, constatamos que, diferentemente

das ordens religiosas autônomas ou mantidas pelo Estado, elas buscaram meios

possíveis à sua sobrevivência através de parcerias com o Estado e com as elites,

de modo a garantir o cumprimento de sua missão, realizada nas diversas obras

fundadas por elas ou por terceiros . A associação entre demanda social,

crescimento numérico e austeridade lhes possibilitou uma espiral de contínuo

crescimento, lhes permitindo acumular significativo patrimônio, o que por sua vez,

era reinvestido em novas obras sociais e na formação de seus quadros.

As organizações religiosas não são meras associações civis. Elas congregam

indivíduos que atribuem às suas vidas um sentido religioso, os impelindo a

integrarem organizações espirituais com pessoas de iguais sentimentos. Neste

sentido, a justificativa espiritual, antropológica, não pode ser alcançada por

categorias racionais. Michel de Certeau chama de “não dito” a esse sentido religioso,

porque expressaria algo só compartilhado pelos agentes sociais pertencentes

àquele universo cognitivo. Há, segundo ele, na interpretação religiosa, uma lógica

própria, implícita e/ou oculta, por trás do é dito, afirmado, vivido. Por conseguinte,

muitos historiadores atentos apenas aos fatos isolados, sem dar atenção ao sentido

vivido, ignorariam a relação entre significante e significado e perderia a

compreensão da singularidade do fenômeno religioso. Para ele, então:

... ‘compreender’ os fenômenos religiosos é, sempre, perguntar-lhes outra coisa daquilo que eles quiseram dizer; é interrogá-los a respeito do que nos podem ensinar a respeito de um estatuto social através das formas coletivas ou pessoais da vida espiritual; é entender como representação da sociedade aquilo que, do seu ponto de vista, fundou a sociedade. (CERTEAU, 2002, p. 143, aspas e grifos do autor)

Ao utilizarmos a expressão “patrimônio”, referimo-nos ao conjunto de bens, materiais

e simbólicos, acumulados ao longo da secular existência, originando o patrimônio

cultural e religioso da organização. Embora não haja como separar o patrimônio

material do imaterial, os bens materiais “ocultam” o patrimônio imaterial, uma vez

que só existem em função do sentimento religioso. Nesta perspectiva, tais bens são

a representação da Congregação. Esses não podem ser dissociados dos bens

espirituais ou imateriais, pois, dialeticamente, derivam um do outro. Suas

combinações, recombinações, superposições e hierarquias, frutos de conflitos,

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acomodações e consensos estabelecidos ao longo da história, constituíram a

identidade da organização (MENESES, 2009).

As definições do Concílio de Trento (1545 - 1563) sobre o ser da Igreja, no embate

contra as proposições subjetivas da fé, defendidas pelos protestantes, forjaram uma

cultura católica centrada na importância de exteriorização da fé, manifesta através

da materialidade, plenamente assumida pela romanização e,ainda, presente até os

dias atuais. Essa cultura material se evidencia nos objetos religiosos, nas obras, nos

numerosos templos espalhados pelo mundo, nas celebrações litúrgicas,

especialmente nos sacramentos. Ao construírem a visibilidade da Igreja, esses se

constituem, também, em um “não dito”, pois são uma representação da Igreja

mística, aquela que não se vê, reconhecida apenas pelos crentes. Assim, o

patrimônio material de qualquer organização religiosa não deve ser separado do

espiritual, tampouco deve ser tido como um fim em si mesmo, mas como um meio,

um sinal, que só pode ser compreendido em função do objetivo religioso. O mesmo

raciocínio vale para a importância do reconhecimento pontifício. Tal como Langlois

(1984) apontou, e também nós demonstraremos, foi o patrimônio material que

permitiu à organização expandir-se, abrir novas frentes e crescer. Segundo Certeau

(2002), isto é “o que está dito”; é preciso, então, procurar pelo “não dito”.

Demonstraremos que, em função da sua origem leiga, o status religioso oficioso dos

grupos congregacionistas os motivou a buscar a isonomia com os monges e as

monjas, reconhecidos, até então, como os únicos e verdadeiros religiosos e

religiosas.

Nesta perspectiva antropológica, o reconhecimento religioso ultrapassava a

materialidade dos bens e o seu enriquecimento. O Direito Pontifício era o

reconhecimento eclesial de que a Congregação, apesar de ter nascido fora dos

ambientes eclesiais, era um organismo religioso e, segundo a teologia católica, fora

suscitado, inspirado pelo Espírito Santo. Essa esperança motivava as religiosas a se

empenharem na construção material da organização, que cresceria e teria o número

de freiras aumentado, levando ao seu reconhecimento. Esse longo processo

constituía-se, assim, no único patrimônio da organização. Isso fica claro na teologia

da vida congregacional, que justifica assim o surgimento das congregações:

O surgimento de cada uma das formas de vida consagrada e de cada Instituto é um acontecimento que encerra grande densidade e capacidade de transmissão e visualização do amor salvífico de Deus na história. A

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história das distintas formas de vida consagrada é a história do discernimento dos sinais dos tempos que manifestam o desígnio salvífico de Deus. (MURICY, 2011, p. 33)

Dessa forma, a presença das congregações femininas na sociedade e sua

participação na construção do Estado não devem ser vistas apenas como um

conjunto de ações mecânicas, de grupos submissos à hierarquia católica, mas como

fruto de um claro projeto, constituído como meio possível para elas existirem e

realizarem sua missão em meio às estruturas essencialmente masculinas. Isso

significa dizer que a participação política de congregações religiosas femininas

ocultava uma estratégia de sobrevivência em uma conjuntura eclesiástica e

hierarquizada, o que, muitas vezes, exigiu das próprias freiras a reprodução dessas

práticas clericalizadas em seus conventos.

Optamos por dedicar o final da tese ao processo de interpretação ou releitura

realizado pela organização de sua história e de sua fundadora, ocorrido depois do

Concilio Vaticano II. Ainda, mais uma vez, nos ancoramos em Langlois (1984) sobre

a questão da reconstrução das histórias das fundações e refundações de

congregações e da eleição das fundadoras. Com base em seus estudos, buscamos

problematizar a questão da construção de uma congregação fundada por uma única

pessoa. A quem interessavam as alterações de narrativas históricas? Por que a

organização que, durante certo tempo, apresentava um frade como fundador,

passou a considerar Irmã Cecília como fundadora? Foi-nos de muita valia,

entrementes, o livro de Jacques Le Goff, São Francisco de Assis (2001),

especialmente o texto “Em busca do verdadeiro Francisco”, que demonstra a

rejeição sofrida por Francisco ao defender um modelo de organização diferente da

estrutura hierárquica, desejada pelo seu grupo, que, depois de sua morte, o fez

santo. Também Irmã Cecília, de 1916 a 1948, fora considerada, por parte dos

membros da congregação e pela hierarquia da Igreja, como uma persona non grata,

depois, foi reconhecida como fundadora e, posteriormente, candidata aos altares.

Tomamos, também, como base teórica, os estudos de Michel de Certeau (2006), ao

tratar a questão da hermenêutica no texto denominado “A ruptura instauradora”.

Segundo ele, o texto, como interpretação, pertence ao passado, cabendo ao leitor

dar-lhe nova vida, tornando-o um novo texto segundo seus interesses. A

Congregação, portanto, só pôde fazer a releitura de Madre Cecília depois de seu

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falecimento. A representação construída, contudo, nada tinha a ver com o passado,

mas com os seus hodiernos objetivos. O processo de construção da memória

religiosa da fundadora se justificava em função da legitimação dos passos dados

pela organização. Com base em indícios documentais, ousamos levantar algumas

hipóteses sobre as atuais representações sobre ela.

Por fim, uma palavra sobre a expressão “clero feminino”, utilizada por Claude

Langlois (1984). Entendemos que o enfoque desejado pelo autor foi destacar que a

presença de mulheres em espaços e atividades exercidas, até então,

exclusivamente por homens, contribuía para a ressignificação da função clerical, da

Igreja, e, consequentemente, do catolicismo, permitindo denominá-lo Le catolicisme

au feminin. Paula Leonardi (2010), em sua obra, Além dos espelhos, aborda esta

questão e afirma que, se o clero fazia uso da palavra para pregar, as religiosas

pregavam com as práticas cotidianas em suas diversas obras. Além disso, lembra

que, ao se converterem em professoras, as freiras também exerciam um tipo de

pregação, na medida em que também elas doutrinavam os alunos. Entretanto, esses

novos modos de pregação, apesar de lançar luzes na ação feminina dentro de uma

estrutura masculina, não faziam das mulheres membros do clero, até porque não

existe na Igreja Católica uma função clerical feminina. Também não parece que as

religiosas do século XIX tenham pleiteado a isonomia com os clérigos.

De outro lado, destacamos a afirmação de Laguna (2009) de que a condição para o

movimento feminino ser institucionalizado foi a exigência para que as organizações

leigas fossem incorporadas nas estruturas da Igreja e passassem a agir em nome

dela, permitindo-nos interpretar que elas se apropriavam do modo de ser do clero, o

que, segundo o sentido estritamente intraeclesial, fazia delas organizações

extremamente “clericalizadas”. Desse modo, porque inseridas na estrutura

eclesiástica, elas reproduziam o modo de ser do clero, afirmando-se detentoras do

poder religioso, especialmente sobre os leigos e, em última análise, sobre a

sociedade que se secularizava (GUASCO, 2008). Eis a razão de termos afirmado

que a reprodução da cultura eclesiástica era uma estratégia de sobrevivência. Era

uma questão estrutural, não havia o que mudar. A entrada maciça de mulheres na

Igreja não ocorreu em função do reconhecimento da condição feminina, mas para

cumprir uma função supletiva do projeto da romanização, pretendendo neutralizar a

força das irmandades leigas que controlavam igrejas, obras sociais, assistenciais e

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caritativas. Não obstante, essa participação coadjuvante de mulheres, tal qual na

França, constituía um dos únicos espaços na sociedade brasileira para as práticas

femininas (ROSADO-NUNES, 1996, 1997). O fato de terem assumido posições

clericalizadas e inclusive reproduzindo a cultura romanizada, na realidade da vida

ativa, da pregação com seus corpos, não impediu que as religiosas feminizassem a

Igreja. Para além do exercício das funções designadas pela estrutura eclesiástica,

elas conseguiram manterem-se outras no interior do sistema, ultrapassaram a

mecânica de serem meros reflexos e foram “além dos espelhos”. Através de

releituras, instauraram múltiplas estratégias e implantaram novas práticas

(CUSTÓDIO, 2014; LEONARDI, 2010).

A estrutura da tese

Definido que estudaríamos a Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de

Maria, pusemo-nos a buscar as fontes para a pesquisa. O primeiro material ao qual

tivemos acesso foi a biografia da fundadora, Um coração de Maria. Vida de Madre

Cecília do Coração de Maria, escrita por Frei José Carlos Pedroso, publicada em

19964.

Havíamos solicitado ao Governo Geral permissão para acessar o Arquivo Geral da

organização religiosa, mas tivemos de esperar alguns dias pelo fato de a superiora

geral estar fora da cidade de Campinas. Em razão disso, como também havíamos

pedido autorização para consultar o Arquivo da Arquidiocese de Campinas, foi lá

que tivemos contato com os primeiros documentos da organização feminina,

tratando-se da cópia de dois relatórios enviados pela superiora geral, madre Maria

São Francisco do Divino Coração, a Dom Paulo de Tarso Campos, o terceiro bispo

de Campinas. Os documentos dão mostras de que, periodicamente, a superiora

4 Frei José Carlos Pedroso foi frade capuchinho da Província Imaculada Conceição. Ele nasceu em São Paulo, em 1931, professou os primeiros votos em 1950 e foi ordenado padre em 1956. Além de suas funções pastorais e administrativas, foi Definidor Geral da Ordem Franciscana para América Latina e Grécia por dois sexênios, foi Ministro Provincial por dois mandatos e membro do CEFEPAL. Licenciado em Letras Clássicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, escreveu várias obras de divulgação da história de sua Ordem no Brasil, o que fez dele um historiador eclesiástico. Traduziu inúmeras fontes latinas e italianas que integram a “Coleção Fontes Franciscanas” do Centro Franciscano de Espiritualidade, em Piracicaba, criado em 1990, do qual foi um dos fundadores. Faleceu em 2015, em Piracicaba. Além de ter conhecido aquela que biografou, Frei Pedroso foi bastante próximo da Congregação, assessorando-a no seu processo de franciscanização.

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geral tinha como obrigação apresentar um relatório ao bispo diocesano5. A riqueza

de detalhes financeiros deixava entrever o volume do patrimônio material da

organização. Ali, naquele momento, intuímos a possibilidade do nosso campo de

pesquisa, focando na formação do patrimônio material da organização. Feita a

análise desse primeiro documento, buscamos a outros no mesmo Arquivo, não

encontrando mais que três. Nesse ínterim, já havíamos recebido a devida

autorização da superiora geral e, finalmente no Arquivo Geral, tivemos acesso a

maior parte dos Relatórios, os quais se constituem na principal fonte de nossa

pesquisa. Nele também pudemos consultar inúmeras fontes documentais: livros de

registros das religiosas, as Constituições, e, revistas comemorativas, dentre outros

documentos, os quais, em razão do volume, não serão abordados nessa tese, mas

constituem-se em importante material de pesquisa a ser analisado. Além desses, há

um série de documentos civis que foram fundamentais para a pesquisa: certidões,

registros de patrimônio e de doações, testamentos. Ao constatarmos que, no

Arquivo da Congregação, havia cópias de todos esses documentos, julgamos

desnecessário buscar aquelas fontes e passamos a utilizar esses.

No processo de pesquisa, constatamos que a história da Congregação ainda está

por ser escrita. Apesar de a Assembleia capitular de 1985 ter aprovado a elaboração

da sua história, apenas uma pequena parte foi concluída: o levantamento de fontes.

Paralelamente à sistematização dessas fontes, surgiu a primeira publicação interna,

denominada “Fontes Históricas”, que, apesar do título, reúne tão somente uma

coletânea de memórias compiladas de textos oficiais e oficiosos esparsos e

5 O Relatório é similar a uma síntese produzida por cada superiora geral ao final de seu governo. Ele foi instituído pela Constituição de 1921, assim definindo no § 137:

No final do seu governo a Superiora Geral enviará ao Exmo. Snr. Bispo Diocesano, um relatório assinado também pelas quatro Definidoras, acerca do estado econômico e do pessoal das casas, bem como da observância regular e do Noviciado.

Os documentos produzidos até 1950 foram endereçados ao bispo diocesano de Campinas, o responsável canônico da organização. Com a aprovação pontifícia, ela foi dispensada pela Santa Sé dessa obrigação, mas continuou produzindo os relatórios como prestação de contas às próprias religiosas. Os Relatórios deveriam ser enviados ao final de cada mandato do governo geral. Por esta informação deduzimos que se tratava do governo iniciado em 1939 e findado em 1945. A justificativa para a existência de Relatório em 1942 pode ser o fato de Dom Paulo ter chegado a Campinas em março de 1942. Era natural que a madre lhe apresentasse a Congregação, até porque três anos depois a organização recebeu o Decreto Laudis, o primeiro sinal do reconhecimento pontifício, que fora solicitado. Sabia ela que Dom Paulo, ainda que recém-chegado, deveria enviar à Santa Sé seu parecer sobre a concessão daquele direito pontifício.

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anotações pessoais das religiosas. Havia sido idealizada a publicação de um

segundo volume, dedicado à recuperação da imagem pública de Irmã Cecília, o

qual, segundo o projeto de 1985, seria construído através de memórias das

religiosas.

Entretanto, após a aprovação para o início do processo de beatificação da

fundadora, optou-se por compor um dossiê denominado Canonizationis Servae Dei

Cecíliae a Corde Mariae, datado de 1992, dividido em seis volumes6, que traz uma

sistematização das fontes documentais civis e religiosas, sempre precedidas por um

pequeno texto explicativo sobre a origem, as condições e a localização de cada um

deles; inúmeras memórias produzidas por pessoas que conheceram a religiosa; e,

narrações e interpretações denominadas “trajetórias” da fundadora e da própria

organização. No mesmo ano, a superiora geral, Irmã Armanda Franco Gomes de

Camargo, organizou dois outros livros: Cronologia Histórica e Relatório – Comissão

Histórica, os quais destacam a sucessão de fatos importantes ocorridos e que

ampliam alguns temas citados no Dossiê. Justamente em razão disso, salvo raras

exceções, repetem o já selecionado na coletânea de seis volumes. Também,

verificamos enormes lacunas documentais, segundo informações da organização,

resultantes de documentos destruídos, principalmente aqueles alusivos à fundadora.

Respeitante à produção acadêmica, destacamos, no ano de 2009, Magali

Gavazzoni, religiosa da mesma Congregação, produziu, no Centro Universitário

Salesiano – Unisal – de Campinas, a dissertação: Fundação e primeiros anos de

práticas educativas do Asilo do Coração de Maria, em que, tangencialmente,

abordou o início da organização religiosa e a vida de sua fundadora. No mesmo ano,

sem aparente ligação, João Valério Scremin produziu, na Universidade Estadual de

Campinas, a dissertação: Pobre Coração de Maria: Assistência e educação de

6 Trata-se de é uma coletânea de textos reunidos em seis volumes, organizada por Irmã Christina Libera Marcon, contém: Livro 1 - Testemunhos sobre a Serva de Deus (sacerdotes e religiosos). Livro 2 - Testemunhos sobre a Serva de Deus (ex-candidatas à vida religiosa, ex-religiosas e religiosas). Livro 3 - Escritos da Serva de Deus, madre Cecília, e documentos relativos à Causa de Canonização. Livro 4 - Trajetória da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria (biografia e cartas do fundador, documentos históricos da Organização até a morte da fundadora). Livro 5- Trajetória da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria; (Eventos comemorativos pós-morte documentos da congregação depois de 1950). Livro 6 - Livros Oficiais da Congregação e outros documentos. Em razão do longo título em latim, nos referiremos a essa obra com a palavra “Dossiê”.

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meninas desvalidas em fins do século XIX e início do século XX, que versa sobre o

mesmo argumento de Gavazzoni, muito embora o tenha feito com maior número de

fontes e informações.

Posto isso, entendemos que nossa tese possa vir a contribuir para o conhecimento

do objeto e da temática abordadas. Ainda que haja uma pequena produção

acadêmica sobre ordens religiosas femininas e sobre congregações imigradas,

maior é a lacuna existente sobre as congregações religiosas brasileiras, fato que nos

impulsionou a estudá-las e desenvolver esta tese.

Os eixos da tese

A tese está dividida em quatro capítulos. O primeiro, O movimento

congregacional: das experiências múltiplas à congregação religiosa, situa as

condições que levaram diversas associações religiosas oficiosas europeias,

especialmente femininas, do início do século XIX, a solicitarem o reconhecimento

oficial da Igreja para gozarem do direito internacional pontifício. Instituída pela Santa

Sé, a organização religiosa era enviada como representante oficial em missão no

projeto de restaurar o mundo católico depois da perda dos estados pontifícios O

crescimento e a multiplicação dessas congregações feminizaram as práticas

religiosas e abriram caminho para feminização do catolicismo e também para uma

suposta clericalização das freiras. A partir de 1846, o Brasil se tornou campo

fecundo para as congregações imigradas, que se colocaram a serviço da elite na

fundação de escolas particulares, na administração de hospitais e outros cuidados

de vulneráveis. O sucesso do projeto, associado ao processo de expansão das

dioceses, desencadeou o aumento significativo na demanda por tais serviços, fato

que levou os clérigos a lançarem mão de associações religiosas oficiosas brasileiras

e convertendo-as em congregações religiosas, segundo o modelo das organizações

imigradas. Não obstante, alguns poucos grupos buscaram resistir e conservar

características primitivas das associações religiosas, mas sucumbiram com a

efetivação da romanização.

O segundo capítulo, A institucionalização de uma proposta feminina, apresenta a

trajetória de um grupo de terceiras franciscanas que se converteu em congregação

religiosa como opção possível para o grupo continuar existindo, apesar da

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romanização da região de Campinas e Piracicaba. Com objetivo de permanecer o

menor tempo possível sob o direito diocesano, o grupo se empenhou no

cumprimento de uma agenda romanizada definida pelos sucessivos bispos de

Campinas, e se constituiu em estrutura organizacional composta por casas

(comunidades células) interligadas por uma sede de governo, chamada de casa mãe

ou casa geral, distribuídas em quatro campos de missão: educação, saúde, cuidado

de idosos e administração de um pensionato. Com isso, pôde expandir-se

geograficamente, experimentar um crescimento em seu quadro de religiosas e um

correlato aumento nos bens materiais, resultando em uma forte cultura religiosa

congregacionista, reproduzindo e justificando aquele modo de ser, constituindo,

assim, o seu patrimônio cultural.

O terceiro capítulo, A ressignificação do trabalho como patrimônio, demonstra

como o principal eixo identitário da vida congregacional, o apostolado, também

chamado de “vida ativa”, que ressignificava a consagração religiosa através dos

variados campos da missão transformando-os em novas clausuras, foi fundamental

para o desenvolvimento da Congregação. Tendo como base a espiritualidade

franciscana, as religiosas construíram uma cultura congregacionista fundada no

trabalho não como fonte de lucro pessoal, mas como forma de fomentar e ampliar a

missão religiosa através da abertura de novas casas religiosas. Fundamental para

isso foi a concepção antropológica de pertença eclesial promovida pela

espiritualidade franciscana, impulsionando o empenho de cada freira para que a

organização crescesse. Unindo, portanto, a espiritualidade da pobreza e uma nova

forma de administrar as obras, mais racional, centralizada e compartilhada no

fortalecimento da organização, todas as religiosas, e, especialmente, aquelas que

viviam nas casas com obras contratadas, foram responsáveis pela constituição do

patrimônio da organização religiosa. Com a obtenção do direito pontifício, mas

também com a secularização e a laicização7, a organização buscou espaços

7 Cesar A. Ranquetat Jr. destaca que ambos são frutos da modernidade, pois “...tanto a secularização como a laicidade, expressam a luta de atores sociais na construção de uma ordem social baseada na razão e na ciência não legitimada por um poder religioso”.

De forma bastante clara ele define que secularização é um fenômeno cultural e laicização é um fenômeno politico. O primeiro se refere ao declínio da religião na sociedade moderna e a perda de sua influência e de seu papel central e integrador. O processo de secularização relaciona-se com o enfraquecimento dos comportamentos e práticas religiosas. A laicização é um fenômeno político que define a separação entre o poder político e o poder religioso. Expressa a laicidade, a afirmação da

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possíveis para manter seus projetos, o que, por sua vez, passou a exigir o

redimensionamento da política de recrutamento e a destinação das novas

recrutadas.

O quarto capítulo, A Urupuca da Cabocla - Releituras, aborda as várias releituras

que a organização fez de si e de sua fundadora, durante a romanização e depois de

1950 e no Concilio Vaticano II. Especialmente o Decreto Perfectæ Caritatis, ao

sugerir que as Congregações relessem as suas fontes, levou a organização feminina

a redescobrir o franciscanismo e a desejar reconstruir a sua história, o que implicava

reconstituir a fundação feminina e a história da fundadora, que passara mais de 30

anos fora do convento. A saída encontrada foi reconstruir uma representação da

fundadora que legitimasse as opções hodiernas da organização, naquilo que

Langlois denominou de fondation reitérée, como as várias releituras que a

organização fez de si e de sua fundadora, durante a romanização e depois de 1950,

na sociedade secularizada, culminando no pedido de beatificação da fundadora e na

construção da memória através de uma biografia escrita pelo frei José Carlos

Pedroso.

Ao final, apresentamos nossas considerações e as referências utilizadas.

neutralidade do Estado democrático e de seus cidadãos diante dos interesses públicos. Ao mesmo tempo, o Estado laico deve garantir os direitos religiosos de todos (RANQUETAT JR, 2009).

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CAPÍTULO I

O movimento congregacional:

das experiências múltiplas à congregação religiosa

Este capítulo inicial apresenta o complexo fenômeno eclesial do movimento

congregacional do século XIX, que possibilitou a imigração de congregações

religiosas para o Brasil e a fundação de organizações nativas. Para sua composição,

a principal fonte de pesquisa foi o Banco de dados produzido pelo Projeto Temático:

Congregações Católicas, Educação e Estado Nacional, publicado em 2017, o qual

confrontamos com a bibliografia específica.

1. A construção do espaço eclesial feminino oficioso

O movimento congregacional é derivado da força social convergente de grupos

católicos outsiders, especialmente femininos, os quais, em razão de suas crescentes

atuações sociais, por passarem a gozar de prestígio e atingirem o reconhecimento

das sociedades, solicitaram o reconhecimento religioso para tornarem-se

organismos pontifícios e, assim, expandirem seus projetos internacionalmente,

assumindo-se como organizações ultramontanas a serviço do papado. Através do

cuidado aos vulneráveis presentes na sociedade civil, especialmente nas áreas da

educação e da saúde, esses grupos construíam uma nova representação do estilo

de vida religiosa. As razões da inclinação de grupos marginais em direção ao

papado e a consequente transformação desses em congregações religiosas

explicam as imbricadas relações de poder em uma sociedade, aparentemente,

moderna e liberal, ainda possuía uma estrutura cultural visceralmente católica, a

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qual a Igreja tentava a todo custo manter e cujo programa está expresso na encíclica

Quanta Cura e no seu apêndice, Syllabus, ambos de 18648.

Ao ocuparem espaços sociais que os Estados e a própria estrutura clerical, não

conseguiam suprir, essas organizações femininas, com suas práticas sociais,

gestavam uma cultura católica independente das estruturas eclesiásticas. Na disputa

com os liberais, a Igreja, naquele momento, reconheceu os grupos femininos como

forças sociais que não poderiam ser desprezadas, permitindo a alguns deles, ainda

nas primeiras décadas do século XIX, solicitarem diretamente à Santa Sé o

reconhecimento pontifício – direito, até então, reservado apenas às ordens religiosas

e a algumas sociedades apostólicas.

Na mesma perspectiva de Langlois, Ana Yetano Laguna (2009) afirma que o

movimento congregacionista do século XIX foi laico, centrípeto e com múltiplas

origens. Segundo ela, raízes dele são encontradas nos vários grupos, alguns de

origem medieval, resistentes à política eclesiástica tridentina, expressa na

Constituição Circa Pastoralis, de Pio V, em 1566, que regulamentou a vida religiosa

e impôs a clausura a todas as organizações religiosas femininas.

É possível identificar, na base deste movimento, quatro grandes grupos associativos

femininos e marginais, nos quais mulheres leigas, que se sentiam religiosas e viviam

as práticas e os costumes conventuais, deram início a um crescente movimento em

direção à Santa Sé, ainda na primeira metade do século XIX, para pedir o

reconhecimento de suas condições como verdadeiras freiras. São eles: as

associações de membros das ordens terceiras, as sociedades de vida comum e as

pias uniões, os três com estreitos vínculos eclesiásticos e, por fim, as associações

livres de mulheres católicas que, até então, rejeitavam a direção e/ou a intervenção

eclesiástica (LAGUNA, 2009).

1.1. As associações de mulheres terceiras

Reuniam grupos de mulheres leigas celibatárias e/ou viúvas vinculadas

8 Na encíclica Quanta cura, de 1864, o Papa Pio IX, apresenta uma catequese sobre os principais erros da época moderna e no Syllabus elenca 80 erros, já anunciados anteriormente pelo papado. Trata-se de um dos documentos papais mais intransigentes

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espiritualmente às ordens terceiras9. Não querendo, ou não podendo, assumir a vida

claustral, tais pessoas viviam em fraternidades, nas quais tudo dividiam e se

dedicavam ao exercício de atividades pastorais auxiliares, sem, no entanto, possuir

o status de religiosas. Tal experiência se configurava, portanto, em um misto de vida

leiga e vida religiosa, pois, sendo leigas terceiras, assumiam a consagração laical,

mas, ao decidir viver em comunidades, assumir os ofícios religiosos e dedicar-se à

missão, indicavam uma nova forma de vida religiosa que aos poucos ia sendo

forjada. Nesses grupos foram incorporados vários outros movimentos leigos

independentes, como foi o caso das beguinas, que, por não possuírem estrutura

organizada, optaram por aderir às ordens terceiras já existentes para não sofrerem

sanções das sucessivas leis canônicas e, tampouco, da Inquisição (VAN

ASSELDONK, 2003, p. 75). Com o processo de reforma instaurado pelo Concílio de

Trento, muitas comunidades de mulheres terceiras se submeteram ou foram

submetidas à clausura, enquanto outros grupos conseguiram resistir às investidas

eclesiásticas vivendo uma espécie de vida oculta, bastante próxima a

clandestinidade. Paradoxalmente, quando, mais tarde, os Estados liberais,

especialmente a França, impuseram a secularização às ordens religiosas, a

existência de grupos ocultos, se configurou como alento e alternativa para a

manutenção da consagração religiosa.

1. 2. As sociedades femininas de vida comum

Eram associações de mulheres leigas que viviam como religiosas em organizações

fundadas por associações masculinas homônimas, predominantemente fundadas no

período tridentino, que viram na cooperação feminina uma forma de multiplicar a

presença da Igreja10. Em função do escopo pastoral, as sociedades femininas

9 As ordens terceiras foram/são organizações criadas pelas Ordens religiosas para vincular as pessoas desejosas de uma consagração religiosa laical, segundo a sua espiritualidade, sendo as principais a Ordem Franciscana, a Dominicana e a Carmelitana. São chamadas de terceiras porque se constituem, de fato, no terceiro grupo de pessoas integrantes da mesma Ordem, vindo logo após a Ordem segunda, composta por mulheres e pela Ordem primeira, a dos homens, constituindo-os a todos como membros da mesma família espiritual. A pertença, ainda informal e periférica, à uma Ordem religiosa se reveste de especial importância no contexto religioso porque tal agregação alimentava um sentimento de pertença eclesial que ultrapassava o lugar de simples fiel e permitia as pessoas inseridas nessas agremiações assumirem lugar de destaque na sociedade católica. 10 Conhecidas também como “companhias”, estas diferiam das Ordens porque seus membros não professavam votos solenes, mas viviam a vida comum e os costumes dos religiosos e se dedicavam

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alcançaram grande sucesso A mais famosa sociedade de vida comum feminina foi a

Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, esta ultrapassando o

ramo masculino em número e fama11 (DODIN, 1991; LAGE, 2011). Todavia, o estilo

de consagração religiosa das sociedades de vida apostólica femininas não alcançou

significativo desenvolvimento em função da vigilância eclesial que impunha a vida

claustral aos novos grupos emergentes. Segundo André Dodin o fundador da

Sociedade das Irmãs Filhas da Caridade optou pela constituição de uma companhia

leiga, justamente para evitar a imposição da clausura por parte da Santa Sé, como

acontecera com tantos grupos. Dentre eles, o referido autor citou o grupo das

Visitandinas fundado por Francisco de Sales e Jeanne Chantal, em 1613, com um

escopo social marcadmente social, mas sofreu a intervenção da Santa Sé e lhe foi

imposta a clausura, sendo transformada na “Ordem da Visitação” (DODIN, 1991).

1. 3. As pias uniões ou pias associações

Eram organizações leigas femininas fundadas por bispos e/ou padres seculares e

religiosos com finalidades religiosas. Tal qual nos grupos anteriores, congregavam

mulheres leigas praticantes dos costumes religiosos sem serem, oficialmente,

consideradas religiosas. As pias uniões exerciam funções secundárias,

predominantemente em escolas paroquiais e obras caritativas. A fundação de

associações civis livres escondia interesses econômicos, na medida em que a Igreja

se desincumbia de assumir possíveis direitos trabalhistas reclamados pelos

prestadores de serviços religiosos. Para todos os efeitos, a livre adesão e a

constituição de uma entidade civil, apesar do objetivo religioso, indicava a dedicação

laboral em prol da própria associação civil a qual integravam (SASTRE SANTOS,

1997).

às atividades pastorais, sendo considerados pela Igreja como leigos; especificamente nas companhias masculinas, alguns de seus membros eram clérigos. Dentre as mais conhecidas estão a Companhia de Jesus, a Sociedade São Vicente de Paulo, No CDC de 1983 as Sociedades de Vida comum passaram a ser chamadas de Sociedade de vida apostólica. 11 A Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, fundada em 1633 por Vicente de Paulo, a qual se tornou a grande referência na administração de escolas, hospitais e foi um dos principais modelos para as congregações do século XIX (MARTINA, 1997).

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1. 4. As associações livres de mulheres católicas

Ao contrário dos três anteriores, eram bastante livres e independentes do clero; por

causa disso, possuíam características dos movimentos femininos emancipatórios.

Apresentamos dois subgrupos: O primeiro reúne os remanescentes dos grupos

sobreviventes da conventualização imposta pela Constituição Circa Pastoralis12, de

1566, mas que também não se encaixaram nos três grupos descritos acima, e os

grupos recentes viviam em desacordo com as leis da Igreja13; no segundo subgrupo

12 O exemplo mais expressivo das organizações contemporâneas à Circa Pastoralis são as várias organizações herdeiras da Companhia das Ursulinas. Esta organização foi fundada por Angela Mérici, em 1534, com a ousada proposta de ser uma organização de mulheres que continuariam morando em suas casas, sem usar hábito religioso, e se dedicariam à educação de crianças pobres. Após ter sido enquadrada pela norma eclesiástica, a Companhia acatou, oficialmente, a clausura papal, definindo a existência de uma Ordem de Santa Úrsula. Apesar disso, um pequeno grupo também buscou meios para que a proposta inicial fosse mantida. Em 1584 foi fundada em Milão, por Carlos Borromeo, uma pia-associação de vida comunitária e apostólica, que posteriormente veio a se constituir na Congregação das Irmãs Ursulinas de São Carlos. Apesar do forte controle da romanização, a proposta de uma vida religiosa laical continuou existindo marginalmente por meio de grupos ofícios que se afirmavam herdeiros espirituais de Ângela Merici. Em 1947, Pio XII reconheceu aquele grupo como um dos mais antigos estilos de vida religiosa, atribuindo a tais associações de fiéis o nome Institutos de leigos Consagrados (MARTINA, 1997; NUNES, 1976). Assim, em 1958, a resistente associação tornou-se o Instituto Secular de Santa Ângela Merici. Em maio de 2018 um levantamento constatou a existência de 184 Institutos membros da CMIS, com um total de 24031 membros. Destes, 157 são femininos. (https://www.cmis-int.org/pt-br/estatisticas_2018/. Acesso em: 01 de junho de 2018). Há no Brasil 55 Institutos Seculares, sendo nove de fundação brasileira. 13 Paradoxalmente, grande parte dessas organizações femininas, ligadas ao 4º grupo, foi favorecida por uma sui-generis determinação presente nas Constituições da Companhia de Jesus, que desestimulava a fundação de ramos femininos. Embora singularmente alguns jesuítas assim o tenham feito, como foi o caso do padre Jean Pierre Medaille, que fundou a pia-união São José de Chambery, em 1650, na França, a tendência foi o apadrinhamento e o empréstimo oficioso das constituições para que mulheres assumissem a fundação. A própria Companhia de Jesus reconheceu, em publicação de 2007, a existência de 236 institutos religiosos femininos vinculados com aquela organização masculina (CHARRY; ORTIZ, 2007). Jeanne de Charry e Daniela Péres Ortiz identificam inúmeras fundações associadas aos jesuítas. Dentre estas, identificamos no mapa as seguintes congregações: a Congregação das Religiosas de Santo André, fundada na Bélgica, no século XIII, e que a partir do século XVII assumiu a espiritualidade jesuítica e que imigrou em 1914, para São Paulo; a Congregação das Irmãs de Santa Catarina Virgem, fundada em 1571 por Regina Prottmann, na Alemanha, que imigrou em 1897, para o Rio de Janeiro; a Companhia de Maria Nossa Senhora, fundada por S. Joana de Lestonnac, em 1607, na França, que imigrou para São Paulo em 1936; a Congregação das Irmãs de Santa Dorotéia, fundada em 1834 por Paula Frassineti, na Itália, imigrada para Pernambuco em 1866 (CHARRY; ORTIZ, 2007). O exemplo mais expressivo das associações que sobreviveram na clandestinidade é a Congregação de Jesus, que foi fundada por Mary Ward, em 1609, segundo o modelo e as constituições da Companhia de Jesus. Em 1631, a organização feminina foi supressa, obrigando a fundadora e um pequeno grupo a viverem uma vida oculta. Em 1877, quando Ward já havia falecido, em função da situação eclesial diante do liberalismo, a Santa Sé permitiu a refundação do instituto com o nome Instituto da Bem Aventurada Virgem Maria, que também ficou conhecido como Damas Inglesas ou Irmãs de Loreto, as quais passaram a se dedicar à educação. Entretanto, lhes foi proibida qualquer referência à fundadora, o que, por sua vez, foi formalmente cumprido, garantindo que a inspiração fundacional fosse discretamente mantida, inclusive com o apoio de jesuítas. Em 1908, a Santa Sé

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encontram-se as pessoas pertencentes às ordens religiosas dissolvidas e/ou

dispersas pelos governos liberais. Estas viviam os votos religiosos ocultamente,

como se fossem leigas, e, em alguns casos, conseguiram manter algum vínculo com

o estilo da vida conventual, na esperança de poder voltar a viver daquela forma.

Eutimio Sastre Santos as denomina de “monache di casa”, sugestivo atributo para

classificar as religiosas residentes em suas casas (SASTRE SANTOS, 1997, 832ss).

Nas nações onde foi possível a restauração do regime político, e naquelas onde o

clima de perseguição cessou, muitas ordens e sociedades apostólicas puderam ser

restauradas, mas, devido ao longo tempo, nem todas as pessoas puderam ou

quiseram voltar à vida monacal, e muitas delas se organizaram segundo o modelo

das pias uniões14. Neste caso, tais grupos tinham uma ligação maior com membros

do clero e se colocavam à disposição deles, geralmente no trabalho com crianças e

jovens.

Na base de toda institucionalização há um processo crescente de movimento livre e

idealista que, por escolha própria e/ou consentida, passa a incorporar, ou é

concedeu que o Instituto reassumisse Mary Ward como fundadora, e em 1929, com a ajuda de jesuítas, deu-se início ao processo de sua beatificação. Em 1978, a Santa Sé permitiu a restauração da Congregação de Jesus, autorizando-a adotar as constituições jesuíticas (MARTINA, 1997). Esta organização chegou ao Brasil em 1935 na cidade de São Paulo, onde fundou uma escola, e hoje está presente em quatro estados. Em 2009, a Santa Sé reconheceu a “virtude heróica” de Mary Ward e a declarou “Venerável”, um dos primeiros passos no processo de beatificação. Tais informações podem ser confirmadas também em textos informais publicados em sites. (Disponíveis em: <https://goo.gl/kEMZK9> e <https://goo.gl/B7H5wg> Acesso em: 02 set. 2017). 14 Como exemplo, citamos o caso da Congregação de Santo André, que imigrou em 1914 para São Paulo, para fundar uma escola. Esta organização teve seu início em 1231, com duas mulheres fundadoras de uma comunidade religiosa organizada segundo a regra de Santo Agostinho para gerir uma hospedaria. Em um período de epidemias, a organização foi reconhecida pela Igreja, ampliou seus serviços e se transformou em hospital. Com as reformas tridentinas e, especialmente, a Circa Pastoralis, em 1611, o hospital tornou-se um mosteiro de vida contemplativa e, com apoio dos jesuítas, as religiosas conseguiram manter uma escola elementar com a qual garantiam proventos econômicos e vocações. No final de século XVIII, o mosteiro escola se viu atingido pelas reformas liberais, teve seus bens confiscados e as religiosas dispersadas. Todavia, algumas assumiram a clandestinidade e mantiveram o ideal religioso. No período da restauração o grupo buscou sobreviver por meio do ensino e, não vendo perspectiva de voltar à vida monástica, assumiu os contornos da vida congregacional. Segundo a organização imposta pelo governo, se constituiu como organização civil para poder se inserir no sistema educativo governamental e dele receber os benefícios civis. Orientado pelos jesuítas, o grupo pediu o reconhecimento oficial da Igreja, e o bispo lhe concedeu, com a condição de assumirem direção de um pensionato. Acordo firmado, emergiu, em 1837, a pia união Damas de Santo André, e, em 1857, nascia a Sociedade de Santo André. Com a aprovação pontifícia, o grupo iniciou o seu projeto de expansão nacional, e depois internacional: Inglaterra e Brasil, o qual se constitui a sua mais importante base. Na década de 1930, ela deu início ao seu segundo ciclo de expansão internacional e fundou comunidades na República Democrática do Congo (Como o texto original é extenso, optamos por elaborar uma síntese, com inserções sobre os hiatos encontrados referentes a história do movimento congregacionista. Disponível em: <http://www.santoandre.org.br/Page/Historia >. Acesso em: 04 maio 2017).

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incorporado pela instituição, como uma de suas organizações. Este processo, de

ganhos e perdas, atingiu inúmeras organizações e exigiu delas a acomodação à

nova situação, segundo seus interesses. Entender as razões pelas quais

organismos laicais, femininos e relativamente independentes, pleitearam o

reconhecimento eclesial e submeteram-se à Santa Sé, aceitando serem convertidas

em congregação religiosa, justamente num período em que a Igreja assumia

posições cada vez mais intransigentes, não é tão simples. Segundo a lógica

sociológica, à medida que se inseriam ou eram inseridos, ainda que perifericamente,

na estrutura eclesial, esses contradiziam suas origens, quando seus líderes

adotavam posições sociais clericalizadas e se prestavam a assumir o projeto

institucional, ainda que fosse para criar condições de sobrevivência e

sustentabilidade dos seus projetos15. Nesta perspectiva, Langlois (1984) afirma que

as mulheres religiosas, ao assumirem tarefas reservadas aos clérigos, se

constituíam como clero.

Sem negar a importância desta interpretação, entendemos que segundo a

perspectiva de Lagroye (2009) a justificativa para tal opção também poderia residir

nos aspectos antropológicos, os quais fundamentam as escolhas pessoais,

especialmente o sentimento de pertença à instituição, e, justamente por isso,

seguem dinâmica e lógica próprias. Se, até o século XV, a pertença à Igreja Católica

era definida pela instituição para aqueles que aderiam à sua doutrina, participando

dos ritos religiosos e assumindo os compromissos religiosos16, com a modernidade o

acento passava da objetividade definida pela instituição para a subjetividade

individual enfatizada pela tríade da Reforma Protestante: sola fides, sola gratia e

15 A ação dos leigos se insere no movimento carismático pelo fato deles estarem em campo oposto ao clero, lhes constituindo como indivíduos com autonomia, subjetividade e identidade próprias, lhes autorizando falar e agir em nome próprio e, paradoxalmente, contribuir para que a instituição e o clero continuem a existir (WEBER, 2004). Todavia, toda instituição possui mecanismos para a construção do consentimento e/ou convencimento que tendem a inviabilizar ou neutralizar a ação profética dos leigos, quando estes fazem oposição ao modo de ser do clero. Disso decorre o adjetivo qualificativo “clericalizado” indicando a posição politica de um leigo e/ou das organizações laicais, que agem orientadas pelo clero, renunciando, assim, sua missão profética. Historicamente, na Igreja Católica, o clericalismo diz respeito à ação de católicos ultramontanos intransigentes, defensores do antigo regime e, depois da romanização, da interferência do papado e da Igreja nos Estados que promoveram a separação dos dois poderes, negando, portanto, o caráter laico do Estado. Com a advento da secularização, o clericalismo perdeu força política (GUASCO, 2004) 16 Roberto Belarmino, cardeal jesuíta do século XVI e um dos promotores e divulgadores do Concílio de Trento, definia que a adesão religiosa à Igreja e a seus pastores “tornava a Igreja tão visível e palpável quanto a comunidade do povo romano ou o reino da França, ou, ainda, a República de Veneza” (MARTINA, 1994, p. 24).

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sola scriptura. A partir da nova compreensão religiosa subjetiva, a aderência e a

permanência em uma organização religiosa também passavam a depender da

compreensão que as pessoas tinham de seu próprio lugar na organização, o que,

por sua vez, a vinculava à Instituição. Apesar de a Contrarreforma ter negado isso e

reafirmado sua antiga doutrina, ela não conseguiu evitar que essa nova mentalidade

alcançasse também os católicos, até porque o rígido controle sobre os fiéis indicava

a existência de compreensões outras sobre a mesma Igreja. Os quatro grupos

femininos citados anteriormente indicavam a existência de movimentos resistentes

que, ao assumirem condição religiosa marginal, não o faziam por pura contestação

religiosa, mas por desacordo com as normas eclesiásticas vigentes impositoras do

modelo de vida religiosa monacal. Justamente por isso, eram fiéis aos valores

cristãos, e, mesmo não reconhecidos pela Igreja, viviam os costumes dos religiosos

como se o fossem de fato, por acreditarem naquele modo de vida como uma forma

de pertença eclesial (CERTEAU, 2002; LAGROYE, 2009).

Na concepção laica dos Estados liberais, os grupos femininos oficiosos levavam

vantagem em relação aos oficiais. Langlois (1984) cita, dentre os documentos

analisados em sua obra, uma carta de Napoleão Bonaparte ao ministro Joseph

Fouché na qual expressava não ver problemas das antigas religiosas, de

organizações declaradas oficialmente extintas, viverem em comunidades e de

usarem hábitos em suas casas, desde que não os usassem na rua e nem

admitissem novas candidatas. Com esta atitude, o Estado liberal negava a presença

pública da Igreja e de seus organismos. Ao mesmo tempo, indicava caminhos para a

permanência de seus membros na sociedade, com a condição de se adaptarsem às

exigências do Estado (LANGLOIS, 1984)17. Em razão disso, a sociedade liberal

rejeitava esses grupos, considerados ociosos e improdutivos, e passava a promover

17 Expressa esta mentalidade a obra iluminista A religiosa, atribuída a Denis Diderot, que tinha como objetivo criticar a prática católica de encerrar mulheres em conventos sem expressa vocação, muitas vezes para resolver problemas de arrimo de família ou de herança e supostos desvios de conduta moral de algumas mulheres. Tal representação foi contraposta pela obra A última ao cadafalso, escrita em 1931 por Gertrud von Le Fort, na qual aborda a ocupação do convento de Compiègne e a execução de 16 irmãs carmelitas, pelas tropas francesas, em 1791. Esta obra ganhou evidência com a adaptação teatral Diálogo das Carmelitas, escrita por Georges Bernanos, em 1940. Em 1960 esta peça foi adaptada para o cinema. No Brasil, a política regalista de Dom Pedro II impunha aos religiosos o cuidado de escolas e hospitais e incentiva a vinda de organizações religiosas francesas possuidoras de práticas socais interessantes ao Estado, como a Sociedade São Vicente de Paula, conhecida como lazaristas, e seu ramo feminino, conhecido como ‘Irmãs vicentinas” (VIEIRA, 2007)

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os grupos oficiosos, até então não aceitos pela Igreja, que possuíam prática social e

lhe interessava. Assumindo contornos “empreendedoristas” a serviço da educação e

da saúde, fundamentadas nas novas concepções pragmáticas e racionalistas,

próprias da economia liberal, essas organizações inauguravam um estilo de vida

religiosa ativa, demonstrando à opinião vigente de que se a vida religiosa claustral

era incongruente e ociosa, a congregacionista não o era.

Esse reconhecimento civil desencadeou na política eclesiástica uma mudança que,

sem desvalorizar as organizações oficiais, passou a promover os grupos oficiosos

que construíam uma nova representação católica. Esse movimento de grupos

periféricos em direção a Roma tinha dois objetivos: criar condições materiais para a

sua existência e conquistar o reconhecimento eclesial para expandir seus projetos.

Para tanto, implicava em reinventar a identidade religiosa, construindo uma ponte

entre vida contemplativa, vivida no claustro, o modelo oficial de vida religiosa e a

vida ativa, vivida pelos grupos oficiosos com forte inserção pastoral na sociedade.

Isso não era propriamente uma novidade, pois, especialmente as ordens

mendicantes já haviam feito assim na Idade Média, mas, no século XIX, o assumir

integralmente as atividades, como uma nova representação da vida contemplativa,

era novo e, mais ainda, muitas vezes, o exercer atividades consideradas, até então,

próprias do clero. Foi o que teria dito Madalena S. Barat, a fundadora da agremiação

religiosa (1800) que foi convertida como Congregação das Irmãs Religiosas do

Sagrado Coração de Jesus, em 1826, sobre a força do movimento feminino

religioso:. Plus que jamais, l'espoir du salut sera dans le sexe faible. Les hommes de

notre siècle deviennent des femmes; transformées par la foi, les femmes peuveunt

devenir des hommes (RIVAUX, 1885, p. 310)18.

Tal proposta não nasceu no seio da Igreja, mas das condições sociais propiciadoras

18 Hoje, mais do que nunca, a esperança da salvação está no sexo frágil. Os homens de nosso século tornam-se mulheres; transformadas pela fé, elas podem tornar-se homens (Tradução literal nossa). A frase se refere a situação da Igreja francesa diante das políticas liberais. O próprio irmão de Madalena S. Barat, doze anos mais velho, o qual contribuiu em sua formação religiosa, foi um clérigo refratário que chegou a ser preso pela Revolução Francesa. Nesse sentido, entendemos o jogo entre as palavras ‘homens’ e ‘mulheres’. Em tempo de perseguição anticlerical, os homens [o clero], porque presos ou vivendo ocultamente, foram impedidos de realizar seus ofícios; motivadas pela fé, as mulheres [as religiosas] passaram a realizar algumas das funções, até então, consagradas a eles. Madalena S. Barat (1779 -1865), em 1800, fundou a associação de mulheres que foi convertida, em 1826, em uma das primeiras congregações francesas, assumindo o nome de Congregação das Irmãs Religiosas do Sagrado Coração de Jesus. Com uma ação educadora voltada para a elite, a organização foi uma das congregações religiosas mais expressivas, expandindo-se mundo afora. Chegou ao Brasil, em 1904, no Rio de Janeiro.

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da eclosão das práticas femininas; tratava-se, assim, de uma ação social e política,

motivada pela religião19. Tais grupos ressignificaram o modo de vida segundo o ideal

da vida de perfeição, vivenciado nas ordens religiosas, e ampliaram os limites da

consagração religiosa, se constituindo no maior movimento oficioso católico do

século XIX. Tal fenômeno demonstra, de um lado, a emergência cada vez maior das

subjetividades, característica própria da modernidade com a qual a Igreja se

defrontou. De outro lado, a capacidade da Igreja se reinventar para assumir o que

ela mesma negara como princípio.

A sui generis expressão sociológica cunhada por Langlois, “clero feminino”,

demonstrava o grande número de congregações religiosas a serviço da Igreja e de

seus projetos missionários, resultando num catolicismo com faces femininas em

pleno período ultramontano (LANGLOIS, 1984). Foram essas características

extremamente modernas que encontraram terreno fértil nas entidades do quarto

grupo, se desenvolvendo graças à ausência de políticas públicas liberais do Estado,

lhes permitindo crescer e criar condições de pleitear o reconhecimento eclesial.

O crescente volume de pedidos desse reconhecimento exigiu o reordenamento do

organismo curial existente desde 1601, responsável pela vida religiosa, denominado

Sagrada Congregação dos Bispos e dos Religiosos20. Tal fato se reveste de suma

importância, quando se considera que a maioria dos grupos solicitantes de tal

distinção era feminino. Para regrá-los e controlá-los, esse organismo publicou, em

1854, um documento conhecido como Methodus, constituído como uma espécie de

guia para os bispos orientarem e dirigirem as organizações religiosas pleiteantes do

reconhecimento religioso. Entre 1801 e 1864, a Santa Sé concedeu o

19 Não por acaso, tais práticas sociais se desenvolvem na dinâmica da “Ação Social Católica”, movimento fomentado por bispos contrários à intransigência de Pio IX, defensores da abertura da Igreja diante das transformações sociais e políticas, nas quais estavam ancorados os valores da sociedade dos Estados liberais. Para os partidários deste movimento, a Igreja deveria aceitar a nova organização sociopolítica como forma de garantir sua permanência na sociedade. Se as bases do Estado eram a laicidade, a democracia e a liberdade, a Igreja se reinventava e as assumia para defender a sua presença pública na sociedade, como aquela que se colocava a serviço da promoção dos direitos dos cidadãos. A milenar experiência da caridade cristã era a resposta para as mazelas sociais (GONZÁLEZ, 1999). A Ação Social da Igreja foi amplamente utilizada para combater o socialismo, processo no qual a Igreja preferiu apelar para uma suposta consciência cristã dos liberais, criando, com a ajuda econômica destes, meios para remediar a situação de penúria dos pobres. Com isso, a Igreja demonstrava estar disposta a apoiar os novos governos, desde que a doutrina católica tivesse espaço para formar consciências (RIGOLO FILHO, 2006). 20 O nome atual do organismo responsável pelas congregações religiosas, Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica expressa às várias mudanças que ocorreram (D’ONORIO, 1996. p. 423-429).

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reconhecimento pontifício a 198 organizações, em sua maioria femininas, tornando-

as suas representantes e enviando-as como missionárias (ANAYA, 2010)21. Foi

dentro desse cenário que o Brasil, a partir de 1846, tornou-se o destino de inúmeras

congregações europeias dispostas a se colocaram a serviço do ultramontanismo e,

depois, da romanização22 e, ao mesmo tempo, das elites locais requisitantes de

seus serviços, o que, por sua vez, serviu de inspiração para as fundações

brasileiras.

O reconhecimento religioso tinha como objetivo principal ver declarados pela Santa

Sé os meios utilizados pelo organismo para alcançar o “fim religioso”. Sendo assim,

tais escolhas não devem ser vistas apenas como um fim pragmático e imediato

ligado à subsistência e à manutenção do grupo, mas como afirmação de que a

forma possível para o cumprimento da consagração religiosa implicava utilizar meios

considerados, até então, mundanos. Se a ascese dos mosteiros se expressava pela

dedicação às atividades do claustro, a ascese congregacional, moderna, passava

pelo envolvimento social, especialmente urbano, ate então, negado pelos

eclesiásticos (LAGUNA, 2009).

21 O documento Methodus quae a Sacra Congregatione episcoporum et regularium servatur in approbandis novis institutis votorum simplicium, foi publicado em 1854 pela Congregação dos Bispos e dos Religiosos, sob responsabilidade do Cardeal A. Bizarri (ANAYA, 2010; LOPARCO, 2009; SASTRE SANTOS, 1993). O texto completo do documento encontra-se em Sastre Santos, 1997, 187-189. 22 Apesar de expressarem a mesma realidade, entendemos haver distinção entre ultramonstanismo e romanização. Especificamente no Brasil, o primeiro está ligado à situação da Igreja Católica durante o padroado, quando o Imperador se colocava como o superior da Igreja. Dessa volta, os bispos fieis as orientações do papa não aceitavam tal interferência. Para David Gueiros Vieira (1989) o ultramontanismo brasileiro foi a reprodução do movimento homônimo europeu realizado por eclesiásticos brasileiros que, ainda na primeira metade do século XIX, disseminaram a cultura religiosa ultramontana europeia de afirmação da supremacia do papado sobre os assuntos eclesiásticos. O segundo é a mudança na orientação da política eclesiástica após a República. Para Augustin Wernet (1987), assumindo Ralf dela Cava, a romanização foi a integração sistemática da Igreja brasileira no plano, quer institucional, quer ideológico, e nas estruturas altamente centralizadas da Igreja Católica Romana, dirigida de Roma. Em razão disso, o termo “romanização” se refere aos fatos posteriores ao decreto provisório n.° 119A, de 07 de janeiro de 1890, que declarava o caráter leigo do estado, pois somente após esta data a Igreja integrou-se sistematicamente nas estruturas centralizadoras de Roma (RIGOLO FILHO, 2006). Em síntese, o ultramontanismo se constituiu como movimento de oposição eclesiástica ao governo imperial, que o acusava de lhe cercear a liberdade; já a romanização foi a execução do projeto de catolicizar o País, já no período republicano.

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2. As associações femininas oficiosas convertidas em congregação religiosa

Dentre os grupos citados, o primeiro a se empenhar para alcançar o reconhecimento

religioso foi o quarto grupo, o qual possuía características mais independentes do

clero, pois, os outros três primeiros, as ordens terceiras, as sociedades de vida

comum e as pias uniões, também não reconhecidos, já gozavam de relativo

prestígio eclesial, justamente por serem dependentes do clero, fazendo-os

acomodarem-se àquela situação.

Não obstante, apesar de possuir uma novidade exponencial que acabou

configurando-se como identidade ao movimento congregacional, a força deste não

veio do quarto grupo, numericamente inexpressivo, mas dos três grupos religiosos

ligados aos clérigos, que, progressivamente, acabaram aderindo a ele. Estes,

percebendo a reconfiguração social e eclesial, se apropriaram – e as adotaram –

das particularidades dos grupos leigos que haviam tomado a dianteira no pedido de

reconhecimento pontifício. Essa entrada quase maciça dos grupos submissos ao

clero, na segunda metade do século XIX, acabou atribuindo ao movimento

congregacional um perfil conservador, o que, por sua vez, foi incentivado pela Santa

Sé como forma de conter os aspectos contestatórios.

Para que as organizações mais ligadas ao clero assumissem aquele estilo de vida

mais secularizado e pautado pela racionalidade burocrática da modernidade e da

própria Igreja, dois fatores foram fundamentais: O primeiro, as fundações

organizadas segundo o modelo das pias uniões e as ordens terceiras perceberam

que, em função das contingências políticas dos governos liberais, Roma,

inicialmente, concedia o reconhecimento eclesial aos grupos femininos mais

autônomos do clero, os quais gozavam de maior reconhecimento pela sociedade

civil anticlerical, sendo esta a forma como a Igreja se fazia presente na sociedade.

Tal reconhecimento desencadeou, nos membros dos organismos mais antigos – os

quais, apesar de ainda não gozarem do reconhecimento pontifício mas já estarem

acomodados a este –, o desejo de conquistar para si aquele direito, levando-os a se

relançarem e assimilarem as práticas daquele grupo. Ao analisar as informações do

Banco de dados, alusivas à obtenção do reconhecimento pontifício das

congregações imigradas, é possível verificar que as fundadas nos primeiros 20 anos

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do século XIX obtiveram o reconhecimento papal muito antes de pias uniões mais

antigas. Como exemplo, citamos o caso da Congregação das Religiosas do Sagrado

Coração de Jesus, fundada em 1800 por Madalena Sofia Barat, que obteve o

reconhecimento da Santa Sé após 26 anos de sua fundação; de outro lado, a pia

união, convertida na Congregação de São José de Chambéry, que já existia desde

1650, somente recebeu o reconhecimento em 1867.

O segundo fator foi a possibilidade de projetar o crescimento e a expansão de novas

“obras religiosas”, inclusive em outros países, garantidas pela aprovação eclesial.

Assumir o programa ultramontano, e depois romanizado, fazendo-se missionárias,

possibilitava àquelas organizações ampliar os horizontes para além do seu país de

origem, significando expandir-se, aumentar o seu efetivo e fazer crescer seu

patrimônio material e simbólico, principalmente político. Isso exigia ajustar o escopo

do organismo de acordo com as necessidades da sociedade. Percebemos, então,

que a finalidade da organização passava a ser ditada por demandas sociais, as

quais, por sua vez, se constituíam como importantes nichos do mercado capitalista.

Nesta perspectiva, as congregações mais competentes, as mais sólidas e com maior

visibilidade, conquistavam maior credibilidade pública e tinham maior possibilidade

de construir riqueza.

O fato de apresentarem-se como um organismo religioso, com expertise nas áreas

educacional, hospitalar e do cuidado de vulneráveis, reconhecido pela Santa Sé,

abria portas, inclusive, nas sociedades mais laicizadas, carentes de mão de obra23.

O reconhecimento religioso era, então, a credencial de uma instituição sólida, com

uma organização hierárquica e com projetos bem definidos, passando a atrair a

atenção do governo, de clérigos, de futuros candidatos à vida religiosa e,

especialmente dos beneméritos, por vezes até anticlericais, que lhes concediam

apoios econômicos em troca de bens simbólicos legitimados pelo status quo católico

(BOURDIEU, 2007). Em razão disso, as congregações que se adaptaram às regras

de mercado, com administração centralizada, multiplicação de casas, maximização

das estruturas e do pessoal, capacitação profissional de seus membros e a

23 Em função de sua existência milenar, a Igreja, por compreender sua missão de ensinar e zelar pelo cuidado humano, se constituiu durante séculos como uma das principais, se não a única, detentoras dos saberes educacionais, médicos e de assistência social.

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formação de um quadro de reserva, apto para responder as demandas da

sociedade, tomaram a dianteira do movimento congregacional.

Isto significa afirmar que a motivação para o pedido de reconhecimento eclesial se

dava como possibilidade de se estruturar e fortalecer a organização religiosa. Além

das vantagens externas, a figura da madre superiora empoderava os organismos

femininos diante do controle de clero, ao qual a maioria delas ainda era vinculada.

Muitos organismos religiosos masculinos, que fundaram grupos femininos para deles

se servirem, não viam com bons olhos a aprovação pontifícia. Aludindo à situação

das organizações femininas, que pediam o reconhecimento eclesial, Riolando Azzi

cita Eugenio Ceria, historiador da obra de Dom Bosco, que assim teria se referido ao

fundador da Congregação Filhas de Maria Auxiliadora:

... Dom Bosco não tinha nenhuma pressa de chegar a tal ato, bem sabendo que Roma se inclinava a tornar as congregações femininas independentes das masculinas. Para ele, tal separação parecia ainda imatura, porque sentia necessidade de tempo para formar as irmãs naquele espírito que queria infundir nelas. Importava, pois, muito que nisto ele pudesse ter as mãos livres. (AZZI, 1986, p. 47)

O excerto é revelador. Confirma que o movimento congregacional fora cooptado por

Roma e, apesar disso, esse fenômeno não era plenamente aceito por boa parte dos

religiosos fundadores, que se negavam a reconhecer a independência dos grupos

femininos e resistiam a ver suas fundações controladas pela Santa Sé. Neste ponto,

se vislumbra uma questão de direito eclesial entre a jurisdição do superior da ordem

masculina e da Santa Sé. O próprio Eugenio Ceria faz a observação precisa do

problema: “... Seguia [Dom Bosco] o exemplo dos Padres da Missão que, justamente

por esse motivo, não quiseram nunca a aprovação pontifícia das regras dadas por

São Vicente de Paulo às Filhas da Caridade” (AZZI, 1986, p.74)24.

24 A observação do historiador dos salesianos é equivocada, pois, as Filhas da Caridade obtiveram o decreto de reconhecimento pontifício em 1688, antes mesmo do ramo masculino e fundador, o que demonstra a força política daquela Companhia. Provavelmente, por causa disso, apesar de ter dado grande contribuição ao movimento congregacional, a referida sociedade não se converteu em congregação religiosa Sobre a questão do grupo feminino ter conquistado independência econômica antes do ramo fundador, vale a pena destacar ainda o caso da Congregação de Nossa Senhora de Sion, que também imigrou ao Brasil no final do século XIX. Ela nasceu de um grupo de mulheres católicas que pediu a seu diretor espiritual, o jesuíta Théodore Ratisbone, que lhe desse forma canônica. Assim, em 1842, em Paris, foi fundada a pia união de Nossa Senhora de Sion. Licenciado da Companhia de Jesus, Ratisbone anos antes obteve a autorização para iniciar uma obra de evangelização para a conversão dos judeus, finalidade para a qual idealizava fundar uma congregação masculina. Nesta perspectiva, a pia associação feminina se destinava a um papel secundário: educar meninas judias

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Todos esses motivos ajudam a compreender por que muitas pias uniões e ordens

terceiras, que nasceram com um escopo religioso bem delimitado e sem muitas

pretensões sociais, foram aos poucos ampliando e diversificando seu campo de

ação. Para isso, foi fundamental assumir a estrutura eclesial que lhes fornecia um

modelo formativo padronizado, uma cultura organizacional hierárquica, fórmulas de

sucesso que faziam a organização crescer.

Como exemplo, reproduzimos a interpretação das atuais religiosas da Congregação

das Pequenas Irmãs da Divina Providência sobre a sua fundação, presente no site

brasileiro. Idealizada por Teresa Michel Grillo, que, após ficar viúva, em 1893, se fez

terceira franciscana e teria transformado a própria casa no “Pequeno Abrigo da

Divina Providência” para acolher pobres. Com o crescimento da obra caritativa,

passou a contar com apoio de amigos e da sociedade, até que, em 1899, por

orientação do bispo, teria fundado a Congregação das Pequenas Irmãs da Divina

Providência. Na propagação do ideal de santidade da fundadora, canonizada em

1985, assim foi justificada a institucionalização da organização:

As necessidades dos pequenos asilados, dos enfermos, velhos acolhidos e dos pobres convenceram a Teresa Michel da urgência em fundar uma Congregação Religiosa. A 8 de janeiro de 1899, a Serva de Deus, aconselhada e por sugestão de autoridades da Igreja, vestiu o hábito religioso. (grifo nosso); Disponível em:<https://santateresinhacolegio.com.br/index.php/congregacao/historia/item/11-surge-a-congregacao-das-pequenas-irmas-da-divina-providencia>. Acesso em: 20 nov. 2017.

pobres. Gradativamente, o grupo se especializou na educação da elite, até que, em 1856, obteve o reconhecimento civil do governo francês, permitindo ampliar sua base: construiu uma rede de internatos e conseguiu se transformar na terceira organização religiosa com maior renda per capita, fazendo com que, cada vez mais, se afastasse do seu objetivo inicial (BRITO, 2014). Essa posição econômica lhe permitiu criar condições para a implantação do projeto do fundador e inverter os papéis que as fazia passar de “filhas” para “mães provedoras”, sendo elas – e não mais o fundador –, de fato, as detentoras do poder. O único poder que aquele conservava sobre a organização era o fato de ser o superior religioso, o que não era pouco, pois fora ele o autor das Regras e Constituições da organização feminina. Tal poder, embora aceito sem questionamento, não alterava em nada a vida da organização. Avançando em seu projeto educacional, a organização se perfilou ao lado de outras organizações congêneres do movimento congregacionista e pediu o reconhecimento pontifício à Santa Sé, o que lhe foi concedido em 1874 (BRITO, 2014). Catorze anos depois, em 1888, a Organização chegou ao Brasil, com viagem financiada por católicos brasileiros e, com o apoio destes, conseguiu instalar o seu primeiro colégio no palácio imperial de Petrópolis em 1889, até que a construção de escola própria se realizasse, o que acabou acontecendo em 1897 (BRITO, 2010; COLOMBO, 2013). Diante da sociedade patriarcal e católica, a organização buscou se beneficiar daquilo que a presença do fundador representava na cultura católica. Para todos os efeitos, era um grupo fundado por um padre que garantia a ortodoxia e a fidelidade às normas eclesiásticas daquelas mulheres. Com estratégia característica do movimento congregacionista, ela, e outras tantas pias uniões e ordens terceiras daquele período, buscou construir um espaço de subversão política possível, pois, ao conquistarem a liberdade econômica junto à sociedade civil, ainda tiveram que se submeter às determinações eclesiásticas.

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A última frase indica, segundo o autor do texto, o tornar-se freira e fundar uma

congregação como o meio possível para aquela mulher realizar o seu projeto de

vida. Ela não teve dúvida: fez-se freira, se institucionalizou. No jogo de múltiplos

interesses, assumir-se como propagadora da ideologia religiosa romana, ainda que

tivesse de viver e reproduzir uma estrutura hierárquica e patriarcal, não se constituía

um problema para ela, era, antes, uma oportunidade para realizar o que desejava.

As vantagens sociais, políticas e econômicas decorrentes do apoio das elites e dos

políticos locais – vistos como meios possíveis para realizar aquilo que se concebia

ser a missão religiosa25 – permitiam-lhe realizar o fim religioso. Por outro lado, a

motivação religiosa das singulares freiras, vista como superior a qualquer tipo de

remuneração econômica, acabava se convertendo em fonte de lucro daqueles que

utilizavam a mão de obra delas, que, querendo se livrar dos ditames dos superiores

masculinos, acabavam enredadas pelas tramas da sociedade capitalista. Isto, por

sua vez, tinha impacto direto na luta dos trabalhadores, os quais tinham nas freiras

suas concorrentes.

Na história do movimento congregacional, importante passo foi dado por Leão XIII,

que em 1900, através da Constituição Apostólica Conditae a Christo, chamada

também Carta Magna das Congregações, pôs fim à afirmação tridentina, de Pio V,

que reconhecia como religiosos(as) apenas os membros das Ordens contemplativas

(SASTRE SANTOS, 1993, 260-266). Todavia, o documento impunha que tais

organismos adotassem regras de vida semelhantes à vida claustral e definiu que os

organismos que ainda não houvessem obtido o reconhecimento pontifício deveriam

ser submetidos à jurisdição do bispo diocesano, significando dizer que este passava

a ser o superior da congregação. Com esta reforma, o processo de reconhecimento

pontifício se tornava mais complexo e lento, aumentando o período de domínio

episcopal sobre o organismo feminino, fato justificador da obediência e da

subserviência feminina às determinações romanas reverberadas pelos bispos

25 Ainda que tenha se referido a religiosas intelectuais, Agueda Bittencourt interpreta o fato de mulheres se fazerem religiosas como forma de também realizarem seus projetos pessoais! (2010, p. 10):

Monjas-mulheres, sob vestes-esconderijos que apagam a individualidade e escondem os desejos, revelam-se na letra das cartas e das crônicas normatizadas, nas discretas subversões dos textos canônicos e encaminham o leitor para um tipo de mulher desordeira, para Virginia Woolf, Lilian Helmann ou Clarisse Lispector e tantas outras.

