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30 31 REVISTA UNIARA, n.20, 2007 A TITULARIDADE DO PODER DE POLÍCIA: A EVOLUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO E DE DIREITO COM A TRANSFERÊNCIA DO PODER DE POLÍCIA AO CIDADÃO Manoel Ilson Cordeiro Rocha* Introdução “O Poder de Polícia” no Direito Administrativo e no Estado Democrático de Direito é o poder de governo, dentro da legalidade, destinado a condicionar a liberdade e a propriedade aos interesses coletivos. Corresponde, no ordenamento jurídico brasileiro, a atos do legislativo e do executivo destinados a este fim. É uma decorrência do poder de império do Estado, mas combinado com a estrita legalidade do Estado de Direito e com a responsabilidade política do regime republicano, é qualificado pelo papel de instrumento realizador destes princípios do Estado e ao mesmo tempo instrumento limitado por estes princípios. O Estado de Direito, como padrão de organização do sistema coercitivo do Estado Liberal Democrático e iluminista, pautado na racionalização do Direito e na realização das liberdades individuais, tem, pelos princípios da legalidade e da supremacia do interesse coletivo, a ação de polícia sobre o cidadão. O poder de polícia, assim, destina-se a garantir o próprio Estado de Direito e os seus fundamentos de racionalidade e promoção das liberdades individuais. Porém, a democracia mostrou-se frágil em diversos momentos e como resultado das tensões sociais pela efetiva participação no governo e na riqueza social, novos direitos foram edificados na condição de direitos fundamentais, compondo várias gerações de direitos e caracterizando a Democracia de Direito como um processo contínuo de maturação destes direitos fundamentais. Como o Estado mostra-se continuamente ineficiente na plena efetivação *Mestre em Direito Público, professor de Teoria Geral do Estado e Ciência Política da UNIARA e da FAFRAM/Ituverava e professor de Direito Administrativo e Direito Internacional da UEMG/Passos.

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30 31REVISTA UNIARA, n.20, 2007

A TITULARIDADE DO PODER DE POLÍCIA: A EVOLUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO E DE DIREITO COM A TRANSFERÊNCIA DO PODER DE POLÍCIA AO CIDADÃO

Manoel Ilson Cordeiro Rocha*

Introdução“O Poder de Polícia” no Direito Administrativo e no Estado Democrático

de Direito é o poder de governo, dentro da legalidade, destinado a condicionar a liberdade e a propriedade aos interesses coletivos. Corresponde, no ordenamento jurídico brasileiro, a atos do legislativo e do executivo destinados a este fim. É uma decorrência do poder de império do Estado, mas combinado com a estrita legalidade do Estado de Direito e com a responsabilidade política do regime republicano, é qualificado pelo papel de instrumento realizador destes princípios do Estado e ao mesmo tempo instrumento limitado por estes princípios.

O Estado de Direito, como padrão de organização do sistema coercitivo do Estado Liberal Democrático e iluminista, pautado na racionalização do Direito e na realização das liberdades individuais, tem, pelos princípios da legalidade e da supremacia do interesse coletivo, a ação de polícia sobre o cidadão. O poder de polícia, assim, destina-se a garantir o próprio Estado de Direito e os seus fundamentos de racionalidade e promoção das liberdades individuais.

Porém, a democracia mostrou-se frágil em diversos momentos e como resultado das tensões sociais pela efetiva participação no governo e na riqueza social, novos direitos foram edificados na condição de direitos fundamentais, compondo várias gerações de direitos e caracterizando a Democracia de Direito como um processo contínuo de maturação destes direitos fundamentais. Como o Estado mostra-se continuamente ineficiente na plena efetivação

*Mestre em Direito Público, professor de Teoria Geral do Estado e Ciência Política da UNIARA e da FAFRAM/Ituverava e professor de Direito Administrativo e Direito Internacional da UEMG/Passos.

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desses Direitos e do ideal democrático, edifica novos Direitos para suprir a deficiência.

A partir da doutrina do Poder de Polícia, de inovações na legislação brasileira e da necessidade de identificar a evolução do Direito, este artigo propõe um avanço no deslocamento da titularidade do poder de polícia do Estado para o cidadão, como perspectiva para um novo direito fundamental.