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(KELLER; RUETHER, 2006). Essas orientações codificadas no documento

Normae26, de 1901, foram definitivamente implementadas pelo Código de Direito

Canônico (CDC) de 1917, incluindo uma secção sobre os direitos das mulheres

religiosas, no qual definiu minuciosas leis que regulamentavam e uniformizavam os

diferentes modos de ser religiosa (SASTRE SANTOS, 1993)27. Ainda que tais leis

tenham circunscrito e limitado a ação das freiras, a existência dessas normas

indicava, pelo negativo, o reconhecimento da expressiva presença delas na

sociedade, a ponto de a Igreja criar um conjunto de leis para regê-las.

3. A plástica reinvenção da organização religiosa

O principal desafio das organizações que assumiram o movimento congregacional

foi reinventar a sua identidade e redefinir o seu campo de ação. Diante das inúmeras

demandas indicadas pela sociedade civil, quanto mais flexível se apresentassem,

maiores seriam as possibilidades de ampliar suas bases de atuação. Na nova

configuração da sociedade liberal e republicana, os organismos eclesiais e seus

membros só existiriam se demonstrassem sua utilidade social e vivessem

plenamente a cidadania e a igualdade civil. Cabia, às organizações, ampliar e

deslocar as fronteiras do sagrado dos muros conventuais, como tentativa de

refundar a sociedade segundo a sua compreensão católica do mundo. Com a

institucionalização do movimento e o progressivo enrijecimento da Santa Sé, os

novos grupos passaram, estrategicamente, a incorporar na sua organização as

características de sucesso de cada um dos quatro modelos anteriores, dando origem

26 Normae secundum quas S. Congr. Espiscopurum et Regularium porcedere soet in approbantis novis institutis votarum simplicium, 28 jun 1901 (SASTRE SANTOS, 1993, 266-299) 27 O CDC de 1917, apesar de igualar as religiosas de vida ativa ao mesmo status canônico das irmãs de votos solenes, lhes impôs uma série de exigências próprias das Ordens Religiosas: vestes religiosas, atividades litúrgicas e clausura. No que diz respeito à independência das congregações religiosas, ele definiu que as congregações religiosas femininas seriam de direito diocesano, quando são submetidas ao bispo, e de direito pontifício, quando são submetidas à Santa Sé (CDC, 1917, § 488, 1951).

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a um modelo congregacional profundamente hierarquizado e clericalizado que se

sobrepunha às características de cada modelo28.

Uma das principais, quiçá a principal, estratégia adotada pelas congregações

femininas foi garantir a presença de um clérigo, tal qual ocorria nas pias uniões ou

ordens terceiras. Ao contar com o apoio de um membro do clero, o organismo

feminino gozaria de maior credibilidade em uma instituição dirigida por homens e

ainda teria a colaboração de quem, supostamente, conhecia os meandros

eclesiásticos, a fim de garantir a aprovação de suas solicitações. Não por acaso,

com o início das aprovações pontifícias, a figura do “cardeal protetor” foi reinventada

para promover o interesse das organizações aspirantes ao reconhecimento

religioso29. Outra estratégia de novos grupos foi a de apropriar-se da espiritualidade

das grandes famílias espirituais e, reinventando sua identidade religiosa, associá-los

a uma ação missionária (SASTRE SANTOS, 1997). Se, por um lado, isso implicava

em assumir o peso institucional que burocratizava os nascentes grupos, por outro,

apresentar-se como membro da histórica instituição se constituía como excelente

credencial em função da referência universal da Igreja Católica.

A terceira estratégia foi propor múltiplas possibilidades de atuação, em que a

ocupação dos espaços não era mais regulada pelo escopo da organização, mas

pela plasticidade segundo uma lógica racional. A Congregação da Sagrada Família

28 Laguna descreveu que as religiosas responsáveis pela articulação dos processos canônicos para a obtenção do direito pontifício:

... desarrollarán armas de habilidad, paciencia, ingenio, intuición y visión de la oportunidad. En esa Roma, con su tupida trama burocrático- administrativa en la que se iban a enredar “los asuntos de las monjas”, con su pulular de funcionarios eclesiásticos de todos los niveles y perfiles, juristas, abogados, canonistas(..).moviéndose por un sin fin de pasillos y despachos, y donde se cruzaban intereses (privados y colectivos, clericales y civiles, políticos de todo tipo(...) y chocaban jurisdicciones (papal, episcopal, la de los regulares, de las propias superioras de las comunidades(...), la civil y estatal en el horizonte), en esa Roma, a pesar de ello, o, incluso, gracias a ello, las religiosas podrán (hay que recordar que ellas no están presentes, sino que actuarán a través de sus intermediarios) encontrar espacios “entre líneas”, disponer de contactos, suscitar solidaridades o contradicciones, mover influencias(...). Les caracteriza su decisión de no retroceder, de ir ampliando, aunque fuese centímetro a centímetro, aunque fuera con repetidos fracasos e infinitas esperas, el ámbito de su acción autónoma y la garantía de futuro para la congregación. (LAGUNA, 2009, p. 38) * NA: Este texto é escrito em catalão!

29 O cardeal protetor tem sua origem na Idade Média como uma figura que defendia os interesses políticos de determinado rei cristão. Posteriormente o cardeal protetor passou a defender interesses de organizações religiosas.

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de Bourdeaux representa um bom exemplo dessa plasticidade. Paula Leonardi

(2010, p. 64) destaca que essa associação, através de seus quatro ramos principais,

oferecia a seus membros diversas possibilidades de participação com o objetivo de

“formar uma família composta por membros desiguais”30.

Essa abertura a diferentes formas de vida se configurava, portanto, como estratégia

para atrair uma maior gama de pessoas que nela desejassem ingressar e oferecer

múltiplos serviços, constituindo-se como um empreendimento extremamente

moderno e atento à demanda do mercado dos bens de salvação.

A diversificação nas frentes de trabalho incluía, também, ofertar gratuitamente parte

daqueles serviços aos pobres, se configurando uma estratégia expansionista, que,

além dos aspectos materiais, almejava conquistas simbólicas, as quais muitas vezes

também se revertiam em apoio material. Como exemplo, citamos a Congregação

das Irmãs de São José de Chambéry, que, apesar da missão específica de se

constituir como educadora das filhas da elite na cidade de Itu, abriu um hospital na

cidade de Campinas, em 1870, e depois um orfanato para as meninas órfãs, em

1890.

De forma tangencial, Graziela Perosa (2005, p. 37) demonstrou que “o

empreendimento católico, no caso as escolas para a elite, tinha que se afirmar e ser

reconhecido como benemerência, doação de si, sacrifício para ter legitimidade” e,

por isso, muitas congregações, ao lado de seus empreendimentos, ofereciam

serviços gratuitos aos pobres, especialmente escolas. Ainda hoje, muitas mantêm

duplos serviços à sociedade. Servem à elite em boas escolas e oferecem apoio

escolar em contra turnos e creches em bairros da periferia. Ambos são constitutivos

da construção do patrimônio delas. O primeiro é responsável pelo provimento das

necessidades estruturais da organização, sendo a principal delas a manutenção das

religiosas e dos bens móveis e imóveis que as sustentam, especialmente em suas

atividades missionárias. O segundo constrói o patrimônio simbólico, um investimento

social e econômico feito pela organização, geralmente nas periferias, onde se

mostra benemerente e a serviço dos pobres. Isto objetiva granjear o apoio

30

A autora informa que o ramo Jesus congregava os clérigos; o ramo São José, os homens não clérigos; o ramo Maria congregava as religiosas que viviam nos conventos e o ramo das Filhas de Deus Só congregava as mulheres que viviam isoladamente.

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socioeconômico e político da opinião pública que reconhece naquela organização

uma importante parceria no combate aos problemas sociais.

Com tamanha penetração social, os membros das congregações femininas

construíam uma nova representação social de religiosa, não mais a monja, dedicada

às práticas litúrgicas e espirituais do claustro, mas a irmã de caridade, aquela que se

consagra ao serviço dos pobres em diferentes frentes de trabalho, a clausura dos

séculos XIX e XX. Esta nova nomenclatura nasceu não apenas para distinguir uma

da outra, mas para afirmar que a segunda não possuía o status de religiosa. Apesar

de o CDC de 1917, reafirmar a Constituição Conditae a Christo, em que os membros

dos dois grupos eram considerados como verdadeiros religiosos, ele manteve e

oficializou a distinção entre as nomenclaturas: monjas, para identificar as religiosas

dos claustros e irmãs de caridade, as religiosas das obras sociais (CDC, 1917, §

488).

Langlois analisou o auge da vida congregacional entre 1800 e 1860. Ele indicou que,

nos 20 primeiros anos, houve o surgimento de uma média de 3,5 congregações por

ano e no período de 1820 a 1860, a média foi de 6 novas fundações ao ano. Depois

desse período, deu-se o início do declínio das fundações, chegando, em 1880, a 2,6

fundações por ano, índice abaixo do início do século (LANGLOIS, 1984). Para a

Itália, Giácomo Martina indica apenas que no século XIX foram fundados 183 novos

organismos. Se considerarmos o século todo, e em relação ao número de fundações

francesas, a média é baixa. Este autor ainda afirma que na primeira metade do

século XX o número de fundações italianas e francesas se equiparava, com 150

fundações cada, e uma média de 3 fundações ao ano (MARTINA, 1998).

4. As congregações religiosas imigradas no Brasil

Com a perda dos territórios pontifícios e as crescentes separações promovidas pelos

estados liberais, que impunham o fim da “Religião de Estado” e das regalias do

Antigo Regime, com a consequente perda de espaços considerados católicos na

Europa, deu-se início à construção de uma nova representação do papado, não

mais detentor de poder temporal mas, de um poder espiritual e moral que

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submeteria todos os católicos e no qual mal algum prevaleceria contra a Igreja

(CAES, 2002).

A história da vida religiosa no Brasil, até o século XIX, se resume a não mais que

sete ordens masculinas e cinco femininas, sobrevivendo numa minguada situação

socioeconômica do Império que, apesar de católico, pouca atenção dedicava aos

mosteiros e conventos (BEOZZO, 1983). Maria Jose Rosado-Nunes resume bem a

situação da vida religiosa feminina na Colônia com a frase “Era proibido ser freira”,

pois a Coroa não estava disposta a autorizar e investir em novos conventos, que ela

deveria subsidiar, e porque o reduzido número de mulheres europeias estava

destinado à missão de procriar (ROSADO-NUNES, 1997). Restavam os

recolhimentos, instituições oficiosas, fundadas quase sempre por padres, onde se

abrigavam mulheres desviadas e as que desejavam seguir a vida religiosa, mas não

podiam ingressar nos poucos conventos existentes. Neles se desenvolvia uma forma

de vida religiosa marginal, na qual as mulheres, apesar de assumirem as práticas

das religiosas, não eram reconhecidas pela Igreja. A possibilidade de renovação da

vida religiosa veio com a política religiosa vaticana de promover as congregações

religiosas dispostas a serem missionárias, com o objetivo de ampliar a presença da

Igreja nos inúmeros países, antigas colônias e ex-colônias de nações europeias de

tradição católica, como foi o caso do Brasil. As congregações que aceitaram emigrar

para terras desconhecidas, submetendo seus membros a inúmeras provações, o

fizeram como parte do projeto de expansão da organização e investimento para o

crescimento e fortalecimento dos patrimônios material e simbólico. A política

iluminista de Dom Pedro II, que autorizou a entrada de organizações religiosas

francesas para a instalação de escolas e hospitais, associada ao projeto

expansionista do papado, se constituiu em propício campo para o movimento

congregacionista europeu. Entendendo que a motivação para a entrada de religiosos

no Brasil, basicamente europeus, não se dava apenas por questões caritativas,

liberais críticos da política ultramontana se puseram contra os organismos femininos

imigrados que, justamente por se assumirem representantes da Igreja, se colocavam

a serviço da ordem estabelecida. Foi o que manifestou o deputado liberal Pedro Luiz

Pereira de Souza, em 1864, sobre a presença dos religiosos europeus no Brasil.

Especialmente sobre a Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo,

ele discursou na sessão de 03 de março de 1864.

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As irmãs de caridade têm grandes estabelecimentos à sua disposição: hospitais e colégios. Nos hospitais são enfermeiras tirânicas e administradoras absolutas. Nos colégios são professoras sem terem sofrido exames (...) Combato o jesuitismo, meus senhores, apareça como aparecer; combato o jesuitismo, venha ele com o burel do capuchinho, ou com a batina do lazarista ou com a touca branca da irmã de caridade. (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 03 mar.1864, p. 27-28))

A República, apesar da separação oficial entre o Estado brasileiro e a Igreja, acabou

sendo muito benéfica para a segunda, que, acolhendo a liberdade não desejada,

pôde, enfim, se internacionalizar. Na primeira Pastoral Coletiva do Episcopado

Brasileiro, de 1890, os bispos afirmavam que o “... modus vivendi (...) imposto pela

força das circunstâncias ...” lhes permitiria “...apreciar a liberdade da Igreja em si e a

liberdade (...) concedida pelo decreto”, para que pudesse gozar a liberdade de culto

e assim acatar as orientações do papado, alinhando-se com as diretrizes tridentinas,

“como ela nunca logrou no tempo da monarquia” (EPISCOPADO BRASILEIRO,

1890 apud RODRIGUES, 1981, p. 37. 39).

Em meio às disputas políticas e a uma ausência de projeto de coesão nacional, a

Igreja Católica se apresentava como elemento aglutinador da nação e colocava seus

préstimos a favor do governo, como se ainda fosse parte da estrutura do Estado.

Sérgio Miceli lembra que a separação dos dois poderes não significou ruptura entre

a Igreja e as elites locais, que compartilhavam mútuos interesses. Isso só foi

possível em função da reorganização da Igreja, na passagem do século XIX para o

XX, quando foram instaladas dioceses nas capitais, e depois nas grandes cidades,

descentralizando o poder eclesiástico, o que permitiria aos bispos dar à instituição a

configuração que perdura até os dias atuais (MICELI, 1988). Segundo a orientação

do papa Leão XIII, os bispos aceitavam a república e, apropriando-se do mesmo

liberalismo que a engendrou, passaram a reclamar a participação da Igreja nos

destinos da Nação. No ano seguinte ao da proclamação da República, os bispos

brasileiros lançaram a primeira Carta Pastoral coletiva do episcopado brasileiro, na

qual se percebe o poder de negociação que os bispos detinham:

... é daqui, do altar sagrado da religião que vamos dizer a esta nossa querida nação a verdade que a pode e a há de salvar ... ”

Basta que o Estado fique na sua esfera. Nada tente contra a Religião. Não só é impossível, nesta hipótese, que haja conflitos; mas pelo contrário, a ação da Igreja será para o Estado a mais salutar; e os filhos dela, os melhores cidadãos, os mais dedicados à causa pública, os que derramarão mais de boa mente o seu sangue em prol da liberdade da pátria.

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(EPISCOPADO BRASILEIRO, 1900, apud RODRIGUES, 1981, p. 17 e p. 57 respectivamente)

Enquanto o governo francês, com a política de Émile Combes, em 1905, impunha a

laicização às congregações religiosas como expressão de um claro projeto de

Estado liberal, o governo brasileiro as aceitava de bom grado, justamente quando a

Igreja brasileira se “desnacionalizava” e se perfilava de acordo com as orientações

romanas (DELLA CAVA, 1976). Isso permite afirmar que o Estado, nada liberal,

reconhecia a força social da Igreja e que o seu projeto político em nada ameaçava

os interesses daqueles que fizeram a República sem o povo. Ao apropriar-se da

formação escolar intermediária destinada às classes médias e à elite, a Igreja

formava o cidadão católico, mas, não necessariamente, o cidadão republicano

brasileiro.

Assim, desde 1890, se assistiu a um forte processo de imigração de congregações,

atraídas, inicialmente, pela possibilidade de abrir escolas e, posteriormente, de

investir em outras frentes como saúde, cuidado de órfãos e de idosos.

Especificamente no caso das congregações italianas, havia também a motivação de

prestar assistência religiosa aos imigrantes. Todas elas vislumbravam expandir suas

frentes de trabalho, ampliar o quadro de religiosas e fazer crescer o patrimônio

material e espiritual da congregação. Desse movimento, a partir de 1849,

começaram a surgir as primeiras congregações brasileiras que reproduziram a

cultura congregacionista imigrada. Não por acaso, a Igreja viria a controlar os

hospitais e uma vasta rede de escolas particulares, administradas por congregações

que, inicialmente, se dedicavam à educação da elite e depois passaram a se ocupar

da educação das classes intermediárias (MICELI, 1988). Conforme o projeto

eclesiástico ultramontano, e depois romanizador, a educação formaria mentes e

corações segundo a doutrina católica.

No que diz respeito às concepções liberais para a educação, as poucas escolas de

matriz protestante que haviam se instalado no País possuíam propostas

pedagógicas mais inovadoras do que as católicas, mas estas não receberam apoio

senão de alguns poucos liberais, pois esse não era o projeto dominante, controlado

pelos católicos. Assim se referiu Fernando Azevedo, em 1944 (p. 348), quando

chamou tais inovações de “fermento novo”:

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Nenhum fermento novo se introduziu na massa do ensino, a não ser o que se preparava nos colégios leigos ou se formava, nos fins do Império, com o aparecimento das primeiras escolas protestantes, como a Escola Americana, fundada em 1870, em São Paulo, para o ensino elementar e a que se acrescentou, em 1880, a escola secundária, ambas do "Mackenzie College", ou o Colégio Piracicabano (1881), para meninas, em São Paulo, e o Colégio Americano (1885), em Porto Alegre, ambos de iniciativa dos metodistas.

Em contraponto, a intelectualidade católica da década de 1920 e 1930 – ligada ao

Centro Dom Vital e liderada por Dom Leme –, através de Alceu Amoroso Lima,

buscou fazer frente aos Pioneiros da Escola Nova, cujo Manifesto de 1932 defendia

não só a escola pública, mas também a criação do Plano Nacional de Educação. E,

em última análise, por veicular um projeto de cultura nacional e livre, excluía as

pretensões católicas defendidas por esse grupo. Em razão disso, esses católicos

passaram a combater os líderes escolanovistas, dentre eles Fernando de Azevedo e

Anísio Teixeira, como forma de sugerir que tais propostas eram nocivas à

sociedade. Alceu de Amoroso Lima, um dos mais importantes intelectuais católicos

conservadores, em função de sua força e prestígio com o poder central, conseguiu,

ainda, obstaculizar a nomeação do primeiro para o cargo de diretor nacional de

Educação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1935 (XAVIER, 1988).

Contra os avanços conquistados por Anísio Teixeira na Reforma do Ensino no

Distrito Federal, à frente do Departamento Municipal de Educação, este líder

católico, através de carta ao ministro Gustavo Capanema, impôs, também em 1935,

a demissão de Anísio Teixeira, pois disso dependia a “catolicidade das instituições e

a paz social” (ARDUINI, 2015; BITTENCOURT, 2017; XAVIER, 1998). Também na

década de 1930, a Liga Eleitoral Católica, organismo leigo fundado por Dom Leme

para pressionar os constituintes, obteve sucesso em torno da defesa de vários

interesses católicos que foram contemplados na Constituição de 1934 (ARDUINI,

2015; CURY, 1988; SCHWARTZMAN, 2000).

Mesmo quando Getúlio Vargas, no Estado Novo, adotou medidas contra a

democracia, a Igreja, unida, continuou apoiando a luta contra o que classificava

como comunismo, por entender que, apesar de ferir as liberdades individuais,

Vargas ainda continuava com prestígio e com espaço para a formação da opinião

pública. Cabe lembrar que, em 1932, por ocasião da inauguração do monumento do

Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, Dom Leme retomou o tom de ameaça que fora

anunciado na primeira Carta Pastoral Coletiva:

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E haverá ainda quem acredite ser lícito à República fingir que pode ignorar as crenças religiosas do povo?! Não, senhores! (...) O nome de Deus está cristalizado na alma do povo brasileiro. Ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado. (AZZI, 1978, p. 64)

Cabe ressaltar que o processo de institucionalização do ensino brasileiro, iniciado no

final do século XIX, tomou força com a multiplicação das escolas particulares das

congregações religiosas, o que, por sua vez, possibilitou a participação da mulher no

espaço público. Paradoxalmente, como forma de resguardar a maternidade, tal

espaço foi ocupado por mulheres religiosas, as quais, apesar de controladas pelo

clero, abriram frentes para a presença feminina no campo educacional. Ainda que

seja possível considerar que tenha havido uma relativa valorização do papel social

feminino, contribuindo para uma nova representação social, também devemos

considerar que o fato de tal função ter sido associada à missão religiosa contribuiu

para emergir novas formas de preconceito e distinção social: subalternidade e

salários baixos.

Da mesma forma, isso ocorre quando se analisa a questão da presença feminina na

saúde. Enquanto a medicina era considerada ciência nobre, ao lado de advocacia e

engenharia, a enfermagem era vista como função subalterna à medicina, e, ao

mesmo tempo, com certo preconceito, pelo fato de manipular corpos. A história da

enfermagem no Brasil está vinculada à tradição cultural medieval católica europeia,

principalmente a portuguesa, que vinculava os cuidados com o corpo alheio,

considerados como tabu, à atividade exclusiva de mulheres que se consagravam a

Deus, como forma de proteger as mulheres casadas e solteiras. Inúmeras

congregações se ocuparam dessa profissão e, com o passar do tempo,

incorporaram também administração de hospitais. O aprendizado dessa ação, vista

como missão religiosa, assim compreendiam as freiras, se dava no próprio hospital

administrado pela congregação, que gradativamente introduzia o aprendizado

prático das religiosas ingressantes, de tal forma que o saber não vinha dos bancos

escolares, mas do tirocínio. Os hospitais conhecidos como “santas casas de

misericórdia” surgiram como instituições filantrópicas de matriz católicas para o

abrigo e cuidado dos moribundos. Elas eram administradas por associações leigas

como confrarias e irmandades que, por sua vez, contratavam profissionais

especializados. Na maioria das vezes, tais profissionais eram religiosos e/ou

religiosas que assumiam a gerência, os serviços médicos e os de enfermagem. Em

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função das exigências da Circa Pastoralis, via de regra, estes espaço passaram a

ter uma área reservada ao convento das religiosas. Assim, além de serem hospitais,

quase todas as Santas Casas foram convertidas em conventos, nos quais, ao lado

das atividades claustrais, as irmãs exerciam o mandamento religioso de cuidar dos

doentes através do exercício da caridade. Nessa perspectiva, o hospital e convento

se misturavam na medida em que ambos se convertiam em diferentes modos de

clausura para as freiras. Em função dessa cultura, a enfermagem foi vista no Brasil,

até os anos de 1960, muito mais como obra de caridade, da abnegação das

religiosas, do que como atividade profissional, o que inclusive retardou o

reconhecimento desta profissão (VIANA, 2000).

A primeira tentativa de romper com essa tradicional representação caritativa se deu

no compasso do movimento modernista, ocorrido no Brasil na década de 1920, cujo

principal ícone foi a Semana de Arte Moderna. Diante dos graves problemas de

saneamento e de saúde pública, agravados pelas pandemias internacionais que

alcançaram o Rio de Janeiro, afetando a economia cafeeira, foi criado em 1920 o

Departamento Nacional de Saúde Pública, cujo expoente foi o médico sanitarista

Oswaldo Cruz. Nesse clima de modernidade, foi criada, em 1923, a primeira Escola

de Enfermagem e foram contratadas professoras americanas para implantar o

modelo anglo-americano, também conhecido como Sistema Nightingale, centrado na

formação técnica do profissional (PERES; PADILHA, 2014)31. Em 1926, na

formatura do primeiro grupo de enfermeiras, elegeu-se o nome de Anna Nery para

denominar a escola e, já naquele ano, foi criada a Associação Brasileira de

Enfermagem (ABEn), que assumiu a defesa e a regulamentação da profissão e dos

cursos de enfermagem no País.

Nota-se que, apesar da prática da enfermagem ter nascido como atividade paralela

dos conventos, a profissão de enfermeira emergiu como fruto da modernidade e

31 O Sistema Nightingale, responsável pela formação das enfermeiras inglesas e americanas, foi desenvolvido por Florence Nightingale (1820-1910), uma britânica do século XIX, que, rompendo com os padrões da época, rejeitou o casamento para se consagrar como enfermeira, sem, no entanto, estar vinculada a uma instituição religiosa. Tendo servido como enfermeira na Guerra da Criméia, ficou conhecida como a “Dama da Lâmpada” e passou a se dedicar à preparação de pessoas para assumir o ofício de enfermagem. In: Florence Nightingale Museum. Disponível em: <http://www.florence-nightingale.co.uk/>. Acesso em: 07 ago. 2016.

Anna Nery, baiana, nascida em 1814 e falecida em 1880, ofereceu-se para servir de “enfermeira” na Guerra do Paraguai. Em razão disso, é conhecida como a percussora da Enfermagem brasileira e foi homenageada, tendo seu nome atribuído à primeira Escola de Enfermagem.

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através de pessoas laicas confessadamente não católicas. Mutatis mutandis, a

questão da enfermagem encontrava eco nas questões da educação; estava em jogo

a manutenção, ou não, de uma cultura católica responsável pelos destinos da

sociedade, e longas batalhas seriam empreendidas pelos defensores da majoritária

cultura católica, que defendia a irrelevância das escolas de enfermagem. Coincide

com este período o momento de formação das primeiras universidades no Brasil,

que, sem negar a importância do “saber fazer”, passaram a investir na formação e

na diversificação de quadros profissionais para responder às exigências sociais, o

que acontecia distante da Igreja e de seus prepostos. Dessa forma, a Associação

Brasileira de Enfermagem conseguiu dar os primeiros passos para a

regulamentação do exercício da profissão no Brasil, definindo que a função de

“enfermeira” só poderia ser atribuição de pessoas formadas. Articulada com a elite

conservadora, tradicionalmente católica e com certo poder político, a Igreja

conseguiu junto ao governo, em 1932, um Decreto regulamentando a situação das

freiras sem diploma que trabalhavam em hospitais, as quais passaram a ser

classificadas como “enfermeiras práticas”, desde que comprovassem o

conhecimento prático32. Tal lei só foi revogada em 1955, o que demonstrava a luta

das enfermeiras diplomadas, preteridas pelos hospitais que optavam pelos custos

menores das enfermeiras práticas. Não obstante, este fato desencadeou a

multiplicação de inúmeras escolas de enfermagem, que solicitavam a equiparação

com a Escola de Enfermagem Anna Nery, o que implicava a fixação de exigências

para as referidas escolas funcionarem. Não é difícil de imaginar os artifícios criados

para burlar tais exigências (BROTTO, 2014; OGUISSO, 2001).

A primeira escola paulista, a “Escola de Enfermeiras do Hospital São Paulo”, que

viria a ser o Curso de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo, nasceu

em 1938, associada à Faculdade Medicina, hierarquicamente a ciência médica por

excelência, a serviço da qual estaria a enfermagem. Um dos pontos-chave do

projeto da “Escola de Enfermeiras do Hospital São Paulo” era definir o perfil dos

futuros profissionais, ligado aos dois modelos formativos predominantes no País: a

metodologia utilizada pela Escola de Enfermagem Anna Nery, centrada na

32 Decreto n. 22.257/1932, de 26/12/1932. “Confere às irmãs de caridade, com prática de enfermeiras ou de farmácia, direitos iguais às enfermeiras de saúde pública ou práticas de farmácia para o fim de exercem essas funções em hospitais”. Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/norma/442592>. Acesso em: 02 mar. 2018.

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“formação técnica e profissional”, e a metodologia das santas casas, administradas

por congregações religiosas e que mantinham “enfermeiras práticas”.

Diante do peso político e cultural, a segunda foi dominante. O vice-diretor da Escola

de Medicina, o médico Álvaro Guimarães Filho, representante da elite conservadora

e católica, endossou a opinião da Dr.ª Odete de Carvalho, ao expressar que um

curso idealizado segundo o modelo da Escola de Enfermagem Anna Nery estava

destinado a ser uma “escola de casamento”, para moças da classe média, as quais,

caso assumissem ofício, exigiriam altos salários, enquanto as escolas das

congregações seriam mais condizentes com a realidade da profissão, atraindo

religiosas desejosas de servir a sua organização e moças pobres e católicas

dispostas a trabalharem em troca de baixos salários. Diante desse quadro, a direção

aprovou ao vice-diretor estabelecer contato com Dom José Gaspar d'Afonseca e

Silva, arcebispo de São Paulo, que intermediou a vinda das freiras francesas da

Congregação Missionárias Franciscanas de Maria para serem as responsáveis pela

Escola, na qual assumiram a função de professoras, ao lado dos médicos. Foi

imposta às alunas uma organização típica de convento, como se também elas

fossem religiosas (VIANA, 2000). Enquanto as irmãs ali estiveram, predominou a

orientação caritativa expressa no lema cristão “não viver senão para servir”

(BROTTO, 2014).

Nessa história se cruzam múltiplos interesses. São motivações de ordem pessoal ou

de grupos que levam alguém a se comprometer com uma causa, sem uma

vantagem aparente33. A priori, é possível estabelecer a seguinte clivagem: de um

lado, estava o governo estadual paulista, que, necessitando resolver o problema da

saúde pública, acabou destinando verbas apenas para a construção das instalações

médicas e a provisão da infraestrutura física. Ademais, não assumiu o seu papel de

dirigente e defensor das leis em vigor. Mesmo tendo conhecimento de que a Escola

não adotava o padrão oficial, relativizava a presença de religiosos na instituição

pública. Por seu turno, o arcebispo de São Paulo desejava demonstrar ao governo

paulista que a Igreja estava disposta a colaborar nos negócios públicos. Seu projeto

era garantir a presença da Igreja como instituição de ensino de enfermagem, por

33 Pierre Bourdieu (1977), em “É possível um ato desinteressado?”, lembra que o “desinteresse” social não existe, pois aquele que serve o Estado e, por extensão, à sociedade, também deles se serve, o que implica afirmar que, de fato, o que existe são trocas entre diferentes poderes que constroem o capital simbólico e/ou econômico de cada grupo social.

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meio de freiras clericalizadas, seu lugar-tenente, para formar profissionais da saúde

capazes de defender a doutrina católica e que, ao mesmo tempo, buscassem,

através do exercício profissional, ser bons católicos, bons cidadãos e construtores

da nação. Na sequência, as religiosas francesas desejavam garantir seu espaço

para implantar seus projetos, tal como aconteceu em 1939, quando o Dr. Álvaro

Guimarães Filho criou condições para a fundação do “Amparo Maternal”, uma

instituição que viria a ser administrada pela congregação francesa (BROTTO,

2014)34.

Nesse implícito pacto de múltiplos interesses, realizado por médicos, pelo arcebispo

e pelas freiras, a maior ausência foi a do Estado – desde a nascente República,

eximiu-se da estruturação que deveria garantir os direitos e os deveres iguais a

todos os cidadãos e permitiu que instituições eclesiais seguissem sendo

responsáveis pelos serviços sociais à população. No fundo, a opção pela escola das

religiosas se dava também por questões de ordem econômica e social, pois, manter

uma escola laica, com professores leigos, tinha um custo elevado. Já a escola

dirigida por freiras teria um custo menor, dada a mentalidade de que as freiras

exerciam tal atividade como abnegação. De outro lado, tendo o amparo econômico

institucional, as religiosas, ainda sem a consciência social, contribuíam para impedir

a percepção de que a enfermagem era uma profissão e que por isso deveria ser

remunerada, como qualquer outra.

5. As congregações imigradas segundo o modelo das associações oficiosas

Considerando as informações do Banco de dados para o período entre 1848 e 2000,

que indicam a imigração de 384 congregações religiosas femininas para o país, se

deduz que o modelo de vida religiosa congregacionista teve um impacto bastante

grande na reorganização da Igreja brasileira e consequentemente na sociedade

brasileira, que passou a conviver com este segmento social especialmente nas

escolas, creches, asilos e hospitais.

34 O Amparo maternal se tornou um centro especializado de cuidado neonatal e ficou sob a direção da Congregação “Missionárias Franciscanas de Maria” até 2008, quando foi assumido pela Congregação de Santa Catarina.

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Quadro: 1 Congregações imigradas, por décadas

Década Nº

1840 1

1850 1

1860 1

1870 1

1880 2

1890 10

1900 23

1910 16

1920 21

1930 32

1940 15

1950 45

1960 71

1970 36

1980 31

1990 16

2000 3

S/I 59 Total 384

si = sem informação (Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

Ainda que a conventualização, promovida pela Santa Sé entre 1901 e 1917, tenha

imposto um forte enquadramento que uniformizou as congregações, é possível

perceber, em todas elas, mesmo nas fundadas no século XX, sinais dos modelos

que estiveram na base do movimento congregacionalista do século XIX35.

5.1. As congregações derivadas de ordens terceiras ou de ordens religiosas

35 Sobre a importância dos sinais e indícios na compreensão dos fenômenos sociais, consultar o texto Sinais, raízes de um paradigma indiciário (GINZBURG, 2012, p. 143-179).

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As congregações derivadas das ordens religiosas foram altamente estimuladas pela

Santa Sé a emigrar para o Brasil, no projeto de catolicizar a nação, sendo, muitas

delas, trazidas e/ou convidadas pelas Ordens masculinas que estiveram ligadas ao

padroado. No Banco de dados verificamos o predomínio de três famílias espirituais:

a família franciscana, a família carmelitana e a família dominicana; dentre elas, o

núcleo identitário franciscano está presente em mais da metade das organizações.

Os principais sinais para identificar tais organizações são: a conversão de

associações de leigos em ordem terceira, segundo as contingências do momento da

fundação; a utilização do nome de uma das ordens religiosas, associado a uma

devoção moderna que lhes dava identidade e distinção; a participação de um

religioso de uma ordem como fundador ou cofundador. Com a ampliação das

demandas e da necessidade de imprimir confiabilidade, muitos grupos se

apropriavam de uma das referidas espiritualidades e se apresentavam como

herdeiros espirituais daquela família religiosa. Dessa forma, muitos padres

seculares, ao fundarem congregações, escolheram nomes e identidades

semelhantes às de ordens religiosas36. Como o número destas congregações é

grande, citamos apenas alguns exemplos:

Congregação das Irmãs Agostinianas missionárias, Congregação das Irmãs

Franciscanas do Sagrado Coração, Congregação das Irmãs Carmelitas Descalças

36 A Congregação de Nossa Senhora do Amparo é uma fundação brasileira, erigida canonicamente, em 1906, no Rio de Janeiro. A história da congregação tem sua origem com a criação da Escola Doméstica de Nossa Senhora do Amparo, que fora fundada em 1871 pelo padre João Francisco de Siqueira Andrade, com apoio da elite da cidade de Petrópolis. O sacerdote encarregou sua sobrinha de organizar um pequeno grupo de mulheres pertencentes ao movimento ultramontano leigo “Filhas de Maria” para serem professoras segundo os moldes de uma “pia associação” e assim desonerar-se do custeio dos seus salários. Com sua morte, em nome de um pretenso testamento espiritual do falecido fundador, seu sucessor transformou o grupo em Ordem Terceira Franciscana e conseguiu a filiação à Ordem dos Capuchinhos, fato que a tornou mais conhecida e lhe abriu perspectiva para novas fundações. Dentro do programa romanizador. Dom João Francisco Braga, 1906, constatando a amplitude da obra, a transformou em congregação religiosa de direito diocesano e lhe impôs constituições próprias. No site da congregação consta informação sobre o suposto testamento: “Para cuidar da obra [educativa] surge a Congregação de Nossa Senhora do Amparo, como Filhas de Maria, em 23/03/1888; estas congregadas tornam-se franciscanas em 09/03/1889, atendendo ao desejo expresso do Padre Siqueira em seu testamento: ‘Que o pessoal docente, uma vez organizado, tome o título de Congregação de Nossa Senhora do Amparo, observando a Regra da Terceira Ordem de São Francisco da Penitência’”. Não nos ativemos a questionar a existência e a veracidade do testamento, mas apenas a perceber a intuição dos referidos padres em transformar um comum grupo de mulheres em ordem Terceira, o que lhe abriu novas e importantes perspectivas. No entanto, isso também descaracterizou a fundação original de mulheres leigas. Informação disponível em: <http://fraternidadecasapadresiqueira.blogspot.com.br/2009/03/um-pouco-da-nossa-historia.html >. Acesso em: 23 ago. 2017.

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Servas dos Pobres do Brasil, dentre outras. Cabe lembrar que a Congregação objeto

desta tese foi fundada a partir de uma ordem terceira franciscana.

De outro lado, várias congregações afirmaram ter origem em Ordens terceiras, mas

apresentam datação anterior ao século XIX, como é o caso da Congregação das

Irmãs Franciscanas de Ingolstadt. Segundo informações obtidas no site da entidade,

trata-se de fundação franciscana medieval de 1271, na região da Baviera, e que no

século XV foi transformada em Ordem terceira franciscana, no século XVII foi

transformada em clausura, e, em 1800, por ser considerada ociosa pelos liberais, foi

proibida de receber noviças, fato que a impeliu a abrir uma escola para crianças e

assumir contornos congregacionistas. Em razão da perseguição nazista, veio para o

Brasil em 1947 como missionária e se instalou no interior de Minas Gerais se

dedicando a escolas e hospitais37.

5.2. As congregações derivadas das sociedades de vida comum

Com a avassaladora onda congregacional, as poucas sociedades de vida comum

compostas por mulheres, foram transformadas em congregações religiosas. A única

da qual temos notícia, foi a Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de

Paulo, que obtivera o reconhecimento pontifício em 1688, fato que explica ela não

ter se interessado em mudar o seu status religioso (ANAYA, 2010,3).

Dentre as congregações imigradas e identificadas no Banco de dados, três tiveram suas fundações vinculadas a sociedades apostólicas e assumiram tal identidade no século XIX. A principal característica delas é sua dependência de uma sociedade apostólica masculina e a cronologia da fundação, entre os séculos XV e XVIII. São elas: a Congregação das Irmãs Angélicas de São Paulo, fundada em 1535, como ramo feminino da Ordem dos Clérigos Regulares de São Paulo, conhecidos como barnabitas, que imigrou para o Brasil em 1925; a Congregação das Irmãs Teatinas da Imaculada Conceição, fundada em 1583, como ramo feminino da Ordem dos Clérigos Regulares de São Caetano, conhecidos como teatinos, dando nome à organização feminina e que imigrou para o Brasil em 1971; e a Congregação das Irmãs Oblatas do Menino Jesus, fundada em 1672 por Pe. Cosimo Berlinsani, membro da Sociedade de clérigos regulares da Mãe de Deus, para ser o ramo feminino daquela sociedade, a qual imigrou para o Brasil também na década de 1970.

37 Disponível em: http://www.acf.org.br/sobre-a-acf/historia/ Acesso em: 01 abr. 2018.

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5.3. As congregações derivadas das pias uniões

A maioria das congregações imigradas foi fundada, ou derivada, segundo o modelo

das pias uniões. A principal forma de identificá-las no Banco de dados foi pela

presença de um fundador ou de um casal de fundadores, geralmente um padre e

uma leiga, posteriormente interpretada pela organização como se fora uma religiosa,

fato que, por si só, demonstra o desejo de apagar qualquer vínculo laical. Duzentas

e vinte e oito organizações explicitaram a presença de um fundador ou cofundador

clérigo. Subtraindo o número das congregações formadas a partir de ordens

terceiras, as quais também contaram com fundadores, deduzimos que 120

congregações foram formadas a partir de pias uniões. Verificamos dois tipos de

congregações associadas a tais associações leigas: as fundadas anteriormente ao

século XVIII e as fundadas a partir do movimento congregacionista do século XIX.

Segundo Laguna (2009), esses organismos e seus congêneres, anteriores ao século

XIX, integram a base do movimento congregacional e, possuidores de relativa

tradição, já bem estruturados na sociedade civil, tiveram suas vidas mudadas pelas

condições eclesiais durante as revoluções liberais. As necessidades sociais geradas

pela ausência de políticas públicas possibilitaram às organizações, especialistas em

educação, converter-se em forças sociais que não foram desprezadas pela Santa

Sé. A concessão do reconhecimento eclesial permitiu a essas organizações

fazerem-se missionárias em terras como o Brasil38.

38 Como exemplo, identificamos no mapa três congregações que nasceram como pias-associações: a Congregação de São José de Chambery, que foi fundada em 1650, pelo padre jesuíta Jean Pierre Medaille, talvez a mais famosa no Brasil; a Congregação das Irmãs de São Carlos de Lyon, fundada em 1680 pelo padre Charles Démia, um pedagogo que fundou uma rede de escolas e confiou a um grupo de mulheres a direção das escolas femininas; e a Congregação da Providência de Gap, fundada em 1762 pelo padre diocesano Jean Martin Moye, cujo principal escopo também foi a educação. Como exemplo, citamos, especialmente, a Congregação de São José de Chambery, que se tornou uma das principais congregações divulgadoras da cultura francesa no estado de São Paulo. Após ter recebido reconhecimento em 1857, ela chegou ao Brasil em 1858, trazida pelo também bispo ultramontano de São Paulo e, na cidade de Itu, instalou o Colégio Patrocínio, para educar as filhas da elite paulista (MANOEL, 1996, p. 70-72; WERNET, 1987). Com o apoio das elites de outras cidades e do clero, em menos de 40 anos ela fundou instituições de ensino em 7 cidades do interior paulista e também em 2 novas províncias: em 1900, no Rio Grande do Sul e, em 1901, no Paraná (MANOEL, 1996). Tais apoios, no dizer de Bourdieu (1977), não eram sem interesses, o que faz pensar que os grupos que imigravam eram escolhidos “a dedo” para realizar os projetos das elites, com as quais os bispos estavam profundamente integrados. No seu site podemos ler:

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Quanto às congregações organizadas durante o movimento congregacional,

predominam aquelas fundadas pelo clero para realizar atividades subalternas e

clericais39. Diante desse fato, o principal objetivo dessas organizações foi construir e

manter vínculos clericais que lhes servissem de mediações com o governo, com a

elite e o povo das cidades onde se instalavam. Fica claro, então, que havia uma via

de mão dupla onde a relação entre as religiosas e o clero, diocesano e religioso, se

construía em movimentos de atração e retração, em que ambos buscavam fazer

avançar seus projetos. Se, de um lado, o clero colaborou com o processo de

imigração das congregações e facilitou os primeiros anos das congregações no

Brasil, é porque via nelas condições para ajudarem na implantação de seus projetos.

Por sua vez, as congregações se aproximavam do clero e contavam com seu apoio

porque sabiam ser o caminho necessário para estabelecerem-se junto do povo e da

elite. Associadas ao clero, elas participariam e também se serviriam de suas redes

de contato. Somente desse modo expandiriam a organização e, ao mesmo tempo,

construiriam condições para tornarem-se independentes do clero.

5.4. As congregações religiosas derivadas dos grupos leigos

No Banco de dados, 142 organizações apresentam-se como fundações

essencialmente femininas. Tal fato merece atenção, pois, como afirmamos, a

burocratização e a clericalização do processo para a obtenção do direito pontifício

..., [eis que] surge um Jesuíta missionário, jovem, dinâmico que, (...) na contemplação dos mistérios da Eucaristia e da Encarnação do Verbo (...) recebeu a feliz inspiração [de fundar um grupo]. Padre Jean Pierre conseguiu reunir algumas das jovens e viúvas com as quais se encontrara em seu trabalho missionário. No convívio, perceberam terem as mesmas aspirações. Decidiram, então, apoiar-se mutuamente na realização de um novo projeto. (Disponível em: <http://www.isjbrasil.com.br/congregacao>. Acesso em: 25 jun. 2017)

39 Nas congregações formadas a partir de pias uniões, já do século XIX, temos o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, fundado em 1872, por São João Bosco, fundador da Sociedade São Francisco de Sales, segundo os moldes das Sociedades apostólicas, mas já inserido no movimento congregacional masculino e com forte ênfase na prestação de serviços à sociedade – no caso, à educação. No site das Filhas de Maria Auxiliadora, se lê:

Dom Bosco ansiava pela criação de um instituto feminino que pudesse realizar o trabalho educativo e evangelizador, o que já era promovido para os meninos. Ao conhecer Maria Domingas Mazzarello e o trabalho que ela realizava, enxergou a possibilidade de tornar seu sonho realidade. Madre Mazzarello foi a co-fundadora e primeira diretora do Instituto. (Disponível em: <http://www.salesianos.br/familia-salesiana/animacao-dos-grupos/instituto-das-filhas-de-maria-auxiliadora/ >. Acesso em: 25 jun. 2017)

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fizeram com que grupos, estrategicamente, optassem pelo apoio de um agente do

clero em sua fundação. Assim, com exceção das organizações imigradas cujas

fundações ocorreram entre 1800 e 1850, período em que se concentrou o maior

número de fundações essencialmente femininas (20% das congregações

classificadas pelo Banco de dados), a maioria delas foi oficialmente fundada por um

clérigo. É bastante provável que, a maioria das congregações que afirmam terem

sido fundadas por mulheres, tenha realizado o que Langlois (1984) denominou de

fondation réitérée, isto é, a prática da releitura realizada com o objetivo de recuperar

e destacar o papel das mulheres na fundação, historicamente atribuída a um clérigo.

Com isso, as organizações, sem negarem os aspectos jurídicos, deslocavam o foco

da instituição da congregação para o momento daquilo que teria sido a inspiração do

grupo, quando mulheres decidiram, de forma espontânea e, muitas vezes, sem a

clareza e a intenção de fundar uma organização, assumir um novo estilo de vida

religiosa.

Isto explica a razão de muitas congregações atribuírem a data de fundação anterior

ao próprio movimento congregacional, o que do ponto de vista cronológico seria um

anacronismo. Em razão disso, dependendo da forma como a organização concebe a

sua história, pode haver mais de uma data de fundação e, além do fundador oficial

eclesiástico, haver também uma fundadora. Mais que recuperar a pessoa da

fundadora, a releitura tinha a intenção de acentuar que o processo de

institucionalização desfigurara o ideal fundador.

Quando constatamos que a maioria das congregações imigradas já chegou ao Brasil

com o decreto de aprovação, 132 até o ano de 1970, com contratos de trabalho e

endereço certos, o que lhes possibilitou rápido crescimento (BANCO DE DADOS,

2017), compreendemos a razão de tais grupos terem buscado apoio de clérigos para

converterem-se em congregações. No entanto, ao lado das congregações já

estabelecidas e detentoras do direito pontifício, identificamos, entre os anos de 1849

a 1970, 91 congregações que obtiveram tal reconhecimento em terras brasileiras,

causando estranheza pois, justamente, essa fora uma das condições impostas pela

Santa Sé para constituir uma congregação missionária. Além do aumento na

demanda por tais organismos, o que levou a Santa Sé a dispensá-las de tais

exigências, tal fato pode ser explicado nas mudanças da política eclesiástica, na

busca de controlar e esvaziar a principal característica do movimento

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congregacional: o poder da madre superiora. Enquanto poder feminino, submetida

ao direito diocesano, ainda que tal figura tenha continuado a existir, seu poder era

circunscrito ao interior da organização e condicionado ao poder do bispo.

Concluímos, portanto, que independentemente do momento em que imigraram e do

modelo em que foram formadas, todas as organizações estrangeiras aqui chegadas

reproduziram a mesma estrutura centralizada e hierárquica, aprovada pela Santa

Sé. Mesmo aqueles grupos isolados em uma pequena comunidade no interior do

País, ou aquelas que tiveram tão somente mulheres em sua base, cumpriam

fielmente as determinações eclesiásticas, as reproduzindo nas relações cotidianas e

nos vários círculos sociais a que pertenciam, através das estruturas de vigilância

propagadas pela doutrina católica, nas relações hierárquicas, inclusive femininas;

nas regras e nas constituições internas de cada organização. Essa associação de

regras e disciplinas construía a cultura do temor religioso, garantindo o controle das

mentes e dos corpos das religiosas (FOUCAULT, 1987).

Este modelo de congregação, burocratizado, clericalizado e hierárquico, associado

ao projeto do episcopado brasileiro, se converteu em uma fórmula de sucesso que a

maioria das congregações imigradas seguiu à risca. Ao colocarem-se a serviço do

episcopado, essas organizações obtinham a garantia de apoio e abertura de

oportunidades na sociedade, as quais, por sua vez, lhes davam excelentes retornos

econômicos. Além disso, assumir tarefas civis lhes rendia trocas simbólicas que

tornavam a organização religiosa mais conhecida e com maior facilidade para o

recrutamento de novos membros.

Quadro 2: Congregações imigradas no Brasil (por país ou continente)

Itália 174 França 56 Alemanha 21 Espanha 30 Holanda 10 Bélgica 12 Outros países europeus 24 América do Norte 21 Índia 3 Ásia 6 África 4 Outros países latinos 9 Sem informação 16 Total 384 si = sem informação (Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

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6. O predomínio das congregações francesas e italianas

Ao analisarmos o quadro das congregações segundo a origem, confirmamos o

predomínio de congregações europeias no processo imigratório: 61% (327

congregações), com destaque para as congregações italianas (174) e as francesas

(56). Todavia, também é interessante observar a imigração de congregações

oriundas de países que historicamente receberam congregações missionárias: nove

latino-americanas de língua hispânica, três indianas, quatro africanas e seis

congregações originárias de países asiáticos, imigradas basicamente a partir de

1920, mas de forma intensa depois de 1950. Em nossa análise consideraremos os

dois maiores índices imigratórios: os das congregações francesas e italianas, que

totalizam 49,5% do conjunto de congregações imigradas, respectivamente com 56 e

174 congregações.

Quadro 3: Congregações francesas e italianas imigradas

Francesas Italianas

Década N.º N.º

1850 1 1860 0 1

1870 0 1880 2 1

1890 3 3

1900 10 8

1910 3 3

1920 2 8

1930 6 9

1940 2 11

1950 4 20

1960 9 30

1970 3 28

1980 3 21

1990 1 9

2000 1 0

S/i 7 23

Total 56 174 si = sem informação (Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

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Ao compararmos os quadros das organizações francesas e italianas, verificamos

que as primeiras possuem três momentos fortes na imigração: o primeiro, ainda no

século XIX, com sete congregações; o segundo na década de 1910, com dez

congregações, e outro na década de 1960, com nove congregações, mantendo

média de quatro congregações por década. A partir da década de 1960 há uma

sensível diminuição de entradas no País.

Também entre as congregações italianas, há dois momentos fortes. O primeiro entre

1890 e 1950 com uma média de sete congregações por década e um paradoxal

aumento entre 1950 até o final de década de 1980, com uma média de 20

congregações por década, quando a maioria das congregações europeias fechava

casas no Brasil, em função do reduzido número de religiosas ou por eleger novas

áreas de missão ad gentes, como em países africanos e asiáticos (BANCO DE

DADOS, 2107). Desse quadro, a primeira observação é sobre as congregações

francesas: embora tenham causado impacto na sociedade brasileira, em função de

terem se ocupado da educação das filhas da elite, e porque, a seu tempo, elas

foram aquelas com maior expressão numérica, essa posição, a partir de 1920,

passou a ser ocupada pelas congregações italianas. Também o predomínio

numérico da década de 1910, com dez congregações, ocorreu em função do exílio,

quando Emile Combes teria impedido as congregações educadoras de continuarem

suas atividades, o que, para grande parte delas, comprometia a sua própria

existência. Aproximadamente 30.000 pessoas, um quinto de todas as religiosas

francesas, foram enviadas para terras estrangeiras, dentre elas o Brasil, como forma

de garantir a sobrevivência das organizações (CABANEL, 2005)40.

Cabe refletir, no entanto, que o exílio só foi possível em função da demanda do

papado, que convocava religiosos europeus para a implantação da romanização em

vários países. Sem negar as experiências traumáticas das pessoas, obrigadas a

emigrar, paradoxalmente, o exílio viabilizou a expansão e o crescimento das

congregações mais estruturadas, que viram inúmeras vantagens econômicas e

sociais na emigração. Sem negar que tenha havido perseguição política às

40 Ilustra esta interpretação uma informação presente no site da Congregação das Irmãs da Sociedade do Sagrado Coração de Jesus, que imigrou em 1904: “Foi somente, no início do novo século, quando leis injustas fecharam muitas casas na França, que a Reverenda Madre Digby ofereceu a Dom Joaquim Arcoverde, arcebispo do Rio de Janeiro, a primeira fundação nessa cidade, capital do país”. Disponível em: http://rscjbrasil.blogspot.com/p/nossa-historia.html Acesso em: 01 nov. 2018.

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congregações religiosas, Angela Xavier destacou como o exílio se constituiu uma

opção para o que ela chamou de a “elite das congregações”, pois, aquelas sem

condições econômicas e sem apoio de eclesiásticos, tiveram que se adequar às

exigências do governo e permanecer na França. Segundo ela, essa elite era “a mais

radical e ultramontana”, pois, para atingir seus objetivos, endossava as posições do

papado e se colocava a serviço do projeto da romanização (BRITO, 2010, p. 35)41.

A partir de 1920, a hegemonia educacional francesa entrou em declínio, quando

outras congregações, especialmente italianas, passaram a oferecer educação para

atender as classes sociais intermediárias, constituindo a formação de um mercado

educacional com preços acessíveis e em lugares distintos daqueles praticados pelas

tradicionais escolas francesas. Especialmente no Sudeste brasileiro, emergia uma

classe média italiana e seus descendentes, que buscavam escolas particulares para

seus filhos, como foi o caso do Colégio Santa Marcelina, fundado em 1924 na

promissora região de Perdizes, na cidade de São Paulo, por uma congregação

italiana que viera para a cidade de Botucatu, no interior de São Paulo, em 1912

(PEROSA, 2005)42. Esse movimento do interior para a capital indica como a

expansão das escolas particulares, atraíam congregações religiosas imigradas e, se

constituía em motivação para fundações brasileiras.

Por fim, a saída de cena das congregações francesas e a entrada maciça das

italianas revelaram a mudança da política eclesiástica da romanização. Sem

abandonar a educação da elite, a Igreja passou a incentivar as congregações para

que se dispusessem a contribuir na construção de um catolicismo de massa

(SOUZA, 1999). No final do século XIX, por orientação da Santa Sé, chegaram 12

congregações italianas ao Brasil, incluso as masculinas, superando as 10 francesas,

e inúmeros padres diocesanos italianos da Congregação dos Missionários de São

41 Entendemos que, para a referida autora, “elite das congregações” eram as congregações que obtiveram a aprovação pontifícia, aquelas com maior prestígio social e eclesial, com maior número de religiosas e com estabilidade econômica suficiente, que lhes permitiriam assumir uma missão estrangeira, colaborando com a romanização. 42 A congregação italiana das Irmãs de Santa Marcelina, fundada em pleno auge do movimento congregacional, em 1938, em Milão, foi idealizada pelo padre Luigi Biraghi para conduzir uma pequena escola. Em 1912, a convite do bispo de Botucatu, adotou a prática habitual das congregações religiosas de abrir uma escola particular para filhos de imigrantes e uma escola para os pobres; em 1924 abriram o Colégio Santa Marcelina em São Paulo, onde seria instalada também uma Faculdade. A partir de então, novas escolas foram fundadas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Depois dessas experiências, novas escolas foram abertas em vários países (Disponível em: <http://www.marcelline.org/index.php/it/chi-siamo-it/storia-it> Acesso em: 01 set. 2017).

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Carlos Borromeo, com o objetivo de prestar assistência aos italianos que emigraram

para a América43.

Essa cifra foi intensificada pela presença das congregações femininas italianas,

cujos índices, a partir de 1920, já superavam as congregações francesas,

assumindo a dianteira. Todavia, o maior crescimento se deu apenas no início da

segunda metade do século XX. Em apenas três décadas, entre 1950 e 1979, o País

recebeu 78 congregações femininas italianas, superando o total das organizações

francesas. Se somarmos as congregações imigradas na década de 1980, 21,

alcançamos uma média de 25 congregações por década, o que significa dizer que o

movimento congregacional brasileiro nasceu fortemente marcado pelas

congregações francesas, mas seu desenvolvimento se deu com as congregações

italianas, presentes em maior número de Estados e com várias frentes de trabalho.

O predomínio das congregações italianas revela a opção dos bispos brasileiros

segundo as novas demandas da elite brasileira. Se, no século XIX e no início do XX,

os bispos se empenharam para trazer congregações educadoras da elite, a partir de

1920 o foco mudou para uma pastoral de massa fundada na espiritualidade

romanizadora, que construiria a nação católica. De fato, ainda que as congregações

italianas tenham assumido escolas e hospitais, elas se mostraram mais abertas para

as diversas frentes, especialmente no interior do País44.

7. As congregações brasileiras

A vinda de congregações europeias acabou criando uma demanda por serviços em

instituições de ensino, de cuidados de crianças, em hospitais, asilos e pensionatos,

43 A imigração maciça de italianos para o Sul e o Sudeste brasileiros, ocorrida entre os anos de 1885 a 1900, representou metade de toda imigração entre os anos de 1870 a 1930. Estima-se que, nesse período, 353.000 imigraram para o Brasil com o sonho de tornar-se proprietários rurais (FAUSTO, 1995). Marcus Levy Albino Bencostta (1999, Quadro 13) indica que no ano de 1914, de um total de 67 padres seculares na diocese de Campinas, 40 eram imigrantes, sendo 12 italianos. 44 O Banco de dados nos permitiu constatar que as congregações italianas tiveram forte influxo sobre as fundações brasileiras, que se apropriaram – e os ressignificaram – do modo de ser e das práticas sociais delas. Em contrapartida, apesar de significativa presença de congregações francesas, encontramos apenas uma derivada de organização francesa. Esta foi fundada em 1919, em Minas Gerais, por uma suposta religiosa da Congregação de Notre Dame de Fourvière, de Lyon. Trata-se da Congregação das Religiosas Missionárias de Nossa Senhora das Dores. Disponível em: http://www.rmnsd.com.br/quem-somos/nossa-historia/. Acesso em: 01 set. 2017.

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à qual elas mesmas não davam mais conta de responder, principalmente em função

do declínio nos recrutamentos. Além disso, a multiplicação das dioceses no Brasil

fez rarear as condições econômicas e o próprio apoio das elites para o custeio da

viagem, instalação e manutenção das religiosas nos primeiros tempos, até que as

congregações imigradas pudessem autossustentar-se 45. Em razão disso, ainda no

século XIX surgiram as primeiras congregações religiosas brasileiras fundadas por

eclesiásticos e segundo modelo predominante na Europa, a partir de associações de

mulheres católicas e ordens terceiras.

Quadro 4: Congregações brasileiras

Década N.º 1840 1 1850 1 1890 3 1900 3 1910 6 1920 11 1930 6 1940 9 1950 18 1960 12 1970 6 1980 7

s/i 3 Total 86

si = sem informação

(Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

A considerar pelo volume de congregações brasileiras no século XX, constatamos 3

picos expressivos, com um crescimento médio de 6 congregações a cada década. O

primeiro ocorrido na década de 1920, com 11 novos institutos; o segundo e o

terceiro nas décadas de 1950 e 1960, com 18 e 14 fundações, respectivamente. O

crescimento da década de 1920 pode ser compreendido pela novidade do

movimento congregacional, o qual já contava com a presença de mais de 50

congregações imigradas e 15 brasileiras. Já, a retomada do crescimento, em 1950 e

1960, pode ser explicada pelo surgimento e pela organização dos movimentos

sociais em prol do Estado de bem-estar social, sendo, por sua vez, muito propicio

para as organizações religiosas que abriram novas frentes de trabalho.

45Ao comunicar a nomeação ao episcopado e sua nomeação para a diocese do Espírito Santo, o bispo de São Paulo lembrava ao então padre João Batista Correa Nery que sua diocese era extensa, o que lhe exigiria percorrê-la a cavalo pelo sertão, e que ela era muito pobre (RIGOLO FILHO, 2006).

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Verificamos, pelas informações do Banco de dados, que 58% das congregações

brasileiras foram formadas segundo os modelos das pias uniões, geralmente ligadas

ao clero diocesano e/ou associadas a uma mulher ou um grupo de mulheres.

Identificamos que as restantes (42%) estão ligadas a nove famílias religiosas, sendo

19% ligadas à família franciscana, 7% ligadas à Companhia de Jesus, 6% à família

carmelitana e 10% ligadas a variadas famílias. Deste universo, 70% delas

declararam a presença de homens em sua fundação, como fundadores ou

cofundadores, e 24% afirmaram pertencer a fundações essencialmente femininas,

significando que também entre as congregações brasileiras ocorreu o fenômeno da

fondation réitérée, destacada por Langlois46.

Constatamos que as congregações fundadas no final do século XIX e na primeira

metade do século XX estão ligadas ao processo de urbanização, iniciado naquele

período em função da crescente demanda nos serviços públicos de educação e

saúde, mas também à lógica da ocupação espacial ditada pelo capital. Isso implica

afirmar que, coube a nascentes organizações, e aqui destacamos prioritariamente as

brasileiras, exercerem funções e ocuparem espaços que as congregações imigradas

não puderam ocupar, ou pelo reduzido número de religiosas ou porque não

quiseram assumi-las por já terem conquistado seus espaços. Muitas congregações

jovens, inclusas as brasileiras, conseguiram construir sua história aceitando obras

que as congregações imigradas não desejavam para si ou, ainda, que haviam

rejeitado.

Maria Aparecida Custódio identificou que, a possibilidade de crescimento da

Congregação das Filhas da Imaculada Conceição surgira justamente quando elas

aceitaram administrar o Asilo Sagrada Família, na região do Ipiranga, em São Paulo,

que fora rejeitado pela Congregação das Pequenas Irmãs da Divina Providência. Tal

fato se deu porque o idealizador da obra que as contratara, Vicente de Azevedo, não

46 Como exemplo, citamos o caso da Congregação Missionárias de Jesus Crucificado, fundada em Campinas, em 1928. Dois motivos históricos ilustram a presença do modelo romanizado em sua fundação. Apesar de ser claro que Maria Villac tenha tido um forte papel na fundação, Dom Francisco de Campos Barreto é ainda hoje considerado o seu fundador. O segundo fato é que, apesar de ter o mérito de ser a primeira a aceitar negras, a organização o fez mantendo-as na classe das oblatas. Isso não impediu o seu envolvimento com os movimentos populares, com a criação de nove cursos de Serviço Social, com o movimento de renovação da vida religiosa, tendo sido uma das principais articuladoras da fundação da Conferência dos Religiosos do Brasil e do Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais. Em razão de sua história, é uma das congregações religiosas mais atuantes e com maior número de mulheres negras e indígenas (ALVES, 2008; BEOZZO, 2009; MUNIZ; SADER; SILVA, 2017; SILVA, 2016).

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cumprira o acordo de lhes enviar os subsídios econômicos necessários para a

manutenção do empreendimento. Sentindo-se desassistida e não querendo ou não

podendo investir recursos econômicos próprios, a organização italiana abandonou

aquela obra sem maiores dificuldades. Imediatamente, tal empreendimento foi

ofertado ao jesuíta responsável pela congregação brasileira, que vislumbrou a

possibilidade da pequena organização, que ele fundara, sair do Rio Grande do Sul e

vir para São Paulo (CUSTÓDIO, 2014). Vemos, portanto, o influxo de regras

socioeconômicas nas relações eclesiais, que via como natural uma congregação

imigrante negar-se a assumir uma obra em precárias condições e a mesma ser

oferecida a uma brasileira. Parecia natural a escalada que as congregações

consideradas outsiders deveriam trilhar para alcançar o seu sucesso. Considerando

que a sociedade era regida por tais veladas regras, houve um implícito

consentimento da organização, manifesto em sua aceitação.

Ao ter presente que as primeiras congregações brasileiras nasceram a quase meio

século da institucionalização do modelo congregacionista, seria de supor que elas

tivessem sido beneficiadas pelos avanços conquistados no século XIX. Entretanto,

como já destacamos, a reforma da vida religiosa, ocorrida entre 1900 e 1917, que

conventualizou as congregações, fez com que as organizações emergentes ou

fundadas naquele período fossem regidas pelo direito diocesano, implicando ter, no

bispo, o seu responsável e guardião. Ainda considerando que tal exigência tinha

como objetivo o amadurecimento da organização feminina, o fato de colocá-la sob a

tutela religiosa do bispo, era também dotá-lo de poder quase irrestrito sobre ela, a

ponto de decidir os rumos a serem tomados.

Ao compararmos as congregações nativas com as imigradas, julgamos que, mesmo

durante a romanização, as superioras gerais estrangeiras gozavam de maior poder

que as superioras das organizações brasileiras, o que parecia, naquele momento da

pesquisa, um preconceito com sua origem autóctone. Com o desenvolvimento da

pesquisa, constatamos de que o problema residia na sua condição canônica, e não

na sua origem. As congregações que gozavam de reconhecimento pontifício eram

desobrigadas de prestar contas à autoridade eclesial, a não ser em questões morais,

sendo, por isso, mais livres em relação àquelas regidas pelo direito diocesano. Tal

fato independia de sua nacionalidade.

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Analisando as informações contidas no Bando de Dados, notamos que, até 1947,

todas as congregações brasileiras estavam sob a jurisdição do bispo diocesano.

Apresentamos alguns aspectos das duas primeiras organizações que receberam tal

reconhecimento naquele ano e destacamos o impacto das ações episcopais, as

quais, apesar de terem contribuído para a obtenção do direito pontifício, causaram

graves traumas na estrutura da organização: a Congregação das Irmãs do

Imaculado Coração de Maria e a Congregação das Irmãs da Imaculada Conceição

(BANCO DE DADOS, 2017).

O caso da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria é bastante

emblemático. Apesar de ser considerada a primeira fundação brasileira, ela foi

idealizada na Áustria, e suas primeiras religiosas eram europeias47. A oficiosa

agremiação religiosa, após empreender viagem rumo às Américas, teria chegado,

por acaso, ao Brasil em 1849 e se fixado no Rio de Janeiro, onde fundou uma

escola, sem muito sucesso. Buscando novas frentes, em 1860 fundou uma segunda

casa e uma escola na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, onde teria obtido

desenvolvimento maior que o grupo do Rio Janeiro. Apoiadas pelo bispo, Dom

Cláudio Ponce de Leão, o segundo grupo teria acolhido a sugestão de transferir a

sede da organização para aquela cidade e solicitado que ele a instituísse

canonicamente, à revelia da comunidade fundadora que estava na capital do País.

Ao ser comunicado sobre a fundação e receber a Constituição dada pelo bispo, o

grupo primitivo sentiu-se traído e se negou a aceitar outras regras que não fossem

as poucas normas ditadas pela suposta fundadora, que falecera em 1873. Um clima

cismático teria se instalado entre os dois grupos, pois o mais antigo se apegava ao

ideal proposto pela fundadora e o outro grupo se apresentava fiel às novas

orientações da Igreja emanadas pelo bispo.

Tudo indica que as mudanças ocorridas depois da morte da fundadora, as condições

sociais, o aumento no recrutamento e a consequente renovação de lideranças

formadas pela romanização, acabaram por definir a mudança da sede do Rio de

janeiro para o Rio Grande do Sul, onde pôde alcançar grande sucesso educacional,

47 Agueda Bittencourt (2018) pergunta se uma congregação fundada no Brasil, com conteúdo, arquitetura, regras estrangeiras pode ser considerada brasileira? Ela mesma aponta que o debate teórico sobre a circularidade cultural deve ser abordado pela Antropologia e pela Sociologia.

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permitindo expandir-se para outras regiões48. Neste jogo de forças, pesou a figura

do bispo que, vislumbrando o serviço das freiras em sua diocese, tratou de instituí-

las canonicamente como congregação, dando-lhes as regras e ditando os rumos.

Não resta dúvida de que a organização cresceu, mas isso só foi possível porque o

grupo que estava na cidade de Pelotas, ainda que sem o consentimento do grupo

primitivo, avaliou que as condições oferecidas pelo bispo lhes eram convenientes,

como de fato foram. Tendo alcançado sucesso, as sucessivas releituras daquele fato

tiveram a função de evidenciar como os meios justificavam os fins e que tudo fora

feito para o bem da organização.

O segundo exemplo diz respeito à Congregação das Irmãs da Imaculada Conceição,

já citada aqui, quando se viu envolvida em um projeto eclesiástico. Ela fora fundada

a partir de um pequeno hospital no Sul do País e ali teria permanecido não fosse a

ação do jesuíta, diretor espiritual, que a convenceu a vir para São Paulo. Padre Luiz

Maria Rossi promoveu as devidas articulações com Dom Duarte Leopoldo e Silva e

com Vicente de Azevedo, católico tradicionalista, membro da Irmandade do

Santíssimo, proprietário de terras na região do hodierno bairro do Ipiranga49. Este

havia idealizado a criação de um complexo de obras católicas e diversas benfeitorias

naquela região, que nada mais eram do que um investimento na urbanização da

cidade, o qual reverteria em dividendos econômicos e simbólicos para si, para o

bispo e para a Igreja.

Neste jogo de interesses, havia também o desvelo religioso da pequena agremiação

de religiosas, que aspirava a se converter em congregação religiosa. A condição

passava pela prestação de serviço no Asilo idealizado e subvencionado pelo

filantropo, mas, fundamentalmente, pela ingerência política e administrativa do bispo

na nova casa. Em 1909, apoiado no direito canônico, o eclesiástico impôs um

projeto de reforma da organização, cuja primeira exigência fora a substituição da

fundadora e superiora, como forma de neutralizar as resistentes religiosas.

48 Essas informações, segundo a ordem citada, estão disponíveis em site da própria organização religiosa: <https://www.icm-sec.org.br/galeria-das-diretoras-gerais/1958-2/>; e <https://www.icm-sec.org.br/galeria-das-diretoras-gerais/1963-2/> . Acessos em: 02 jun. 2017. Paula Leonardi, em sua dissertação de mestrado, analisa a vinda desta congregação para a cidade de Rio Claro, onde foi fundado o Colégio Puríssimo Coração, dedicado a educar a elite da cidade (LEONARDI, 2002). 49 Pelos serviços prestados à Igreja, respondendo a solicitação do bispo de São Paulo, Pio XI, em 1935, concedeu a Vicente de Azevedo o título de Conde Romano (CUSTÓDIO, 2014).

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Envolvida em uma trama na disputa de poder, Madre Paulina, aquela que viria a ser

a primeira religiosa canonizada no Brasil, foi afastada do governo e transferida para

o Sul do País. A Congregação cedeu e o bispo pôde implantar o seu projeto

romanizado, fazendo-a crescer e expandir-se. Apesar disso, não podemos afirmar

que as freiras tivessem aceitado tudo passivamente; “permanecendo outras no

interior do sistema”, algumas delas buscaram manter vivo o ideal primitivo, o qual

pode ser resgatado pelas releituras promovidas no período pós-concilio

(CUSTÓDIO, 2014).

A conventualização das congregações, ao dar-lhes uma formatação comum, um

conjunto de regras e leis canônicas, bem como uma metodologia de ação,

configurou-se na implantação de uma expertise construída pela Igreja e reproduzida

pelo movimento congregacional no mundo todo. A forte disciplinarização, ocorrida

mediante a ingerência dos bispos nas congregações submetidas à jurisdição

diocesana, tolheu-lhes suas singularidades e o desenvolvimento natural de cada

organismo. Neste aspecto, fica claro que o excessivo controle do bispo não se dava

apenas sobre as congregações brasileiras, mas sobre todas aquelas que ainda não

possuíam o status pontifício.

A questão não era, então, a distinção hierárquica entre congregações femininas

imigradas e brasileiras, mas uma política religiosa de controle sobre aquele

movimento feminino que, no século XIX, segundo Langlois, feminizou a Igreja

europeia e, no século XX, a brasileira. Ainda que a maciça presença das

congregações, imigradas ou brasileiras, tenha contribuído para romanizar as

práticas religiosas e catolicizar o País, não se pode esquecer que a tenacidade de

muitas freiras era considerada como obstáculo para os bispos realizarem seus

projetos, os quais julgavam ser necessário, a todo momento, deixar clara a função

subalterna delas.

7.1. As congregações religiosas brasileiras derivadas dos recolhimentos

No início do século XX, em razão do predomínio da romanização e da cultura

romanizada, essencialmente disseminada pelo clero, grande parte das organizações

religiosas femininas informais e brasileiras passou por reformas religiosas cujo

objetivo era enquadrá-las às diretrizes da Santa Sé, o que nos fez buscar indícios e

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pistas sobre organizações anteriores a esse período.

No processo de compreensão do Banco de dados, identificamos uma organização

que atribui sua fundação ao ano de 1758, portanto, antes do movimento

congregacional europeu, a Congregação Nossa Senhora da Glória. Entretanto,

analisando os dados alusivos à sua condição canônica, verificamos que ela foi

instituída como Congregação, apenas em 1963, sendo, até o presente momento,

regida pelo direito diocesano. Trata-se, do remanescente do Recolhimento da Glória,

de Recife, fundado oficiosamente no século XVIII e que só adquiriu status eclesial no

século XX. Compreender o porquê uma instituição com 205 anos foi deixada de lado

pela tradição eclesiástica motivou a pesquisa sobre a possibilidade de outras

congregações derivadas de recolhimentos. Ao mesmo tempo, nos perguntávamos

sobre o destino de outras dessas instituições coloniais que não aceitaram ser

convertido em congregação religiosa. Atentos a possíveis indícios, encontramos a

informação de que a Congregação de Nossa Senhora dos Humildes, fundada em

1927, em Salvador, tem, dentre suas responsabilidades, a administração do Museu

dos Humildes, cujo nome nos fez pesquisar a existência de alguma ligação entre a

Congregação e o Museu, ambos chamados “dos Humildes”. Verificamos que, tal

qual na organização recifense, 1927 é a data em que o grupo herdeiro da tradição

remanescente do Recolhimento Nossa Senhora dos Humildes, fundado em 1813, foi

incorporado às estruturas da Igreja como Congregação Nossa Senhora dos

Humildes. A busca de compreensão dos indícios encontrados no Banco de dados e

a relação com o tema desta tese fizeram com que voltássemos nossa atenção para

a historiografia sobre os “recolhimentos”.

Os recolhimentos foram organizações de herança cultural religiosa portuguesa, que

se caracterizavam por referir-se a espaços de vida religiosa marginal e alternativos

aos conventos e mosteiros reconhecidos pelo Padroado. Tais espaços foram criados

por leigos e padres para recolher mulheres devotas a um estilo de vida religiosa em

comunidade e que não puderam ou não quiseram ingressar em conventos

tradicionais autorizados pela Coroa; ou ainda, para o confinamento de mulheres

desonradas ou impedidas de se casar. Com a promulgação do Direito dos

Religiosos, incluso no CDC de 1917, os recolhimentos deixaram de existir, tendo

sido alguns de seus remanescentes incorporados por ordens ou congregações e

outros, extintos.

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O recorte temporal para o estudo historiográfico dessas instituições se volta para o

período colonial, quando surgiram, floresceram e, em sua maioria, despareceram.

Ao que parece, segundo nossas buscas até o presente momento, não há pesquisas

aprofundadas sobre o desaparecimento dos recolhimentos. A principal referência

continua sendo a obra Honradas e devotas: mulheres da Colônia (1993). Todavia,

de forma bastante circunscrita, pois seu recorte geográfico é a região sudeste. Leila

de Algranti Mezzan, a autora, se dedicou a compreender o surgimento dos

recolhimentos como espaço para a vida religiosa oficiosa e o seu papel na colônia,

contrapondo-os à vida religiosa oficial das Ordens Religiosas. Devido ao seu recorte

temporal, Algranti apenas indicou que grande parte dos recolhimentos da região

sudeste desapareceu ou foi incorporada por ordens religiosas, fazendo com que a

antiga instituição desaparecesse50. Dentre os incorporados em Ordens religiosas,

ela cita o Recolhimento de Santa Teresa, que passou a fazer parte da Ordem

Carmelita, os Recolhimentos de Macaúbas e o da Luz da Divina Providência, que

foram incorporados à Ordem das Concepcionistas (ALGRANTI, 1993).

Através do cruzamento de bibliografia e de indícios recolhidos em sites das

organizações religiosas femininas, verificamos como o projeto romanizado atingiu os

recolhimentos paulistas, pois, com a justificativa que deveriam reformá-los segundo

as leis da Igreja, os bispos confiavam sua direção às Ordens religiosas. Em 1913, o

arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo, entregou o Recolhimento de Santa

Tereza, fundado no século XVII – que em sua origem fora o Recolhimento do

Desterro –, às religiosas do convento carmelita de Santa Teresa, do Rio de Janeiro

para reformá-lo segundo aquela espiritualidade e adequá-lo à romanização51. Em

1929, o mesmo Dom Duarte agregou o Recolhimento de Nossa Senhora da

Conceição da Divina Providência, em São Paulo, conhecido como Mosteiro da Luz,

cuja fundação data do final do século XVIII e está ligada a Frei Antônio de Sant'Ana

Galvão, à Ordem da Imaculada Conceição, que passou a administrar o convento

tornando-o uma fundação vinculada àquela Ordem espanhola. No mesmo ano, o

50 Abordar a forma como instituições europeias assumiram as instituições brasileiras “Recolhimentos”, inserindo-as na tradição religiosa da Ordem, as razões do interesse dos bispos brasileiros e das respectivas ordens por determinados recolhimentos e o modo como se apropriaram de sua história, de seus religiosos e de seus bens constitui interessante tema de pesquisa. 51 Sobre o Mosteiro de Santa Teresa, as informações estão disponíveis em: http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/regiaoipiranga/paroquias/mosteiros-igrejas-historicas-oratorios-da-regiao-ipiranga/capela-santa-teresa-de-jesus.

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primeiro bispo de Sorocaba, Dom José Carlos de Aguirre, conseguiu da Santa Sé

que o Recolhimento de Santa Clara, fundado em 1811 e que fora reformado por Frei

Galvão, fosse canonicamente transformado em Mosteiro e confiado à mesma ordem

espanhola52.

A pesquisa sobre as Congregações religiosas instituídas a partir de recolhimentos

nordestinos foi muito profícua. Comecemos pelo baiano. Conforme já citamos, nosso

primeiro contato com a história do Recolhimento Nossa Senhora dos Humildes se

deu através de uma dissertação em História da Arte sobre objetos religiosos

conservados no Museu do Recolhimento dos Humildes, em Santo Amaro, Bahia53.

Como o escopo da pesquisa foi sobre as maquinetas54 produzidas pelas religiosas, a

autora se restringiu a indicar que aquele recolhimento foi fundado pelo padre Inácio

Teixeira dos Santos e Araújo, em 1813, com o apoio da elite, e teria sido um dos

principais centros de educação feminina da Bahia e que teria sido “elevado” a

Congregação, com o mesmo nome, em 8 de dezembro de 1927, por Dom Augusto

Álvaro Silva”. Segundo a autora, “isso aconteceu em virtude das reformas

eclesiásticas empreendidas pela Igreja católica” (SILVA, 2010, p. 76-110).

Avançando em nossa pesquisa, encontramos outros dois estudos sobre outro

recolhimento baiano, cuja história esta vinculada a Congregação de Nossa Senhora

dos Humildes, pois ambos estavam sob a jurisdição do mesmo arcebispo55. Trata-se

do Recolhimento de Bom Jesus dos Perdões, que, ao sofrer o enquadramento

52 Sobre o mosteiro da Luz, as informações estão disponíveis em: <http://www.mosteirodaluz.org.br/inicio/mosteiro-da-luz/>. Sobre o Convento de Santa Clara, as informações estão disponíveis em: http://www.diariodesorocaba.com.br/noticia/219706 Acessos em: 18 ago. 2017.

Leila de Algranti Mezzan também identificou a interferência do clero na tentativa de romanizar os Recolhimentos e/ou entregar a direção deles às Ordens religiosas. Segundo a autora, Frei Galvão – que se tornaria o primeiro santo brasileiro –, teria convencido três recolhidas do Recolhimento da Divina Providência, que já estava bem avançado na reforma, a se transferirem para o Recolhimento de Sorocaba, para implantarem a vida monástica (ALGRANTI, 1993). A partir destes indícios é possível afirmar que a ação de Frei Antônio de Galvão de convidar monjas concepcionistas para reformar os Recolhimentos de São Paulo e Sorocaba contribuiu para que a referida Ordem fosse escolhida pelos bispos para assumi-los, oficialmente, em 1929. 53 Trata-se da dissertação: Menino Jesus do Monte: arte e religiosidade na cidade de Santo Amaro da Purificação no século XIX, de Edjane Cristina Rodrigues da Silva. 54 Segundo a tradição portuguesa “maquinetas” são pequenos oratórios feitos de papel dourado, com filetes de madeira e vidro onde se deposita o Santíssimo sacramento e em seu interior se colocava pequenas imagens religiosas, especialmente do menino Jesus (SILVA, 2010). 55 Trata-se das dissertações: O episódio dos perdões e a restauração católica na Bahia, de Patrícia Mota Sena e A Igreja Católica na Bahia, fé e política, de Solange Dias Santana Alves, ambas apresentadas na Universidade Federal da Bahia, Salvador

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canônico, resistiu e se tornou centro de uma celeuma que ilustra bem o interesse

eclesiástico sobre a vida religiosa feminina. Depois de ter convertido o Recolhimento

Nossa Senhora dos Humildes em congregação religiosa, o arcebispo de Salvador

teria determinado, em 1936, que as duas últimas religiosas e os bens do

Recolhimento de Bom Jesus fossem incorporados a esta última organização. Tudo

indica que, apesar do CDC ter determinado a extinção das organizações oficiosas

que não aceitaram se converter em congregação religiosa, muitas delas continuaram

a existir como se nada tivesse acontecido. Nos dois casos citados foi o arcebispo

baiano que determinou a mudança. Não obstante, ao contrário da submissão que o

arcebispo encontrara nas “freiras” do antigo Recolhimento de Nossa Senhora dos

Humildes, a regente Maria José de Senna não cedeu às suas pressões e acabou

sendo deposta da função religiosa e excomungada56. Na tentativa de manter seus

direitos, a regente deposta acabou movendo um processo civil contra o arcebispo,

alegando que o Recolhimento era uma instituição civil com fins religiosos e, portanto,

os seus bens não poderiam ser transferidos para a instituição religiosa, ligada à

arquidiocese, como determinara o arcebispo.

Em tese a ex-regente estava correta, pois se a Igreja não permitira que após a

promulgação do CDC de 1917 o Recolhimento continuasse a existir, reiterando que

seus membros eram leigos, o que parece não ter provocado mudança na vida das

“religiosas”. Da mesma forma, se até aquele momento a Igreja não reclamara a

posse daqueles bens, ficava claro que ela não os reconhecia como seu. No entanto,

o que ocorreu foi justamente o contrário. O arcebispo, provavelmente valendo-se do

sentimento religioso de algumas ex-recolhidas que aspiravam ser reconhecidas

oficialmente como religiosas57, impôs que as últimas também o fizessem, com a

esperança que os bens fossem incorporados na organização o que ele instituíra em

1927.

Enquanto a disputa ficou restrita à justiça baiana, a dirigente do Recolhimento,

defendida e apoiada por advogados contrários às reformas do arcebispo, ganhava a

56 O termo “regente” era utilizado para designar a superiora do Recolhimento, que agia em consonância com o bispo diocesano. 57 Cabe destacar que a reforma religiosa eclesiástica contou com o concurso das próprias religiosas do Recolhimento. Solange Dias Santana Alves, ao também pesquisar sobre o mesmo Recolhimento, cita um autógrafo de 1934, no qual uma jovem religiosa de nome Beatriz escreveu ao arcebispo, pedindo-lhe autorização para deixar o Recolhimento e ingressar na Congregação Nossa Senhora dos Humildes (SANTANA ALVES, 2003).

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causa. Entretanto em 1942, graças à conjuntural aliança entre setores da Igreja e o

governo de Getúlio Vargas, o arcebispo recorreu ao Tribunal de Justiça Federal, que

acabou dando ganho de causa à Arquidiocese de Salvador, pois não era

interessante naquele momento uma indisposição do Estado contra a Igreja (SENA,

2005: SANTANA ALVES, 2003). Vemos, neste fato, o quanto a velada aliança entre

Estado e Igreja ainda era forte, da qual os bispos souberam se servir para romanizar

as organizações que estavam sub sua jurisdição eclesiástica.

Para concluir nosso raciocínio, ao analisar o segundo Recolhimento nordestino,

citado acima, recorremos, para isso, à história do que deve ter sido o destino do

último Recolhimento pernambucano e da análise realizada por Eduardo Hoonaert.

Trata-se do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, em Recife, que teria sido

fundado por volta de 1758 para abrigar mulheres que tinham a missão de prestar

assistência religiosa e depois foram convertidas em professoras. A história do

Recolhimento foi silenciada até o ano de 1963, quando o bispo dom Carlos Gouveia

Coelho converteu o que dele restou em Congregação religiosa de direito diocesano,

mantendo o mesmo nome:

Dom Carlos Gouveia Coelho, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Arcebispo Metropolitano de Olinda e Recife, desejando constituir em Congregação Religiosa de Direito Diocesano a Pia Sociedade de nome "Irmãs de Nossa Senhora da Glória", há muitos anos fundada nesta Arquidiocese de Olinda e Recife, recorremos à Sagrada Congregação dos Negócios das Sociedades Religiosas de conformidade com o cânon 492 do Código de Direito Canônico. (HOONAERT, 1983, p. 72)

Se considerarmos o fato, já citado, de que os bispos romanizados estiveram atentos

ao que não se enquadrava nas diretrizes do CDC de 1917, e na consequente

extinção canônica do Recolhimento, pode-se supor que os sucessivos dirigentes da

arquidiocese de Olinda e Recife, da primeira metade do século XX, não viram

necessidade de transformá-lo em congregação, nem, especialmente, de garantir o

status canônico de religiosas a que aquelas mulheres teriam direito, pois, com a

extinção do Recolhimento, elas eram vistas pela Igreja como leigas, deixando-as à

própria sorte.

Entretanto, na lógica do que temos apresentado neste estudo, concluímos que, se o

grupo religioso não desapareceu, foi porque ele conseguiu coexistir e até sobreviver

aos interesses da romanização. Por outro lado, é possível pensar que, se ele não

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atraiu a atenção dos bispos e nem de congregações religiosas imigrantes, desejosas

de ocupar seus espaços sociais, parte dos motivos pode ser buscado no fato de ele

não ter importância socioeconômica, o que lhe permitiu uma sobrevida até às portas

do Concilio Vaticano II, quando as discussões sobre a vida religiosa foram

retomadas, e alguns grupos tiveram seu status canônico resolvido, bem como o de

seus membros. Dessa situação emergiu a Congregação de Nossa Senhora da

Glória, em Recife58.

Eduardo Hoonaert, um dos principais articuladores da Comissão de Estudos da

História da Igreja na América Latina e Caribe (Cehila)59, ao buscar reconstruir essa

história, vê, na atitude de dom Carlos Gouveia Coelho, uma reparação histórica

tardia; segundo ele, de cunho antropológico, pois aquelas mulheres teriam se

mantido fiéis aos propósitos em que acreditavam, na vida religiosa, mesmo durante

o período em que a Igreja lhes negou tal direito. Em razão disso, ele nomeou seu

artigo: “De beatas a freiras: Evolução histórica do Recolhimento da Gloria”.

Sabendo que o Cehila sempre assumiu posição crítica em relação à romanização,

soaria estranho Hoonaert fazer apologia da conventualização, o que, de fato,

inexiste em seu texto. Entendemos, então, que a palavra “evolução” foi

indevidamente utilizada, pois o texto não apresenta uma linearidade, mas uma

narração sobre os percalços seculares vividos por aquela organização, cujos

membros acabaram se submetendo à autoridade eclesial. Para o referido autor, o

extemporâneo reconhecimento eclesial repararia o direito religioso daquelas

mulheres de emitir o voto religioso, que sempre viveram, e o direito de retomar as

fontes que motivaram o surgimento do Recolhimento, segundo o que foi definido no

Decreto Perfectæ Caritatis, do Concilio Vaticano II (HOONAERT, 1983). De forma

58 Cabe destacar que, dentre os grupos religiosos considerados como extintos pela Reforma de 1917, muitos escolheram não se converter em congregação e se mantiveram como grupos periféricos, alimentando um estilo próprio de vida religiosa, que se negava a se enquadrar nos modelos oficiais. Alguns desses grupos optaram por se constituir como Institutos Seculares, os quais foram reconhecidos em 1947. Tal fato pode ser interpretado como o reconhecimento de que a Igreja fora inflexível no enquadramento imposto pelo CDC de 1917. Entretanto, destacamos que, quando se verifica que os Institutos Seculares são uma tentativa de diálogo com a sociedade moderna na mesma perspectiva da Ação católica, poderíamos pensar que eles são uma nova forma da Igreja se fazer presente na sociedade cada vez mais secularista. 59 O CEHILA, Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina e no Caribe, assim se define: “somos uma rede interdisciplinar internacional, formadas por pesquisadores que buscam regatar a dimensão histórica do cristianismo na América Latina e Caribe em toda a sua diversidade”. Sua atuação ocorreu de 1970 a 1985. Ainda hoje atua, mas em escala diminuta. Disponível em: http://www.cehila.org/cehila-brasil.html. Acesso em: 02 set. 2017.

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semelhante, a pesquisadora Edjane Cristina Rodrigues, talvez, por se ocupar pouco

da história do Recolhimento Nossa Senhora dos Humildes, em Salvador, tenha

cometido o mesmo equívoco que Hoonaert, quando afirmou que a organização foi

“elevada” à congregação em 1927.

Considerando que a transformação dos recolhimentos em congregações religiosas

fez parte das reformas eclesiásticas dos bispos romanizados, entendemos que eles

não foram elevados, antes, tiveram suas singulares histórias interrompidas e foram

convertidas em organizações institucionalizadas para executarem projetos que não

foram eleitos por aquelas mulheres. Cabe destacar, que especificamente nesta

última organização, as crises advindas das mudanças eclesiásticas interromperam a

tradição artística secular, que dava identidade ao Recolhimento Nossa Senhora dos

Humildes. Tendo sido instituídas como congregação, as religiosas passaram a se

dedicar a atividades educativas com órfãos e, na década de 1930, prestavam

serviços domésticos no seminário diocesano. Somente em 1980, com o apoio do

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, as religiosas puderam retomar

a sua história quando fundaram o Museu Nossa Senhora dos Humildes, onde

conservam a importante coleção de “maquinetas” (LOSE; MAZZONI, 2016)60.

Esta discussão se reveste de suma importância, pois, a maioria das reflexões sobre

as arbitrariedades dos bispos contra as organizações leigas com funções religiosas,

como as irmandades e as confrarias do século XIX, se refere majoritariamente

àquelas masculinas. A ausência de estudos sobre as organizações e instituições

femininas demonstra o domínio sobre a escolha de instituições masculinas como

objetos de pesquisa, mas também o sucesso da romanização que erradicou a maior

parte dos sinais da presença da mulher na cultura religiosa brasileira daquela época.

Entendemos que o movimento da conventualização acabou servindo aos interesses

dos eclesiásticos brasileiros, fazendo com que bens acumulados durante o

padroado, sob a ação de organizações leigas femininas, passassem ao domínio da

Igreja. Da mesma forma que ordens e congregações masculinas se prestaram a

neutralizar, desqualificar e substituir a liderança dos leigos nas irmandades que

controlavam, santuários e igrejas, ordens religiosas e congregações femininas,

60 No ano de 2016, foram publicados os manuscritos do Recolhimento dos Humildes, que muito contribuem para a história. Os documentos registram que o referido Recolhimento, no século XVIII, possuía um patrimônio invejável, com o qual sustentava todas as recolhidas (LOSE; MAZZONI, 2016).

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desejosas de expandir suas obras, aceitaram reformar recolhimentos, o que fez

desaparecerem muitas dessas instituições.61 Portanto, a conventualização atingiu

não apenas organizações europeias, mas também brasileiras, as quais tiveram suas

histórias interrompidas e uniformizadas pela clericalização promovida pela

romanização. Este processo desconsiderou as experiências da vida religiosa local,

classificando o Brasil como tabula rasa, como se a história delas tivesse nascido no

século XX.

61 A Congregação das Irmãs de Santa Dorotéia, ligada à Companhia de Jesus, convidada a fundar a primeira casa em Olinda em 1866, recebeu do bispo Dom Manuel do Rego Medeiros a missão de reformar o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, em Recife (ALMEIDA, 2005).

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CAPÍTULO II

A institucionalização de uma proposta feminina

Este capítulo analisa as condições que permitiram a fundação, ocorrida na cidade de

Piracicaba, da comunidade religiosa ligada à Ordem Terceira, o seu breve período

de existência, a sua conversão como Congregação no ano de 1900 e o seu

desenvolvimento como organismo institucionalizado a serviço da romanização,

quando construiu o seu patrimônio material e espiritual. Para tanto, nos debruçamos

sobre o desenvolvimento socioeconômico e religioso das cidades de Piracicaba e

Campinas, onde nasceu e se desenvolveu a referida agremiação feminina; a

participação dos bispos Dom João Batista Correa Nery e Dom Barreto, primeiro e

segundo bispos de Campinas, bem como sobre a questão jurisdicional entre estes e

os frades capuchinhos, que também se julgavam responsáveis pela organização

feminina; e, ainda, sobre a metodologia utilizada por ela para construir seu

patrimônio. As principais fontes analisadas neste capítulo foram os Relatórios

enviados aos dois bispos de Campinas, especialmente as partes que lhes

informavam sobre o crescimento numérico de casas e obras, e, consequentemente,

sobre o seu crescimento patrimonial.

1. As transformações decorrentes da romanização

Como já destacamos no capítulo I, a presença das congregações europeias e o

surgimento das congregações brasileiras se inserem no processo de alinhamento da

Igreja do Brasil com a Santa Sé, iniciado no período do ultramontanismo. Para

implantar a cultura ultramontana, os bispos empreenderam uma série de reformas,

dentre as quais a escolha do seminário como lugar privilegiado para preparar

aqueles que multiplicariam as hostes católicas e assumiriam as futuras dioceses a

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serem criadas (MICELI, 1988)62. Além dessa ação, os bispos trouxeram

congregações masculinas para reformar associações leigas ou irmandades e prestar

assistência religiosa aos imigrantes e congregações femininas, para fundar escolas

e administrar obras assistências e hospitais. Em São Paulo, o bispo, Dom Antônio

Joaquim de Mello, entre os anos de 1850 e 1860, com o apoio da elite monarquista

e ultramontana, empreendeu a reforma no Seminário Episcopal de São Paulo, onde

estudaram vários bispos. Em 1858, ele convidou a Congregação das Irmãs de São

José de Chambery para fundar o colégio Nossa Senhora do Patrocínio, para educar

as filhas da elite paulista da cidade de Itu, e, depois, para assumir também a

condução da Santa Casa da cidade. Anos mais tarde conseguiu que os jesuítas

fundassem, em 1867, o Colégio São Luís, para educar os rapazes. Estes dois

colégios fizeram da cidade de Itu um dos grandes centros educacionais da região

até o final daquele século (MANOEL, 1996; WERNET, 1987).

62 Esta reforma esteve ligada, nem sempre de forma direta, a cinco grandes centros formadores do clero de tradição europeia. O principal foi a Congregação da Missão, fundada em Paris, em 1625, por Vicente de Paulo que a idealizou para promover “missões populares” e para socorrer os pobres e doentes, segundo as orientações do Concílio de Trento. Entretanto, a marca efetiva desta organização se tornaria a formação dos futuros padres principalmente depois da supressão da Companhia de Jesus, em 1773, pois, até então, muitos bispos lhes confiavam a direção de seus seminários. No Brasil, os primeiros padres lazaristas vieram de Portugal, em 1820, a convite de Dom João VI, para assumir a Imperial Casa de Nossa Senhora da Mãe dos Homens e fundaram a sua primeira província brasileira e o Colégio Caraça, que se constituiria em uma escola de excelência, onde estudaram várias personalidades brasileiras, civis e eclesiásticas (PINTO, 2013). Nesse grupo estava o padre Antônio Ferreira Viçoso, escolhido por Dom Pedro II para ser o bispo de Mariana, o qual se tornaria um dos principais defensores do ultramontanismo. Consagrado bispo, Dom Viçoso incorporou os seus confrades nas estruturas de governo da diocese e lhes confiou, em 1853, a direção do seminário de Caraça, em Mariana, no qual implantaram os mais rígidos princípios do catolicismo (COELHO, 2007). Tomando conhecimento da formação oferecida pelos lazaristas, em Minas Gerais, Dom Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo de Salvador, conseguiu que padres lazaristas franceses assumissem a condução da formação dos futuros padres, atraindo a ira do clero regalista, que, após sua morte, em 1860, pôde despedir os padres franceses sem, no entanto, apagar as doutrinas veiculadas pelos formadores (SANTOS, 2014). Dessas duas experiências, os lazaristas foram convidados para assumir vários seminários brasileiros (PINTO, 2013). A segunda referência é a Companhia dos Padres de Saint-Sulpice, fundada na França, em 1646, que se especializou na formação de padres diocesanos. Nesse centro de formação ultramontana estudaram Dom Antônio de Macedo Costa e Dom Vital de Oliveira, os bispos envolvidos na “Questão Religiosa” de 1875; Dom Vital completou sua formação com os Frades Menores Capuchinhos, também na França, e Dom Macedo, na Universidade Gregoriana, em Roma (VIEIRA, 1980). A terceira referência é a Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, da província francesa de Sabóia, que fora encarregada pela própria Santa Sé para dirigir o Seminário Episcopal de São Paulo, em 1856, a pedido de Dom Antônio Joaquim de Melo (WERNET, 1987). A quarta referência foi o Colégio Pio latino-americano, fundado em Roma, em 1858, com o objetivo de preparar padres e futuros bispos para a América Latina. Sua direção foi confiada aos jesuítas. Já no século XX, este colégio inspirou a idealização do Colégio Pio Brasileiro, em 1934, também em Roma, para preparar o clero brasileiro destinado ao episcopado. Para aprofundar sobre as origens e a formação do episcopado brasileiro, conferir o capítulo IV: “As matrizes sociais do episcopado” e o capítulo V: “A produção organizacional dos prelados” da obra A elite eclesiástica, de Sergio Miceli (1988).

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Os bispos Dom Lino Deodato e Dom Joaquim Arcoverde trouxeram novas

congregações masculinas e femininas e intensificaram o trabalho das existentes,

para fortalecer a romanização da Igreja paulista.

Com a Proclamação da República, a Santa Sé pôde criar novas dioceses e constituir

novas arquidioceses63. As três primeiras dioceses elevadas como arquidioceses no

período republicano foram a de Mariana e a de Belém do Pará, em 1906; e a de São

Paulo em 1908. Essa última foi desmembrada em cinco novas dioceses: Taubaté,

Botucatu, Ribeirão Preto, São Carlos e Campinas, da qual fazia parte a cidade de

Piracicaba, berço da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria.

No final da segunda metade do século XIX, a região do Oeste paulista, que

compreendia, de um lado, o território de Campinas até a região de Ribeirão Preto, e,

de outro, de Itu a Sorocaba, mereceu especial atenção da Santa Sé por dois motivos

complementares: o desenvolvimento econômico e a imigração italiana. A riqueza

produzida pelas plantações de café, na terra roxa do Oeste paulista, lançara a região

no cenário político brasileiro, de onde emergiram políticos ligados ao Partido

Republicano. Se, de um lado, o Clube Republicano no Rio de Janeiro lançou, em

1870, o Manifesto a favor do fim da Monarquia, no interior paulista, mais

especificamente em Itu, os republicanos paulistas, organizados em uma grande

“Convenção”, fundaram, em 1873, o “Partido Republicano Paulista”, que tomaria

importante papel na República Brasileira.

Já nas primeiras décadas do século XIX, a saída encontrada para suprir a falta de

mão de obra, decorrente da abolição da escravatura, foi a imigração de

trabalhadores estrangeiros, que demandou longas discussões políticas entre os

defensores da imigração de protestantes, para contrabalançar o domínio católico, e

os defensores da imigração de católicos, justamente para garantir o domínio da

Igreja. O crescimento econômico do Estado de São Paulo, associado ao processo

de branqueamento da população por meio da presença dos italianos, foi

fundamental para a construção da ideologia do nacionalismo brasileiro com fortes

matizes paulistas64. Para além da valorização da raça branca, da devoção austera

63Até então havia, no Brasil, apenas duas arquidioceses: Salvador, de 1676, e Rio de Janeiro, de 1892. 64Wlaumir Doniseti de Souza, ao estudar a ação da Congregação dos Missionários de São Carlos Borromeo, identificou a convergência de interesses da Igreja Católica e do Império brasileiro na

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ao trabalho e da disciplina da moral católica, se destacava a superioridade do estado

de São Paulo como condutor dos destinos da nação, em função da bravura e da

dedicação de seu povo ao trabalho, tão bem expressas na divisa “NON DVCOR

DVCO”, do brasão da cidade de São Paulo65.

Na região de Campinas e Piracicaba, as elites cafeicultora e açucareira, divididas

em monarquistas e liberais, discutiam, por meio da imprensa, questões ligadas ao

desenvolvimento do capital, da substituição de mão de obra escrava, do progresso,

da escolarização, entre outras. Não por acaso, os dois primeiros presidentes civis

serem da região: Prudente de Moraes, da cidade de Piracicaba, e, depois, Campos

Sales, da cidade de Campinas. Nesta última, em 1872, ligando-a à Jundiaí,

instalava-se a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que, três anos mais tarde,

chegaria a Rio Claro. Paralelamente, foram dados os primeiros passos para criação

da Companhia Mogiana, que ligaria Campinas a Minas Gerais.

Com o maior índice populacional depois da cidade de São Paulo, Campinas contava

com um acelerado processo de urbanização, custeado pelas riquezas do café, já

havendo, desde 1850, a presença de estrangeiros com predominância de

portugueses e ingleses, e uma pequena colônia de americanos (BASSANEZI, 1998).

Desde 1860 já havia escolas públicas e particulares, e, em 1871, enquanto havia

apenas quatro escolas públicas, o número de escolas particulares chegava a 10; em

1873, chegavam a 15 unidades, entre elas, o Colégio Americano, mantido por

presbiterianos norte-americanos, e, o Colégio Culto à Ciência, fundado pela elite

positivista, mas não havendo uma única escola católica (NASCIMENTO, 1999), o

que indicaria que os filhos da elite estudavam em Itu, no Colégio São Luís, dirigido

pelos jesuítas, ou, a partir de 1885, em São Paulo, no Colégio Coração de Jesus,

escolha dos imigrantes italianos para o projeto de branqueamento da população brasileira e substituição da mão de obra escrava na agricultura. Em minuciosa exposição, o autor aborda a disputa entre deputados liberais, que defendiam a imigração protestante, e deputados conservadores que defendiam a imigração dos italianos. A decisão pendeu para os segundos, considerados mais afeitos ao trabalho agrícola, demonstrando que a elite não estava disposta a investir nas novas formas de riqueza propaladas pela industrialização, pela oferta de subvenção do governo italiano, com o pagamento de passagens aos agricultores que aceitassem deixar a Itália, e pela garantia de assistência religiosa de irmãs e padres, que ajudariam a tornar o Brasil uma grande nação católica (SOUZA, 1999). 65 NON DVCOR DVCO: “Não sou conduzido, conduzo”. Trata-se de uma ideologia ligada ao bandeirantismo colonial e tomou força na Revolução de 1932. O enfraquecimento paulista foi arquitetado para diminuir a força do estado, o único com reais condições de contribuir nos rumos do Brasil, o qual, justamente por isso, sempre tivera pretensões separatistas. Os valores apregoados pela ideologia da paulistaneidade foram assumidos no protejo de construção da cultura nacional (CERRI, 1996).

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dos salesianos. Marcus Levi Bencostta (1999) destaca que Dom Nery, o primeiro

bispo de Campinas, estudou nessa escola em 1874, graças ao apoio de Campos

Sales, na época, diretor do Colégio, e de maçons influentes.

Entre 1889 e 1892, Campinas foi devastada por quatro epidemias de febre amarela,

o que fez o número da população diminuir em 18%. Uma das causas que contribuiu

para que a cidade se recuperasse desse flagelo foi a presença dos imigrantes que,

em 1890, alcançava o número de 7045, quase um quarto da população da cidade

(BASSANEZI, 1998). Nesse período, diante de um grave problema social ignorado

pelas autoridades públicas, surgiram duas iniciativas de cuidados dos órfãos

atingidos pela epidemia, organizadas pela Igreja Católica com o apoio da elite da

cidade. Para o cuidado das meninas, o padre José Joaquim Vieira fundou o Asilo de

Órfãs, em 1890, junto à Santa Casa de Campinas, confiando a sua administração às

Irmãs de São José de Chambery, que mantinham na cidade de Itu um colégio para

formar a elite paulista. Para o cuidado dos meninos, o padre João Nery conseguiu

que o barão Geraldo de Rezende doasse uma propriedade onde fundou, em 1893, o

Liceu de Artes e Ofícios para a educação e a formação profissional dos meninos

pobres.

Percebemos, nesses dois casos, o jogo de interesses envolvendo o clero, a elite e

as duas congregações religiosas, cujo discurso e algumas ações caritativas,

fundamentados na defesa da infância, dos doentes e dos socialmente fragilizados,

acabavam se convertendo em bens simbólicos e econômicos (BOURDIEU, 1974,

1997; FREUND, 2003). A elite, ao financiar a obra, ganhava prestígio social e força

política para comandar os destinos da cidade. Não por acaso, os dois padres

idealizadores dessas obras, por intervenção da própria elite, foram indicados pelo

Império para serem bispos: o padre José Joaquim Vieira se tornaria bispo do Ceará,

em 1874, e o padre João Batista Corrêa Nery, nomeado bispo do Espírito Santo, em

1896 (NEGRÃO, 2002; MESCHIATTI, 2000).

2. A criação da diocese de Campinas

Em 1908, a diocese de São Paulo foi elevada a arcebispado, e seu território foi

dividido em cinco novas dioceses. Campinas foi uma delas. Em sua primeira carta

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pastoral, o bispo Dom João Batista Corrêa Nery fez menção ao empenho de uma

comissão de cafeicultores e eclesiásticos que apoiaram o projeto de Dom José de

Camargo Barros, bispo de São Paulo, para que a cidade de Campinas fosse

escolhida para ser diocese. Tal fato indica que o acordo, entre a elite e a Igreja, não

definiu apenas a cidade sede para a nova diocese, mas também o seu o bispo

(RIGOLO FILHO, 2006).

Dom Nery, formado no seminário episcopal de São Paulo, era um dos bispos mais

jovens e já havia administrado as dioceses do Espírito Santo e de Pouso Alegre.

Seu episcopado foi marcado pelas visitas pastorais, pela construção do seminário,

pela realização do congresso diocesano e por muitas cartas pastorais, através das

quais ele indicava o caminho da romanização. No que diz respeito à presença de

religiosos, constatamos que ele fez uso dessa força eclesial. Em 1918, havia seis

congregações masculinas na diocese, sendo quatro italianas, uma espanhola e uma

francesa; e dez congregações femininas – duas francesas, duas portuguesas, duas

italianas, uma espanhola, uma brasileira, uma austríaca e uma alemã –, as quais

dirigiam escolas e hospitais (BENCOSTTA, 1999, quadros 14 e 15) 66.

Uma das grandes preocupações do bispo de Campinas foi a presença dos

protestantes na diocese. Os presbiterianos norte-americanos, instalados em

Campinas desde 1873, haviam fundado o Colégio Americano; em Santa Bárbara do

Oeste e na Vila Americana, os norte-americanos fundaram igrejas batistas e

idealizavam fundar escolas.

A cidade de Piracicaba, historicamente ligada à produção açucareira, até o início da

segunda metade do século XIX era dominada por uma elite que, apesar de aspirar

às vantagens da economia moderna de urbanizar-se segundo o modelo das grandes

cidades, politicamente continuava defensora dos status quo. Como o Império se

desincumbia de custear grande parte das despesas públicas, esta elite passou a

66 Nesse período existiram, na diocese de Campinas, as seguintes escolas femininas: o Colégio Sagrado Coração de Jesus, da Congregação das Irmãs Calvarianas, na cidade de Campinas; o Colégio Puríssimo Coração de Maria, da Congregação das Irmãs do Coração de Maria, na cidade de Rio Claro; o Colégio Assunção, da Congregação das Irmãs de São José de Chambery, na cidade de Piracicaba; o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, da Congregação das Irmãs Salesianas, na cidade de Araras; e o colégio São Nicolau de Flüe, da colônia suíça, administrado pela Congregação das Irmãs Missionárias Beneditinas, em Helvetia. Quanto às escolas masculinas, apenas os Salesianos mantinham o Colégio Liceu Nossa Senhora Auxiliadora, em Campinas. Além das escolas, a Congregação das Irmãs de São José de Chambery mantinha um Orfanato para meninas, em Campinas; a Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, mantinha orfanatos em Piracicaba e Descalvado e administrava uma creche em Campinas (BENCOSTTA, 1999).

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financiar as instalações de infraestrutura necessárias para o escoamento da

produção. Dessa forma, vários fazendeiros se tornaram acionistas da Companhia

Paulista, para que fosse instalado um ramal da estrada de ferro na cidade,

inaugurado em 1877, e criaram a empresa de Navegação a Vapor para o

escoamento da produção do açúcar via fluvial (TORRES, 2009). Em razão disso, a

elite passou a defender a República, não por desejar um novo regime fundado na

participação popular, mas para garantir que as novas mudanças a beneficiassem.

Assim, o Barão Estevão de Souza Rezende, que fora líder do partido conservador, e

o futuro presidente Prudente de Moraes, que em 1864 assumira a presidência da

Câmara municipal pelo Partido Monarquista, tornaram-se republicanos para

defender seus interesses econômicos (TORRES, 2009).

Entre as décadas de 1870 e 1880, a cidade se modernizou, com a construção da

Santa Casa de Misericórdia, do Hospital de lázaros, da Loja maçônica, a chegada da

iluminação pública, dos primeiros jornais, do teatro, entre outros atrativos urbanos. A

educação, como sinal da modernidade e da riqueza, passou a ser preocupação a

partir de 1875. Entretanto, como em outras cidades, havia apenas três escolas

elementares. Os liberais se empenharam para que fossem fundadas escolas

públicas na cidade, pois entendiam que elas representavam uma aspiração da

sociedade brasileira, desejante de superar as marcas do colonialismo,

especialmente o analfabetismo. De modo bastante semelhante ao projeto

ultramontano, de construir a visibilidade da Igreja, a escola pública também dava

visibilidade aos projetos republicanos (FIGUEROA, 2008). De outro lado, a criação

das escolas particulares foi polarizada pelas disputas políticas e religiosas. Isso

implica dizer que a presença das congregações naquela cidade deve ser vista a

partir de dois projetos: o da elite que se afirmava liberal e o da elite monarquista,

ligada à Igreja católica. Ambos passavam pela discussão sobre a educação de seus

filhos, fato ilustrativo do que acontecia na sociedade brasileira.

Graças aos esforços do vereador Prudente de Moraes, no ano de 1881, chegaram

vários missionários metodistas. O interesse do vereador era aliar uma proposta

educativa moderna, aberta às inovações do capitalismo, para fazer frente aos

fazendeiros, que também idealizavam um colégio para suas filhas. Coube à

missionária educadora Martha Watts, ligada à missão de Santa Barbara e à vila dos

americanos, fundar, no ano de 1883, um colégio com o objetivo de educar as moças

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brasileiras não católicas ou filhas daqueles que rejeitavam a metodologia de ensino

católico, segundo eles, contrária ao liberalismo.

Para fazer oposição aos liberais, a escola católica foi idealizada através da

articulação dos monarquistas católicos, com o apoio da liderança eclesiástica,

contrária à presença dos metodistas, que intermediou junto a Congregação feminina

São José de Chambery, dirigente do colégio Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu, a

fundação de um colégio em Piracicaba, para educar as jovens católicas e filhas dos

monarquistas. Não por coincidência, sua fundação ocorreu em 1883, mesmo ano da

fundação do Colégio Metodista, também localizado na mesma rua: a Rua da Boa

Morte (MESQUITA, 1992; TORRES, 2009). A demora em escolher uma organização

francesa demonstra que não se tratava apenas de abrir uma escola católica

qualquer, mas de uma que fosse capaz de fazer frente ao colégio metodista e,

assim, diminuir sua ascendência na cidade.

3. Os franciscanos em Piracicaba

Dentro do projeto romanizador, a presença de italianos foi uma das justificativas

para os bispos trazerem organizações religiosas italianas a fim de prestar

assistência religiosa aos imigrantes, que chegavam para trabalhar nas fazendas de

café. Três grandes organizações masculinas construíram seus patrimônios material

e espiritual no estado de São Paulo. A Sociedade de São Francisco de Sales,

fundada em Turim, Itália, cujos membros são conhecidos como Salesianos,

chegaram ao Brasil dois anos após a fundação. Dom Lino Deodato, que idealizara a

construção do Santuário Sagrado Coração de Jesus e de uma escola, os convidou

para assumir o colégio Liceu Sagrado Coração de Jesus a fim de atender os filhos

dos cafeicultores e prestar assistência aos imigrantes e a seus descendentes. Em

1896, os salesianos também chegaram a Campinas, convidados a incumbir-se de

uma escola fundada anos antes, para abrigar e educar os órfãos da febre amarela

que assolara a cidade. A Congregação dos Missionários de São Carlos fora fundada

para prestar assistência religiosa aos italianos, que partiam em direção à América.

No Brasil, alguns desses religiosos se fixaram no Paraná, no Espírito Santo e em

São Paulo, substancialmente nos dois últimos estados, onde, inclusive, receberam

subsídios do governo para a manutenção da missão (AZZI, 1987).

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A terceira organização foi a Ordem dos Frades Franciscanos Capuchinhos, da

província italiana de Trento, que chegou ao Brasil dias antes da proclamação da

República e pouco tempo depois, em 1890, se transferiu para a cidade de

Piracicaba, onde fixou sua missão. O registro de algumas correspondências

trocadas entre o superior geral e os frades daquela missão dão provas sobre o

projeto da Ordem e o início dos trabalhos. Segundo carta do responsável pela

missão, datada de fevereiro de 1890, o superior local, Frei Felix, explicava ao

provincial geral a opção por aquela cidade: ela possuía uma população com dez mil

pessoas, e havia outras trinta mil na região; era bem localizada, quase no centro do

estado de São Paulo, e nela havia apenas um padre; era muito religiosa (em função

da presença dos italianos); era muito rica e caridosa, e o bispo havia pedido que ali

se dirigissem, pois a cidade estava quase abandonada e contava com uma igreja e

um colégio protestante (BERTO, 1989).

Tal relato, ainda que hiperbólico, indica que o projeto da província trentina havia sido

muito bem arquitetado, e que a escolha daquela cidade não fora por acaso. Esses

frades vieram para o Brasil, com especial orientação da Santa Sé, para apoiar o

bispo de São Paulo no projeto de catolicizar sua diocese e suplantar qualquer

resquício do catolicismo popular. A missão, ainda, se revestia de um caráter militante

contra os metodistas e os liberais, que rejeitavam a ação dos frades defensores da

Igreja e dos direitos do papado. Isso fez o superior da missão escrever ao superior

geral:

É impossível descrever as calúnias, críticas, ameaças (...) que tivemos de suportar por três semanas nesta bendita cidade. Basta dizer que nesta última missão sofremos mais que em todas as outras que pregamos por três anos nas mais diversas cidades do estado de São Paulo e de Minas Gerais. (BERTO, 1989, p. 30)

Isso também foi confirmado por João Valerio Scremin (2009), ao demonstrar que a

cidade, reduto republicano, maçônico e metodista, lhes oferecia resistência, e,

especialmente, a imprensa lhes fazia sistemática oposição. O principal jornal da

cidade publicava frequentes ataques aos frades, associando-os à monarquia.

Entretanto, este mesmo pesquisador também demonstrou que o apoio social e

econômico recebido pelos frades, dos italianos, e a consequente divulgação da

espiritualidade da romanização, centrada nas devoções europeias, foram muito

maiores que qualquer ameaça sofrida, o que revela as dificuldades descritas pelos

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frades como fruto da livre manifestação do pensamento de um grupo hostil, mas

com força política insuficiente para impedir o projeto da Igreja católica (GIRALDELLI,

1992; LEME, 1994; SCREMIN, 2009).

Com o apoio da elite e dos italianos, em menos de cinco anos os frades

inauguraram a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, que fora construída em terreno

cedido, em 1892, pela municipalidade, por interferência dos vereadores católicos

Manoel Morato de Carvalho, Fernando Ferraz de Arruda e Ricardo Pinto de Almeida

(NASSIF, 2013). A considerar pela rapidez da conclusão do empreendimento, a

posição sociopolítica dos “atores” envolvidos e a designação do orago não deixam

dúvida quanto à convergência dos interesses eclesiásticos de agentes

ultramontanos e do poder estabelecido. Também em 1896, fundaram, em

Piracicaba, a Ordem Terceira Franciscana, para congregar homens e mulheres que

se colocavam a serviço deles.

Segundo a expressão ecclesia semper reformanda, na qual se afirma que a

instituição busca adaptar-se às mudanças do tempo para continuar existindo, a

Igreja reinventava a ideologia do braço secular, para que os leigos realizassem as

ações em que clérigos estavam tendo dificuldades em função da pressão dos

liberais. Considerando os fatos que se sucederam, a fundação de uma organização

de leigos também parece ter sido idealizada para ampliar as bases da organização,

sem que isso atraísse a atenção dos liberais e maçons. Apesar disso, a abertura

dada às mulheres, para que elas também se tornassem terceiras, representou uma

novidade na cidade, pois, o espaço doméstico, a “família”, deixava de ser a única

possibilidade de atuação feminina. Embora extremamente restrito e sob o controle

hierárquico do clero, surgia, em pleno projeto ultramontano, um novo espaço de

atuação para as mulheres, possibilitando novas formas de socialização que, sob

muitos aspectos, contribuíam para a emancipação feminina na sociedade (PERROT,

1994). É dentro dessa perspectiva que vemos a criação de uma associação de

quatro mulheres terceiras, nos mesmos moldes das organizações femininas

marginais da primeira metade do século XIX, que se converteria em congregação

religiosa.

Os frades desejavam, também, construir um convento, mas acabaram,

momentaneamente, recuando devido a dois fatores: o primeiro, a já citada oposição

daqueles autodenominados liberais e maçons, que viam os frades como defensores

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da monarquia, diante da qual a proposta da construção de seminário naquela cidade

foi protelada; o segundo fato dizia respeito ao projeto de expansão, que a Ordem

dos Capuchinhos ambicionava no Brasil, e que implicava na construção de um

seminário nos moldes europeus em uma cidade prospera que lhes garantisse

sucesso.

João Valério Scremin (2016), ao analisar o projeto de formação dos frades

capuchinhos, identificou a existência de visões opostas dentro da própria

organização. Segundo ele, parte dos frades teria sido contrária a tal proposta porque

isso desviaria o foco primeiro da missão, que era a evangelização dos indígenas.

Todavia, o projeto foi adiante, pois, ao ter sido implantado no período da

romanização, contou com os apoios da Santa Sé, do bispo de São Paulo e do

governo brasileiro. O primeiro seminário foi construído na cidade de Taubaté, onde o

bispo convencera os frades a abrirem uma nova frente missionária, antes, porém,

Dom Joaquim Arcoverde, oferecera aos frades o Convento Santa Clara, o qual

estava sob a administração da confraria de São Benedito. A missão deles seria

reformá-la segundo as recentes orientações da Igreja, buscando limitar a ação dos

leigos nas Irmandades67. Após a resistência da irmandade leiga, o bispo extinguiu a

confraria e confiou aos frades o convento, de propriedade dos leigos, para que

67 As ordens terceiras no Brasil remontam ao período colonial, quando elas, detentoras de relativo poder econômico, assumiam o custeio da construção de Igrejas e sua administração temporal, e tiveram importante papel de suplência eclesiástica (MARTINS, 2018). Tal fenômeno se formara em função da situação de abandono da Igreja no período colonial, em que aqueles, que efetivamente custeavam a manutenção das igrejas, acabavam detendo poder sobre elas. Nesta situação, os padres estavam a serviço dos administradores dos bens eclesiásticos. Isso explica os vários conflitos e disputas de poder religioso que, no fundo, escondiam questões de controle econômico entre irmandades, bispos e padres que tiveram na “Questão Religiosa” de 1872 o seu ápice (HOONAERT, 1997; VIEIRA, 1980). Por outro lado, a revogação da prisão dos dois bispos envolvidos, e as sucessivas reformas realizadas nas confrarias e irmandades, indicam que a Igreja estava em franco processo de recuperação de seu poder sobre a sociedade, conhecido como ultramontanismo. Em 1884, Leão XIII reformou as Ordens Terceiras dando-lhes a missão de colaborar na defesa da Igreja e na propagação da ação missionária, mas, ao mesmo tempo, a colocou sob o controle dos clérigos religiosos, sob pena de extinção, e lhes atribuiu funções especificamente religiosas (PONTIFICIA COMMISSIO PRO AMERICA LATINA, 1999, IV, título 11). Com a romanização, muitos bispos confiaram a catolicização das ordens terceiras desvirtuadas às congregações religiosas, as quais passaram a assumir as atividades exercidas por aquelas e a responsabilizar-se por elas. Tal como citamos antes, a Santa Sé se encarregou de que Ordens religiosas e congregações emigrassem para o Brasil com o objetivo de substituir a liderança dos leigos nas irmandades que controlavam igrejas e santuários, impondo o catolicismo de matriz europeia e branca (BITTENCOURT, 2018; GAETA, 1997). Percebe-se que a colaboração entre bispos e padres também se dava no plano das trocas de interesses mútuos, muitas vezes ligados à manutenção da própria organização religiosa. Nesse sentido, a política patrimonialista dos bispos em se apropriar das propriedades das confrarias e Ordens Terceiras, além de significar uma estratégia política para enfraquecê-las, acabava se configurando em moeda de troca para oferecer e seduzir as organizações europeias, inserindo-as no projeto da romanização (MICELI, 1988).

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atendessem o povo. Ainda nesse convento foi instalado o seminário São Fidelis, que

funcionou por 30 anos, quando foi finalmente transferido para Piracicaba cumprindo

o sonho dos primeiros frades. Ali também puderam fundar a Ordem Terceira de São

Francisco (BERTO, 1989).

4. De Associação de mulheres à Congregação, um projeto capuchinho

A Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria tem sua história ligada

à Ordem Terceira Franciscana, quando uma mulher, Antônia de Macedo, tivera a

seguinte inspiração:

Anda na minha mente, Rosa Cândida, uma ideia que não sei se será de Deus ou tentação. Desejava arranjar uma casa onde, morando com algumas irmãs terceiras, pudéssemos, além de levar uma vida de oração e trabalhos, nos dedicar ao apostolado das almas, auxiliando os nossos capuchinhos em suas árduas missões. (PEDROSO, 1996, p.15)

A convergência das fontes pesquisadas mostrou que, como a maioria das

fundadoras, Irmã Cecília possuía um relativo capital social, cuja pequena parte fora

construído pela sua familiares. Seu pai, Pedro Liberato de Macedo, foi um pequeno

proprietário rural e produtor de açúcar, proprietário de 21 escravos que trabalhavam

em um pequeno engenho, onde se produzia uma média 400 arrobas de açúcar por

ano, além de outras plantações e alguns poucos animais. Como tantos outros

proprietários que se mudaram para a cidade, atraídos pelo processo de urbanização

financiado pela elite, em 1847, comprou uma casa na área urbana, onde criou seus

nove filhos. Além de ser produtor rural, desempenhou o cargo de secretário da

Câmara Municipal, foi Juiz Municipal suplente e participou do brado republicano

ocorrido em Piracicaba, em 1870. Sua rede de contatos e inserção política lhe

rendeu razoável prestígio social junto aos republicanos, os quais, por ocasião de sua

morte, custearam as despesas de seu funeral e o homenagearam postumamente,

atribuindo seu nome a uma rua da cidade, em 1930.

Antônia Martins de Macedo, nascida 07 de julho de 1852, fora a sexta filha e a

segunda piracicabana, crescendo na efervescência cultural e política de uma das

principais cidades paulistas do final do século XIX. Teve acesso à formação escolar

comum às moças de seu estrato social e se fez costureira, profissão que exerceu

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por longos anos, mesmo depois de haver enviuvado. Segundo a tradição patriarcal,

após intensa pressão, contraiu núpcias com Francisco José Ferreira, de profissão

carpinteiro, mas após cinco anos de matrimônio, em 1893, ficou viúva. Teve três

filhos: Rosa de Macedo Ferreira, nascida em 1889; João Macedo Ferreira, nascido

em 1891 e Antônio de Macedo Ferreira, nascido em 1893. Os três ficaram com ela

até 1900, quando os dois filhos foram enviados para o internato Liceu Coração de

Jesus, dos Salesianos, em São Paulo, graças ao apoio econômico de um membro

da elite de Piracicaba. A filha Rosa, que teria sido cega, surda e com transtornos

mentais, foi conservada com ela durante toda a sua vida (PEDROSO, 1996).

Desejando destacar a santidade de Irmã Cecília, seu biógrafo buscou associar a

fundação daquela organização com a retomada de uma suposta vocação religiosa

existente desde a juventude e que fora reprimida. Segundo ele, antes mesmo de se

casar ela teria desejado ingressar no Convento da Luz, em São Paulo, na Ordem da

Imaculada Conceição, tendo sido impedida pelo pai, que lhe impôs casamento, ao

que ela consentiu. Tendo ficado viúva, ela teria retomado seu projeto, quando

ingressou na Ordem Terceira Franciscana e assumiu o nome religioso que a

consagrou. Foi como terceira que ela teria proposto a suas amigas de viverem juntas

e se colocarem a serviço dos frades. Eis, então, que procuram Frei Luiz Maria de

São Tiago para que ele as orientasse (PEDROSO, 1996)68.

O conjunto de mulheres se constituiu como o mais importante capital social com o

qual frei Luiz contou para atrair a atenção e o apoio da sociedade piracicabana para

a execução de um projeto da sua Ordem. Ao aceitar a proposta dos frades, elas

seriam incorporadas, ainda que perifericamente, na Ordem Capuchinha e seriam

reconhecidas como herdeiras espirituais de Francisco de Assis. Bastava-lhes seguir

fielmente as orientações dos frades. Para isso, uma característica se impunha: a

organização deveria ser criada segundo as novas exigências sociais da vida

religiosa oficiosa, ou seja, o exercício do apostolado. Segundo a biografia da ex-

superiora, o frade teria respondido ao grupo:

68 Frei Luiz Maria de São Tiago nasceu em 26 de abril de 1862 em uma aldeia denominada San Giácomo, nos Alpes austríacos, que posteriormente foi integrada à Itália. Professou os votos solenes na Ordem dos Frades Capuchinhos e foi ordenado padre em 1884. Em 1889 foi designado, juntamente com outros três frades, para integrar a primeira missão da Província de Trento, no estado de São Paulo, na cidade de Piracicaba, mas também foi missionário em Taubaté, para onde foi em agosto de 1898, por motivos de doença, e de onde partiu para a Itália em 1902, vindo a falecer em 24 de julho de 1910, com 48 anos (PEDROSO, 1996).

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Não é loucura, minhas filhas, é vontade Deus. E até digo mais. Já tenho uma candidata para o Recolhimento. Somente a finalidade é que não está bem clara. Para agradar melhor a Deus, devem dedicar-se à caridade, acolhendo e dedicando-se a órfãs e crianças desvalidas. Desse modo, também o povo as ajudará de boa vontade. (PEDROSO, 1996, p. 15)

Interpretamos, portanto, que os dois excertos citados indicam a existência de um

movimento essencialmente feminino, domesticado pelo frade. Ainda que a única

forma encontrada pelo grupo tenha sido acolher a proposta do clero, ficam claras a

novidade e a força de um movimento periférico que desperta o interesse da Igreja.

Considerando que isso ocorreu no final do século XIX, é necessário destacar o

importante papel da mulher na sociedade e na Igreja, naquele momento, percebido

pelos frades como mais importante que a própria presença deles. Embora não possa

ser esquecido o contexto social, altamente dominado por homens, o fato de a

sociedade piracicabana reconhecer a força emergente de um grupo de mulheres,

até então não oficializada na estrutura da Igreja, representava uma novidade da

futura Congregação. Não fosse isso, ela não teria feito o sucesso que fez em

Piracicaba. Nisso se confirma a percepção de Maria Rosado-Nunes de que a

inserção das mulheres na vida da Igreja não teve a intenção de promovê-las, mas de

reafirmar seu “estatuto subordinado”, como executoras de projetos eclesiásticos

alinhados com a romanização (ROSADO-NUNES, 1997).

Nesta perspectiva, entendemos a condição de vulnerabilidade social de Antônia de

Macedo, mulher, viúva e mãe de três filhos menores, em uma sociedade marcada

pela tradição patriarcal do final do século XIX, levada em conta por ela e, talvez, até

pelo frade italiano, na escolha daquele oficioso estilo de vida. É possível pensar que

ela tenha associado o desejo de ser religiosa à necessidade de encontrar um abrigo

institucional que protegesse a si e a seus filhos. Ademais, ambos sabiam que as

congregações já estabelecidas dificilmente acolheriam uma mulher nas condições

sociais em que ela se encontrava69. A solução seria tomar parte em uma

organização que lhe permitisse ser mãe e religiosa. O convite do frade lhe permitiu

isto.

As razões eclesiais para a fundação de uma obra caritativa podem ser buscadas em

fundamentos complementares:

69 Ainda que se considere a existência de muitas viúvas que foram religiosas naquele momento de forte reafirmação da catolicidade, a Igreja Católica insistia na virgindade como sinal de consagração.

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- A Ação Social da Igreja, proposta pelo papa Leão XIII, apesar de ter sido

apresentada como a dimensão social de socorro aos necessitados, o que,

inclusive, foi expresso na Encíclica Rerum Novarum de 1891, deve ser

entendida como a afirmação da posição política da instituição, não aceitando

ser reduzida ao âmbito privado da religião, como defendiam os liberais, mas

impunha-se como um organismo vivo e atuante na sociedade, o que implicava

na defesa do Estado pautado em princípios religiosos católicos (NEGRI,

1994).

- Era preciso que o novo projeto desse a sua contribuição à sociedade, pois,

sem isso, estaria fadado ao fracasso. Como mentor intelectual do grupo, o

frade escolheu um escopo específico e diametralmente oposto tanto ao

objetivo da única congregação feminina existente na cidade, que se dedicava

ao ensino das filhas da elite piracicabana, no Colégio Assunção, quanto ao da

Igreja Metodista, que também fundara o Colégio Piracicabano para educar os

filhos dos protestantes e dos liberais, que desejavam outro estilo de educação

a seus filhos. Com isso, o frade sinalizava a existência de um campo social,

descoberto pelas duas escolas confessionais e pela própria sociedade

piracicabana, que seria suprido através daquelas religiosas. Ao vincular o

nascente grupo religioso à sua Ordem, o frei Luiz Maria de São Tiago

pretendia afirmar aos liberais que ela também servia a sociedade.

- Se, na República, oficialmente, a Igreja já não podia mais receber benefícios

do Estado e, para todos os efeitos, nenhuma daquelas mulheres possuía os

bens necessários para estabelecer uma organização religiosa, era preciso

capitalizar recursos que possibilitassem a montagem de uma estrutura

mínima para acolher as religiosas. Daí a necessidade de um escopo social

para que o grupo pudesse contar com apoio econômico da elite da cidade.

- Por fim, era preciso que as religiosas se apresentassem como pobres. Para

isso, a especificidade da tradição missionária dos franciscanos no

acolhimento da pessoa humana, especialmente o pobre, foi fundamental para

o sucesso da obra.

Destaque deve ser dado à última frase de Frei Luiz: “Desse modo, também o povo

as ajudará de boa vontade”. A estratégia utilizada pelo frade foi construir uma

representação de que aquela associação de mulheres nascia pobre e nada pedia

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para si, mas para as meninas pobres. Coube ao pároco, Francisco Galvão de

Barros, subscrever uma petição com a qual as futuras religiosas solicitariam doações

para a construção de um asilo para meninas pobres, nomeado de Asilo [de] Nossa

Mãe (MARCON, 1992)70. Os potenciais doadores podem ser divididos em dois

grupos: o primeiro consistia na rede de contato pessoal de Antônia Martins de

Macedo, especialmente sua família. Para garantir o apoio da sociedade, a petição já

indicava que duas pessoas de uma mesma família da elite católica doariam o

terreno onde seria construído o asilo71. Isso ocorreu, provavelmente, porque Maria

das Dores Morato foi terceira franciscana e uma das fundadoras do Asilo. Além de

seu empenho pessoal, ela conseguiu fazer com que outros membros de sua família

ajudassem a nascente organização religiosa (Jubileu Áureo das Irmãs Franciscanas

do Coração de Maria, 1940).

O segundo grupo agia de forma mais direta, pois compunha uma diretoria

administrativa, formada pelas esposas dos “homens bons”, que garantiriam nada

faltar ao Asilo (Jubileu Áureo das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, 1940).

Secundado pelo apoio da elite piracicabana, em menos de dois anos, o grupo

conseguiu a doação de dinheiro suficiente para construir um prédio com duplo uso:

abrigo para as órfãs e convento para as religiosas, que assumiram a administração

da obra (MARCON, 1992). Para demonstrar que a estratégia dos frades fora

acertada, Scremin (2009) destacou que o Jornal Gazeta de Piracicaba,

assumidamente republicano e anticlerical, e que tantas vezes criticou a atuação dos

frades trentinos, divulgou apelos para sensibilizar a sociedade a efetuar doações em

favor do Asilo72, chegando a publicar os valores das doações e estampou os nomes

70 No Dossiê consta uma declaração que indica haver 11 títulos diferente para denominar o Asilo de Nossa Mãe. Da mesma forma que as mudanças no nome da Congregação, as principais justificativas são as mudanças canônicas e as civis. Desde 1952 o Asilo é denominado de LAR ESCOLA CORAÇÃO DE MARIA NOSSA MAE (MARCON, 1992, IV, 113-114). 71 Consta na subscrição que Manoel Morato e Maria das Dores Morato contribuíram com dois terrenos no valor de Rs 10:000$000. Nos documentos reunidos na Dossiê verificamos que a doação de Maria das Dores foi verbal, pois ela só foi registrada em 1898, dois anos depois da subscrição (Primeiro Tabelionato da Cidade de Piracicaba, Livro 141, fl 65, apud MARCON, 1992, IV, 117-118). Ela mesma doaria um segundo terreno ao Asilo em 1906 (Primeiro Tabelionato da Cidade de Piracicaba, livro 171, folha 59, apud MARCON, 1992, IV, 119-120). 72 Em agosto de 1896, o jornal publicou o valor arrecadado - Rs 33.506$000 – e em outubro esse valor chegou a Rs 39.910$000 (GAZETA DE PIRACICABA, n. 2290, de 16/08/1896, e n. 2311, de 07/10/1896, respectivamente, apud SCREMIN, 2009, p. 57).

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dos beneméritos doadores, dando “ênfase a seus feitos caridosos” (SCREMIN,

2009) e, assim, enaltecer seus próprios apoiadores.

É possível aqui estabelecer uma relação com a “sociologia das relações de poder”,

analisada por Norbert Elias. De um lado, o poder dos “estabelecidos” política e

economicamente: a elite piracicabana, que até certo momento negava espaço para

os outsiders, os frades imigrantes; de outro, de forma reversa, a força institucional

que fazia desses os novos “estabelecidos”, os donos do poder clerical, os únicos

capazes de dar reconhecimento ao grupo de doadores do Asilo como católicos

benemerentes (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Nesse jogo que envolvia múltiplos interesses, a associação de terceiras franciscanas

assumiu-se protetora das órfãs, adotando para si essa identidade sociorreligiosa,

fazendo dela o elemento-chave de sua identidade religiosa. Tal estratégia se

mostrou muito profícua, pois a obra religiosa era vista com bons olhos pelo poder

público e pela elite da cidade, que, além de desonerá-los de suas responsabilidades

sociais, contribuiria para a formação das órfãs, futuras cidadãs sabedoras do seu

lugar social e construtoras do Brasil (NEGRÃO, 2002).

A existência da petição ou subscrição demonstra que a precedência na criação do

Asilo foi uma estratégia geradora das condições para que a organização religiosa,

recém-fundada, pudesse levar adiante seus projetos e acolher as irmãs. Não fosse

seu caráter de serviço de benemerência, a elite piracicabana não teria se

interessado em ajudar um projeto eclesial, ainda mais para ser a sede de uma futura

organização religiosa. Convencidas pela proposta do eclesiástico, aquelas mulheres

aceitaram assumir o Asilo para meninas órfãs idealizado por ele e que seria

construído a expensas da elite católica da cidade e com o trabalho dos irmãos

terceiros. Em 2 de fevereiro de 1898, o Asilo estava pronto para acolher as terceiras,

Irmã Cecília, Irmã Nazária, Irmã Virginia e Irmã Valéria, que se mudaram com duas

órfãs para o Asilo, além dos três filhos da fundadora, os quais provavelmente se

misturavam às outras crianças do Asilo (PEDROSO, 1996). A considerar o número

de órfãs acolhidas como ínfimo, menor inclusive que o número de filhos da própria

Irmã Cecília, é possível questionar se, de fato, naquele momento inicial, o escopo da

instituição eram, realmente, as meninas pobres, pois se esperaria que já no dia da

inauguração o instituto estivesse repleto de órfãs, que perambulavam pela cidade, o

que não aconteceu.

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Antes mesmo do lançamento da pedra fundamental do prédio, Frei Luiz tratou de

dar-lhe um Estatuto, o qual foi registrado em 27 de fevereiro de 1896, tendo um

pequeno excerto publicado no Diário Oficial, n. 18.492, em 01/11/1896, segundo as

exigências da lei, o qual traz em seu primeiro artigo: “Com a denominação de Asilo

de Nossa Mãe fica fundado, com sede e estabelecimento na cidade de Piracicaba,

um instituto destinado a educar e sustentar meninas desvalidas, órfãs ou não, sem

distinção de cor ou de classe” (MARCON, 1992, IV, Artigo 1º, capítulo I, p. 131).