A doutrina do poder de políciaA doutrina do Poder de Polícia se ocupa principalmente de distinguir o

conceito mais amplo, identificado com o conjunto das limitações do Estado às liberdades do cidadão, e às intervenções do Poder Executivo destinadas a garantir estas limitações, como polícia administrativa propriamente dita – um conceito mais restrito. Também ocupa-se de diferenciar-se da polícia judiciária; de distinguir seu caráter limitativo de interesse coletivo e das servidões administrativas de natureza real. O Poder de Polícia é uma atividade negativa, legal, discricionária, preventiva, auto-executória e coativa. Mas quanto à sua titularidade, não se polemiza, pois o entendimento é de que o traço característico da atividade de polícia é “provir privativamente de autoridade pública”¹, realizando-se debates apenas quanto ao alcance dos órgãos públicos responsáveis: ou trata-se de uma atividade do poder administrativo ou também é poder de polícia o ato de legislar sobre o tema.

Na evolução do Poder de Polícia podemos, no entanto, extrair uma lição importante: com o tempo ele passa a refletir os fundamentos do Estado em seu tempo. Segundo Fiorini (1957), resumindo esta evolução, na Grécia antiga não se cogitava o uso do Poder de Polícia porque o grego não tinha a liberdade que motivasse o Estado a restringir em defesa da coletividade. O grego era, antes de tudo, um cidadão como parte da cidade-estado e as necessidades formalmente reconhecidas a serem satisfeitas eram as públicas. A Roma antiga conheceu direitos individuais e uma função policial de limitação, mas eram direitos voltados para a grandeza e poder do Império Romano, e não para o próprio indivíduo. A função policial no Estado Absolutista se confundia com o próprio poder absoluto, diferente da noção do Estado liberal, que se reduz a assegurar direitos adquiridos. Na sua noção liberal, o Poder de Polícia é o instrumento do Estado Democrático de Direito de coibição da perturbação da ordem, no campo da salubridade, da segurança e da tranqüilidade públicas. Mas os interesses coletivos alcançados hoje já incluem a economia, costumes e outros

1. Celso Antônio Bandeira de Mello reitera o posicionamento de Cirne Lima, do seu “Princípios de Direito Administrativo”, onde ainda enfatiza que busca-se, por exemplo, excluir de seu âmbito a reclusão compulsória, de louco, promovida por parente. (MELLO, 1969, p.58)

vários. É esta última a noção originária no Estado Democrático de Direito, mas a maior intervenção do Estado no século XX ampliou consideravelmente o rol desses direitos que, sendo coletivos, representaram maiores limitações à ação do indivíduo. O Estado neoliberal ainda se reserva na prerrogativa do poder de polícia, mas tem dificuldade de efetivar os direitos do cidadão, dando margem a repartir esta prerrogativa com o cidadão.

Sobre o Poder de Polícia indicamos Celso Antônio Bandeira de Mello, que figura entre os administrativistas brasileiros que se dedicaram ao tema, num importante artigo - “Apontamentos sobre o Poder de Polícia”, RDP 9/1969, entre os mais citados na doutrina. Convém destacar também a obra específica de Fiorini para entender a evolução do conceito e John Clarke Adams e compreender as diferenças entre a noção do Direito norte-americano e o Direito europeu. Para a noção de Poder de Polícia na doutrina atual recorremos a Caio Tácito (1952): “O poder de polícia, que é o principal instrumento do Estado no processo de disciplina e continência dos interesses individuais, reproduz, na evolução de seu conceito, essa linha ascensional de intervenção dos poderes públicos. De simples meio de manutenção da ordem pública ele se expande ao domínio econômico e social, subordinando ao controle e à ação coercitiva do Estado uma larga porção da iniciativa privada”. Também segue abaixo ampla bibliografia a respeito.

O cidadão como titular do poder de políciaO conceito de Poder de Polícia foi elaborado a partir do fenômeno

constatado nas relações de administração pública². Mas o fenômeno, desde a sua origem, sofreu transformações e são essas transformações que nos permitem promover uma reavaliação e propor uma interpretação do sistema jurídico brasileiro tendente a concluir que a titularidade do Poder de Polícia já não repousa somente no Estado, mas também no cidadão.

Não ocorre que a doutrina clássica não percebeu o problema. Mas que alterações na ordem social e no nível de organização da sociedade civil

2. “Pode-se definir a Polícia Administrativa como ‘a atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou decretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo’” (MELLO, 1969, p.62). O ordenamento jurídico brasileiro tem um conceito de Poder de Polícia no artigo 78 do Código Tributário Nacional. Convém observar, porém, que o Poder de Polícia é um poder administrativo, não é um poder político - em sentido estrito. Portanto, a referência doutrinária à polícia administrativa pode ser entendida como a polícia para a administração e não somente a polícia da administração.

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impulsionaram mudanças na ordem jurídica que justificam a questão proposta. Essas mudanças foram observadas no sistema jurídico brasileiro, exigindo uma análise a respeito. Já na Constituição de 88 e mais claramente no Código de Defesa do Consumidor, o legislador tem transferido ao “cidadão” parte do controle público sobre o “indivíduo”.

Para o sistema jurídico brasileiro, a hipótese levantada encontra-se na Constituição de 88 - como a legitimidade para a ação popular, exposta no inciso LXXIII do art. 5º - e outras mais enfáticas no Código de Defesa do Consumidor - no seu artigo 6º combinado com os artigos 81, 82 e 91 – pela ação civil coletiva de iniciativa do cidadão. São hipóteses onde os direitos defendidos não são individuais, mas da coletividade, pela defesa do patrimônio público ou pela defesa dos direitos do consumidor, e em sentido amplo correspondem a atos de polícia, com restrições ao indivíduo na defesa da coletividade.

Porém, entre as leituras feitas até então, nenhuma houve que questionasse a titularidade do Poder de Polícia³. Estes dispositivos conferem, entretanto, uma interpretação ampliativa, dando ao cidadão o direito subjetivo de “controle social do poder”, com vistas a preservar, sem a dependência de iniciativa do poder público, o patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente, e o patrimônio histórico e cultural, por exemplo.

O Poder de Polícia, como limitação das liberdades individuais, é instrumento de garantia das obrigações públicas do particular para com a coletividade.

Serve para reforçar a tese a assertiva de Carlos Ayres Britto (1993, p.82): “A fiscalização que nasce de fora para dentro do Estado é, naturalmente, a exercida por particulares ou por instituições da sociedade civil. A ela é que se aplica a expressão ‘controle popular’ ou ‘controle social do poder’, para evidenciar o fato de que a população tem satisfações a tomar daqueles que formalmente se obrigam a velar por tudo que é de todos”.

3. “O poder de polícia descansa na supremacia geral da Administração Pública; isto é, na condição que esta desfruta, em relação aos administrados, indistintamente, de superioridade, pelo fato de satisfazer, como expressão de um dos podêres do Estado, interêsses públicos” (MELLO, 1969, p.57). “Normalmente, o poder de polícia se expressa como uma prerrogativa da Administração Pública porque, muitas vezes, a lei estabelece os contornos genéricos de um direito, deixando à discricionariedade da Administração Pública a sua aplicação e o enquadramento aos casos concretos” LIMA, Pérsio de Oliveira. Poder de Polícia e o “due process of law”. Revista de Direito Público. São Paulo: RT, n.35/36, jul./dez. de 1975, p. 147. “O que todos os publicistas assinalam uniformemente é a faculdade que tem a Administração Pública de ditar e executar medidas restritivas do direito individual em benefício do bem-estar da coletividade e da preservação do próprio Estado. (...). O seu fundamento está na supremacia geral que o Estado exerce em seu território sobre todas as pessoas, bens e atividades” MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 123.

Concluir como sinais dados pelo legislador brasileiro, de transferência de parte do poder de polícia ao cidadão na Constituição de 88 e no Código de Defesa do Consumidor, é a melhor interpretação para um fenômeno jurídico de edificação de um novo direito fundamental no processo de evolução da democracia.