Causa impressão que, em menos de três meses de funcionamento, o Estatuto do

Asilo tenha sido modificado, conforme pode ser verificado na “Ata da Assembleia

Geral Extraordinária das Benfeitoras do Asilo do Coração de Maria Nossa Mãe, para

adoção da Reforma dos novos estatutos”, datada de 28 de maio de 1899 (MARCON,

1992, IV). O motivo era definir que o patrimônio material do instituto permanecesse

em uma organização religiosa católica.

Da comparação entre eles, destacamos três pontos:

a. Desde a primeira redação do Estatuto definiu-se que, mesmo sendo uma

instituição construída pela da sociedade civil, o Asilo era “um instituto

religioso” e sua diretoria seria composta por religiosas, reconhecidas como

“mestras” e por leigas, reconhecidas como “benfeitoras” (ESTATUTO, 1896,

Artigos 32, 10 e 23, respectivamente, apud MARCON, IV, 1992). Ele também

definia que o nome para a função de diretora deveria ser escolhido dentre os

membros do primeiro grupo. O fato de não ter havido manifestações

contrárias das leigas se justifica pela cultura engendrada pelo catolicismo,

que legitimava o que Weber identificou de “dominação tradicional”, pois,

pessoa alguma ousaria contestar o status quo religioso. Todavia, o fato de o

segundo Estatuto ter insistido nisso, esmiuçando-o em três artigos, parece

indicar o temor de questionamentos contrários, daí a necessidade de se

instaurar a dominação legal-racional, isto é, explicitar que a diretora deveria

ser religiosa.

b. Em ambas as redações, os poderes atribuídos à diretora eram “amplos e

ilimitados” (ESTATUTO, 1896, artigo 4 apud MARCON, IV, 1992).

Pressupomos que a existência de uma diretoria teria como fundamental

obrigação controlar possíveis desmandos da diretora. Apesar disso,

constatamos explicitado no segundo Estatuto justamente o contrário: as

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mestras e as benfeitoras, enquanto associadas, concederam amplos e

irrestritos poderes à Diretora, para que ela usasse dos bens móveis e imóveis

da forma que melhor lhe conviesse (ESTATUTO, 1889, artigo 5 apud

MARCON, IV, 1992). Percebemos, então, que o novo Estatuto expressava a

articulação política das freiras para que o poder permanecesse concentrado

nas mãos da diretora de forma estatutária e, portanto, legal.

c. Para garantir que o patrimônio permanecesse sob o controle da Igreja, o novo

Estatuto alterou o texto sobre uma possível dissolução da entidade. O

primeiro texto definia que “os bens do Instituto (...) passarão a uma das

instituições de caridade que existir em Piracicaba ou se criar no futuro”

(ESTATUTO, 1986, Artigo 38 apud MARCON, IV, 1992). No estatuto

reformado se lê: “No caso de extinguir-se o Asilo Coração de Maria Nossa

Mãe, seus bens se devolverão à Diocese, para dele dispor o Bispo

Diocesano, como entender, em favor de qualquer outra instituição pia desta

Diocese” (ESTATUTO, 1899, 14 apud MARCON, IV, 1992). Dentro da lógica

de nossa análise, é bastante provável que o frade dirigente tenha orientado a

diretoria do Asilo a alterar o artigo sobre a dissolução dos bens, de forma a

garantir que o imóvel fosse transferido à Igreja e ficasse à disposição do

bispo, claro sinal da romanização e do controle do clero.

Constatamos, portanto, que o Estatuto reformado de 1899 sinalizava a

institucionalização e a consequente clericalização da organização feminina. Apesar

de ambos os Estatutos insistirem na distinção entre mestras (as religiosas) e

benfeitoras (as leigas), perante o direito da Igreja, até então, aquela era uma

associação leiga. Ainda que tais documentos tenham usado a nomenclatura

“religiosas”, todas aquelas mulheres eram igualmente leigas, e, do ponto de vista

canônico, eles não tinham validade alguma. Talvez, justamente por essa razão, o

redator do Estatuto de 1896, frei Luiz, tenha se valido da estratégia de não explicitar

esta diferença como foi feito no Estatuto de 1899, fato que teria facilitado o seu

registro no Cartório como um organismo leigo. O Estatuto de 1899 se antecipava e

dava um segundo e gradativo passo que definia o destino eclesiástico do patrimônio

do Asilo, que nascera leigo e era gerido por uma organização leiga. Há, nele, o peso

moral de que a Igreja gozava, a ponto de os funcionários do cartório não atentarem

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para as mudanças ocorridas no novo estatuto, favorecendo aquelas que aspiravam

tornar-se oficialmente religiosas e a própria Diocese. Vê-se, portanto, que, com o

registro daquele patrimônio, a proposta do grupo leigo, orientada pelo frei, já

sinalizava a institucionalização do grupo leigo, e, sendo o prédio, construído para

abrigar o Asilo, transformado em convento para as freiras.

Ainda que Pedroso tenha buscado construir uma continuidade entre as ações de frei

Luiz Maria de São Tiago e frei Bernardino de Lavalle, afirmando que o primeiro teria

querido fundar uma congregação, a sucessão de fatos após a transferência deste

para Taubaté, em agosto de 1898, indica o contrário73. Relacionado com o que já

expusemos no capítulo I, é possível pensar que os próprios frades tivessem

concepções diferentes sobre a vida religiosa feminina. É bastante provável que

alguns tivessem opinião igual à de muitos fundadores do século XIX, não querendo

que suas fundações se emancipassem, para não perderem a ascendência sobre

elas. Já outros, mais romanizados, haviam internalizado a irreversibilidade do

processo da conventualização do movimento congregacional74. Ainda que tal

processo significasse a diminuição da ascendência da Ordem masculina sobre a sua

fundação, frei Bernardino de Lavalle, especialmente, deve ter avaliado que a

institucionalização da organização feminina se constituiria na única possibilidade

dela continuar existindo e de sua Ordem continuar a tirar algum proveito disso. Esta

era a nova realidade. Entendemos que frei Bernardino fazia parte do segundo grupo,

pois uma das primeiras providências tomadas por esse frade foi modificar o Estatuto,

o que ocorreu em maio de 1899, quando passou a ser o novo diretor de consciência

das terceiras. Foi também este frade a conseguir que o bispo de São Paulo

aceitasse instituir o grupo como congregação religiosa, em Piracicaba, para

assegurar que o patrimônio material do Asilo, parte integrante do projeto dos

73 Segundo Pedroso, Frei Luiz Maria de São Tiago teria sido, em 1898, “afastado da congregação, primeiramente por obediência e depois, pela enfermidade”. Mas Pedroso mesmo, ao informar a existência de uma carta enviada ao superior geral, que teria sido mostrada a frei Luiz e continha denúncias e calúnias contra ele, induz o leitor a concluir que teria havido outro motivo (PEDROSO, 1996). Na biografia de frei Luiz, Pedroso (2003, p. 48) foi mais enfático ao interpretar que, além das dificuldades materiais, a “inveja também concorreu para afastar Frei Luiz Maria”. Estabelecendo ligação entre o fato de ter sido transferido seis meses após ter fundado a associação de mulheres e, em 1900, desse grupo ter sido convertido em congregação religiosa, sua doença acabou se constituindo como um importante álibi para afastá-lo de Piracicaba. 74 Entendemos que Frei Bernardino de Lavalle tinha este perfil: nasceu em 1843, em um pequeno vilarejo nos Alpes suíços. Recebeu formação adequada, o que lhe possibilitou ser constituído provincial. Em 1894 veio para o Brasil e se manteve em Piracicaba até 1907, como superior da missão brasileira. Faleceu em 1930, em São Paulo (PEDROSO, 1996).

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capuchinhos, não caísse em mãos de outra instituição. Assim, em uma cerimônia em

1900, em nome do bispo de São Paulo, ele recebeu os primeiros votos de todas as

religiosas. Nascia naquele dia a Congregação das Irmãs Franciscanas.

Para compreender melhor a formação do patrimônio material, avancemos um pouco

no tempo para aprofundar nossa hipótese. Tendo sido fundada a Congregação, o

próximo passo seria alterar novamente o Estatuto, para selar definitivamente a

posse eclesiástica do patrimônio. Isso ocorreu em 10 de dezembro de 1913. Na ata

da assembleia, lavrada em cartório, lê-se: “O Asilo de Nossa Mãe, dedicado ao

Imaculado Coração de Maria, com estatutos inscritos no registro civil de Piracicaba,

sua sede, deliberou reformar sua organização pela fórmula seguinte: Estatutos da

Congregação das Franciscanas de Piracicaba” (MARCON, 1992, IV, p. 225-228).

Estava fundada a organização civil Congregação das Franciscanas de Piracicaba, a

qual incorporava o patrimônio do Asilo construído com o apoio do povo e da elite de

Piracicaba. Da mesma forma, em 1931, após alterar seu nome para Congregação

das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, foi realizado novo registro civil. Por

fim, em 13 de junho de 1945, novas leis civis impuseram que a organização

assumisse um nome civil. Naquele dia, era fundado o “Instituto Feminino de

Educação e Serviço Social”. No seu objetivo apresentado se lê:

Educação e instrução da infância e da juventude, bem como assistência hospitalar em geral e outras obras de assistência social e garantir no presente e no futuro, por todos os meios ao seu alcance a subsistência de todos os membros da Congregação das Irmãs Terceiras Franciscanas do Coração de Maria, de Campinas, da qual é um prolongamento... (sic) (DIÁRIO OFICIAL DE SÃO PAULO, 13 de junho de 1945, n. 125, Ano 55, p. 22, grifo nosso).

Notamos que, apesar de secundado, o objetivo de garantir a subsistência das

religiosas se constituía também como foco da organização, que disponibilizava um

conjunto de serviços sociais de interesse público. O Instituto teria a função de gerar

as condições econômicas que manteriam a estrutura e o “quadro funcional” da

organização religiosa. Tal proposta já aparecia sinalizada pelo frade, em 1896,

quando ele indicou ao nascente grupo religioso a necessidade de ter um escopo

social.

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5. A disputa jurisdicional entre os bispos e os frades sobre a Congregação

De acordo com o Banco de dados, a Congregação das Irmãs Franciscanas do

Coração de Maria é a sexta fundação brasileira (2017)75. Com exceção do grupo

austríaco, que deu origem à primeira organização congregacionista brasileira, em

1848, e se afirma ser uma fundação estritamente feminina, todas as outras, apesar

de também destacarem a presença feminina, foram efetivamente fundadas por

clérigos a partir de organizações paroquiais como: os grupos de catequistas, de

leigas terceiras; os grupos marianos, cujos objetivos eram de cunho social –

educação, saúde e cuidado de vulneráveis. Assim foi com a organização

piracicabana, que ora analisamos. No cotidiano dos primeiros anos, a

institucionalização da organização leiga em congregação, aparentemente, nada

mudou na vida daquelas mulheres terceiras, que continuaram vivendo no Asilo junto

com as órfãs às quais se dedicavam (PEDROSO, 1996). Todavia, grandes

mudanças ocorreriam em função da romanização. Com a morte de Dom Alvarenga

em 1903, somente em 1905 o novo bispo de São Paulo, Dom José de Camargo

Barros, aprovou os Estatutos disciplinares das Irmãs Franciscanas, que deveriam

ser seguidos juntamente com a regra da Ordem Terceira (MARCON, 1992, IV;

PEDROSO, 1996)76. Cabe destacar que, apesar da regra conter as principais

orientações disciplinares, em comum acordo com o bispo, frei Bernardino, que fora o

autor do Estatuto civil, citado acima, elencou outras precisas regras que mudariam

75 Em ordem cronológica, são: Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, fundada em 1849 por Barbara Maix; Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora do Bom Conselho, fundada em 1853 por Frei Caetano Messina; Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, fundada em 1892 por padre Domingos Evangelista; Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, fundada em 1895 por Amábile Visitandiner; Congregação das Irmãs Carmelitas da Divina Providência, fundada em 1899 por Madre Maria das Neves; Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, fundada em 1898 por Irmã Cecília do Coração de Maria. A inserção do nome de uma mulher como fundadora já é fruto da releitura do final do século XX.

O Banco de dados ainda indica a existência de uma fundação anterior a todas essas: a Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Glória, que teria sido fundada em 1738, por Madre Lourença do Rosário. Entretanto, a data de fundação diz respeito à fundação do Recolhimento da Glória, cujo remanescente foi convertido em congregaçãoem 1963 (Conferir Capítulo I). 76 O motivo do bispo de São Paulo não ter lhe dado uma regra é que, como consta no preâmbulo do documento, a nascente organização deveria seguir a regra da Ordem Terceira de São Francisco, o que garantiria aos frades capuchinhos a ascendência espiritual sobre a nova congregação. Vemos que, apesar de a Constituição Conditiae a Cristo (1900) ter igualado juridicamente as congregações com as ordens religiosas, na prática, elas continuavam a ser tratadas pelos eclesiásticos como organizações leigas.

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os planos de Irmã Cecília e de frei Luiz. Dentre essas, três questões merecem nossa

atenção.

No capítulo I dos Estatutos, “Da admissão, do noviciado e da profissão”, indicava

que as aspirantes deveriam ter “idade nunca inferior a dezesseis anos e superior a

trinta e cinco anos completos, livres de dívidas e promessa de futuro matrimônio”

(MARCON, 1992, IV). Segundo as novas leis de admissão, a própria superiora, que

professara os primeiros votos aos 48 anos, não teria sido aceita na organização. O

texto não vetava a entrada de viúvas e tampouco a presença de filhos. O fato é que

Irmã Cecília conservou consigo sua filha que, por ser especial, precisava de seus

cuidados. Esta teria sido a principal causa da tumultuada vida da freira, que preferiu

se afastar dos ofícios inerentes à vida religiosa e viver em prédio contíguo ao Asilo

para cuidar de sua filha, sem, no entanto, renunciar aos votos proferidos.

A segunda questão, que devemos destacar sobre o primeiro Estatuto do Instituto, diz

respeito à governança da Congregação e, especialmente, da superiora geral, o que

também se ligava à interferência dos religiosos capuchinhos na organização. No seu

III capítulo, o Estatuto discorre sobre o processo de eleição da superiora e indica

que aconteceria em uma assembleia denominada “capitular” ou, simplesmente

“Capítulo”, em que representantes das religiosas elegeriam a equipe de governo

para dirigir a organização77. A eleição da superiora geral pelos seus pares se

mostrou uma pragmática e moderna solução para os problemas dos governos

vitalícios, presentes nas ordens religiosas, o que se configurou como importante

característica indenitária do movimento congregacional. Entretanto, não demorou

muito para que as pessoas envolvidas no processo percebessem que, além das

vantagens, havia também desvantagens, principalmente ligadas à implantação dos

projetos da organização. Dependendo dos interesses em jogo, era possível manter

práticas antigas, sob a aparente renovação, através da eleição do(a) superior(a),

como forma de se manter o poder nas mãos do grupo dominante, ou seja, através

da democrática eleição, mudava-se para nada mudar. Como forma de impedir a

perpetuação do poder, não demorou muito para que a Santa Sé obrigasse as

organizações a incluir em suas constituições um artigo que limitasse a possibilidade

77 Segundo o modelo congregacionista, todas as religiosas são responsáveis pela organização e devem elaborar, ou aceitar, quando proposto pelo diretor espiritual ou pelo próprio bispo, o conjunto de regras que regerão a congregação, denominado simplesmente de Regras ou Constituições.

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de reeleições e bloqueasse a interferência dos religiosos que estiveram presentes

na fundação da organização.

Nos Estatutos da Congregação de Piracicaba, ficou definido que o tempo de

governo da superiora seria de três anos, e poderia haver apenas uma reeleição,

desde que seus votos superassem os dois terços do sufrágio. Um terceiro mandato

seria possível apenas com a autorização do bispo (ESTATUTOS DISCIPLINARES,

1905, art.1, capítulo III apud MARCON, 1992, IV). Com isso, ficava definido o tempo

máximo de governo de Irmã Cecília em seis anos, com uma remota possibilidade

para um terceiro mandato. Ela seria superiora por um tempo limitado, depois voltaria

a ser uma simples religiosa78.

Uma terceira questão, ainda ligada ao primeiro Estatuto do Instituto, dizia respeito a

real autoridade da superiora geral, diante do poder irrestrito do bispo, sobre todas as

organizações de sua diocese, inclusas as congregações religiosas, tal como

abordamos no capítulo I. Segundo este regimento religioso, a presidência do

capítulo competia ao bispo ou a um delegado seu. Também na vida cotidiana das

casas religiosas, o bispo passava a ter autonomia para fazer visitas pastorais,

nomear confessores capelães, ratificar os desligamentos de religiosas e candidatas,

e a receber prestação de contas no final de cada governo (ESTATUTOS

DISCIPLINARES, 1905, art.3 e 4, capítulo III apud MARCON, 1992, IV). Por essas

informações fica claro, então, que, depois de 1900, o bispo passou a ser, de fato, o

superior da organização. E isso foi sentido, sobremaneira depois de 1908, com a

presença de Dom Nery, o primeiro bispo da recém-criada diocese de Campinas. Se,

até então, o bispo Dom Antônio Alvarenga dera carta branca para os capuchinhos

dirigirem a Congregação que eles fundaram, dom Nery fez opção contrária79. Em

1906, a primeira assembleia capitular foi presidida por frei Bernardino de Lavalle,

que fora nomeado pelo bispo de São Paulo. Irmã Cecília teve votação unânime de

seus pares para o seu primeiro mandato oficial como a superiora geral, ratificando a

78 As duras palavras do bispo de São Paulo dirigidas a madre Paulina, por ele deposta do governo da congregação, em 1913, expressavam a realidade das ex-superioras gerais: “viva e morra como uma simples súdita” (CUSTÓDIO, 2014). 79 Pedroso narra que, tendo ido a São Paulo, no ano de 1901, Irmã Cecília e Irmã Virgínia foram cumprimentar o bispo dom Alvarenga. Ao não se lembrar da autorização dada, este as teria acusado de ter professado os votos sem licença dele. De imediato, “Mamãe Cecília lembrou-lhe que tudo tinha sido feito através de frei Bernardino de Lavalle. Ao ouvir o nome do frade, o bispo serenou e lhes deu a benção ...” (PEDROSO, 1996, p. 60).

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função que ela exercia na comunidade das terceiras desde a sua fundação em 1898.

Em 1909, um ano após a criação da diocese de Campinas, o bispo, Dom Nery,

embora tivesse autoridade, agiu com discrição, não se opôs que o frade Camilo de

Valda presidisse o Capítulo que acabou reelegendo a superiora (PEDROSO, 1996).

Entretanto, em 1912, quando ocorreu a terceira eleição, ao invés de referendar a

nomeação de um frade capuchinho para presidir aquela assembleia, o que já era

quase uma tradição, dom Nery preferiu nomear seu vigário geral, Padre Antônio

Reimão, e fez dos capuchinhos meros escrutinadores. Segundo Pedroso, o vigário

geral teria desaconselhado as religiosas de elegerem a madre geral para um terceiro

mandato, e uma jovem religiosa, Irmã Ignez Meneghetti, foi escolhida pelos seus

pares para ser a superiora geral80. Apesar da legitimidade da eleição, a memória

congregacional afirmou que Irmã Cecília fora destituída pelo bispo. Pedroso

contribuiu com isso, quando intitulou o oitavo capítulo de sua biografia com este

adjetivo. Em um jogo de palavras, ele escreveu: “não houve propriamente uma

destituição, porque estava mesmo terminando o mandato. Acredita-se, entretanto,

que as irmãs a elegeriam mais uma vez se não tivesse havido uma intervenção de

fora (sic)” (PEDROSO, 1996, p. 71).

Pedroso deixa entrever que, se um dos capuchinhos tivesse presidido o Capítulo, a

ex superiora teria sido reeleita. Eis o que ele chamou de “intervenção” e, de forma

hiperbólica, no seu livro, de “destituição” da superiora. Entendemos que, apesar de o

autor do texto assumir uma posição pró-Irmã Cecília, a questão da intervenção

parece estar mais ligada à ascendência da organização masculina sobre a feminina

do que propriamente na recondução do mandato da superiora atual, pois apesar dos

pesares, aquela superiora era fiel aos frades. Estava em jogo, então, uma das

questões mais candentes do movimento congregacionista do século XIX: a

manutenção do controle da organização fundadora sobre a fundada, realidade que a

Constituição Conditae a Christo passara para as mãos do bispo diocesano e,

80 Dom Nery pode não ter concedido um terceiro mandato a Irma Cecília, em 1912, pelo fato que além de superiora, ocupava, contemporaneamente, a função de diretora de uma instituição católica que, em razão de sua origem, era também civil. Ao substituir a superiora geral, trocava-se também a diretoria do Asilo. Dessa forma ele realinhava as duas organizações segundo as normas da romanização. Convém destacar que a substituição do(a) superior(a) geral fazia parte das reformas da vida religiosa justamente para evitar que uma mesma pessoa ficasse tanto tempo no cargo. Além disso, essa reforma passou a impor a divisão do poder entre o(a) superior(a) geral, o(a) ecônomo(a) e os(as) conselheiros(as) (ESTATUTO DISCIPLINAR, 1905, II, § XII apud MARCON, IV, 1992).

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justamente por isso, os religiosos – no caso, os capuchinhos – tentavam, a todo

custo, garantir meios de interferir na organização.81

Não por acaso, a nova superiora eleita foi uma jovem que não fazia parte do grupo

fundador e, apesar de ser irmã de um dos frades capuchinhos, foi extremamente

obediente ao bispo diocesano, talvez até como forma de realizar o seu projeto

pessoal. De outro lado, é preciso, pois, considerar que aquela eleição era a

expressão de uma nova configuração eclesial, da qual o bispo, apesar de seu

destacado papel, era apenas um dos atores sociais. A Igreja mudara, a

Congregação crescera e contava com novas e jovens religiosas que, por não terem

sido membros de ordens terceiras, tinham uma compreensão da vida religiosa

segundo a romanização, e, talvez justamente por isso, consentiram e/ou se

convenceram de que mudanças deveriam ocorrer para que a organização

crescesse82. Naquela nova configuração eclesial, a interferência dos frades e,

especialmente, a manutenção de Irmã Cecília, parecem ser vistos como obstáculos

para o projeto do bispo, que tratou de neutraliza-los.

Para assegurar que não houvesse interferências no governo da nova superiora

geral, o bispo impôs que ela se transferisse e permitiu que escolhesse qualquer das

outras comunidades, o que a levou a se mudar com sua filha para a comunidade do

Hospital, na cidade de Jundiaí, onde foi nomeada superiora local permanecendo lá

até 1916, quando teria decidido renunciar seu ofício de superiora local e voltar para

Piracicaba, oficialmente, para cuidar de sua saúde, pois fora operada do olho

esquerdo. Entretanto, sua volta se constituía como uma desobediência e tal fato

teria levado dom Nery a determinar que ela optasse entre permanecer na

comunidade religiosa sem sua filha ou renunciasse à vida religiosa83. Eis que as

próprias religiosas teriam proposto ao bispo que ela e sua filha fossem transferidas

para um pequeno sobrado, situado no fundo da Casa Geral, romanticamente

81 O CDC definiu que, ainda que fundadora, a Ordem masculina não poderia interferir em questões jurisdicionais da organização nascente, que estava sob o direito diocesano (CDC, 1917, 1951, § 488). 82 Analisando os fatos e, especialmente, os quadros das superioras gerais que se sucederam, vemos que apenas depois de 1920, quando a congregação se estabilizou e os capuchinhos foram definitivamente afastados, religiosas membros do grupo fundador puderam ser eleitas como superioras gerais. Pedroso afirma que o fato de Irmã Gertrudes Maria do Divino Amor, que fora membro do grupo fundante, não ter sido eleita como segunda superiora, é porque ela era brasileira (PEDROSO, 1996). 83 Madre, (...) cumprimentos. Se a senhora puder conservar os seus filhos do locutório para fora, poderá ficar em qualquer casa; do contrário, ficara dispensada da comunidade, em lugar onde possa recebê-los e cuidar deles. (PEDROSO, 1996, p. 86)

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denominado “chalé”. Ali, ela permaneceu de 1916 a 1948, quando, doente, após ter

pedido para ser reintegrada, voltou a viver na comunidade religiosa. Em 1950,

meses antes das comemorações do Jubileu de ouro da Congregação, faleceu

(PEDROSO, 1996; VEIGA, 1991)84.

Em 3 de agosto de 1920, o frade capuchinho Salvador Cavendine, diretor de

consciência das religiosas, enviou uma carta ao superior geral, em Roma, com o

objetivo de reintroduzir a Ordem dos Frades Capuchinhos na trajetória da

Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria. Não por acaso, isso

ocorria seis meses após a morte de Dom Nery, que obstaculizou a ascendência dos

frades sobre aquela organização. Em meio a pedidos de orientação de como

conduzir o seu trabalho durante o período de vacância episcopal, ele buscava obter

informações de como as religiosas deveriam fazer para solicitar a agregação à

Ordem Franciscana. Para reforçar tal pedido, de forma velada, ele denunciou que

aquela organização religiosa não fora canonicamente constituída em 1900,

resultando ser ela ainda uma organização de leigas terceiras franciscanas. O fato é

que o bispo de São Paulo, Dom Antônio Candido de Alvarenga, ao conceder, em

1900, a autorização para que as religiosas professassem os primeiros votos,

condição somente possível em uma Congregação, não a erigiu canonicamente. O

frade ainda deixava entrever que o bispo Nery, apenas em 1916, o teria incumbido

de dar os primeiros passos para regularizar a situação dela e esboçar a sua primeira

Constituição85 (BERTO, 1989; PEDROSO, 1996), o que nos permite deduzir que

Dom Nery sabia disso e nada fizera, até porque isso lhe era vantajoso.

Pelo teor do texto, vê-se que o referido frade dava a entender que o governo de sua

Ordem deveria aproveitar-se da vacância do bispo na diocese de Campinas para

antecipar a regularização daquela fundação franciscana ou prover meios que

garantissem ao novo bispo não furtar-se às suas obrigações. A rapidez com que a

carta foi respondida dá mostras de que tal assunto fazia parte da pauta de

interesses dos Capuchinhos. Em 50 dias, o secretário geral enviou resposta,

comunicando a possibilidade de tudo aquilo vir a ser realizado, mas informou que

apenas o novo bispo tinha poder para dar os devidos encaminhamentos (BERTO,

84 Abordaremos a questão da transferência de Irmã Cecília para o chalé no capítulo IV. 85 Apesar de ser uma única constituição, o texto é chamado oficialmente de Constituições. Mantivemos os dois nomes.

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1989). Não perdendo tempo, o referido frade apressou a conclusão das

Constituições, o documento que regeria a organização, e instruiu as religiosas sobre

os passos a serem dados, tão logo o novo bispo fosse nomeado.

Três fatos, ocorridos em pouco mais de seis meses, foram de suma importância para

a vida da organização; eles nos fazem pensar que aquela troca de correspondências

entre os franciscanos surtiu efeito. Em janeiro de 1921, o novo bispo de Campinas,

Dom Francisco de Campos Barreto, com apenas dois meses de empossado, se fez

autor jurídico das primeiras Constituições da Congregação, que haviam sido

elaboradas por frei Salvador Cavendine, e autorizou que o Instituto enviasse

solicitação de sua agregação à Ordem dos Frades Capuchinhos, além de definir que

em maio daquele ano ocorresse a profissão perpétua de 38 irmãs, dentre as quais

as do grupo primitivo das terceiras.

Após a autorização concedida pelo bispo, em menos de quinze dias, a superiora

geral enviou, ao padre geral dos capuchinhos, correspondência em que apresentava

o pedido formal de agregação e os documentos necessários para tal solicitação:

cópias das Constituições e as aprovações dos bispos cujas dioceses abrigavam

casas da Congregação. Nesse documento se apresentava um breve histórico da

organização, explicitando haver dúvidas sobre a legalidade canônica da

organização, as quais “em função de ideias mal compreendidas pelo bispo” não

foram elucidadas, mas que, apesar disso, continuara a cumprir as normas,

orientadas por frei Salvador Cavendine. Por fim, indicava haver no Instituto 54 irmãs,

distribuídas em 8 casas (CAMARGO, 1992; MARCON, 1992, IV)86. Em 25 de agosto

de 1923, das mãos do bispo Dom Barreto, a superiora geral recebeu o documento

de agregação à 1.ª e à 2.ª Ordens Franciscanas, datado de 05 de agosto de 1923.

Junto deste, há um texto intitulado “Pro-memória”, da Procuradoria Geral dos

Capuchinhos, em Roma, com cinco observações: que o processo de agregação fora

concluído com sucesso; que as Constituições aprovadas pelos bispos, onde havia

casas, não podiam ser modificadas; que não restava dúvida de que a organização

gozava de plena aprovação eclesial desde 1900, mas, se não havia certeza da

86 Pelo fato desta documentação conter informações relativas ao estado canônico da organização, semelhantes àquelas da carta enviada pelo frei Cavendine, em 1920, é de se supor que as irmãs soubessem do conteúdo dela ou o próprio frade as houvesse assessorado na elaboração desta petição de 1921. Tal hipótese se reforça pelo fato de terem incluído na petição as informações alusivas ao número de religiosas e de casas existentes, pois esta era uma das exigências da Santa Sé.

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existência de um documento de registro da fundação, seria preciso pedir ao bispo de

Campinas que o fizesse; que a organização era de direito diocesano e que deveria

continuar assim ainda por alguns anos, pois era preciso que o Instituto tivesse ao

menos 100 irmãs e que desse prova de vitalidade e de prosperidade; que as

constituições aprovadas precisariam ser analisadas por um canonista, para fazer as

adequações necessárias segundo as exigências da Santa Sé; somente depois,

obteria o reconhecimento pontifício (MARCON, 1992, IV). Eis a razão de a superiora

geral ter citado os dados numéricos em sua petição.

O fato de Dom Barreto ter aprovado as Constituições e concedido o direito de emitir

os votos solenes sem conhecer as religiosas, e, ter autorizado o pedido de

agregação, pareceria um voto de confiança na organização. Ainda que a

Congregação tenha este bispo em alta conta, como um protetor que teria contribuído

para o seu engrandecimento, tais ocorrências demonstram o jogo político entre o

poder episcopal e o poder da Ordem dos Capuchinhos. A concessão da agregação

à 1.ª e à 2.ª Ordens Franciscanas não fora uma distinção concedida pelo bispo, mas

o cumprimento de uma disposição eclesial como um direito da organização

brasileira. Embora a principal justificativa para a agregação tenha sido reunir

múltiplas congregações nas poucas famílias espirituais, entendemos, a partir do que

aconteceu em Piracicaba, que ela tinha como objetivo também devolver a

ascendência, ainda que simbólica, que as ordens religiosas tinham sobre os grupos

religiosos femininos. Os frades de Piracicaba deixavam claro para o bispo que, se de

fato era ele quem possuía a jurisdição sobre a organização, cabia a eles garantir o

cumprimento dos direitos daquela filha espiritual franciscana. Evidente que tal

interesse não era tão desinteressado assim. (BOURDIEU, 1997).

Isso também parece ficar claro na ausência da constituição canônica do Instituto,

denunciada pelos frades, conforme citava o terceiro item do “Pro-memória”. Não

restou, portanto, ao bispo Dom Barreto, senão conceder tal documento, no qual se

afirmava que a Congregação, então, “não fora canonicamente ereta a seu tempo”, e,

que através daquele documento “sanava radicalmente todos os atos nulos e

irregulares provenientes da falta de ereção canônica no passado” (Decreto de

Ereção Canônica apud MARCON, 1992, IV, p. 277-278). Não obstante, o fato de o

bispo ter atrasado cinco anos para cumprir a determinação da Santa Sé, parece ter

sido uma demonstração de força que deixava claro que ele era responsável por ela.

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Com relação ao quarto item do documento, verificamos que, em 1928, ano em que

Dom Barreto constitui a organização, ela já estava em condições de obter o direito

pontifício. Em seu relatório, a superiora geral Irmã Gertrudes Maria do Divino Amor,

informava que o contingente de religiosas naquele sexênio alcançava o número de

111 irmãs, ultrapassando o número exigido de religiosas (RELATÓRIO, 1927).

Talvez na eminência de uma nova denúncia, o bispo tratou de instituí-la. Já os

encaminhamentos para solicitação daquele direito romano, – dos quais a

Congregação também dependia dele –, ainda seria preciso esperar mais de uma

década. Talvez porque, para o bispo, ainda faltasse o amadurecimento religioso e a

solidez patrimonial.

Paradoxalmente, nesse processo de estrondoso crescimento, em razão de seus

interesses, os eclesiásticos contribuíram para o sucesso da Congregação, quando

eles mesmos acabavam por fornecer os meios para elas alcançarem o

reconhecimento pontifício. Sem diminuir os méritos das superioras gerais, as quais

também possuíam seu poder social, não podemos esquecer que suas ações foram

potencializadas pelo apoio dos frades capuchinhos e depois dos sucessivos bispos

de Campinas, cada qual com seus interesses, que com elas compartilhavam sua

rede de contatos, especialmente com a elite da região. Neste quesito, dom Barreto

se empenhou para diminuir a ascendência dos frades sobre ela, o que pode ser

comprovado ao verificarmos que, entre 1921 e 1930, oito casas foram abertas,

dentre elas quatro em Campinas e apenas uma – o Colégio Coração de Maria – em

Penápolis, em 1925, cidade cuja paróquia era de responsabilidade dos frades.

Dentre os documentos encontra-se uma carta em que o bispo, ao saber que uma

nova casa seria aberta em Penápolis, onde havia frades, escreveu à superiora,

admoestando-a sobre o que julgava como ingerência deles na organização. Como

forma de enfrentamento, o bispo sugeriu que a superiora nomeasse para aquela

nova casa uma irmã com “pulso forte”: “Temo que os frades queiram governar a

casa, irmãs e tudo. É contra o espírito. Não é isso que estou ensinando à

congregação. Todo respeito nos merecem os frades, mas cada um no seu lugar. Do

contrário sai atrapalhado o negócio e com grande perigo para todos (sic)”.

(CAMARGO, 1992, p. 78, grifo nosso). Segundo o bispo, a função de definir como

deveriam ser organizadas as casas e conduzidos os trabalhos era atribuição dele.

Considerando que o Colégio rendia proventos para a organização religiosa, Dom

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Barreto julgava que os frades tinham interesses econômicos, por isso sugerira uma

religiosa de pulso forte. Assim, cremos ser possível tomar a palavra “negócio”, da

última frase, em seu sentido literal, expressava quem tinha a ascendência sobre a

organização feminina e definia quem ganharia com isso; mais uma vez, deixando

claro que era ele. É fato que, durante o período em que a Congregação permaneceu

sob o direito diocesano, houve uma sensível diminuição de obras nas paróquias dos

frades.

Novo estreitamento de laços com os frades capuchinhos voltaria a ocorrer apenas

em 1946, não mais com os frades de Piracicaba, mas com frades de outra província,

no Sul do País. Paradoxalmente, após ter recebido a sinalização de que o direito

pontifício estava a caminho, a Congregação, vendo o fim da tutela dos bispos e dos

religiosos, começava a sentir que aquela dependência lhe faria falta. A oportunidade

surgiu quando os frades de Santa Catarina lhe propuseram uma nova frente

missionária.

Por fim, destacamos que, ao propor a transferência da sede da Congregação para

Campinas e depois sugerir a construção do Colégio Ave Maria, Dom Barreto rompia

o elo que ainda ligava aquela organização com o seu passado da Ordem Terceira.

Com razão, Irmã Cecília teria protestado veementemente contra essa decisão,

porque teria vislumbrado nela o último ato que a afastava de qualquer participação

no governo da organização em que, por respeito ou mesmo devotamento pessoal,

as superioras gerais recorriam a ela, ouvindo seus conselhos (PEDROSO, 1996).

6. A organização da Congregação: uma rede de casas com diversificados serviços

Enquanto as Ordens religiosas eram identificadas como única, com um governo

centralizado, dotado de autonomia religiosa e política sobre seus domínios

territoriais, quando esses ainda existiam, e voltadas predominantemente para a vida

silenciosa e contemplativa no claustro, as congregações religiosas adotavam uma

organização e um estilo de vida totalmente oposto e com características rizomáticas

responsáveis por uma identidade singular. Através de uma rede de múltiplas células

e/ou casas, mas com igual modo de ser e agir, cada uma dessas partes revelava o

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todo da congregação, como uma espécie de filiais unificadas em torno de um(a)

superior(a) geral e sua equipe de governo, que, via de regra, se concentravam na

sede de governo, também chamada de “casa mãe” ou casa geral. Como na maioria

das casas havia capelas, principalmente nos finais de semana eram realizados

diversos serviços religiosos, dos quais a vizinhança participava. Esses momentos,

quando as religiosas exerciam a função de pregação, através da catequese das

crianças, de jovens e adultos, foram fundamentais para a ampliação das redes de

contatos com a população. Essa realidade lhes permitia construir uma identidade

social bastante próxima do comum das pessoas que compunham a sociedade, de

forma que, sob muitos aspectos, as religiosas aparentemente não se diferenciavam

do restante da população (LANGLOIS, 1984).

Junto a cada casa havia a obra e/ou “empreendimento” com a qual as religiosas

exerciam práticas sociais educadoras e/ou caritativas, e, com as quais também

sustentavam a comunidade religiosa. Langlois distingue as casas e obras “ocupadas

e possuídas”, das casas e obras somente “ocupadas”, isto é, pertencentes a outrem

e cedidas a organização feminina (LANGLOIS, 1984, 345). Na Congregação das

Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, verificamos que a maior parte dos

documentos se refere às várias células como “casas” e/ou “comunidades” e a

“obras” como instituições. Todavia, em dois relatórios de uma mesma superiora geral

aparecem a sui generis distinção entre “filiais” as casas da organização, e “casas de

administração”, àquelas cujas obras e as casas eram cedidas por terceiros para

abrigar as religiosas, que lhes prestavam serviços (RELATÓRIO 1945-1951, ANEXO

8, 1951-1957, 27,28).

Entendemos que os termos usados pela superiora, e especialmente “filiais” causam

certa confusão porque, ainda que se possa dizer que as “casas de administração”

gerenciavam as estruturas pertencentes a outrem, a comunidade religiosa que a

dirigia era também parte dela e, portanto, idêntica às outras comunidades, sendo,

por isso, também uma filial. Entendemos, segundo Langlois, que o fato delas

ocuparem mas não serem possuidoras das estruturas, não as tornavam casas e/ou

comunidades inferiores e nem diferentes daquelas que ocupavam estruturas

possuídas pela Congregação87. Na melhor das hipóteses, o termo filial poderia ser

87 A partir daqui usaremos a distinção “casas com obras próprias” e “casas com obras conveniadas”.

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113

entendido como referência a cada uma das casas, tal qual a utilizou a primeira

superiora geral, quando se referiu as várias casas e/ou comunidades integrantes da

Congregação, independente se estavam em obras possuídas ou simplesmente

ocupadas, o que fazia de cada célula igual parte do todo (FONTES HISTÓRICAS,

1985, 56).

O patrimônio material das congregações se divide em bens imóveis, que são as

casas com obras próprias, compradas ou doadas, e os recursos financeiros, como

as doações em espécie por membros da elite católica e os repasses das reservas

econômicas das várias casas. Esse dinheiro era usado para o custeio de despesas

não pagas pelo contratante e as reservas econômicas acumuladas eram revertidas

para um caixa central administrado pelo governo geral, e utilizadas para a

manutenção das religiosas em funções de governo, das religiosas idosas e doentes,

das casas de formação e para as novas casas subsidiadas. Justamente por isso, o

número de casas com obras ocupadas e possuídas foi inferior ao das casas apenas

ocupadas, pelo simples fato de que era preciso acumular posses para adquiri-las, ou

contar com a benemerência de algum doador. Já as casas ocupadas, mas não

possuídas, chamadas pela superiora geral de “conveniadas”, eram casas cedidas e

regidas por um “contrato”, na maioria das vezes informal, firmado entre as partes, no

qual se fixava o número de religiosas que assumiriam a responsabilidade pela

execução dos trabalhos. Em contrapartida, como forma de retribuição, o contratante

repassava à superiora local o valor pré-fixado correspondente ao trabalho de cada

irmã e assumia o compromisso de lhes fornecer moradia, capela, alimentação e

assistência médica.

Tal como uma rede de empreendimentos, as múltiplas células, ou casas, espalhadas

pelas cidades reproduziam o mesmo estilo de vida, de modo a formar uma única

organização, em que as religiosas se empenhavam na mesma causa: o

desenvolvimento da organização em vista do reconhecimento pontifício. Via de

regra, a multiplicação das casas congregacionais dependia basicamente de quatro

fatores complementares: a emergência de uma demanda social, a capacidade para

respondê-la com qualidade profissional, a existência de um excedente nos quadros

de religiosas e a mediação de membros do clero e/ou da elite das cidades na

articulação dos vários interesses e na construção de um consenso possível para

ambas as partes. Os clérigos assumiam a função social de agenciadores, os quais,

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através de sua rede de contatos, agiam como facilitadores segundo seus próprios

interesses ou da instituição que representavam. Por outro lado, não se pode dizer

que as congregações fossem ingênuas, mas, sim, sabedoras de sua condição na

estrutura eclesial e social. Restava-lhes agir com prudência e adotar estratégias que

lhe abririam perspectivas.

Quadro 1: Número de casas e de irmãs nos sucessivos governos88

Governos N.º de irmãs

% de crescimento N.º de casas

Média de irmãs /casas

1900-1906 7 75,0 % 1 7,0 1906-1909 16 128,6% 4 4,0 1909-1912 19 18,8% 5 3,8 1912-1915 33 73,7% 6 5,5 1915-1918 40 21,2% 7 5,7 1918-1921 54 35,0% 8 6,8 1921-1927 82 51,9% 14 5,9 1927-1933 111 35,4% 17 6,5 1933-1939 144 29,7% 19 7,6 1939-1945 187 29,9% 27 6,9 1945-1951 215 15,0% 28 7,7 1951-1956 264 22,8% 32 8,3 1956 -1963 302 14,4% 35 8,6 1963-1969 312 3,3% 34 9,2 1969-1973 254 -18,6% 37 6,9 1973-1979 246 -3,1% 37 6,6 1979-1985 213 -13,4% 32 6,7 1985-1991 202 -5,2% 30 6,7 1991-1997 188 -6,9% 31 6,1 1997-2003 177 -5,9% 31 5,7 2003-2009 158 -10,7% 31 5,1 2009-2014 136 -13,9% 25 5,4 (Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

A partir da primeira casa, em Piracicaba, foram abertas aproximadamente 117

casas, em 63 cidades de 11 estados brasileiros e 2 em Moçambique, na África89.

Neste estudo nos fixaremos apenas nas casas abertas até a década de 1960,

88 Este gráfico foi organizado a partir de informações de fontes complementares. As informações do número de religiosas desde a fundação, isto é, de 1896 até 1920, foram extraídas do Livro de Registro de Admissão das Religiosas e do Livro denominado “Irmãs Franciscanas do Coração de Maria”, que traz um elenco das religiosas de cada governo até 1920. Para as informações posteriores a 1920, coletamos as informações nos relatórios alusivos a cada período. Como esses não seguem uma rígida padronização, consideramos a hipótese de possíveis erros, que em nada alteram o objeto de nossa análise. 89 Foi verificada certa imprecisão na contabilização das casas, pois, via de regra, até 1950 a congregação contabilizava cada casa com sua respectiva obra própria como uma única casa. Depois da década de 1940, especialmente nas obras conveniadas, algumas casas passaram a ser separadas de suas obras, o que acabou causando certa confusão no lançamento de duas unidades.

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quando predominaram 4 frentes missionárias, que foram assumidas pelas casas

com obras próprias e através das casas com obras conveniadas:

Quadro 2: Distribuição das casas fundadas, por estado e país

Localização por estado/país

Total de casas abertas

Total de casas fechadas

São Paulo 79 49 Paraná 9 8 Goiás 2 1 Amazonas 4 2 Piauí 2 2 Rio de Janeiro 3 3 Bahia 3 2 Minas Gerais 7 7 Mato Grosso 1 1 Rio Grande do Sul 3 3 Santa Catarina 2 2 Moçambique/ África 2 0 Total 117 80 (Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

Quadro 3: Distribuição das casas segundo as diferentes missões e os dois tipos de casas

Obras próprias

Obras conveniadas Total

Instituições escolares 15 13 28

Hospitais 23 23

Asilos 11 11

Pensionato 1 1

Casas Pastorais 15 41 56

Total 31 88 119

% 26,5% 73,5% 100% (Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

Quadro 4: Estado atual das casas e obras da Congregação

Obras próprias

Obras conveniadas Total

Instituições escolares 9 1 10

Hospitais 0 0 0

Asilos 1 1 2

Pensionato 0 0 0 Casas Pastorais ou Fraternidades 10 14 24

Casa de Retiro 1 1

Total 21 16 37

% 55,26% 44,74% 100,00% (Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

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7. As diferentes frentes da missão

O projeto de expansão das congregações religiosas foi condicionado mais pelas

necessidades sociais que pelo campo de ação, que cada qual elegera como

carisma. Assim, ainda que grande parte das congregações imigrantes tenha

declarado ao governo brasileiro seu interesse pelo trabalho escolar, nem todas

puderam abrir escolas de imediato. Isso lhes exigiu dedicarem-se a outras funções

que lhes garantissem o sustento até que pudessem alcançar o objetivo traçado, o

que, por sua vez, lhes abria novos campos missionários (LEONARDI, 2011).

Na Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, quatro foram as

frentes de ação: a educação, a saúde, o cuidado de idosos em asilos e a

administração de um pensionato. Embora analisemos as quatro frentes, nos

deteremos sobre as duas primeiras, por terem sido as mais duradouras e mais

importantes na construção do patrimônio material e espiritual da organização,

também porque indicam o seu grau de participação na organização do Estado

Nacional.

Desde o início, a Congregação experimentou um extraordinário florescimento em

forma de crescente espiral. À medida que o número de religiosas crescia, a

superiora deveria arranjar destinação para elas; isso a impelia a abrir novas casas e

novas obras em lugares ou cidades distintas, não só abrigando as religiosas, mas

também construindo a visibilidade da organização, estabelecendo novas redes de

contatos com a sociedade em geral, gerando novas doações e possibilidades de

recrutamentos. Entre 1900 e 1912 houve uma grande expansão, triplicando o

número de religiosas e quintuplicando o número de casas.

Por intermédio dos frades, a Congregação foi convidada pelo padre Manoel Rosa,

responsável pela Santa Casa de Descalvado, em 1904, para assumir a primeira

casa conveniada, onde três religiosas receberiam moradia, assistência religiosa e

uma côngrua proporcional entregue mensalmente à superiora local90. O mesmo

padre a convidou para a fundação da segunda casa e obra, o Lar Escola Imaculada

90 Optamos por nos referir a contribuição mensal utilizando a palavra “côngrua”, a qual expressa a contribuição concedida aos ministros religiosos; por extensão, às religiosas. Ela não deve ser confundida com salário, pois, as freiras não eram empregadas. No capítulo III aprofundaremos a temática.

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Conceição. Em 1906, por intermédio do diretor da Associação Vicentina Nossa

Senhora do Desterro, de Jundiaí, três irmãs assumiram a direção do Hospital São

Vicente daquela cidade. Igualmente, em 1910, Dom Nery sugeriu que a organização

religiosa assumisse a direção da Creche Bento Quirino, em Campinas. Estas duas

últimas se configuraram como a segunda e a terceira casas conveniadas (MARCON,

1992).

Nos dois governos de Irmã Ignez Meneghetti apenas três obras foram abertas,

sendo duas por contrato: a Santa Casa de Misericórdia e o Lar dos Velhinhos,

ambos abertos em 1917 em Piracicaba, e uma nova casa e obra, o Lar Escola Santa

Verônica, em 1919, na cidade de Taubaté. Essa fora idealizada pelos membros da

Ordem Terceira de Taubaté, os quais, convencidos pelos frades capuchinhos,

convidaram a Congregação piracicabana para assumir a escola para meninas

pobres, que eles haviam fundado e estava com dificuldades econômicas e

pedagógicas para se manter (PEDROSO, 1996). Esta última obra possui um

significado emblemático, pois foi a primeira obra aberta junto aos capuchinhos

depois de quase 20 anos de fundação e, coincidentemente, um ano antes da morte

de dom Nery. Este fato pode ser analisado sob duas perspectivas complementares:

o fato de os frades terem preferido contar com religiosas, na direção do Lar Santa

Verônica, demonstra a orientação eclesiástica, praticada desde a segunda metade

do século XIX, de substituir as administrações leigas, ainda que formadas por

membros da ordem terceira, por religiosas. As principais razões para isso foram os

problemas econômicos ligados à manutenção da escola, dado que a ordem terceira

cedia o prédio, mas não tinha como pagar os professores. As irmãs se constituíam

em uma saída econômica, pois não lhes seria preciso pagar salários e, além disso,

seriam mais submissas e obedientes que os leigos. De outro lado, na questão

jurisdicional entre os religiosos e o bispo na ascendência e controle da congregação,

já sinalizada por nós, ela acabou sendo beneficiada por aquele que gozava de maior

poder, o bispo. Isto ficou claro, em função de seus múltiplos interesses.

Dom Barreto, por sua vez, investiu no crescimento da Congregação porque, de

alguma forma, ela também contribuía para a consecução de seu projeto, fato que,

por si só, demonstra a crescente importância social desse organismo feminino na

diocese de Campinas. Já nos sete primeiros anos, o bispo criou meios para que ela

assumisse cinco obras irrecusáveis: Vila São Vicente, em Campinas, em 1921;

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Penido Burnier, em Campinas, em 1924; Pensionato Nossa Senhora de Lourdes, em

Campinas, em 1924; Lar Escola Divina Providência, em Amparo, em 1924;

Patronato São Francisco, em Campinas, em 1927, todas, obras conveniadas.

Dessas, apenas a primeira lhe dava pouco retorno econômico, mas, ao mesmo

tempo, era um importante espaço para construir o patrimônio simbólico e espiritual

de religiosas pobres e devotadas aos necessitados, o que lhes renderia outros tipos

de ganhos (BOURDIEU, 2007). Três delas se constituíram como obras próprias e

foram fundamentais para fortalecer o patrimônio da organização: o Pensionato

Nossa Senhora de Lourdes para moças, o Patronato São Francisco, ambos em

Campinas, e o orfanato Lar da Divina Providência, em Amparo. Esta última fora

idealizada e fundada por Ana Bernardino de Campos que, por indicação do clero,

confiou-lhe a direção daquela obra e algum tempo depois, em 1924, lhe doou aquela

obra (FONTES HISTÓRICAS, 1985).

Cremos que este fato demonstra que o aumento dos convites para assumir obras e

receber doações não residia apenas na expertise que a Congregação conseguiu

acumular, nos seus 25 anos de existência, mas no fato de ela ter sido incorporada à

estrutura da Igreja, “como clero feminino”, tanto que, ao ser procurado pela doadora,

o padre da cidade de Amparo logo lhe sugeriu a Congregação piracicabana. Aqui é

possível verificar que a estrutura da diocese de Campinas e o seu clero contribuíram

para a abertura de novas casas, e, delas obtiveram retornos religiosos, tal qual em

uma espécie de patrimonialismo religioso91. Tal fato revela o peso de uma sociedade

ancorada em uma cultura católica assistencialista e filantrópica, a qual relegava às

mulheres funções subalternas na Igreja; todavia, como destacou Maria José

Rosado-Nunes, isso não impediu que elas, ainda que controladas pelo clero,

construíssem ali representações femininas (ROSADO-NUNES, 1996).

91 Pedroso alude à existência de um registro no Livro Tombo da Santa Casa de Descalvado, que informa: “A superiora Geral [Irmã Cecília] tratou de adquirir casa e terreno para a instalação de uma obra dedicada às crianças pobres. O Sr. Vigário, Revmo Pe Rosa, que foi também o fautor dessa iniciativa, envidou todos esforços para conseguir a realização” (sic) (PEDROSO, 1986). Na confrontação das fontes, verificamos que Luiz C. A. Kastein indica que o fundador da obra foi o padre. Independentemente de quem tenha sido o fato é que a Congregação recebeu ajuda econômica para abrir o orfanato (KASTEIN, 2015).

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7.1 A ação missionária na área educacional

A considerar pela intuição de frei Luiz, a inserção da organização feminina na área

educacional se deu pela ausência de cuidados do poder público para construir uma

presença social e religiosa, a qual, por ter sido reconhecida pela sociedade e pela

Igreja, acabou se transformando em Congregação religiosa. Dessa primeira intuição

nasceu o Asilo Maria Nossa Mãe, na cidade de Piracicaba, que logo depois passou

a se chamar de Lar Escola para o cuidado de meninas órfãs. Ao verificarmos a

existência de 20 obras voltadas para este tipo de cuidado, e apenas 7 colégios, fica

claro que estes foram fundados para prover meios econômicos para a manutenção

daqueles, que retorno econômico algum davam para a organização feminina. Com

raras exceções, os espaços de cuidado infantil não foram pensados para gerar bens

monetários, no entanto, também, não se configuraram como ônus para a

organização, pois a própria sociedade acabava contribuindo para a manutenção

deles. Além disso, eles foram responsáveis pela produção de bens altamente

simbólicos e, justamente por isso, foram conservados ao longo da trajetória da

organização como provas vivas da inspiração fundante de 1896. Especialmente o

Asilo de Piracicaba, que, ao longo do tempo, assumiu novos nomes e sofreu

reformas, ainda mantém a mesma arquitetura, tal como se o tempo, ali, tivesse

parado.

É preciso considerar que no projeto ultramontano, se, por um lado, a Igreja desejou

mostrar sua capacidade de educar e formar a elite brasileira, por outro, ela também

oferecia seus préstimos para sanar as mazelas da sociedade, decorrentes dos maus

costumes, dos problemas sociais provocados pelo capitalismo e também das

catástrofes modernas, a exemplo das pandemias que quase destruíram cidades

inteiras, dizimadas pela febre amarela, por exemplo, como foi o caso da região de

Campinas. Fiéis às orientações do papado, muitas congregações viram no grande

número de órfãos a possibilidade de dedicarem-se a eles, através de orfanatos e

liceus profissionalizantes, e assim construírem o patrimônio cultural de suas

organizações. Se tal trabalho não lhes gerava benefícios econômicos, lhes rendia

prestígio social e reconhecimento pelos serviços beneméritos. Das instituições

voltadas especificamente ao cuidado infantil, atualmente, a Congregação mantém

apenas cinco unidades próprias e uma obra contratada. A maioria dessas

instituições funciona como creches destinadas às crianças que ainda não

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frequentam a escola, e, duas delas funcionam como contra turno, ofertando reforço

escolar às crianças da periferia. Na trajetória da organização, aparecem seis

identificações para expressar o cuidado com as crianças menores: asilo, lar escola,

orfanato, educandário, creche, e casa da criança. Se as quatro primeiras

expressavam a realidade de crianças órfãs, as duas últimas se referiam a problemas

de ordem socioeconômica que atingem as famílias pobres, as quais recorrem a

instituições de amparo e cuidado de seus filhos92.. Diante dos avanços das políticas

públicas, hoje o número de órfãos é diminuto, mas é ainda alto o número de crianças

que precisam de amparo e proteção social e outras de reforço escolar.

Quadro 5: Instituições educacionais93

Funda ção

Instituição Tipo de obra

Cidade Situação Ano

1898 Asilo Nossa Mãe Própria Piracicaba/SP A 1909 Asilo e Externato Imaculada

Conceição Própria Descalvado/SP A

1910 Creche Bento Quirino Conveniada Campinas/SP F - 1993 1919 Lar Escola Santa Verônica Própria Taubaté/SP A 1921 Vila Vicentina (Escola/creche) Conveniada Campinas/SP F -1948 1924 Lar Escola Divina Providência Própria Amparo /SP A 1925 Colégio Franciscano Coração de Maria Própria Penápolis/SP A 1927 Patronato São Francisco Própria Campinas/SP F -1999 1930 Colégio Franciscano Ave Maria Própria Campinas/SP A 1940 Externato Nossa Senhora Aparecida -

Casa Coração de Jesus Própria São Paulo/SP F -1972

1941 Patronato da Cruzada Senhoras Católicas

Conveniada Santos/SP F -1967

1941 Patronato Cardoso Ribeiro (anexo Orfanato Santa Verônica)

Própria Taubaté/SP A

1949 Educandário São José Própria Herval d'Oeste/SC

F -1958

1951 Lar Escola Nossa Senhora Perpétuo Socorro

Conveniada MontesClaros/ MG

F -1974

1952 Escola Sagrado Coração Própria Irati / PR F -1989 1953 Educandário Santa Maria Goreti Própria São Lourenço

d’Oeste/ SC F -1955

1953 Educandário Nossa Senhora Aparecida (Divina Pastora)

Própria Uraí/ PR F -2009

1953 Escola Franciscana Santa Isabel Própria Bandeirante/PR A 1955 Educandário Nossa Senhora das

Graças Própria Ibiaçá /RS F -1964

1956 Escola Normal Nossa Senhora de Fátima

Conveniada São José do Ouro/RS

F -1971

92 A luta pelo direito à creche foi reconhecido e garantido pela Constituição Cidadã, de 1988. Em 1996 a Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9.394/96) estendeu o direito à educação as crianças de 0 à 5 anos, o que acabou desencadeando uma mudança na classificação da creche como entidade assistencial para educacional. 93 Os nomes de algumas instituições e de algumas cidades sofreram mudanças.

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1957 Creche Irmã Maria Ângela Própria Campinas/SP A 1957 Casa da Criança Conveniada Rio de Janeiro/

RJ F -1957

1958 Educandário Santa Terezinha Conveniada Carapicuíba/SP F -1967 1962 Educandário Santa Rosa de Lima Conveniada Iturana /SP F -1987 1964 Creche Carolina Mota e Silva Conveniada Carapicuíba/SP F -1967 1976 Casa Anjo da Guarda Conveniada Penápolis/SP A 2008 Centro Educacional e Assistência

Social Coração de Maria Própria Campinas/SP A

(Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados)

Legenda A: Aberta F: Fechada

As décadas de 1920 e 1930 representam um período fundamental para a

Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria. Foi quando ela se

aventurou no campo educacional, abrindo duas importantes escolas, que, além de

se converterem em importantes fontes de renda, promoveram a entrada do grupo

religioso no seleto clube das congregações mantenedoras de colégios destinados às

filhas das classes mais abastadas. As principais justificativas para a entrada de uma

congregação no campo educacional podem ser explicadas pelo aumento da

demanda causada pelo enriquecimento do interior paulista e que as congregações

educadoras, anteriormente já instaladas, não davam contas de suprir. Eis que surgia

um mercado educacional religioso atento aos diferentes níveis sociais, o que pode

ser notado pela ocupação dos espaços pelas diferentes escolas, que iam do centro

em direção às regiões mais afastadas do estado e das cidades (PEROSA, 2005).

Na cidade de Penápolis, região noroeste do estado de São Paulo, os frades

capuchinhos iniciaram seu trabalho pastoral em 1906, com a construção de uma

igreja dedicada a São Francisco de Assis. Apoiados pela elite da cidade, eles

idealizaram a construção de um colégio particular, mas, de forma semelhante à elite

de Taubaté, também aquela não estava disposta a contratar professores. Coube aos

franciscanos convencer as religiosas para que assumissem o empreendimento, que

inicialmente recebeu o nome de Colégio Santa Clara e foi fundado em 1925; depois,

com a presença das religiosas, passou a ser chamado de Coração de Maria

(PEDROSO, 1996).

Quando Dom Nery assumiu a diocese de Campinas, em 1908, convidou a

Congregação francesa Nossa Senhora do Calvário para fundar o Colégio Sagrado

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Coração de Jesus. Ao se tornar o segundo bispo da mesma diocese, Dom Barreto

convenceu a superiora geral a trazer a sede de governo da Congregação de

Piracicaba para Campinas, onde também lhe propôs fundar o Colégio Ave Maria, o

segundo colégio feminino católico em Campinas. A cidade crescera, e eis que

emergia uma classe média oriunda de funções intermediárias, desejosa de formar

bem seus filhos. Este bispo também já havia providenciado meios para que isso

ocorresse, ao lhes alugar por um baixo valor o Pensionato Nossa Senhora de

Lourdes, em 1924, e o Patronato São Francisco, em 1927, os quais se converteram

como importantes fontes de renda94. Ela também contou com a vultosa doação de

uma rica senhora católica que, sozinha, doou mais de 50% do valor correspondente

ao total do custo do terreno onde construiria o Colégio Ave Maria. Igualmente,

recebeu doações anuais de vários médicos do Instituto Penido Burnier

(RELATÓRIO, 1927-1933).

O Colégio Ave Maria, apesar de ter sido o segundo colégio da Congregação, é, até

hoje, um ícone da organização, não só porque está localizado no mesmo terreno da

casa do governo geral, no centro da cidade de Campinas, o que lhe garante

visibilidade eclesial, como é também uma das mais tradicionais e importantes

escolas da cidade. Essa opção foi muito bem planejada em função da obtenção do

reconhecimento papal. Em tese, isso em nada alterava a opção da singular

identidade, proposta por frei Luiz, de cuidar de meninas órfãs, que continuava sendo

mantida em outras obras; antes, esta poderia se converter em meio para a

realização daquela. Além disso, dedicar-se à educação particular a aproximava das

outras congregações que faziam sucesso como educadoras; e isso fazia diferença

na sociedade em processo de modernização. O colégio da cidade de Penápolis já

havia demonstrado a possibilidade de ingresso no mercado educacional e as

facilidades de granjear dividendos econômicos e simbólicos, o que fora, mais tarde,

comprovado com o colégio campineiro, o Ave Maria. Entretanto, o fato de a

organização ter voltado a fundar escolas apenas depois de 1946, e somente no

interior dos estados do Sul do País, demonstra que o mercado de São Paulo já não

era tão propício quanto fora no início de século, e que mudanças na política

94 Constatamos que o Pensionato representou, de 1930 a 1950, a maior fonte catalisadora de recursos econômicos para a organização. Especialmente o Relatório do sexênio 1946-1951 indicou que somente o repasse do Pensionato ao caixa central da organização havia superado a contribuição de todas as casas e obras conveniadas (RELATÓRIO 1946-1951, Anexos 8 e 9).

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educacional estavam para ocorrer. Os principais motivos eram as pressões dos

educadores, que exigiam do governo maior rigor no reconhecimento das escolas, e

as exigências para o exercício do magistério. Se, até então, as religiosas mais

capacitadas exerciam o magistério, as novas leis educacionais exigiam diplomas.

Com o avanço da laicização do ensino e da crescente normatização das escolas,

verificamos, nos Relatórios, a preocupação das madres superioras em garantir apoio

político para a manutenção e a aprovação das escolas e, também, em administrar a

formação do quadro de professores. No Relatório de 1945-1951 (p. 12 e 13,

respectivamente), a superiora geral informa que, apesar dos vários apoios políticos,

havia demorado quase um ano para obter a autorização para a abertura do curso

ginasial nos colégios Ave Maria, em Campinas, e Coração de Maria, em Penápolis.

Também a partir de 1951, os Relatórios passaram a trazer informações sobre os

cursos que as irmãs eram incentivadas a seguir, principalmente em pedagogia e

enfermagem, o que demonstrava que as superioras estavam atentas às mudanças

legislativas nas duas profissões. A duras penas, a Congregação tomava consciência

de que a transferência da sede para Campinas, e a ajuda da elite e do clero, não

foram capazes de superar a significativa insuficiência que a impedia de intensificar

sua presença naquele campo, a saber, a precária situação pedagógica devido à

limitada escolarização das religiosas, de forma que as poucas professoras formadas

foram destinadas às duas escolas particulares e às obras de cuidado infantil.

7.2 A ação missionária na área da saúde

Além das práticas educativas, a identidade congregacionista é marcada pelo

cuidado com a saúde, ambas vistas como práticas caritativas. Em razão disso, as

congregações dedicadas ao campo da saúde foram muito valorizadas pelas

sociedades de tradição católica. Dirigir e manter hospitais públicos já fazia parte da

tradição ibérica, onde são conhecidas e reconhecidas as Santas Casas. Nessas

instituições, organizadas como hospital e casa religiosa, viviam freiras que se

dedicavam diuturnamente ao cuidado de outrem, sem receber pagamento pelo seu

trabalho, a não ser moradia, alimentação e assistência religiosa.

Em função do domínio católico, muitas congregações puderam assumir instituições

de saúde, mesmo sem a devida formação de seus quadros, o que era compensado

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124

pela dedicação e pela austeridade das religiosas, que se fizeram administradoras e

enfermeiras práticas. Isso significa dizer que o interesse das congregações e das

religiosas por aqueles postos não se resumia a questões econômicas. Tendo

garantidos a subsistência e o abrigo, o retorno simbólico de serem reconhecidas

pela sociedade em posição social ao lado dos médicos era algo de muito prestigio

em uma sociedade hierarquizada. Por outro lado, é de se compreender o grande

interesse das Santas Casas, das Irmandades religiosas, dos padres e das elites que

contratavam congregações religiosas para assumirem os trabalhos em instituições

falidas e/ou com mínimas estruturas para o seu funcionamento. Tal demanda

significou oportunidade real para que as congregações se expandissem,

construíssem sua visibilidade e ocupassem suas religiosas. Estima-se que, na

década de 1930, havia dez mil religiosas atuando nos hospitais brasileiros

(BARBIERI; RODRIGUES, 2010).

Para ampliar a sua presença na sociedade, a Congregação das Irmãs Franciscanas

do Coração de Maria, sem renunciar ao projeto inicial de dedicar-se à educação,

ampliou a noção de cuidado e dedicou-se à área da saúde através dos serviços de

administração e enfermagem. O fato de ter assumido, entre os anos de 1904 e 1991,

23 obras ligadas ao cuidado médico, sendo 16 hospitais e 2 escolas de

enfermagem, dentre os quais 9 Santas Casas e 1 da Ordem Terceira Franciscana, 3

sanatórios, 3 clínicas ou casas de cuidado infantil e 1 ambulatório, deixa entrever

que esta foi a segunda atividade. Apesar disso, todas essas obras foram assumidas

como obras conveniadas através de contratos com terceiros, o que talvez explique o

fato de não haver, atualmente, casa alguma ligada a esse importante campo

pastoral que marcou a sua história.

Via de regra, as condições desses contratos eram precárias, com instalações

deficientes e repasses econômicos bastante baixos, principalmente nas Santas

Casas. Segundo registros memorialísticos, os quais consideramos com certa

prudência, a situação em que as irmãs encontraram o Hospital de Descalvado, em

1904, era tão drástica que, para limpar o prédio onde morariam, foi necessário uso

de enxada para remover a sujeira (FONTES HISTÓRICAS, 1985)95. Ainda que tenha

95 Realidade semelhante foi identificada na primeira congregação brasileira, Filhas da Imaculada Conceição, cujo núcleo fundador da organização, ao assumir sua primeira obra social na área de saúde, a encontrou tão precária, que a denominou de “hospitalzinho” (CUSTÓDIO, 2014).

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125

havido certo exagero narrativo, tal descaso com instituições hospitalares não se

constituía como exceção.