O poder de polícia do cidadão como novo direito fundamental também indica a solução para o clássico problema do mandato. A ineficiência e a superficialidade do mandato político na participação popular das democracias indiretas de grandes Estados sempre inquietaram os defensores da democracia. Considerando que a soberania popular legitima o Estado de Direito, a racionalização a que se propõe deve ampliar a participação do cidadão nos limites do interesse público. O problema se esbarra na funcionalidade exigida pela complexidade das sociedades de massa, contudo, a proposta não é a absoluta transferência da execução do poder de polícia ao cidadão, mas hipóteses viáveis e racionais em prol da realização do princípio democrático ante a ineficiência dos mandatários nas democracias indiretas.

A transferência do Poder de Polícia ao cidadão não é uma privatização desta função essencialmente pública, e sim, como no sentido grego de cidadania, uma função pública do cidadão.

Referências:

ADAMS, John Clarke. El Derecho Administrativo Norteamericano. Buenos Aires: Ditorial Universitaria de Buenos Aires, 1964.

BEZNOS, Clóvis. Poder de Polícia. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1979.

BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular”. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n.2, p. 82-88, 1993.

FIORINI, Bartolomé A. Poder de polícia. Buenos Aires: Editorial Alfa, 1957.

GRAU, Eros Roberto. Poder de Polícia. Função administrativa e princípio da legalidade. O chamado “Direito Alternativo”. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n.1, p. 88-103, 1993.

LEAL, Aurelino. Polícia e Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918.

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994.

______. Apontamentos sôbre o Poder de Polícia. Revista de Direito Público, São Paulo, n.9, p.55-68, jul./set. de 1969.

TÁCITO, Caio. O Poder de Polícia e seus limites. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol.27, p.1-10, jan./mar. de 1952.

______. Poder de Polícia e Polícia do Poder. Revista de Direito Público, São Paulo, n.74, p.63-69, abr./jun. de 1985.

Resumo:A partir da doutrina clássica do Poder de Polícia, este artigo propõe um avanço do deslocamento da titularidade do poder de polícia do Estado para o cidadão. Aponta algumas tendências na legislação e as implicações desta tese.

Palavras-chave:Poder de Polícia, Democracia, Cidadania.

MARKETING POLÍTICO EM UMA GESTÃO PARTICIPATIVA: A POLÊMICA EM DISCUSSÃO

Luciana Antoniosi*Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante**

IntroduçãoA vitória do Partido dos Trabalhadores - PT nas eleições municipais da

cidade de Matão no início de 1997 gerou inquietações, surpresas e expectativas em toda a sociedade local, pois isso não representava apenas a conquista do poder por um partido de esquerda que tinha uma proposta inovadora e democrática de desenvolvimento apoiado pelos setores populares, mas a quebra de pactos tradicionais que se fazem presentes na história política da cidade. Referimo-nos ao rompimento de uma hegemonia política que teve início em 1969 com o então MDB e permaneceu até 1996, totalizando 28 anos do então PMDB no poder executivo matonense.

No ano de 1996, um novo cenário político foi definido pelas eleições municipais. Com uma diferença de apenas 123 votos entre o candidato eleito do Partido dos Trabalhadores e o segundo, do PSDB, o PT chega pela primeira vez ao comando do poder executivo municipal. Um momento em que houve alteração do comportamento eleitoral pela necessidade de mudança oriunda da insatisfação político-econômica e que resultou na quebra do continuísmo, tornando-se um marco na história política da cidade.

Governando uma cidade com mais de 90 mil habitantes, o grande desafio do PT foi administrar as dívidas, herança deixada por administrações anteriores, conhecer a máquina administrativa, captar recursos, melhorar e ampliar a

* Consultora na área de Marketing e Comunicação. Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente – Uniara, Especialista em Marketing Estratégico pela FGV. Bacharel em Comunicação Social – Propaganda e Marketing – UNAERP. Docente do Instituto Matonense Municipal e Ensino Superior – IMMES e do Centro Universitário de Araraquara – Uniara. Publicação da autora. 1. Marketing Político em uma Gestão Participativa: um estudo de caso da Prefeitura Municipal de Matão-SP/ Araraquara, 2005. 140 p. ilus. E-mail: [email protected].** Coordenadora e Docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente. Centro Universitário de Araraquara – Uniara. E-mail: [email protected].

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