Quadro 6: Instituições na área da saúde

Fundação

Instituição Tipo de obra

Cidade Situação Ano

1904 Santa Casa de Misericórdia Conveniada Descalvado/SP F - 1980

1906 Hospital São Vicente de Paula Conveniada Jundiaí/SP F -1973

1915 Santa Casa de Misericórdia Conveniada Piracicaba/SP A

1922 Santa Casa Conveniada Sorocaba/SP F - 1950

1924 Instituto Penido Burnier Conveniada Campinas/SP F - 1970

1927 Sanatório Imaculada Conceição Conveniada Tremembé/ SP F - 1933

1934 Santa Casa Conveniada Penápolis/SP F -1968

1935 Santa Casa Conveniada São Pedro/SP F - 1965

1935 Santa Casa Conveniada Mogi-Mirim/SP F -1983

1935 Santa Casa Conveniada São Sebastião da Grama/SP

F -1992

1938 Sanatório Esperança Conveniada São Paulo/SP F -1942

1938 Santa Casa Conveniada Limeira/SP F -1971

1941 Ambulatório Nina Faria Conveniada Santos/SP F -1967

1943 Hospital Santa Cruz Conveniada São Paulo/SP F - 1991

1944 Casa de Saúde Dr. Francisco Guimarães

Conveniada Rio de Janeiro /RJ

F - 1946

1945 Gota de Leite Conveniada Santos/SP F -1947

1948 Clínica Santo Antônio Conveniada Campinas/SP F - 1960

1949 Centro de Puericultura Conveniada Campinas/SP F - 1970

1950 Sanatório São Vicente de Paula Conveniada Campos do Jordão/SP

F - 1956

1950 Hospital Santa Lucinda e Escola de Enfermagem Coração de Maria

Conveniada Sorocaba/SP F - 1969

1955 Hospital Santa Filomena (Pio XII) Conveniada Ibiaçá / RS F - 1964

1959 Clínica Infantil Santa Lídia Conveniada Ribeirão Preto/SP

F - 1967

1962 Santa Casa de Misericórdia Conveniada Vinhedo/SP F - 2000

1991 Hospital da Venerável Ordem Terceira Franciscana

Conveniada Rio de Janeiro/RJ

F - 2016

(Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados) Legenda A: Aberta F: Fechada

O Quadro 6 confirma que o período áureo das obras na área de saúde situa-se entre

as décadas de 1930 a 1950, com a fundação de 13 casas conveniadas em hospitais

ou clínicas. Dois fatos explicam isso: o primeiro, ligado à trajetória da própria

Congregação, que, no final da década, investiu seus recursos na transferência da

sede de governo e na abertura de duas novas obras próprias educadoras; e isto

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126

porque, com um elevado índice nos recrutamentos, que fizeram dobrar o número de

religiosas nesta vintena, e sem condições de abrir novas casas locais, foi

extremamente necessário investir na abertura de novas casas para acolher e dar

uma destinação para as novas religiosas. O segundo fato é que a organização

religiosa acabou se beneficiando da pressão da Igreja Católica sobre o governo, que

concedeu o status de “enfermeiras práticas” às freiras que, mesmo sem serem

enfermeiras diplomadas, poderiam trabalhar nos hospitais, desde que

comprovassem conhecimento empírico no que faziam. Em função disso, os hospitais

e as Santas Casas passaram a se interessar por este tipo de profissional, com custo

menor que os enfermeiros [diplomados] (BROTTO,2014). De outro lado, também

para a Congregação isto se revelava extremamente atraente, pois, dessa forma,

poderia dar destinação a suas religiosas, mesmo sabendo que as remunerações

seriam baixas. Tal realidade pode ser verificada no Quadro 6, especialmente no

interior de São Paulo, onde havia um “mercado” disposto a contratar religiosas

enfermeiras sem a formação exigida.

Tendo clareza da pressão do governo, ainda que tardiamente, a madre Maria São

Francisco do Divino Coração indicou no relatório conclusivo de seu governo que, em

1940, comprara uma casa na Vila Clementino, em São Paulo, que foi denominada

de Casa Coração de Jesus, para abrigar três religiosas que estudariam na Escola de

Enfermeiras do Hospital São Paulo. O mesmo documento informa que, em 1944, a

Congregação abriu a sua primeira casa de administração na cidade do Rio de

Janeiro, na Casa de Saúde Dr. Francisco Guimarães, onde as irmãs trabalhariam

como enfermeiras e “algumas postulantes estuda[ria]m na Escola de Enfermagem

Luiza de Marillac” (RELATÓRIO 1939-1945, p. 2 e 3, respectivamente). Na mesma

perspectiva, a madre Angelina Maria da Sagrada Face comunicou, no Relatório de

1945-1951, que, por sugestão de Dom Paulo de Tarso, o bispo de Campinas, nove

superioras locais, que estavam à frente de hospitais, fizeram, no ano de 1945, um

curso intensivo de administração hospitalar no Rio de Janeiro para prevenir futuras

exigências dos poderes governamentais.

Vemos, por essas ações, que a Congregação estava muito bem consciente das

exigências do governo em relação à regulamentação da profissão e do

funcionamento dos cursos, bem como disposta a colaborar na construção de um

modelo de escola católica de enfermagem. Isso fica claro quando Dom José Gaspar

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de Afonseca, e depois dom Carmelo Mota, diferentemente de dom Duarte Leopoldo

e Silva, abandonaram o projeto de colaborar na Escola de Enfermagem de São

Paulo e resolveram fundar uma escola estritamente católica, a Escola de

Enfermagem São Francisco de Assis, em 1943, confiando a sua direção às Irmãs

Franciscanas do Coração de Maria, que também administravam o Hospital Santa

Cruz (CYTRYNOWICZ; CYTRYNOWICZ, 2016; RELATÓRIO 1939-1945)96. Não

temos condição de avaliar a catolicidade do projeto e quais as concepções dos

bispos sobre o lugar político das religiosas, mas, é certo que a criação de uma

escola católica de enfermagem era uma clara reação aos avanços do secularismo

no campo da saúde, que ameaçava o lugar ocupado até então pela Igreja com as

freiras católicas.

Em 1948, a família Ermírio de Moraes e a Prefeitura de Sorocaba idealizaram

transformar a maternidade Santa Lucinda, recém-construída pelo empresário, na

primeira Faculdade de Medicina do interior do estado de São Paulo. Os interessados

na Escola de Medicina trataram de criar a Fundação Sorocaba, que ficaria

responsável pelas reformas e ampliações necessárias, bem como por conseguir

junto aos poderes públicos as verbas necessárias para a sua implantação. Em 15 de

abril de 1950 a Faculdade foi autorizada pelo governo federal (ROSSINI, 2015).

Vencida essa etapa, era preciso que uma instituição acadêmica assumisse tal

responsabilidade. Coube ao prefeito procurar o arcebispo Dom Carmelo Mota,

responsável pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, e oferecer

parceria na fundação das Escolas de Medicina. A contrapartida daquela

universidade seria prover o hospital com um corpo administrativo que se

responsabilizasse também pela Escola de Enfermagem, o que foi aceito de imediato.

Aproveitando o ensejo, o arcebispo tratou logo de inserir a recente Escola de

Enfermagem São Francisco de Assis nas negociações. Ele acertou com a diretoria

do Hospital Santa Lucinda e com a Fundação Sorocaba que a Congregação das

Irmãs Franciscanas do Coração de Maria assumiria a administração do Hospital e a

96 “Verificadas grandes dificuldades em manter o Hospital com enfermeiras leigas, consegui com o auxílio do inesquecível Arcebispo Metropolitano, Dom Jose Gaspar de Affonseca e Silva, a colaboração das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, que assumiram em janeiro de 1943, a direção de Enfermagem e dos serviços domésticos, trazendo para o Hospital Santa Cruz, entre outras, apenas licenciadas, três irmãs diplomadas em Escola de alto padrão, sendo uma especializada em obstetrícia”. (CYTRYNOWICZ; CYTRYNOWICZ, 2016, p. 99)

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128

direção da Escola de Enfermagem, passando, então, a se chamar Escola Coração

de Maria. Para tanto, o arcebispo determinou que a Escola de Enfermagem São

Francisco e toda a comunidade religiosa responsável por ela fossem transferidas

para Sorocaba. Assim a madre descreveu a transferência delas para Sorocaba:

Havendo a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo criado em Sorocaba, a Escola de Medicina, a qual devia ter anexada uma Escola de Enfermagem, a autoridade eclesiástica de São Paulo achou conveniente que passasse para Sorocaba a Escola de Enfermeiras São Francisco de Assis (...). A Congregação honrada com este convite transferiu o corpo docente da escola que funcionava no Hospital Santa Cruz para a nova escola (...) no Hospital Santa Lucinda. A 22 de fevereiro seguiu para Sorocaba a comunidade que assumiu a direção interna do referido Hospital e da escola de Enfermagem “Coração de Maria”, (...), inaugurada em 5 de agosto [de 1950] (sic). (RELATÓRIO 1945-1950, p. 12-13)

Por quase duas décadas a Congregação não parece ter tido maiores problemas

para conduzir o hospital escola, ou, pelo menos as superioras nada registraram em

seus Relatórios. Apenas no Relatório de 1963-1969 a superiora geral registrou que

as religiosas daquela comunidade estavam tendo uma série de dificuldades na

condução da instituição, mas explicitou apenas que a maior delas era a exigência

acadêmica imposta pelo governo para o exercício da enfermagem, fato que levava o

governo geral a pensar em desistir da direção do hospital e da Escola de

Enfermagem. Tendo comunicado tal decisão à direção e aos representantes da PUC

e da Igreja em 1968, a superiora geral foi convencida a manter a comunidade

religiosa por mais um tempo. Todavia, em 1969, sem ver solução para os problemas

apontados no ano anterior, a organização deixou o Hospital e a Escola de

Enfermagem. Diante da desistência da Congregação de continuar, a Fundação

Sorocaba, responsável pelo Hospital e a Escola de Enfermagem doou todo o seu

patrimônio à Fundação São Paulo, mantenedora da PUC de São Paulo, com a

condição de que aquela Universidade assumisse integralmente o hospital e os

cursos de Medicina e Enfermagem (RELATÓRIO 1963-1969, 1969-1973)97.

Entendemos, entretanto, que a organização feminina não poderia justificar a sua

desistência daquelas obras em função das novas exigências governamentais, pois,

97 Disso depreendemos, que a formação do patrimônio de Faculdades e Universidades Católicas se aproxima muito da forma como muitas congregações católicas constituíram os seus, o que permite entrever que o apoio da elite, dos políticos e eclesiásticos não era uma concessão feita propriamente a elas, mas um meio de realizarem seus projetos.

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se ela aceitou hospital e a escola de enfermagem era porque possuía um número

razoável de freiras diplomadas para assumir as funções administrativas e

pedagógicas. O indício para tal afirmação foi encontrado no Relatório da superiora

geral, Irmã Angelina Maria, que, ao mencionar que um dos motivos era “a falta de

elementos qualificados”, acrescentou também: “... e, infelizmente mais ainda, faltava

a necessária união entre os membros da comunidade” (RELATÓRIO 1969-1973).

Tal afirmação indica que a superiora geral se deparou com a resistência das

religiosas daquela comunidade, não convencidas de que deveriam permanecer à

frente das duas instituições, devido às precárias condições oferecidas pela diretoria

da Fundação Sorocaba. Considerando que, historicamente, as congregações

religiosas assumiam hospitais e santas casas com abnegada vontade de servir, sem

se importar com o desinteresse para com a saúde pública e, muitas vezes, com a

avidez dos diretores, que buscavam obter lucros através dos baixos proventos, é

bastante provável que esta fosse a situação daquelas duas instituições e, por mais

que as religiosas se esforçassem, elas não conseguiam resolver os problemas,

principalmente os econômicos.

Entendemos, nesta perspectiva, como as religiosas começavam a se dar conta do

que representavam para os grupos que as contratavam. Ainda que a madre

superiora tenha tido o cuidado de dar poucas informações no seu relatório, deixando

entrever, inclusive, até certa crítica àquelas religiosas, entendemos que o maior

problema foi a falta de recursos econômicos e a consequente desvalorização do

trabalho delas, as levando a recusa em continuar trabalhando naquelas condições.

Somou-se a isso a revolução causada pela secularização e a laicização, e pelo

Concilio Vaticano II, que motivou as religiosas a questionarem se o lugar social delas

era, de fato, nos hospitais e nas escolas. Isso fez com que muitas delas preferissem

trabalhar diretamente com o povo nas paróquias e nas missões, ressignificando,

assim, o lugar e o modo de ser religiosa no mundo (ROSADO-NUNES, 1997). Tais

fatos também provocaram a deserção de um número significativo de religiosas,

especialmente dentre as diplomadas, que vislumbraram sua independência

econômica e religiosa. Analisando a série de Relatórios, verificamos que, entre 1963

e 1973, 70 religiosas abandonaram a Congregação. Toda esta sequência de

acontecimentos a levaria a repensar o seu modo de ser e de estar no mundo.

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7.3 A ação missionária junto às jovens estudantes

O terceiro campo de ação da Congregação foi o trabalho com jovens estudantes na

administração do pensionato Nossa Senhora de Lourdes, que desde o início se

configurou como um negócio lucrativo.

Era relativamente comum, desde a Europa, que as congregações religiosas

femininas alugassem parte do espaço ocioso de suas casas para moças estudantes

ou trabalhadoras. A implantação de obras desse tipo estava associada à crescente

urbanização e ao consequente êxodo rural, que impelia mulheres para as cidades

em busca de oportunidades de trabalho e de estudos. Nessa configuração, o

pensionato católico era entendido como um espaço de proteção para as jovens,

como uma espécie de extensão da família, onde as irmãs cuidavam e impunham

limites às moças, substituindo o papel de seus pais e, em alguns casos,

“convertendo-as” à Igreja por meio da catequese e da comunhão tardia; portanto, um

espaço idealmente justificado para a realização de missão religiosa.

Em 1924, a Congregação assumiu, a convite do bispo Dom Barreto, a direção do

Pensionato Nossa Senhora de Lourdes, na cidade de Campinas, como uma de suas

obras próprias, com a responsabilidade de pagar o aluguel do prédio, que pertencia

à diocese. Não obstante a rigidez disciplinar, o pensionato manteve uma média

anual de 80 pensionistas, o que lhe rendia boas receitas, pois não demandava

gastos excessivos e nem exigia um número grande de religiosas em sua

administração.

Em função do crescimento da cidade, e com a criação das Faculdades Católicas em

1942, o organismo vislumbrou a possibilidade de expandir o pensionato. A

oportunidade veio quando Dom Paulo de Tarso Campos, ao resolver construir um

novo palácio episcopal, propôs à Congregação a compra daquele imóvel e do prédio

cedido a ela desde 1924, o que foi aceito e visto como um bom negócio, até porque

a Cúria Metropolitana de Campinas havia facilitado a forma de pagamento

(RELATÓRIO 1945-1951). Considerando que o Balancete de 1945-1951 tenha

lançado em seus rendimentos apenas os valores recebidos pelas pensionistas,

calcula-se que cada uma das 80 moças pagava o equivalente a 1,1 salários mínimos

mensais por sua estadia (RELATÓRIO 1945-1951, Anexo 8).

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Segundo os relatórios, no Pensionato Nossa Senhora de Lourdes havia a prestação

de serviços religiosos e a catequese das pensionistas. Ao comparar alguns quadros

relativos ao movimento religioso daquela instituição, verifica-se que, apesar do

aumento no número de pensionistas, o número de participantes nos ofícios

religiosos se manteve na média de um terço das residentes. Além disso, não se

verificou nos relatórios nenhuma ação eclesial para promover um maior

envolvimento das pensionistas com a Igreja e, tampouco, com as causas da

organização religiosa, tal como cita Paula Leonardi sobre a Congregação das Irmãs

da Sagrada Família, instalada em São Paulo, em 1908, que se empenhara para que

as pensionistas se engajassem em uma das diversas associações femininas

(LEONARDI, 2009). Um fator a ser considerado é que esta última pesquisa tem seu

recorte nas primeiras décadas do século XX, enquanto a análise sobre o Pensionato

Nossa de Lourdes, de Campinas, é da década de 1950, quando se percebiam os

primeiros sinais da secularização, os quais também atingiram a Igreja.

O Pensionato existiu até 1973, quando foi fechado e o prédio desapropriado pela

Prefeitura Municipal de Campinas para reurbanizar a área central da cidade. O

dinheiro recebido pela desapropriação foi utilizado em outras frentes de trabalho e

em reformas patrimoniais (RELATÓRIO, 1973-1979).

7.4 A ação missionária junto aos idosos

Por fim, o quarto bloco, de casas de administração, esteve ligado à perspectiva do

cuidado aos idosos. Desde 1917, a Congregação administrou dez asilos para idosos

ou entidades congêneres. Essas casas sempre deram pouco retorno econômico,

mas o suficiente para manter as irmãs que lá trabalhavam e, ainda, para que elas

contribuíssem com o caixa central da organização. Além da questão econômica, as

obras caritativas construíam a visibilidade de um organismo que se apresentava

devotado aos pobres, lhes rendendo inúmeros bens simbólicos.

Quadro 7: Obras assistenciais ligadas ao cuidado de idosos

Data Instituição Tipo de obra Cidade Situação 1917 Lar dos Velhinhos de Piracicaba Conveniada Piracicaba/SP A 1923 Asilo de Velhos Conveniada Botucatu F- 1926 1945 Vila Vicentina Conveniada Poços de Caldas/MG F- s/d 1951 Asilo dos Inválidos Conveniada Campinas/SP F- 1953 1973 Cidade Vicentina – Frederico Conveniada Jundiaí/SP F- 1992

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Ozanan 1974 Lar Nossa Senhora das Graças Conveniada Palmas-PR F- 1989 1974 Lar de Velhos- Penápolis Conveniada Penápolis/SP F- 1970 1975 Casa de Velhos Conveniada Dracena/SP F- 1982 1976 Lar São José Conveniada Leópolis /PR F- 1979

2008 Instituto de Longa Permanência para Idosos Conveniada Campinas/SP A

(Quadro elaborado pelo autor com base no Banco de dados) Legenda A: Aberta F: Fechada Da mesma forma, como ocorreu na maioria das outras obras, o decréscimo no

recrutamento, as mudanças ocorridas na Igreja e a própria reorganização da

Congregação, fizeram com que a organização religiosa fechasse a maioria dessas

obras. Atualmente, ela administra o Lar dos Velhinhos, na cidade de Piracicaba, e

um abrigo para homens idosos, denominado Instituto de Longa Permanência para

Idosos, em Campinas, que foi aberto em 2008, cuja direção está a cargo da

organização religiosa e conta com subsídios públicos para as despesas com

funcionários e alimentação.

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133

·.

Capítulo III

A ressignificação do trabalho como patrimônio

Este capítulo analisa como o novo estilo de vida religioso, surgido no século XIX,

chamado também de “vida ativa”, foi fundamental para o desenvolvimento de uma

ideologia, do ponto de vista religioso, uma espiritualidade para que a Congregação

das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria pudesse concretizar seu projeto. Ao

ressignificar a noção de trabalho – nas obras das congregações e das organizações

contratantes – como forma de consagração religiosa, tal espiritualidade se constituía

como meio para justificar a necessidade de constituir um patrimônio material, o qual,

por sua vez, permitiria a organização cumprir as metas determinadas pela Santa Sé,

a fim de atingir o reconhecimento eclesiástico. Na construção desta ideologia –

espiritualidade –, era fundamental que a proposta da organização fosse assumida

pelo conjunto das religiosas, em suas múltiplas subjetividades. Para esta parte da

tese, as principais fontes que fundamentam o nosso argumento são os relatórios que

cada superiora geral deveria entregar ao bispo ao final de seu mandato98.

1. As condições sociais propícias ao desenvolvimento das congregações

As distintas formas de vida religiosa emergem como respostas a questões próprias

do seu tempo e, por isso, muitas vezes acabam assumindo tais características

(ROCCA, 2015). Sendo estruturas humanas, elas tendem a acomodar o seu

propósito religioso àquelas circunstâncias, enquanto julgam ser possível beneficiar-

se delas e resistir a toda possibilidade de mudança que as ameace. O cristianismo

sempre considerou a educação e o cuidado com os doentes como obras religiosas:

a primeira como forma de conduzir as pessoas ao conhecimento da Verdade, ao

98 Como indicamos na introdução estes deveriam apresentar o estado da Congregação em quatro quesitos: pessoal, econômico, religioso e recrutamento e formação.

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próprio Deus; o segundo, como se fosse um cuidado dirigido ao próprio Cristo. A

Igreja Católica os definiu como obras de misericórdia. Nas sociedades marcadas por

esta cultura religiosa, o envolvimento com tais obras ultrapassava as relações de

troca entre trabalho e salário, porque eram vistas como missão religiosa.

Com a emergência do Estado moderno e liberal, tais ações passaram a ser vistas

como serviços públicos prestados à sociedade. Assim, em um Estado laico,

composto por membros com iguais direitos, as instituições deveriam também ser

igualmente laicas, e todos, indistintamente, deveriam receber tais serviços,

independentes de seu credo, e Igreja alguma deveria controlá-los.A saída

encontrada por políticos ligados aos interesses da Igreja foi enfatizar que se o

Estado era laico, o povo era religioso e por isso os católicos tinham o direto de ter

instituições confessionais. Como várias organizações católicas já possuíam

expertise e estrutura nessas áreas, muitas delas passaram a receber algum tipo de

subsídio público, com a condição de assumir programas laicos, o que acabou sendo

muito propício para a expansão das congregações religiosas (MARTINA, III, 1988).

A ocorrência desses fatos só foi possível por duas razões que se convergiram: a) a

existência de grupos que se interessavam em realizar tais serviços, em função de

seus projetos religiosos; b) a permanência de uma sociedade conservadora e

culturalmente católica, que ainda concebia que tais serviços – diferentemente das

outras profissões –, pelo fato de estarem ligados à caridade cristã, não se

configuravam como atividades merecedoras de retribuição econômica. Havia,

portanto, a confluência de interesses múltiplos, que possibilitava ganhos materiais e

simbólicos para os dois grupos (BOURDIEU, 1997, 2007).

As atividades sociais desenvolvidas nas várias frentes missionárias detinham

características de produção: havia rotinas cotidianas, jornadas a serem cumpridas,

responsabilidades organizacionais e metas a serem alcançadas. Inseridas,

basicamente, na sociedade urbana, as nascentes congregações, sem posses e nem

rendimentos, não tinham condições de organizar sua vida sociorreligiosa como os

mosteiros. Eis, então, que as atividades religiosas, como a educação e o cuidado de

doentes, passavam a se configurar também como meio para garantir a existência e

a sobrevivência da organização feminina.

Uma das principais razões do sucesso do movimento congregacionista foi o espírito

comunitário da vida religiosa, fazendo com que seus membros se sentissem

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responsáveis pela vida da organização, pelo seu sustento e pela realização de seus

projetos. A espiritualidade, que veiculava práticas de despojamento, de pobreza, de

austeridade e de trabalho abnegado, além de produzir bens simbólicos e espirituais,

se constituía em uma importante justificativa para o acúmulo de pequenos capitais,

os quais, multiplicados pelas casas, possibilitavam rendimentos a serem investidos

no custeio das despesas de manutenção da organização religiosa e na ampliação e

abertura de outras frentes missionárias. Tal economia, fundada em princípios

religiosos, teria se constituído na principal fórmula de sucesso das congregações

para a obtenção do direito pontifício.

Disso decorrem duas conclusões convergentes: a) o sucesso econômico das

congregações não deve ser visto tão somente como mérito pessoal das religiosas,

mas como fruto da conjuntura social e política próprias dos séculos XIX e XX, no

caso brasileiro – as quais as organizações congregacionais, especialmente as

femininas, souberam usar a seu favor; b) a compreensão religiosa de que o

“trabalho” desenvolvido em obras próprias, ou de outrem, tinha um fim religioso, a

missão, e não se restringia ao mero recebimento de salários (LANGLOIS, 1984).

2. A formação para a missão

Giancarlo Rocca afirma que, o modelo congregacional, como “vida religiosa ativa”,

não se configura como um novo modo de vida religiosa, na medida em que não

apresenta novidade teológica alguma, mas tão somente uma adequação das

organizações religiosas às condições impostas pelas sociedades. Segundo ele, a

força desse movimento não residiria em características religiosas próprias, mas

naquelas impostas pelos governos liberais para que tais organismos pudessem

existir, o que implicava em sérios problemas para a compreensão teológica da

identidade da consagração religiosa. Isso significa dizer que, a intensa relação de

proximidade com a sociedade, mediada pelo episcopado durante a romanização, foi

incorporada como “modo de ser” da vida religiosa congregacional, reconvertendo os

problemas sociais em apostolado, o que era reproduzido pelas congregações a se

espalharam pelo mundo, e serviram como modelo para o surgimento das

congregações locais (ROCCA, 2016). Também no Brasil, a emergência dessas

organizações estava ligada aos flagelos sociais, e sua sobrevivência estava

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condicionada a manutenção da precariedade social do Estado. Entretanto, à medida

que a sociedade se empenhou para construir um Estado cada vez mais

comprometido com o bem-estar social, as possibilidades de presença das

congregações naqueles espaços diminuíam e comprometiam a sua multiplicação, o

que, por sua vez, exigia uma continua reinvenção de si para continuarem existindo.

Nesse modelo congregacional, de organização prestadora de serviço, a

espiritualidade e a formação das religiosas deveriam seguir um programa coerente

com os fins a serem obtidos. No que diz respeito à formação espiritual, o

investimento feito nas congregações foi muito baixo, pois a obediência, vista como

condição feminina naturalizada, e a espiritualidade devocional e pietista romanizada,

especialmente mariana, foram vistas como suficientes para a realização das práticas

de apostolado. Não obstante tal limite, tal condição revelava um catolicismo com

características populares porque conduzido por mulheres que se misturavam ao

povo e, na maioria das vezes, possuía formação igual ao comum das pessoas.

Especificamente na organização estudada, o primeiro ato de consagração do grupo

de terceiras, que assumiu o Asilo, foi feito através de uma oração de consagração

piedosa ao Sagrado Coração de Maria (PEDROSO, 1996).

A formação espiritual delas consistia na leitura e na meditação frequente de trechos

das obras Imitação de Cristo, de Tomas Kempis, do século XV e Exercício de

perfeição e de virtudes cristãs, do jesuíta Afonso Rodrigues, do século XVII, e na

récita das Horas Marianas ou do Oficio menor da Santíssima Virgem, do também

jesuíta Francisco de Jesus Maria Sarmento, escrito em 1776 (FONTES

HISTÓRICAS, 1985; PEDROSO, 1996)99. Não por acaso, a maioria dos livros

devocionais serem ligados a espiritualidade inaciana, cujo principal pilar era voto de

obediência100. Nas Constituições de 1921 se verifica a multiplicação de orientações

para as práticas espirituais ligadas aos votos religiosos, mas, ao mesmo tempo,

totalmente desvinculadas da realidade cotidiana das irmãs que prestavam

99 Pela datação vemos que não se via razão para edições atualizadas, dado as três obras terem como objetivo divulgar a cultura espiritual tridentina, que vigorava em todos os organismos religiosos. Para aprofundar o assunto, conferir Villalta (2012). 100 Assim, se a ratio studiorum passou a fazer parte dos programas pedagógicos a serem executados nas escolas católicas, os exercícios espirituais e as obras devocionais jesuíticas formavam aquelas que conduziriam as organizações escolares e formariam os novos católicos. Nesse sentido, tal como destacamos no capitulo I, ainda que a Companhia de Jesus não tenha criado ramos femininos, a presença da cultura jesuítica na formação das congregações femininas foi, e, ainda, é, profundamente intensa.

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assistências às meninas abandonadas e aos doentes (CONSTITUIÇÃO de 1921,

cânones 47 a 110)101.

A espiritualidade, que nutria os membros das congregações religiosas missionárias

do final do século XIX e da primeira metade do XX, era a mesma ensinada ao povo.

Roger Aubert, conhecido historiador eclesiástico, definia a espiritualidade da

romanização como marcadamente individualista, caracterizada pela piedade

externa, sem fundamentação bíblica e litúrgica, mágica e devocional, que enfatizava

uma moral individualista e cumpridora dos mandamentos da Igreja. Dessa forma, se

mantinha os católicos submissos e dóceis às autoridades da Igreja, mas, ao mesmo

tempo, extremamente frágeis diante daqueles que faziam oposição a ela. Essa

espiritualidade colocava a Igreja na posição de perseguida pelos liberais, que se

negavam a reconhecer a realeza de Jesus, o rei do Universo, a quem a Igreja havia

consagrado o mundo, de forma que as ofensas dirigidas à Igreja eram interpretadas

como ofensas dirigidas ao próprio Cristo, daí a consagração do mundo ao Sagrado

Coração de Jesus (RIGOLO FILHO, 2006)102.

Nesta visão, todas as forças católicas, dentre elas, especialmente, as congregações

religiosas, eram vistas como milícia cristã na defesa dos valores católicos, onde quer

que estivessem. Compreendemos que a espiritualidade que deu às congregações a

alcunha de “congregações de vida ativa”, fora definida pela atuação das religiosas

em situações nevrálgicas, desvelando os problemas sociais, o que para elas era

motivação para a caridade cristã. Ainda que a concepção claustral tridentina sobre a

vida religiosa tenha sido mantida, é mister destacar os eclesiásticos como

101 Especial distinção era dada para a austeridade de vida e a radicalidade dos exercícios de mortificação, os quais se compunham de jejuns e privações, exercícios disciplinares, autoflagelação, silêncio, exercícios de piedade compostos pela missa, confissão, orações à Virgem Maria, exame de consciência e exercícios espirituais, também chamados de retiros. 102 É preciso considerar que a espiritualidade do final do século XIX e do início do XX teve como principal escopo contrapor-se aos resquícios do movimento jansenista de matriz semipelagiana, que insistia em uma religião para poucos, apesar de sua condenação em 1713. Isso se deu através de grandes movimentos devocionais cristológicos e marianos, dos quais as devoções ao Sagrado Coração de Jesus e à Imaculada Conceição de Maria devem ser consideradas como balizas, pois enfatizam a fidelidade religiosa em contraposição ao racionalismo. O golpe derradeiro foi dado pelo Papa Pio X, que autorizou a comunhão das crianças, em 1910, enfatizando que a participação nos sacramentos pertence ao campo da fé religiosa e não da racionalidade. No Brasil o jansenismo não teve grandes repercussões em função do padroado. Sua influência se deu especialmente no período pombalino, quando os jesuítas foram expulsos e depois supressos (MELO, 2014).

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incentivadores das congregações a assumirem prestações de serviços públicos.

Dessa forma, elas colaboravam para a construção da visibilidade da Igreja103.

Com o avanço da laicização, foi apenas por volta dos anos 1940 que a organização

feminina passou a se preocupar com a questão da formação dos quadros, o que se

configurava como um grande desafio. Na mentalidade da cristandade, a Igreja e

seus representantes, clero e religiosos, se colocavam acima do mundo e não seria,

pois, necessária a capacitação de quadros para além da formação religiosa para o

trabalho nas obras de caridade. Ainda que tenha havido cuidados com a formação

das futuras religiosas, isto não aparece explicitado em suas Constituições até o ano

de 1958. O que se vê nesses documentos são os elencos das minuciosas

obrigações e deveres a serem cumpridos pelas religiosas. Ainda que o grupo da

Ordem Terceira, que deu origem à Congregação, tenha agido sob a inspiração do

carisma franciscano para realizar uma ação específica de serviço à sociedade, não

se verificou a existência de um programa de formação aplicado às pessoas que

aceitaram ser terceiras e depois religiosas franciscanas. O biógrafo da fundadora

explicita que ela mesma pouco sabia sobre Francisco e sobre o carisma franciscano.

Se, como religiosa, não recebera tal formação, muito menos isso deve ter ocorrido

no período em que foi leiga terceira.

Após a conversão do grupo em Congregação em 1900, ele passou a ser regido pelo

direito diocesano, cabendo ao bispo de São Paulo e depois ao de Campinas,

assumir a responsabilidade sobre ela. Alheios à identidade do carisma religioso,

especialmente o feminino, seja por questões políticas, seja por razões práticas, os

mandatários do poder eclesiástico viam as congregações religiosas femininas como

meros instrumentos úteis à execução de seus projetos. Raros foram os que criaram

condições para a construção da identidade e da espiritualidade próprias dos

organismos que estavam sob suas autoridades.

103 Cabe recordar que a memória reproduzida pelas freiras indica que, para Antônia de Macedo, a finalidade do grupo deveria ser de acordo com a concepção predominante da religiosa, isto é, claustral. Foi frei Luiz que tratou de impor um escopo pragmático e com forte apelo social: cuidar de meninas abandonadas. Não bastando isso, foi que ele articulou com a elite para que esta construísse o asilo que veio a se tornar o primeiro patrimônio do nascente grupo (PEDROSO, 1996). Foi dom Barreto quem, desejando dotar sua diocese de mais uma escola religiosa, impôs que a Congregação transferisse o governo geral da cidade de Piracicaba para Campinas e ali fundasse a segunda escola católica para moças, o Colégio Ave Maria.

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Em breves acenos, indicamos que o primeiro esquema de uma regra/estatuto, de

1898, não continha mais que 2 páginas. O Estatuto de 1906 saltou para 15; a

Constituição de 1922, para 60; a de 1932, para 80 e assim sucessivamente. A

Constituição vigente, do ano de 1988, contém 155 cânones e uma série de

apêndices, o que demonstra a complexificação das regras e normas a serem

seguidas. Apesar de haver, também, a Regra Franciscana, que, em tese, unia e

formava a família dos seguidores de Francisco, as exigências e as imposições das

Constituições acabavam se sobrepondo àquela, pois na prática, a Congregação

deveria obedecer ao bispo e não aos franciscanos, de modo a esta última ser, de

fato, a lei que regia a organização religiosa. Assim, se compreende que a pertença

ao movimento franciscano era mais um sentimento de pertença pessoal e afetiva do

que real, demonstrando como a romanização era um movimento mais político e

centralizador do que espiritual.

Apesar de as estruturas formativas terem sido incentivadas já a partir da primeira

Constituição de 1921, somente depois de 1930 é que foi construído o noviciado em

Campinas, e também a escola Ave Maria a qual, além de desenvolver uma ação

educadora junto à sociedade campineira, tinha também a função de ser um espaço

para a formação das candidatas que eram arregimentadas. Ainda que, a partir dos

relatórios de 1945, se veja um esforço grande em fazer com que as religiosas

estudassem, constatamos que a Congregação acabou perdendo postos

fundamentais em escolas, hospitais e escolas de enfermagem por falta da adequada

formação exigida pelo Estado, e, principalmente, por não se ter pensado em um

projeto mais consistente e mais duradouro que lhe propiciasse a manutenção em

postos chave na sociedade.

3. A ressignificação do trabalho como nova clausura e como forma de pregação

No romântico projeto de Antônia de Macedo não havia instituição, e, por isso, não

havia necessidade de bens. Esta é a história da maioria das organizações religiosas.

Na inspiração fundante, o testemunho das pessoas dispostas a consagrar-se à

missão religiosa bastaria ao grupo. Entretanto, ao comunicar seu projeto a frei Luiz,

dele recebeu a reformulação da proposta, segundo as exigências do seu tempo e a

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expertise eclesiástica: “Para agradar melhor a Deus, devem dedicar-se à caridade,

acolhendo e dedicando-se a órfãs e crianças desvalidas. Desse modo, também o

povo as ajudará de boa vontade” (PEDROSO, 1996, p.15).

A fórmula de sucesso do novo empreendimento religioso não estava na vivência

monástica do claustro, mas na “caridade” expressa no serviço às órfãs e às crianças

desvalidas. Tal proposta revelava o lado sombrio do desenvolvimento econômico e

social de uma das regiões mais prósperas do estado de São Paulo, na passagem do

século XIX para XX: a existência de crianças abandonadas. Coube à sociedade

católica, através das organizações religiosas, criar espaços de acolhimento

institucional, que, se, de um lado, protegiam os vulneráveis dando-lhes abrigo e

alimentação, de outro, legitimavam a construção de uma ordem social simbólica que

definia os lugares sociais daqueles que deveriam ser gratos por terem sido

resgatados pela caridade da sociedade cristã (NEGRÃO, 2002; SCREMIN, 2009)104.

Para o sucesso da obra que frei Luiz fundaria, a sociedade civil católica daria o

necessário apoio, o qual seria, também, o início do patrimônio material e espiritual

da nascente Congregação. Era imperioso que tal obra tivesse como alicerce o

trabalho. Assim, desde o primeiro Estatuto do Asilo, redigido, em 1896, pelo frei Luiz

Maria de São Tiago e em vigor até 1905, quando era também a única regra da

organização religiosa, o trabalho foi definido como elemento-chave das fundações

da organização religiosa e da entidade civil. “O Asilo será mantido com o trabalho

das mestras e meninas, com as esmolas, donativos e legados que lhes forem feitos

e rendimentos que vier a possuir” (ESTATUTO do “Asilo Nossa Mãe”, 1986, capítulo

V, artigo 34 apud MARCON, 1992, IV). Constava também que, por ser uma

fundação benemérita, ela contava com “esmolas, donativos e legados que lhes

forem feitos e rendimentos que vier a possuir” (p.131). Caberia, portanto, ao

pequeno grupo de terceiras, prover os meios para a manutenção daquela obra. Era

a idealização de que a organização nascia trabalhadora.

104 Era o que fazia a Congregação dos padres salesianos nos oratórios, espaços para educar os meninos pobres para serem bons cristãos e também lhes ensinar ofícios subalternos para servir às indústrias, legitimando a divisão da sociedade entre pobres e ricos. Dom Bosco, o fundador, tendo sua obra alcançado a cidade de Buenos Aires em 1877, assim justificava a necessidade da criação de novos oratórios: “... a experiência nos persuadiu de que este é o único meio para sustentar a sociedade civil: tomar conta dos meninos pobres. Recolhendo meninos abandonados, aqueles que seriam para sempre um flagelo da sociedade civil tornam-se bons cristãos, honestos cidadãos, glória dos lugares onde moram, ganhando honestamente o pão da vida com o suor e com o trabalho” (RIGOLO FILHO, 2006, p. 27).

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A questão é que, em menos de dois anos, o Asilo, que nascera com um objetivo civil

bem definido, foi convertido em congregação religiosa, com objetivos muito maiores

do que prover meios para a manutenção de uma casa para acolhida de órfãs. Para

além da prestação de serviços, era preciso também buscar alternativas para o

sustento das irmãs, até porque aquele Estatuto não previa, explicitamente, que elas

seriam mantidas por aquela obra social, embora assim ocorresse. Naquele biênio, o

número de terceiras já havia quase dobrado e indicava a necessidade da

organização expandir-se. Havendo religiosas disponíveis e demanda de novos

serviços, a abertura de mais uma casa e nova obra se mostravam duplamente

vantajosas. Ao dar destinação missionária ao excedente de irmãs, além do “nobre e

excelso serviço” prestado à sociedade e à Igreja, o qual, por sua vez, renderia vários

bens simbólicos ao grupo, a abertura da nova casa a desoneraria de suas

responsabilidades econômicas com o sustento das religiosas. Assim, em 1904, foi

aberta a segunda casa e obra, na cidade de Descalvado.

Em 1905, quando a organização foi reconhecida pelo bispo de São Paulo, o seu

estatuto religioso deixou claro que sua manutenção econômica deveria ser a mesma

de quando os seus membros ainda eram ‘simples’ leigas. Apesar de terem sido

institucionalizadas como religiosas, o Estatuto isentava a Igreja e seus prepostos de

sustentá-las: “... as Irmãs se manterão com o produto de seu trabalho, com as

esmolas, donativos e legados que lhes forem feitos e com os rendimentos dos bens

que vierem a possuir” (ESTATUTOS DISCIPLINARES, 1905, II, § XII apud

MARCON, 1992, IV).

O autor do Estatuto, frei Bernardino de Lavalle, apropriou-se do texto de 1896,

cuidando apenas de substituir no novo texto o vocábulo “mestras”, do texto civil, por

“irmãs”. Tal como o povo, cabia às irmãs sustentarem com o seu trabalho as casas

onde viviam. Enquanto trabalhavam, também se empenhavam para recrutar novas

adeptas e novas trabalhadoras. Com 20 anos de existência, o número de religiosas

passou para 40, distribuídas em 7 casas e em 4 cidades distintas: Piracicaba,

Descalvado, Campinas e Jundiaí. A obra espiritual se fundamentava, então, na vida

ativa de irmãs, que se dedicavam ao cuidado das crianças pobres, dos doentes e

dos idosos. Não obstante, a motivação religiosa para tais ações, o patrimônio

material, aumentava e financiava o desenvolvimento espiritual da organização.

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Ainda que se considere a conventualização da vida religiosa como impositora da

clausura e das “obrigações de coro” a todos os religiosos, indistintamente, ela não

interrompeu a dinâmica da economia religiosa vivenciada pela Congregação das

Irmãs Franciscanas105. Fundamentada nessas orientações, sua primeira

Constituição, de 1921, indicou que o trabalho apostólico, interpretado como

expressão do “espírito de caridade e de sacrifício ao bem do próximo”, deveria se

secundado pelo “consagrar-se inteiramente no serviço do Senhor, dirigindo tudo a

Deus” e cumprir a “fiel observância dos Divinos Mandamentos, dos Preceitos da

Igreja e da Santa Regra, unida às Constituições” (CONSTITUIÇÕES DAS IRMÃS

TERCEIRAS FRANCISCANAS DE PIRACICABA, 1921, cap. 2, § 22). Para todos os

efeitos, segundo a lógica vaticana, o modelo de vida consagrada continuava sendo o

monacal. Ao valorizar as práticas espirituais em detrimento das apostólicas, o

Código de Direito Canônico, de 1917, realçava a desvalorização das religiosas

congregadas em relação às monjas. Prova disso é que, em 1948, foi reeditado um

documento de 1910, no qual, os bispos, que tanto recorriam ao trabalho das

religiosas congregadas, enfatizavam a superioridade da vocação monacal:

O mundo, ainda que nem sempre lhes preste seus favores, acolhe de bom grado os Institutos de caridade de mulheres, e às vezes se ufana de proclamar que reconhece neles a expressão perfeita da religião (...).Certo, porém é que a vida no claustro é a mais perfeita das que se podem seguir no seio da Igreja; que esta tem, nesses privilegiados refúgios das almas escolhidas seu mais precioso ornamento e a melhor mostra de sua vitalidade sobrenatural. (EPISCOPADO BRASILEIRO, 1950, cânones 1321-1322, grifo nosso)

Para não comprometer a tradicional definição tridentina sobre a vida religiosa, a

Igreja, que havia promovido e incentivado as congregações religiosas, passou a

utilizar o artifício discursivo de afirmá-lo, mas ao mesmo tempo negá-lo. Agindo

dessa forma, a Igreja afirmava que, em tese, para ela só havia um estilo de vida

105 Tradicionalmente o termo “clausura” dizia respeito ao estilo de vida monástica, com a separação total do mundo. O CDC de 1917 distingue “clausura comum”, que passa a ser identificada como uma área reservada da casa ou convento, destinada apenas aos religiosos e que ninguém podia adentrar sem a licença do bispo. As “obrigações do coro” dizem respeito aos ofícios litúrgicos de que os religiosos devem participar, segundo as “horas canônicas” distribuídas ao longo do dia e da noite. O pouco tempo que lhes restava era dedicado a atividades secundárias, as quais deveriam, em tese, ser divididas entre todos os monges e monjas. Como os mosteiros reproduziam a estratificação social, havia também dentro deles uma divisão social que separava os bem-nascidos e os intelectuais, dos pobres e incultos. Os primeiros eram chamados de “coristas” e os segundos, de “oblatos” (CDC, 1917, can. 604 e 610, respectivamente).

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religiosa, e que a concessão feita fora circunstancial. Foi justamente o que fez Dom

Barreto. Ainda que o Código de Direito Canônico determinasse a retomada de

práticas conventuais, o bispo estimulava as irmãs a abrirem novas casas para

assumirem novos postos de trabalho. Ele sabia que todo o contingente das irmãs

estava envolvido em atividades externas, em oito obras assistenciais, as quais, por

sua vez, garantiam o sustento da estrutura religiosa da organização e construíam a

visibilidade da Igreja. Sabedor da força social das congregações religiosas, ele não

descumpre as determinações do Código de Direito Canônico e, ao impor a

Constituição de 1921, segundo as determinações do CDC de 1917, deixa às irmãs a

responsabilidade de interpretar e cumprir as determinações conventuais. Não

aparecem, nos documentos pesquisados, determinações exigindo o cumprimento

daquelas leis e, tampouco, sanções disciplinares, deixando entrever uma velada

distinção entre a lei e a prática social.

As exigências impostas pelo CDC, e integralmente reproduzidas nas primeiras

constituições, selavam a efetivação da conventualização, que começara na

transformação do organismo leigo em congregação religiosa. Para além do ato

canônico, era preciso que as congregações assumissem os contornos desejados

pela Igreja e rompessem com seu antigo passado, assumindo o projeto eclesial, o

que, de certa forma, rompia com as principais características do movimento

congregacional. Nesta perspectiva, o problema não eram as atividades laborais, mas

o que o exercício delas, no mundo, poderia despertar nas religiosas. A

conventualização da vida congregacional não impôs às religiosas deixarem o mundo

e irem para clausura, o que era impossível. Ela impunha que as religiosas vivessem

no mundo como se estivessem enclausuradas e se comportassem como monjas,

dando especial interpretação ao mandamento evangélico: “estais no mundo, mas

não sois dele!” (Jo 15,19). Nessa nova interpretação, a clausura deixa de ser um

espaço para ser um modo de vida e, para o fiel cumprimento disso, a obediência aos

ditames eclesiásticos era peça chave.

Não se pode esquecer que uma das principais características do movimento

congregacional foi o envolvimento das religiosas com a realidade do mundo do

trabalho, o que a Igreja tratou de regrar na medida em que institucionalizou suas

organizações. Para evitar o envolvimento das religiosas com essa realidade, a

instituição fez uso de uma espiritualidade que descaracterizava toda possibilidade de

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identificação com a luta dos trabalhadores, tornando o lugar social delas mais

próximo ao dos donos do capital. Recorrendo a espiritualidade monacal, expressa

através do lema “ora et labora”, vivenciada nos mosteiros medievais ligados a

tradição beneditina, enfatizou a atividade laboral como fruto da espiritualidade e vista

como meio para garantir a sobrevivência e autonomia das religiosas. A questão é

que, entre a economia comunal medieval dos mosteiros e o tempo do movimento

congregacional, havia a modernidade, a urbanização e especialmente o capitalismo,

centrado não apenas no capital, mas também no trabalho, na disciplina e na

austeridade de uma vida ascética, legitimada pela moral religiosa (WEBER, 2001).

Ainda que Weber tenha analisado o impacto da ética calvinista no capitalismo,

também os fautores da Contrareforma católica e, especialmente, os jesuítas,

contribuíram para o sucesso dele. Buscando garantir meios para se manter na

sociedade liberal, a Igreja Católica, através da fiel obediência disseminada em suas

organizações, legitimava a ordem social estabelecida.

Dentre essas, papel fundamental tiveram as congregações, as quais, através das

instituições escolares e caritativas, se dispuseram a contribuir na formação de um

povo disciplinado, ordeiro e trabalhador. Para isso, foi fundamental o sentimento de

pertença à instituição, que fazia com que as religiosas assumissem como seus os

interesses eclesiais, de forma que, sendo possuídas, se tornavam também

possuidoras da organização. (LAGROYE, 2009). Em razão disso, a dedicação

integral à atividade pastoral, ou à vida ativa, vivenciadas pelas congregações

religiosas, não poderiam ser classificadas como relações trabalhistas, compreendida

como venda da mão de obra ao dono dos meios de produção, pois, sendo membro

e, também, possuidoras da organização religiosa, elas se beneficiavam daquela

realidade, pois, acreditavam piamente em uma economia religiosa, onde tudo

pertencia à organização, responsável por todas106. Nessa perspectiva, as religiosas

não se compreendiam como “assalariadas”, pois não vendiam sua força de trabalho,

e, apesar de muitas vezes se referirem às côngruas recebidas das obras onde

106 Embora devamos respeitar as devidas proporções temporais, a reflexão de Karl Marx presente no texto “Introdução à contribuição à Critica da Economia Política”, no qual o autor apresentava o seu livro “Contribuição à Critica da Economia Política”, publicado pela primeira vez por Kautsky, em 1903, lança luzes para compreender o sucesso de uma economia religiosa, tal qual a citada acima. Ele destaca que a produção moderna quando associada à ideologia do sistema comunal, - a qual exige a plena confiança dos membros, que abrem mão de sua individualidade em detrimento do grupo -, possibilita um acúmulo de riqueza coletivo justamente porque o processo “do ganhar” ultrapassa o interesse individual do “ganho” (MARX, 2008, 237-268)

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prestavam serviços em nome da Congregação como salários, elas não dependiam

dele para sobreviver. Essa espiritualidade fazia com que as freiras, embora próximas

das realidades do mundo do trabalho, fossem destituídas do lugar político de

trabalhadoras. Eram elas sabedoras que, tendo consagrado toda sua vida à

organização e se colocado a serviço dela, através da vivência dos três votos

religiosos, nada lhes faltaria; realidade bem diferente do operário, que dependia tão

somente de seu salário.

Em síntese, a conventualização era a garantia de que as ex-organizações leigas,

convertidas em congregações, se perfilariam ao lado da Igreja e dos interesses

sociais que lhe beneficiavam, e não ao lado dos trabalhadores.

De outro lado, podemos observar também, que, para além de uma economia

religiosa, havia uma “mística” que alimentava a consagração das freiras, fundada no

ato de trabalhar diuturnamente. A dedicação ao trabalho se constituía, então, no

meio como as congregações religiosas provavam à Igreja que a dedicação e

pertença eclesial das religiosas eram tão intensas quanto às das monjas de

clausura. Se estas consagravam suas vidas às atividades litúrgicas nos claustros, as

congregacionistas consumiam as suas no serviço social nas escolas, nos orfanatos,

nos asilos e nos hospitais, suas novas clausuras. Essa nova forma de viver a

consagração se constituía em uma nova representação da pregação. Se o clero

fazia uso da palavra para pregar e, apenas em alguns momentos, as religiosas

pregavam cotidianamente com suas práticas corporais (LEONARDI, 2010). Se as

primeiras transportavam o mundo para dentro dos conventos, as segundas

transformaram os lugares públicos em conventos.

Para além do retorno econômico, ao se confessarem pobres para servir os pobres e

viverem de forma simples como eles, as religiosas alcançavam reconhecimento

social dos católicos e até daqueles que viam suas obras como práticas de

benemerência altruísta, importante capital social em uma sociedade dominada por

relações econômicas ditadas pelos homens.

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4. O franciscanismo, a pobreza e o trabalho

Para construção de uma representação de congregação trabalhadora, a pertença ao

movimento franciscano foi fundamental. Expressão de uma das maiores famílias

espirituais, o franciscanismo empresta a muitas ordens e congregações religiosas o

nome, o modo de ser e pensar, enfim, todo o seu patrimônio. A própria Ordem dos

Frades Menores Capuchinhos, à qual pertencia o fundador ou cofundador da

Congregação que estudamos, é fruto de uma reforma franciscana do século XVI

movida por um grupo de frades, que se atribuíam como autênticos herdeiros da

espiritualidade franciscana, se constituindo o terceiro ramo ao lado dos Frades

Menores Franciscanos Conventuais e dos Frades Menores Franciscanos

Observantes (MARTINA, 1997).

Dentre as mais de cem congregações imigradas que se instalaram no Brasil, entre

1830 e 1930, um quinto delas se afirmava vinculada à família franciscana.

Estrategicamente, elas adicionavam um complemento espiritual próprio da

espiritualidade do seu tempo, o que fazia delas uma nova organização franciscana

(BEOZZO, 1986): Franciscanas do Sagrado Coração de Jesus, Franciscanas

Missionárias do Santíssimo Sacramento, Franciscanas da Imaculada Conceição,

Franciscanas de São José, dentre outras. Até como proposta de reforma religiosa,

essa prática acabou sendo incentivada pela Santa Sé, quando definiu que as novas

congregações deveriam assumir um vínculo mais estreito como uma das tradicionais

famílias religiosas; isto lhes daria uma identidade mais definida, reconhecida pela

sociedade e pela Igreja. Em razão disso, muitas congregações brasileiras, até sem

vínculo oficial com uma das Ordens franciscanas, também se afirmam herdeiras

espirituais de São Francisco de Assis (SASTRE SANTOS, 1997)107.

107 Um dos casos mais interessantes é o movimento religioso conhecido como Toca de Assis, fundado em 1994, na cidade de Campinas, que nasceu como uma associação de fieis, recebendo o nome de Fraternidade de Aliança Toca de Assis. Sem possuírem vínculo algum com ordem ou congregação franciscana, eles se afirmam seguidores de Francisco de Assis e se fazem próximos dos excluídos da sociedade, especialmente as pessoas em situação de rua. Não obstante, trata-se de um movimento religioso extremamente conservador. Apresentam-se como novidade, mas são tradicionalistas. (PORTELLA, 2009).

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Sendo organizações recentes, apresentam-se como uma novidade fundada em uma

suposta tradição, em algo a que Hobsbawn denominou “tradição inventada”108.

Segundo este autor, a Igreja Católica é uma das instituições que mais faz uso da

tradição inventada, pois esta é a forma de ela se manter como continuidade: “Houve

adaptação quando foi necessário conservar velhos costumes em condições novas

ou usar velhos modelos para novos fins.” (HOBSBAWN, 1997, p. 12).

Na Congregação estudada, a pertença à família franciscana precede a sua fundação

oficial. Já na formação do grupo de terceiras, definiu-se a identificação ao

franciscanismo reinterpretado pelos frades capuchinhos. Foram eles, então, os

responsáveis pela divulgação de uma representação cultural franciscana no final do

século XIX, supostamente apresentada como herdeira daquela espiritualidade

medieval. Em se tratando de um novo tempo, de um novo espaço, de novos

desafios e novos atores sociais, a espiritualidade romanizada era apresentada como

continuidade da medieval. Do franciscanismo original, pouca coisa restava. Para

todos os efeitos, aquele grupo de mulheres se apresentava como franciscano. Isso

ficou patente na agregação realizada à primeira e à segunda ordem franciscanas

(MARCON, IV, 1992). A partir daquele momento, a organização religiosa feminina

era reconhecida como membro da família franciscana, todavia sob a vigilância dos

bispos e dos capuchinhos. Fora feita franciscana, mas profundamente

institucionalizada.

O principal pilar da espiritualidade congregacional era a vivência dos três votos:

castidade, pobreza e obediência; porém, o segundo sempre fora o principal

identificador daquela ordem religiosa, que esteve na base do movimento

mendicante, como crítica social ao fausto do alto clero. Justamente por se propor a

viver a radicalidade do Evangelho, Francisco teria proposto a seus companheiros

serem os menores entre os menores, clara referência ao nome da nova ordem (LE

GOFF, 2001).

Quando, portanto, na cidade de Piracicaba, no final do século XIX, frei Luiz

apresentou àquelas leigas terceiras a proposta de cuidarem das crianças pobres,

108 “Por ‘tradição inventada’ entendemos um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas: tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado” (HOBSBAWN, 1997, p. 8).

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ainda que isso estivesse em profunda sintonia com a proposta de sua ordem

religiosa, de forma implícita e, ao mesmo tempo, muito enfática, ele a associava aos

problemas e resistências enfrentados pelos capuchinhos com relação àqueles que

se afirmavam liberais. Ao associar o escopo do nascente grupo a uma das mazelas

causadas pela sociedade liberal que se modernizava, a orfandade, o frei

apresentava uma nova representação daquela espiritualidade. Da mesma forma que

o franciscanismo medieval emergira de um apelo muito concreto da realidade, ele

propunha que aquele grupo não fosse um mero grupo de religiosas auxiliares das

missões capuchinhas, como elas pretendiam, mas que exercessem uma missão

descurada da sociedade piracicabana, o cuidado das meninas órfãs da cidade. Ao

definir como o grupo viveria, ele lhe apresentou a necessidade de ser pobre e de

trabalhar para viver. Tal proposta era também uma veemente resposta à sociedade

liberal piracicabana, que via na Ordem Franciscana a evocação das decadentes

ordens religiosas sustentadas pela Coroa. Todavia ele, e aquele novo grupo

feminino, eram franciscanos, mas eram outros, portanto, diferentes daqueles que os

liberais criticavam. Aquele grupo nada possuía, e viveria da caridade daquela

sociedade, e ainda a ajudaria a resolver um dos mais graves problemas sociais da

época: a infância desvalida.

Em 1921, a segunda superiora geral, em seu primeiro relatório, sem se preocupar

em fornecer informações sobre as receitas e as despesas da organização, de forma

sumária escreveu: “... pode-se afirmar que a pobreza franciscana foi observada

regularmente em todas as casas, não faltando, às irmãs, o necessário, e nada

possuindo elas de supérfluo” (RELATÓRIO 1918-1921, §3). Vinte e cinco anos

depois, a madre superiora, Irmã Maria São Francisco do Divino Coração, enviou o

Relatório de 1945, no qual informava ao novo bispo de Campinas, Dom Paulo de

Tarso Campos, o crescimento numérico de religiosas e o balancete detalhado.

Assim ela escreveu:

Tenho a satisfação de apresentar a V. Excia um relatório que dará a conhecer em geral o movimento financeiro, o religioso das casas, e uma pequena estatística dos membros da Congregação. O que mais se salientará de tudo isso, creio ser a predominância da santa pobreza, o que constitui a maior riqueza para as filhas do pobrezinho de Assis. (sic). (RELATÓRIO de 1939-1945, p. 1, grifo nosso)

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Se tirássemos as referências cronológicas dos dois discursos, poderíamos dizer que

são atemporais e fundados na mesma perceptiva de uma economia religiosa, fruto

do trabalho disciplinado e de uma rígida austeridade em prol da organização. Em

nenhum deles há menção ao acúmulo de bens materiais; no entanto, o que

verificamos na sequência de relatórios é a existência de uma curva sempre

crescente no número de religiosas e de bens materiais. Neste sentido, os textos são

falaciosos, pois o fato de afirmar que as irmãs eram pobres não significa dizer que a

organização tenha se mantido pobre, pois os mesmos relatórios, desde 1909, já

afirmavam que tinha havido crescimento econômico. A questão não era o acúmulo

de bens, mas como a Congregação interpretava o uso dele, como isso repercutia no

cotidiano das religiosas e na sociedade.

O segundo texto faz um jogo de palavras, permitindo entender que a pequena

côngrua recebida pelo trabalho de cada uma das religiosas franciscanas, nas casas,

fez a riqueza da Congregação. Entretanto, o que a madre superiora não disse foi

que grande parte daquele patrimônio advinha, também, das doações dos

beneméritos, que viam como necessária a manutenção do status quo de uma

sociedade pretensamente católica. Na medida em que a sociedade se secularizou,

as doações diminuíram drasticamente. Além disso a questão central não residia na

austeridade de vida, pois se supõe que tal prática fizesse parte da essência da vida

religiosa, mas na interpretação de que o acúmulo de bens, para custear as obras da

Organização, era fruto do trabalho das religiosas que viviam a radicalidade da

pobreza franciscana. Aquele estado de espírito legitimava a dedicação das

religiosas, que transformavam seus locais de trabalho em verdadeiros claustros. Ao

invés da contemplação, o trabalho diuturno. Tal espiritualidade justificava, e

“autorizava”, que cada singular irmã visse o fruto de seu trabalho não na perspectiva

do acúmulo de bens, mas na perspectiva religiosa, como um fim religioso para

aquela prática mundana.

Por fim, destacamos que a interpretação dada pelas religiosas destoava da teologia

franciscana. Enquanto essa aponta que a essência daquela espiritualidade afirmava

não bastar trabalhar e viver como pobre, mas que os bens materiais, como fruto do

trabalho e dons de Deus, ao invés de serem acumulados, deveriam ser totalmente

distribuídos aos pobres, aquelas entediam, e reproduziam, que o trabalho exercido

nas obras tinha como objetivo criar meios para as irmãs servirem os pobres.

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5. A espiritualidade da pobreza e a gestão racionalizada das obras

É consenso para a Congregação das irmãs Franciscanas do Coração de Maria que,

nos seus 12 anos como superiora geral, Irmã Cecília se dedicou ao seu crescimento.

Um dos documentos mais significativos sobre este tema é uma troca de

correspondências entre ela e o bispo. Em uma de suas cartas, no ano de 1909, ela

pedia a interferência de Dom Nery, para que ela pudesse cobrar do padre da cidade

de Descalvado o que com ele fora acordado:

... Tenho em Belém do Descalvado três irmãs para o serviço da Santa Casa e elas recebem mensalmente o ordenado de 150$000 reis, mas o Revmo vigário daquela paróquia é de parecer que a quantia que elas ganham a devolva em beneficio do Asilo que ele mesmo fundou e dirige e no qual tenho também cinco outras imãs; de modo que no ano passado ele recebeu da superiora local um 1.500$000 sem eu nada saber se não depois do fato completo.

Ora a mim me parece que continuar dessa maneira não é possível, pois está exclusivamente a meu cargo a compra de fazenda de lã, que é caríssima, para vestir as Irmãs de todas as casas sem contar as múltiplas despesas comuns que tenho e por isso me parece que todas as pequenas economias das Irmãs das casas filiais deveriam ser devolvidas à casa matriz de Piracicaba que tem despesas para todas, como porquanto me consta, é também a praxe de todas as outras congregações. Outrossim, chamo a atenção de V. Exma. Revdma. que nesta casa matriz temos as noviças e postulantes que acarretam não poucas despesas e além disso em breve devo mandar construir uma nova sala de trabalho e outras acomodações desde muito tempo reclamadas, mas que não foi possível até agora por falta de recursos (sic). (FONTES HISTÓRICAS, 1985, p. 56, grifo nosso)

Ao que o bispo manifestou: “Acho muito justo a ponderação que faz Vossa Caridade

a respeito da contribuição de casas filiais para as despesas da casa mãe. Escreva,

pois ao vigário de Descalvado significando isso mesmo” (FONTES HISTÓRICAS,

1985, p. 56).

Nesses dois textos vêm, expostas, as finalidades com as quais se realizam os

convênios: subsidiar as despesas da organização religiosa com a manutenção da

estrutura, das irmãs, das formandas, e com a expansão do projeto. Era isso que

estava, inclusive, na base da proposta feita pelo fundador/cofundador: As irmãs

deviam trabalhar. Além disso, a nascente congregação adotava o modelo e a

expertize de uma gestão racionalizada e disseminada pelas congregações

imigradas, que reproduziam fielmente as orientações eclesiásticas, o que faziam

delas micro esferas, células reprodutoras do projeto macro da instituição,

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Ainda que Irmã Cecília tenha usado indevidamente a expressão “salário” ao se

referir à côngrua que a superiora local recebia relativa às atividades desenvolvidas

pelas irmãs, ela expressou a realidade de exploração vivida pelas congregações

religiosas, contratadas pelo próprio clero, pelos poderes públicos ou por empresas

privadas, os quais, em nome da caridade, não lhes repassavam os valores devidos.

A firmeza da superiora geral revela sua resistência em aceitar que as religiosas

fossem reduzidas a meros instrumentos da ação caritativa do vigário de Descalvado.

Ela afirmava a importância do trabalho das religiosas para fazer face às despesas

comuns de manutenção da Congregação. Segundo ela, tais despesas deveriam ser

pagas com as economias das casas, o que indicava a austera vida das religiosas,

fato que pode ser depreendido na referida carta, ao indicar que naquele ano as

religiosas daquela comunidade haviam devolvido Rs 1.500$000 ao padre, resultando

que as mesmas fizeram uso de apenas Rs 300$000. Essa informação também se

fez implicitamente presente no relatório da superiora geral, do ano de 1921, quando

afirmou “que nada faltava às irmãs, mas também nada possuíam de supérfluo”

(RELATÓRIO de 1921, §3).

A carta apresenta uma velada denúncia contra a atitude do padre da cidade e, por

extensão, à cultura clerical e patriarcal que ainda via o trabalho das religiosas como

caridade, e, considerava que elas não precisavam de dinheiro para sobreviver.

Entretanto, cabe lembrar que a própria superiora reproduzia tal cultura, pois ela

reclamava do padre em razão de ele ter tomado de volta o dinheiro repassado, mas

não pelo fato de explorar o trabalho das religiosas como forma de montar os

serviços de cuidados a custos baixos, e, como uma boa saída para sanar as crises

deficitárias de tais instituições109. Assim, no jogo de múltiplos interesses, as

religiosas, ainda que obtivessem ganhos materiais e simbólicos menores, podiam

avançar e construir o seu patrimônio cultural. Esta era a dinâmica dos interesses que

moviam a sociedade (BOURDIEU, 1997).

109 Luciana Mendes Gandelman, ao estudar a Santa Casa da Misericórdia, do Rio de Janeiro, informa que Clemente Pereira, membro da irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia e provedor da Santa Casa, que fora também ministro do império, em 1852, trouxe religiosas da Companhia de São Vicente de Paula, de Paris, para serem “enfermeiras” no Hospício Pedro II, as quais ensinavam as noções práticas de enfermagem às futuras religiosas. A autora destaca que a administração desse provedor é considerada uma das mais eficientes, por haver conseguido ampliar o número de serviços ofertados e, ao mesmo tempo, aumentar as finanças (GANDELMAN, 2001).

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Com a primeira Constituição em 1921, fixava-se a praxe de que as superioras

deveriam, ao final de seu governo, prestar contas sobre toda a vida da organização

em seus relatórios, ficando evidente a força da jurisdição episcopal, que tudo vigiava

e controlava, incluso o poder das superioras gerais (CONSTITUIÇÃO, 1921, 137).

Como, após o reconhecimento pontifício, obtido em 1956, a Congregação foi

desobrigada de prestar contas ao bispo diocesano, nos deteremos a analisar os

relatórios do período de 1921 a 1951, quando ela estava sob o direito diocesano e

assumiu plenamente o projeto da Igreja, tornando-se sua fiel reprodutora110.

Ao nos debruçarmos sobre o estado econômico, encontramos, nos vários relatórios,

os demonstrativos sobre a movimentação econômica e as contribuições que cada

casa repassava para o governo central, para custear a manutenção da organização

e socorrer as casas deficitárias. A simples existência de controles econômicos em

uma instituição religiosa, o que não é apanágio apenas desse organismo mas de

uma expertise construída pela Igreja e reproduzida pelo movimento congregacional,

demonstra o crescente grau organizacional que as congregações desenvolveram ao

longo de sua história.

A crescente padronização na inserção de precisas informações sobre as entradas e

as saídas de todas as casas, bem como a permanência dessa prática, mesmo

depois de ter sido desobrigada em 1956, indicam a assimilação que se fazia

necessária para medir o crescimento material da organização, primeiro aos

sucessivos bispos, e, depois, às próprias religiosas. Apesar de não haver, nos

Arquivos, relatórios de todos os governos gerais, os existentes trazem importantes

informações que ajudam a compreender como o crescimento econômico possibilitou

a implantação do projeto religioso da organização que tinha como escopo formar o

seu capital espiritual-cultural que lhe permitisse desenvolver sua missão.

Quadro n.º 1 - Relação dos bispos, período, madres e balancetes entre 1921 e 1951

Bispo Período Madre superiora Envio de Relatório

Dom Francisco Barreto

1921-1927 Ir. Gertrudes Maria do Divino Amor Não 1927-1933 Ir. Gertrudes Maria do Divino Amor Balancetes anuais 1933-1939 Ir. Maria São Francisco do Divino Coração Não

110 Lembramos que ao receber a aprovação pontifica no ano de 1956, a Congregação foi desobrigada de enviar relatório ao bispo diocesano, muito embora passou a apresentá-lo à Assembleia Capitular realizada no encerramento de cada governo.

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1920-1941 1939-1945 Ir. Maria São Francisco do Divino Coração Relatórios anuais 1940, 1942,1945

Dom Paulo de Tarso 1942-1968 1945-1951 Ir. Angelina Maria da Sagrada Face completo

(Quadro elaborado pelo autor com base nos Relatórios)

Considerando que as duas madres superioras que governaram a Congregação entre

1921 e 1945 tiveram seus governos duplicados, apesar de descumprirem a

obrigação de apresentar relatórios, entendemos que ambas foram amplamente

apoiadas por Dom Barreto. A parcial, ou total ausência desses documentos indicam

que o bispo se preocupou mais com os resultados finais que com a formalidade da

lei. Entretanto, verificamos que Irmã Maria São Francisco do Divino Coração, que

não havia enviado relatório de seu primeiro governo, tratou de fazê-lo logo após

chegada do novo bispo, Dom Paulo de Tarso Campos, que assumiu a diocese de

Campinas em 1942. Se ela só o fez naquele momento, pode ter sido por não desejar

colocar em risco o processo da aprovação pontifícia, que a Congregação esperava

desde a sua fundação. Na mesma linha de raciocínio, parecem ficar claras as razões

da prestação de contas da madre Irmã Angelina Maria da Sagrada Face, de 1951,

ser a mais completa de todas, com indicações de rendimentos e detalhes que

relatório algum apresentou.

Constatamos que, além das costumeiras prestações de contas, as duas referidas

superioras apresentaram relatórios sobre o ativo e o passivo, para demonstrar ao

bispo a autossuficiência alcançada, fato a ser relatado à Congregação dos

Religiosos, em Roma (RELATÓRIOS 1941, 1945-1951, Anexo 6). Cabe lembrar que

a primeira aprovação, denominada “Decreto de Louvor e Recomendação”, se deu

em 1945, quando havia apenas três anos que o novo bispo, dom Paulo de Tarso,

chegara a Campinas, o que poderia significar como a eloquência dos números

superava o pouco conhecimento do eclesiástico sobre ela, permitindo que ele

enviasse suas recomendações à Santa Sé111.

Apesar de não haver Relatórios e balancetes dos 29 primeiros anos da organização,

buscamos relacionar informações esparsas contidas em vários documentos. A

111 Os dois documentos que foram emitidos são: Decreto Pontifício de Louvor e Recomendação da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, emitido em 02 de dezembro de 1945, e o Decreto de Aprovação Definitiva das Constituições da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, emitido em 06 de dezembro de 1956 (MARCON, 1992, IV).

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primeira delas é que, as 3 primeiras superioras gerais que a governaram, fundaram

16 obras, sendo 7 próprias e 9 conveniadas. Dois documentos indicam os valores

acordados com os contratantes na fixação da côngrua das religiosas. A carta da

superiora geral, enviada ao bispo em 1909, informa que as 3 irmãs do Hospital de

Descalvado recebiam Rs 150$000. A segunda informação procede do testemunho

dos frades sobre a abertura da obra no Asilo de Idosos, em Piracicaba, no ano de

1917, onde quatro irmãs recebiam um benefício de Rs 120$000 mensais, além da

manutenção da casa, capela e assistência médica (MARCON, 1992, IV). Paula

Leonardi confirma essa média de repasses econômicos às religiosas, ao indicar, em

sua pesquisa Além dos espelhos, que, por volta de 1910, ao chegar à cidade de

Campinas, a Congregação das Irmãs Calvarianas recebeu de um padre a oferta de

um “salário de cinquenta réis para cada irmã”, o que, segundo a autora,

correspondia ao salário de uma cozinheira (LEONARDI, 2010)112.

Ao compararmos tais valores com uma planilha de pagamentos – a dos funcionários

da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, do Rio de Janeiro, de

outubro de 1910 – que indica os vencimentos de várias categorias de trabalhadores,

vimos que o valor repassado às freiras era baixo. Naquela instituição, um servente

da Escola ganhava Rs 100$000; um operário com baixa qualificação, ganhava de Rs

100$000 a Rs 150$000; um escriturário, Rs 2400$000 e um professor de desenho,

Rs 3600$000113. Vemos, por essas informações, que, mesmo as irmãs francesas,

devotas ao ensino das filhas da elite de Campinas, recebiam metade do valor pago a

um servente da referida escola do governo, fato já indicado por Paula Leonardi.

Entretanto, cabe destacar que, enquanto os trabalhadores contavam apenas com

seus salários para suas despesas, as côngruas das religiosas, ainda que menores,

eram livres das despesas com moradia, alimentação, e com os serviços litúrgicos

gratuitos, que estavam sob a responsabilidade dos contratantes, cabendo a elas, tão

somente, o custeio de despesas pessoais, que, segundo a informação da carta de

1909, girava em torno de 20%. Embora não tenhamos informações sobre todos os

itens do custo de vida da época, encontramos dados de que, na cidade do Rio

112 Vemos, por esta citação que o uso da expressão “salário” era comum para se referir à côngrua das religiosas. Através do cruzamento com outras fontes, cremos que a referida autora se houvesse equivocado no lançamento da informação. Se assim for, onde se lê “cinquenta réis” deve ser lido “cinquenta mil réis”. 113 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-8319-20-outubro-1910-517122-anexo-pe.pdf Acesso em: 05 jan. 2016)

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Janeiro, em 1903, o aluguel de uma casa para quatro pessoas girava em torno de

Rs 35$000 a Rs 50$000, e o aluguel de um quarto de cortiço custava por volta de Rs

12$000, enquanto o salário de um operário tecelão girava em torno de R$ 78$000

(LOBO, 1971). Tais valores demonstram que apenas o aluguel de uma casa

consumia quase metade do salário de um operário, sem contar alimentação e outras

despesas. Como as religiosas ganhavam a côngrua e mais a manutenção da casa, é

necessário destacar que o valor total acabava sendo maior e, em alguns casos,

talvez até ultrapassasse o ganho de um operário. Todavia, conforme o tempo foi

passando, embora tenha havido um aumento no número de religiosas e de casas e

da própria inflação, que teria contribuído para um aumento, a proporção individual

das côngruas diminuía (MUNHOZ, 1997).

Quadro 2: Lançamentos anuais das contribuições das casas

A B C D E 1927 17 Rs 24:287$400 82 Rs 24$682 1932 19 Rs 46:843$300 111 Rs 35$167 1940 26 Rs 87:554$200 165 Rs 44$219 1941 26 Rs 127:561$900 167 Rs 63$653

(Quadro elaborado pelo autor com base nos Relatórios)

Legenda: A- Ano B- Número de obras (próprias e conveniadas) C- Contribuição anual das Casas D- Universo de irmãs na organização E- Média mensal per capita das contribuições

A partir dessas informações, concluímos que:

a) Apenas em 1941 o valor repassado ao governo geral ultrapassou a média

das côngruas recebidas em 1909, no Hospital de Descalvado, que fora de Rs

50$000. Se considerarmos a informação da carta de Irma Cecília, de que,

naquele ano, o padre teria sequestrado 1500R$000, entendemos que aquelas

religiosas retiveram para si, algo em torno de 20% do valor recebido. Ainda,

se considerarmos que as religiosas de 1941 retiveram 50% para si, o valor

médio não passaria de 120R$000, quando a média de salário girava em torno

de Rs 220$000. Cabe lembrar que, no final de 1942, foi criada a nova moeda,

o cruzeiro, com objetivo de diminuir os zeros e assim mascarar o processo

inflacionário. Fica claro, então que os valores repassados pelos contratantes

era cada vez menor.

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b) Apesar das entradas terem se mantido em níveis baixos, o número das

religiosas cresceu, o que se justifica em função da exigência da Santa Sé, de

que as congregações tivessem ao menos cem irmãs para pedir o

reconhecimento pontifício. Tal informação nos levou a concluir que, se o

número de religiosas aumentou e os repasses para o caixa central se

mantiveram baixos, menores ainda foram os valores atribuídos aos trabalhos

de cada religiosa.

c) Não obstante, o montante do valor total repassado ao caixa central aumentou

em função do número de religiosas, o que, por sua vez, estimulava o de

recrutamento de quadros, pois quanto maior o número de religiosas, ainda

que exploradas, mais as entradas aumentavam.

d) Como consequência de um volume maior de entradas, em tais balancetes se

verificou que, progressivamente, as contribuições das casas foram capazes

de suprir as despesas ordinárias da Casa Geral. O balancete de 1941 indica

que tais contribuições cobriram 90% das despesas, e, as outras entradas,

como donativos, juros e dividendos, legados e outras rendas, permitiam

saldar os 10% restantes e ainda constituir reserva monetária de

aproximadamente 30% das contribuições das casas (RELATÓRIO, 1941).

e) A opção por trazer a sede da Congregação para Campinas colaborou para

que a organização atingisse seus objetivos políticos e fizesse crescer os bens

simbólicos, mas o pesado e necessário investimento econômico acabou

impedindo-a de investir em novas frentes missionárias próprias

(RELATÓRIO,1927-1933).

f) O crescimento numérico da Congregação também exigiu forte investimento

econômico na formação de quadros, principalmente, na manutenção

econômica das candidatas. Analisando as informações relativas à entrada de

jovens apresentadas nos relatórios de cada governo geral, contabilizamos

que, entre 1920 e 1950, houve uma média anual de 72 candidatas

integralmente mantidas pela organização, isso perdurou até o final da década

de 1970; por sua vez, isso demandava um custo pesado para a organização.

Apesar desse alto investimento, já presente na carta de Irmã Cecília ao bispo

de Campinas, em 1909, a superiora geral, em 1945, afirmava que a maior

riqueza da organização era a pobreza das religiosas. Eis o fruto da economia

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religiosa fundada na austeridade e no trabalho das religiosas, nas diversas

obras e/ou emprendimentos. Essa era a forma como a rígida regra da

pobreza franciscana se tornava meio para um dos fins mais importantes da

organização religiosa feminina: a obtenção do direito pontifício e, com ele, a

esperança da autonomia política, econômica e religiosa.

6. O “sacrifício” imposto às casas com obras conveniadas

Por razões políticas já sinalizadas acima, o Relatório do período entre 1946 e 1951 é

o único, em toda a série, que traz balancetes detalhados da movimentação

econômica da Congregação. Em razão disso, é possível verificar com precisão o

quanto cada casa angariava com o trabalho das religiosas, as suas despesas e o

quanto economizava para o envio ao caixa central. Isso nos possibilitou estabelecer

um nível de comparação revelando uma sensível diferença entre os dois tipos de

casas. Para tal verificação, analisaremos o balancete a partir de três óticas: primeiro

a partir do conjunto das informações; depois, especificamente, a partir do balancete

das casas com obras próprias, e, por fim, das casas com obras conveniadas, para

compreender qual a participação delas na formação do patrimônio monetário, bem

como as possíveis diferenças entre elas.

O relatório do governo de 1946-1951 informa que naquele sexênio havia 29 casas,

próprias e conveniadas, com um universo de 215 religiosas. Considerando que nos

72 meses daquele período todas as casas repassaram para o caixa central o total de

Cr$ 3.614.847,50, deduzimos que a media mensal per capita das contribuições foi

de Cr$ 233,51.

A partir dessas informações, tem-se a percepção de que a realidade do conjunto das

casas não mudou muito. Embora tenha havido uma elevação no valor médio das

contribuições, tais valores não se distanciaram muito do valor proporcional ao ano

de 1909. Se considerarmos que a côngrua devida a cada religiosa correspondia a

50% do salário mais baixo pago a um funcionário da Escola Superior de Agricultura

e Medicina Veterinária do Rio de Janeiro, o valor repassado às religiosas, em 1951,

pelas direções das respectivas obras, acrescido de 20% correspondentes às

despesas pessoais das religiosas, deduzimos que tais côngruas se aproximavam de

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73% do salário mínimo da época, Cr$ 380,00, o que representaria um aumento de

23%. Entretanto, é preciso recordar que, já no ano seguinte, em 1952, o valor do

salário mínimo saltaria para Cr$ 1.200,00, indicando uma forte defasagem causada

pelo processo inflacionário dos últimos anos, o que, por sua vez, provocava

sucessivas greves gerais contra a carestia do custo de vida (CACHAPUZ, 2010;

FAUSTO, 1995).

Quadro 3 - Demonstrativo das casas com obras próprias 1946-1951

A B C D E F G Asilo Nossa Mãe – Piracicaba 19 Cr$ 2.083.720,70 76,16 4,00 Cr$ 2.056.105,20 Cr$ 22.264,90

Asilo Imaculada Conceição – Descalvado 7 Cr$ 577.417,70 21,1 3,01 Cr$ 543.900,70 Cr$ 13.458,00

Orfanato Santa Verônica – Taubaté 12 Cr$ 2.744.858,00 100,3

2 8,36 Cr$ 2.620.574,80 Cr$ 121.920,70

Orfanato Divina Providência - Amparo 9 Cr$ 2.516.171,60 91,97 10,21 Cr$ 2.375.981,10 Cr$ 137.500,00

Educandário Coração de Maria – Penápolis 15 Cr$ 2.241.961,50 81,94 5,46 Cr$ 2.086.965,10 Cr$ 152.746,00

Casa Coração de Jesus - São Paulo 5 Cr$ 430.991,20 15,75 3,15 Cr$ 355.765,50 Cr$ 68.304,70

Patronato São Francisco – Campinas 12 Cr$ 1.026.314,80 37,51 3,12 Cr$ 746.307,00 Cr$ 270.873,60

Instituto Nossa Senhora de Lourdes – Campinas 12 Cr$ 2.444.428,50 89,34 7,44 Cr$ 949.315,70 Cr$ 1.495.034,00

Educandário São José – Santa Catarina 5 Cr$ 74.963,30 2,74 0,54 Cr$ 65.584,20 0,0

Ttotal 96 Cr$ 14.140.827,30 Cr$ 11.800.499,30 Cr$ 2.282.101,90

(Quadro elaborado pelo autor com base nos Relatórios)

Quadro 4: Demonstrativo das casas com obras conveniadas: 1946-1951

A B C D E F G

Hospital Santa Cruz - São Paulo 6 Cr$ 379.609,00 13,87 2,3 Cr$ 130.141,40 Cr$ 249.541,70 Hospital São Vicente – Jundiaí 7 Cr$ 198.192,00 7,24 1,0 Cr$ 72.845,10 Cr$ 125.900,00

Clínica Santo Antonio - Campinas 4 Cr$ 71.831,00 2,63 0,7 Cr$ 15.445,70 Cr$ 56.350,00

Santa Casa - Piracicaba 11 Cr$ 197.873,40 7,23 0,7 Cr$ 42.404,70 Cr$ 155.400,00 Santa Casa - Sorocaba 14 Cr$ 203.396,90 7,43 0,5 Cr$ 40.555,40 Cr$ 162.801,50

Instituto Penido Burnier - Campinas 8 Cr$ 243.274,40 8,89 1,1 Cr$ 109.243,40 Cr$ 133.765,00

Santa Casa - Penápolis 5 Cr$ 73.688,90 2,69 0,5 Cr$ 20.123,40 Cr$ 53.900,00 Santa Casa - São Pedro 5 Cr$ 79.336,60 2,9 0,6 Cr$ 23.296,10 Cr$ 54.950,00

Santa Casa de Mogi Mirim 5 Cr$ 57.746,30 2,11 0,4 Cr$ 28.652,30 Cr$ 27.340,00 Santa Casa - Grama 5 Cr$ 44.486,50 1,63 0,3 Cr$ 9.486,50 Cr$ 32.500,00 Santa Casa - Limeira 6 Cr$ 102.661,70 3,75 0,6 Cr$ 44.955,40 Cr$ 57.000,00

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Faculdade de Medicina - Sorocaba 4 Cr$ 30.910,00 1,13 0,3 Cr$ 5.815,10 Cr$ 24.700,00

Santa Casa - Descalvado 5 Cr$ 40.006,80 1,46 0,3 Cr$ 12.282,80 Cr$ 28.100,00 Casa de Saúde – Dr. Francisco

Guimarães – RJ 4 Cr$ 28.947,00 1,06 0,3 Cr$ 10.859,70 Cr$ 18.454,90

Creche Bento Quirino - Campinas 8 Cr$ 49.307,70 1,8 0,2 Cr$ 17.847,50 Cr$ 31.802,00

Asilo de Velhos - Piracicaba 3 Cr$ 23.860,10 0,87 0,3 Cr$ 11.848,60 Cr$ 12.000,00 Vila São Vicente - Campinas 5 Cr$ 18.685,30 0,68 0,1 Cr$ 10.308,50 Cr$ 8.650,00

Cruzadas das Senhoras Católicas - Santos 6 Cr$ 252.418,00 9,23 1,5 Cr$ 168.155,70 Cr$ 83.043,00

Gota de Leite - Santos 5 Cr$ 29.391,80 1,07 0,2 Cr$ 24.491,80 Cr$ 4.900,00 Sanatório São Vicente –

Campos do Jordão 3 Cr$ 18.368.40 0,67 0,2 Cr$ 805,707,70 Cr$ 11.658,00

Total 119 Cr$ 2.143.992,00 Cr$ 805.707,70 Cr$ 1.332.755,60 (Quadro elaborado pelo autor com base nos Relatórios) Legenda: A- Casas e Obras B- Número de irmãs em cada casa/ obra C- Receitas do sexênio (72 meses ) D- Número de salários mensais por casa E- Média de salários por freira F- Despesas do sexênio de cada casa G- Contribuição do sexênio ao caixa da Congregação114 A partir dos quadros elaborados com os dados dos balancetes, constatamos as

seguintes conclusões:

a. O número de religiosas nas casas com obras próprias, salvo algumas

exceções, era bem superior ao das casas com obras conveniadas. Uma

justificativa possível é que, nas últimas, o número era definido pelo contrato, o

qual, por sua vez, estava condicionado ao valor a ser repassado para cada

casa. Disso decorre afirmar que, o contrato exigia que as religiosas

designadas fossem jovens, produtivas e, na medida do possível, qualificadas

para o escopo daquela obra. Isso não significa afirmar haver duas classes de

religiosas: as destinadas às obras próprias e outras às obras conveniadas;

ou, pelo menos, nada encontramos sobre isso, até porque haveria certa

lógica em reservar as religiosas mais capacitadas para o trabalho nas obras

próprias da Organização. Entretanto, também é fato que, especialmente os

convênios com os hospitais, progressivamente passaram a exigir que as

religiosas nomeadas para aquelas funções tivessem algum conhecimento na

114 Este valor não resulta simplesmente da diferença entre C e F, pois algumas casas retinham uma pequena reserva para o mês seguinte ou acrescentavam um pequeno montante para aumentar o valor da doação.

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área, o que, exigia um investimento não previsto até então. As casas com

obras próprias possuíam mais religiosas porque a gerência da obra era da

Congregação, sendo ela a definir o número das religiosas a serem destinadas

para cada obra. Por outro lado, também estas casas eram reservadas para

acolher as religiosas idosas, doentes e afastadas por quaisquer motivos,

aquelas que não tinham condições de assumir integralmente os trabalhos nas

casas com obras conveniadas.

b. As casas com obras próprias movimentaram grandes somas de dinheiro e

seus recursos tinham origens distintas. As obras voltadas para o cuidado de

vulneráveis recebiam, basicamente, subsídios públicos115 e doações; as

organizações escolares particulares possuíam receitas advindas de

matrículas, e o Pensionato recebia o aluguel das pensionistas. Na maioria

dessas obras, parte das entradas era investida na conservação do patrimônio

e no aumento dele, fato que não acontecia nas conveniadas, que recebiam

pouco mas também eram muito econômicas, o que demonstra a austeridade

das religiosas. Todo o dinheiro poupado era repassado ao caixa central, que,

embora pouco individualmente, na somatória das 20 casas, era uma quantia

significativa.

Cabe destacar que, pelo fato de o Colégio Ave Maria não estar vinculado a

nenhuma comunidade todos os seus rendimentos foram lançados no

balancete geral como obra da própria organização. Isso indica que, já naquela

época, se vislumbrava que tal escola tinha também como objetivo custear o

governo geral e lhe dar maior independência das casas (RELATÓRIO 1945-

1951, Anexo 7). Em razão disso, o valor de Cr$ 582.431,80 superava as

contribuições de todas as escolas, assumindo o lugar de segundo maior

rendimento lançado no Caixa central, depois do Pensionato Nossa Senhora

de Lourdes, que continuava sendo a maior fonte de renda116. Com a

desapropriação do Pensionato Nossa Senhora de Lourdes pela Prefeitura de

115 Os balancetes indicam que desde 1945, oficialmente, algumas casas também recebiam recursos públicos (BALANCETE, 1945-1951, Anexo 7). 116 Segundo aquele balancete, o Pensionato Nossa Senhora de Lourdes, sozinho, repassou o equivalente a 54 salários mínimos para o Caixa geral, o que correspondeu a 41,35% do montante das contribuições oriundas das obras próprias (RELATÓRIO 1945-1951, Anexo 5).

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Campinas, em 1974, o Colégio Ave Maria passou a ser a principal fonte de

renda (RELATÓRIO 1997-2003, Anexo A, 3). Apesar das baixas entradas das

casas, com exceção do Educandário São José, todas as casas enviaram a

sua contribuição mensal ao Caixa central. Essa contribuição tinha também a

função pedagógica e/ou catequética confirmada na carta que Irmã Cecília

enviou ao bispo diocesano em 1909, quando escreveu que “todas as casas

deveriam devolver as economias feitas”.

c. Como as casas com obras conveniadas não tinham grandes despesas, as

suas contribuições, ainda que pequenas, serviam para manter as despesas

comuns da Congregação. Com exceção do Instituto Nossa Senhora de

Lourdes, as outras quatro maiores fontes de receitas estiveram ligadas à área

da Educação, e especialmente à promoção de crianças pobres.

Comprovamos, então, que os bens simbólicos produzidos pelo trabalho das

religiosas, que despendiam suas vidas em prol dos necessitados, no dizer de

Bourdieu, “desinteressadamente”, também se convertiam em rendimentos

econômicos para as casas, indicando que a mudança imposta pelo fundador

e/ou cofundador, no escopo da organização, para que ela cuidasse de órfãs,

se converteria em motivo para ela receber apoio econômico da sociedade. Os

balancetes demonstram que, apesar de o volume de entradas ter crescido, o

número de obras próprias não evoluiu na mesma proporção, isto é, passou de

8 obras próprias em 1927 para 11 obras em 1951, enquanto o número de

casas com obra conveniadas quase triplicou, sendo a maioria delas em

hospitais. Há aqui uma mudança de estratégia na gestão da organização, a

qual pode ser explicada pela diminuição de reservas, devida ao alto

investimento feito na transferência da sede do governo para Campinas e na

construção do colégio Ave Maria; e, também ao fato de as doações não terem

aumentado na mesma proporção, o que teria impossibilitado novas

fundações. Todavia, quando se analisa o investimento nas casas da

organização, onde se alimentava o seu escopo fundacional, isto é, na

educação, não se pode afirmar que tal opção tenha sido apenas porque tais

obras eram lucrativas. Ainda que não fossem, elas conservam vivo o ideal

fundante da organização, a fonte inspiradora da formação do seu patrimônio

cultural religioso.

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Isso parece claro quando se verifica que, a maioria das obras conveniadas,

com exceção de duas, foi fechada117. Salta aos olhos o fato da Congregação

ter estado à frente de 25 hospitais, sem que nenhum deles fosse efetivamente

seu. Não encontramos, nos arquivos, justificativas plausíveis para tal fato,

mas arriscamos afirmar que, embora tenha eleito a área da saúde como sua

segunda opção pastoral, ela o elegeu em função das oportunidades que

foram surgindo. Nesse sentido, deduzimos que as casas com obras

conveniadas, e, especialmente, os hospitais, foram investimentos feitos em

circunstâncias conjunturais, próprios da época em que iam surgindo.

Claramente, outras razões, também válidas, foram apresentadas: a exigência

de pessoal cada vez mais qualificado, especialmente nos hospitais, fazendo

com que a maioria dos contratantes rompesse o contrato; os baixos valores

das côngruas; a mudança de perspectiva pastoral por ocasião do Concílio

Vaticano II, quando se enfatizou o exercício do apostolado nas paróquias; a

diminuição nos quadros, que, por sua vez, exigiu a redistribuição deles para

garantir a manutenção das obras próprias. Com relação à média dos recursos

das várias casas, conforme já destacamos no Quadro 12, pela análise do

Relatório feita sem distinguir as casas com obras próprias das com obras

conveniadas, a média dos valores repassados era aquém dos salários

vigentes. Todavia, analisadas separadamente as duas modalidades, as

diferenças passavam a ser gritantes. Ao estabelecermos uma média

hipotética das entradas das casas filiais, em proporção ao salário mínimo

vigente, verificamos que, apesar do número elevado de religiosas nessas

casas, todas tiveram média de entrada superior a três salários mínimos por

religiosa. A única exceção foi o Educandário São José, em Santa Catarina,

que acabara de ser inaugurado, o que explica, pelos menos em parte, o seu

baixo rendimento. Entretanto, quando analisamos a média das casas com

obras conveniadas, avaliamos que pesava sobre elas uma grande exploração

do trabalho das religiosas. Somente quatro dessas instituições contratantes

repassaram côngruas com médias superiores a um salário mínimo per capita:

o Hospital Santa Cruz, em São Paulo (2,3); a Cruzada das Senhoras

117 O Asilo de Velhos e a Santa Casa, ambas em Piracicaba continuaram funcionando. Entretanto, em função dos recentes contratos, nas comunidades a forma de atuação das religiosas não corresponde mais ao passado.

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Católicas, de Santos (1,5); o Hospital São Vicente, de Jundiaí (1); a clínica

Penido Burnier, de Campinas (1,1). Já a clínica Santo Antônio, em Campinas,

e a Santa Casa, de Piracicaba, repassaram média de 0,7% salários; a Santa

Casa de São Pedro e a Santa Casa de Limeira repassaram, 0,6% cada; a

Santa Casa de Sorocaba e a Santa Casa de Penápolis, meio salário mínimo

cada. Já a Santa Casa de Mogi Mirim, 0,4%; a Santa Casa de São Sebastião

da Grama, a Faculdade de Medicina, em Sorocaba, a Santa Casa de

Descalvado, a Casa de Saúde Francisco Guimarães, no Rio Janeiro e o Asilo

de Velhos, em Piracicaba, 0,3% cada. A Creche Bento Quirino, em Campinas,

a Gota de Leite de Santos e o Sanatório S. Vicente, em Campos do Jordão,

0,2% cada; e a Vila S. Vicente, em Campinas, repassou a média de 0,1%

salário mínimo per capita. Especialmente, na Santa Casa de Descalvado e no

Asilo de Velhos, em Piracicaba, as irmãs recebiam, proporcionalmente,

menos que os valores acordados nos respectivos contratos de 1904 e 1918.

Entretanto, cabe destacar que a realidade das religiosas que trabalhavam em

hospitais não era característica apenas da congregação brasileira. Também

as religiosas da Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria,

contratadas como professoras da Escola de Enfermagem de São Paulo, que

se tornou a Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, recebiam

salários baixos. A pesquisa de Maria Regina Guimarães Silva (2007) sobre

essa Escola, que também teve o contrato firmado em 1939, fixou que a

superiora da casa e as religiosas enfermeiras diplomadas receberiam uma

côngrua de Rs 200$000 e as outras irmãs, Rs 120$000. Em 1942, duas

enfermeiras leigas foram contratadas por Rs 800$000 (SILVA, 2007). Ainda,

se considerarmos que as irmãs tinham garantia de moradia, alimentação,

assistência médica e aumento proporcional no ano de 1942, a diferença

salarial era grande. Não obstante, tais irmãs recebiam mais do que aquelas

religiosas que atuavam na Escola de Enfermagem de Sorocaba, onde, cada

uma delas, recebia apenas a terça parte de um salário mínimo. Nesse

sentido, é mister destacar a cobrança feita pela Irmã Cecília, em 1909, ao

bispo de Campinas, sobre a dura condição das religiosas no hospital de

Descalvado, não sendo exceção, indicava que isso seria recorrente em sua

trajetória. Ainda que se justifique a saída das irmãs dos hospitais pela falta da

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formação adequada, os quadros aqui expostos revelam que perdurava uma

cultura de que a atividade profissional realizada pelas freiras não se

enquadrava como trabalho profissional. As baixas côngruas indicavam a

precariedade das condições em que se encontrava o Hospital e as escolas de

Medicina e Enfermagem, sendo bastante provável que tal situação tenha sido

um dos motivos que culminaram na saída das irmãs daquela instituição

(RELATÓRIO 1969-1973).

7. A expansão ao Sul: uma nova frente missionária

Ao analisar os governos gerais, causa impressão o fato de que, nos seus primeiros

70 anos, apenas 7 religiosas estiveram à frente da Congregação, em mandatos

triplos e duplos permitidos pela lei canônica118. O fato de o governo geral ter estado

concentrado nas mãos de poucas mulheres que controlaram a organização e, nessa

condição, garantiram a eleição das sucessivas superioras afinadas com o projeto

eclesiástico, só foi possível porque isso interessava aos sucessivos bispos de

Campinas, os reais superiores gerais119. A manutenção da superiora geral por um

118 Até 1906 a fundadora foi a superiora geral. Em 1905 a Congregação recebeu o seu primeiro Estatuto que deliberou que os mandatos seriam por três anos, sendo permitida uma única reeleição, e um terceiro seria permitido, com licença especial do bispo diocesano. Em 1906, a Irmã Cecília foi eleita pela primeira vez e reeleita em 1909. Dom Nery não permitiu a sua terceira reeleição e, em 1912, assumiu o governo Irmã Ignez Maria de Jesus. Esta governou a organização por três mandatos consecutivos: 1912 -1915, 1915-1918 e 1918-1921, com licença eclesiástica. Com a segunda Constituição, imposta por Dom Barreto, os governos passaram a ter duração de seis anos, sendo permitida a reeleição. Assim, Irmã Gertrudes Maria do Divino Amor e Irmã Maria São Francisco do Divino Coração governaram por dois mandatos consecutivos, 1921-1933 e 1933-1945 respectivamente, permanecendo, portanto, doze anos à frente da organização; tempo superior aos mandatos das duas primeiras superioras. Irmã Angelina Maria da Sagrada Face, a governou por três mandatos consecutivos, sendo que o terceiro foi com a concessão da Santa Sé: 1945-1951; 1951-1957; 1957-1963. Por fim, Irmã Maria Julia, governou a Congregação entre 1963-1969. 119 Notamos, então, neste fato, a rejeição dos bispos a uma das características mais controversas da vida religiosa: a eleição relativamente democrática das superioras. Desde o seu primeiro Estatuto há a determinação de que as religiosas que comporiam o governo sejam eleitas pelos seus pares através de voto escrito. (Estatuto 1905 apud MARCON, 1992, IV, 193-206). A eleição era relativa porque controlada por um delegado do bispo. Isso acabou acontecendo em 1912, quando o delegado do bispo Nery induziu as religiosas a escolherem outra religiosa para o governo, quando a eleição de Irmã Cecília era dada como certa. O fato, então, conforme abordamos no capitulo I, é que as superioras gerais só se tornaram plenamente superioras gerais apenas depois de 1956, quando a Congregação passou a ser regida pelo direito pontifício. Até 1945, aquele organismo fora tutelado pelos sucessivos bispos de Campinas, de forma que foram eles que definiram os rumos da organização.

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longo período era garantia de estabilidade política, pois evitava que o grupo viesse a

sofrer impactos que comprometessem o projeto eclesiástico.

Não é de estranhar que um ano após a promulgação do Decreto pontifício, em 1957,

com plena possibilidade de seguir seu caminho, o grupo que controlava a

Congregação conseguiu que o bispo Dom Paulo de Tarso solicitasse especial

autorização da Santa Sé para que a superiora Irmã Angelina Maria da Sagrada

Face, que cumprira seus dois mandatos permitidos pela lei canônica (1945-1951,

1951-1957), fosse mantida por mais um governo, integralizando 18 anos à frente da

organização. Esta era a garantia de que, apesar da plena independência e

autonomia, e das mudanças políticas derivadas da laicização, aquele governo

reproduziria e daria continuidade à tradição institucional centralizada, hierárquica e

autoritária do projeto episcopal que ao longo dos 50 anos dirigiu a organização.

Ao encerrar o seu terceiro mandato, em janeiro de 1963, a superiora geral, Irmã

Angelina Maria da Sagrada Face, apresentava um balanço muito positivo do estado

geral da organização:

1º Estado pessoal: (...) somos ainda poucas em vista das obras existentes e sempre em desenvolvimento - poder-se-ia objetar: por que então foram aceitas novas obras, se há falta de pessoal. Vários são os motivos e, entre eles um que foi bem ponderado: se não se alargar o campo de trabalho de nossa Congregação, poderia ficar ainda mais limitado o número de vocações, como prova o fato de que ultimamente as candidatas nos têm vindo, em sua maioria, das casas mais distantes e recentes – (...), portanto a todos os membros da Congregação cabe grande responsabilidade, pois muito maior poderia ter sido e deve ser o número deles. ...

2º Estado disciplinar. A regular observância (...) tem se mantido em relativo vigor - entretanto também aqui devemos nos empenhar a que a Regular observância tenha sempre um brilho especial em nossa congregação. (...)

3º Estado Econômico - Com mágoa o confessamos: nos dois itens antecedentes – estado pessoal e disciplinar - não tivemos a graça, não soubemos merecer seu florescimento, [mas] Nosso Senhor houve por bem ser pródigo para com nossa congregação na parte material. (RELATÓRIO 1957-1963, p. 2-3)

A excelente posição econômica, apesar de ter sido justificada pela “prodigalidade de

Deus”, era, na verdade, fruto do investimento que a Congregação vinha fazendo no

tradicional modelo centrado na abertura de casas prestadoras de serviço, em função

do recrutamento. Também, parte daquele sucesso se devia à austera disciplina (item

2.º), própria da cultura religiosa desenvolvida com a vivência dos votos religiosos, o

que, por sua vez, dava identidade à vida consagrada. De forma discreta, a superiora

geral arriscou indicar, no quesito disciplinar, a falta de “um pouco de brilho”,

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deixando entrever que, no seu entendimento, as mudanças políticas, sociais, que se

acumulavam a cada ano, atingiam o cotidiano e provocavam instabilidades na vida

congregacional. De certa forma, ela sinalizava que cabia à organização avaliar os

ganhos e as perdas de uma possível mudança no projeto escolhido há décadas.

No primeiro item, sem referenciar nominalmente, ela indicava que a principal

mudança instaurada em seus três governos se deu na política de expansão da

Congregação em direção ao Sul do País. Segundo ela, isso se devia à necessidade

de aumentar o recrutamento, pois o número ainda era insuficiente. A informação de

que as vocações vinham de lugares distantes revela que o bem mais precioso,

responsável pela manutenção e pelo crescimento da Organização, começava a se

tornar escasso, o que justificaria a política de expansão assumida desde o final de

seu primeiro governo. Ao analisar os dados referentes aos ingressos de candidatas,

observamos que o recrutamento em 1963, apesar de ainda ser razoavelmente

significativo, com 77 candidatas, era inferior ao número de ingressos em alguns

períodos anteriores. Foram contabilizadas, por exemplo, 101 ingressantes em 1956.

Portanto, apesar do relativo sucesso no recrutamento, este diminuía a cada governo,

sinalizando que o projeto de expansão para a região Sul não surtiu o efeito

esperado, pois, apesar daquela região ainda conservar a fama de ser celeiro de

“vocações”, também lá se observava progressivo declínio dos recrutamentos. Diante

disso, outra razão deve ser buscada.

Ao analisar a dinâmica de manutenção das organizações, Pierre Bourdieu analisa

vários tipos de investimentos, os quais constroem o capital cultural e social que as

impulsiona em busca de sobrevivência e que são justificados em função de um

determinado objetivo, os quais, por sua vez, também escondem outros (BOURDIEU,

2001). Esse investimento implica em uma avaliação bem precisa dos passos a

serem dados, pois, como os investimentos e os objetivos quase sempre são

múltiplos, a perda em uma dimensão pode significar ganho em outra, o que resulta

em relativo equilíbrio na vida de uma organização, e, isso acaba justificando sua

existência.

Se até 1945 a Congregação havia se constituído com solidez no eixo São Paulo,

Minas Gerais e Rio de Janeiro, o que permite interpretar não sentir necessidade de

buscar novas frentes, no ano de 1949, ela partiu para uma política de expansão em

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direção ao Sul do País, começando por Santa Catarina, depois Paraná e, por fim,

Rio Grande do Sul.

No relatório de governo, a madre geral Angelina Maria da Sagrada Face

comunicava:

... a conselho do bispo Diocesano Dom Paulo de Tarso Campos, a bem do aumento das vocações, havíamo-nos empenhado em abrir uma casa no Estado de Santa Catarina (...) Entramos em contato com o Superior dos Capuchinhos da Província do Paraná (...) Em janeiro de 1949 teve início a fundação do educandário de S. José de Barra Fria. (RELATÓRIO 1945-1951, p. 10)

Entendemos que a opção pelo Sul do País, iniciando por Barra Fria, Santa Catarina,

se deveu a três razões: a) a existência de um campo de trabalho com possibilidade

de crescimento na área da educação, sem muita concorrência; b) a presença dos

capuchinhos italianos, o que representava certa segurança para aquele grupo que

nada conhecia daquela região120; c) a fama de que o Sul, em razão do processo

imigratório europeu, era uma região tradicionalmente católica e, portanto, por ser

mais resistente à secularização, ainda despertava vocações religiosas. Estas três

razões demonstram que a dinâmica na expansão geográfica obedecia a um critério

de relativo investimento, feito na esperança de retorno em várias dimensões.

Ao analisar o relatório do período 1951-1957, constatamos que o investimento no

Sul foi grande, pois, das nove casas abertas pela organização naquele período,

apenas duas foram em São Paulo. Entretanto, para que as sete casas sulinas

fossem abertas, foi necessária uma flexibilização nos novos contratos. De 5 acordos

realizados com os frades para que ela pudesse assumir escolas, quatro foram

condicionados à obrigatoriedade do trabalho nas paróquias e, um deles, em um

pequeno hospital. Além disso, a Congregação se comprometeu a abrir duas outras

casas, uma para o serviço de economia doméstica no seminário e outra para o

trabalho pastoral em uma paróquia.

O grande desafio das novas comunidades foi constituir redes de apoio junto à elite

das cidades, com os capuchinhos e com o clero local, para que as ajudassem na

execução de seu projeto, o que nem sempre aconteceu da forma como esperavam.

120 Os frades do Paraná e Santa Catarina integravam a Missão capuchinha da província italiana de Veneza, na região da Savoia e, portanto, não pertenciam à mesma província dos frades de Piracicaba.

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Diante de um catolicismo bastante tradicional, as condições para a inserção das

religiosas naquela realidade tiveram que ser totalmente diferentes daquelas de São

Paulo. No trabalho nas escolas, a realidade encontrada no Sul do País, se, de um

lado, parecia ser um campo bastante promissor em função da força do catolicismo

presente no povo, de outro, se mostrou uma novidade diante do controle exercido

pelos capuchinhos nas escolas paroquiais. A duras penas, as irmãs tiveram que se

adaptar à nova realidade, servir-se de estratégias para que o projeto da

Congregação fosse em frente.

Segundo Adriana Salvaterra Pasquini, as escolas paroquiais geridas por aqueles

frades escapavam da peculiaridade de serem geridas pelas comunidades

imigrantes121. Essa realidade teria mudado com a política romanizadora de Dom

João Francisco Braga, nomeado bispo de Curitiba em 1908, que se apropriou da

rede de escolas e paróquias e convidou os frades capuchinhos para gerenciá-las e

padronizá-las segundo os interesses eclesiásticos (PASQUINI, 2017). Tal projeto

teria interessado aos frades como estratégia para estenderem sua ação em todo

território paranaense e catarinense122. Assumir aquele projeto lhes permitia não só

aumentar a visibilidade da Ordem como também possibilitar o aumento de bens

materiais e simbólicos, que seriam fundamentais para o projeto de independência da

121 Para entender a questão das escolas paroquiais, característica específica da região Sul, nos apropriamos da análise de Dallabrida, que afirma que tais instituições nasceram ainda no século XIX, pela ação de imigrantes alemães e italianos, inclusos os padres presentes nas várias comunidades de imigrantes, com o objetivo de fornecer a educação elementar, a qual era transmitida aos filhos de católicos. A principal característica dessas escolas era fornecer acesso à educação a crianças que não só não falavam a língua portuguesa, mas também não eram atendidas pela rede oficial de ensino. Especialmente nas colônias europeias, dirigidas por padres europeus, as escolas tiveram maior duração. O impulso para o crescimento das escolas paróquias foi dado pela Carta Pastoral Coletiva Meridional de 1901, que congregava as dioceses das regiões que hoje denominamos Centro, Centro Oeste, Sul e Sudeste, e incentivava que os padres criassem, em suas paróquias, escolas para que, ao lado do ensino da catequese, se oferecesse também ensino básico. A carta ainda sugeria que os padres responsabilizassem as religiosas pelo ensino. Especialmente nas colônias europeias, dirigidas por padres europeus, as escolas tiveram maior duração (DALLABRIDA, 2011). 122 Cabe destacar que, apesar de aqueles frades capuchinhos terem alcançado Santa Catarina, eles não foram os únicos que assumiram as escolas paroquiais. Também a Ordem dos Frades Menores possuía uma Missão naquele estado, com projeto missionário diferente da Ordem dos Frades Capuchinhos venezianos. O principal exemplo foi a criação da escola paroquial em Rodeio, Santa Catarina, em 1913, pelo frei Polycarpo Schuhen, o qual confiou a escola paroquial a um grupo de moças, filhas de Maria; grupo que depois foi transformado em uma congregação religiosa (BITTENCOURT, 2007). Este fato indica que, apesar de seguirem as mesmas propostas romanas, as Ordens religiosas tinham interesses próprios, os quais, por sua vez, determinavam o quanto cada uma delas se vinculava aos projetos dos bispos da região.

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província veneziana123. Vemos, portanto, que, desde 1908, houve uma progressiva

apropriação e ressignificação das escolas paróquias, esvaziando o sentido original e

reformando-as, para que elas assumissem cada vez mais contornos romanizados.

Nesse novo formato, a gerência era controlada pelos capuchinhos, que convidavam

congregações femininas para assumirem a parte pedagógica. Ao contrário da

experiência de autonomia vivenciada em São Paulo pela Congregação, as religiosas

perceberam que naquelas escolas elas seriam apenas executoras do projeto dos

frades, o que fez com que desistissem delas e fossem para outras cidades, em

busca de outras experiências.

Entendemos que devia ter havido outros motivos para tão forte investimento em

Santa Catarina124. Essa hipótese baseia-se em uma informação da mesma superiora

geral, de que, naquele sexênio, ela recebera mais de 90 pedidos para novas

fundações, cuja maioria foi negada porque não havia religiosas disponíveis

(RELATÓRIO 1951 – 1957)125. Por que, afinal, insistir na mal sucedida missão do

123 A Missão capuchinha foi instalada no Paraná em 1854 e foi elevada à Custódia, em 1937; a Comissariado Provincial em 1957 e, somente em 1969, foi elevada a Província de São Lourenco de Brindesi. 124 A primeira missão sulina da Congregação foi na cidade de Barra Fria, no ano de 1949, onde foi aberto o Educandário São José, o qual durou menos de cinco anos e foi fechado em 1954 (RELATÓRIO, 1945-1951, 1951-1956). No governo de 1951-1957 foram abertas outras sete frentes de trabalho. A segunda obra foi aberta na cidade Herval do O’Este, a convite de um frade capuchinho, para o trabalho em atividades paroquiais. Também em 1952, aceitou assumir a “economia doméstica” do Seminário dos frades em Irati, Paraná, onde as religiosas puderam se dedicar à pastoral. Como contrapartida, recebeu a doação de um terreno ao lado do seminário para instalar suas obras. Em 1953, ela abriu uma nova missão em Uraí, no Paraná, acordando com os frades capuchinhos que ela assumiria as atividades pastorais em uma colônia japonesa, onde poderia também abrir uma Escola a ser construída em terreno doado pela colônia. No mesmo ano, assumiu também atividades pastorais na cidade de Bandeirantes, no Paraná, com a promessa de poderia implantar uma escola particular. Em 1955 alcançou o Rio Grande do Sul, a convite do bispo da Prelazia de Vacaria, Dom Candido Maria Bampi, também capuchinho, para abrir um casa em Ibiaçá, onde se responsabilizou por uma escola e um pequeno hospital. No ano seguinte, estendeu sua ação até São José do Ouro, RGS, onde abriu escolas (RELATÓRIO 1951-1957).

Apesar de a superiora geral ter chamado a primeira obra em Barra Fria de “Educandário”, ela era uma escola paroquial. Um quadro, elaborado por Pasquini, indica que nem todas as instituições receberam a identificação de escolas paróquias. Algumas foram chamadas simplesmente de escolas, outras de colégios, outras de educandário (PASQUINI, 2017). 125 O referido relatório não informa a origem dos pedidos. Todavia, entre os anos de 1955 a 1964, a Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) veiculou uma série de anúncios de organizações públicas e/ou administradas por entidade civis que ofereciam oportunidades de gerenciamento, para pessoal qualificado, às congregações interessadas em se instalar em inúmeras cidades. Apesar dos anúncios ainda se concentrarem nas regiões Sudeste e Sul, a grande maioria das ofertas estava em cidades interioranas onde a religião ainda mantinha a coesão social e onde havia carência de profissionais, dois efeitos da secularização. O êxodo de profissionais para as grandes cidades se caracterizava como oportunidade para as religiosas, ainda que sem a devida formação. Dentre os campos requisitados, contabilizamos os dois mais tradicionais: hospitais e

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Sul, quando havia inúmeros convites em outras regiões? O que ganhava a

Congregação, quando aparentemente ela só perdia? (BOURDIEU, 1997) 126.

A missão no Sul se configura como emblemática, pois ela traz à luz como a

implementação de uma política educacional laica e democrática, - que tinha como

um dos objetivos ampliar a oferta de educação pública - , atingia o projeto político

das escolas católicas, que se mantinha, até então, lucrativo justamente em função

do caos educacional vivenciado no País. Prestes a receber o reconhecimento

pontifício, a Congregação franciscana se viu forçada pelas novas politicas a sair de

sua zona de conforto, para ir a uma região desconhecida e, ainda, ficar sob a tutela

dos frades sulistas.

Apesar de abrir algumas escolas e conseguir mantê-las, a grande novidade da

missão no Sul resultou na inserção de algumas religiosas nas atividades paroquiais,

o que viria a se constituir o principal campo de atuação da Congregação a partir de

1970. Interpretamos, pois, que o assumir atividades paroquiais se deu em razão da

necessidade de dar destinação ao excedente de religiosas, que as casas existentes

escolas, com 61 e 42 ofertas, respectivamente, o que demonstra um relativo, mas circunscrito, campo de atuação para as religiosas. Também nesses anúncios, constatamos a presença de 15 solicitações para o trabalho das irmãs em paróquias.

N.º de solicitações por ano ano n.º 1955 8 1956 39 1957 28 1958 17 1959 23 1960 12 1961 11 1962 15 1963 2 1964 1

156

Solicitações por Estado Estado N.º MG 52 SP 25 RJ 24 ES 2 RGS 14 SC 5 PR 4 BA 9 MA 5 CE 3 PB 1 AL 1 GO 6 MT 4 RO 1 Total 156

N.º de solicitações por área Hospitais 61 Escolas 42 Obras sociais 29 Apostolados paroquiais 15 Asilos 5 Trabalhos domésticos 4

156

Quadros elaborados pelo autor a partir de anúncios publicados na Revista da CRB A Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil começou a ser publicada mensalmente, em julho de 1955. Na década de 1970 passou a se chamar Revista Convergência, e existe ainda hoje. O acervo digital da Revista pode ser acessado em: http://crbnacional.org.br/acervo-digital/ 126 Com exceção de duas escolas, uma na cidade de Uraí e outra em Bandeirantes, todas as outras foram fechadas.

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não tinham mais condições de absorver. Somamos a isso o fato de que a

organização pouco se preocupara com o nível de escolaridade das recrutadas. Uma

das justificativas de Dom Barreto, para que a organização transferisse para

Campinas o governo geral e a casa de formação, era oferecer estudo para as

formandas (RELATÓRIO 1927-1933). Todavia, como as congregações tinham

relativa autonomia para gerir suas obras sem a interferência do governo estadual,

durante anos as religiosas que se dedicavam ao trabalho de educação, mas também

as que se dedicavam à enfermagem recebiam a formação, não nos bancos

escolares, mas através do tirocínio, no exercício cotidiano do trabalho. Prova isto

uma informação relatada pela superiora geral, de 1951-1957, que, das cinco

religiosas que fizeram os exames de habilitação, na cidade de Florianópolis,

promovido pela Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário

(CADES), para poderem continuar lecionando no segundo grau, apenas uma foi

aprovada127. Ainda segundo a superiora, esta era a realidade de numerosas

congregações (1951 e 1957). Tal realidade se tornou mais complexa com o avanço

das exigências do Estado e da sociedade, que, a partir de 1960, passou a dificultar e

mesmo impedir que religiosas sem formação adequada permanecessem em escolas

e hospitais, o que exigia buscar novos campos de atuação para as religiosas.

Disso resultou que, o aumento no recrutamento sem a qualificação necessária, criou

uma situação inusitada para a organização: o excedente número de religiosas a

obrigou a abrir novas casas em regiões capazes de absorver aquele perfil de

religiosas. Ao mesmo tempo, progressivamente, se via obrigada a fechar casas em

que as religiosas não se enquadravam nas exigências impostas pelos governos

estaduais, que exigiam quadros profissionais habilitados. Vendo-se impossibilitada

de manter o tradicional perfil da organização, a Congregação teria sido obrigada a

aceitar convites para serviços que não impunham exigências acadêmicas, como foi

o caso dos numerosos convites para que as religiosas exercessem atividades

paroquiais, nas quais ainda gozavam de algum prestígio, fruto das atividades

127 O CADES (Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário) foi criado em 1953, pelo Ministério da Educação e Cultura, para acelerar o número de professores aptos para lecionar no ensino secundário. Cursos intensivos eram oferecidos a professores não diplomados que, ao final do curso, prestavam um exame para serem habilitados. Ainda que com ressalvas, ela deve ser vista como continuidade da Reforma da educação de Capanema, de 1942 (PINTO, 2000).

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catequéticas. Essa tendência foi confirmada no seguimento do Concílio Vaticano II,

quando, incentivadas pelos bispos, muitas congregações fecharam obras

tradicionais para enviar religiosas a trabalhar diretamente com os fiéis nas

paróquias.

De outro lado, a nova frente de trabalho nas paróquias, apesar de colocar as irmãs

em contato direto com o povo, não correspondia à noção de vida religiosa daquelas

que viveram parte de suas vidas confinadas nas escolas e nos hospitais, e isso

também gerou crise nas freiras, pois, para muitas, se aquele estilo de vida vivido até

então passava a ser classificado como errado, em vão teria sido a consagração

religiosa da maioria delas. Além disso, ainda que se reflita como tais trabalhos

construíam uma imagem menos associada às classes dominantes e as

aproximavam do franciscanismo, a realização de tarefas comuns aos leigos

impactaram nas tradicionais representações da vida religiosa conventual presentes

no imaginário popular, o que comprometeu o recrutamento de jovens, que viam na

vida religiosa uma distinção social e uma proteção em relação à luta pela vida no

universo masculino (GROSSI, 1990).

Por fim, especialmente a expressão “economia doméstica” foi o eufemismo utilizado

pelas superioras para comunicar que algumas irmãs trabalhariam como empregadas

domésticas nos seminários franciscanos e na casa de clérigos, o que era uma

realidade que a Congregação não vivera nem nos primeiros anos de fundação128. A

desfavorável situação socioeconômica e a condição feminina mostraram que a

fraternidade franciscana não passava de um valor espiritual que não resistia às

culturas locais. Cabe ressaltar que esse novo campo de trabalho, ainda que fosse

visto a partir da espiritualidade do serviço, repercutia no recrutamento de futuras

religiosas, pois, uma vez desprovidas do poder simbólico decorrente da presença

nas escolas e nos hospitais, as religiosas deixaram de ser vistas como modelos para

outras jovens129.

128 Nesta mesma perspectiva, na década de 1960 três irmãs foram liberadas para trabalhar com os frades no seminário São Fidelis, em Piracicaba. Uma para colaborar na equipe responsável pela admissão dos jovens ao seminário e as outras duas para assumir os serviços de lavanderia e cozinha do seminário (RELATÓRIO 1963-1969). 129 Todas as congregações religiosas se depararam, entre as décadas de 1950 a 1970, com um processo de secularização cada vez mais avançado, que se fazia perceber na forma como os novos responsáveis pelas antigas instituições civis parceiras se desinteressaram em manter seus serviços nas mesmas condições de outrora. Com os avanços sociais, com a emancipação das mulheres, com

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Ao constatarmos que, às vésperas do Concílio II, a organização se via obrigada a

abandonar postos importantes para se dedicar à vida pastoral nas paróquias do Sul

do País, entendemos que esta opção foi uma das alternativas para resolver um

problema estrutural. Identificamos que a cultura de arregimentação dos quadros

partia do pressuposto de que não era preciso fazer uma seleção das candidatas, e

essa visão pautou a política de 1945 a 1963, quando a expansão estava acima de

qualquer outra questão. Não obstante, com o acesso das mulheres à instrução, a

entrada no mercado de trabalho e a liberalização dos costumes, que marcaram a

revolução social dos anos 1960, é possível verificar que, apesar de todo cuidado em

não mudar drasticamente o modus vivendi da Congregação, a superiora geral, para

o governo de 1963-1969, muito se empenhou para uma seleção mais rigorosa das

candidatas. Assim, em seu Relatório, madre Maria Julia, apesar de adotar a mesma

perspectiva do governo anterior, sublinhando o pequeno número de candidatas,

destacava:

Como todas sabemos, (...) é exíguo o número de Irmãs. Acresce que, apesar dos ingentes esforços empregados para dar um preparo à altura da vida religiosa e dos deveres a assumir (...) é ainda insuficiente o número de irmãs aptas ao desempenho dos compromissos que temos. Além disso, a fim de adquirirem maior conhecimento intelectual que as capacite a compreender melhor o que a Igreja e o mundo de hoje delas esperam, tivemos que retardar o ingresso no Noviciado das nossas vocacionadas, assim como, achamos mais prudente fazer maior seleção na aceitação de novas candidatas, que se apresentam em número relativamente bom, porém, sem o preparo, atualmente indispensável (Sic). (RELATORIO, 1963-1969, p. 2)

o maior acesso aos cursos profissionalizantes, as instituições de assistência social, escolares e hospitalares passaram a profissionalizar seus quadros. A presença das singulares religiosas não era mais garantida por acordo entre Estado e Igreja, mas unicamente pela isonomia profissional com outros profissionais. A partir de 1960, a duras penas, tais organismos, por não terem à disposição os profissionais qualificados que o Estado exigia, se viram obrigados a renunciar a grande parte dos postos que conquistara há décadas e dar outra destinação ao seu quadro de religiosas. Um segundo aspecto da secularização foi sua vertente cultural, que atingiu também as organizações eclesiásticas femininas. Os movimentos sociais libertários, especialmente a luta das mulheres pela sua emancipação das estruturas masculinas, hierárquicas, ecoaram nas casas religiosas, pois as religiosas presentes na sociedade reverberavam no interior dos conventos os debates que viam e ouviam sobre a secularização, nos locais em que atuavam. Houve uma velada e progressiva conscientização das religiosas, o que revelava que a vida congregacional não era tão isonômica quanto se apresentava e que as opções políticas e econômicas das organizações a que pertenciam impunham não poucos sacrifícios às singulares religiosas. A somatória desses fatores contribuiu para o esvaziamento e a perda de sentido da vida religiosa ativa, pois o convento não se configurava mais como lugar exclusivo para aquelas mulheres que não desejavam o casamento e buscavam espaço para desenvolver suas habilidades pessoais. A secularização abria espaços para a realização pessoal e profissional das mulheres, o que, por sua vez, colocava em xeque as razões de as religiosas viverem enclausuradas, ainda que através da vida ativa (GROSSI, 1990). Diante deste quadro, entre 1960 e 1980 houve um forte êxodo das congregações religiosas que até o tempo presente não foi superado.

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A superiora se perguntava pela capacidade da Congregação para construir uma

presença social que fosse significativa e singular. A permanência em determinados

espaços sociais se dava mais em função da qualidade de seus membros do que em

função do número, pois as condições sociais de uma sociedade urbana e moderna

exigia que a Organização se preparasse para responder aos desafios impostos pelo

trabalho especializado e não se refugiasse apenas nos espaços onde o catolicismo

ainda tinha algum peso. Nesses lugares os serviços solicitados não correspondiam à

essência da vida religiosa. Se, de um lado, garantiam alguma entrada econômica,

aumento de patrimônio, de outro, eles impactavam diretamente na qualidade do

recrutamento. Para realizar atividades que quaisquer pessoas pudessem executar,

não havia necessidade de ser religiosa. Este tipo de “vocação”, que muitas vezes

representava apenas a possibilidade de fuga da situação de pobreza da vida rural,

não lhes servia. No fundo, a superiora perguntava o que queria a Congregação com

aquela política de recrutamento.

Segundo Mirian Pilar Grossi, os recrutamentos que ainda restavam eram

essencialmente da área rural e grande parte das candidatas não tinha formação

adequada. Ademais, a visão delas sobre vida religiosa era de uma vida religiosa

idílica e, muitas vezes, como possibilidade de ascensão social (GROSSI, 1990).

Com essa reflexão, em plena sintonia com o Decreto Conciliar, a superiora geral

perguntava quais rumos a Congregação desejava trilhar. Constatamos que o

discurso de mudança não foi suficiente para provocar alterações no projeto da

organização. Tendo ultrapassado já os 70 anos de existência, a maioria das

religiosas era idosa. É compreensivo entender a existência de uma força

conservadora em seu interior, que optou por não enfrentar a secularização. Com a

abertura dos novos postos, ela acabou contribuindo para um revigoramento no

recrutamento, que se estendeu até os anos de 1970. Entretanto, a deserção de

candidatas nas várias etapas de formação se manteve elevada, indicando que o

problema não se restringia ao recrutamento, mas alcançava também a estrutura

formativa, que se mantinha fechada.

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8. O trabalho como dote religioso

Tal qual nos casamentos, uma jovem, ao entrar num convento, tinha a obrigação de

entregar um dote130. Tal qual o civil, o dote religioso era parte de um acordo entre a

família da futura religiosa e a Igreja, com o objetivo de garantir a subsistência da

futura freira. Ao abordar a participação econômica das religiosas na vida da

congregação, além de possíveis doações de heranças familiares, Langlois cita que

havia duas formas delas contribuírem: através das taxas cobradas para a

manutenção das jovens no noviciado e o dote. Como o primeiro era mais recorrente,

o segundo caiu em desuso, até porque a tradição do dote religioso era uma forma

das Ordens religiosas, que não tinham rendimentos monetários para manter a

religiosa. Como as congregações recebiam subsídios e recebiam pelos serviços que

prestavam, também não havia mais razão de pedir o dote, mas, mesmo assim, tal

prática continuou existindo. (LANGLOIS, 1984, p .365, 369)

A análise das várias Constituições da Congregação das Irmãs Franciscanas do

Coração de Maria, mostrou que, até 1958, quando foi publicada a terceira

Constituição, o dote religioso foi mantido. A Constituição de 1921 fixou o valor em Rs

1.000$000; a Constituição de 1932 alterou-o para Rs 2.000$000 e a Constituição de

1958 fixou que “... cada postulante deve trazer o próprio dote no valor pecuniário

estabelecido pelo Capítulo Geral...” (CONSTITUIÇÃO de 1921, I, § 8, 26-27;

CONSTITUIÇÃO de 1932, II § 5, 46-47; CONSTITUIÇÃO de 1958, §18 e 19 27-28,

respectivamente).

Vários relatórios informaram a entrada do montante recebido de valores respectivos

aos dotes, mas não o número de candidatas. O valor proveniente dos dotes era

aplicado em apólices e em ações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro

(RELATÓRIO 1941). No balancete do período 1945-1951, consta no demonstrativo

do passivo a existência de Cr$ 129.975,00 (RELATÓRIO1945-1951, Anexo 7).

Contudo, cabe destacar que as Constituições de 1921 e na de 1958, sinalizavam a

possibilidade do dote ser trocado por alguma competência profissional que a futura

130 O dote foi uma prática social que perdurou do período colonial até o início do século XX. Ele era parte do acordo nupcial, no qual a família da futura esposa entregava uma determinada soma em dinheiro à família daquele que a recebesse em casamento.

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candidata pudesse ter. A Constituição de 1921 determinou: “... Caso, porém, ela [a

candidata] possua alguma habilidade especial ou diploma de professora, poder-se-á

dispensar o dote... (sic)”. A Constituição de 1958 deliberou: “A superiora geral tem a

faculdade de dispensar todo ou parte do dote, em vantagem daquelas aspirantes

que estão desprovidas de recursos financeiros, mas possuem títulos de estudo,

diplomas reconhecidos pela autoridade civil ou habilidades especiais que as tornem

úteis à Congregação ...” (CONSTITUIÇÃO de 1921, I, § 8; CONSTITUIÇÃO de 1958,

§18 e 19, respectivamente).

Tal informação nos levou a pesquisar sobre o dote religioso. Até o presente

momento nada encontramos. Entretanto, uma pesquisa sobre as mudanças culturais

nesta prática nos chamou a atenção. Elizabeth Sousa Abrantes (2010) aponta que,

na passagem do século XIX para o XX, especialmente na formação da República, o

dote econômico, apesar de continuar existindo, foi ressignificado e adquiriu um valor

social ligado a uma nova função da mulher na sociedade. Para isso, ela recupera a

obra O ensino público, de 1873, do deputado maranhense republicano Antônio

Almeida Oliveira, especialmente no seu último capítulo, “Das mães de família”, no

qual o autor destaca a importância das matriarcas na formação da família e da

nação republicana. Segundo ele: “Quem educa não é obrigado a dotar, porque o

dote é a educação” (sic). A autora pondera que se tratava de um momento

fundamental para a nação brasileira, quando a mulher culta cumpriria a função de

educar seus filhos, os futuros brasileiros. Assim, o dote cultural passava a ser mais

importante que o dote pecuniário (ABRANTES, 2010).

A autora não fez referência alguma ao dote religioso, mas sua abordagem nos

permitiu estabelecer uma relação entre eles, de forma a compreender as mudanças

ocorridas nos dois. Como já destacamos, foi também através do trabalho das

religiosas que a Igreja pôde ocupar o espaço conquistado na sociedade brasileira.

Ousamos, então, estabelecer uma relação entre o papel da mulher na sociedade e o

papel da religiosa na Igreja. Ambas deveriam assumir funções colaborativas às dos

homens na construção da nação brasileira.

No processo de multiplicação da visibilidade da Igreja, as congregações precisavam

de candidatas para os diversos serviços nas obras e, em razão disso, não puderam

rejeitar as que não podiam dar o dote. Percebemos, então, que surgia nas

congregações o dote social, isto é, aquele substituía – e passava a ser mais

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importante que ele – o dote econômico, dado apenas por ocasião da entrada no

convento. Isso já havia ficado claro nos Estatutos de 1906, que definira que

deveriam ser “... amantes do trabalho ...”. (ESTATUTOS DISCIPLINARES, 1905, I,

§1 apud MARCON, 1992, IV).

Entretanto, na Constituição de 1921, quando o projeto da Congregação buscou

acentuar o escopo educacional, além do amor ao trabalho, o “diploma de professora”

era muito bem-vindo, o que se aproximava mais do dote cultural, proposto pelo

deputado maranhense (CONSTITUIÇÕES de 1921, I, §8). Como isso nem sempre

era possível, Dom Barreto, como responsável pela direção da organização,

determinou que a organização transferisse a sua sede para Campinas e abrisse o

Colégio Ave Maria, que serviria também para preparar mais adequadamente as

candidatas à vida religiosa, mas também fazer delas professoras. Vemos, por esta

atitude, que o bispo a convenceu a investir na formação adequada de quadros. No

entanto, diante do projeto de expansão, não havia como rejeitar as não diplomadas,

além do que grande parte dos serviços prestados eram ensinados através do

tirocínio. Isso fica claro nas Constituições de 1932 e de 1958, nas quais, menos

seletiva, retoma o Estatuto de 1906: “Exige-se que as aspirantes sejam: (...) De

reputação incensurável, amantes do trabalho e da concórdia ...” (CONSTITUIÇÕES

de 1932, II, §5f; 1958, III, §31). Diante desta constatação, podemos concluir que a

opção por assumir casas e obras contratadas, com prestação de serviços não afins

com o tradicional escopo, foi vista como algo temporário, até que ela tivesse

condições de assumir as escolas e espaço para destinar as religiosas não

diplomadas. Mas, como nem tudo ocorre conforme o planejado, o temporário se

prolongou por mais de 30 anos e só foi interrompido por razões alheias a sua

vontade. O específico escopo da educação, definido claramente nas Constituições

de 1921, teve que ser ampliado para acolher um maior número de candidatas, ainda

que sem dote econômico ou profissional. Em alguma das quatro frentes de trabalho,

a candidata amante do trabalho se encaixaria.

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Figura 1: Piracicaba – 1890

Figura 2: Campinas final século XIX

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Figura 3 - Fotografia de Frei Luiz Maria de São Tiago, recém-chegado à cidade de Piracicaba

Figura 4 - Fotografia de Irmã Cecília, fundadora e primeira superiora geral da Congregação

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Figura 5: Igreja Sagrado Coração de Jesus, construída pelos frades franciscanos capuchinhos - Piracicaba

Figura 6 - Asilo Maria Nossa Mãe - Piracicaba

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Figura 7- Fundadoras do Asilo Maria Nossa Mãe, de Piracicaba

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Figura 8 – Santa Casa - Descalvado

Figura 9: Crianças do Asilo Imaculada Conceição – Descalvado

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Figura 10 - Irmã Cecília e funcionários da Santa Casa - Jundiaí

Figura 11 - 1ª turma de votos perpétuos – 1921 (Irmã Cecilia na primeira fila, a quarta a partir da esquerda)

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Figura 12: Chalé onde Irmã Cecília morou com sua filha (1916 - 1947)

Figura 13 - Irmã Cecília e sua filha Rosa

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Figura 14 - Sede do Governo Geral e Colégio Ave Maria (década de 1930)

Figura 15: Irmãs estudantes de Enfermagem

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Figura 16- Irmã Cecília, já idosa, em meio às crianças do Asilo

Figura 17- Irmã Cecilia em meio às Irmãs do Asilo (década 1940)

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Figura 18 - Irmã Cecilia (1946)

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Figura 19: Educandário Divina Pastora, Cidade de Uraí - Paraná

Figura 20 - Quarto onde Irmã Cecília viveu seus últimos dias, Asilo Maria Nossa Mae -Piracicaba

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CAPÍTULO IV

A Urupuca da Cabocla – Releituras

Este último capítulo analisa o processo de reinterpretação, feito pelas religiosas da

Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, de sua história entre os

anos de 1950 e 1990, e, especialmente, da vida de sua pretensa fundadora, depois

de seu falecimento. Esta releitura foi desencadeada em função das mudanças

decorridas na sociedade, em função do avanço da secularização, a qual, por sua

vez, desencadeou, no âmbito eclesial, o Concílio Vaticano II, que se propôs atualizar

a Igreja diante dos avanços da secularização. Essas mudanças desencadearam

rupturas que impuseram a reordenação de vários organismos eclesiais,

especialmente as congregações religiosas.

Com isso, avançamos no quadro que estamos compondo desde o início desta tese,

quando nos propusemos a analisar a formação do seu patrimônio, não só material,

mas, principalmente, o espiritual e simbólico, resultando no único patrimônio, o

cultural. Como em outras congregações, a releitura ocorreu em resposta aos apelos

do Concílio Vaticano II, que sugeria a seus organismos se atualizarem e se

renovarem com vistas a tornarem-se abertos ao diálogo e às mudanças do mundo,

em um processo conhecido internamente como aggiornamento131.

A inspiração para este capítulo vem de três obras. A primeira é do medievalista

Jacques Le Goff, que, ao reunir vários ensaios sobre Francisco de Assis, preocupou-

se em situá-lo no seu tempo, nas questões colocadas pela sociedade, na crise da

131 O Concílio Vaticano II, 1962-1965, realizado em Roma, emanou quatro constituições, nove decretos e três declarações. Apenas as constituições Dei Verbum, sobre a relação da Sagrada Escritura e a Tradição e Lumen Gentium sobre a constituição da Igreja, são dogmáticas, isto é, doutrinárias e com caráter dogmático e definitivo; as outras duas: Sacrossantum Concilium, sobre a Liturgia, e Gaudium ets spes, sobre a ação da Igreja no mundo, são pastorais e, portanto, apenas exortativas. A Constituição Dogmática Lumen Gentium definiu a noção eclesiológica de Igreja como Povo de Deus; e a Constituição Pastoral Gaudium et Spes estimulava os cristãos a participarem da construção da sociedade. Já os Decretos, em número de nove, são determinações e orientações para os vários organismos da Igreja responsáveis pelo ecumenismo, pelas Igrejas Orientais, pelas missões, pela formação dos padres, pelos bispos, pela renovação dos religiosos, pelos leigos e pelos meios de comunicação social. Por fim, há as Declarações, que expressam reflexões e opiniões eclesiais sobre a educação, sobre a liberdade religiosa, sobre os direitos da pessoa humana e sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs.

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Igreja e, especialmente, na origem do movimento mendicante. Ao fazer isso,

também questionou as várias representações construídas sobre o santo e intitulou o

ensaio principal da obra de “Em busca do verdadeiro Francisco”. Estabeleceu, ali,

profunda conexão entre as representações e o tempo em que elas foram geradas,

as quais, então, explicam as escolhas feitas pela organização (LE GOFF, 2001). A

segunda é de Claude Langlois, que, ao abordar a reconstrução da fundação das

congregações, indicou que esse momento surgiu como necessidade de legitimar as

escolhas feitas e seus autores, implicando em desconstruir interpretações forjadas

pela cultura eclesiástica que teria cooptado e clericalizado grupos femininos laicos

(LANGLOIS, 1984). A terceira vem de Michel de Certeau, ao afirmar que toda

interpretação pertence ao passado que a gerou. Ao fazer uma analogia entre uma

dada interpretação/texto e a morte de Jesus Cristo, ele afirmava que, da mesma

forma que o evento da morte de Jesus autoriza o evento de sua ressureição, a

interpretação, ou o texto pronto finalizado, morto, autoriza que novas leituras sejam

feitas, impondo uma ruptura instauradora. Nessa dinâmica, importa não o texto em

si, que pertence ao passado e, por isso, é morto, mas o leitor, o sujeito que o

reinterpreta e lhe dá vida, atualizando-o segundo seus interesses, tornando-o um

novo texto, criando uma nova interpretação para que ele tenha uma função no

tempo presente (CERTEAU, 2006)132.

Entendemos que o Concílio Vaticano II, ao propor uma releitura do passado, não

desejava apenas rememorá-lo, mas lançar luzes sobre questões hodiernas que

preocupavam as organizações religiosas, para que elas pudessem atualizar-se,

apresentarem-se como novas e reinventarem-se, em tempos novos.

Demonstraremos como se deu esse processo de releitura, qual o seu objetivo e

quais os caminhos escolhidos para tal consecução. As principais fontes desse

capítulo foram os relatórios das superioras gerais, os volumes III e IV do Dossiê

enviado a Santa Sé, as Revistas comemorativas dos Jubileus da Congregação e a

biografia Um coração de Maria. Vida de Madre Cecília do Coração de Maria, escrita

pelo frei José Carlos Pedroso.

132 Na obra A ordem dos livros, Roger Chartier (1994) se apropria de forma implícita dessas ideias, para indicar que o leitor é mais importante que o texto e seu autor, pois, através de sua leitura lhe dá nova vida.

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Como já expusemos nos capítulos anteriores, a extrema dedicação do grande

contingente das religiosas foi importante para o crescimento da organização, mas o

contexto sociopolítico, que pautava as relações entre Igreja e Estado na primeira

metade do século XX, não pode ser negligenciado. Ele foi extremamente favorável

às congregações religiosas, que se dispuseram a assumir, como missão, o serviço

social nas escolas, nos hospitais, nas creches e nos asilos. Isso nos permite afirmar

que, embora as congregações justifiquem religiosamente suas escolhas, é inegável

que a ausência do poder público nessas áreas acabou se constituindo uma alavanca

para o desenvolvimento delas. A condição para tais ações, então, não foi definida

pela Igreja, ou pelas próprias congregações, mas pela sociedade, que lhes indicava

o espaço e o tempo para atuarem, e acabava determinando o modus vivendi da

organização. Esse modo de ser, sedimentado ao longo do tempo, constituiu uma

cultura e modos de dominação, que passaram a ser reproduzidos pelas religiosas

que assumiram os postos de comando na organização (BOURDIEU, 1994). Tal

situação começou a mudar a partir dos anos 1940-1950 do século XX, quando

novos paradigmas atingiram a sociedade e a própria Congregação.

1. Os impactos da secularização e da laicização na Congregação

O avanço da secularização não atingiu a Igreja, e suas organizações, apenas nas

políticas laicistas do Estado, mas também culturalmente, pois, o fato de as religiosas

estarem em estarem em maior contato com o mundo acabou levando, para dentro

de suas casas, tudo aquilo que presenciavam nas ruas. Desta forma, a questão da

profissionalização, a discussão sobre a participação política e democrática, e o

feminismo, dentre outros aspectos, acabaram se constituindo em questões de ordem

nas casas religiosas. Tendo constituído um patrimônio material e espiritual na

primeira metade do século XX, o grande desafio da segunda metade foi

redimensionar esse patrimônio e dar-lhe uma nova identidade, uma nova destinação

e, acima de tudo, atribuir um novo sentido de pertença pessoal das religiosas à

organização (LAGROYE, 2009).

Dirigido aos religiosos, o Decreto conciliar Perfectæ Caritatis propunha a renovação

dos organismos religiosos a partir da recuperação da proposta fundacional, com o

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objetivo de atualizar a prática missionária deles133. Esse decreto não se referia

apenas a uma renovação espiritual, mas sugeria que os organismos religiosos se

adaptassem “às novas condições dos tempos”, e isso implicava em debruçar-se

sobre sua trajetória, sobre suas escolhas e a vida do(a)(s) fundador(a)(es). O que

ele propunha correspondia à percepção da Organização feminina desde o final da

década de 1940, as mudanças ocorridas na sociedade, as quais, além de impor

novas exigências para o funcionamento de suas obras, também atingiam o

recrutamento de novas candidatas, o que a levou a empreender o projeto de

expansão ao Sul. Mais do que transferir religiosas, tais mudanças comprometeram a

forma como a organização era gerida e impuseram, às vésperas do Concílio, a

eleição uma nova superiora geral, depois de 23 anos de manutenção da mesma

madre geral. Carregada do desejo de mudanças, esta eleição foi um divisor de

águas na vida da Congregação, exigindo novos modos de ser, os quais não

aconteceram sem crises e conflitos.

Entendemos que esse Decreto deve ser visto como contraponto das reformas

empreendidas na vida religiosa pela romanização, entre os anos de 1900 e 1917,

que a conventualizou, conforme já destacamos no capítulo I. As mudanças ligadas

aos processos de secularização da sociedade e a crescente laicização do Estado

comprometeram o modus operandi das congregações, o que lhes exigiu a

reordenação de seus projetos e lhes impôs a necessidade de reinventarem-se. Em

função da cultura construída na primeira metade do século XX, que conferiu à

Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria uma identidade

extremamente conservadora e eclesiástica, esse processo de ressignificação

demorou quatro décadas para se concretizar, e, mesmo assim, não de forma plena.

133 Do Decreto, destacamos.

A conveniente renovação da vida religiosa compreende não só um contínuo regresso às fontes de toda a vida cristã e à genuína inspiração dos Institutos, mas também a sua adaptação às novas condições dos tempos. Esta renovação, sob o impulso do Espírito Santo e a orientação da Igreja, deve promover-se segundo os princípios seguintes: a) Dado que a vida religiosa tem por última norma o seguimento de Cristo proposto no Evangelho, deve ser esta a regra suprema de todos os Institutos. b) Reverte em bem da Igreja que os Institutos mantenham a sua índole e função particular; por isso, sejam fielmente aceitas e guardados o espírito e as intenções dos fundadores bem como as sãs tradições, que constituem o patrimônio de cada Instituto. [....] (Decreto Perfectæ Caritatis. 1966, § 2) (grifo nosso).

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Em todo caso, uma vez imposta a ruptura, restou às religiosas, e especialmente às

superioras, assumirem, entre acertos e erros, os novos rumos da organização.

Na primeira metade do século XX, apesar de o Estado ser politicamente laico, a

religião católica continuou tendo forte influxo sobre a sociedade. A mudança dessa

realidade começou a ser sinalizada quando novas compreensões sobre o lugar das

organizações, e sobre o papel do Estado, emergiram, possibilitando mudanças

políticas, isso já a partir da emergência do Estado Novo. O avanço das políticas

laicistas tomou força quando parte da sociedade, incluindo alguns católicos, passou

a ver com escrúpulo a atuação de grupos religiosos em serviços considerados

públicos, pelo fato de seus membros serem apenas religiosos, isto é, sem terem a

devida formação profissional, mesmo quando atuavam em suas próprias

organizações.

Em razão disso, muitas congregações, para não perderem os espaços conquistados

nas primeiras décadas do século XX, adaptaram-se à nova realidade secularizada,

constituindo-se como entidades civis, de acordo com exigências do Estado. Como

contrapartida, elas passaram a contar com subsídios públicos para custeio da obra

social, especialmente para o pagamento dos funcionários. Dessa forma, as

congregações mantinham a direção da obra, mas a maioria dos profissionais passou

a ser composta por leigos contratados e pagos com os subsídios governamentais.

Assim, saíram as irmãs e entraram as(os) professoras(es), as(os) assistentes

sociais, as(os) enfermeiras(os), etc.

Especificamente na Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria,

isso pode ser constatado a partir dos relatórios de 1945, quando as superioras

gerais passaram a indicar o envio de religiosas para cursos técnicos ou superiores,

e, com a construção de moradias estudantis, a exemplo da abertura da Casa

Coração de Jesus, fundada em 1942 como residência exclusiva para três estudantes

de enfermagem, em São Paulo (RELATÓRIO, 1945). De forma semelhante, o

relatório do sexênio seguinte informa que 75 religiosas conseguiram obter o registro

dos governos federal e estadual para lecionar; 9 haviam realizado o curso intensivo

de administração hospitalar no Rio de Janeiro; e, outras 11 seguiam o curso

acadêmico de enfermagem. Indica também que 94 religiosas frequentavam cursos

profissionalizantes. (RELATÓRIO 1946-1951, Anexo IV). Tal decisão se dava por

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forças contingenciais sinalizando que mudanças precisavam ser empreendidas para

que a organização pudesse continuar presente na sociedade134.

Por sua vez, a atualização da Igreja, através do Vaticano II, ao propor um olhar

crítico sobre os problemas políticos e socioeconômicos das décadas de 1960-1970,

trazia em sua base questões antropológicas, colocadas pela sociedade moderna,

que também alteravam a forma de a instituição se posicionar na sociedade, assim

como no interior de suas organizações: a defesa das liberdades individuais e os

movimentos emancipatórios, especialmente o feminino, que tocariam no cerne da

vida religiosa. Diante da valorização das liberdades individuais, o vínculo de

pertença institucional era definido pela subjetividade, que se conflitava com as

rígidas estruturas de poder de muitas congregações, as quais tiveram que enfrentar

questionamentos internos sobre o lugar, a forma e as práticas religiosas da

organização e das singulares religiosas, o que acabou se configurando “um novo

jeito de ser freira”, a partir da ressignificação dos votos religiosos (GROSSI, 1990).

O pedido de atenção às novas condições dos tempos, às necessidades do

apostolado, às exigências da cultura e às circunstâncias sociais e econômicas,

tocava no núcleo da Doutrina Social da Igreja, sinteticamente expressa como a

afirmação do direito da presença pública da Igreja na sociedade em um Estado laico.

Assumindo os elementos da modernidade, especialmente a liberdade, tal doutrina

afirma que a Igreja é uma realidade presente na sociedade por meio do conjunto dos

católicos, os quais, sendo cidadãos, possuem o direito a liberdade religiosa e, como

cristãos, devem assumir o compromisso de defender a concepção eclesial e católica

de homem, de sociedade e de Estado (NEGRI, 2013). Especialmente na América

Latina, setores significativos da Igreja, e, especialmente, muitas congregações

religiosas, majoritariamente femininas, se perfilaram ao lado dos movimentos

libertários, na defesa da dignidade humana, das Comunidades Eclesiais de Base

(CEBs) e da Teologia da Libertação. Isso foi fundamental para a renovação da vida

religiosa, fato que desencadeou uma profunda revisão sobre o modo de ser de

134 Atendendo a um insistente apelo da autoridade eclesiástica do Rio de Janeiro, e seguindo o conselho do Exmo. Sr. Bispo diocesano de Campinas, para prevenir futuras exigências dos poderes governamentais, o conselho geral, embora com ingente sacrifício, determinou afastar nove das superioras locais que regiam [hospitais] para se dedicarem, na capital Federal, a um curso intensivo de Administração hospitalar, de abril a maio de 1945. Munidas de seu certificado, poderiam exercer o cargo de administradoras no momento em que governo exigisse essa habilitação (RELATÓRIO 1945-1951).

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muitas congregações e fez com que, muitas delas, adequassem seus carismas de

acordo com as novas exigências sociais (ROSADO-NUNES, 1997).

Isso não significa dizer, entretanto, que tais organizações, e as religiosas que as

governavam, tenham abandonado as posições políticas que fundamentaram sua

institucionalização. Na maioria das vezes, elas acolheram as sugestões conciliares

sem abrir mão do modo de ser e agir, e das estruturas que construíram na primeira

metade do século XX, assumindo, portanto, uma adesão formal às exigências

conciliares. Isso nos pareceu bastante claro, ao refletirmos sobre a tese doutoral, Do

hábito ao ato. Vida religiosa ativa no Brasil (1960-1985), de Caroline Jaques Cubas

(2014b). Ao desejar destacar a existência de uma nova postura congregacional de

acordo com propostas conciliares, a autora buscou, desde o título, analisar uma

nova representação de religiosas, que passavam a se envolver com as

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) nas lutas populares e, inclusive, no

engajamento político. O desenvolvimento da tese mostrou que isto ocorreu em

muitas congregações, mas não na maioria e, mesmo assim, naquelas que

assumiram tal proposta, isso se deu forma parcial135.

Na Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, a superiora geral

relatou, em 1969, que no ano de 1963 recebera um “insistente pedido” de uma das

religiosas, para integrar “uma caravana de irmãs adjuntas da JEC e algumas

jocistas”, a fim de conhecer as experiências de comunidades rurais no Nordeste

brasileiro; e que, após o retorno dessa irmã, os padres responsáveis pela Equipe

Nacional do Mundo Melhor teriam solicitado que fossem liberadas duas religiosas

para integrar uma Comunidade Eclesial intercongregacional (RELATÓRIO 1963-

1969)136. A narração feita pela superiora geral deixa entrever que, naquele período

135 A autora cita a Congregação das Religiosas da Assunção, a Congregação do Sagrado Coração de Maria, a Congregação das Irmãs de Santa Cruz, a Congregação das Oblatas do Espírito Santo e a Congregação das Missionárias de Jesus Crucificado (CUBAS, 2014b). Teria sido interessante relacionar este número relativo ao universo absoluto das congregações existentes no Brasil naquele período. 136 JEC é sigla utilizada para designar o movimento “Juventude Estudantil Católica”, e a expressão jocista se refere aos membros da Juventude Operária Católica (JOC), tal como para os membros da JEC seria jecista. JEC e JOC foram dois movimentos religiosos de jovens leigos originários da Ação Católica Brasileira (AC). Composto basicamente por cinco grupos, segundo o conjunto das vogais. Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Independente Católica (JIC), Juventude Operária Católica (JOC) e Juventude Universitária Católica (JUC), esses grupos foram fundamentais para o dinamismo da Igreja na década de 1960. Em função das represálias do governo militar, os cinco grupos despareceram. A JEC, ao lado da JAC, teve forte repercussão no Nordeste brasileiro, na formação do Movimento de Educação de Base (MEB), que

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da efervescência conciliar, abria-se o precedente de uma relativa horizontalidade

nas relações entre as religiosas e o governo geral, permitindo que qualquer uma

delas sugerisse mudanças nas práticas da organização, fato, até então, não

registrado pelas superioras em seus relatórios. O governo geral aprovou tal

solicitação porque, ainda que aquela nova prática social abrisse para espaço para

novas reflexões sobre o modo de ser da própria organização, ela também contribuía

para divulgar e promover a Congregação, criando, portanto, uma nova imagem dela,

fazendo aumentar o seu capital social. Paradoxalmente, aquelas Irmãs só foram

convidadas para ir ao Nordeste, também, em função do prestígio que a organização

gozava, especialmente na CRB. Assim, apesar de as práticas discursivas e os

critérios racionais da estrutura utilizados se apresentarem totalmente distintos das

novas práticas das religiosas inseridas, ambos tinham o mesmo objetivo, pois, sendo

faces de uma mesma moeda, objetivavam manter viva a organização, as primeiras

pela defesa da tradição, as segundas pela renovação. De outro lado, também

podemos interpretar que a anuência para que um grupo de religiosas integrasse

aquela missão se caracterizava como diversificação nos investimentos feitos pela

organização que também beneficiaria os dois grupos (BOURDIEU, 1997)

Também não podemos esquecer que, se a opção de assumir o trabalho de

evangelização nas paróquias, nas comunidades periféricas e nas áreas de missão,

se configurava como renovação para muitas congregações, tal percepção nem

sempre coincidiu com os projetos dos clérigos, que viam as religiosas como agentes

qualificados para substituí-los nos serviços pastorais. Entendemos, que isso

representava um retrocesso, pois, tal opção, embora justificada pelos apelos

conciliares, na maioria das vezes ocorria em função de suplência, dado que, diante

do insuficiente número de padres para o trabalho pastoral, muitos bispos e padres

recorreram a essas organizações para que elas colaborassem na evangelização.

Dependentes da estrutura eclesiástica, muitas congregações femininas, inclusive

fora fundado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1961, para o projeto de erradicação do analfabetismo adulto, segundo o projeto pedagógico do educador Paulo Freire. Logo após a criação da CNBB, Dom Helder Câmara, presidente da entidade, conseguiu que o Padre jesuíta italiano Riccardo Lombardi, que havia fundado o movimento Mundo Melhor, em 1952, visitasse e implantasse o movimento no País, em 1953. Este tinha como objetivo atualizar a Igreja brasileira na dinâmica da renovação eclesial segundo os desafios da modernidade, o que foi fundamental para a implantação do Plano de Pastoral de Conjunto e das orientações conciliares na década de 1960. Para a realização desse projeto de renovação, fundamental papel tiveram a CNBB, inúmeros bispos, religiosos e, especialmente, religiosas, o que é confirmado pelo relato da superiora geral citada aqui (FARIAS, 2005; SOUZA, 2006).

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àquelas que já haviam conquistado o direito pontifício, voltavam à condição de

subserviência ao clero. Entendemos que, em função de circunstâncias internas, na

exigência de se dar destino às religiosas alocadas em obras que precisaram ser

fechadas, ou ainda, tiveram seus contratos encerrados, muitas delas acabaram

enredadas pelos organismos eclesiais, em nome das propostas conciliares,

convocaram-nas para perfilarem-se nesse trabalho. Nem mesmo a CRB, organismo

criado para promover e defender os religiosos e as religiosas, se empenhou para

que as congregações religiosas se mantivessem em postos-chave e importantes da

sociedade que haviam conquistados ou, ainda, que assumissem novos.

Para ilustrarmos isso, citamos um fato narrado pela superiora geral da Congregação

das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, no ano de 1968, quando o arcebispo

de Campinas, Dom Antônio Maria Alves de Siqueira, convidou algumas

congregações para integrar a Comissão de Vilas Planejadas e abrir casas na

periferia da cidade de Campinas. Em tendo aceitado a proposta, foi acordado que a

nova casa seria na Vila Costa e Silva, onde suas religiosas instalariam e se

responsabilizariam pela organização de uma comunidade (RELATÓRIO 1963-

1969)137. O modelo implantado foi o das Comunidades Eclesiais de Base, ligado a

Teologia da Libertação, no qual as novas comunidades religiosas seriam

integralmente geridas pelas religiosas, as quais teriam o apoio da equipe de padres

que coordenava aquela Comissão, e se revezariam no atendimento sacramental.

Todavia, não bastando assumir os serviços religiosos específicos do clero, coube à

organização arcar com a compra do imóvel. Fica claro no relato da superiora geral

que, apesar de ocuparem uma importante e nova frente de trabalho, que produziu

muitos bens simbólicos, as religiosas assumiram funções subalternas e substitutivas

ao clero, fato que passava a ser cada vez mais recorrente. Na década de 1980, com

o aumento de padres, aquele projeto foi progressivamente desmontado, e àquelas

CEBs foram paulatinamente dando lugar às novas paróquias. Em razão disso,

algumas dessas comunidades de freiras foram fechadas, pelo desinteresse em

assumir os novos trabalhos, ou, ainda, porque muitos clérigos acabaram rompendo

137 A Comissão de Vilas Planejadas foi criada pelo arcebispo de Campinas para gerir o atendimento religioso de várias vilas planejadas construídas pela Companhia de Habitação, durante o governo militar, para as quais não dispunha de padres para o atendimento. Para tanto, o arcebispo convocou as superioras gerais das Congregações que possuíam casas em Campinas e propôs que cada uma delas assumisse uma daquelas Vilas, que implantasse nelas a estrutura das CEBs e se responsabilizassem pelo trabalho pastoral.

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contrato com as congregaçoes, o que as obrigou a fecharam àquelas casas e

transferir as religiosas para outros trabalhos.

2. O franciscanismo como facilitador das necessárias rupturas

Apesar de nunca ter perdido o vínculo com os frades franciscanos, a Congregação

das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, em função de ter se convertido em

organização regida pelo direito diocesano, acabou seguindo mais as orientações dos

sucessivos bispos que as dos frades, os quais foram relegados ao papel de diretores

de consciência das religiosas (PEDROSO, 1996). Foram os bispos, dom Nery e

especialmente dom Barreto, que impulsionaram a organização a assumir

caraterísticas racionalizadas e pragmáticas, nas áreas da educação e saúde. Tais

práticas propiciaram o crescimento e o consequente alcance do direito pontifício, em

1956. Pelo fato da romanização ter sido um movimento internacional, também os

frades imigrantes, em sua maioria clérigos, assumiram, de forma naturalizada,

aquele projeto e se puseram a serviço dos bispos, pois esse era o meio de

concretizar a proposta da Ordem138. Dessa forma, apesar das dificuldades criadas

pelos sucessivos bispos de Campinas, a Ordem dos Frades Capuchinhos buscou

construir uma política de proximidade com eles, lhes permitindo se constituir como

peça-chave no processo de sua agregação à Primeira e à Segunda Ordens

Franciscanas em 1921 e, depois, a partir de 1940, no processo de reconhecimento

pontifício. (PEDROSO, 1996).

Jacques Le Goff, em sua obra Francisco, demonstrou que o movimento franciscano,

antes mesmo do falecimento do seu fundador, já havia se distanciado do projeto

inicial. Não obstante, a morte de Francisco de Assis marcou a ruptura entre criador e

criatura, a qual se emancipava e tomava novas dimensões. O autor identificou uma

tensão entre a identidade indicada na protorregra, dada pelo santo em 1221, e

aquela construída pelos seus confrades com o apoio do cardeal Ugolino, que foi

ratificada pelo papa Honório na Regra Bulada de 1223, essencialmente

138 Ilustra tal fato o testemunho de Frei Salvador Cavedine, diretor espiritual, que enviou ao seu superior geral, em Roma, no ano de 1920, uma carta na qual descreve a história da organização, destacando o papel dos frades no processo de conventualização da Congregação (PEDROSO,1996). Vide cap II.

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eclesiástica139. Assim sendo, as chamadas fontes franciscanas se sobrepuseram

aos poucos traços que Francisco teria deixado e serviram de base para a construção

de outras interpretações sobre os supostos ensinamentos franciscanos. Dentre elas,

predominou uma religiosidade idílica e extremamente plástica, que amoldava

Francisco aos diversos modelos eclesiais, o que servia, inclusive, para autorizar

posturas criticadas pelo próprio santo, as quais se consideravam a mais genuína

tradição franciscana140. Na perspectiva de Certeau, podemos inferir que, a cada

nova interpretação do franciscanismo, ainda que totalmente desterritorializada e

atemporalizada, uma nova representação de Francisco era construída com o

objetivo de legitimar novas fundações. Assim, qualquer pequena e ignota

congregação do século XX que se afirmasse franciscana passava a ter

reconhecimento social e eclesial, tal qual as mais antigas organizações

franciscanas, fazendo delas herdeiras da tradição franciscana, confirmando a tese

da “tradição inventada” de Hobsbawn.

Com a orientação do Decreto Perfectæ Caritatis, de retomada do idealismo

fundacional, houve a ressignificação da essência franciscana na maioria das

organizações que assumiram aquela espiritualidade. Na América Latina, foi fundado,

no Chile, em 1965, o Centro de Estudos Franciscanos e Pastorais para a América

139 O autor destaca: “... a maior parte das citações do Evangelho da Regra de 1221 foi suprimida, como foram suprimidas as passagens líricas, em favor das jurídicas. (...). Francisco, a morte na alma, aceitou essa regra deformada” (LE GOFF, 2001, p.86). 140 Não por acaso, há uma querela em torno do termo / adjetivo “menor”, presente no título de sua ordem. Jacques Le Goff, ao discutir a historiografia franciscana, lembra que a interpretação recorrente de “menor”, interpretado como [aquele(a) que se faz] “submisso a todos”, é de Tomas de Celano, o qual escreveu a obra Prima vita, por solicitação do Papa Gregório XI, por ocasião da canonização de Francisco, dois anos depois de sua morte e, portanto, marcada pela ótica eclesiástica, daí a importância dada a submissa obediência. No entanto, o medievalista francês destaca que, para Francisco, os frades deviam ser “menores para serem próximos dos descategorizados: as pessoas vis e desprezadas, os pobres e fracos, os doentes, os leprosos” (LE GOFF, 1999, p. 142). Em 2006, o Capítulo Geral Extraordinário da Ordem dos Frades Menores, reunido em Assis, assim resgatou a interpretação da minoridade franciscana:

O adjetivo “menor”, que Francisco tira do Evangelho (...), é um adjetivo de relação: somos menores em relação a alguém. (...) O modelo da minoridade é Cristo, que “não se apegou à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo”. (...). Nossa tradição é firme e abundante em proteger a dignidade do outro a partir de uma minoridade pessoalmente assumida, como caminho de salvação comunitária. O relacionamento fraterno caracteriza não só as relações entre os frades, mas, de forma mais ampla, também as relações com cada criatura humana. (Documento do Capítulo Geral Extraordinário, 2006, 28, 29 e 30)

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Latina (CEFEPAL), e, no ano seguinte, a sua sucursal, o CEFEPAL-Brasil, com

vistas a promover formação e divulgação do franciscanismo141. Pudemos perceber,

nos Relatórios de vários governos, a indicação de que a Congregação passou a

enviar religiosas para os diversos cursos em Belo Horizonte, e, no ano seguinte,

passou a contar com a presença de religiosos franciscanos, especialmente

capuchinhos, para franciscanizá-la (RELATÓRIOS, 1963-1969; 1973-1979). Todos

estes fatos autorizavam releituras e modos de compreender a vida religiosa, a Igreja

e o mundo.

Tal processo foi aos poucos desvelando que a Congregação pouco tinha de

franciscana, com exceção do nome. No Relatório do governo que se findava no ano

de 1985, a superiora geral, Irmã Inês Magali Rossi, ao relatar à assessoria do diretor

do CEFEPAL-Brasil, em mais um estudo da “espiritualidade franciscana”, declarava

que ele contribuía para “captar a indefinição do carisma fundacional”, o que,

segundo ela, persistia na década de 1980 (RELATÓRIO 1979-1985). O que a

superiora chamou de “indefinição” era o descompasso entre interpretações, isto é, o

franciscanismo assimilado pelas religiosas ao longo de sua história pouco tinha a ver

com o movimento renovado, apresentado pelo diretor do CEFEPAL-Brasil.

De outro lado, não podemos esquecer que o embate com a secularização também

contribuía para isso, pois, aquele estudo demonstrava a coexistência, entre as

religiosas, de diferentes formas de conceber-se como franciscanas, resultado da

crescente valorização das subjetividades. Pelo fato daquele movimento ter

autorizado múltiplas leituras fundacionais, onde a compreensão eclesiástica se

apresentava como mais uma delas, a orientação dada pelo CEFEPAL, naquele

momento, foi levada em consideração porque politicamente isso interessava ao

governo da organização.

O que ocorria, então, além da disputa pela “verdadeira” franciscanização, ou pela

“verdadeira vida religiosa”, se configurava também como uma disputa de poder e de

definição dos rumos da organização. Isso é constatado no discurso que a superiora

141 O CEFEPAL se caracterizou pelo retorno às fontes franciscanas, publicando-as e provendo cursos de atualização teológica e franciscana. Apesar de terminação “AL”, referente à organização continental, no Brasil manteve-se o nome com o acréscimo “-Brasil”, o qual existiu até 1994, quando o organismo passou a ser denominado “Família Franciscana do Brasil” e, em 2015, “Conferência da Família Franciscana do Brasil”. Informações do site http://ffb.org.br/quem-somos. Acesso em: 24 fev. 2018.

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geral fez sobre a obediência, em um dos momentos mais complexos e tensos da

vida da Congregação, no pós Vaticano II:

... conscientes de nossos compromissos, reflitamos, (...), e vejamos (...) como temos vivido os elementos básicos do franciscanismo: vida fraterna minorítica, de oração, trabalho e apostolado, que se nutrem na contemplação. Sabemos como, os que têm senso de maturidade, procuram tomar consciência das responsabilidades assumidas. (RELATÓRIO 1969-1973, p. 63, grifo nosso)

Apelando aos elementos próprios do movimento franciscano, a superiora incluía em

seu discurso determinações morais e disciplinares, como se tudo fizesse parte da

espiritualidade citada. Ao recorrer ao franciscanismo, seu discurso era marcado não

pelo resgate humanista, capaz de compreender as diferenças entre as religiosas e a

influência da modernidade na vida de cada pessoa, mas pelo reforço da autoridade,

da centralização e da hierarquia, fundamentado na romanização, o que justificava as

opções por aquele determinado modo de conduzir a organização, pautado na

disciplina eclesiástica, que elegia Francisco como modelo de obediência

eclesiástica142. Francisco de Assis não era resgatado, mas inventado segundo as

hodiernas necessidades do governo geral.

Por outro lado, não foram apenas os cursos de renovação da vida religiosa,

promovidos pelo CEFEPAL, pela CRB e pela própria Congregação, que provocaram

novas leituras. Estes representam a menor parcela. O que desencadeou novas

leituras sobre o mundo, sobre a vida religiosa e, consequentemente, sobre o lugar

de cada pessoa na organização foram a movimentação das religiosas nas diferentes

casas; o contato com outras áreas de missão, especialmente a realidade das CEBs;

o crescente contato com o mundo secularizado, que relativizava as verdade

religiosas; o movimento feminista, que questionava a mentalidade patriarcal

presente na sociedade. Essa realidade, que não fora privilégio apenas da

Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, instaurava progressivas

cisões que exigiram a ressignificação da organização. Não obstante a esses

esforços, mas também, a momentos de intensa resistência do governo geral, a

Congregação assistiu a deserção de significativo número de religiosas.

142 No Relatório citado anteriormente, a superiora geral expressava sua indignação contra três irmãs que teriam se negado a cumprir suas ordens relativas às transferências.

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3. A intervenção pontifícia como resposta a resistência às mudanças

No final da década de 1960, dois grupos disputavam o poder: o que sustentava o

governo geral, liderado por Irmã Maria Julia da Eucaristia, o qual, por assumir as

propostas conciliares e por desejar continuar o projeto de renovação da

organização, articulava sua reeleição, e o grupo que tentava, a todo custo, fazer

voltar ao governo da Congregação a Irmã Angelina Maria da Sagrada Face, que

completava naquele ano o interstício de seis anos, o que lhe autorizava reassumir o

governo, caso eleita143. Em janeiro de 1969, pela primeira vez na história da

Congregação, não foi concedida a reeleição ao governo vigente e a candidata Irmã

Angelina Maria foi eleita como a nova superiora, em clara manifestação de força de

um grupo de religiosas que desaprovavam às mudanças promovidas naquele

mandato que se findava. Em nossa análise, isso não afirmava que o governo de

Irmã Maria Julia tenha sido rejeitado porque fora revolucionário, pois, sua eleição em

1963, só fora possível porque grupo dominante consentiu, não vendo nela uma

ameaça. Irmã Maria Julia, talvez, até por que nunca governara, não possuía a

racionalidade própria daquela que estivera 18 anos à frente da organização. Mais

que isso, foram as circunstâncias vivenciadas diante da secularização, e o

consequente clima que antecedeu o Vaticano II, que impuseram o acontecimento

das mudanças. A desaprovação àquele governo começou quando a superiora geral

promoveu uma ampla consulta com as religiosas para que indicassem a melhor

forma de aplicar as decisões conciliares, que se converteriam em um plano de ação

para os próximos governos. Segundo informações contidas no relatório, essa

consulta desencadeou duas medidas: divulgar e incutir nas religiosas as mudanças

ocorridas na Igreja e oferecer condições para que as superioras locais participassem

de cursos, e, assim, elas mesmas se transformassem em multiplicadoras

(RELATÓRIO 1963-1969).

Este processo foi altamente fecundo, pois, ao final do seu mandato, aquele governo

apresentava um projeto de reforma que se constituía, também, em um programa de

143 Segundo a tradição indicada na Constituição da Congregação, a reeleição era permitida uma única vez. Em 1956, tendo cumprido o seu segundo mandato, Irmã Angelina Maria da Sagrada Face, apoiada pelo bispo de Campinas, conseguiu que a Santa Sé lhe autorizasse um novo e extraordinário governo. Em razão disso, ela governou a organização por 18 anos ininterruptos. Em 1963, foi obrigada a deixar aquela função...

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governo para o próximo mandato144. Para além dos assuntos costumeiros da

assembleia capitular, como, a eleição do novo governo geral, as reflexões em torno

das atividades nas obras educacionais e hospitalares da Congregação, decidiu-se,

também, que o seu objetivo seria discutir a Renovação da organização, à luz do

Vaticano II, disposta em cinco temas (RELATÓRIO 1963-1969, p. 37):

a) retornar às fontes do franciscanismo; b) voltar à inspiração primigênia dos fundadores; c) ajustar a Congregação às necessidades da Igreja de hoje; d) adaptar a Congregação às novas condições dos tempos; e) reorganizar a vida fraterna.

A considerar pelo conteúdo das propostas apresentadas, e pela sua rejeição

manifesta na eleição, vemos a tensão vivenciada por um governo legítimo, que

sofria sistemática oposição do grupo que, de fato, governava a Congregação desde

1945 e fora surpreendido pelas mudanças ocorridas naquele governo, eleito para ser

transitório até que Irmã Angelina Maria pudesse retomar o poder. Embora não

tivéramos condições de avaliar todas as razões que levaram a organização a retirar

o apoio ao governo que aspirava ser eleito, fica evidente ter se tratado de uma

manifesta disputa de poder entre o tradicional grupo que a conduzira até 1963,

segundo a romanização, e o grupo aberto às propostas conciliares, que sustentava

Irmã Maria Júlia.

O fato é que, legitimamente eleita, Irmã Angelina Maria assumiu o governo em 1969,

que se estenderia até 1975. Todavia, por adotar medidas anacrônicas e, portanto,

contrárias às irreversíveis mudanças em curso, foi interrompido em 1973, em função

de uma intervenção pontifícia que, após fazer inúmeras consultas e averiguações

junto às religiosas, impôs a eleição de uma nova superiora geral. Nas

comemorações do centenário, assim a secretaria geral, Irmã Terezinha Catarina

Andreola, recordou aquele episódio:

As capitulares se encontravam em uma conferência com o Pe. Marcelo de Azevedo, S.J., quando a superiora geral Madre Angelina Maria da Sagrada Face, recebeu da Nunciatura Apostólica um documento vindo do Vaticano suspendendo o Capítulo, pois haveria na Congregação uma Visita Apostólica para a qual foi nomeado S. Exma. Dom Agostinho José Sartori,

144 No final de 1968 deu-se início aos trabalhos preparatórios do próximo capítulo, que seria realizado em janeiro de 1969, com a convocação de Encontro preparatório de todas as capitulares, de 30 de outubro a 2 de novembro do mesmo ano. Nesse encontro, o governo e as capitulares decidiram o programa da assembleia capitular e criaram grupos para preparar os subsídios necessários para aquele evento.

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bispo de Palmas, exprovincial dos frades Menores Capuchinhos do Paraná (Revista do Centenário 2000, p. 41-43)145.

As informações que nos levaram a compreender aquela intervenção são dadas, em

detalhes, pela própria Irmã Angelina, no Relatório apresentado no final de seu

governo, que se concluía dois anos antes do previsto146. Interpretamos que o

governo geral eleito para aquele sexênio expressava a força política do grupo

majoritário, que controlava a Congregação, o qual conseguiu interromper as

mudanças sugeridas pelo governo anterior, mas a interdição sofrida deixa claro que

tal controle não era hegemônico. Subjaziam as sementes plantadas pelo governo

anterior, mas principalmente a própria situação pela qual passava a sociedade, que

questionava as religiosas. Para compreender o ocorrido, elencamos cinco

informações presentes naquele Relatório:

1) Em março de 1972, a Santa Sé nomeou o bispo capuchinho, Dom Agostinho

Sartori, como interventor e visitador para averiguar as denúncias que, de

alguma forma, chegaram até a Nunciatura. As razões para essa intervenção

não são claras, mas tudo indica que tal fato tenha ocorrido em razão da forma

como Irmã Angelina Maria conduzia o governo geral. A interrupção do governo

anterior, que introduzira mudanças de acordo com as orientações do Vaticano

II, da CNBB e da CRB, e, especialmente, da franciscanização, indica a

existência de uma velada, porém forte, resistência a tudo o que pudesse

introduzir mudanças de planos e projetos.

145 Também aqui indicamos que os documentos que poderiam elucidar o caso são a Ata da Assembleia Capitular, de janeiro de 1969 e o Livro Tombo, referente àquele período, ambos custodiados no Arquivo Geral, e os documentos enviados pelo bispo Dom Agostinho à Santa Sé, que seguramente estão no Arquivo da Congregação dos Religiosos, em Roma. Tendo solicitado autorização para acessar os dois primeiros, ambos nos foram negados pela Superiora Geral, por conter informações sobre pessoas que ainda vivem. Quanto aos documentos enviados a Roma, e que estão na Congregação dos Religiosos, buscamos construir meios de acessá-los, mas uma das exigências daquele organismo vaticano era a necessidade de uma carta da superiora geral, autorizando a pesquisa e apresentando o pesquisador; porém, mais uma vez tivemos nosso pedido negado. Nunciatura é a representação da Santa Sé presente na maioria dos países, com dois objetivos: Do ponto de vista político é a embaixada da Santa Sé nos países que mantêm relação com o Estado do Vaticano. Do ponto de vista religioso é como uma sucursal que intermedeia a relação dos organismos religiosos com as várias secretarias romanas, chamadas também discastérios, e com o papa. Age em nome do papado e sua direção é exercida pelo núncio apostólico. 146 Comparamos este fato com a interferência havida no governo de Irmã Cecília, na segunda década daquele século. As duas superioras gerais sofreram sanções eclesiásticas em seus governos e ambas acataram fielmente as determinações impostas.

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2) Devemos considerar que as determinações conciliares geraram uma crise de

identidade nas religiosas, especialmente naquelas formadas no espírito da

romanização, que o concebiam como único possível. A identidade da maioria

delas fora forjada por uma concepção da cristandade, a de uma Igreja acima

do Estado147, e especialmente as religiosas que exerceram o cargo de

superioras e, até então, tiveram como modelo as antigas superioras, as quais

se julgavam detentoras de pleno poder e autonomia, quando, na verdade,

eram submissas ao bispo de Campinas148. Essa foi a lógica adotada por

aquelas que, desejando realinhar a Igreja ao modelo romanizador,

orquestraram a retomada do poder por Irmã Angelina Maria, depois da

abertura proposta pelo governo de 1963-1969. A rigidez da romanização as

impediu perceberem que a mudança proposta pelo Concílio Vaticano II não

era uma revolução, mas tão somente uma reforma, segundo o mote tridentino

da ecclesia sempre reformanda.

3) Em março de 1973, o bispo visitador enviou uma carta à superiora

determinando encaminhamentos necessários para a convocação do capítulo

que elegeria sua sucessora. Nesta, o bispo admoestava, de forma dura e até

desrespeitosa, as religiosas, indicando os caminhos para retomarem a vida da

organização:

Estou profundamente convicto de que a hora presente é uma hora de graça para Congregação, desde que as Irmãs não queiram se tornar cegas, surdas e mudas diante das contínuas e insistentes manifestações de predileção que Deus tem tido para com a Congregação...

... Chegou, então, o momento, a hora, em que cumpre esquecer os ressentimentos, as agruras, os egoísmos, os interesses pessoais, para nos voltarmos inteiramente ao Cristo, (...), e que nos desafia a lhe recompormos o Sagrado corpo, despedaçado por tantas crises que tem açoitado nos últimos tempos a Santa Igreja, (...), . Mais do que nunca, a responsabilidade da Congregação repousa sobre os ombros de cada uma (...). Esta deve ser uma hora de humildade, de ideias claras, de decisão, de fidelidade

147 Por ocasião daquela interdição, a Congregação, com 70 anos de existência, contava com 250 religiosas, sendo que mais da metade dessas tinha mais de 50 anos e pelo menos um quinto delas havia nascido no século XIX. 148 Exemplo disso foi a trajetória de vida da superiora geral, irmã Angelina, que governara a Congregação de 1945 a 1963. Nascida em 1899, ela ingressou na organização em 1919, foi eleita superiora geral, incorporando em seu governo as práticas herdadas das ex-superioras e, muito provavelmente, não concebia o exercício de sua função de superiora geral sem a direção episcopal. Com a concessão do direito pontifício, em 1956, ela se tornou, de fato, a primeira superiora religiosa com plenos poderes. Apesar disso, é compreensível que ela tenha mantido a mesma forma de exercer o governo de quando assumira em 1945, isto é, sendo centralizadora, autoritária e vertical.

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incondicional, de despojamento total e de total entrega ao ideal de vida que se abraçou... (RELATÓRIO 1969-1973, p. 68)

Ao responsabilizar as religiosas pelos problemas da Congregação, o bispo

preferiu desconsiderar, como o próprio Concílio indicava, que as mudanças

desencadeadas pela secularização e pelos problemas políticos e econômicos

atingiam a instituição e repercutiam em suas organizações. Além disso, ele

isentava a Igreja e seus prepostos no processo histórico que a enrijecera.

4) Aumento do número de religiosas com poder de voto no Capítulo, a instância

máxima de poder na eleição da nova superiora geral. No referido Relatório, a

superiora registrou que a Santa Sé determinara mudanças no número de

eleitoras, devendo passar de 27 para 50, potencializando a participação,

ainda que indireta, das religiosas que estavam na base (RELATÓRIO, 1969-

1973). Interessante destacar, no pós-Vaticano II, que o aumento de

representantes das religiosas passava a ser visto como meio para prevenir

problemas de disputas internas de poder. O interventor lembrava que o

número de capitulares eleitoras precisava ser proporcional ao número de

religiosas, indicando que a manutenção do número reduzido de eleitoras se

constituíra como estratégia do grupo dominante que controlava a

Congregação.

5) Verificamos, ainda no mesmo relatório (Relatório, 1969-1973), uma narrativa

que demonstrava o empenho das defensoras de Irmã Maria Angelina em

apresentar ao bispo interventor e visitador outra representação da superiora

investigada. Trata-se da comunicação de que ela, fora agraciada com o título

honorário de cidadã campineira, fazendo dela a primeira religiosa a receber

aquele título na cidade de Campinas. Como, normalmente, este título é

concedido às pessoas que tenham prestado relevantes serviços à cidade,

concluímos que se desejou afirmar que a sociedade campineira reconhecia-a

como acumuladora daquele capital social, o qual era apenas dela, mas da

organização da qual fazia parte149.

149 Segundo o autor do projeto de concessão do título de cidadã campineira à Irmã Angelina Maria, o vereador Luis Rafael Lot, justificava-se o título pelos “relevantes serviços prestados durante anos no setor filantrópico e de assistência social ...” (RELATÓRIO 1969-1973).

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A partir dessas informações, entendemos que a principal razão da intervenção da

Santa Sé se deu em função da resistência do grupo, que sustentava o governo

geral, e da própria superiora em alterar o rígido projeto romanizador, o que incluía

rejeitar a recuperação da identidade congregacional segundo a primitiva

configuração do movimento do século XIX. Tal qual destacamos no capítulo I,

entendemos que o movimento congregacional do século XIX foi assumido e

institucionalizado pela Igreja, não porque ela o reconhecesse como modelo, mas

porque ele, com suas práticas sociais, até então negadas, relançava o catolicismo.

Por mais paradoxal que possa parecer, o interventor recorria à necessidade da

colegialidade, da unidade e da responsabilidade, que se constituem nas principais

referências presentes no movimento congregacional, amplamente assumidas pelo

Vaticano II150.

Tais fatos não podem ser vistos como contradição da Igreja, mas como a percepção

da necessidade de mudanças para continuar presente na sociedade. A intervenção

pontifícia revelava que, a rigidez e a fidelidade à romanização de Irmã Angelina

Maria e de seu grupo, eram, naquele momento, consideradas anacrônicas.

Obedecer à Igreja, naquela circunstância, consistia, então, em acatar as decisões do

Vaticano II, pois, naquele momento, um governo centralizador, rígido e autoritário

pouco contribuía para a construção de uma Igreja renovada151.

Essas determinações foram acolhidas pelo conjunto das religiosas e pela superiora

geral, a Irmã Anna de Mattos Castilho, que assumiu o governo na extraordinária

assembleia presidida pelo interventor em 1973. No seu Relatório, inexistem

referências sobre o ocorrido, dando a impressão de que aquilo não passara de um

incidente, sendo fielmente seguido pelas outras superioras gerais, que silenciaram

sobre a tumultuada intervenção. Tal constatação pode ser verificada nas

homenagens feitas às superioras gerais na Revista do Centenário da Congregação.

Ao apresentar um breve histórico do governo da superiora geral, Irmã Anna de

150 Não há como não associar tais referências aos princípios modernos de sociedade, de liberdade e de democracia, tão caros aos liberais e veementemente condenados pelo ultramontanismo e pelo processo de romanização (NEGRI, 1994). 151 O estudo da história da Igreja revela que o apego demasiado à ortodoxia é contrário à política eclesiástica que busca, as vezes a todo custo, manter-se presente na sociedade. Inúmeros grupos e pessoas foram proscritos por se negarem a acatar as mudanças eclesiais, mesmo quando defendiam proposições, até então, consideradas validas. Aqui desconsideramos as justificativas teológicas para tais mudanças, por não ser este o escopo da tese.

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Mattos Castilho, que assumira depois da intervenção, há um sepulcral silêncio sobre

as circunstâncias e as condições em que ela foi eleita. Da mesma forma, a Revista e

os Relatórios das superioras gerais silenciaram sobre o destino de Irmã Angelina152.

Nem mesmo a sua morte, ocorrida em 15 de dezembro de 1988, mereceu uma

simples menção no Relatório da superiora geral do período 1985-1991. Seu nome

aparece apenas citado no necrológio apresentado na Revista do Centenário (2000)

que homenageou, de forma genérica, as religiosas falecidas. Entendemos que tais

narrações assumem as características próprias dos textos eclesiásticos, ocultando

mais do que revelando. O objetivo da Revista foi construir a imagem de uma

organização harmônica, sem tensões ou contradições, onde tudo era visto como

linearidade. Apresentam organizações uníssonas, superiores e acima dos conflitos

mundanos e das pessoas que contribuíram em sua constituição. As pessoas

passam, as instituições e suas organizações permanecem.

Por fim, apesar de não termos optado pela história oral, pudemos constatar, nos

vários contatos informais que tivemos com algumas religiosas, durante a coleta de

dados para pesquisa documental, que, a maioria delas ignora o ocorrido e que

aquelas que o vivenciaram parecem minimizá-lo. O motivo talvez resida no cuidado

em não macular a imagem da Irmã Angelina Maria, considerada a mais famosa e

importante religiosa depois de Irmã Cecília.

4. As releituras sobre a Congregação

De acordo com o que expusemos no primeiro capítulo, quando abordamos o

processo de institucionalização das congregações, indicamos haver uma série de

ajustes eclesiásticos para que os grupos oficiosos pudessem ser reconvertidos. O

mais significativo deles se dá na figura do responsável eclesiástico pela fundação,

que, na nova configuração, era convertido em fundador, fazendo da protagonista

idealizadora e carismática um mero coadjuvante. Em consequência disso, quase

sempre a data e o lugar da fundação também sofriam mudanças.

152 Apenas no Relatório do governo que a sucedeu há duas informações: Ela tomou parte em uma das equipes de reorganização da Congregação e ajudou na montagem do quarto museu em homenagem a Irmã Cecília (RELATÓRIO, 1973-1979).

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Claude Langlois (1984) denominou tal fato de fondation réitérée, o que, em uma

tradução livre, se aproximaria de “fundação refeita” ou “refundação”. Segundo este

autor, a discussão entre o “discurso sobre a fundação” e a “fundação” é fundamental

para se compreender a história do movimento congregacional, pois o primeiro, ao se

apresentar como a “fundação”, se sobrepõe ao segundo com o claro objetivo de

apresentar uma leitura uniforme e com certa plasticidade, justificando as mudanças

ocorridas durante o processo de institucionalização. Isso impôs que se apresentasse

um modelo de discurso legitimador das históricas opções sobre a fundação, o qual

passaria a ser apresentado como único. Se, de um lado, tal discurso perenizava

aquela que foi institucionalizada, de outro lado, negava, apagava, o que se

constituíra como motivação primitiva, aquilo que lhe imprimiu identidade e justificou a

sua fundação como algo novo e singular.

Ao analisar os documentos produzidos pela Congregação das Irmãs Franciscanas

do Coração de Maria até 1940, notamos que a romanização fez do frade capuchinho

Luiz Maria de São Tiago o seu fundador e de Irmã Cecília, sua auxiliar naquele

projeto. Em 1940, por ocasião do jubileu de 40 anos da organização, foi publicado,

pelas irmãs e por um frade capuchinho, uma poliantéia em comemoração ao

aniversario da organização, denominado pela superiora geral, em seu relatório, de

“pequeno ensaio histórico da Congregação” (AS IRMÃS FRANCISCANAS DO

CORAÇÃO DE MARIA 1900-1940; RELATÓRIO 1942-1945)153. Esta publicação

apresenta a história da organização, com vários textos breves e ufanistas,

construídos segundo a estrutura narrativa eclesiástica vigente. As apresentações do

fundador e de sua cooperadora contêm traços hagiográficos que fazia deles os

eleitos para atuarem em um mundo carente de Deus e santos, por se esvaziarem da

condição humana para que a Igreja aparecesse em todo o seu esplendor. Apesar de

citar os feitos dos homenageados, o texto não lhes destaca os dotes pessoais; ao

contrário, faz deles instrumentos da ação da Igreja, o grande sujeito da ação de

Deus no combate ao mal presente no mundo e a serviço dos pobres.

153 Poliantéia é uma coletânea de textos sobre uma instituição ou pessoa, geralmente escritos em prosa ou verso por múltiplos autores, com objetivos laudatários e ufanistas. Sergio Miceli, em sua tese de livre-docência A elite eclesiástica, foi um dos primeiros historiadores a eleger este material como fonte de pesquisa. O estilo ufanista e elogioso da/daquele(a) que se homenageia revela a cultura e a mentalidade da época e das pessoas que o produziram (RIGOLO FILHO, 2006).

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210

O que chama mais atenção é a construção narrativa sobre o fundador e sua auxiliar,

realizada no tempo passado. Especificamente, no caso de frei Luiz, tal leitura

espiritual e devocional era até necessária, pois falecera em 1910, na Itália. Sua

morte autorizava uma nova interpretação de sua vida; a imagem veiculada era

aquela que fora construída pelos frades capuchinhos e pelas primeiras religiosas

que com ele conviveram: alguém resignado, austero, disciplinado e devoto da

Virgem (AS IRMÃS FRANCISCANAS DO CORAÇÃO DE MARIA 1900-1940). No

caso de Irmã Cecília o discurso era mais formatado segundo a prescrição oficial,

uma vez que ela ainda vivia e viveria por mais dez anos. A narração se fixava nas

ações daquela que, como terceira franciscana, auxiliou frei Luiz na fundação e foi a

primeira superiora geral até 1912. Inexistem, naquela publicação, referências

posteriores a essa data.

Se, em 1916, a transferência para o chalé se constituiu em uma alternativa para

contemporizar a situação da ex-superiora, que, sem deixar a vida religiosa continuou

assumindo sua função materna, é muito provável que a desconsideração pelas

possíveis consequências daquela escolha tenha se revelado um problema,

principalmente em função do ingresso de novas religiosas, que não entendiam

aquela situação e questionavam o lugar que ocupava a cofundadora/fundadora na

organização. Entendemos, portanto, que a longa vida de Irmã Cecília, que faleceu

aos 98 anos, exigiu à Congregação construir uma representação dela ainda

enquanto vivia. Dar destaque aos feitos da cofundadora/fundadora e da superiora

geral, nos primeiros 12 anos, foi a saída para contornar o silêncio institucional sobre

a sua particular situação canônica, que reinava desde 1916. Seu ocultamento

indicava que sua permanência na casa mãe, em Piracicaba, era, de alguma forma,

incômoda.

Com o seu falecimento, ocorrido em 06 de setembro de 1950, 24 dias antes do

jubileu áureo, a Congregação pôde, enfim, construir uma imagem integral segundo

seus interesses. A morte da ilustre desconhecida foi publicada nos jornais da região,

de São Paulo e Rio de Janeiro, fazendo com que inúmeros bispos, padres e

políticos, em se escusando de participar das exéquias e das várias celebrações

fúnebres ocorridas, enviassem telegramas de condolências. Os festejos do Jubileu,

ocorrido logo em seguida ao seu passamento, tiveram sua programação marcada

pelo luto, sendo dado, em todos os eventos, o devido destaque à sua morte. Tal

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episódio foi registrado na segunda publicação histórica oficial, uma poliantéia sobre

o Jubileu da organização (JUBILEU ÁUREO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DO

CORAÇÃO DE MARIA 1900-1950)154.

A dinâmica de ressignificação da imagem de Irmã Cecília se inseria em um

movimento maior de releitura da organização, que parece ter se polarizado em torno

de duas correntes interpretativas: a primeira, mais institucional e promovida pelo

grupo de religiosas que integrava o governo geral, o qual, percebendo a

irreversibilidade da reconstrução da história da Organização, tomou a dianteira para

controlá-la, tentando construir uma imagem espiritualizante e ufanista da fundadora,

evocando uma religiosa atemporal e desterritorializada. A segunda corrente,

formada por religiosas mais conscientes da irreversibilidade da secularização e da

necessidade de uma renovação da Igreja, e de seus organismos, defendia uma

releitura de suas fontes originais, na qual implicaria refletir sobre a fundação e

necessariamente, sobre a participação da ex-superiora. Apesar de possuir pequena

força política, esta corrente sinalizava a existência de uma tensão interna sobre os

rumos da organização e da própria Igreja, e dos rumos da instituição que se

manifestaram no Concílio Vaticano II. No desenrolar da história, estas duas

correntes não se mostraram tão claras assim, pois uma acabou assumindo

elementos da outra, de acordo com os seus interesses. A releitura predominante,

comum nas organizações eclesiásticas, acabou pendendo para o conservadorismo,

indicando que a organização, embora parecesse reconhecer a necessidade de

mudanças, temia colocar em risco todo o patrimônio social, econômico e cultural que

acumulara.

Nesta última poliantéia há dois textos sobre a falecida religiosa. O primeiro e mais

importante, bastante semelhante ao texto de 1940, tinha como título: “Nossa

Inesquecível fundadora: Irmã Cecília do Coração de Maria”. Contendo apenas cinco

páginas, em três destas se veem dez fotografias da ex-fundadora ao lado de

crianças, noviças e religiosas155. O texto indica que tais fotos foram produzidas no

154 A publicação da polianteia, um ano depois do evento, não só se constituía apenas em necessidade de dar notícias sobre as comemorações jubilares, mas era também uma forma de prolongar aquele evento e construir, inclusive, documentalmente, a visibilidade da organização. 155 Considerando que a raridade de fotos antigas se dava também em função do elevado custo, chama a atenção o número de fotografias da fundadora – pois não encontramos mais que a foto oficial de cada superiora geral –, o que demonstra a estável situação econômica da organização e o

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dia 02 de fevereiro de 1948, no Jubileu de ouro do Asilo Maria Nossa Mãe, seis

meses depois que ela foi reintegrada na Congregação e dois anos e meio antes de

seu falecimento, quando já estava idosa e debilitada. (JUBILEU ÁUREO DAS

IRMÃS FRANCISCANAS DO CORAÇÃO DE MARIA 1900-1950)156. A seleção das

fotografias publicadas indica a construção de uma narrativa singular sobre a

fundadora. Não por acaso, as poses escolhidas, em cadeiras de rodas ou sentada,

com terço nas mãos, e as pessoas fotografadas ao lado dela, especialmente as

crianças e a superiora geral, revelam a representação como transformação do real.

Elas apresentavam uma religiosa profundamente espiritualizada, integrada a sua

comunidade e elo de união entre posições contrária, uma religiosa doce, amada

pelas crianças e por aquela que exercia o governo. Uma idílica visão.

O texto escrito em prosa apresentava a leitura espiritual da falecida, como religiosa

exemplar e cumpridora de seus deveres157. De forma semelhante, na poliantéia e

Revista comemorativa de 1940, os dois primeiros parágrafos citados fazem

referência ao período inicial da Congregação, até o ano de 1912, quando Irmã

Cecília deixou de ser superiora. Eles a mostram extremamente capaz e dinâmica, a

responsável pelo sucesso que a Congregação alcançara até meados da segunda

década do século XX. Os dois últimos parágrafos a retratam já romanizada e

investimento feito como forma de construir uma determinada imagem da fundadora. Na sala de visitas da casa do governo geral, em Campinas, podemos ver o conjunto de fotos das superioras gerais, as quais foram reproduzidas na Revista do Centenário da Congregação no ano 2000. 156 Não há indicativo dos motivos que levaram a Congregação a aceitar a volta de Irmã Cecília ao convento em 1947. A versão oficial afirma que ela teria pedido para voltar, o que teria sido aceito imediatamente, fato que isentaria a responsabilidade da organização, como se ela tivesse vivido os 30 anos no prédio dos fundos por vontade própria. Ao fazer o cotejamento das fontes, principalmente o Relatório daquele período e a biografia escrita por Pedroso, constatamos que em 22 de março de 1947 falecera Irmã Maria do Carmo, a religiosa escolhida para viver ao lado dela desde quando foi impedida de permanecer no convento. Idosa, doente e sem religiosa disponível para cuidar dela e de sua filha, não se viu problema em que ela fosse reintegrada à vida conventual.

157 ...Nosso Senhor pôs-lhe sobre os ombros a tarefa ingente de construir os alicerces e elevar essa obra que, de Piracicaba, irradiou-se por numerosas plagas brasileiras, uma nova congregação Franciscana de Irmãs de Caridade. (..) Suave na energia e forte na ternura, legou às suas filhas exemplos de preclaros virtudes (...) obediência submissão (...) assim como na juventude curvara-se de coração submisso à vontade paterna, (...) soube colocar-se à obediência da Autoridade eclesiástica (...) deixando o generalato, mostrou-se sempre edificante na obediência às Superioras gerais que lhe sucederam, querendo ser tratada como uma simples irmã. (...). Sua fé e confiança na Divina Providência eram inabaláveis (...) e quando já não lhe pesavam mais os encargos da vida ativa, tinha sempre nas mãos seu amado terço (...) ao saber que o S. S. Papa Pio XII consagrara o mundo ao Coração de Maria dirigiu-se a capela para rezar um rosário em ação de graças e, desde então continuou a rezar diariamente um terço especialmente por intenção do Santíssimo Padre.... (JUBILEU ÁUREO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DO CORAÇÃO DE MARIA, 1900-1950, p. 61)

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cumpridora de seu principal papel como religiosa: rezar pelo mundo. Tal como uma

monja enclausurada, ela se tornava partícipe da ação do Papa Pio XII, que

consagrara o mundo ao Coração de Maria. Este primeiro texto parece ter sido

produzido antes da morte de Irmã Cecília, e teria sido o único sobre ela caso ela não

tivesse falecido,

Em função do seu falecimento, um segundo texto foi inserido: “In memoriam Madre

Cecília do Coração de Maria”. Longo, escrito em forma de panegírico, apresenta

uma freira terna, preocupada com as crianças pobres, fiel zeladora de suas irmãs

religiosas e devota do Imaculado Coração de Maria – um claro modelo de religiosa

segundo a romanização. Este texto, colocado no final da Revista, interpretava o

primeiro e as fotografias. (JUBILEU ÁUREO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DO

CORAÇÃO DE MARIA, 1900-1950).

O segundo passo empreendido pelas partidárias de uma memória celebrativa

ocorreu no centenário de seu nascimento, celebrado no mês de agosto de 1952,

quando foi colocado no jardim do convento, e escola, um monumento que trazia um

medalhão de bronze de Irmã Cecília, encimado por uma imagem do Coração de

Maria (RELATÓRIO 1951-57). A escolha de um monumento em honra de Nossa

Senhora e, em um segundo nível, de um medalhão para homenagear a fundadora

expressa o investimento que a Congregação fazia, e indicava a sugestiva

associação entre aquela religiosa e a Virgem Maria, considerada modelo, por

excelência, das religiosas. Para coroar aquela representação, em 1959, foi feito o

traslado dos restos mortais da fundadora para o monumento marial. Esses dois

passos indicavam a importância de construir uma representação de sua santidade, o

que já se anunciava como necessário investimento para a organização,

especialmente com o incentivo ao culto sagrado158. Apesar disso, buscando

referências sobre estes eventos no Relatório daquele período, verificamos que toda

esta movimentação não mereceu destaque por parte da superiora geral em

exercício, indicando que, apesar de consentir, como superiora geral, que tudo aquilo

fosse feito, não concordava. Isso se evidencia naquele mesmo documento, quando

ela deu grande destaque às comemorações do centenário de nascimento de frei

Luiz de São Tiago, o que permitiria deduzir que, para ela e para outras religiosas,

158 É sabido que, na tradição da Igreja católica, objetos, pertences pessoais e, principalmente, os restos mortais são venerados como relíquias sagradas.

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que a apoiavam, esse era o fundador e que a discussão sobre a fundação era

desnecessária.

As mudanças ocorridas depois de 1970 impuseram a retomada das origens da

Congregação. O dinamismo próprio da vida da organização e a percepção de que a

secularização era um fato irreversível, impulsionaram uma nova e segunda corrente

interpretativa das origens, a qual, sem desconstruir a anterior, de forma gradativa,

buscava resgatar a proposta de reconstruir a história da organização159. O caminho

escolhido começou ser desenhado na Assembleia Capitular de 1979, a qual, além

de eleger Irmã Ignez Magali Rossi como superiora geral, decidiu dar os primeiros

passos para pedir a beatificação da fundadora. Justificando não ter condições

econômicas e por falta de pessoal, o governo eleito comunicou que protelaria os

encaminhamentos daquela decisão (RELATÓRIO, 1973-1979). Cabe lembrar que,

naquela época a Igreja católica brasileira vivia uma forte ebulição causada pela

confluência dos problemas sociais e pelas reflexões propostas pelas Conferências

Episcopais Latino-Americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979), que

incentivaram o resgate das propostas do Concílio Vaticano II e o engajamento das

religiosas nas CEBs e nas questões sociais.

Entendemos, então, que diante de tal contexto, a proposta de reconstruir a história

da Congregação era visto com cuidado e prudência, até porque ainda era viva a

lembrança da intervenção e o realinhamento imposto pela Santa Sé em 1973.

Embora as justificativas da superiora possam ser consideradas plausíveis, a

aprovação e, ao mesmo tempo, o seu protelamento devem ser vistos como uma

estratégia de, sem negar a proposta, tomar tal responsabilidade para si com o claro

objetivo de controlá-la. Coube a Assembleia Capitular de 1985, constituir a formação

da Comissão Histórica que se responsabilizaria por este trabalho. Nela, papel

fundamental tiveram a superiora geral, Irmã Armanda Franco Gomes de Camargo e

o frei Jose Carlos Pedroso, que levaram adiante as propostas da Assembleia de

1979, que por sua vez, resgatava a de 1969. Causaria estranheza ver tanta demora

em se levar adiante a proposta de encaminhar o pedido de Santidade de uma

159 O fato de esta proposta ter sido abortada pelo Capítulo de 1969, pelo grupo que estivera no poder por 18 anos, demonstrava o esgotamento de um grupo que não se renovara, e a sua incapacidade de implantar mudanças mínimas que lhe garantiriam a permanência no poder. Todavia, a traumática intervenção pontifícia de 1972, se de um lado impôs a necessária releitura, de outro cerceou o desenvolvimento da organização, o qual foi feito de forma lenta e cuidadosa que atrasou quase duas décadas sua retomada.(RELATÓRIO, 1973- 1979).

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fundadora, não fosse o tabu que envolvia o período que ficou conhecido na

Congregação como Exílio. Reconstruir a sua história implicava em se perguntar

pelas razões daquele isolamento no prédio conhecido como chalé. A principal razão

é que, dos 54 anos em que a Irmã Cecília foi religiosa, 31 foram vividos ocultamente

no chalé, o qual, não por acaso, fora demolido no governo de 1963-1969,

possibitando-nos interpretar tal fato como destruição de fontes160. Não tendo fonte,

adotamos a metodologia da história a “contrapelo”, abordada por Walter Benjamim,

quando destacou a importância dos sinais na reconstrução da história dos vencidos,

e a de Carlo Ginsburg, ao enfatizar a importância dos sinais e indícios na história

cultural (LOEWI, 2010-2011; GINSBURG, 1989).

A única informação alusiva àquela demolição aparece na narração construída por

Irmã Armanda Franco do Amaral, que em 1985 interpreta uma entrevista com a

superiora daquela época, Irmã Maria Júlia, a qual, em memória da fundadora, teria

relatado: “Era vergonhoso, ridículo para o futuro, aquele casebre tão acanhado,

onde muitos diziam ter sido a 'prisão de Mamãe Cecília’, a casa de uma Fundadora.

E como precisasse de reparos, trocar as janelas e outros consertos, optaram por

demolir.” (COMISSÃO HISTÓRICA, 1992).

Na ausência de fontes, a memória da idosa ex-superiora trazia duas representações

já interiorizadas na Congregação: a imagem da fundadora construída na década de

1950 e a inusitada imagem de Mamãe Cecília, construída entre 1916 a 1947 e

relançada na década de 1980. Por ora, basta destacar que, para Irmã Maria Júlia, as

interpretações antagônicas convergiam como releituras da mesma Irmã Cecília.

Cabe destacar também que a representação romântica do chalé, predominante na

memória coletiva, foi implodida pela memória de uma das próprias superioras gerais

da Congregação. Eis o indício de que a memória institucional, apesar de seu peso

político, não era compartilhada pela maioria das religiosas e começava ser

questionada. Ainda que tenha partido daquela ex-superiora a ordem para destruir o

160 Não há como não associar tal fato com a querela chamada “queima de arquivos”, que teria sido ordenada por Rui Barbosa. Américo Jacobina Lacombe pôs fim à acusação a Rui Barbosa de que ele, abolicionista, teria mandado queimar os arquivos da Escravidão para apagar tal fato da história. Segundo Lacombe, tal determinação tinha fins políticos e econômicos, pois seu objetivo era destruir provas que pudessem levar escravocratas a pedir indenização da República com a promulgação da lei de 1888, que pusera fim à escravidão. Entretanto, ele a considerou como “pedra de escândalo, em nossa história cultural”, por contribuir para o desaparecimento de provas históricas da escravidão (LACOMBE; SILVA; BARBOSA, 1988; MOURA, 2004).

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chalé, ela indicava também uma nova releitura da vida da fundadora. Em suas duras

palavras, ele era um “casebre acanhado” e uma “prisão para Mamãe Cecília”.

Destruí-lo seria uma forma de resguardar e promover a fundadora. A “contrapelo”, a

questão do chalé vinha à tona, e com ela vários indícios sobre a vida oculta de Irmã

Cecília.

Dentre os debatedores sobre a memória, citamos Pierre Nora, que se refere aos

espaços e aos objetos como “lugares de memória”, que cristalizam a memória e

evocam um acontecimento, um período histórico, principalmente quando as fontes

documentais são escassas ou inexistem. As memórias dizem sobre o tempo e o

olhar de quem as perenizou, revelando para o tempo posterior a sua interpretação

histórica. O contato com tais lugares ou objetos permite às pessoas, novos

intérpretes, construir representações de um tempo que não viveram e não

conheceram (NORA, 2012). Descobriram isso as religiosas que, não tendo mais o

chalé, elegeram como lugar de memória, um simulacro dele, “o quarto do convento”,

onde viveu Irmã Cecília seus últimos dias. Não se tratava apenas de uma visão

romântica e religiosa que retomava memórias afetivas, mas da construção de uma

representação que evocava um período que, para aquele grupo, não podia ser

negligenciado na história da organização. Não bastando isso, depois que a Santa Sé

aceitou o pedido de abertura de beatificação da fundadora, a Congregação pôde

eleger o espaço onde havia o prédio do chalé não só como um novo lugar de

memória, mas, para além disso, lhe dava interpretação religiosa como uma espécie

de lugar santo e passível de peregrinação, o que seria fundamental para a promoção

de sua santidade. Segundo o que apontou Certeau (2006), ao se consolidar a

interpretação de que era necessário valorizar aquele período, tal fato permitiria que

novas questões fossem colocadas e, assim, possibilitassem uma nova reconstrução

– a hagiográfica – de Irmã Cecília.

A demolição do chalé foi a segunda destruição de fontes ocorrida. A primeira refere-

se ao desaparecimento dos documentos relativos aos últimos anos de governo da

primeira superiora, sobre sua transferência e permanência no chalé. Esse vazio

documental foi identificado por Irmã Armanda Franco do Amaral, que integrou a

Comissão Histórica e catalogou as fontes escritas para compor o Dossiê enviado à

Santa Sé. (CAMARGO; COMISSÃO HISTÓRICA,1992b). Uma terceira tentativa,

parcial, de destruição de fontes ocorreu na década de 1980, quando se produziu um

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texto que, segundo a autora, seria reservado ao estudo das religiosas por ocasião

dos 80 anos da Congregação, denominado: Mamãe Cecília, um pouco de nossa

história (CAMARGO, 1992b). Segundo a organizadora desta obra, o texto original e

as fontes de pesquisa teriam sido entregues à superiora geral, que os teria

confiscado e se encarregado de selecionar o que deveria ser divulgado. Esta

informação pôde ser parcialmente verificada no Relatório da própria censora, Irmã

Ana de Mattos, que confirmou a publicação daquele livreto (RELATÓRIO 1979-

1985).

Ainda que o contexto das destruições seja diferente, as três demonstram a

existência de conflitos e disputa de controle sobre a narrativa histórica.

Especialmente a terceira é mais emblemática, pois a organização, desde 1973, fora

convencida pela Santa Sé que era preciso adequar-se às exigências conciliares, o

que implicava reinventar-se. Era o que os autores daquele livreto tentaram fazer,

mas, justamente, por essa razão, ele desapareceu.

Buscando interpretar as razões que levaram a superiora da década de 1980 a

censurar uma publicação, pusemo-nos a buscar indícios que nos permitissem

reconstruir algumas possibilidades de leitura. Uma informação encontrada na

publicação das comemorações jubilares de 1940 lança luzes para rediscutirmos a

questão da fundação. Dentre os tantos textos, um deles, intitulado “Albores”,

abordava a perspectiva tornada oficial, de que a Congregação nascera do grupo

responsável pelo Asilo. Nele, quatro fotografias, com suas respectivas legendas e

um destaque sobre elas, podem ser vistas como indícios reveladores. Nas

fotografias, identificam-se duas religiosas, cujas legendas indicam ser Irmã Cecília e

Irmã Nazária, e duas mulheres com vestes comuns, identificadas nas legendas

como Dona Luísa Josefina de Matos e Dona Maria das Dores Morato. Acima das

fotografias lê-se: “Fundadoras” (AS IRMÃS FRANCISCANAS DO CORAÇÃO DE

MARIA 1900-1940).

Ainda que o texto e as fotografias façam referência à fundação do Asilo Senhora

Nossa Mãe, aquele título não mereceu atenção da superiora, do censor eclesiástico

e nem do bispo daquele período; isto é, tais autoridades não viram perigo no fato de

que o conjunto do texto e as fotografias pudessem levar os leitores, especialmente

as religiosas, a associarem a fundação do Asilo com a fundação da organização

religiosa e assim questionarem a afirmação de uma fundação única e eclesiástica.

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Retomamos, aqui, a ideia de que a cultura romanizada reproduzia um modus vivendi

ou, no dizer de Bourdieu, um habitus, indicando a sedimentação da estrutura

clericalizada que impedia as religiosas de assumirem a leitura da fundação. Ainda

que elas vissem as fotografias de quatro mulheres, sendo duas leigas, e lessem a

descrição afirmando serem as fundadoras, não se tem notícia de que alguma

religiosa tenha pensado naquela possibilidade, pois, em sua maioria, continuavam

reproduzindo a interpretação oficial de que a fundação masculina era necessária.

Atentos às observações de Langlois sobre a fundação recriada, identificamos, na

organização piracicabana, a cristalização de um discurso sobre a fundação que

legitimava as opções feitas ou consentidas pela organização a partir de 1900. Essa

leitura passou a ser interessante para ela na medida em que, ao se apresentar como

estrutura vertical e hierárquica, participava das benesses do acordo dos bispos com

setores da elite, que requisitavam congregações para administrar escolas e

hospitais. Assumir o modelo oficial era a garantia de sucesso para fazer crescer e

expandir a organização. Pelo menos, até a década de 1960, com efeitos nas

décadas seguintes, a organização detinha postos garantidos que lhe valiam fazer

crescer seu patrimônio material e simbólico e seu efetivo. Nem mesmo a sugestão

do Decreto Perfectæ Caritatis, a franciscanização, os cursos da CRB, dentre outros,

foram capazes de produzir uma leitura da história que correspondesse à fundação

de 1896, ainda que isso nunca tenha sido negado. Isso fica patente na biografia da

fundadora, escrita por Frei Pedroso, trazendo supostas palavras da própria Madre

Cecília:

Anda na minha mente, Rosa Cândida, uma ideia que não sei se será de Deus ou tentação. Desejava arranjar uma casa onde, morando com algumas Irmãs Terceiras, pudéssemos, além de levar uma vida de oração e de trabalhos, nos dedicar ao apostolado das almas, auxiliando os nossos capuchinhos em suas árduas missões. (sic) (PEDROSO, 1996, p. 15, grifo nosso)

No mesmo livro, em outra passagem, o autor apresenta a mesma história, porém o

faz com algumas nuances espiritualizantes:

No memorável dia 6 de janeiro de 1896, achavam-se nesses entretenimentos, as Irmãs Cecília, Nazária, e juntamente d. Luizinha, quando o Senhor se digna a conceder também a elas uma epifania toda particular. Em meio à palestra, (...), vem-lhes subitamente o pensamento de auxiliarem os capuchinhos na sua obra missionária, e procurando ao mesmo tempo levar uma vida mais perfeita. Mas como? Ora, fundariam um

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Recolhimento de moças que trabalhariam em comum em tudo o que pudesse coadjuvar os frades... (PEDROSO, 1996, p. 39, grifo nosso)161

Se no primeiro excerto, citado acima, a inspiração é de Irmã Cecília, no segundo, é

tripla e, na Revista de 1940, é quádrupla. Nas três narrações está ausente a figura

de Frei Luiz. Nelas, a expressão “Irmãs” e as fotografias das duas religiosas, da

publicação ao Jubileu de 1940 são anacrônicas, pois somente em 1900 elas foram

transformadas em freiras, até então, todas eram tão somente leigas da Ordem

Terceira. Na segunda narração, aparece a palavra “Recolhimento”, o que nos

permite deduzir que essa concepção alternativa de vida religiosa pode ter sido vista

como uma possibilidade.

Na base da fundação do Asilo, e do que viria a ser a Congregação, havia três

mulheres solteiras e uma viúva, cujo ingresso como religiosa em congregações

existentes era impossível. Na formação da comunidade do Asilo, quando as leigas

passaram a viver o modo de vida das religiosas, uma delas, Maria das Dores

Morato, preferiu não integrar o grupo. Da mesma forma, em 1900, quando da

criação da Congregação, Luísa Josefina de Matos, que estivera presente na

fundação da comunidade de leigas e nela viveu até então, também optou por deixá-

la e não proferiu os votos religiosos.

Pelas informações contidas no segundo excerto, é bastante provável que o projeto

de transformar aquele grupo em uma congregação tivesse sido idealizado por frei

Bernardino de Lavalle, que aos poucos deve ter inserido pessoas que desejavam ser

religiosas, de forma que dois anos depois, o número destas era superior àquelas

que nunca pensaram em ser freiras, o que, por sua vez, comprometia o projeto

fundador e especialmente a situação de Antônia de Macedo162. Considerando que

uma das características do movimento congregacional acolhia a prática democrática

de fazer valer a vontade da maioria, não demorou muito para que o grupo fosse

incorporando práticas que as institucionalizavam. Entendemos que, a assembleia

eletiva que alterou o Estatuto primitivo do Asilo definindo que sua diretora deveria

ser escolhida dentre as habitantes da organização, contou com o peso das que

161 D. Luisinha é Luísa Josefina de Matos. 162 Segundo Pedroso (1996), Irmã Virgínia teria manifestado seu desejo de ser religiosa. Segundo o autor, essa seria uma prova de que o referido frade desejou fundar uma Congregação religiosa.

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desejavam a sua institucionalização. Este foi o primeiro passo deste grupo, que viria

a se constituir como congregação, no intuito de assumir o controle da organização e

buscar meios para isso. Tal fato fez Pedroso (1996, p. 50) afirmar: “Em 1900, já

passou tudo para as mãos das Irmãs”. No dizer de Langlois (1984), emergia um

“clero feminino” que, sob a orientação dos frades, alterou a proposta inicial para que

a organização pudesse ser concretizada. Esta foi a primeira ressignificação daquele

grupo, que, por não ter sido compartilhada por todas, desencadeou a saída de duas

fundadoras do Asilo163. O fato de essas duas mulheres terem se constituído

protetoras e financiadoras daquela instituição, indica que possuíam autonomia social

e, especialmente, financeira, condições que lhes teriam permitido abandonar o

grupo, quando perceberam que o projeto fora alterado. Independentes, elas não

precisariam submeter-se às determinações canônicas e, especialmente, às dos

clérigos, encerrando suas vidas em uma organização religiosa feminina que não se

configurava como escolhas suas, o que pode não ter sido realidade na vida das

outras mulheres, especialmente na vida de Irmã Cecília, que não tendo opção,

acabou assumindo-se oficialmente como freira.

Por fim, como bem destacou Leonardi (2010), a escolha da data e do tipo de

fundação passava por várias negociações, em função das constantes releituras da

história. Também isto pôde ser verificado na Congregação estudada. Até 1950 a

interpretação predominante afirma ter sido fundada por frei Luiz Maria de Santiago,

coadjuvado por Irmã Cecília. Todavia, havemos de considerar que, se a data oficial

de sua instituição foi 1900, a atribuição da fundação a frei Luiz Maria de Santiago é

anacrônica, pois naquele ano já havia sido transferido para Taubaté. Nesse caso, o

fundador deveria ser Frei Bernardino de Lavalle, autorizado pelo bispo de São Paulo

a receber os votos das primeiras religiosas. Entretanto, isso não foi visto como

problema, pois, para a romanização, o efeito canônico documental se constituía

como superior ao momento inspirador. Na mentalidade legalista, fundamentada

teologicamente no Concílio de Trento, este, sem aquele, resultava ilícito, isto é,

dentro de uma cultura majoritariamente católica, só existia aquilo que a Igreja

163 Em 1898, as primeiras integrantes do Asilo foram: Irmãs Cecília, Albina, Nazária, Virgínia, Alexandra e Theophila (PEDROSO, 1996). Albina foi o nome escolhido por d. Luísa de Matos, porém ela não continuou no grupo quando ele foi transformado em Congregação em 1900, e, por isso, no texto de 1940, ela aparece identificada apenas com o seu nome laico.

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chancelava ou reconhecia. Por sua vez, a personificação da ação eclesial se

materializava na pessoa do bispo diocesano, que, agindo em nome da Igreja,

concedia o status de organismo religioso àquele que lhe dirigia tal súplica.

Na perspectiva da romanização, embora não tivesse sido negada a origem espiritual

da organização, ela somente passava a ser reconhecida quando o bispo autorizasse

sua existência legal. Dito em outras palavras, era filha da Igreja. Tal fato pode ser

confirmado nos inúmeros documentos emanados pelos sucessivos bispos, nos quais

inexistem referências nominais aos fundadores. No decreto de ereção da em 1928, o

bispo Dom Barreto cita apenas que a organização fora “fundada por um reverendo

padre capuchinho” (cf cap. II). A mesma coisa fez, em 1920, o diretor de consciência

da organização feminina, frei Salvador de Cavedine, quando ao escrever ao superior

geral de sua Ordem, assim se referiu à suposta fundadora: “O meio que Deus se

serviu para fundar a Congregação foi muito humilde, uma senhora viúva, que ainda

vive na congregação, muito ativa e de boa vontade, mas de pouca instrução

religiosa e que bem pouco entendia de educação verdadeiramente claustral” (sic)

(PEDROSO, 1996, p. 75-78).

Fica claro nos textos do bispo e de frei Cavedine que, para a romanização, o

fundador ou a fundadora pouco importavam. No segundo texto, Irmã Cecília fora tão

somente “um meio”, pois, mais importante era a ação da Igreja. De outro lado, não

se pode negligenciar a existência de uma progressiva cultura católica que via como

naturalizadas as ações romanizadas expressas pelo clero. Dessa forma, também

aquelas mulheres, inclusive Antônia de Macedo, se convenceram, ou foram

convencidas, de que o grupo também se beneficiaria se aceitasse ser enquadrado

pelas leis da Igreja e se convertesse em uma organização religiosa. Evidentemente,

havemos de considerar o grande peso institucional, e, com a oficialização do direito

dos religiosos, emanado no CDC de 1917, as agremiações religiosas que não

aceitaram converter-se em congregações foram marginalizadas, como foi o caso dos

remanescentes dos recolhimentos brasileiros (ver capítulo I).

Nas análises sobre la fondation réitérée, Langlois destaca que em muitas

congregações a definição do nome da fundadora foi escolhido posteriormente à

fundação, em razão dos interesses da política eclesiástica (LANGLOIS, 1984). Isso

nos levou a considerar a importância do capital social da pessoa a quem se atribuía

a fundação. Na Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, ainda

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que por muito tempo não tenha sido dado destaque à participação de Irmã Cecília,

sua presença sempre foi marcante. Não por acaso, frei Luiz faz de Antônia de

Macedo ministra diretora da Ordem Terceira, depois, responsável pelo Asilo e,

posteriormente, frei Bernardino de Lavalle a confirma no cargo de superiora geral

por dois mandatos; igualmente, Dom Nery, assumindo a diocese de Campinas em

1908, espera até 1912 para, de acordo com as leis canônicas, criar meios para que

ela não fosse reeleita como superiora geral; da mesma forma, é significativo o fato

dele concordar com a decisão das religiosas de mantê-la dentro dos muros do

convento quando a pressionou para separar-se da filha; outrossim, as próprias

religiosas concederem espaço e voz àquela que, para todos os efeitos canônicos,

fora privada de poder religioso. Antônia de Macedo, depois Irmã Cecília, era

detentora de importante capital social que não pôde ser negligenciado pelos clérigos

nem pelas religiosas. Também eles souberam tirar proveito desse capital social em

favor de seus projetos.

5. As releituras sobre Irmã Cecília

Na Assembleia Capitular de 1985, foi aprovada a formação da Comissão Histórica,

responsável por escrever a História da Organização, e foram definidos os temas a

serem tratados: “1) Fontes históricas; 2) O que dizem de mamãe Cecília as pessoas;

3) Vida de nossas Irmãs; 4) Fioretti de nossa Congregação” (RELATÓRIO, 1985-

1991). Também nessa mesma assembleia ficou autorizado que fossem dados os

primeiros encaminhamentos para o pedido de beatificação da fundadora

(PEDROSO, 1996). Entretanto, apenas os primeiros temas foram considerados,

indicando que a recuperação histórica seria iniciada pela releitura da vida de Irmã

Cecília. A metodologia também estava posta: a hagiografia. O próprio modelo a ser

apresentado na nova imagem da fundadora fora definido: Mamãe Cecília. De 1985 a

1992, o governo da Congregação priorizou o projeto da montagem do Dossiê que

seria enviado à Santa Sé para dar provas de que ela deveria receber as honras do

altar.

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5.1. Irmã Cecília, de leiga a religiosa

Do volumoso material reunido nesses sete anos, fez parte um pequeno livro

publicado apenas em 1996, quatro anos depois da abertura do processo de

canonização: Um coração de Maria, vida de madre Cecília do Coração de Maria,

hoje considerado a biografia da fundadora (PEDROSO, 1996)164 Embora o objetivo

dessa publicação fosse divulgar a ilustre desconhecida e criar condições para que o

seu culto fosse implantado, e as primeiras provas de santidade fossem colhidas,

havia ainda o intuito de promover a própria organização. Dentro da lógica

eclesiástica, esse seria o coroamento da aprovação pontifícia, o que, por sua vez,

comprovaria que as opções da organização foram acertadas. Entendemos que, na

dinâmica própria das congregações, buscou-se construir uma mescla da história da

própria organização e da homenageada, de forma a naturalizar o processo que

conventualizou o grupo leigo fundador. Tal operação historiográfica buscou

contornar releituras que pudessem trazer problemas para a continuidade do projeto

institucional (CERTEAU, 2002).

Os aspectos que até então haviam sido negligenciados ou negados, entre 1940 e

1980: o estado laico inicial, a maternidade e o consequente período do chalé, foram

trazidos à luz sob o filtro da espiritualidade com o objetivo de fazer de fundadora

uma predestinada à vida religiosa. Nesta lógica, todas as incompreensões, as

dificuldades e as sanções impostas a ela passavam a ser vistas quase como uma

necessidade para o sucesso da Congregação e da própria santificação dela165. A

heterodoxia de sua vida foi colocada em segundo plano a fim de destacar a

164 Em sua obra sobre São Francisco de Assis, Jacques Le Goff (2001) destaca que as historiografias produzidas pelos eclesiásticos objetivaram construir um santo que muito se distancia do “verdadeiro Francisco” encontrado em seus escritos e outras fontes e sinais do seu tempo. Se aplicarmos a lógica utilizada por Le Goff às biografias dos fundadores de congregações, escritas pelas próprias organizações ou a pedido delas, veremos que elas buscam mais legitimar as escolhas feitas pelas organizações. Via de regra, todos eles são interpretados como fiéis discípulos da própria obra nascida por sua inspiração, e eles próprios teriam sérias dificuldades de ser aceitos nelas no tempo presente. Nesse processo, os papéis sociais se invertem: de criadores, eles passam a criaturas; de definidores, eles passam a cumpridores de regras institucionais. 165 Este recurso não foi usado apenas nesta organização. Segundo Aparecida Custódio, Riolando Azzi, ao escrever a história de Madre Paulina, interpretou a imposição do bispo de São Paulo para que ela se afastasse do governo geral e se mudasse para o Rio Grande do Sul como a narração bíblica do “sacrifício de Abraão”. “Era necessária uma vítima para que a congregação pudesse sobreviver. E o bispo havia pedido 'a vida' de Amabile. De modo análogo a Abraão, ele conduz sua filha espiritual à imolação. Faltou, porém uma presença angélica que no último momento impedisse a consumação do sacrifício” (CUSTÓDIO, 2014, p. 22).

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tenacidade de Irmã Cecília em se manter religiosa e mãe. Ainda que Pedroso tenha

se empenhado em considerar as condições sociopolíticas, econômicas e culturais

em que viveu aquela freira, o lugar de onde escrevia – membro da Ordem religiosa

que tutelou a nascente organização feminina, a sua ligação com aquela organização

feminina e sua concepção sobre a vida religiosa – acabou condicionando a sua

leitura da biografada. Pedroso ordenou os capítulos com a finalidade de harmonizar

e apresentar a leitura definida pela organização para que as religiosas, em especial

as ingressantes, passassem a reproduzi-la como naturalizada memória dela.

Evidentemente, tal intenção não produziria efeito mecânico nos leitores, pois, apesar

de apresentar o sentido definido pelo autor, o texto, após sua publicação, só adquire

sentido quando o leitor interpreta e questiona a ordem, a seleção das fontes, das

informações e a conclusão apresentadas pelo autor (BOURDIEU, 1986; CHARTIER,

1994).

A obra é escrita em linguagem indireta e composta em 97 páginas, divididas em 11

breves capítulos, seguidos de um quadro cronológico das 73 obras e casas abertas

até a data da publicação, e da cronologia da vida de Irmã Cecília, acrescida dos

fatos ocorridos na organização após a sua morte. Sendo leitor, também nós

apresentamos três divisões da obra de Pedroso.

Ao abordar, nos cinco primeiros capítulos, a origem de Antônia Martins de Macedo,

o contexto em que viveu, sua vida matrimonial e o falecimento de seu esposo, seu

ingresso na Ordem Terceira de São Francisco e a fundação do Asilo – onde ela foi

diretora e passou a viver com outras mulheres –, o autor traz à luz as mudanças

ocorridas na vida religiosa brasileira na passagem do século XIX para o século XX.

A ausência de ordens religiosas se convertia em terreno fértil para o

desenvolvimento de congregações religiosas estrangeiras e para o surgimento de

organizações brasileiras, segundo as determinações da romanização que pretendia

catolicizar o País166.

Sendo uma obra encomendada em plano hagiográfico, a imagem de Antônia foi

construída como uma mulher de fé religiosa, cumpridora de seu papel de filha,

esposa, mãe, obediente às convenções patriarcais e, portanto, submissa ao marido,

166 Frei Pedroso destaca a situação canônica daquelas mulheres que tinham a vivência dos costumes da vida religiosa sem o serem de fato: “Elas, porém, não eram freiras. Simplesmente moravam juntas, viviam uma vida religiosa em comum e cuidavam da mesma obra” (PEDROSO, 1996, p. 47).

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aos frades capuchinhos e, depois, aos sucessivos bispos de Campinas. Ao mesmo

tempo, apresenta-a como predestinada à vida religiosa e sugere que o fato de ela ter

contraído casamento não a teria impedido de concretizar o que concebia como

chamado religioso.

No sexto capítulo, o autor apresenta Antônia de Macedo como fundadora da

organização. Sem negar a participação de frei Luiz, ele o denomina cofundador,

invertendo a ordem estabelecida até 1950, indicando a precedência de uma leitura

feminina que condicionava a sua interpretação (PEDROSO, 1996). Nesse capítulo,

Pedroso permite vislumbrar as diferentes concepções sobre a vida religiosa,

existentes na época, expressas na visão dos dois frades. Conforme já sinalizamos,

apesar de veemente apresentação de Frei Bernardino de Lavalle como continuador

da obra de Frei Luiz Maria de Santiago, o autor dá mostras da existência de

diferentes concepções eclesiásticas entre eles, o que implicava em diferentes

compreensões sobre a vida religiosa. Ao mesmo tempo, ele tentou estabelecer

unidade onde havia divisão, de forma a ver, na fundação do Asilo, a pré-fundação da

Congregação, quando eram organizações totalmente díspares. Colocar Antônia de

Macedo como fundadora daquilo que fora institucionalizado era, no mínimo, um

anacronismo.

No capítulo sete, o autor discorre sobre a liderança da fundadora na condução da

nascente Congregação, nos 12 anos em que foi superiora geral. Apresenta o quadro

das 36 religiosas, as 4 obras/emprendimentos, abertos após o Asilo, e das 2

assembleias capitulares que a mantiveram no poder. Assumindo uma leitura pró-

Irmã Cecília, quase a protestar contra as razões que a impediram de ser mantida no

poder, ele também expôs as principais mudanças ocorridas naquele organismo em

função do enquadramento produzido pela romanização. Sem citar nomes, é possível

deduzir pela cronologia que essas mudanças estavam ligadas à criação da diocese

de Campinas. Ainda que o autor não tenha destacado, essas últimas mudanças

canônicas já sinalizavam que a organização se conventualizava e que os seus dias

à frente do governo geral estavam contados.

O implícito anúncio, realizado no final do capítulo sete, foi explicitado nos capítulos

oito e nove, o núcleo do livro. No oitavo capítulo, intitulado “Destituída”, o autor

assume a perspectiva das religiosas que construíram a imagem de Irmã Cecília

deposta pelo fato de ser brasileira e de ter mantido consigo sua filha especial.

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Embora tais fatos não possam ser negados, pois a Irmã que a substituiu era ítalo-

brasileira, a expressão “destituída” é inapropriada, pois, se assim o bispo tivesse

desejado, o teria feito em 1909, na segunda assembleia capitular. É mister destacar

que Dom Nery, extremamente legalista, mas também sabedor do capital social dela,

julgou oportuno aguardar o tempo necessário para o cumprimento da lei canônica.

Em 1912, pôde, por fim, efetivar a “destituição” de forma “branca”.

Uma das explicações para a construção dessa representação, de alguém que foi

vítima, ter sido amplamente desenvolvida no capítulo nove, foi a intenção de compor

uma representação hagiográfica da fundadora. Segundo a lógica proposta, o autor

não se ocupou em narrar fatos históricos, mas em elaborar uma representação

hiperbólica para induzir seus leitores, especialmente as futuras religiosas, de que

aquele período fora primordial para a santificação de Irmã Cecília. Os ricos e

minuciosos detalhes dos supostos sofrimentos impostos à fundadora, que parecem

ter sido testemunhados pelo autor, assemelham-se às narrativas da obra medieval

Legenda Aurea, de Jacopo de Varazze (1988). Eles revelam que, apesar dos apelos

do Decreto conciliar Perfectæ Caritatis, da franciscanização e de todo o movimento

de renovação da Igreja latino-americana, segundo as decisões das Conferências de

Medellín e Puebla, a escolha feita pela Comissão Histórica foi o modelo de

santidade romanizado, que enaltecia as injustiças, os sofrimentos daqueles que

defendiam a Igreja dos ataques do mundo moderno, especialmente os eclesiásticos

e os religiosos. Ainda que a Congregação tenha eleito seu principal escopo ligado ao

grave problema da infância desvalida, ela não viu nisso a possibilidade de promover

uma representação de Irmã Cecília, comprometida com a defesa da vida, ou ainda,

a injustiça social contra os pobres, as mulheres e os doentes, etc., tal como têm sido

enaltecidos os recentes modelos de santidades, como o caso de Madre Teresa de

Calcutá e, no Brasil, Irmã Dulce, religiosas que devotaram sua vida aos pobres167.

167 A notícia de que Irmã Dulce será canonizada em 13 outubro de 2019 demonstra que o atual papado tem tais critérios em alta conta. Cabe lembrar que Irma Dulce faleceu em 1992 e foi beatificada em 2011.

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5.2 Irmã Cecília e a urupuca da cabocla

Outra questão que comporta discussão é o modo como as religiosas viam o fato de

Irmã Cecília ter vivido no prédio dos fundos, do convento168. No texto de Pedroso há

duas interpretações sobre o Chalé: segundo ele, as Irmãs sempre denominaram

aquele prédio de chalé, o que permite interpretá-lo como um lugar bucólico,

aprazível, próprio para o descanso. Todavia, ela também destaca que naquele

prédio, Irmão Cecília sofreu muito por ter sido separada de suas irmãs, fato que foi

corroborado por Irmã Maria Júlia, que o desqualificou denominando-o de “casebre” e

“prisão”, sinalizando-o como um “não lugar”, no qual a fundadora teria sido obrigada

a passar a maior parte de sua vida. Ora, se na nova interpretação da Congregação e

do autor da biografia optou-se por lançar luzes sobre aquele espaço como um não

lugar, a romântica imagem daquele prédio, expressa no seu título deveria ter sido

descontruída. Se não o fizeram é porque julgaram que a antiga representação fazia

sentido, ao menos na lógica espiritualista, de forma que aquela circunstância fora

vista necessária para a construção de sua santidade e para o desenvolvimento e o

crescimento da organização.

Atentos aos sinais e indícios, identificamos na obra de Pedroso uma quase

desapercebida alusão a uma terceira imagem do chalé, atribuída a Irmã Cecília, a

qual teria denominado aquele prédio de “urupuca da Cabocla”169. Sem maiores

explicações, Pedroso diz apenas que tal sobrado pertencera a “uma tal ‘Nhá Eva’ e

que de lá vinha sempre muito barulho”, o que justificaria o esforço de incorporá-lo ao

patrimônio da organização com o objetivo de tornar aquela região digna de acolher

um convento. Para esse pequeno sobrado foram transferidas Irmã Cecília, sua filha

Rosa e Irmã Maria do Carmo, nomeada para ser companheira e auxiliar dela.

Ousamos interpretar a expressão “urupuca da Cabocla” como uma metáfora que

bem pode revelar a situação dela, mas também do catolicismo brasileiro na

passagem do século XIX para o XX. Especialmente a expressão “Cabocla”, por sua

vez, pode ser entendida como uma metáfora para identificar a situação da Igreja

168 A expressão “fundos” indica a relação entre o convento e o chalé. No Encarte de fotos, é possível verificar que o chalé tinha entrada independente pela atual Rua São Francisco de Assis, 75 anos de Presença, Amor e Serviço, Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, 1975, p. 34. 169 Urupuca ou arapuca é uma expressão indígena brasileira para denominar uma armadilha construída com gravetos, de forma quadrangular e em formato piramidal, para capturar pássaros e/ou pequenos animais.

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brasileira, a qual, durante todo o padroado, construiu uma identidade muito peculiar

de um catolicismo distante de Roma que, justamente por isso, foi combatido pelo

clero ultramontano imigrado, classificado por Eduardo Hoonaert (1991) como

“cristianismo moreno”. Ela também pode ser entendida como uma metáfora para

identificar a situação das oficiosas organizações religiosas de mulheres sem o

devido reconhecimento eclesial: os recolhimentos, os beatérios, as ordens terceiras,

etc. Todas elas foram “pegas na urupuca” do movimento ultramontano, e pela

romanização, e foram domesticadas e clericalizadas, transformadas em

congregações religiosas reconhecidas pela Igreja. Caboclas foram as mulheres

brasileiras que ousaram fundar, ou simplesmente integrar, agremiações religiosas

femininas em tempos de redefinições da Igreja na Europa, que, em função da

internacionalização da instituição, alcançaram o Brasil. Cabocla foi a piracicabana

Antônia de Macedo que acreditou ser possível assumir a vida religiosa e continuar

cuidando de sua filha. Na mesma lógica, vemos as expressões chalé e “urupuca”

como metáforas para expressar a Igreja, que, se de um lado, prendeu Irmã Cecília,

de outro, também a protegeu e a preservou de outras possíveis urupucas, pois, por

mais paradoxal que pareça, não pode ser negado lhe terem sido dadas condições

para que se mantivesse religiosa e cuidasse de sua filha. Nesta perspectiva, cabe

ainda recordar, como já citamos em capítulos anteriores, a existência de inúmeros

indícios de que ela não viveu isolada, como Pedroso tentou construir. Ele mesmo

sinalizou que, por várias vezes, ela teria acompanhado as superioras gerais em suas

visitas, participado de momentos festivos na organização. Era consultada

informalmente e, em vários momentos, teria agido como superiora, sendo

considerada por aquelas que lhe devotavam respeito.

5.3 Irmã Cecília, candidata a santidade

Os capítulos décimo e décimo primeiro coroam o objetivo da obra: afirmar a trajetória

de santidade vivida por Irmã Cecília. Trata-se de uma leitura teleológica do período

denominado pelo autor de Exílio, onde tentou justificá-lo tal como remédio amargo

para saúde do corpo. Dessa forma, ele indicava que o fim justificava os meios. Para

ele, os 32 anos vividos no chalé teriam sido como um longo retiro, no qual ela teria

se purificado e compreendido o que significava ser religiosa franciscana. Em busca

de justificar aquele período, ele resgatou que uma Irmã teria dito: “... o maior milagre

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realizado na vida de Mamãe Cecília é o da sua própria conversão: de brava e

geniosa, ela se tornou carinhosa e meiga” (PEDROSO, 1996). Ainda que se

compreenda o enfoque teleológico pretendido, a afirmação traz sérios problemas

para uma compreensão teológica da trajetória de uma candidatada à santidade,

pois, reduz a conversão a aspectos comportamentais e sentimentais. Os binômios

braveza e gênio forte, e, carinho e meiguice, nunca foram atributos cristãos e

tampouco expressam oposição entre si. Além do que, o primeiro não é apanágio dos

homens e o segundo, das mulheres. Tal frase, então, esconde uma questão de

gênero.

Eis que surge uma concepção unívoca sobre o feminino, sobre a vida religiosa e

sobre o franciscanismo, extremamente convergente com o perfil esperado de uma

religiosa: submissa, delicada, meiga e obediente. A firmeza das posições da

fundadora parece ter sido vista como enfretamento e rispidez, comportamentos

considerados normais para homens e inapropriados para uma religiosa, e ainda

mais para uma religiosa, os quais teriam sido burilados durante o período em que

ficou isolada no chalé. Eis a transformação do Chalé, como não lugar, em lugar

propiciador da santidade. Da mesma forma, ao invés de abordar a vida de Irmã

Cecília a partir de um modelo de religiosa moldado pela romanização, o autor

poderia ter recorrido à gênese do franciscanismo, que destacou as santas

franciscanas, especialmente, Clara de Assis, a quem a história não pôde negar a

firmeza e a tenacidade da primeira mulher a pertencer ao movimento mendicante, e

que fundou a Ordem das Clarissas e lhe compôs uma regra própria.

Por fim, à medida que aquele período denominado como Exílio passa a ser visto

como um tempo de provação, ela é promovida a formadora, doutrinadora de novas

religiosas: “... diga a essas jovens que, para ser franciscana, é preciso conhecer e

viver o mistério da cruz” (PEDROSO, 1996, p. 92). Neste enfoque, todo o trabalho

realizado entre 1898 e 1912 parece ter sido desvalorizado. Se Irmã Cecília se

santificou em vida, isso teria ocorrido durante o período do chalé.

No último capítulo, “A semente e a árvore”, o autor faz um balanço espiritual da vida

da biografada. Pelo uso das metáforas “semente” e “árvore”, ele se refere ao

patrimônio construído a partir do que interpretou como projeto religioso da

fundadora, como a semente responsável pela “árvore frondosa da Congregação das

Irmãs Franciscanas do Coração de Maria”, de onde brotam novas sementes. Coroa,

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então, a obra, a representação da fundação do organismo leigo como a semente,

que traz no seu interior a Congregação como uma única realidade espiritual.

Coerente com a lógica eclesiástica, mais calcada nos fundamentos da romanização

do que no Concílio Vaticano II, Pedroso tira o foco das realidades humanas e lança

luzes na realidade espiritual. A sinuosa trajetória do organismo leigo foi reconvertido

em congregação, se esvaziava como ela existira desde sempre.

5.4. De ex-superiora à Mamãe Cecília

Uma das questões que mais nos intrigaram, desde o início da pesquisa, foi o

destaque dado pelo biógrafo à expressão “Mamãe Cecília”, para se referir a religiosa

que fora fundadora, superiora geral e responsável pelo alicerce da organização leiga

e depois religiosa. Maior surpresa ainda foi verificar, ao longo da pesquisa, que tal

representação fora resgatada pelas religiosas depois de 1980, quando havia outras

representações a serem destacadas para aquela a quem se aspirava a declaração

de santidade. Também soa estranho o fato de que, diante de tantos atributos

alusivos à vida religiosa, a Congregação tenha optado pela representação feminina

da maternidade. Ainda que grande parte das religiosas tenha buscado evidenciar a

maternidade espiritual, modelo e mestra de suas inúmeras filhas religiosas, causa

impressão o destaque dado no Dossiê ao seu devotamento à filha. Sem negar que

ela fora religiosa, afirma-se que ela fora uma religiosa mãe. Mas por que, então, na

década de 1980, as religiosas passam a destacar a figura de Mamãe Cecília?

Foi na assembleia capitular de 1985 que as religiosas aprovaram a formação de

uma “Comissão de Estudos” que, enfim, completaria o projeto – abortado em 1969 –

de realinhar a organização com as diretivas conciliares (RELATÓRIO, 1979-1985).

Parece ficar claro o convencimento da organização acerca das propostas feitas pelo

governo encerrado em 1969, de estarem corretas e ser preciso retoma-las, a fim de

atualizar o seu carisma para retomar sua história. Todavia, os encaminhamentos

dados pela referida Comissão histórica nos pareceram extremamente restritos. Para

analisá-los, elaboramos um quadro que coteja as propostas de 1969 com as de

1985:

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Propostas apresentadas no Capítulo de 1969 Propostas apresentadas no Capítulo de 1985 Retornar às fontes do franciscanismo Fontes históricas Voltar à inspiração primigênia dos fundadores

O que dizem de mamãe Cecília as pessoas

Ajustar a Congregação às necessidades da Igreja de hoje

Adaptar a Congregação às novas condições dos tempos

Reorganizar a vida fraterna Vida de nossas Irmãs

Fioretti de nossa Congregação

Quadro com o cotejamento das propostas construído partir dos Relatórios 1963-1969 e 1985-1991

Ao comparar as duas propostas, verificamos que a segunda, de 1985, apesar de 26

anos de atraso, não adotou a perspectiva renovadora da primeira. São ausentes as

referências, tão caras ao Concílio, à atenção “às necessidades da Igreja” e “às

condições dos tempos”, expressas na segunda e na terceira propostas de 1969. Na

nova proposta, a organização se colocava fora da realidade e, consequentemente, a

percepção de sua missão no mundo resultava totalmente desvinculada dos

problemas sociais, políticos e econômicos da sociedade170. Em suma, apesar de

aderir formalmente às reformas ditadas pela Congregação dos Religiosos, afastava-

se completamente das propostas de 1969 e sinalizava por onde passaria a

construção de sua renovação, a saber, a apresentação de uma sui generis leitura da

fundadora: a Mamãe Cecília. Para a construção dessa específica representação,

além dos documentos arquivados, a Comissão Histórica, alegando o

desaparecimento de boa parte daqueles referentes a Irmã Cecília, definiu-se pela

realização de uma série de entrevistas com as pessoas que conheceram a religiosa

ou que possuíam algum vínculo com sua história. Com os relatos colhidos, foram

organizados os dois primeiros livros do Dossiê, a ser enviado a Santa Sé, contendo

os “Testemunhos sobre a Serva de Deus”, sendo o primeiro com relatos de

170 É bastante provável que esta opção tenha sido tomada em função do declínio que a Teologia da Libertação começava a sofrer desde 1984, pela ação da Congregação da Doutrina da Fé, presidida pelo, então, cardeal Ratzinger, importante preposto do papa João Paulo II. Essa mudança de orientação ditada pelo papado e reverberada por bispos e superiores de Ordens e Congregações presentes no Brasil ou brasileiras, fez com que muitos padres, religiosos e religiosas se afastassem de práticas ligadas a esta Teologia, e especialmente das CEBs. Esta definição eclesiástica acabou por exigir uma tomada de posição mais clara, deixando entrever a real opção de cada organismo religioso feminino (ROSADO-NUNES, 2006; VIGIL, 2006).

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sacerdotes e leigos, e o segundo com relatos de religiosas, ex-religiosas e ex-

candidatas da Congregação (MARCON, 1992)171.

Entendemos as memórias como interpretações próprias de um tempo e espaço, as

quais se constituem como fontes para novas interpretações e, justamente por isso,

devem ser consideradas como produtos historiográficos (CERTEAU, 2002). Nesse

sentido, as memórias construídas sobre Irmã Cecília, e reproduzidas no citado

Dossiê, apesar de serem variadas, possuem a mesma base cultural, pois a maioria

daquelas pessoas, especialmente as religiosas, viveu quase na mesma época, no

mesmo lugar e sofreu os mesmos influxos sociopolíticos e religiosos. Assim, as

inúmeras memórias coletadas sobre ela, apesar de serem pessoais, estavam

carregadas da memória institucional reproduzida no cotidiano da organização.

Vemos, portanto, que a opção por reconstruir a sua história como “Mamãe Cecília”

tinha um claro objetivo teleológico: dar como definido o fato de que a fundação da

organização foi obra de uma religiosa, portanto única. Ainda que no Dossiê haja a

defesa de uma religiosa que abriu mão da vida religiosa para cuidar de sua filha

especial, sem, no entanto, afastar-se dos compromissos que a vida religiosa lhe

impunha, o enfoque foi dado à religiosa e não à mãe. Como forma de arrematar a

representação construída naquele Dossiê, coube à biografia escrita por frei Pedroso

dar ampla publicidade àquela nova representação da fundadora. Oscilando entre a

maternidade física e a espiritual, José Pedroso constrói a imagem da mãe que se

tornou religiosa e avança na construção da maternidade espiritual, fazendo dela a

mãe de todas as religiosas172. “Ela foi batizada com o nome de Antônia, adotou

como religiosa o nome de Irmã Cecília, mas todas as Irmãs da Congregação

franciscana que fundou sempre a chamaram, e chamam até hoje, de Mamãe

Cecília” (sic) (PEDROSO, 1996, p. 13). Entendemos que o advérbio “sempre”, citado

acima é uma hipérbole que teve a intenção de construir uma imagem que não era

171 Segundo relato dessa Comissão, esta opção foi considerada válida pelo fato de o organismo pontifício responsável pelo acolhimento do pedido de beatificação valorizar os testemunhos pessoais, proferidos sob juramento, que testificam a santidade e as virtudes dos candidatos. 172 A hagiografia sobre religiosas reconhecidas como santas que exerceram a maternidade é bastante conhecida, principalmente na Idade Média. Na maioria delas há uma supervalorização da vocação religiosa sobre o casamento e da obediência da mulher dentro do modelo patriarcal, o que resulta no ofuscamento da vida anterior a seu ingresso na vida religiosa e na supervalorização daquela que, mesmo tardiamente, assumiu a vida conventual. Ainda, como ilustração de religiosas mães, citamos o texto: “Quem disse que mães não podem ser santas? 10 exemplos em seu dia”, disponível em: https://www.acidigital.com/noticias/quem-disse-que-maes-nao-podem-ser-santas-10-exemplos-em-seu-dia-65235. Acesso em: 02 mar. 2018.

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dominante na história da Congregação e, tampouco, usada desde o início da

fundação. Pedroso buscou ver na expressão ”mamãe” a tradução de “madre”, com a

qual Frei Luiz, italiano com pouca habilidade na língua portuguesa, teria se referido,

em alguns textos, à superiora e responsável pelo Asilo (PEDROSO, 1996). Embora

Pedroso tenha tentado estabelecer ligação entre as expressões, afirmando que,

para Frei Luiz, Irmã Cecília cuidava das casas e das irmãs como uma “mãe”, tal

alcunha não significava a mesma coisa que a expressão: “mamãe”, própria da

intimidade doméstica. Ainda que aquele frade tenha induzido as irmãs a chamarem

a fundadora de Mãe, é muito improvável que, a partir da institucionalização dela, os

primeiros reformadores, Frei Bernardino Lavalle e Dom Nery, tivessem permitido que

as religiosas se referissem à superiora geral utilizando aquele vocativo doméstico.

De fato, não verificamos citações alusivas a essa representação neste período173.

Nesta mesma linha de raciocínio, entendemos que Irmã Cecília passou a ser

chamada de “Mamãe Cecília” a partir do enquadramento imposto por Dom Nery, em

dezembro de 1916, no qual ela deveria optar entre a vida religiosa ou o cuidado da

filha especial. Na interpretação construída pela Congregação, a decisão salomônica,

sugerida pelas próprias irmãs, de que ela pudesse ser transferida para o prédio

contíguo ao Asilo, denominado chalé, deve ser lida como uma estratégia para que

ela cumprisse a determinação episcopal sem deixar a vida religiosa, e,

contemporaneamente, pudesse cuidar de sua filha e receber a visita dos filhos, que

estavam em São Paulo (PEDROSO, 1996).

Uma observação de Irmã Armanda Franco Gomes de Camargo, superiora geral,

responsável pela organização do Dossiê enviado a Santa Sé, ajuda a precisar o

período em que foi criada aquela expressão nominativa: “... ganhou o bonito

cognome de ‘Mamãe Cecília’. Mas teve que curti-lo na solidão do Chalé...” (sic)

(CAMARGO, 1992b, p. 140)174. A leitura da superiora se mostra reveladora, pois

indica que a expressão foi cunhada para designar distintivamente aquela que, por

determinação episcopal e com o seu consentimento, não podia mais assumir

funções religiosas. Do ponto de vista canônico, ela fora a fundadora, a superiora

173 Cabe lembrar que, no documento “Relato Histórico”, a autora destacou que boa parte dos documentos que poderiam ajudar compreender o ocorrido foram destruídos (CAMARGO, 1992b). 174 Frei Pedroso, ao incluir este trecho em seu livro, assim o traduziu: ”Ganhou o nome bonito de ‘Mamãe Cecília’, porém teve de amargá-lo numa casinha solitária, ouvindo, até o fim, os gritos da filha Rosa” (PEDROSO, 1996, p. 92).

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geral e, por último, a superiora local do Hospital de Jundiaí, ou seja, as funções que

construíram a sua identidade sociorreligiosa pertenciam ao passado. Restava-lhe

tão somente a identificação de seu estado materno. Apesar da proibição de manter

os seus filhos afastados do convívio com as outras religiosas, Irmã Cecília não

deixou de frequentar o convento e de envolver-se nos assuntos religiosos. Seu livre

acesso e trânsito, sem o ônus de uma função religiosa instituída, fez dela detentora

de relativa autoridade moral, respeitada pelas jovens candidatas, pelas religiosas e

até pelas superioras que se aconselhavam com ela, que as levavam consigo em

suas buscas de apoio político e econômico175. Não havendo um vocativo religioso

para designá-la, ela era chamada pelo “bonito cognome” de “Mamãe Cecília”, com o

qual passou a ser identificada.

De Irmã Cecília, mãe de uma filha especial, as religiosas construíram a

representação de uma mãe que, além de cuidar de sua filha, era reconvertida em

mãe espiritual das religiosas, as quais acolhia e as abençoava. Segundo o modelo

de religiosa proposto pela romanização, ela lhes ensinava os valores espirituais da

abnegação e da obediência. Como franciscana, ela se fazia pregadora do

franciscanismo e se constituía intercessora espiritual da Congregação, na medida

em que realizava a função por excelência da vida consagrada: a oração.

Com sua morte, em 1950, a organização pôde reconstruir a imagem da “fundadora”.

Segundo o ideal religioso da romanização, a imagem doméstica de “Mamãe Cecília”

passou a ser um problema e uma contradição, o que justifica a inexistência desse

título nos Relatórios dos sucessivos governos entre 1950 e 1980. As exigências

impostas pela intervenção pontifícia, na década de 1970, obrigaram a organização a

retomar as origens, mas, ao invés de se voltar às fontes do movimento feminino

leigo que resultou em fundação mista de quatro mulheres, transformada em

Congregação em 1900, aquela Comissão retomava a interpretação da fundação

construída em 1950, de que ela fora fundada por aquela religiosa, mas a reconstruiu

compondo uma unidade onde, até então, havia distinção: “Mamãe Cecília” se

tornava a outra faceta da Irmã Cecília, a “fundadora”.

175 Na carta da Congregação enviada ao bispo Dom Barreto, pedindo autorização para encaminhar a solicitação de anexação à Ordem Franciscana, em Roma, Irmã Cecília assinou o documento logo após a superiora Irmã Ignez e antes da equipe de governo, composta por quatro irmãs. No documento enviado anexo, aparece sua assinatura em primeiro lugar, seguida da identificação “Fundadora”, e somente depois vêm as assinaturas da superiora geral e das irmãs que compunham a equipe de governo (MARCON, IV, 1992).

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Disso concluímos que, acatar a leitura de uma fundação leiga parece ter sido visto

como ameaça àquela arquitetura construída durante toda a romanização, a qual

permitira a formação de significativo patrimônio, não só material, mas especialmente

simbólico. Melhor seria manter a leitura de Irmã Cecília como fundadora e importante

formadora da organização. A saída foi espiritualizar o período conhecido como chalé

e demonstrar como a singela representação religiosa de “Mamãe Cecília”

reconstruía a unidade religiosa da organização.

Por fim, trazemos à luz um pequeno livreto que parece revelar a disputa entre os

defensores da figura de fundadora e da de Mamãe Cecília. Trata-se da obra A

alegria de viver, do frei carmelita Patrício Sciadini, primeiro postulador da causa de

beatificação176. Apesar do conteúdo do livreto não ser original, pois é baseado nas

informações do Dossiê e na biografia escrita por Pedroso, ele elegeu como objetivo

de sua obra destacar a maternidade física, chegando mesmo a sugerir que ela

pudesse ser aclamada santa protetora das mães de filhos especiais ou com

deficiência (SCIADINI, 2000). A considerar o fato de o postulador ter sido

substituído, e, que o acento à maternidade física acabou sendo deixado de lado, é

de supor que a Congregação avaliou como tal proposta destacaria mais a figura da

mãe que a da fundadora, e, portanto, tal representação deixou de ser promovida e

incentivada.

Ao nos aproximarmos da segunda década, do segundo século da fundação vemos

que essa decisão revelava a opção da organização em continuar a ser pela

institucionalização. Isso é bastante compreensível, porque, de fato, a sua identidade

foi assim constituída; em uma Igreja clericalista, ela se fez clericalizada e continuou

confirmando essa escolha. Todavia, arriscaríamos concluir que o reconhecimento da

santidade de uma religiosa, que optou por exercer a função materna sem deixar de

ser religiosa, reaproximaria muito mais a Congregação de suas origens, pois,

quando foi fundada, o fato de Antônia de Macedo ser mãe não lhe fora um

empecilho.

176 Postulador da causa é a figura (bispo, padre ou leigo) que assume a função de advogar a favor da causa do candidato a Santo. Cabe a ele buscar meios de promover a santidade através das provas colhidas. Tendo o processo e as virtudes heroicas sido aceitos pela Santa Sé, já se obtém a declaração de Venerável. A comprovação de ao menos um milagre permitirá que aquele venha a ser declarado beato e, por fim, a comprovação de outros milagres permitirá a declaração de sua santidade.

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7. A Congregação religiosa, herdeira de Mamãe Cecília

Os balancetes indicam que algumas irmãs deixaram heranças para a Congregação.

Essa realidade passou a existir depois que os estados liberais impuseram às Ordens

religiosas e às congregações que seus membros deveriam conservar o direito de

receber e transmitir doações (CDC de 1917, § 569). A saída encontrada pelo

Concílio Plenário Latino-Americano, de 1889, para receber candidatos, foi permitir

que todos os religiosos conservassem a posse de seus bens, sem, no entanto,

poder administrá-los, pois deveria ser confiado a outro religioso testamenteiro,

geralmente da própria organização religiosa a qual pertencia (PONTIFICIA

COMMISSIO PRO AMERICA LATINA, 1989). Isso não impediu que religiosas

deixassem seus poucos bens às suas congregações, o que pode ser comprovado

em vários balancetes que trazem registros de legados de irmãs falecidas. No ano

1951, consta que o montante acumulado por meio de heranças de religiosas era de

Cr$ 347.720,54. Não se tratava de uma grande quantia, mas o correspondente à

metade das despesas com alimentação da Casa Mãe e do Noviciado naquele último

sexênio (RELATÓRIO de 1945-1951, Anexos 6 e 7, respectivamente).

Dentre os documentos de doações recebidas, destaca-se o testamento da ex-

superiora, realizado em 1940. Após saber que era herdeira de seu primogênito, que

faleceu em 1939, partilhou seus bens entres os membros de sua família, destinando

a quarta parte da herança para seus netos, outra quarta parte para sua filha Rosa e

as duas partes restantes para suas filhas espirituais. A condição imposta para tal

doação foi de que a Congregação assumisse o cuidado de sua filha, Rosa Martins

de Macedo Ferreira, após sua morte. O testamento indicava que a parte destinada à

filha, correspondente a 25% da herança, ficaria sob a responsabilidade do Asilo,

para o custeio de suas despesas até a morte desta, e o que sobrasse passaria a

fazer parte dos bens da instituição (VEIGA, 1991)177. Algumas cartas e documentos,

existentes no Arquivo da Congregação, indicam algumas razões do prolongado

processo de partilha, que durou quatro anos, o que nos permite deduzir que, em

177 Testamento público de Antônia Martins de Macedo, lavrado em 02 de novembro de 1940 e registrado no 1º Tabelião de Notas, livro 318 folhas 98, 99 e 100. Sua filha, Rosa Macedo Martins, faleceu em 18 de julho de 1956 e seu outro filho, Antônio Macedo Ferreira, falecera em 1924, deixando esposa e três filhos, netos de Irmã Cecília, os quais se tornaram parte dos herdeiros.

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razão de sua idade avançada, Irmã Cecília optou por assegurar o direito de seus

herdeiros através de testamento. Numa trama digna de um folhetim, emergem os

interesses de seus netos na partilha, os quais acabaram recebendo apenas a quarta

parte178.

O fato de ela ter doado, imediatamente, 50% de seus bens à suas filhs espirituais e

indicado que outros 25%, correspondentes à parte da filha especial, também

integrariam a doação à organização, nos faz pensar, tanto no devotamento que ela

tinha às Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, como também em uma

preocupação bastante prática. A cultura da vida religiosa faz com que o consagrado

estabeleça uma ruptura com os laços familiares, de forma que, mesmo na velhice,

continue vivendo no convento. Tendo vivido a maior parte de sua vida como

religiosa, pode ter-lhe parecido indevido pedir a seus demais familiares que

cuidassem de sua filha após sua morte. Nem mesmo a situação em que Irmã Cecília

se encontrava, desde 1916, fez com que ela deixasse a Congregação. Não é

possível, também, afirmar que seus netos não tenham querido assumir a avó idosa e

a tia doente, mas inexistem documentos que provem o contrário. Não descartamos,

portanto, que tal doação possa ser vista como fruto de seu interesse para que sua

filha fosse cuidada. No seu testamento, a doadora enalteceu as virtudes de suas

irmãs religiosas no cuidado desinteressado aos necessitados. Tal inserção não

parece indicar apenas regra de etiqueta e respeito religioso, mas o desejo de

lembrar às suas irmãs o fundamento da vida religiosa. Ainda, cabe lembrar que a

doação realizada por ela em nada mudou a sua situação como afastada de suas

178 Algumas cartas, reproduzidas no Dossiê enviado à Santa Sé, indicam as razões do prolongado processo e os motivos que poderiam justificar a antecipação da partilha. O primeiro deles é que o seu falecido filho tivera uma companheira ilegítima, que acabou disputando parte da herança. Várias correspondências entre a irmã Cecília e seu sobrinho, Antenor Liberato de Macedo, testemunham que essa contenda, iniciada em 1940, só foi resolvida no início de 1942, através de um formal de partilha, com intervenção judicial (MARCON, 1992, III, 436, 437). O segundo motivo foi a pressão de uma das netas da religiosa, filha de seu outro filho falecido, que, sabendo da herança, recorria à avó dizendo-se necessitada de ajuda. O Dossiê reproduziu três cartas escritas entre abril e outubro de 1943, das quais reproduzimos parte da primeira:

Vovó, (…) A senhora bem podia dar ordem ao Antenor para ele nos dar mensalmente o aluguel de uma das casas da senhora. Isto seria de grande ajutório para nós. A vida aqui em São Paulo está muito difícil (...). Vovó, a senhora podia arranjar para nós uns 200$000 para pagarmos as matrículas da escola e comprarmos livros. (Carta 4/4/1993 MARCON, 1992, III, 423- 424).

Uma carta de Rubens Silveira, seu advogado, indica que lhe coube cinco casas em São Paulo, que foram vendidas por Cr$ 90.000,00 e um terreno em Suarão – São Vicente/SP e Cr$ 22.835,40 em dinheiro como parte das apólices e letras de câmbio (MARCON, 1992, Livro III, 444)

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funções religiosas e, tampouco, provocou sua transferência para o convento, o que

veio a acorrer apenas em 1948. Ela não pedia para si, mas para sua filha.

Por outro lado, na perspectiva que adotamos nesta tese, é possível pensar que à

escolha feita pela Congregação de afirmar-se herdeira de uma fundação única, obra

de Irmã Cecília, a doação que esta fizera se configura como a representação do

ideal de religiosa, que se pretenda enaltecer como aquela que se doa por inteiro,

sem que nada altere seu propósito. Nada em sua vida alterou o seu projeto; nem a

transformação da organização terceira em organização religiosa, nem mesmo os

embates que teve com Nery, tampouco o afastamento de suas funções e o período

vivido no chalé a afastaram do desejo de ser religiosa. Por meio daquela

organização religiosa, ainda que por caminhos tortuosos, ela recebeu os meios para

viver as suas duas opções de vida, a vida religiosa e a maternidade. Agradecida,

aquilo que Mamãe Cecília doou era sinal da oblação de sua vida, o que fazia dela o

maior patrimônio da Organização que fundara. Afinal, o que eram aqueles poucos

bens, perto de todo o patrimônio espiritual que ela acumulou desde o dia em que

entrou na comunidade religiosa da Ordem Terceira de São Francisco? Assim a

Revista do Jubileu de Ouro construiu a narração de um dos seus últimos dias:

Nos derradeiros dias de sua existência, em dado momento, desconhecera onde estava, pedindo que a levassem para o Asilo, e a madre local que lhe fazia companhia, sossegou-a dizendo: A senhora está no Asilo. Veja tudo isto foi a senhora que fez. E ela volveu logo: "Fiz e dei ao Coração de Maria. Dei tudo a Ela, sou sua escrava...”. (JUBILEU ÁUREO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DO CORAÇÃO DE MARIA, 1900-1950, p. 61, grifo nosso)

Em todas as releituras da vida de Antônia de Macedo, depois Irmã Cecília, ela foi o

primeiro e grande patrimônio daquela que veio a ser a Congregação das Irmãs

Franciscanas do Coração de Maria. Da manutenção de sua memória, depende, e

dependerá a organização que fundou.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em função das exigências acadêmicas, concluímos o trabalho de escrita da tese de

acordo com o projeto traçado. Com Michel de Certeau aprendemos que, após o aval

da comunidade acadêmica e as necessárias adequações, ele será concluído e,

finalmente, irá para as mãos de leitores interessados neste argumento. Encerrado,

ele autorizará aos novos leitores lhe darem vida, interpretando-o cada qual a seu

modo, e, possibilitando novas leituras e novos textos. Esta é a função da narração.

Ela não encerra toda a compreensão.

Começamos indicando que boa parte das pesquisas sobre as congregações

religiosas apontam que, a principal razão de elas terem colaborado na construção do

Estado nacional reside em uma aliança da Igreja com o poder estabelecido, na qual

ela teria colocado suas organizações a serviço da construção de uma nação

católica. Nesta visão, Estado e Igreja se revezariam, como sujeitos aliados, na

condução das subservientes organizações, dentre elas as femininas. Tendo elegido

este objeto, intentamos demonstrar que, embora as congregações brasileiras, de

fato, tenham servido aos propósitos eclesiásticos – e nem poderia ter sido diferente

–, esses objetivos escondiam a razão que as motivava, o desejo religioso de serem

reconhecidas pela Igreja e ver suas práticas sociais legitimadas pela sociedade.

Isso nos levou a olhar, e nos debruçar sobre as fontes, a partir de quatro questões

que brotaram durante o processo de construção desta tese: a relação entre a

estrutura e a identidade de uma congregação religiosa brasileira do século XX, e, a

de uma organização imigrada do século XIX; a independência da organização

vivenciada pela madre geral, tão propalada por Langlois; as reais motivações para a

construção do seu patrimônio material; e, por fim, a importante questão da releitura

feita na segunda metade do século XX, que a relançou.

Com relação à primeira questão, demonstramos que as organizações femininas

brasileiras, como as estrangeiras, não nasceram instituídas como congregações.

Elas nasceram de movimentos leigos femininos, como ordens terceiras, associações

pias ou piedosas, associações de mulheres católicas, etc. Demonstramos que, o fato

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de a Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria ter nascido às

portas da romanização como movimento leigo, fez dela uma organização já

enquadrada pelas reformas religiosas do início do século XX; portanto, mais

ortodoxa que as imigradas. Ao aceitar a institucionalização, a ordem terceira, que

tão breve vida teve, de movimento leigo foi convertida, quase imediatamente, em

clero feminino, a serviço dos bispos.

Ao contrário das congregações do início do século XIX, que nasceram e viveram

muitos anos como organizações leigas, e escolheram ser institucionalizadas, ela não

teve muitas escolhas até porque, sendo filha de uma ordem masculina, já nasceu

controlada pelos frades capuchinhos. Ali começava a construção de uma

representação feminina da congregação religiosa em um mundo de clérigos, pois

era preciso assumir os contornos definidos pela romanização, e, ao mesmo tempo,

garantir que a origem do movimento leigo fosse perpetuada. Entendemos que a

inserção de Irmã Cecília teve este objetivo. Ainda que todo o processo vivido por ela,

e por suas irmãs religiosas, passe uma imagem de extrema subserviência daquelas

mulheres, uma análise mais atenta fez com que percebêssemos que as religiosas

souberam arranjar meios de conservar mãe e filha com elas. Não se tratou apenas

de gesto de caridade. Elas a mantiveram por perto e souberam fazer uso do seu

capital social e simbólico a favor da organização.

A segunda questão, sobre a independência – tão propalada por Langlois – da

organização vivenciada pela madre geral, que não víamos nas congregações

religiosas brasileiras, tem sua explicação nas formas de controle que a Santa Sé

criou para conter o movimento congregacional. Demonstramos que, à medida que o

número de congregações reconhecidas crescia, as exigências impostas para tal

benefício se tornavam cada vez mais complexas, principalmente a que impôs que os

novos institutos deveriam ter um período de provação para alcançar o direito

pontifício. Para impedir o controle dos religiosos fundadores, a saída foi colocar as

congregações sob o direito diocesano. Isso se configurou em uma questão de

política eclesiástica que envolveu os dois primeiros bispos de Campinas e os frades

capuchinhos, na disputa da direção e controle do instituto feminino, o que foi muito

profícuo para a organização. Se, nos primeiros 20 anos, a presença dos frades foi

muito intensa, e graças a eles a Congregação conseguiu a agregação à Primeira e à

Segunda Ordens Franciscanas e depois obteve o documento que legitimava a sua

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fundação, de outro lado, a presença dos bispos foi fundamental para a abertura de

novos postos de trabalho, especialmente nas escolas, e, depois, na transferência da

sede de Piracicaba para Campinas. Dotados de poder simbólico, religioso e político,

os frades e os bispos lhe emprestaram sua rede de influências junto às elites. Na

perspectiva apontada por Bourdieu, os múltiplos interesses deles e da Igreja

promoveram os interesses da organização feminina.

A questão do poder da madre não residia, então, no fato de ser uma organização

brasileira, mas no fato de ser uma congregação recém fundada e que, naquele

momento, estava sob o direito diocesano. Avaliamos que, os 50 anos sob o domínio

episcopal, a condicionaram de tal forma, que a madre geral, que recebeu o

documento do direito pontifício, continuou agindo como se ainda estivesse sob as

ordens do bispo.

Desde o início de nossa pesquisa nos perguntávamos pela justificativa do patrimônio

material. Quais as razões de tanto empenho para multiplicar as obras e construir um

sólido patrimônio material, se o senso comum indicava que a função das

organizações religiosas era espiritual? Cabia à Congregação, constituir reservas

econômicas que lhe assegurassem o bem-estar de todos, manter suas estruturas

para o bom funcionamento de suas obras e garantir meios para sobrevida em

tempos de dificuldades. Ainda que tais justificativas tenham se mostrado plausíveis,

o simples desejo não lhe permitiria tal acúmulo de bens. Era, pois, preciso encontrar

as estratégias e as práticas que lhe permitiram este sucesso.

Em um primeiro momento, interpretamos que a razão do acúmulo de bens advinha

da convergência de dois fatores: a possibilidade que a organização teve angariar

fundos, ao fazer parcerias com setores do governo e com a elite, nos serviços que

assumira; e, a rígida disciplina imposta às religiosas, nas quais os votos de

obediência e pobreza teriam incutido a prática da poupança. Analisando

prolongadamente os demonstrativos econômicos e financeiros, constatamos que

realmente isso aconteceu, mas não na perceptiva individualista apontada por Weber.

Entendemos que o modelo vinha da tradição medieval dos mosteiros autônomos,

em que todos os monges se empenhavam na construção de reservas para tempos

difíceis. Ao assumirem uma economia urbana, ligada à produção industrial, as

religiosas se fizeram “trabalhadoras” para construir o patrimônio da organização.

Todavia, elas não foram capazes de identificar-se com a condição dos

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242

trabalhadores. Durante muito tempo, induzidos pelas fontes, utilizamos a expressão

“salário” para nos referir às côngruas, que as religiosas recebiam como contrapartida

por seus trabalhos nas obras de outrem. Ficou claro que, sendo elas associadas ao

empreendimento onde trabalhavam, não eram elas empregadas; talvez “sócias”

beneficiárias de uma organização comunal ou familiar. Fiéis ao voto de pobreza e a

espiritualidade franciscana, as Irmãs religiosas viveram a pobreza extrema,

enclausuradas nas escolas, orfanatos, asilos e hospitais. Na contribuição de cada

religiosa, o sucesso econômico da Congregação tinha um objetivo espiritual, de

ampliar as frentes da missão e, ao receber o reconhecimento pontifício, se colocar a

serviço da Igreja. Esse reconhecimento significava a libertação de muitas amarras

eclesiásticas, mas, principalmente, era a aprovação da Igreja de que aquele modelo

de vida, nascido leigo, da organização das mulheres católicas, em função dos

desafios sociais, era uma obra religiosa. Ele selava a certeza de que, apesar dos

caminhos tortuosos, o instituto nascera religioso.

Por fim, a importante questão da releitura realizada pela organização.

Paradoxalmente, quando a Congregação alcançou o tão esperado reconhecimento,

que lhe daria possibilidade de, ela mesma, se tornar missionária e se expandir mais

ainda, o tempo se lhe demonstrou desfavorável. Tendo nascidas quando o

movimento congregacionista europeu perdia força, em razão das muitas mudanças

políticas e sociais que já anunciavam a secularização e a laicização, as

congregações brasileiras não tiveram o mesmo tempo e as mesmas condições para

expandir-se como congregações do século XIX. As tradicionais áreas que a Igreja

ocupara, quase que sozinha, através das congregações religiosas, passavam a ser

consideradas, inclusive pela opinião pública, como de responsabilidade do governo

– hoje, as chamadas políticas públicas –, e isso acabou reduzindo a possibilidade

das religiosas continuarem naqueles espaços exercendo as mesmas funções e nas

mesmas condições daquela época. Também não pode ser esquecido, que o

Vaticano II, ao propor a releitura do lugar dos organismos católicos, levou as

religiosas a se perguntarem se as tradicionais obras, como escolas e hospitais,

eram, de fato, seus lugares, até porque interpretaram que a organização da qual

faziam parte estivera naqueles espaços mais em razão do baixo custo para a

sociedade do que pela sua contribuição religiosa.

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243

Isso não significa dizer que a secularização e a laicização tenham levado ao fim as

congregações, mas, ao fim de um modelo organizacional que não mais correspondia

aos anseios da sociedade. Não tendo tantas possibilidades de atuar em serviços

sociais, não tendo grandes ondas de recrutamento, a organização voltou a crescer

no ritmo próprio de qualquer outro organismo religioso. Se o declínio de ofertas para

a abertura de novos empreendimentos nos pareceu, em um primeiro momento, o

declínio da Congregação, logo percebemos ser o contrário. A sua nova situação

social, em uma sociedade secularizada, impôs que ela se reinventasse. Da mesma

forma, as congregações do século XIX assumiram uma plasticidade capaz de

amoldá-las para cumprir as exigências que emergiram naquela época; também, as

organizações brasileiras se reinventaram e se relançaram como missionárias em

uma sociedade cada vez mais secularizada. Assim preconizara o Vaticano II,

através do Decreto conciliar Perfectæ Caritatis, que propôs a todos os organismos

revisitar a sua origem e recuperar a fonte inspiradora que o lançou na sociedade, no

final do século XX.

Não negamos que esta tese nasceu motivada pelo estudo do patrimônio material da

Organização, mas, tal como em um iceberg, descobrimos que, o que se vê, a sua

materialidade, é menos importante que aquilo que está escondido. O não dito do

patrimônio material revela imenso patrimônio cultural, construído ao longo da história

da organização. Se o patrimônio material tornou-se menos intenso em razão do

movimento congregacional ter se diluído na sociedade secularizada, o que a

sustenta e a motiva são as heranças espirituais dos fundadores, do franciscanismo e

a ação de cada grupo de religiosas que, a cada dia, reinventava o modo de se ser

religiosa na Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria. Assim,

mais importante que todo o patrimônio material, foi a construção da representação

de um organismo franciscano, composto de irmãs pobres, que contava com as

doações dos beneméritos da sociedade para socorrer os pobres dessa mesma

sociedade. Bem expressou a madre Maria São Francisco do Divino Coração, na

carta enviada ao bispo, em 1945, quando afirmou que a pobreza das irmãs se

constituía na maior riqueza da organização. A pobreza das religiosas construíra o

patrimônio material e espiritual da Congregação. Destarte, seu maior patrimônio foi

conseguir construir uma cultura religiosa essencialmente feminina, não tanto porque

as religiosas tivessem consciência das lutas do movimento feminista, mas por terem

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244

se mantido mulheres, outras, em um sistema masculino, na Igreja ou na sociedade,

que lhes reconheceu aquele espaço.

No processo de releitura da organização, emergiu também a figura e o lugar de sua

fundadora. Como organização religiosa, a representação de Irmã Cecília caminhou

da imagem da fundadora, candidata a santa, à mulher que soube se manter firme no

cuidado de sua filha. A releitura uniu as duas e fez, da mulher, a mãe de Rosa, a

mãe das religiosas, a Mamãe Cecília. Claro, em uma história contada por religiosas,

predominaria a representação da figura da religiosa. Todavia, a abertura e a

construção do processo de beatificação revelam dupla representação: a fundadora e

a mãe. Mais do que um impasse, a Congregação optou pelas duas, reconstruiu Irmã

Cecília como fundadora, mãe das religiosas e modelo de freira, a ponto de

apresentá-la como candidata aos altares, fazendo dela seu importante patrimônio e

atualizando o seu carisma.

As mudanças ocorridas na sociedade exigiram que a organização também mudasse.

Ao se considerar que a identidade das congregações está associada às demandas

sociais, ainda há campo para ela existir. Tais desafios se configuram como fonte e

motivação para a continua renovação do patrimônio cultural da Congregação das

Irmãs Franciscanas do Coração de Maria.

A tese, que aqui se encerra, trouxe inúmeros questionamentos que foram surgindo

ao longo da elaboração do texto. Nem todos puderam ser aprofundados, mas se

abrem, a nós e aos leitores, como novas perspectivas de pesquisas. Oxalá,

possamos nos voltar a eles brevemente.

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245

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3.1. Relatórios

Relatório da Congregação das Irmãs Terceiras Franciscanas de Piracicaba, 1918 -

1921

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246

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

ano ao período 1927-1933.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

ano de 1941.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

ano de 1945.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

período 1945-1951.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

período 1951-1957.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

ano ao período 1957-1963.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

período 1963-1969.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

período 1969-1973.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

período 1979-1985.

Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, relativo ao

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1921

1932 - Constituições das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, Campinas.

1958 - Constituições das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, Campinas.

3.3. Outro documento

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247

Livro de Registro de Admissão das Religiosas: “Irmãs Franciscanas do Coração de

Maria”, Arquivo geral da Congregação, Campinas, s/d

4. Revistas Comemorativas

As Irmãs Franciscanas do Coração de Maria 1900-1940, Campinas, 1940.

Jubileu Áureo das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria 1900-1950, Campinas,

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Piracicaba. As Irmãs Franciscanas do Coração de Maria 1900-1940, Campinas,

1940, p. 6

Figura 4 - Fotografia de Irmã Cecília, fundadora e primeira superiora geral da

Congregação. As Irmãs Franciscanas do Coração de Maria 1900-1940, Campinas,

1940, p. 31.

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capuchinhos – Piracicaba. Igreja dos Frades: Arte e história de um dos mais belos

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Figura 7 - Fundadoras do Asilo Maria Nossa Mãe, de Piracicaba. As Irmãs

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Figura 8 - Santa Casa – Descalvado. Jubileu Áureo das Irmãs Franciscanas do

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quarta a partir da esquerda). As Irmãs Franciscanas do Coração de Maria 1900-

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Figura 19 - Educandário Divina Pastora, Uraí – Paraná. Recordações Franciscanas,

Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria, 1962, Campinas, p.47.

Figura 20: Quarto onde Irmã Cecília viveu seus últimos dias, Asilo Maria Nossa Mãe

– Piracicaba. Arquivo Geral da Congregação, s/d.